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Inês Signorini
*
Trabalho referente ao Projeto de pesquisa “Metapragmáticas da escrita” (processo
CNPq no. 305703/2005-6) e se reporta a atividades desenvolvidas entre 2002 e 2006 pelo
Grupo de Pesquisa CNPq “Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em contextos
insitucionais”.
enfrentamento e na ressignificação dos conflitos e contradições constitutivos desse espaço
discursivo e interacional, conforme descrito em trabalhos anteriores (Kleiman e Signorini,
2000; Signorini, 2000; 2005; 2006 b).
Estamos compreendendo por modelo inclusivo crítico orientador da interlocução
formador/formando uma construção teórico-metodológica inspirada pelas teorias do
letramento enquanto prática social (Street, 1984; Barton, 1994; Kleiman, 1995)1 e pelas
teorias críticas em Lingüística Aplicada (Corson, 1997; Rajagopalan, 2003; Pennycook,
2004; Moita Lopes 2006), e voltada para o empoderamento do formando pela sua
afirmação profissional2, ou seja, pelo seu aparelhamento tecno-científico e ético-político no
sentido de poder/saber “fazer a diferença” num dado estado de coisas ou numa dada
seqüência de acontecimentos (cf. Giddens, 1984: 14).
Conforme apontado em trabalho anterior (Signorini, 2006c), esse modelo busca
atender a necessidades de ordem mais geral, verificadas ao longo de nosso percurso, a
saber: 1) a de contemplar teoricamente o caráter relacional e interdependente dos papéis
sociais de formador e de formando enquanto articuladores de vozes e interesses locais e
globais, solidários e/ou contrastantes entre si; e 2) a de contemplar teoricamente a dimensão
ético-política da interlocução formador/formando orientada para a transformação de formas
1
Estamos compreendendo letramento enquanto conjunto de práticas de comunicação
social relacionadas ao uso de materiais escritos (cf. Street, 1984; Barton, 1994; Kleiman,
1995 ) e que envolvem ações de natureza não só física, mental e lingüístico-discursiva
(codificar/decodificar; textualizar/ler) como também social e político-ideológica
(compreender/avaliar/replicar/intervir) (cf. Signorini, 2001: 8-9).
2
Essa é uma preocupação compartilhada com outros grupos de pesquisa em
Lingüística Aplicada que atuam na formação continuada de professores em função de
filiações teórico-metodológicas diferenciadas entre si, embora convergentes em diferentes
graus. Em sua proposta de “uma formação crítico-inclusiva”, por exemplo, Fidalgo e
Liberali (2006; ver também Magalhães, 2004) apresentam os resultados de um percurso
diferenciado em relação ao aqui apresentado, apesar da referência comum à criticidade e à
inclusividade: trata-se de uma proposta centrada na formação de uma consciência crítica do
professor através da reflexão e da ação “colaborativa” inspirada pelo modelo comunicativo
habermasiano e por estudos vigotskianos e neovigotskianos de estudo da consciência e do
interacionismo simbólico nos processos de ensino-aprendizagem. Nessa proposta, é o
conceito de atividade, herdado da psicologia russa desde Leontiev, que permite a
articulação entre consciência individual e contexto sócio-histórico-cultural. O sentido de
“crítico-inclusivo” está, portanto, filiado às tradições pedagógicas ancoradas nas teorias
comunicativas inspiradas pelo materialismo histórico e dialético: argumentação reflexiva e
crítica visando a conscientização do professor e a educação emancipatória.
e dispositivos institucionais de exercício de poder e controle, bem como de inclusão e de
exclusão; portanto não orientada apenas para a introdução ou consolidação da inovação
trazida pelas teorias lingüísticas.
A não obliteração do “laço tenso” e da “desigual interdependência”, no sentido dado
a esses termos por Elias e Scotson (2000: 8) em seu estudo sobre relações sociais de poder
e controle3, entre formador/acadêmico e formando/professor e, analogamente, entre
teorização lingüística e ensino de língua, é o que distingue esse modelo dos apreendidos nas
práticas contemporâneas de formação calcadas no racionalismo crítico (teoria comunicativa
habermasiana; teorias psicológicas da consciência), no cognitivismo psicossocial (teorias da
competência individual e das representações mentais) e no multiculturalismo americano
(teorias essencialistas da cultura4).
A base empírica de sustentação deste trabalho é composta de dados de observação,
participação e documentação de cursos de formação continuada de professores da rede
estadual paulista, por nós oferecidos no IEL em 2003 e 20045. Esses dados são
3
Num estudo de três anos (final da década de 60, início da década de 70) sobre as relações
sociais numa pequena comunidade inglesa não marcada por heterogeneidades significativas
de ordem étnica, nacional ou mesmo socioeconômica, os autores identificam os papéis de
“estabelecido” e “outsider” como organizadores das relações de aliança, de antagonismo e
de dominação/subordinação entre os agentes sociais naquela comunidade. A importância da
contribuição desses autores está em mostrar como e porque esses papéis dão visibilidade às
linhas de força atuantes nas relações de poder na comunidade e são sempre interpendentes,
embora de forma desigual, pois tanto unem quanto separam os agentes sociais em
configurações fluidas que escapam aos modelos sociológicos de polarização entre o
indivíduo e a sociedade, ou entre o indivíduo e as estruturas estabelecidas de poder, ou
entre o local e o global, por exemplo. No caso que nos interessa nesse artigo, os papéis
sociais de formador e formando (assim como de professor e aluno em geral) obedecem a
essa mesma lógica de interdependência desigual em configurações fluídas, ou seja, não
fixadas, que são tanto de aliança, quanto de antagonismo e de dominação/subordinação, o
que gera necessariamente tensão e conflito, mas não necessariamente ruptura entre
adversários, ou, o que seria pior, tolerância entre “diferentes”.
4
Assumimos aqui as críticas feitas por Zizek (resumidas em suas linhas gerais no
artigo “Repeating Lenin”, disponível em http://www.lacan.com/replenin.htm, capturado em
28/10/2006) a essa tendência em trabalhos filiados ao multiculturalismo americano.
5
Trata-se dos seguintes cursos de 80h cada, oferecidos aos professores da rede
estadual pelo Programa Teia do Saber, patrocinado pela SEE/SP: Metodologias da Língua
Portuguesa no ciclo II do Ensino Fundamental (out/dez 2003; 06 turmas de professores
atuando nas cidades de Sumaré e Campinas); Metodologias da Língua Portuguesa no ciclo
II do Ensino Fundamental (continuidade) (set/dez 2004; 03 turmas de professores atuando
nas cidades de Sumaré e Campinas); e Ler para aprendrer: práticas de leitura e novas
constituídos de anotações e gravações de aulas, e de produções escritas de diferentes
gêneros, sobretudo relatos autobiográficos, bilhetes de orientação para a reescrita de textos,
seqüências didáticas e anotações de exposições orais, gerados em atividades de
leitura/escrita e avaliação previstas nos programas dos referidos cursos de formação6.
Significa dizer, então, que são dados gerados nas/pelas atividades de formação e que foram
disponibilizados pelos formandos durante os cursos7. Tais dados apontam para a
reprodução sistemática, pelos professores em formação, dos discursos já banalizados de
vitimização do professorado em função dos baixos salários, da precariedade de grande parte
dos contratos de trabalho, do despreparo do alunado e das más condições do ambiente de
trabalho, para citar apenas o que é mais recorrente8; mas apontam também para tentativas,
vejo frente a uma sala superlotada, mal conservada, com uma rotina extenuante, frente a
alunos desmotivados por uma vivência dentro e fora da escola de desrespeito humano
permanente e que esperam por algum salvador. Pergunto-me: por onde começar hoje?”
(Bastos, Edson. E. “O ofício de ser professor” (Signorini et alii (2004a)).
9
Algumas professoras participantes do mesmo curso citado na nota anterior
explicitam isso de forma exemplar em relação ao conjunto dos professores que nos servem
de referência. Quando focam a questão das ações individuais em nível local, o fazem nos
seguintes termos:
“Os alunos dificilmente questionam algo, se esqueço de corrigir alguma coisa que
foi dada, ou se demoro a entregar trabalhos que são pedidos. Os pais não se importam se
toda a matéria necessária para o aprendizado de seus filhos está sendo dada, ou se seus
filhos estão conseguindo entender tudo o que é passado pelos professores. A direção da
escola não quer saber de problemas ou de acertos em sala de aula, a não ser que haja
indisciplina. Aí sim, vão reclamar e brigar. O governo, muito menos, pois paga o salário
igual para aquele que trabalha e faz curso para especializar-se e para aquele que não faz
nada em sala de aula, nem dentro e nem fora dela. A minha consciência é a única que
garante um bom trabalho.” ( Monteiro, Elaine C. T. “O ofício de ser professor” ( Signorini
et alii, 2004a) ).
Quando vão além do local, o que é menos recorrente no corpus de referência, o tom
é de grande indignação, como na seguinte passagem de um relato:
“É justo o que estamos fazendo com essas crianças? Quem foi que criou essa lei que
diz que o adolescente pode tudo, se quando adulto ele perde esse direito? Onde estão os
pais e mães de hoje que não percebem o que está acontecendo com seus filhos? O que está
acontecendo com quem pode falar e não diz nada? Ou será que não querem ouvir? Será que
é mais prático dar um prato de comida, ou ensiná-lo a plantar agora?...” (Neide, “O ofício
de ser professor” (Signorini et alii, 2004a) ).
quando não dificultam ou paralizam, literalmente "implodem" iniciativas consideradas por
eles como mais produtivas para o trabalho do professor na escola10.
Mas são as práticas institucionalizadas de inclusão e exclusão, tanto de alunos
quanto de professores, as mais frequentemente descritas como comprometedoras e nefastas,
portanto relevantes para qualquer proposta de transformação da escola, pois ancoram e
organizam outras, inclusive as de sala de aula. Tais práticas (re)produzem a partilha entre
“estabelecidos” e “outsiders”, nos termos de Elias e Scotson (op. cit), ou seja, entre
controladores e controlados, entre os que podem/sabem e os que não podem/não sabem,
enfim, entre os que contam e os que não contam como agentes que respondem pela
instituição. No caso em foco, trata-se da partilha entre professoras efetivas e não efetivas
(substitutas, eventuais, estagiárias)11, entre representantes da burocracia estatal e regentes
de classe, por exemplo, ou, no caso dos alunos, entre os que aprendem e os que não
aprendem, os recuperáveis ou que valem à pena e os que não valem12; os do centro e os das
10
Uma participante do curso Metodologias da Língua Portuguesa no ciclo II do
Ensino Fundamental de 2003 assim coloca a questão:
“Pois quando você retorna para a escola, há resistência às novidades, ergue-se uma
barreira para informações novas, fica a impressão de que se você tem tempo para perder,
eles não! Temos mais o que fazer! Não sei porque você faz esses cursos que não servem
para nada. Você apenas tem gastos! Eu não! Se a própria Secretaria de Educação não
reconhece o valor disso, porque eu vou perder o meu tempo?
Essas posturas antagônicas me levam a pensar se a Teia é do Saber ou da Aranha,
pois quando estamos no curso, vejo, sinto a necessidade de minhas colegas de saber e
conhecer. No entanto, quando reflito sobre o que me custa relegar a minha família por algo
sem reconhecimento nenhum, a Aranha me engole e abafa o meu grito... Quem tem razão?
” (Gibim, Solange. A. G. “O curso no IEL” (Signorini et alii, 2003) ).
11
Conforme relata uma participante do curso “Ler para aprender” em 2004:
“Às vezes, nas reuniões pedagógicas, queria dar minha opinião ou sugestões sobre
os projetos que seriam desenvolvidos na unidade escolar. Minhas colegas diziam em tom de
brincadeira que eu era 'lagarta', ou seja, professora substituta, que somente quando passasse
pela metamorfose, virasse borboleta, professora efetiva, é que eu poderia opinar, falar,
sugerir, etc.” (Martins, Lúcia H. P. “Percursos na profissão” (Signorini et alii, 2004b) ).
12
Uma outra participante do mesmo curso mencionado na nota anterior descreve uma
situação representativa a esse respeito:
“A sala projeto de recuperação de ciclo era formada por alunos repetentes, que
apresentavam grandes dificuldades, alguns mal sabiam escrever o nome. E o pessimismo
dos outros professores em relação à minha sala foi muito grande. Ouvi:
- Deus me livre, aquele aluno!
- Fulano é péssimo. Nem perca seu tempo com ele. Não vale à pena! E o outro, o
outro... E a Fulana...!
periferias. Em função da "desigual interdependência" entre as partes instauradas por essa
partilha - o sistema não sobrevive sem a participação da legião de professores não
efetivos13 e nem se sustenta socio-politicamente sem a massa de alunos das periferias – são
produzidas hierarquizações, tensões e conflitos que chegam a ser exasperantes para boa
parte dos insatisfeitos com o status quo, mas que não chegam a comprometer uma ordem
institucional que está sempre se acomodando para permanecer a mesma. Daí a percepção
concomitante (e paradoxal para muitos) de falência do sistema (instituição "falida"), apesar
de mudanças "diárias" nas demandas institucionais, por um lado, e, por outro lado, de
solidez ou imobilidade (situação "imexível") da realidade escolar.
E esse interesse dos formandos em não perder de vista os processos institucionais
que redimensionam os eventos específicos da sala de aula, traz, inevitavelmente, para o
formador, a necessidade de uma modelização do letramento escolar que situe as ações
individuais do formando professor no complexo mais amplo das práticas institucionais. A
premissa que sustenta essa modelização é a de que as ações dos agentes institucionais,
inclusive as discursivas, são constituídas em e por práticas sociais específicas, através das
quais essas ações tanto se relacionam com cristalizações sociohistoricamente situadas
(saberes, códigos e convenções já estabelecidos), quanto com os fluxos que redirecionam,
rompem ou resistem a elas de alguma forma, conforme descrito a seguir. São, portanto,
ações que não acontecem no vácuo e sim num campo estruturado de interesses, posições e
relações diferenciais de poder, tanto em nível local quanto inter-institucional. O grande
- Tenho dó de você!
Não sei se por medo, por ainda não me sentir parte integrante daquele grupo, resolvi
não responder a tais falas. Mas procurei não me convencer pelas coisas que falavam.
Afinal, não era esse tipo de educação que eu acreditava ser válida. (...) Realmente, não foi
fácil. Infelizmente, perdi alunos que desistiram. Cheguei a ouvir que não desistiam por
minha causa, que eu era legal, mas na escola não dava mais pra ficar, não aguentavam.”
(Rodrigues, Fabiane. “Percursos na profissão” (Signorini et alii, 2004b) ).
13
Não são raros os substitutos que se aposentam nessa condição, inclusive tendo
assumido funções burocráticas e pedagógicas relevantes. A insegurança e o risco estão,
porém, sempre presentes, conforme os depoimentos dos professores aqui focalizados: “Até
hoje sou substituta. Já fiz 10 anos, continuo substituindo na mesma escola perto de casa, e
também vou a outras escolas. Espero que, num futuro próximo, eu consiga uma classe,
pois sei com convicção que sou muito dedicada ao que faço e amo a minha profissão.”
(Soares, Liliane G. L. “Percursos na formação profissional” (Signorini et alii, 2004b) )
desafio do formador, nessa perspectiva, é justamente o de encontrar os meios de
potencializar esses fluxos em função não apenas das demandas oficiais (reformas
curriculares, por exemplo) como também em função de idéias e questões não
necessariamente contempadas por essas demandas, como é o caso exemplar da questão das
práticas locais cotidianas de sustentação de processos institucionais de inclusão e exclusão.
14
Conforme aponta Schatzki (2001: 3), o corpo assim compreendido é foco de
atenção nas teorias da prática porque é o ponto de encontro entre mente e atividade
individual, e entre atividade individual e sociedade.
num dado contexto de ação, num dado espaço-tempo em que se desenvolvem as inter-
ações, o que não significa dizer, evidentemente, que seja sempre competente ou produtiva
naquele contexto, e tampouco que seja sempre ilógica, incoerente ou inconsistente, por
exemplo.
Voltando ao exemplo, acima mencionado, dos desalinhamentos provocados por
incongruências verificadas em materiais didáticos de ensino de leitura que remetem a
práticas de letramento não congruentes, é preciso considerar o uso desses materiais tanto
em função das práticas escolares de planejamento didático (em que consistem essas práticas
na escola e também nos cursos de formação do professor) quanto das políticas globais de
produção e distribuição desses materiais (em que consistem essas políticas e quais os tipos
de materiais elas promovem). O fato, por exemplo, desses materiais serem “reconhecidos”
ou legitimados pelas redes oficiais de poder e autoridade (seja porque estão publicados, seja
porque foram extraídos de manuais “aprovados” pelo poder público, seja porque foram
escolhidos por uma instituição de prestígio para compor exames do tipo vestibular, por
exemplo) os torna não só elegíveis como materiais de ensino à disposição do professor,
como os torna de fato necessários, quando não obrigatórios, nas redes sociotécnicas que
orientam as práticas escolares de letramento.
Em conseqüência, no âmbito da escola e da sala de aula, o uso desses materiais é
fator de legitimização das ações individuais do professor, pois permite que ele articule
localmente as demandas globais de ensino de leitura/escrita e de preparação para exames e
concursos valorizados pelo Estado e outras instituições à demanda local de preenchimento
do horário de aula com atividades relevantes e que não exijam tempo de planejamento do
professor e nem transtornos na ordem institucional.. O que não impede, evidentemente, que
os desalinhamentos eventualmente causados pelo uso de materiais de orientação muito
diversa possam imprimir a essas ações um caráter disruptivo para o alunado, portanto
prejudicial, em diferentes graus, ao processo de ensino-aprendizagem da leitura/escrita.
15
Agregando à noção de espaço geográfico as noções de redes e sistemas de objetos e
técnicas reguladores de ações, esse autor assim define o espaço das práticas sociais
cotidianas: “O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente,
mas como o quadro único no qual a história se dá. (...) Sistemas de objetos e sistemas de
ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as
ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza
sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra sua dinâmica e se transforma.”
(Santos, 2002: 63)
complementares, enquanto que as de uso da escrita como modo diferenciado de
interlocução tendem a se contrapor mais sistematicamente. Em conseqüência, o trabalho
com a leitura informativa no processo de formação (e, consequentemente também no de
ensino) tende a ser mais frequente porque menos sujeito a sobressaltos, o que não significa
que seja sempre mais produtivo, conforme ilustram de maneira exemplar, para o caso do
ensino, os manuais didáticos. Nesse sentido, são significativas as práticas escolares
padronizadas de leitura para qualquer gênero ou tipo de texto, pautadas por modelos de
leitura do texto informativo do tipo descrito em trabalhos de divulgação científica
estudados na formação regular e continuada, particularmente os de orientação
psicocognitiva. Tais práticas padronizadas de abordagem de textos escritos mobilizam
"estratégias" de leitura de natureza procedural descritas em materiais de divulgação
científica e amplamente divulgadas nos cursos de formação. Daí a importância de se
deslocarem os focos de leitura e os modos de ler, antes mesmo de se diversificarem os
gêneros lidos (conforme a demanda dos documentos oficiais mais recentes), ou de se
introduzirem novos estudos acadêmicos sobre leitura.
Mas para isso, é fundamental a participação do formando professor em práticas
outras em relação às que já lhe são familiares como condição para que ocorra o rompimento
ou interrupção de mecanismos de sustentação do que se quer modificar ou questionar, e/ou
da ordem institucional correspondente. Conforme mostra Bourdieu (1995 [1977]: 168-169),
é necessária a constituição de dispositivos de rompimento ou interrupção do fluxo rotineiro
das ações para que esses mecanismos de sustentação sejam contemplados pelos sujeitos
(constituição de um espaço de confrontação de possibilidades antagônicas e/ou
diferenciadas; constituição de um espaço de avaliação crítica e de opinião). Em seu estudo
sobre mudanças nas organizações, Nicolini e Holti (2003), chamam a atenção para a
existência de mecanismos explícitos de sustentação da ordem institucional que também
devem ser considerados: "Atrás de toda forma emergente de ordem estável há um número
de práticas organizadoras que constituem tanto um objeto de estudo quanto um locus de
intervenção." (2003: 7). Desse modo, práticas de sustentação de uma ordem institucional
percebida como desfavorável devem ser foco de atenção, tanto do analista quanto dos
agentes institucionais empenhados em processos de mudança, conforme já apontado na
seção anterior (a esse respeito, ver também Signorini, 2006c). Nesse sentido, são
determinantes os modos de inserção de formadores e formandos em práticas letradas
específicas – no caso, as que promovem e catalisam o processo de formação enquanto
processo de (re)definição dos papéis sociais e das identidades profissionais, mas também de
(re)definição das práticas de sustentação de uma dada ordem institucional.
16
As instabilidades assim criadas são inúmeras e consideradas nefastas tanto para os
que fazem o rodízio quanto para os alunos por ele “beneficiados”, conforme relata uma
professora do Fundamental II: “Um dia, eu estava muito cansada, com o projeto de leitura e
escrita em andamento, preocupada, irritada, pois sabia que, naquela semana, perderia
minhas aulas com a chegada da nova professora que passara no concurso. Foi um caos de
nervos naqueles dias na escola. Não se falava em outra coisa, outros professores também
passariam pelo mesmo. Não tínhamos inspiração, estímulo. Foram dias difíceis.” (Morelli,
Maria F. “O aluno e a escola” (Signorini et alii (2004a) ).
que será muito interessante e desafiador. Por que não tenta?'- disse a pessoa que estava à
mesa. Indaguei sobre o projeto, mas disseram que haveria capacitações para os
professores. Então, aceitei o desafio, mesmo no escuro.
Chegando à escola, iniciei o trabalho com aquela turma: alunos que estavam com
defasagem de idade, com casos de indisciplina, vindos de reprovações consecutivas e, em
especial, um que tinha vindo de aceleração do ciclo I (1ª a 4ª séries). Selecionei um
pequeno texto para a aula e fiz algumas perguntas para motivar a leitura. Todos estavam
tentando ler, ou melhor, quase todos, pois Claudinho parecia cada vez mais distante.
Fiquei preocupada, mas esperei o momento adequado para abordá-lo.
Aproximei-me do garoto e disse:
- E então, Claudinho, gostou do texto? Fala sobre o quê?
O garoto direcionava seu olhar para o texto e para mim. Fiquei sem saber o porquê
naquele instante, mas uma amiga do garoto disse bem baixinho:
- Professora, ele não sabe ler. Veio do Nordeste para cá e o colocaram direto na 4ª.
série. Então, ele não sabe ler e muito menos escrever...
Senti como se o mundo desabasse sob os meus pés e como se a sala de aula e todos
os demais alunos desaparecessem e só restasse eu e Claudinho. Pensei: Nossa, este é o
projeto que jogaram em minhas mãos? O que fazer? Isto eu não aprendi em meu curso de
graduação... (Lucimeire, “O ofício de ser professor” ( Signorini et alii, 2004a) ).
17
Uma queixa recorrente nos relatos dos professores aqui focalizados é justamente a
da falta de generosidade de seus colegas mais experientes em repassarem suas experiências:
“Em 1975, comecei com uma substituição em uma escola rural por poucos dias, e depois
outra, e mais outra, todas rurais. Senti que tudo que tinha aprendido eram teorias, que na
realidade você se depara com crianças de diferentes níveis e com colegas - se é que posso
chamá-las assim - que escondem o que sabem e não passam suas experiências, talvez por
orgulho ou egoísmo, não sei.” (Paiva, Neusa M. M. “Percursos na formação profissional”
(Signorini et alii, 2004b) )
instância e dessa capacidade de enunciação de que não dispõe o professor no seu cotidiano
na escola. Nesse sentido é que se pode dizer que a dimensão propriamente política das
práticas de formação do professor está na afirmação de um espaço de superação da partilha,
acima mencionada, entre "lagartas" e "borboletas", ou seja, entre os que podem e os que
não podem voar. Caso contrário, não haveria lugar para a experiência comum, acima
mencionada, de construção de conhecimento.
É evidente que ao processo de formação vão interessar também os modos de
inserção de formador e formando nas comunidades de práticas não escolares
(institucionalizadas ou não) e no campo social mais amplo (urbano/rural; central/periférico;
por exemplo), uma vez que as práticas de letramento, inclusive as de formação do
professor, encenam a heterogeneidade das linhas de diferenciação social entre grupos e
indivíduos que se constituem mutuamente de forma relacional mas diferenciada (o “laço
tenso” e a “desigual interdependência”, já mencionados), variando o grau de tensão e/ou
conflito gerado pela diferença (a esse respeito, ver também Signorini, 2005). O que se
espera, porém, dos processos de formação não é a neutralização da diferença, da tensão e
do conflito, mas antes o seu enfrentamento e transformação pela configuração de um
espaço de trabalho que promova uma cena ou lugar de enunciação e de experiência comum
em que a controvérsia, a ruptura e o dissenso, conforme aponta Rancière (1995),
funcionem como vetores de dinamização e transformação de condições de inteligibilidade e
objetivos compartilhados. O que não significa dizer uma cena comunicativa do tipo fórum
ou debate em que tudo possa ser dito e esclarecido com vistas a uma distribuição
consensual de direitos e deveres, ou então um diálogo reflexivo do tipo socrático em que o
formando vai sendo convencido das razões do formador. Nos cursos aqui focalizados, foi a
interlocução mediada pela escrita em práticas letradas escolares e não escolares18 o recurso
mais significativo para a tentativa de construção de uma cena ou lugar de enunciação e de
experiência comum nos termos acima descritos (a esse respeito, ver também Signorini,
2006a). Mas outros tipos de interlocução, mediados por outros gêneros (orais e escritos),
18
Além de textos destinados à publicação no site do Programa e em trabalhos de pesquisa,
os professores também se valeram da interlocução com acadêmicos e colegas para se
dirigirem diretamente ao secretário estadual da Educação através de uma Carta Aberta
(ver. Anexo), entregue aos representantes da Secretaria de Educação presentes na cerimônia
de encerramento dos cursos de 2003 na UNICAMP.
podem assumir o mesmo papel em diferentes situações e atendendo a diferentes interesses
imediatos de formação do professor.
5. Considerações finais
É recorrente em discussões de sala de aula e relatos escritos dos professores aqui
focalizados a insatisfação com representantes da burocracia estatal (geralmente
coordenadores pedagógicos e/ou diretores de escola) que se “apropriam” de suas idéias e
iniciativas em sala de aula para firmarem-se nas redes institucionais de poder e autoridade,
formatando ou traduzindo essas idéias e iniciativas de forma “mais apropriada”, ou seja,
reconstruindo-as em gêneros discursivos considerados mais apropriados para o trâmite
institucional, mas pouco ou nada acrescentando às condições reais de trabalho do professor
na escola, inclusive as necessárias ao desenvolvimento da proposta ou “projeto” por eles
mesmos encaminhado à Diretoria de Ensino. Tais práticas de apropriação (ou de
“expropriação”, como querem alguns professores) são uma espécie de contraponto às
práticas de formação orientadas para o empoderamento do professor, nos termos descritos
neste trabalho. Como alegam os insatisfeitos, tais práticas acabam por neutralizar qualquer
impacto de idéias e iniciativas individuais na formação do alunado. A forma mais acabada
dessa neutralização seriam os projetos do tipo pro-forma, ou “pra D.E. ver” (em analogia
com “pra inglês ver”), de que falam os professores em seus depoimentos: dão sustentação a
uma dada ordem institucional – “tudo bonitinho no papel” – e, sobretudo, ancoram práticas
de gerenciamento institucional que garantem a sobrevivência de redes de saber/poder das
quais está excluída a maioria dos que estão em sala de aula, efetivos inclusive.
Nesse sentido é que se pode dizer que o aparelhamento técnico-científico, no caso
em pauta o acesso ao gênero institucional valorizado, é condição necessária, mas não
suficiente num processo de formação nos moldes aqui propostos. É condição necessária,
porque “projeto de ensino” é um dos gêneros envolvidos em práticas de interesse para o
professor, como o as de definição de políticas de distribuição de recursos, por exemplo.
Mas não é condição suficiente, na medida em que tão importante quanto ser capaz de
formular um projeto de ensino nos moldes aceitos pela burocracia estatal, é saber como
fazê-lo estrategicamente, de modo a transformar de alguma forma as práticas locais de
gerenciamento, planejamento e ensino. Caso contrário, seria mais um formulário a ser
preenchido, e não um recurso a ser usado em benefício do professor e de seus aprendizes.
Referências bibliográficas:
Anexo:
CARTA ABERTA AO SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Exmo. Sr.
DD. Secretário da Educação do Estado de São Paulo
É com grande satisfação que aproveitamos essa cerimônia de encerramento dos cursos de formação
continuada em Língua Portuguesa para o Fundamental II, oferecidos no âmbito do Projeto Teia do Saber, para
torná-lo ciente das possibilidades criadas por esses cursos para o nosso trabalho em sala de aula, mas também
das necessidades atreladas a essas possibilidades e que se tornaram para nós inadiáveis. Tão fortes quanto
nossa disposição e empenho em renovar nossas práticas pedagógicas e nossos materiais de ensino são agora
nossa disposição e empenho em nos profissionalizar de fato, ou seja, em não mais contnuarmos tapando o sol
com a peneira para que a instituição se mantenha, ou a continuar produzindo aulas como se produzem
mercadorias numa fábrica, enquanto nossos alunos e a sociedade já não nos vê mais como peça fundamental
da escola, nem como agente da comunidade.
O Projeto Teia do Saber nos trouxe novamente a certeza de que o professor precisa ter tempo extra-
classe para fazer diagnósticos confiáveis do desempenho de seus alunos e para planejar o que ensinar em
função disso; de que o professor precisa trabalhar com outros professores dentro da escola para que a idéia
dos ciclos possa de fato significar alguma coisa para todos; de que o professor precisa apoiar-se no trabalho
de supervisores e diretores empenhados num projeto pedagógico e não num projeto burocrático feito de
formulários e de medidas disciplinares apenas.
O Projeto Teia do Saber nos trouxe também a certeza de que a escola precisa estar orientada para as
necessidades de seus alunos e as competências de seus professores, o que significa dar acesso à informação de
forma clara e precisa e aos recursos disponíveis sem restrições. Significa também encontrar os meios para
obtenção de novos recursos que se façam necessários. Não nos interessa mais material trancado, bibliotecas às
moscas, computadores quebrados ou obsoletos e, sobretudo, professores sem tempo e capacitação para utilizar
de forma produtiva os materiais de pesquisa e apoio disponíveis na sociedade, cada dia mais numerosos. Não
nos interessa tampouco não poder decidir sobre os cronogramas dos cursos de capacitação ou sobre as novas
exigências do SARESP.
Numa palavra, Senhor Secretário, queremos torná-lo ciente de que educação continuada é
qualificação e também novas exigências e novos compromissos. O nosso compromisso é esse: acirrar nossa
luta pela capacitação e por melhores condições materiais e financeiras necessárias ao incremento de nossa
prática de sala de aula. Dito isso, gostaríamos que explicitasse o seu compromisso para conosco. Não para
com a Educação no sentido genérico do termo, ou para com a máquina do Estado. Gostaríamos que
explicitasse seu compromisso para com o que estamos reinvidicando aqui e agora.