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GT: Artes Visuais Eixo Temático: Pesquisa no ensino de Artes Visuais: narrativas e metamorfoses contemporâneas

SENSORIALIDADE, PERCEPÇÃO E EXPERIÊNCIA NA OBRA DE LYGIA CLARK

Caroline Moreira Bacurau (UFPB/PB/Brasil)

Maria das Vitórias Negreiros do Amaral (UFPE/PE/Brasil)

RESUMO
O presente artigo discorre acerca das relações entre perceber o mundo e simbolizá-lo na
forma de objetos/conceitos artísticos. Para tanto discorre sobre pontos que norteiam a percepção
humana, suas relações com a cultura, constituição do imaginário e interlocução entre os sentidos.
Sabendo da importância do sentir para uma adequada educação estética, apresento a concepção
de sinestesia e suas incursões no campo da arte. Exemplifico a sensorialidade marcante de parte
das obras de Lygia Clark, e como suas proposições podem ser problematizadas para (re)orientar
o ensino de artes visuais. Os dados aqui utilizados foram coletados por revisão bibliográfica e
impressões da autora a partir da interação com algumas obras de Lygia Clark em exposição
realizada em 2012. Sabendo das limitações inerentes a essa produção textual, busco provocar
artistas e arte-educadores no sentido de construírem relações mais físicas entre objetos de arte e
públicos/estudantes.
Palavras-chave: Artes Visuais; Sensorialidade; Lygia Clark

SENSORIALITY, PERCEPTION AND EXPERIENCE IN LYGIA CLARK'S WORK

ABSTRACT
The present article talks about the relationship between perceiving the world and symbolize
it in the form of objects / artistic concepts. For that discusses points that guide human perception,
its relations with culture, imaginary constitution and dialogue between the senses. Knowing the
importance of a proper feel for aesthetic education, introduce the concept of synesthesia and its
incursions into the field of art. Exemplify the remarkable sensory part of the works of Lygia Clark,
and how their propositions can be problematized to (re) direct the visual arts education. The data
used were collected by literature review and impressions of the author from the interaction with
some works by Lygia Clark in exhibition held in 2012. Knowing the limitations inherent in this

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textual production, I seek to cause artists and art educators in order to build relationships more
physical between art objects and public / students.
Keywords: Visual Arts; Sensoriality; Lygia Clark

Introdução
Estamos cotidianamente criando interpretações para a realidade tangível que nos
chega através dos sentidos, assim, apoiamo-nos na nossa percepção para conhecer,
reconhecer e mesmo criar modelos que nos permitam construir abstrações do mundo que
nos rodeia.
As questões que transitam sobre a percepção, indagam: Como percebemos?
Todos percebem da mesma forma? Seria prudente acreditar em nossas percepções? Tais
problematizações são levantadas desde a antiguidade, quando filósofos como Heráclito,
Parmênides, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles interagiram com essa noção
teórica (CHAUI, 2012). No campo educacional temos a valorização da percepção apoiada
nas pesquisas de Piaget que estabelece como a primeira fase do desenvolvimento
humano, a sensório-motora, ou seja, a exploração do ambiente pelos movimentos e
sentidos:

O primeiro é o estágio sensório-motor, pré-verbal, durando


aproximadamente os 18 primeiros meses de vida. Durante este estágio
desenvolve-se o conhecimento prático, que constitui a subestrutura do
conhecimento representativo posterior (PIAGET, 1972; s.p)

O papel dos sentidos na construção do conhecimento também é defendido por


Nascimento (2010), quando afirma que tudo o que conhecemos sobre o mundo e sobre
nós mesmos, decorre da estimulação de nossos órgãos do sentido.
No campo do ensino de artes existe a preocupação com uma alfabetização
estética, a qual também perpassa pela educação dos sentidos, afinal, ler, fruir, interpretar
e/ou recepcionar uma obra de arte visual é acima de tudo ter os sentidos mobilizados
para travar um diálogo com arte.
A percepção construída a partir dos sentidos é tão impactante para os seres
humanos que o desenvolvimento de aparatos tecnológicos, caminha ampliando as
possibilidades de simulação em “realidades virtuais” e os jogos eletrônicos de realidade
alternativa on-line vem ganhando cada vez mais espaço. A própria ausência de um dos
sentidos humanos (principalmente visão e audição) pode ser considerada deficiência
devido a importância que apresenta como aporte aos processos cognitivos e de interação
social.
Nesse sentido, buscamos discorrer sobre como a relação entre os sentidos, numa
perspectiva multissensorial e sinestésica, pode apontar possibilidades para a produção
artística e para o ensino de arte.
Inicialmente discutiremos acerca de algumas características da percepção humana,
onde aproximaremos as questões sensitivas às discussões sobre antropologia do
imaginário, para por fim, apresentar o que podemos entender por sinestesia e que tipo de
pesquisas vem sendo realizadas no âmbito da arte. Citaremos alguns exemplos de
artistas que podem ser associadas à sinestesia, embora nos debrucemos sobre algumas
obras da brasileira Lygia Clark. Ao fim deste artigo apresentamos contribuições dessas
práticas para o ensino de artes visuais.

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1. Referenciais Teóricos
Acreditamos que cada palavra está envolta por uma série bastante ampla de
compreensões e interpretações, assim, visando esclarecer de que forma nos
apropriamos de termos como percepção, imaginário e sinestesia faremos uma breve
síntese teórica de referências que defendemos ser pertinentes.

1.1 Percepção, cultura e imaginário


Inicialmente devemos alertar o duplo caráter que permeia a percepção: biológico
e cultural, assim embora a percepção se dê pela soma de estimulações de nossos
sentidos, a própria responsividade e acurácia de nossos canais sensitivos, não se distribui
homogeneamente nas pessoas.
Considerando uma faixa razoavelmente segura para o que é possível discriminar
como sons, cores, temperaturas, gostos e cheiros por exemplo, não são apenas
características biológicas que se alteram de indivíduo para indivíduo conduzindo a
conformações como daltonismo, ouvido absoluto, miopia ou surdez, por exemplo, há
também, forças de organização coletiva que orientam a percepção. A essas podemos
denominar cultura, essa compreensão é defendida por Leote (2014, p.46):

Evidentemente o ser humano possui maior complexidade nos sensores de


interação, pois, além de todos os sentidos, exibe um sistema nervoso
altamente qualificado e complexo. [...] Esse conjunto é colocado a serviço
de qualquer experiência perceptiva, que não pode ser desvinculada da
cultura [...].

Avaliando as habilidades humanas para perceber o ambiente externo a si,


observamos uma prevalência de produções teóricas que reduzem o estudo da percepção,
a estudos da percepção visual. Para Santaella (2012) tal panorama decorre das
pesquisas empíricas que apontam ser a visão o sentido majoritariamente utilizado para a
orientação humana no espaço. Segundo a autora, podemos associar 75% de nossa
percepção ao sentido da visão, soma- se a isso o próprio desenvolvimento de aparatos
tecnológicos que ampliam seu alcance (telescópio, lupas, microscópios, máquinas
fotográficas, etc), o que não se constata no campo da percepção tátil, gustativa ou
olfativa, por exemplo.
Os dados acima, no entanto, não devem eximir de relevância o estudo da
percepção como um construto coletivo dos sentidos, mente, experiências pregressas e
dados culturais.
A importância dada a percepção, pode ser identificada também nas concepções
de Dewey (2010, p.509) sobre a arte:

Visto que a matéria da crítica estética é a percepção dos objetos estéticos,


a crítica natural e artística é sempre determinada pela qualidade da
percepção direta; a obtusidade na percepção nunca pode ser compensada
por nenhum volume de conhecimentos, por mais vastos que sejam, nem
pelo domínio de teorias abstratas, seja qual for a sua correção.

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Citamos ainda as pesquisas de âmbito interdisciplinar denominadas “pesquisas
pessoa-ambiente”, que integram dados sensoriais às impressões afetivas, mnemônicas e
comportamentais, entre outras possibilidades.
Nesse momento é importante reafirmar que apesar de um aparato básico
disponibilizado coletivamente (por ser orgânico) a forma como a experiência perceptiva se
dá decorre de necessidades que se apresentam em nossas atividades cotidianas. Assim,
embora a visão apareça como o principal sentido para que nos situemos no ambiente, na
ausência da mesma, os demais sentidos geralmente são aguçados para suprir as
informações fornecidas pelos estímulos visuais, de tal forma, que não videntes
desenvolvem uma sensibilidade auditiva superior aos que veem, ou ainda os surdos
apurem sua percepção tátil para vibrações.
O peso da cultura também modela nossa apropriação dos sentidos, assim, para
uma comunidade rural que necessita mais diretamente de condições climáticas ideais, e
viva em área intensamente arborizada e verde, é possível que sua habilidade para
identificar sutis mudanças de matizes verdes seja superior ao um morador de área
urbana. Assim, como um morador da caatinga, poderá identificar com maior propriedade,
mudanças nos matizes acinzentado da vegetação, ou, os esquimós conseguirão
identificar diferentes matizes de branco e associar cor à consistência da neve, lhe
permitindo caminhar com mais segurança. Tais peculiaridades se manifestam não apenas
na percepção, mas interferem no desenvolvimento de denominações para os diferentes
matizes identificados, como relata Arnheim (2008, p.322):

[...] o mundo de uma pessoa é um mundo de objetos, cujas propriedades


perceptivas importam em graus variados. Uma determinada cultura pode
diferenciar as cores das plantas das do solo ou da água, mas pode não se
aplicar para qualquer outra subdivisão de matizes – uma classificação
perceptiva que será refletida no vocabulário.

A agudeza de nossos sentidos está vinculada às experiências que temos no


mundo tangível (físico), e o quanto elas são tidas relevantes pela cultura que
compartilhamos. Da mesma forma, podemos pensar que uma alfabetização estética,
desenvolvida desde as séries iniciais no ensino básico, pode culminar num maior
interesse pela produção artística e discriminação do amplo repertório de códigos visuais,
sonoros ou gestuais.
A relação cultura/educação estética se dá em duas direções, assim, afirmamos a
importância da cultura como progenitora de saberes (com)partilhados que influem na
educação formal para as artes visuais, como também, admitimos o sentido inverso, ou
seja, a educação estética pode ser um meio de transpor preconceitos culturalmente
instaurados, expandido as formas como significamos aquilo que percebemos.
Levando em conta as relações percepção/cultura, seria possível pensar em
interferências emergentes das relações simbólicas construídas pelo imaginário? Nossa
forma de perceber seja o ambiente, seja um objeto de arte, não é uma tradução objetiva
de estímulos, mas uma complexa teia de fatores. Nesse sentido, a construção de um
imaginário coletivo pode ser compreendida como uma das lentes da percepção humana?
Primeiramente, entendemos ser necessário esclarecer o que apontamos como
“imaginário” nessa pesquisa. Embora tenhamos uma gama de diferentes teóricos que
enveredam nesse campo teórico (Bachelard, Gilbert Duran, Wunenburguer, Edgar Morin,
Michel Maffesoli, Jung, Paul Ricoeur entre outros) iremos apenas apontar alguns aspectos
que corroboram com as discussões propostas para esse artigo.

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Imaginário para Gilbert Duran (apud Pitta, 1995) é entendido como “o conjunto de
imagens e de relações de imagens que constitui o capital pensado do homo ‘sapiens’”. Tal
definição, um tanto ampla, nos permite compreender que associar imaginário a imagens
“concretas” ou “fisicamente cristalizadas” sobre uma superfície seria incorreto. O
imaginário faz referência a um acervo imagético da humanidade que pode ser percebido,
mas não quantificável ou tangível, o que não significa, no entanto, que ele não seja “real”.
Michel Maffesoli em entrevista concedida sobre o tema (O imaginário é uma
realidade) endossa que:

[...] o imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma


atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma
força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém
ambígua, perceptível, mas não quantificável (MAFESSOLI, 2001; p. 75).

O estudo acerca do imaginário nos permite assim, enveredar por referências


ainda não elucidadas da atuação simbólica do ser humano. Ao construir significado para
as suas percepções e experiências, cada um de nós, agrega elementos a um repertório
de símbolos, que se manifestam por exemplo, em mitos. Nesse sentido, observamos que
o imaginário para Jung se reporta à presença de arquétipos, estruturas inconscientes que
são partilhadas pelo coletivo humano como símbolos.
Wunenburger (2013) discorrendo sobre a relação entre imagem e imaginário,
preocupa-se com a situação atual, onde há uma “obesidade do imaginário cultural”
reforçada por uma hiperprodução de imagens exteriores facilmente difundidas, e uma
pobreza psicológica associada a uma “anorexia” da imaginação interior.
Esse contexto inclusive, pode ser uma das explicações para a sedução que os
estudos em antropologia do imaginário apresentam hoje, especialmente no âmbito das
Ciências Humanas, e da Arte.
No tocante ao campo educacional, Almeida e Seminério (2005, p.171) defendem
ainda que a:
[...] noção de imaginário surgiu como uma categoria de suma importância
na atualidade, por permitir uma nova compreensão dos fenômenos. Como
novo paradigma deve ter seus estudos cada vez mais profundados, pela
possibilidade de compreensão de fenômenos obscuros, contraditórios e de
difícil explicação.

Essas conclusões, ratificam possíveis contribuições que a área oferta para os


estudos da percepção, especialmente no tocante às interpretações construídas a partir de
estímulos sensoriais quando compreendidas como experiências, as quais, segundo
Dewey (2010) acontecem cotidianamente pois as interações dos seres humanos com o
ambiente estão envolvidas no próprio processo de viver.
Aproveitando a colocação do teórico, apontamos aqui duas outras ocorrências
contínuas na história humana: a produção expressiva na forma de arte e, a apreensão
simultânea de vários estímulos sensoriais num mesmo momento. Assim, não se pode
abolir ou negar à humanidade seu exercício criativo de âmbito estético, nem o fechamento
de canais sensitivos em favor da percepção gerada a partir de um único sentido.
Prosseguimos assim, com uma breve apresentação do conceito de sinestesia e
suas materializações no campo da produção artística visual.

1.2 Sinestesia e Artes Visuais

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Segundo Presa (2008, p.12) “a palavra sinestesia deriva das palavras gregas syn,
que significa união ou junção, e aisthesis, que significa percepção ou sensação. O termo,
refere-se portanto à união de sensações”. Em outras palavras, a sinestesia pode ser
compreendida como a capacidade humana de mobilizar a interação de seu sistema
sensitivo para a percepção aprimorada da realidade tangível. Dessa forma, um estímulo a
priori, visual, pode conglomerar simultaneamente sensações auditivas, táteis, gustativas
e/ou olfativas.
De acordo com Basbaum (2003), a emergente curiosidade acerca dos processos
sinestésicos de percepção resulta de pesquisas em neurociências e avanços
tecnológicos. Segundo estudos (Presa, 2008; Basbaum, 2002), algumas pessoas têm um
perfil sinestésico anômalo, e desenvolvem por toda a vida uma correlação inevitável entre
seus órgãos do sentido, tais indivíduos são assim denominados “sinestetas”. No entanto,
nosso interesse de estudo não é esse perfil biológico, mas sim, a habilidade humana
amplamente difundida de associar mais de um sentido da percepção para compreender e
apreender o que nos rodeia, portanto nesse texto, ora usamos o termo “sinestesia”, ora
usamos “multissensorialidade.”
Todos nós somos de algum modo, em algum momento da nossa vida, [...]
afetados por algum tipo de sinestesia. Percebo que as crianças têm essa
percepção mais aguçada, o que as ajuda a entender o mundo à primeira
vista. Perdemos essa percepção, presumo, quando as informações se
multiplicam na nossa mente, e esquecemos as informações iniciais
(SOUZA, 2008, p.7).

A associação simultânea de mais de um sentido na percepção, aparece mais


frequentemente nos primeiros anos de vida, devido à própria estrutura cerebral do bebê.
Na fase adulta, além dos indivíduos diagnosticados como sinestetas, há aqueles que
utilizam dessa percepção de forma mais ou menos controlada, como, alguns artistas
visuais.
No tocante aos estudos sobre sinestesia e linguagens artísticas, há trabalhos
como o de Sergio Roclaw Basbaum (2002; 2003) que propõem a sinestesia como
estratégia para a construção de um conceito de percepção digital:
A cultura digital imprimiu notável aceleração ao mundo [...] a noção de
historicidade dissolve-se na circularidade do instante sinestésico; as
experiências do tempo narrativo e do espaço contemplativo visual se
dissolvem em sensação. Estamos, novamente, num mundo mágico, onde
emergem todo o tipo de metáforas e discursos espirituais e míticos de
nossa experiência [...]. A estes aspectos, largamente sinestésicos, de
nossa experiência contemporânea, chamo percepção digital. (BASBAUM,
2003; p.18).

Além desse trabalho, temos pesquisas como a de Filipa Gomes (2003) que
aborda a música na construção plástica do artista Wassily Kandinsky, discorrendo sobre
como a abstração nas pinturas desse artista foi pautada não na “realidade” visual mas, na
percepção sonora e, a de Carla Patrícia Magalhães Presa (2008) intitulada “Sinestesia na
Arte”.
Dentro da produção artística denominada visual, podemos citar uma gama de
autores que em suas obras se apropriaram da experiência sinestésica, seja para a criação
(como Kandinsky e seu diálogo entre visualidade e música), seja proporcionando ao
público uma recepção multissensorial (como trabalhos de Lygia Clark, Helio Oiticica e

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Ernesto Neto) que usam o corpo do próprio público para completar a obra, estimulando o
contato tátil, equilíbrio, olfato. Neste artigo, selecionamos algumas obras da brasileira
Lygia Clark, buscando analisar suas relações sinestésicas.
É importante realizar um esclarecimento conceitual para que não tomemos
inapropriadamente o termo “sinestesia” por “multissensoralidade”. Sinestesia está
fortemente vinculada ao campo da neurologia e neurociência, nesse sentido, associa-se a
determinada configuração cerebral e sensorial, que faz com que inevitavelmente, um
determinado sujeito desperte sensações simultâneas que para a grande maioria das
pessoas não apresentam correspondência.
Um sujeito sinesteta pode ouvir sons e ver cores associados às diferentes notas
musicais, ou, ouvir palavras e sentir sabores específicos mesmo que tais palavras não
façam referência a alimentos. Esse padrão perceptivo até o momento, não pode ser
revertido, assim, quem nasce sinesteta não evita tal “tradução” ou associação sensorial e,
quem não o é, não será capaz de vivenciar uma experiência sinestésica, já que esta é
uma característica inerente de quem percebe e não do ambiente.
Por outro lado, é possível sim pensarmos numa experiência multissensorial para
qualquer sujeito. No campo das artes e experiência estética é possível construir
objetos/obras/estratégias que busquem dialogar com publico/estudante numa amplitude
sensitiva que extrapole o meramente visual.
Sobre essa discussão conceitual, a pesquisadora Rosangella Leote (2014, p.56)
afirma que
com frequência encontramos descrições, relatos e avaliações sobre obras
que oferecem inúmeros estímulos ao interator e diz-se delas serem obras
‘sinestésicas’, quando o termo deveria ser aplicado à experiência do
interator que, através dessa obra, tem a experiência da sinestesia.

Para evitar tais equívocos, a autora usa o termo “espectro pseudo sinestésico ou
multissensorial” para as investigações poéticas que realiza.
Luersen (2012) aponta que, boa parte das obras de artes atuais, requisita uma
experimentação não só a partir da visualidade, e que as dimensões que permitem essa
vivência e experimentação na recepção, ainda precisam ser exercitadas para se
consolidarem pelo grande público. “Sentir, tocar, cheirar, apalpar, e até mesmo degustar,
tudo envolve a arte”, é nisso que acredita Tortora (s.d., p.4). Assim observa-se que não
apenas a produção em arte, mas também a educação em arte, seriam favorecidas por
práticas mais amplas de percepção, como propõe uma abordagem orientada para
provocar aproximações sinestésicas.
Voltando especificamente para o ensino das artes, é possível acreditar que o
fazer pedagógico pautado na multissensorialidade amplia as possibilidades de interação
entre os educandos e as obras de arte visuais, pois essa área de conhecimento lida com
aspectos da subjetividade humana, sua capacidade sensível de perceber o mundo, a si e
ao outro, e de expressar-se das mais diversas formas, maximizando assim, as
capacidades específicas de cada sujeito.
Na infância as relações de percepção sinestésicas são mais fortes e evidentes
(SOUZA, 2008), e, embora dediquemos menos atenção aos sentidos na fase adulta, eles
continuam a ter um papel imprescindível na nossa vida cotidiana, tanto que uma ausência
ou distúrbios nesses receptores pode gerar grandes transtornos para os indivíduos.
No entanto, segundo Tortora (s.d.) a maior parcela de nossos sentidos é
esquecida ou pouco estimulada no cotidiano escolar, e na maioria das vezes, somente é
lembrada quando há casos de deficiência em algum educando. E mesmo quando não o é,

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raramente se trabalha conjuntamente com mais de um dos sentidos por vez, de forma a
maximizar a capacidade de percepção.
Nós, seres humanos, percebemos e conhecemos o mundo por meio dos sentidos,
só a partir dessas relações com o tangível é que desenvolvemos habilidades para a
abstração, ou seja, partimos de um mundo concreto, sentido, percebido, para então
reconstruí-lo simbolicamente por meio da linguagem (PÁDUA, 2009).

2. Aspectos metodológicos
Orientadas por revisão de literatura, buscamos discutir nesse artigo, as relações
percepção/multissensorialidade/imaginário em um recorte de obras da artista Lygia Clark.
Para tanto, apoiamo-nos em imagens fotográficas de trabalhos da artista, catálogo da
exposição realizada de 1º de setembro a 11 de novembro de 2012 no Itaú Cultural (São
Paulo) intitulada “Lygia Clark: uma retrospectiva” e, lembranças construídas a partir de
experiências de uma das autoras como público dessa exposição.
Existe uma série bastante ampla de artistas que focam sua produção na
multissensorialidade (Ernesto Neto e Hélio Oiticica, por exemplo), tal cenário ficou ainda
mais evidente com o advento do uso das novas tecnologias de comunicação na arte.
Assim, em exposições de arte contemporânea, não é difícil encontrar trabalhos que unam
estímulos visuais aos sonoros (audiovisuais), ou mesmo só sonoros que suscitem a
construção interior de imagens, citamos ainda as instalações, vídeos-instalações,
intervenções urbanas, obras feitas com material comestível e, uso de essências e
materiais com odor facilmente perceptíveis.
Indicamos como exemplo de obra com caráter sinestésico ou multissensorial, a
instalação de Henrique Oliveira “A Origem do Terceiro Mundo” ( Imagem 1 e 2)
participante da 29ª Bienal de São Paulo. Essa obra permitia que fosse internamente
percorrida pelo público, gerando assim uma interação não só visual, mas com o ambiente
contorcido e mais delimitado, passível de ser tocado e apresentando-se com
peculiaridade sonora, já que dentro do “túnel de madeira” o som se propaga diferente do
que em um espaço aberto.

Imagem 1. Fotografia externa de Imagem 2. Fotografia interna de


“A origem do terceiro mundo” “A origem do terceiro mundo”

Fotografia de Caroline Moreira Bacurau Fotografia de Caroline Moreira Bacurau


Fonte: Acervo pessoal Fonte: Acervo pessoal

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Optamos por debruçarmos sobre trabalhos de Lygia Clark pois, a artista tem um
repertório consistente de obras multissensoriais e além disto, uma das autoras desse
artigo, teve a oportunidade de experenciar parte de seu acervo na exposição “Lygia Clark:
uma retrospectiva”. Assim, como defendemos uma abordagem sinestésica, escolhemos
trabalhos com os quais pudemos interagir não apenas pela visualização de fotografias,
mas que foram tocados e vestidos, por exemplo.
No catálogo disponibilizado na mostra da artista, defende-se a proposição de que
“o público pode vivenciar, no espaço expositivo, algumas das proposições elaboradas
pela artista que tratam de integrar arte e vida e incorporam a criatividade do outro, dando
assim ao propositor o suporte para que se exprima” (ITAÚ CULTURAL, 2012).
Nesse sentido podemos associar parte das obras de Lygia Clark, não apenas a
proposições sensoriais, mas também ao conceito de “estética relacional” desenvolvido por
Bourriaud (2009) visto que, o teórico aponta uma tendência da arte no fim do século XX, a
qual seja, criar trabalhos onde seu eixo primordial é a relação estabelecida com o público,
e parte da obra de Clark nos parece ter justamente no convite à experiência pelo público,
sua maior motivação.

3. Resultados e Análises
Lygia Clark, segundo Milú Villela (ITAÚ CULTURAL, 2012) não se intitulava
artista, mas propositora, e assim, estendeu os limites da compreensão da obra de arte.
Felipe Scovino e Paulo Sergio Duarte, curadores de “Lygia Clark: uma retrospectiva”
expõem as peculiaridades do trabalho dessa artista:

Diferentemente das atitudes sectárias das primeiras manifestações da


body art, em que, em grande parte, era manifestada uma vertente
masoquista, com artistas que literalmente se autodestruíam, as pesquisas
de Clark, naquele momento, exploravam a presença do indivíduo na
solidão absoluta com seus sentidos ou na relação com o outro (ITAÚ
CULTURAL, 2012).

Entre as obras da artista, é bastante conhecida a série “Bichos” de 1960 (Imagem


3) confeccionadas com placas metálicas e eixos móveis que permitiam a reorganização
da configuração inicialmente exposta.

Imagem 3. Bicho flor, 1960-63 Alumínio

Fonte: MAC USP


http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/outras.html

2170
Tal série de objetos suscitava uma ativa participação do público. Nesse sentido,
observamos que a obra de arte se propõem também como um material educativo sem
normas e, passível de inúmeras experimentações.

Para o espectador, a possibilidade de mexer nas esculturas, transformá-


las, reorganizar outras formas, outros planos que fossem de seu agrado,
com certeza ajudou e muito na autoconsciência e na autoconfiança em si
próprio e na maneira de ver o mundo (TÓRTORA, s.d.; p.9)

Vejamos abaixo fotografias de algumas obras que buscam mobilizar múltiplos


aportes sensoriais dos espectadores durante a fruição:

Imagem 4. Máscaras sensoriais, 1967 Tecidos Imagem 5. Desenhe com o dedo, 1966
Saco plástico (20 x 30 cm) e água

Fonte: MAC USP


http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/outras.html

Imagem 6. Diálogos – Óculos, 1968 Imagem 7. Máscaras sensoriais – Abismo, 1968

Fonte: MAC USP


http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/outras.html

2171
Observamos que todas as imagens de obras se apresentam em contato com o
corpo do próprio espectador, possibilitando um canal de diálogo com um corpo orgânico,
sensitivo, e também uma relação com o outro, como se vê nas figuras 5 e 7.
Algumas das propostas de Clark podem ser facilmente reproduzidas, como o
trabalho “Desenho com o dedo” (Fig. 6), mas isso não parece ser uma preocupação da
artista, na realidade suas obras possuem valor, não enquanto objetos sacralizados e
intocáveis, mas como produtores de experiências sensoriais e lúdicas.
Nesse sentido “ver” não é apenas enxergar imagens a partir dos estímulos
luminosos que nos chegam à retina, mas uma construção tátil, inusitada, coletiva. Ver é
sentir, experimentar, conhecer o ambiente a partir de novas lentes, situações incomuns.
O ser humano sempre atribuiu significados para suas experiências no mundo;
devido sua atuação simbólica, constrói e reconstrói o imaginário. Lygia Clark, com suas
obras lúdicas, sensoriais, relacionais, parece questionar a finalidade das coisas no
mundo, assim, cria espaços para novas relações e funções para objetos corriqueiros.
Para que óculos? Para ampliar nosso potencial de ver? Talvez não! Talvez para
se surpreender com um novo cenário visto pelos mesmos olhos de sempre, mas
modulados por uma lente que reconstrói imageticamente as paisagens conhecidas. A
revelia dos conceitos engessados para a arte (hoje um tanto mais fluídos), Lygia propõem
um brincar com água e bolhas de ar no espaço comprimido de um saco plástico vedado.
Acreditamos que muitas propostas contemporâneas e mais interativas nas artes
visuais, sejam fruto dessa postura revolucionária das proposições de Lygia Clark, e essas
são oportunidades indispensáveis de compreender e degustar a arte a partir de uma
compreensão de um corpo integral e não fatiado em razão e sensações.

4. Considerações
Vislumbramos, a partir das poucas obras apresentadas aqui, que o uso de
estratégias que mobilizem os sentidos e a interação com o ambiente e, obras de arte
visuais possam atender a uma das demandas pelas quais passa nosso ensino de arte e
mesmo, a formação de público para a arte contemporânea.
Observando os objetos criados por Lygia Clark como materiais educativos,
constatamos ser possível projetar experiências multissensoriais na educação formal,
contexto esse, pobremente vinculado a experiências sensoriais e mais vinculado a
teorizações e abstrações.
Sem renegar a importância de refletir e abstrair, acreditamos serem necessárias as
oportunidades de atuar concretamente sobre o mundo, percebendo e simbolizando-o.
Educar não é inserir informações na mente dos sujeitos educandos, mas mobilizá-los em
sua integralidade para sentirem, pensarem, e assim, interferirem no mundo.

REFERÊNCIAS
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Portanova Barros, Ana Taís Martins Portanova Barros. Educer e et Educare Revista de
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Caroline Moreira Bacurau:


Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Vale do São Francisco/UNIVASF e
mestranda pelo programa associado em Artes Visuais das Universidades Federal da
Paraíba/UFPB e Federal de Pernambuco/UFPE. Já atuou como professora de artes na rede
municipal de ensino de Juazeiro/BA e no curso de Artes Visuais (Licenciatura) da UNIVASF.
http://lattes.cnpq.br/2619448947770475

Maria das Vitórias Negreiros do Amaral:


Pós-Doutora em Arte/educação e Feminismo pelo Instituto de Investigaciones Feministas de la
Universidad Complutense de Madrid (2012). Doutora em artes pela Universidade de São Paulo
(2005). Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2000). Graduada em
Educação Artística pela Universidade Federal de Pernambuco (1987).
http://lattes.cnpq.br/3317479462307817

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