Referências: Capítulo 1 do Livro: AÇÃO CIDADÃ: POR UMA FORMAÇÃO CRÍTICO-
INCLUSIVA. Fidalgo, S.S e Liberali, F.C (orgs). São Paulo: Unier. 2006
A Formação Crítica: Bases Teórico-Metodológicas
Maria Cecília Camargo Magalhães
Fernanda Coelho Liberali Angela Cavenaghi-Lessa
O objetivo deste capítulo é discutir algumas das preocupações teóricas que
embasaram a formação contínua em local de trabalho que desenvolvemos em escolas da rede pública em foco neste livro - cuja questão central é a constituição de profissionais críticos, interessados em refletir sobre seu trabalho, de forma a entendê- lo. Para tanto, trabalhamos pela perspectiva do confronto entre os objetivos pretendidos face às necessidades dos contextos específicos da ação docente, através de uma reflexão sistemática, de modo a auxiliar o professor em suas descobertas quanto aos interesses a que servem suas ações. Tendo em mente esse objetivo, este capítulo abordará: os conceitos de reflexão, colaboração, formação crítica e linguagem. O conceito de reflexão tem sido discutido de formas diferentes por muitos pesquisadores (e.g., Dewey, 1933; Freire, 1970; Kemmis, 1987; Schön, 1987, 1992; Zeichner, 1987; Kincheloe, 1997; Perez Gomez, 1992; Perrenoud, 1999; Smyth,1992; Mc Laren & Giroux, 2000 dentre outros), com focos que variam quanto à sua compreensão e, conseqüentemente quanto às escolhas teórico-metodológicas que embasam um trabalho de formação que se propõe reflexivo. Neste trabalho, reflexão é um conceito relacionado ao de prática entendida como uma compreensão de praxis, que, como aponta Kemmis (1987:77) se localiza em um contexto social e político, que não é “meramente um padrão de ações individuais intencionalmente estruturadas, mas uma expressão de valores que têm sido publicamente formados e criticamente desenvolvidos através da tradição.” Diferentemente do sentido do senso-comum, para Kemmis, práticas são inerentemente sociais, uma vez que, socialmente construídas, expressam e realizam ações que não são apenas técnicas. Assim, neste livro, entendemos reflexão como crítica, isto é envolvendo a avaliação de “como as restrições em nossas ações educacionais são socialmente construídas através das estruturas organizacionais e materiais das instituições em que trabalhamos”. Um complexo e intrincado quadro de ações, como aponta Smyth (1992), apoiando-se em Freire (1970), compõe o conceito de reflexão, nas interações no quadro da formação de professores e cujo papel fundamental está na compreensão, análise e questionamento dos conceitos de ensino-aprendizagem, valores, normas e direitos, que “empoderem” os professores para que possam superar a compreensão dos acontecimentos e resultados da escola como de sua responsabilidade individual. Como se pode perceber, a reflexão crítica, como a compreendemos tece-se por meio da linguagem. Aliás, como afirma Lessa et alii (2004), “a reflexão é aqui compreendida como constituída pela linguagem, arena onde os conflitos são problematizados”. E não poderia ser diferente, uma vez que, ao falarmos do local da Lingüistica Aplicada Crítica, centralizamos a importância da linguagem como:
• mediadora na construção do conhecimento nas interações entre formadores,
professores e coordenadores nos encontros de formação (Magalhães 2005) e • objeto de uma atividade de formação, cujo motivo é suprir as necessidades dos participantes dos encontros para trabalhar com novos conhecimentos, teorias e práticas didáticas necessárias a necessidades do contexto de ação profissional (Liberali, 2005).
Como salienta Bakhtin é na linguagem que nos constituímos como seres
humanos – o que nos permite realizar ações em que o pensar e o agir possam ser entendidos como “uma integração reflexiva do pensamento, desejo e ação” (Pennycook, 2001). Traçando um paralelo entre os estudos de Leontiev (1977) e a reflexão crítica, é possível dizer que esta é uma possibilidade da escola suplantar o individualismo e a alienação que usualmente caracteriza os profissionais no contexto escolar como em outras atividades complexas com divisão de trabalho fragmentada. O individualismo e a alienação dificultam as tentativas dos educadores de relacionarem as metas e resultados de suas ações individuais ao seu próprio agir e ao tipo de alunos que essas ações estão contribuindo para formar. Como aponta Leontiev (1977), é esta falta de conexão que é responsável pela alienação, bem como pelas tensões e dificuldades nas atividades coletivas. Dessa forma, propiciar lócus para que os professores relevem, analisem e questionem os sentidos atribuídos aos conceitos de ensino-aprendizagem, desenvolvimento, cidadania objetivos, necessidades (Liberali et alii, no prelo) e as relacionem às suas escolhas didáticas, possibilita que eles os compreendam e, criticamente, os analisem para discutir as bases teórico-metodológicas e as forças sócio-históricas e epistemológicas que os permeiam. Assim, propiciar espaços para que os professores e formadores tornem seus sentidos públicos, os dividam com outros e os submetam à crítica, cria uma possibilidade dialética de transformação. A Teoria da Atividade Sócio-Histórico-Cultural provê, assim, uma base teórico- metodológica para o trabalho com formação contínua como o vemos. Nesse quadro, a discussão de Vygotsky sobre a atividade humana mediada por instrumentos com base no conceito filosófico de mediação dialética (Marx e Hegel), nos permite endereçar a complexidade das relações entre o significado dado aos conceitos teóricos em materiais de divulgação a professores (PCN) ou científica (textos sugeridos para concursos) e os sentidos pessoais atribuídos a eles nas atividades práticas dos profissionais de educação, mediadas por signos culturais ou instrumentos materiais. Como aponta Engeström,1999/2005), o conceito central está na atividade coletiva dos seres humanos para intencionalmente transformarem a realidade através de ações que almejam suprir uma necessidade daquele contexto específico e atingir um resultado idealizado para ele. Central para essa interação crítico-reflexiva estão os conceitos de colaboração - que salienta a importância do espaço de formação como um local de negociação e de construção conjunta - e de argumentação, ao qual o primeiro está indivisivelmente, ligado (Liberali, 2005 e Magalhães, 2005), sendo este último a ferramenta com a qual a colaboração rumo a uma perspectiva reflexivo-crítica se torna possível. Ambos compõem um quadro de ações que, nos contextos de formação, permite a avaliação crítica de conceitos, valores, crenças e a apropriação de novas construções e ações que podem reorganizar as regras e divisão de trabalho em suas salas de aula. Essa discussão engloba, fundamentalmente, a relação entre a construção/domínio de teorias e a prática na organização dos contextos de formação. Apontando para dois extremos dessa relação que necessitam ser evitados: (1) um praticismo em que a teoria ocupa um lugar secundário ou nenhum na construção e na análise da prática ou; (2) um foco excessivo na transmissão da teoria isolada da prática. Também, Lektorsky (1984) salienta como trazer a discussão da teoria como central para prover meios para o questionamento, avaliação e reorganização de ações práticas, uma vez que pode possibilitar aos participantes a revisão das forças sócio- históricas que as formatam, enquanto, ao mesmo tempo mudam essas mesmas forças, permitindo a reorganização das ações pedagógicas à luz das necessidades daquele contexto específico de ação. As escolhas que fizemos quanto à formação de professores e que estão neste livro foram motivadas pela discussão acima. Conforme Lessa (2003), agimos na esperança de provocar um agir cuja decorrência para formação de todos os envolvidos seja a ampliação de sua capacidade de agência perante si mesmos e o mundo – uma característica que se afirma como consciente da não neutralidade da educação emancipatória. Assim, buscamos criar sistemas de atividade (Engeström, 1999) de formação profissional, nas interações entre formadores e professores, que trouxessem possibilidades de conflitos entre as necessidades colocadas pelo contexto, as ações dos professores, as regras e divisão de trabalho nas práticas didáticas como aspecto fundamental da aprendizagem, pois assim, julgamos que são propiciados contextos para confrontação entre os conceitos provenientes da cultura da escola tradicional e os conceitos científicos (Vygostsky, 1930; Au, 1990; Celani e Magalhães, 2002), o que, em uma perspectiva Freiriana, construirá as bases para a avaliação e transformação, levando em conta as questões dos contextos específicos em que os sujeitos estão inseridos.