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REFLEXÕES
RESUMO: Esta experiência de ensino tem por objetivo apresentar algumas contribuições da perspectiva
do letramento crítico no processo de ensino/aprendizagem de línguas. Embasamos esta experiência nas
contribuições do letramento crítico e a formação cidadã. Esta proposta coaduna com os preceitos da
Linguística Aplicada Contemporânea, área de pesquisa que problematiza questões referentes ao uso da
Língua. Os procedimentos metodológicos para coleta e geração de dados são de natureza qualitativa e
os instrumentos utilizados para triangulação e análise de dados são um website, fotos narradas e
questionários respondidos pelos estudantes. O resultado dessa experiência demonstra que, com base na
perspectiva do letramento crítico, o ensino de línguas pode contribuir com a formação cidadã dos
estudantes.
Resumen: Esta experiencia didáctica tiene por objetivo presentar algunas contribuciones de la teoría de
la literacidad crítica en el proceso de enseñanza/aprendizaje de lenguas. Esta experiencia está apoyada
en las contribuciones de los estudios de la literacidad crítica y la formación ciudadana. Esta propuesta
coaduna con los preceptos de la Lingüística Aplicada Contemporánea, área de investigación que
problematiza cuestiones referentes al uso del lenguaje. Los procedimientos metodológicos para recogida
de datos son de naturaleza cualitativa y los instrumentos utilizados para interpretación y análisis de los
datos son un sitio web, fotos narradas y cuestionarios respondidos por los estudiantes. El resultado de
esa experiencia demuestra que, basados en la perspectiva de la literacidad crítica, la enseñanza de
lenguas puede contribuir con la formación ciudadana de los estudiantes.
INTRODUÇÃO
Podemos dizer que o contexto histórico do ensino de línguas está relacionado aos
métodos de ensino, cuja evolução se deu com base em três paradigmas principais: (1)
ênfase no sistema, (2) ênfase na função e (3) ênfase na ideologia. Desse modo, a
proposta de método depende da visão que o professor e/ou pesquisador tem sobre o
conceito de língua e como concebe ensinar e aprender. Os que defendem a primeira
perspectiva compreendem a língua como sistema, o que acarreta no ensino com ênfase
Para que possamos ensinar de modo que nossos aprendizes possam refletir sobre os
diversos contextos onde se inserem e dos quais participam e/ou conhecem, torna-se
necessário que as aulas sejam planejadas a partir de temas que envolvam questões
sociais, situações ou problemas que fazem parte ou sentido para suas vidas, tais como:
desigualdade social, racismo, feminismo, desemprego, homofobia etc. Com base nisso,
consideramos que os estudantes podem ter muitas vantagens se compreenderem
também a essência do letramento crítico para refletir sobre as situações que permeiam
seu entorno. Entendemos que posicionar-se pela escrita de forma crítica e informada
colabora com sua formação cidadã, conforme preconizam as OCEM:
Assim, ao seguirmos essa visão de formação cidadã, tomamos como central o trabalho
com temas ou assuntos globais ou locais, pois a partir disso podemos chegar questões
do convívio social de nossos alunos. Melhor dito, o estudante poderá compreender o
lugar que ocupa na sociedade, questionar(-se) e falar a partir dos problemas de sua
comunidade.
1. LETRAMENTO CRÍTICO
A perspectiva do letramento crítico teve início na década de sessenta e tem como base a
pedagogia freiriana, contudo, há distinções entre elas, porque, na contemporaneidade
em que vivemos os problemas e as necessidades são outras. O letramento crítico tem
como um dos focos a problematização de como podemos enxergar e agir nas práticas
sociais diversas; enquanto que a pedagogia de Freire enfocava o descortinamento da
verdade para que o oprimido pudesse enxergar a realidade opressora. Assim, a
perspectiva do LC, portanto, tem por objetivo a busca pelo
Nesse sentido, a escola tem um papel social importante, porque não basta ensinar a ler e
escrever, é preciso preparar o estudante para que seja um cidadão crítico, que se
posicione. Com isso, nós, professores da área de linguagem devemos trabalhar com
textos que problematizem, de modo que possibilitem que nossos estudantes se tornem
cidadãos contribuam com seu contexto social.
Para que possamos refletir a respeito disso, trazemos o questionamento de Janks (2013,
p. 226), “Como a educação pode contribuir para um mundo em que nossos alunos, em
todos os níveis de ensino, tornem-se agentes de mudança?”. Tal indagação foi realizada
Observa-se que a figura 1 segue um movimento circular que começa com a construção
da visão que temos sobre algo, depois passa para a desconstrução e, finalmente, para a
reconstrução. A desconstrução é uma fase importante do letramento crítico porque está
entre a construção do design e o redesign. Isto é, a desconstrução pode ser
compreendida como aquele momento de reflexão, de ponderação em que a pessoa
percebe as razões, as causas de sua visão anterior. Pode ser compreendida com “caiu a
ficha” do porque a pessoa pensava da forma como pensava. Em seguida, a fase da
reconstrução realça que sua visão inicial passou por um processo e que pode apresentar
visão nova ou mesmo mantendo sua visão anterior, ela pode ser considerada
reconstruída porque está mais informada. Em 2012, Janks reflete novamente a respeito
Na figura 2, Janks insere mais uma seta entre o design e a crítica, o que representa que
esse movimento de ida e vinda precisaria ser ininterrupto. É nesse movimento
constante de ida e vinda que ampliamos nossas possibilidades de enxergar mais
profunda e informadamente. Entendemos que esse movimento pode não ter fim, mas
esgotado esse movimento por cansaço ou limitação, a reconstrução ou o redesign segue
na sua versão mais informada possível.
Não precisamos de meros decodificadores, mas sim de estudantes que pensem, que
reflitam criticamente. É necessário que paremos de focar exclusivamente na gramática
no ensino de línguas e comecemos a focar em atividades que desenvolvam a criticidade.
Portanto, torna-se necessário promover a reflexão sobre temas e questões pertinentes
aos alunos (tais como: raça, etnias, sexualidade, nacionalidade, sexo, desigualdade
social) por meio da concepção de política. Janks (2012, p. 151-152), diferencia Política
de política. A primeira, com P maiúsculo trata da política de governo, dos acordos de
comércio mundial e as forças de manutenção da paz pelas Nações Unidas; já a política
com p minúsculo refere-se à micropolítica e à vida cotidiana, ou seja, é a política de
identidade, de desigualdade, de raça etc.
Portanto, consideramos pertinente o ensino com base na política, não estamos aqui
dizendo que trabalhar a Política não seja necessário, contudo, se começarmos pela
política, certamente nossos estudantes conseguirão pensar criticamente sobre a
macropolítica. É nesse sentido de pensar em problemáticas que envolvem a política, que
De acordo com Andreotti (2006), o letramento crítico para a formação cidadã tem por
objetivo proporcionar aos estudantes a capacidade de refletir com criticidade, bem como
ter responsabilidade sobre suas ações e decisões.
Com base nessa reflexão, compreendemos que o autor chama a atenção para as práticas
injustas impostas pelo Norte, que tem como consequência a perpetuação da
desigualdade social, mesmo com tanta riqueza no mundo. Isto é, a globalização nada
mais é do que a evidência dos interesses impostos pelos países do G7, porque eles
decretam quais as necessidades globais e que sempre lhes são favoráveis.
Para Shiva e Dobson (2005, apud ANDREOTTI, 2006, p. 60), apenas alguns países – os
dominantes - têm poderes de globalização, os outros são globalizados, ou seja, são
regidos pelos interesses dos poderosos.
Ampliando esse conceito, Spivak realizou alguns estudos com enfoque nas áreas dos
estudos culturais, da teoria crítica e da análise do discurso colonial. Com base nesses
estudos, ele considera que
De acordo com Biccum, a ignorância autorizada faz com que os pobres se sintam
responsáveis pela própria miséria.
Assim, por essa perspectiva de letramento crítico para a formação cidadã, é necessário
que enfoquemos em ações que reflitam sobre o nosso contexto em que estamos
inseridos e o contexto global, pois o contexto local é uma consequência do global.
2. METODOLOGIA
1. ¿Conoces a algún gitano? ¿Qué sabes sobre los gitanos? ¿Hay gitanos en Brasil?
¿Qué ellos hacen?;
Das várias respostas que os alunos verbalizaram, duas revelam a previsível visão
preconceituosa e de senso comum que brasileiros também revelam ter porque
discriminamos ciganos por aqui também:
Frida Kahlo: Professora, dizem que os homens ciganos são muito machistas
e que eles batem muito em suas mulheres.
Após essa etapa, mostramos aos estudantes um vídeo que está disponível no seguinte
endereço eletrônico: http://ultimahora.es/noticias/nacional/2015/04/08/148934/lanzan-
campana-para-rae-cambie-definicion-gitano.html. Esse vídeo é um comercial em que a
Real Académia Española lança uma campanha para mudar a definição de gitano no
dicionário, que em geral é pejorativa e os trata com o adjetivo de trapaceiros. Em
seguida fizemos outra pergunta “¿Te parece que los españoles tienen buena convivencia
con los gitanos?”
Pablo Neruda respondeu: “Nossa, professora, fiquei com pena deles (das
crianças que aparecem nos comerciais) agora. É ruim você morar em um
lugar onde as pessoas te discriminam”.
Josefina Pla: Professora, mas aqui no Brasil os negros também sofrem muito
preconceito, né mesmo?
Essa discussão foi muito interessante, porque eles trouxeram o tema – discriminação –
para a realidade deles. Vale ressaltar que Josefina Pla é uma estudante negra e de baixa
renda e que possivelmente já sofreu bastante preconceito. O comentário dela em sala de
Após um longo tempo de debate a respeito dos ciganos, o tema abandono dominou a
aula. O estudante Roa Bastos disse: “Isso só acontece porque o governo abandona as
pessoas”. Foi, então, quando começamos a refletir sobre esse tema em nossa cidade,
Maceió.
Com o objetivo de atender aos interesses e necessidades dos alunos, combinamos que
eles se dividiriam em grupos compostos por até cinco pessoas para escolherem sobre
qual tipo de abandono eles gostariam de fazer o trabalho que havíamos proposto. Das
cinco equipes, os subtemas escolhidos foram: idosos (dois grupos ficaram com este
mesmo tema), doença, Riacho Salgadinhoi e moradores de rua.
Logo depois da escolha do local, marcamos uma visita técnica, cujo foco era passar uma
tarde com os idosos para ouvir suas histórias. A partir das recordações desses idosos
organizamos um livro de memórias que disponibilizamos na biblioteca da Instituição. A
importância da aprendizagem dos aspectos gramaticais não passou despercebidamente,
pois os tempos verbais vistos em aulas anteriores se fizeram mais que presentes e
importantes para conseguirem exatamente expressar suas conversas com os idosos:
verbos en pretérito indefinido, perfecto e imperfecto. Ter ouvido histórias fez toda a
diferença. Com a necessidade real de uso contextualizado, as histórias recontadas pelos
alunos fez todo sentido e aprenderam que gramatica só faz sentido quando usamos no
dia a dia. Os estudantes ficaram tão extasiados com essa visita que propuseram uma
campanha de arrecadação de roupas, calçados e produtos de higiene para levar à Casa
de Apoio São José (este foi o outro asilo visitado por outra equipe). Fizemos a
arrecadação, mas, infelizmente, não tivemos tempo de compartilhar de uma tarde com
essas moradoras por causa do encerramento do ano letivo, mas os materiais doados
foram entregues pela professora e por duas estudantes, integrantes da equipe que
fizeram as fotos narradas a respeito das moradoras da Casa de Apoio São José.
3. DE ESTUDANTE À CIDADÃO
Nesta seção analisamos os dados dos alunos que elaboraram as fotos narradas com o
subtema Riacho Salgadinho e cidadania exercida de um estudante que compõe este
grupo. O enfoque desta análise será na contribuição do letramento crítico para a
formação cidadã, mais precisamente uma reflexão sobre o meio ambiente, que fez com
que um dos estudantes refletisse sobre um problema em seu bairro.
Iniciamos nossa análise pela imagem do site que eles elaboraram. O título da matéria é
“El abandono y la contaminación de las águas: El caso del Riacho Salgadinho”.
Como pode ser observado na Figura 3, o início da foto narrada apresenta o esgoto que
corre no riacho Saldinho. Por se tratar de estudantes do IFAL, sabemos que essa
imagem não foi escolhida aleatoriamente, posto que sofremos diariamente com o mau
cheiro desse riacho que localiza-se muito próximo ao Instituto, o que demonstra que
eles refletiram sobre seu próprio contexto (ANDREOTTI, 2014, p.64). Essa
compreensão pode ser observada no seguinte trecho da narrativaii:
Esse subtema selecionado por eles traz um problema da Política Global, contudo, os
estudantes abordaram com base na política cotidiana, tendo em vista que enfocaram
num problema local. É importante ressaltar que refletir sobre a política, nos termos de
Janks (2012), pode contribuir também para reflexão sobre a Política, além de contribuir
para ações que colaborem com melhorias em seu contexto social.
Uma importante reflexão apresentada também nessa narrativa é o destino que dão ao
lixo, conforme podemos observar.
Ao dizerem que “Esa realidad no se ha cambiado” demonstra que eles refletem sobre o
problema, porque afirmam que “Cada descarga de una casa es un atentado contra el
medio ambiente”, nesses trechos eles deixam evidente que riacho se transformou em um
esgoto que leva todo o lixo para o mar. Ou seja, o abandono do Poder Público permitiu
a contaminação das águas do riacho e agora permite a contaminação do mar, que é o
principal fator de renda da turística cidade de Maceió.
Outro fator importante é que os estudantes finalizam a narração deixando uma crítica ao
Poder Público, que nada faz para a preservação das belezas naturais da cidade.
Mientras que el arroyo Salgadinho pierde cada vez más su función social y
se convierte en sinónimo de desorden y un extenso problema urbano para la
población de Maceió, nada es hecho por el Ayuntamiento, el Gobierno del
Estado e incluso el Gobierno Federal. Como reflejo citamos la falta de
interés de la gente por ese sitio, que afecta el turismo y la belleza de la
ciudad de Maceió, además de la exposición de la población circundante a
problemas de salud. El Arroyo Salgadinho pide ayuda por décadas de
abandono.
Note que eles atribuem o descaso às três esferas do Poder Público: municipal, estadual e
federal, deixando evidente que o riacho precisa de ajuda. Com isso percebemos que
esses estudantes sabem que os governantes não se preocupam com o meio ambiente.
Como forma de reforçar essa interpretação, perguntamos por que escolheram esse
subtema. As respostas foram as seguintes:
Conforme podemos observar, Diego e Gabo atribuem esse problema ao Poder Público.
Não obstante, Julio atribui o problema à sociedade como um todo, o que demonstra que
ele tem uma visão mais ampla a respeito desse problema e da falta de cuidados da
população com o meio ambiente.
Nessa perspectiva de letramento crítico em que o estudante pode ser um cidadão crítico
capaz realizar transformações em seu contexto local, relataremos um fato que
enriqueceu bastante esta experiência didática. Em junho de 2015, durante o processo de
elaboração das fotos narradas, um dos integrantes deste grupo – Gabriel –, por saber que
a professora possui habilitação em letras português e espanhol, pediu-lhe para que lesse
uma carta e solicitou que observasse se havia alguma incoerência no texto e também
para verificar se ele estava sendo claro e objetivo.
Com base nessa ação de Gabo, nota-se que o estudante consegue deixar de ser uma
pessoa que espera por soluções e se torna um agente de mudança, pois está tentando
resolver um problema do interesse dele e de todas as pessoas que moram naquele bairro.
Sendo assim, compreendemos que a atividade sobre o abandono contribuiu para a
Gabriel: Não tinha uma visão ampla acerca desse tema. Após o contato com
o trabalho pude ampliar esse conceito, de modo a entender que o abandono
vai além das questões pessoais e sociais, abrangendo também o Poder
Público. Contribuiu para que eu pudesse aperfeiçoar o olhar acerca de
algumas ações públicas, fortalecendo minha visão como cidadão.
Esse trecho demonstra que o estudante compreendeu que pode exercer sua cidadania,
promovendo mudança na sociedade em que vive e ao refletir sobre esses problemas de
política, conseguiu ampliar sua visão para os problemas que estão em seu entorno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos resultados da atividade desenvolvida por essa equipe e pelas outras que
não estão sendo analisadas neste artigo, defendemos que a perspectiva do letramento
crítico contribui e muito para que possamos ministrar aulas que preparam os estudantes
não apenas para exames nacionais e vestibulares, mas também para serem pessoas mais
reflexivas e ativas na sociedade em que vivem.
Sobre os blogs e site, onde foram armazenadas as fotos narradas, eles não obtiveram o
alcance de visualização tão expressivo, mas certamente os resultados dessa experiência
didática podem ser melhorados na próxima aplicação. Uma mudança que os estudantes
sugeriram que, em vez de colocarmos as sequências nos blogs, seria melhor usar o
Facebook para divulgação dos materiais por eles produzidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, L.F. Redes sociais e escola: o que temos de aprender? In: ARAÚJO, J.,
LEFFA, V. J. (org). Redes sociais e ensino de línguas: o que temos de aprender?. São
Paulo, SP, Parábola Editorial, 2016.
Professora Mestre do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) em exercício provisório no Instituto
Federal de Alagoas (IFAL). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Alagoas (PPGL/UFAL).
Professor Doutor no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Alagoas (PPGL/UFAL).
i
O Riacho Salgadinho foi outrora um fluxo de água limpa, habitat de peixes. Atualmente nele desaguam
os dejetos de uma boa parte da cidade de Maceió o que faz com que se torne um esgoto a céu aberto. Está
localizado bem próximo ao IFAL e em suas águas fétidas, além dos dejetos encontramos uma grande
quantidade de lixos.
ii
A transcrição foi realizada de acordo com a narração dos estudantes, isto é, não apontamos os
equívocos cometidos por eles, porque queremos deixar evidente que isso não afetou na compreensão da
narração deles.