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Análise Psicológica (1991), 3-4 (IX): 403-410

Desenvolvimento das Conceptualizações


Infantis sobre Escrita: Papel das Inter-
acções Sociais (*)

LOURDES MATA (**)

i. INTRODUÇÃO através da coordenação de diferentes pontos de


vista ou de centrações opostas. Cada sujeito é
O estudo dos mecanismos pelos quais as levado a considerar simultaneamente a sua
interacções entre pares podem ser geradoras de posição e a do parceiro e a elaborar uma
progressos individuais foi inicialmente feito no estruturação que integre as duas, o que irá
âmbito da Teoria do Conflito Sócio-Cognitivo. induzir progresso, sendo este explicado por uma
Segundo esta Teoria (Perret-Clermont 1983; interiorização individual das coordenações
Doise & Mugny, 1981), para que uma interacção interindividuais durante a resolução do conflito
social seja fonte de progresso cognitivo é - este tipo de regulação é chamada Regulação
necessário que haja desacordo entre as respostas Sócio-Cognitiva.
dos sujeitos e tomada de consciência das Uma análise das fases de co-resolução
centrações e dos pontos de vista do outro. conduziu a identificação de situações de
Assim o desiquilíbrio quer social quer cognitivo interacção onde não surgiram dinâmicas sócio-
irá permitir reequilibrações e progresso. Quando -conflituais, seguidas de coordenações efectivas
um indivíduo muda a sua resposta para de respostas e onde também se verificaram
estabelecer o estado das relações antes do efeitos benéficos. Segundo Gilly (1989a) este
conflito, não tendo um verdadeiro trabalho aspecto associado ao «abandono de uma
cognitivo, só há uma mudança superficial. Esta concepção piagetiana do desenvolvimento
mudança que resulta do restabelecer de uma cognitivo por filiação de estruturas intelectuais
relação não conflituosa é denominado por sucessivas tendo estatuto de sintaxes gerais de
vários autores de Regulação Relaciona1 (Paolis pensamento)) (op. cit., pag. 7), conduziu vários
& Mugny 1985). autores a desenvolverem uma outra perspectiva
Por vezes, dá-se a elaboração de novos de investigação. O objectivo não era já o de
instrumentos cognitivos resultantes d a identificar o papel das Interacções Sociais no
organização cognitiva de um ou mais sujeitos, desenvolvimento d a Inteligência numa
perspectiva estruturalista, mas o estudo e a
identificação de condições e de dinâmicas
(*) Comunicação apresentada no VI Colóquio presentes na construção de competências,
((Psicologia e Educação)), ISPA, Outubro de 1991,
e cealizada no âmbito do D.E.A. em Psychologie de limitadas a classes de problemas específicos. O
l’Education, Université de Provence/ISPA. objectivo era assim a elaboração de modelos
(**) Assistente, ISPA. procedimentais das actividades de resolução de

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problemas e da sua evolução ao longo do identificação e caracterização das diferentes
desenvolvimento (Gilly 1989a). dinâmicas de trabalho, o papel e participação
É no âmbito desta perspectiva que surgem de cada um dos parceiros, o tipo de trocas entre
os trabalhos de Blaye (1988, 1989a, 1989b). Com eles e seus efeitos ainda não são suficientemente
a utilização de uma tarefa de um produto de conhecidos.
dois conjuntos o autor verificou que a É neste âmbito que se situa o nosso trabalho
confrontação de respostas pode dar-se a vários cujo objectivo é o de comparar a influência da
níveis (performances terminais, performances resolução d e uma tarefa d e escrita,
intermédias ou procedimentos). Contudo a individualmente ou em interacção, nas
ocorrência de efeitos benéficos surge somente conceptualizações das crianças sobre o sistema
quando a confrontação se dá durante os de escrita. Pretendemos também identificar, na
processos d e resolução. Assim, uma situação de interacção, as diferentes dinâmicas
destabilização dos procedimentos e toda a estabelecidas, os factores que as regem e o papel
informação transmitida durante o processo de desempenhado por cada um dos elementos.
resolução conduzem A elaboração de uma nova
representação do problema, o que vai levar o
sujeito a elaborar novas fontes de regulação para 2. ESTUDO
a resolução da tarefa. A destabilização dos
processos de resolução vai assim constituir 2.1. Amostra
«uma forma particular de perturbação da
actividade do sujeito gerada pela confrontação Trabalhámos com 56 crianças de 5 / 6 anos
com um parceiro)) (Blaye, 1988, p. 53). de 4 Jardins de Infância. A pedagogia seguida
Para além da destabilização ao nível da por estas escolas era idêntica no que diz respeito
representação da tarefa e dos processos de sua abordagem da Linguagem Escrita e
resolução, Gilly (1989b) considera que a eficácia caracterizava-se pela ênfase que punha nos
das interacções parece estar ligada a uma outra aspectos motores e de coordenação.
função da intervenção do parceiro: a de
controlo. Esta função de «controlo» da 2.2. Procedimento
actividade, segundo o autor pode tomar formas
diversas: intervenções de aceitação, intervenções 2.2.1. Fase I - Pré-teste
de verificação de uma afirmação, reformulações
Numa primeira fase (Pré-teste) deste trabalho
do outro ou a solução do outro, etc.
fizemos uma entrevista individual a todas as
crianças de modo a identificarmos os seus níveis
* conceptuais sobre o funcionamento da escrita.
Para o tratamento dos dados assim recolhidos
considerámos os diferentes períodos evolutivos
na psicogénese da Linguagem Escrita. Segundo
Não há ainda muitos estudos sobre o papel Ferreiro (1988) identificam-se três grandes
das interacções sociais no desenvolvimento das
períodos:
conceptualizações infantis sobre escrita que nos
permitam a identificação do modo como O Primeiro Período (Pl) é caracterizado pela
decorrem as interacções, d o t i p o de procura de distinção entre «marcas gráficas
confrontações, do tipo de trocas e dos efeitos figurativas)) e «marcas gráficas não-
que delas advêm. -figurativas». Inicialmente letras e imagens
Dentro desta problemática inscrevem-se os podem partilhar o mesmo espaço gráfico não
trabalhos de Teberosky (1987a, 1987b, 1988) e havendo entre elas nenhuma relação de
Ramos (1989), que procuram mostrar a natureza significante ou funcional. Os textos
influência do factor social no desenvolvimento podem ser interpretados em quaisquer
dos conhecimentos sobre a linguagem escrita. condições contextuais que permitam a
Contudo a identificação dos processos de construção de uma significação (proximidade
resolução de uma tarefa de escrita, a de uma imagem ou conhecimento de um

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objecto) mas eles «não dizem nada» na Neste nosso estudo trabalhámos somente com
ausência de um contexto. as crianças em que foi possível identificar
O início do Segundo Período (P2) é hipóteses conceptuais dominantes sobre o
caracterizado pelo estabelecimento de funcionamento da escrita ao nível do segundo
condições formais de «lisibilidade» de um período (P2) e início do terceiro período (P3A).
texto. A criança vai considerar as
propriedades do texto, e os eixos de 2.2.2. Fase I1 - Situação Experimental
diferenciação utilizados são dois: quantitativo
e qualitativo. Estes critérios vão exercer uma Construímos duas situações diferentes: uma
influência sobre as produções da criança de em que as crianças trabalharam aos pares
tal modo que elas vão considerar que é (interacção) e outra em que trabalharam
necessária uma quantidade mínima de individualmente. Os sujeitos para cada situação
«letras» para escrever, assim como uma certa foram escolhidos aleatoriamente e os pares de
variedade entre as «letras» utilizadas. No crianças foram organizados de modo a que
início estes critérios só vão permitir fossem heterogéneos quanto ao nível conceptual
estabelecer quais as produções que podem das crianças que os constituíam. Assim cada
ser interpretadas, podendo contudo existir criança com conceptualizações situadas no
produções escritas diferentes para designar Segundo Período (P2) trabalharia com outra
o mesmo objecto ou produções escritas com conceptualizações ao nível do Terceiro
idênticas para designar objectos diferentes. Período fazendo correspondência silábica (P3A).
Posteriormente os eixos quantitativo e Nesta fase era proposto as crianças escreverem
qualitativo vão ser utilizados na diferenciação o texto de um pequeno livro de histórias. Para
das diferentes produções. o grupo de crianças que trabalhou em
No Terceiro Período (P3) as partes interacção com um colega foi feito um registo
constituintes de uma produção escrita e análise dos momentos de interacção.
tornam-se progressivamente objecto de Posteriormente foi feita uma classificação dos
observação e associadas aos segmentos que comportamentos encontrados e da sequência
a criança identificou como constituintes dos destes de modo a caracterizarem-se as diferentes
nomes pronunciados. Assim as crianças vão sequências e dinâmicas de funcionamento.
iniciar uma correspondência termo a termo
onde uma série ordenada de letras é 2.2.3. Fase 111 - Pós-teste
relacionada com uma série ordenada de
sílabas das palavras (P3A - correspondência Por último, foi realizada uma entrevista
silábica). A correspondência vai-se tornando equivalente a da Fase I (Pré-teste), para
estrita, contudo a escolha de cada letra é identificação dos eventuais progressos nos níveis
somente determinada pelas que a precedem conceptuais das crianças.
de modo a que haja uma certa variedade e,
é a sua posição que vai determinar o valor 2.3. Hipóteses
sonoro que lhe é atribuído. Esta
correspondência vai sofrer uma evolução até 2.3.1. Modo de Resolução da Tarefa
uma correspondência termo a termo onde
já existem limitações na escolha da letra a As crianças que para a resolução da tarefa
utilizar, porque esta representa correctamente estão em interacção com um colega têm a
oportunidade de se confrontarem com outros
o valor sonoro identificado na sílaba. As
pontos de vista sobre o funcionamento da
crianças vão sentido cada vez mais escrita, outros procedimentos de resolução e
necessidade de fazer uma análise para além terão também necessidade de justificar as suas
da sílaba, passando por uma fase intermédia propostas e de se confrontarem com as
(P3B - correspondência silábico-alfabética) explicações e propostas do parceiro. As crianças
sendo a etapa final a conquista dos princípios que durante a fase experimental escrevem o livro
base do sistema alfabético (P3C). sozinhas não terão esta oportunidade. Assim,

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temos como hipótese que: são as crianças que verificará evolução nas performances do pós-
trabalharam em interacção com um colega que -teste e que será entre os pares onde se
apresentam mais progressos no pós-teste, quanto estabelecer uma dinâmica de colaboração que
as estratégias de escrita. haverá evolução nas estratégias de escrita.

2.3.2. Nível Conceptual dos Sujeitos 2.4. Resultados

Uma das causas desta evolução parece-nos 2.4.1. Modo de Resolução da Tarefa
ser mudanças ao nível das representação do que Para verificarmos a influência das condições
é a escrita, sendo esta mudança mais fácil para
de resolução d a tarefa comparámos as
as crianças com conceptualizações do Segundo estratégias de escrita utilizadas pelas crianças
Período (P2) do que as do Terceiro Período das duas situações (interacção e individual) no
(P3A), uma vez que: pré-teste e no pós-teste. Nesta comparação
Há uma mudança mais evidente entre o encontrámos uma diferença significativa
Período 2 e o Período 3A do que entre o (pcO.02) sómente para as crianças que
3A e o 3B ou 3C já que para o primeiro caso resolveram a tarefa em interacção com um
a evolução é de uma escrita orientada colega, confirmando-se assim a nossa hipótese
sómente por critérios grafo-perceptivos para sobre a eficácia das interacções sociais de co-
uma escrita em que já há representação do -resolução para se gerarem progressos
oral. Para o segundo caso a escrita é já uma individuais.
representação do oral e o que vai mudar é
o nível de representação (sílaba/fonema). 2.4.2. Nível Conceptual dos Sujeitos
É mais fácil as crianças no Período 3A Uma análise mais diferenciada desta diferença
transmitirem informações pertinentes sobre mostrou-nos não haver qualquer diferença entre
o funcionamento da linguagem escrita para o pré e o pós-teste para as crianças do Período
as crianças do Período 2 que o inverso.
3A, quer entre as que trabalharam individual-
As crianças com conceptualizações do mente quer entre as que trabalharam em
Período 2 não têm qualquer justificação nem interação com um colega. Contudo entre as
para a escolha das letras nem para a
crianças do Período inicial 2, encontrámos
quantidade de letras que utilizam. Quando diferenças consoante as condições de resolução
se confrontam com as justificações dos da tarefa, confirmando-se assim a nossa
colegas do Período 3A poderão aceitá-las e segunda hipótese. Uma interpretação para esta
adoptá-las. evolução pode ser avançada com base na ideia
Assim, esperamos ainda que para as crianças avançada por Blaye (1989a, 1989b) e Gilly
da situação de interacção, a evolução das (1989a, 1989b) de que uma destabilização dos
estratégias de escrita no pós-teste, seja mais procedimentos de resolução associada a
significativa para as com conceptualizações informação transmitida no desenrolar da
iniciais no Período 2 do que para as do Período interacção poderão induzir uma nova
3A. representação da tarefa a realizar.
Ao longo da realização da tarefa de escrita
2.3.3. Efeitos da Dinâmica Interactiva proposta, as crianças tiveram oportunidade de
confrontarem as suas propostas e estratégias
Anteriormente já nos referimos á ideia de que subjacentes a cada uma delas que por vezes
para que haja progresso é necessário que a eram bastante diferentes e até mesmo
dinâmica interactiva se estabeleça na base de contraditórias. Tiveram assim muitas
uma implicação social e cognitiva dos sujeitos, oportunidades de se questionarem, de
não devendo a situação problema ser resolvida justificarem, de explicarem e de tentarem
de modo puramente relacional. Esperamos compreender outros pontos de vista sobre o
assim, que nos pares onde a dinâmica funcionamento da escrita. Parece-nos que esta
estabelecida fôr puramente relacional não se destabilização não podia ser equivalente para

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os dois períodos evolutivos considerados, visto escrita, pode modificar certos aspectos da sua
que: para algumas das crianças com representação da tarefa de escrita. Assim, uma
conceptualizações situadas no Período 2 os representação falsa onde a escrita era uma
princípios de controlo d a variedade e escolha arbitrária de letras pode ser substituída
quantidade das grafias utilizadas começavam por uma outra mais adaptada onde a escrita
já a não ser suficientes para justificarem as suas é a representação das sílabas do oral.
produções escritas. No nosso trabalho, 57% das crianças com
hipóteses conceptuais sobre o funcionamento
Exemplo
da escrita situadas no Segundo Período, e que
ANA trabalharam em interacção com um colega,
Conceptualizações: Segundo Período mudaram de estratégia de escrita no pós-teste,
Após um pedido de escrita, ela diz: o que nos parece reflectir uma mudança de
Ana - Eu não sei bem ... vou tentar. conceptualizações sobre o sistema de escrita.
Depois de escrever (OAONO), perguntámos-
-lhe o que tinha escrito. 2.4.3. Funcionamento das Díades
Ana - Eu queria escrever pato, mas não sei O papel desempenhado pelas crianças dos
bem se é assim, eu acho que não, mas não dois períodos conceptuais para o funcionamento
tenho a certeza. das díades foi significativamente diferente. As
Verificámos também por vezes, entre estas crianças do Período 3A fizeram mais propostas
crianças uma tendência de ajustamento entre que as do Período 2 (signif p<O.Ool) e estas
o que escreveram e o que lêem, apesar da escrita aceitaram mais as propostas. Foi também entre
não ser ainda regida por uma análise linguística as crianças do período 3A que surgiram mais
do oral: tentativas de explicação das suas propostas.
Verificámos também uma tendência para que
JOÃO estas crianças regeitassem mais vezes as
Conceptualizações: Segundo Período. propostas do parceiro. Este domínio por parte
Palavra a escrever: FORMIGA. das crianças do período 3A poderá ser explicado
João escreve sem tentar qualquer por vários factores, entre os quais salientamos
correspondência entre o oral e a escrita o facto de que: Algumas das crianças com
(FTGRIP). conceptualizações ao nível do P2 pensam que
Exp. - Que escreveste? cada um pode escrever como quiser, já que nesta
João - Formiga. fase existe um domínio das intenções do autor.
Exp. - Podes ler o que escreveste? Exemplo
João - For-mi-ga - fazendo a seguinte FILIPA
correspondência:
Conceptualizações: Segundo Período.
F T GR T P Exp. - Por favor, escreve «formiga» e «boi».
\ I \
for mi ga A Filipa escreveu PDANO e DPANO sem
Estas crianças são confrontadas com um ter tentado qualquer correspondência entre
colega que tem uma estratégia de escrita o oral e a escrita.
diferente, onde há correspondência entre o oral Exp. - O que é que escreveste?
e o escrito, uma justificação para a quantidade Filipa - Formiga e Boi.
de letras que propõe (uma letra para cada Exp. - Porque é que escreveste assim?
sílaba) e frequentemente, uma justificação para Filipa - Porque eu quiz escrever assim.
as letras propostas (representação correcta de Exp. - Pode-se escrever formiga e boi de
um dos sons), e que vai questionar, ou mesmo outra maneira?
opor-se as suas propostas. Todas estas condições Filipa - Sim, cada um pode escrever
poderão induzir uma destabilização da formiga e boi como quiser.
actividade cognitiva da criança que para além Exp. - Porque escolheste estas letras?
de poder influenciar as suas estratégias de Filipa - Porque eu quiz.

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Estas crianças podem facilmente aceitar as ineficácia. Uma outra diferença acentuada
propostas do colega como uma outra forma de refere-se a confirmação das propostas do colega.
escrever. É sobretudo entre as crianças das díades com
Uma criança com conceptualizações ao nível evolução (dif. signif p<O.OOl) que esta
do P3A, que elaborou uma estratégia de escrita confirmação foi encontrada. O papel desta
onde já há um controlo linguístico, para as verificação foi extremamente importante, já que
letras utilizadas, não aceitará facilmente, uma reflecte uma forma activa de tentar compreender
proposta onde esses princípios não estejam e integrar os princípios subjacentes 21 estratégia
contemplados. Este facto levará certamente a do colega.
que gradualmente passe a ser ela a fazer as
propostas de letras para a produção final, caso 2.4.4. Dinâmicas interactivas
o colega não consiga fazer propostas aceitáveis.
Como já nos referimos anteriormente, há Não verificámos qualquer evolução no pós-
crianças com conceptualizações situadas ao nível -teste entre as crianças das díades onde:
do P2 que já apresentam dúvidas quanto a sua
Um dos sujeitos nunca participou na
forma de escrita, e outras que tentam fazer uma
elaboração da produção final, tendo um
correspondência silábica durante o momento da
papel passivo de aceitação das propostas do
leitura. Este comportamento, segundo Ferreiro
parceiro.
(1988), pode ser indicativo de uma transição
Todas as situações com confrontação de
para o período conceptual seguinte. Uma vez
diferentes propostas foram resolvidas por
que os seus princípios orientadores para a
submissão da criança do Período 2.
escrita, já não são suficientes, estas crianças
estarão mais sensíveis a novas informações Em todas as díades onde uma criança evoluiu
transmitidas por um colega com estratégias de no pós-teste, foram identificados momentos de
escrita mais fundamentadas. colaboração na construção da produção final.
Esta diferença na participação das crianças Assim a nossa expectativa quanto a influência
dos dois períodos conceptuais com que da dinâmica de funcionamento das díades foi
trabalhámos foi evidente, tanto nas díades onde confirmada.
uma das crianças evoluiu no pós-teste como nas Nas díades onde se verificaram efeitos
díades onde nenhuma das crianças evoluiu no benéficos da interacção nem sempre o papel do
pós-teste sendo contudo mais acentuada nestas conflito nos pareceu ser muito significativo pois,
últimas. Verificamos também tendência para as ou não foram identificados momentos de
díades onde se verificou evolução, serem mais oposição, ou só surgiram em situações pontuais.
participativas. Contudo a participação das Confirmou-se assim, a ideia avançada por Gilly
crianças com conceptualizações do Período P3A (1988a) de que existem um conjunto de
foi idêntica quer nas díades com evolução quer intervenções do parceiro susceptíveis de induzir
nas outras. A diferença foi sobretudo resultado perturbações e destabilização favorecendo
da participação das crianças do P2, sendo a progressos individuais, para além das
participação global destas crianças intervenções de tipo estritamente conflitual.
significativamente superior para as díades com Entre estes aspectos benéficos que a intervenção
evolução, observando-se uma tendência do parceiro pode ter, Gilly (1988a) refere:
acentuada para estas crianças explicarem mais estimulação e activação, alargamento do campo
as suas propostas e tentarem mais vezes fazer de acção ou da representação e controlo das
propostas. Esta tendência desempenhou um respostas e da actividade.
papel muito importante, já que estes dois Verificámos que nestas díades normalmente
comportamentos exigem uma grande actividade quem começava a fazer propostas de escrita era
cognitiva por parte da criança. Quando a a do Período 3A e, através das suas explicações
criança explica, ela tem que verbalizar os e das suas propostas, transmitia informações
princípios que sustentam a sua proposta e tem sobre os procedimentos que tinha desenvolvido.
mesmo que os discutir, o que a ajuda a Assim o colega com conceptualizações ao nível
clarificar estes princípios ou a constatar a sua do P2, confrontava-se com uma estratégia de

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escrita em que a utilização do oral era essencial. sozinho tem necessidade de desempenhar os
Ele tinha assim oportunidade de reter um outro dois papéis - o de propor e o de controlar
elemento para reger a sua escrita, para além cada uma destas componentes. Esta acumulação
da quantidade e variedade das letras: «tem que de novas funções, parece-nos exigir um domínio
se representar o que se diz.» Perante esta nova que algumas das crianças ainda não atingiram.
informação sobre o funcionamento da escrita Assim elas vão-se centrar somente nalguns
algumas crianças conseguiram passar a utilizá- aspectos, esquecendo ainda os outros. Uma
-la quase autonomamente com sucesso. outra dificuldade suplementar surge ainda, já
Contudo, outras tentaram fazê-lo, mas sem que quando a sua escrita era orientada por um
chegarem imediatamente a fazer propostas ou critério grafo-perceptivo, não havia nenhum
utilizando-a somente para confirmarem as controlo linguístico e a criança desempenhava
propostas do colega. essencialmente o papel de escritor, interpretando
As intervenções do colega do P3A tiveram as produções escritas consoante as suas
assim um papel importante na destabilização intenções. Quando a começa a tentar representar
dos processos de escrita, mas também na o que se diz, deixa de haver um domínio das
consolidação dos novos procedimentos intenções e surge um o u t r o papel a
adoptados. Parece-nos que este aspecto pode desempenhar, o papel de leitor, que a vai ajudar
ser identificado com o que Gilly (1988a, 1988b) a interpretar e a controlar as suas produções,
denominou de função de controlo. Teberosky (1988) refere a dificuldade da criança,
Quando uma criança com conceptualizações no início, coordenar estes dois papéis, tendo
sobre o funcionamento da escrita ao nível do muitas vezes necessidade de recorrer ao adulto
P2, a) tenta fazer uma proposta que é aceite para saber o que já escreveu.
e/ou reformulada pelo colega, b) completa uma Entre as 8 crianças que evoluíram no pós-teste
proposta iniciada pelo colega do P3A, c) somente 2 foram capazes de fazer uma
confirma as propostas do colega, vai adquirindo representação correcta dos sons identificados,
a pouco e pouco o controlo da situação de para a maior parte dos segmentos isolados.
escrita. O domínio neste controlo vai-lhe ser Contudo, 6 destas crianças durante a situação
essencial para que possa posteriormente de interacção foram capazes de fazer propostas
conduzir toda a situação sozinha. A tendo por base uma estratégia de fonetização
importância do apoio exercido pelo colega do e todas desempenharam um papel de
P3A na passagem gradual para o domínio da confirmação das propostas do colega.
situação por parte da criança do P2, parece-
-nos ser extremamente importante já que a
escrita implica uma multiplicidade e 3. CONCLUSÃO
complexidade de tarefas quase simultâneas.
Assim crianças que durante a situação de O objectivo geral deste trabalho foi o de
interacção tinham conseguido performances evidenciar a eficácia das interacções sociais de
bastante avançadas, quando sozinhas, no pós- co-resolução, para gerar progressos individuais,
-teste, apesar de apresentarem evolução, não numa situação de escrita. A maior parte dos
conseguem atingir os mesmos níveis de progressos individuais constatados estiveram
realização. Por exemplo, para fazerem uma associados a interacções com conflito seguidas
correspondência sonora correcta, é necessário de negociações argumentadas conduzindo a uma
que as crianças isolem um segmento do oral, proposta comum. Contudo tambkm se
identifiquem um som deste segmento e que verificaram progressos em interacções onde
tenham conhecimento da letra que representa nenhuma oposição de respostas foi ideniificada
este som isolado. Durante a situação de mas em que se estabeleceu uma dinâmica de
interacção, o colega do P3A pode ajudá-los na colaboração, quer pela partilha ao nível das
condução de todas estas situações: ele pode propostas quer pelas confirmações destas. Os
fazer a silabação da palavra, ou identificar o nossos resultados revelaram também que uma
som, ou identificar a letra, ou verificar a dinâmica interactiva puramente relaciona1 não
proposta, etc. Quando a criança do P2 está implica benefícios posteriores ao nível das

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performances. A diferença no papel desem- Gilly, M. (1988a). Interaction entre pairs et
penhado por cada um dos elementos das díades constructions cognitives: modéles explicatifs. In
parece-nos também de salientar, mas queremos Interagir et Connaftre: enjeux et régulations
enfatizar a necessidade de estudos posteriores sociales dans le développement cognitif (A.N.
Perret-Clermont & M. Nicolet, Eds.), pp.: 19-28,
para uma maior clarificação deste aspecto e
Cousset: Delval.
para uma melhor compreensão dos mecanismos Gilly, M. (1988b). Interactions entre pairs et
que interferem na construção dos conheci- constructions cognitives: des travaux
mentos sobre a escrita. expérimentaux de laboratoire a u terrain
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