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O GÊNERO ‘RELATO REFLEXIVO’ NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE


LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

Sandra Maria Araújo Dias (Proling/UFPB)

[...] através de retextualizações docentes, o professor pode


trilhar novos caminhos e renovar suas práticas discursivas,
(re) inventando e iluminando a vida na sala de aula –
desvendando na sua maneira de narrar o ensinar, a sua
maneira de tornar-se professor (REICHMANN, 2009, p. 89).

INTRODUÇÃO

Alinhando à epígrafe acima e ao projeto de Professores-em-construção: retextualizando


práticas, histórias e trajetórias de formação docente (Reichmann, 2005), o presente estudo tem
como objetivo analisar o papel do gênero ‘relato reflexivo’ no contexto de letramento e
formação de professores de inglês como língua estrangeira (ILE). Os relatos foram elaborados
por graduandos do curso de Letras (com dupla habilitação Português/Inglês) ao final da
disciplina de Prática de Ensino em Língua Inglesa II. No entanto, analisamos aqui apenas o
relato de duas professoras: Poliana e Márcia1. Para atingir o objetivo proposto nesta pesquisa, a
análise dos relatos produzidos pelas graduandas segue a perspectiva crítico-reflexiva (FREIRE,
1996; RICHARD & LOCKART, 1994; LIBERALI, 2004), fundamentada na lingüística
sistêmico-funcional (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY E MATHIESSEN, 2004).
Na seção subseqüente, algumas questões sobre a prática reflexiva no contexto de
formação docente são apontadas. Depois, situamos o relato reflexivo no referido contexto e
abordamos alguns aspectos sobre a lingüística sistêmico-funcional. Em seguida, descrevemos a
metodologia da pesquisa, focalizando as participantes, os procedimentos de coleta e de análise
de dados. Por fim, tecemos considerações sobre os resultados obtidos, apontando para pesquisas
posteriores.

1 A PRÁTICA REFLEXIVA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS


ESTRANGEIRAS

Conforme aponta Cunha (2003, p. 237), a reflexão “é, atualmente, um dos conceitos
mais utilizados por investigadores, formadores de professores e educadores diversos ao se
reportarem às novas tendências de formação de professores”. Nesse contexto, Lima e Gomes
(2002, p. 163) afirmam que “as propostas de professor reflexivo têm sido a tônica dos cursos de
formação de professores (as) nos últimos tempos”. Isso acontece porque a prática reflexiva tem
sido considerada como um processo fundamental “na aprendizagem e formação do (a) professor
(a)” (LIBERALI, 1999, p. 25), uma vez que “refletir implica um processo de busca interior que
pressupõe um distanciamento do senso comum” (idem, ibid). Nessa perspectiva, a autora
acrescenta que “essa busca, por compreender o que é comum como estranho, sugere um
desenvolvimento crítico, uma crescente consciência de si e do mundo” (LIBERALI, 1999, p.
25). 1
Van Manen (apud Liberali, 2004) baseado na teoria da ação comunicativa de Habermas,
postula três níveis de reflexão: a reflexão técnica, reflexão prática e reflexão crítica. A Reflexão
técnica como sugere o próprio nome, relaciona-se com “o conhecimento técnico” (idem, p. 99).
Nesse nível de reflexão, a “preocupação maior seria a eficiência e a eficácia dos meios para
atingir determinados fins, sendo que esses fins não estariam abertos à crítica ou a mudança”

1
Pseudônimos utilizados para preservar a identidade das professoras.
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(ROMERO apud MAGALHÃES, 2004, p. 88). Em relação à reflexão prática, a referida autora
postula que “caracteriza-se essencialmente pela centralização em necessidades funcionais,
voltada para compreensão dos fatos (idem, p. 100)”. Segundo a autora supracitada, a reflexão
crítica “englobaria as duas fases anteriores, porém valorizando critérios morais” (idem, p.89).
Schön (apud Cunha, 2003, p.241) sugere que a formação do professor deve ser um
processo contínuo que envolva ‘reflexão na ação’, ‘reflexão sobre a ação’ e ‘reflexão sobre a
reflexão na ação’. Cunha (2003, p.240) ressalta que apesar de “não serem originalmente sobre a
formação de professores, os estudos de Schön (1983 e 1987), estão na base da formulação da
teoria sobre o professor reflexivo”. Por isso, Schön defende um processo de formação cuja base
é a educação contínua. Nesse contexto, compreende-se que a educação “não pode ser vista em”
termos apenas de produtos – resultados de cursos, por exemplos – mas, sim deve ser entendida
em termos de um processo que possibilita ao professor educar-se a si mesmo, à medida que
caminha em sua tarefa de educador (CELANI, 2002, p.22).
Defende Smyth (1992) que quando se pensa em prática reflexiva, é necessário
considerar quatro tipos de ações que levam os professores a se envolverem nesse tipo de prática,
quais sejam: descrever (refere-se à descrição dos eventos ocorridos em sala de aula e no ensino),
informar (envolve o relato de informação sobre os princípios/teorias envolvidos no processo de
ensino-aprendizagem que subjazem as ações de sala de aula), confrontar (está ligado aos
questionamentos sobre as ações realizadas, os princípios/teorias envolvidos no evento) e
reconstruir (envolve a organização das ações do futuro resultante, de acordo com as ações
anteriores). Conforme discute Romero (2004), “com base em Smyth (1992) e Freire (1970)”,
cada uma dessas ações, nos remete respectivamente as seguintes perguntas: “O que faço? O que
isso significa? O que me levou a agir dessa forma? e Como posso agir diferentemente?” (idem,
p.191).
Ainda no contexto de formação docente, Richards e Lockhart (1994) defendem a idéia
de centrar as pesquisas nos eventos de sala de aula, pois assim os professores serão capazes de
compreender como ensinam. De acordo com os referidos autores, “se os professores podem
encontrar formas de capturar os pensamentos e reações desses eventos bem como formas de
coletar informações sobre os próprios eventos” (RICHARDS e LOCKHART, 1994, p.6), eles
poderiam “desenvolver estratégias de intervenção ou mudança” em suas próprias salas de aula
(idem). Esta experiência de explorar o próprio contexto de ensino e suas vivências profissionais
postulam os referidos autores “pode servir como base para reflexão crítica” (RICHARDS e
LOCKHART, 1994, p. 6).
Magalhães (2004, p. 102) argumenta que a reflexão crítica “é marcada pela descrição de
ações, discussão das teorias que embasam essas ações, autocrítica e proposta de reconstrução da
ação”. A referida autora ressalta que, no contexto de formação docente, há complexidade na
constituição de profissionais crítico-reflexivos devido ao embasamento teórico na qual “se apóia
à concepção de linguagem” dos docentes (idem, p.61). A autora supracitada acrescenta que “os
modos como à linguagem vem sendo enfocada nos contextos de formação nem sempre
possibilitam aos participantes a desconstrução de representações tradicionais” (idem, p. 61).
Sendo assim, Magalhães (2004, p. 64) aponta para a linguagem como “possibilitadora da
constituição de profissionais críticos e reflexivos”, ou seja, a linguagem como um instrumento
para promover a reflexão crítica.
Alinhando-se aos estudos de Magalhães (2004), dentre as atividades que focalizam a
linguagem como uma prática social – no contexto de letramento e formação de professores de
línguas estrangeiras – de forma incentivar o processo reflexivo, temos a escritura de relatos
reflexivos. A seguir, apresentaremos algumas considerações sobre relatos reflexivos no referido
contexto.

Situando o relato reflexivo como gênero catalisador

Segundo Bakhtin (1979/[2006]), os gêneros do discurso são “tipos relativamente


estáveis de enunciados” que não apresentam uma estrutura fixa e imutável. Ao contrário, esses
gêneros sofrem modificações que podem ser influenciadas pelo contexto de produção. Em
outras palavras, a produção dos gêneros advém das necessidades sociais de comunicação
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humana. Nessa perspectiva, o referido autor afirma que a variedade da atividade humana faz
com que a variedade de gêneros seja infinita. Sendo assim, não há motivo para “minimizar a
extrema heterogeneidade dos gêneros”. Bakhtin (1979/[2006]) postula que existem dois tipos
de gêneros e que é necessário distingui-los. São eles: os gêneros primários (formados a partir de
interações espontâneas, aproximando-se da modalidade oral) e os gêneros secundários
(constituidos em situações de comunicação cultural complexas e mais evoluídas, aproximando-
se da modalidade escrita). Se traçarmos uma linha contínua com dois extremos teríamos em
uma extremidade os gêneros primários e em outro extremo, os gêneros secundários conforme
ilustra a figura subseqüente:

GÊNEROS PRIMÁRIOS GÊNEROS SECUNDÁRIOS

Figura 1 – Representação dos gêneros primários e secundários em um ‘contínuo’

É importante salientar que entre os referidos gêneros, há diversos outros gêneros. Nessa
pesquisa, os relatos reflexivos pertencem à modalidade dos gêneros secundários e conforme
ressalta Signorini (2006) encapsulam duas funções principais, quais sejam:

dar voz ao professor enquanto profissional, ou seja, enquanto


agente de um campo de trabalho específico. Através da elaboração do
“relato reflexivo’ são desencadeados processos de articulação e
legitimação de posições, papéis e identidades auto-referenciadas, ou
seja, construídas pelo narrador/autor para si mesmo. A segunda função
é a de através da interlocução mediada pela escrita, criar mecanismos
e espaços de reflexão sobre teorias e práticas que constituem os
modos individuais e coletivos de compreensão e de
produção/reprodução desse campo de trabalho, bem como das
identidades profissionais, individuais e de grupo. (SIGNORINI, 2006,
p. 54) (grifo meu)

De acordo com a citação acima, é possível afirmar que o relato reflexivo é um


instrumento mediador capaz de promover a reflexão, intervenção e mudança nas práticas e
posicionamentos docentes. Ademais, os relatos são ferramentas importantes para formação
docente, pois permite ao professor (re)avaliar, intervir e (re) direcionar seu posicionamento e/ou
sua ação docente. Nesses termos, corroboramos com a idéia de Signorini (2006) ao afirmar que:

o relato favorece a configuração de um processo contínuo de


integração e negociação de novos sentidos e posicionamentos pela
articulação interindividual/social/histórco-cultural de identidades e
programas de ação emergentes. E esses programas de ação emergentes
escapam sempre de alguma forma ao que previa ou desejava o
formador em seus planos de trabalho, programas e avaliações. Mas
essa já é outra estória (SIGNORINI, 2006, p.69).

Conforme salienta Reichmann (2008), o relato como “uma ferramenta valiosa para
formação docente”, pois permite a intervenção e (re) direção de práticas de sala de aula. Nesse
estudo, adotaremos a concepção do relato reflexivo como um “gênero catalisador”
(SIGNORINI, 2006, p. 69) capaz de explicitar, organizar e ressignificar as experiências
docentes do passado baseadas nas “indagações e de inquietações do presente”. Nesta seção,
focalizaremos mais detalhadamente os princípios teóricos e metodológicos que fundamentam a
Lingüística Sistêmico-Funcional, focalizando o sistema de transitividade.

A Lingüística sistêmico-funcional
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Na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), a língua é vista como um sistema sócio-


semiótico complexo e um dos sistemas de significados que constituem a cultura humana
(HALLIDAY e HASAN, 1989). Em outras palavras, podemos afirmar que na perspectiva da
GSF, o uso que o falante/escritor faz da língua molda o sistema lingüístico. Sendo assim, a
descrição deste sistema deve considerar dois aspectos: (i) como a língua está sendo usada pelos
falantes/escritores no evento comunicativo; (ii) e como as estruturas lingüísticas estão sendo
organizadas para serem utilizadas.
Nesta gramática, a língua está organizada de acordo com três componentes funcionais,
denominados de metafunções. Essas metafunções – chamadas de metafunção ideacional,
metafunção interpessoal e metafunção textual – ocorrem simultaneamente e assumem três
perspectivas distintas. A metafunção ideacional indica a realidade, isto é, representa a
experiência humana; a metafunção interpessoal expressa a interação entre os participantes do
evento comunicativo e suas formas de ação no mundo; por último, temos a metafunção textual
que representa a arquitetura do texto, isto é, expressa a organização textual. A metafunção
ideacional manifesta-se lingüisticamente através do sistema de Transitividade; a interpessoal
concretiza-se no sistema de Modo; e a metafunção textual relaciona-se ao sistema de Tema. De
acordo com Halliday (1994), é importante ressaltar que mesmo que não seja possível descrever
cada uma dessas metafunções ao mesmo tempo, elas ocorrem simultaneamente.
Thompson (1996) afirma que as pessoas utilizam a língua para representar seus
mundos: externo (ações, atividades físicas) e interno (emoções, sentimentos, pensamentos
dentre outros), ou seja, a língua é a maneira como percebemos experienciamos e representamos
o mundo. Esta representação realiza-se, no nível léxico-gramatical, através do sistema de
transitividade. O referido sistema é utilizado para construir vivências e experiências humanas
em um evento comunicativo. Esta construção é realizada no discurso pela oração (Halliday e
Mathiessen, 2004) através de tipos de processos. Cada processo geralmente apresenta três
componentes básicos: o próprio processo que se desenvolve ao longo do tempo, os
participantes (pessoas, seres e objetos) envolvidos no processo e as circunstâncias associadas
ao processo.
Os processos podem ser classificados em seis tipos: três processos principais (materiais,
metais e relacionais) e três processos secundários (verbais, comportamentais e existenciais). Os
processos materiais referem-se a ações físicas e concretas, isto é, eles descrevem um processo
de “fazer/criar algo” (EGGINS, 2004). Quanto aos processos mentais, Halliday (1994) ressalta
que representam o pensar, o saber, o conhecer, o entender (processos cognitivos), o amar, o
detestar, o gostar, o ter medo (processos afetivos) e o ver, o perceber, o ouvir (processos de
percepção) etc. Segundo Cunha e Souza (2007), “os processos relacionais são aqueles que
estabelecem uma conexão entre entidades, identificando-as ou classificando-as, na medida em
que classificam a experiência de um a outro” (p.58). Quanto aos processos verbais consistem
basicamente em verbos que se referem ao dizer. No caso dos processos comportamentais “são
responsáveis pela construção de comportamentos humanos, incluindo atividades psicológicas,
atividades fisiológicas.” (CUNHA e SOUZA, 2007, p.60). Já os processos existenciais referem-
se a algo que ocorre com o único participante desses processos: o Existente. Porém, neste
estudo, nos restringiremos apenas a análise dos processos principais.

O percurso da pesquisa

O presente estudo tem como participantes duas alunas do curso de Letras, regularmente
matriculados na disciplina de Prática de Ensino de Inglês I, de uma instituição privada de ensino
superior, localizada no interior da Bahia. A referida disciplina está alocada no 7° período da
grade curricular do curso de Letras e é oferecida em dois turnos: vespertino (turma I com vinte e
um alunos) e noturno (turma II com trinta e dois alunos). Em virtude da extensão desse artigo,
delimitamos uma amostra de aproximadamente 10% (GIL, 2002) dos relatos da turma I, a qual é
composta por dois relatos reflexivos produzidos ao final do primeiro semestre de 2007. Os dois
relatos foram selecionados de acordo com a avaliação feita pela professora titular da disciplina.
Sendo assim, escolhemos um relato, avaliado como ótimo e um considerado como bom,
elaborados respectivamente pelas alunas Poliana e Márcia (nomes fictícios).
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Após o período de um mês de estágio supervisionado de regência2 de ILE, os alunos


foram solicitados a produzirem um relato de experiência sobre sua ação docente. Apesar do
relato ter uma abordagem auto-avaliativa, os alunos tinham a oportunidade de fazer uma
avaliação dos conteúdos da disciplina de Prática e da contribuição dessa disciplina para sua
formação profissional. Além disso, outros aspectos para elaboração individual do relato
deveriam ser levados em consideração pelos alunos, conforme ilustra o quadro abaixo:

Orientação para elaboração do relato de experiência da regência


Faça uma auto-avaliação do estágio de regência supervisionado e elabore um relato
crítico-reflexivo de, no mínimo, uma lauda e, no máximo três sobre sua prática de regência, que
descreva uma semana de aula e aborde os seguintes aspectos:
Ÿ Conteúdo (grau de dificuldade, domínio, internalização do conteúdo);
Ÿ Explicação do conteúdo (clareza, seqüência lógica, contextualização);
Ÿ Leitura e Interpretação de textos (estratégias de leitura utilizadas, adequação dos textos
ao tema e ao conteúdo, grau de dificuldade);
Ÿ Aplicação de atividades: exercícios e avaliações (tipo, adequação ao tema e conteúdo e
ao nível da turma);
Ÿ Relação professor-aluno (domínio de turma, incentivo e a participação dos alunos e
feedback dos alunos);
Ÿ Habilidades Básicas (ler, escrever, falar, ouvir);
Ÿ Recursos e/ou materiais didáticos;
Ÿ Tempo (pontualidade e cumprimento do tempo didático);
Ÿ Contribuição do estágio de regência supervisionado para formação profissional;
Quadro 1 – Estrutura para elaboração do relato reflexivo

Análise dos dados e discussão dos resultados


Analisando o relato produzido por Poliana, percebemos que ela não aborda todos os
tópicos requeridos no roteiro de elaboração. A autora inicia sua narrativa docente
contextualizando o estágio de regência. Para tanto, ela apresenta o nome da escola onde irá
estagiar, a série, o nível, o nome da professora titular bem como o nome da professora da
disciplina de Prática de Inglês, também supervisora do estágio de regência: Meire. Em seguida,
Poliana descreve uma semana de aula – a terceira – conforme solicitado nas orientações de
elaboração do relato. Ao descrever a terceira semana, verificamos, no trecho grifado, que ela
explicitamente faz uma reflexão sobre o nível da turma com relação à leitura, escrita e
pronúncia:

Fragmento (1a):

Na terceira semana de estágio, já familiarizada com os alunos e conscientes do grau de


dificuldade de leitura, escrita e pronúncia da turma, apresentei a tela “Crianças mortas de
“ de Candido Portinari(...)”.

No fragmento abaixo, é possível observar a descrição dos procedimentos da aula da


graduanda e um momento de reflexão, inscritos nos processos materiais destacados. Nesse caso,
a graduando refere-se à importância da interdisciplinaridade para o ensino de línguas
estrangeiras, a inclusão da “arte, cultura, informação e o que mais a imaginação permitir”.
Fragmento (1b):

Posteriormente revisei o conteúdo “membros da família” através da obra de Portinari,


utilizando-se dos indivíduos presentes na tela (os quais constituíam tradicionalmente uma
família) para trabalhar o assunto. Reafirmando mais uma vez a importância de se
trabalhar a língua inglesa contextualizando e não como um amontoado de palavras soltas.
Afinal é possível sim, trabalhar língua estrangeira juntamente com arte, cultura,
informação e o que mais a imaginação permitir”.
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Poliana informa sobre alguns aspectos do roteiro, quais sejam: atividade aplicada,
feedback dos alunos e os recursos didáticos utilizados. Porém, ao final da descrição das
atividades e do feedback dado pelos alunos, percebemos que Poliana faz uma avaliação sobre
sua pronúncia e sobre o desempenho de seus alunos nesse item, conforme podemos notar no
fragmento subseqüente:

Fragmento (1c):

Dada à empolgação de ter conseguido superar a deficiência da pronuncia, algo que até
então atrapalhava bastante o meu desempenho em sala de aula, não percebi que os alunos
ainda não haviam superado esta barreira, e só depois de ter acompanhado as aulas da
estagiária Simone, me dei conta que poderia ter trabalhado melhor este aspecto, para que
a superação pudesse ser mútua.

O processo material destacado reforça a idéia de que Poliana faz uma (auto) avaliação
sobre sua pronúncia e o desempenho de seus alunos. Verificamos no processo mental que a
graduando está tão envolvida com sua deficiência que não percebeu que os alunos também
precisavam de ajuda nesse aspecto. Concluímos, portanto, que Poliana faz uma auto-reflexão
sobre sua atuação profissional. Ainda no processo mental, Poliana toma consciência da
necessidade ter um novo posicionamento docente diante da realidade vivenciada e
compartilhada com sua parceira, sinalizando esse fato no seguinte trecho de sua escrita
reflexiva: “me dei conta que poderia ter trabalhado melhor este aspecto, para que a superação
pudesse ser mútua”. Nesse mental, Poliana compara seu fazer docente com o de sua parceira de
estágio através de uma oração projetada. Nesse momento de comparação, ela aponta que está
sendo uma observadora externa da sua própria prática, evidenciando outro papel social, não
mais como professora, mas como observadora de sua ação docente.
Quando informa sobre o tópico sobre recursos, Poliana aponta os disponíveis na escola
onde realizou o estágio, chamando a atenção para um em particular: o retrojetor, “apelidado de
cineminha”. Além de revelar aspectos de sua ação docente, Poliana explicita – através de
processos relacionais – suas crenças em relação ao papel da escola na sociedade. Para ela,
alguns aspectos como “estrutura física, recursos didáticos, remuneração e motivação dos
professores” não devem interferir no tipo de formação que deve ser dado ao aluno. Isso fica
evidente no seguinte trecho: “... esta instituição não possui recursos que favorecem a prática
pedagógica”.
Dada a análise, observamos que os processos materiais são os mais recorrentes,
sinalizando aspectos da prática de Poliana. No entanto, nos mentais as falhas e auto-sugestões
são explicitamente desveladas. Tais processos indicam que Poliana está envolvida em descrever,
informar e confrontar, sinalizando para reconstrução de determinados aspectos de sua prática.
No início do relato produzido por Márcia, a autora contextualiza o estágio de regência
através do processo material, informando sobre determinados aspectos como: o nome da escola,
série, turma e turno onde estagiou como professora de inglês. É interessante notar que além
contextualização do estágio, Márcia faz avaliações, julgamentos e dá opiniões sobre a
necessidade ter aliar teoria e prática como “referencial de qualidade” em contextos de
formação docente. Nos relacionais, a autora sugere a utilização de “atividades educativas
coerentes” que possam garantir a formação de cidadãos ativos.2
Em seguida, Márcia introduz a descrição de uma semana de aula apontando o conteúdo
que foi trabalhado sob a supervisão da professora Jéssica2. Ao descrever sua aula, Márcia
aborda os seguintes tópicos: participação da turma, atividade aplicada, leitura de texto e uso de
estratégias de leitura. No processo mental, a graduanda avalia sua aula, indicando que objetivo
proposto foi atingido. Ela acrescenta que devido à falta de tempo, a correção do exercício
proposto se daria na aula subseqüente.

2
A referida professora faz parte do quadro docente da faculdade onde as graduandas estudma, sendo a
professora titular da disciplina de Didática.
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O fragmento (2a) revela a concepção da graduanda em relação à prática de ensino e


chama a atenção para a importância do estágio de regência para formação docente. Notamos
que, no referido fragmento, que a graduanda conceptualiza o relato reflexivo como um gênero
como catalisador através do processo relacional. Porém, a autora, ao invés de atribuir ao relato
essa função catalisadora, ela utiliza a expressão prática de ensino. Além disso, Márcia ressalta a
função do professor, no trecho sublinhado, apresentando esse profissional como sujeito e objeto
de pesquisa.
Fragmento (2a):

A prática de ensino envolve comportamentos de observação, reflexão, critica e


reorganização das ações, características próximas a estrutura de um pesquisador,
investigador, capaz de refletir e reorientar sua própria pratica quando necessário.

Em relação ao fragmento (3b), observamos claramente que a estagiária toma como


modelo de formação o modelo da racionalidade crítica:
Fragmento (2b):

A educação só desempenha o seu papel real quando o aluno for considerado um fator
pessoal decisivo na situação escolar; desempenhando um comportamento ativo e
compreendido, sendo para ele, que se organiza a escola e ministra o ensino, estando o
professor pronto para orientar e incentivar na aprendizagem, adaptando o ensino as suas
reais capacidades de limitações. A dinâmica no âmbito escolar torna-se um fator
diferencial para que o ensino detenha sentido, valor e direção vergando-se as necessidades
e capacidades reais do aluno,existindo único e exclusivamente para servir o mesmo.

Ainda no trecho (2b), percebemos as crenças que a graduanda tem sobre a educação, o
processo de ensino-aprendizagem bem como sobre o papel da escola e do professor que são
desvelados pelos processos em destaque. Observamos, nesse caso, que a autora reforça apenas
duas informações solicitadas de modo explícito: a descrição de uma semana de aula e a
contribuição do estágio de regência supervisionado para formação profissional. Fica, portanto,
evidente que Márcia, assim como Poliana, apresenta os níveis do descrever, informar,
confrontar e reconstruir. No entanto, o confrontar está mais evidenciado nos relatos de Márcia.

CONSIDERAÇÕES AINDA INICIAIS

Este estudo se propôs a contribuir para a compreensão do nível de reflexão no qual duas
professoras de inglês de um determinado curso de Letras estão inseridas. Os dados foram
analisados através do sistema de transitividade.
Analisando os relatos de Poliana e de Márcia inferimos que se caracterizam principalmente
pela descrição de ações (discentes e docentes), expressando situações marcadas pela narrativa
de fatos ocorridos em sala de aula. Em alguns processos, é feita a descrição e avaliação pessoal
desses fatos. Na verdade, verificamos que Poliana e Márcia parecem estar, na maior parte do
tempo, descrevendo suas próprias ações, utilizando índices de avaliação, sem arcabouço teórico
que fundamente suas avaliações, o que é próprio doa informação. Constatamos, ainda, que a
tentativa de entender as ações, não está embasada em nenhuma teoria formal, mas a partir da
prática e do senso comum. Nesse caso, as graduandas alinham-se ao modelo de racionalidade
prática, no qual não ocorre a explicitação das ações/dos fatos descritos explicados à luz de
teorias.
Em relação ao gênero ‘relato reflexivo’, configura-se como gênero catalisador, uma
ferramenta importante em contextos de formação docente, pois permitiu aos autores do relato
fazer reflexão, auto (monitoração) e (res)significação de sua ação profissional, sinalizando
novos (re) posicionamentos. Enfim, acreditamos que o diário é um megainstrumento para
reflexão (Liberali, 1999) dos eventos de sala de aula, das ações docentes e discentes.
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Considerando a sala de aula como um local de mudanças, acreditamos que a elaboração


de relatos auxilia o professor a mediar, suas experiências em sala de aula e, conseqüentemente,
(re) ler e (re) direcionar seus posicionamentos docentes.

REFERÊNCIAS

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