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Estratégias de
Produção de Si e a
Humanização no SUS
Strategies of self-production
and the humanization of SUS

Anita Guazzelli Bernardes


Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul-
Faculdade Cenecista Nossa
Senhora dos Anjos

Neuza Guareschi
Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (3), 462-475


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
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Resumo: O artigo visa a problematizar a relação entre as estratégias de


produção de si e a Política Nacional de Humanização como um dos
princípios do SUS no campo da saúde pública, assim como busca refletir
a condição de existência da Humanização no campo da saúde coletiva.
Para tanto, discutem-se as maneiras como essa política articula produções
discursivas sobre o modo de subjetivação do indivíduo, os mecanismos
de controle que intentam forjar modos que transcendem uma condição
humana. Para produzir tal discussão, utiliza-se uma abordagem
fundamentada em teóricos contemporâneos, principalmente os conceitos
foucaultianos de tecnologias de si e modos de subjetivação, que entendem
o discurso de forma a enaltecer não o que significa um conceito, mas
sim, o que se produz a partir deste.
Palavras-chave: Política Nacional de Humanização, tecnologias de si,
modos de subjetivação.

Abstract: This article aims at the discussion of the relationship between


the strategies of self-production and the National Humanization Policy
as one of the principles assumed by SUS in the public health field,
attempting to reflect on the condition of Humanization in the collective
health field. To do so, we discuss the ways this policy has articulated
discoursive productions about the individual subjectivation mode and
the control devices that intend to shape modes that transcend the human
condition. In order to produce such a discussion, we have used an
approach based on contemporary theorists, mainly foucauldian concepts
of technologies of self and subjectivation modes that take discourse so
as not to extoll what a concept means, but what is produced from it.
Key words: National Humanization Policy, technologies of self,
subjectivation modes.

Este artigo tem, como objetivo, a discussão A humanização da saúde é uma política pública
da relação entre a Política Nacional de intitulada Política Nacional de Humanização,
1
Humanização e as formas de subjetivação desenvolvida em meio às discussões de
no campo da saúde pública. Entende-se a qualificação do Sistema Único de Saúde. A
política de Humanização como uma das proposta sustenta-se nas proposições do SUS
estratégias políticas estabelecidas pelo SUS no de que saúde é um direito de todos e um
campo da saúde. Essa política provoca uma dever do Estado, em que se lida com a defesa
formação existencial – a humanização – e da vida por meio do direito à saúde. Trata-se 1 Quando o conceito
Humanização aparecer
torna-se a marca que produz modos de viver. de uma política, e não de um programa, pois com letra maiúscula, diz
respeito à Política Nacional;
Para tanto, é analisada a cartilha o intuito não é apenas “tecnologizar” os quando aparecer com letra
“HumanizaSUS” (BRASIL, 2003) mediante as sistemas de saúde, mas modificar o modo de minúscula, refere-se às
estratégias cotidianas
ferramentas foucaultianas. compreensão dos princípios que norteiam a criadas pela Política.
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Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

concepção de saúde estabelecida tampouco uma evolução, mas uma presença,


constitucionalmente como uma questão plural. em uma rede de relações que partem do
É importante explicitar aqui a diferença entre estreitamento entre a vida e a saúde. Ao
política e programa. Tanto a política como o conformar um conceito de saúde, o SUS acaba
programa dizem respeito a uma forma também formando objetos, problematizados
epistemológica e uma forma substantiva, de acordo com a proposta de Foucault sobre
porém as políticas são diretrizes do sistema uma arqueologia dos discursos (2000, p.122):
de saúde, enquanto os programas são modos Em vez de dar um sentido a essas unidades,
de operacionalizar essas diretrizes. coloca-as em relação com um campo de
objetos; em vez de lhes conferir um sujeito,
A Política Nacional de Humanização é tanto abre-lhes um conjunto de posições subjetivas
um atributo substantivo, no que diz respeito possíveis; em vez de lhes fixar limites, coloca-
A Política Nacional às formas de qualificação dos sistemas de as em um domínio de coordenação e de
de Humanização
é tanto um atributo saúde, como capacitações, treinamentos e coexistência; em vez de lhes determinar a
substantivo, no que modificação na forma de atenção à saúde, identidade, aloja-as em um espaço em que
diz respeito às quanto uma questão epistemológica, envolvida são consideradas, utilizadas e repetidas.
formas de
qualificação dos na produção de conhecimento sobre as
sistemas de saúde, formas, cuidados e atenção à vida. O conceito Os princípios doutrinários e organizativos do
como
capacitações,
de humanização é entendido, pela Política SUS são, eles próprios, parte de um discurso
treinamentos e Nacional, como o “aumento do grau de co- que iguala saúde a condições de vida. É um
modificação na responsabilidade na produção de saúde e de processo de lutas – princípio doutrinário e
forma de atenção
à saúde, quanto sujeitos; mudança na cultura da atenção dos organizativo – por imposições de sentidos. A
uma questão usuários e da gestão dos processos de Humanização entra nessa esteira discursiva,
epistemológica,
trabalho”, e fundamenta-se “na troca e reforçando os conceitos de universalização,
envolvida na
produção de construção de saberes, no diálogo entre eqüidade, integralidade, regionalização e
conhecimento profissionais, no trabalho em equipe, na hierarquização, descentralização, comando
sobre as formas,
cuidados e
consideração às necessidades, nos desejos e único e participação popular. Os princípios
atenção à vida. interesses dos diferentes atores do campo da doutrinários – universalização, eqüidade e
saúde” (BRASIL, 2003, p.10). integralidade –, bem como os princípios
organizativos – regionalização e hierarquização,
A Humanização torna-se um objeto-conceito descentralização, comando único e
do Sistema Único de Saúde. Para sustentar participação popular – fazem parte do que é
essa discussão, Foucault (2000), ao escrever possível ver e falar; são parte de um conjunto
sobre a formação de conceitos e objetos, de regras em que o conceito de saúde é
explica que as regras próprias das práticas tomado pelos conceitos de sistema e unicidade
discursivas não estão em um sujeito (BRASIL, 2001).

“cognoscente”, tampouco em um sujeito A Humanização, neste texto, ao ser discutida


psicológico, mas no próprio discurso, pois “se como um objeto-conceito, é compreendida
impõem, por conseguinte, segundo um tipo como uma prática-discursiva. As práticas-
de anonimato uniforme, a todos os indivíduos discursivas, assim como produzem
que tentam falar nesse campo enunciativo” enunciações, produzem também sujeitos,
(p.70). Desse modo, a humanização é uma posições de subjetividade (Foucault, 2000). Essa
objetivação das práticas discursivas produzidas produção de sujeitos, de subjetividades, é uma
pelo SUS. Não é uma grande invenção, série de conformações de modos de viver, de

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formas de vida, de condições humanas em de si e do outro. Encontramos, na


um determinado espaço-tempo. Isso nos contemporaneidade, tanto nas palavras quanto
permite afirmar que a Humanização é uma nas coisas, enunciações e visibilidades
condição de existência no campo da saúde. humanizadoras. Seriam condições de
Como condição de existência, ou seja, diferentes enunciados, de diferentes modos
necessária para nos pensarmos como seres de subjetivação que se estendem pelo tecido
humanos, passa a produzir o que Deleuze social. Como orienta Foucault (1970), é
(1988) nomeia sujeitos-forma, e não preciso “rachar” as palavras e as coisas, é
substância. A discussão que Deleuze (1988) preciso colocar em suspenso a naturalização
faz sobre sujeito-forma diz respeito a uma dos processos políticos que, entre outras
crítica ao pensamento que considera que o dimensões, têm como objetivo a humanização.
ser humano tenha uma essência a priori, uma Esse exercício torna-se necessário na medida
substância da qual parte e se desenvolve. em que problematizar as formas de
Propõe pensarmos o ser humano como subjetivação no contemporâneo implica uma
derivado de práticas sociais. Essas práticas discussão sobre a ética; ética como exercício
sociais produzem os modos como as pessoas de reflexão sobre as formas de viver, sobre as
vivem, se relacionam consigo mesmas e com condições de existência, sobre a possibilidade
o mundo, ou seja, forjam formas de viver, de o sujeito apropriar-se da história de sua vida;
forjam sujeitos-forma. ética como uma categoria da alteridade, como
uma provocação aos modos de viver que se
Assim, operar com o conceito de forma e não instituem (Foucault, 2004).
de substância implica analisar um conjunto de
saberes e atitudes experimentais que o sujeito As tecnologias da vida são operações sobre os
opera sobre si mesmo para tornar-se uma modos de viver, sobre as possibilidades de vida.
condição humana. O sujeito-forma não é, para Os conceitos de operações sobre modos de
todo o sempre, idêntico a si mesmo, visto que, viver e possibilidades de vida são formas de
ao tornar-se sujeito de uma determinada considerar que o humano é produzido por
verdade, o indivíduo exercita sobre si mesmo práticas sociais, e não por um substrato, uma
uma série de transformações nos modos de essência interior. Essas práticas sociais são
viver. Essa temática sustenta-se em uma entendidas como ações, como operações
ontologia do presente, mediante a qual os sobre si mesmo e o outro, como argumenta
saberes e as atitudes do sujeito sobre si Nietzsche (1998, p.36): “não existe tal
mesmo são entendidos como tecnologias da substrato, não existe ser por trás do fazer, do
vida produzidas em determinados campos, atuar, do devir; o agente é uma ficção
como, por exemplo no da saúde, que passam acrescentada à ação – a ação é tudo”. As
a ter não somente valor de verdade, mas criam tecnologias referem-se às relações que existem
a necessidade de ajustamento a essas entre a constituição do sujeito com os jogos
verdades. de poder e verdade. Dessa forma, ao
produzirem sujeitos, as tecnologias são
Segundo Foucault (1990), a investigação sobre edificações que tomam o corpo e a vida como
o modo como os indivíduos têm desenvolvido, objeto tecnocientífico, no contemporâneo, no
na cultura, diferentes saberes sobre si mesmos intuito de transpor aquilo que tornou o
deve amparar-se na relação entre jogos de humano objeto de conhecimento: a finitude.
verdade e as tecnologias políticas. Essas Irrompe, no campo da saúde, por meio de
tecnologias passam a ser formas de governo políticas públicas, a necessidade premente de
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Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

humanização dos sistemas de saúde face aos e reforçou-se a epidemiologia com base na
mecanismos tecnocientíficos da saúde. A produção de sujeitos da razão. O sujeito da
humanização aparece, então, na esteira de razão amparava-se em condições de
discussões do SUS, como mais um de seus possibilidade da noção cartesiana do “penso,
princípios, “lidar com a dimensão subjetiva logo existo”, ou seja, o pensamento, como
que toda prática de saúde supõe” (BRASIL, forma de conhecer a si mesmo, tornava o
2003, p.6). Surge o personagem humanizado, indivíduo um sujeito da razão. Aqueles sujeitos
nos sistemas de saúde, que deve olhar o outro que, de alguma forma, não se enquadravam
em sua dimensão de sujeito-vida, “sujeito da na categoria “razão” eram enquadrados na da
história de muitas vidas” (BRASIL, 2003). “des-razão”. Para Foucault, na História da
Loucura (1978), a “des-razão” é considerada o
Assim, a discussão deste texto volta-se para a inverso da razão, ou seja, ou se tinha o atributo
objetivação e a reflexão da Humanização da razão ou não. Essa discussão do outro (des-
A análise da
política de
como modos de viver, como formas de razão) deriva da problematização de
Humanização tem, subjetivação constituídas no campo da saúde. Canguilhem (1978) sobre a formação das
como ferramenta, A Humanização será discutida, então, como categorias de normal e patológico. Desse modo,
as tecnologias de
poder subsidiadas tecnologia da vida que forja determinadas a Razão é colocada em relação a um conjunto
pelo pensamento maneiras de o indivíduo relacionar-se consigo de objetos, entre eles, a loucura, com seu
de Foucault (2003):
mesmo, de tornar-se objeto de si por meio domínio de coordenação e coexistência, ao
tecnologias de
controle, da humanização de si – um si edificado pela passo que o homem é colocado no centro do
tecnologias relação que se estabelece entre saúde, vida universo enquanto estratégia de produção de
epistemológicas e
tecnologias de si. e tecnologias (Foucault, 1996, p. 6). Para conhecimento. Essas mesmas condições – razão
desenvolver essa problematização, em um e produção do conhecimento – criam a
primeiro momento, é feita uma análise das possibilidade do desaparecimento, visto que,
objetivações da humanização em diferentes ao tornar-se objeto da ciência, o homem entra
formações históricas. A partir disso, é discutida na esteira de classificações dos seres vivos e,
uma aproximação da humanização com o como tal, está fadado a morrer (Foucault, 1970).
campo da saúde mediante o Sistema Único
de Saúde. A análise da política de A possibilidade de vida encontra-se na liberdade
Humanização tem, como ferramenta, as que se alcança por meio de tecnologias de
tecnologias de poder subsidiadas pelo conhecer a si mesmo, ou seja, uma
pensamento de Foucault (2003): tecnologias racionalidade que possibilite ao sujeito dar-se
de controle, tecnologias epistemológicas e a conhecer a si mesmo. Esses atributos de
tecnologias de si. liberdade e conhecimento de si conformam a
razão como um atributo humano; entretanto,
Humanização: não qualquer humano, mas aquele que tem a
a vida como política possibilidade de, por meio do pensamento,
perceber que existe. A humanização, nesse
A forma de pensar a Humanização diz respeito
momento, diz respeito ao sujeito da razão. A
à interrogação que fazemos sobre a maneira humanização do sujeito que conhece a si
como essa se torna objeto de estratégias mesmo por meio do pensamento tem, como
políticas. Foucault (1984) descreve como, na regras de existência, a racionalidade cartesiana.
modernidade, a Razão foi tomada como vetor Nesse sentido, a humanização, na
de subjetivação no discurso psiquiátrico/ modernidade, alojava-se em um espaço
psicológico. Com isso, criaram-se taxionomias considerado da Razão. A humanização, assim

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considerada, fazia parte do progresso da controle das populações torna-se necessário


humanidade, tornando-se a antítese da na medida em que a urbanização da sociedade
loucura, da psicopatologia, e conferia um impõe novas problemáticas, tais como as
conjunto de posições possíveis de razão e des- epidemias e endemias, bem como a
razão que a humanização utilizava. possibilidade de desorganização social. Torna-
se necessário criar formas de governo por meio
O recrudescimento da ciência, no final do da disciplina e de biopolíticas, que são
século XIX e início do século XX, em que se estratégias do biopoder. O biopoder é uma
separam as “ciências naturais” das “ciências conformação do poder em que os jogos de
do espírito”, passa a “tecnologizar” a vida e a força investem na vida, fundamentalmente nas
afastar o que poderia obscurecer o acesso à formas de viver da população. O biopoder tem,
verdade da vida. O que se considerava, pela como finalidade, o fazer viver. O controle das
ciência, como impedimento a uma populações investe na humanidade, no
neutralidade (sentimentos, emoções, controle dos modos de viver: habitação,
intuições) começa a ser controlado por natalidade, mortalidade, casamentos. A
métodos que se propõem anular a humanização, aqui, ao mesmo tempo em que
possibilidade de intervenção desses domínios conforma a forma-Homem, é o que deve ser
no acesso à verdade da vida. O que humaniza governado para o progresso da humanidade.
o sujeito tem de ser controlado. Isso difere A humanização é um mal que deve ser
do pensamento do século XVIII, em que a combatido por meio de estratégias disciplinares
humanização era uma forma de objetivar o e biopolíticas do biopoder.
sujeito da razão. Nos períodos seguintes, a
necessidade de neutralidade científica objetiva A humanização, dessa forma, aparece em
a humanização como aquilo que deve ser relação à razão como forma de colocar o
controlado. A humanização passa a ocupar um humano no centro do universo. Porém, ao
lugar de domínio dos sentimentos, emoções mesmo tempo, é por meio da racionalidade
e intuições que impedem o exercício da razão. tecnocientífica que os atributos humanos
O humano tem que deixar de ser o centro do começam a ser impeditivos para o
universo, ao passo que a razão e o método desenvolvimento da humanidade,
passam a ser os ideais para o progresso da estabelecendo-se uma relação entre
humanidade. O que, com a morte de Deus, humanização e necessidade de controle de si
fez emergir o Homem – a finitude – cria as e das populações. São formas distintas de
condições de emergência da necessidade de objetivar a humanização: humanização/razão/
neutralizar essa limitação, essa finitude progresso e humanização/desorganização
2 A expressão “forma-
característica do Homem que lhe conferia um social/ governo. Homem” é utilizada por
2 Deleuze (1988) quando
valor de humanidade. Já a forma-Homem este faz uma diferenciação
entre a relação da
(Deleuze, 1988) é forjada na modernidade que A vida e a saúde enquanto objeto político sociedade com a Igreja,
a objetiva, trazendo também consigo a Por meio de estratégias de governo, cria-se o conformada na figura da
“forma-Deus”, e a relação
necessidade de controlar tudo o que poderia que passa a ser nomeado políticas públicas. da sociedade com a
ciência, na qual emerge a
levar essa forma a impedir o progresso da As políticas públicas são formas de figura da forma-Homem.
Ambas são conformações
humanidade. Para tanto, com essas administração da população, ou seja, são de campos de saber que
estratificações – forma-Homem, finitude, biopolíticas. No século XX, no Brasil, as políticas relacionam a vida com a
infinitude, que se
método, razão –, estabelecem-se linhas de públicas voltam-se para os campos da saúde, desdobra na figura de
Deus, ou com a finitude,
força, ou diagramas, que criam estratégias da educação, da habitação, entre outros, e que se desdobra na figura
políticas de controle das populações. O passam a gerir a vida por meio da relação entre do Homem, objetivado na
modernidade.
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Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

ciência e economia. As formas de governo nacional como o maior prestador de serviços


têm, como correlatos, campos de saber que de assistência médica; c) o setor privado
objetivam a saúde, a educação, a habitação, internacional como o mais significativo produtor
a alimentação, mas, sobretudo, objetivam de insumos, em especial de equipamentos
certo modo de ser. Esses modos de vida médicos e medicamentos” (BRASIL, 2001,
estabelecem maneiras de humanização p.294). As ações em saúde, nesse período,
sustentadas na necessidade de progresso dividiam-se em assistência médica de cunho
social. Entretanto, o progresso social, por eminentemente privado e cuidados primários
3
estabelecer relações com o capital, acaba por decorrentes da Conferência de Alma-Ata , que
produzir um empobrecimento cada vez maior implicavam a necessidade de desenvolver e
da população, que se torna gradativamente ampliar a cobertura para os segmentos
dependente de políticas públicas para ter populacionais excluídos do setor privado. Os
acesso a bens sociais, como saúde, educação, princípios dessa Conferência são considerados,
alimentação, moradia. A entrada de campos neste texto, como condições de possibilidade
distintos nas políticas públicas, por meio de para a emergência do movimento sanitarista
movimentos sociais, e a redemocratização do da década de 80. O movimento sanitarista é
País, a partir da década de 80, geram outras responsável pela formulação do projeto da
formas de governo da população, as quais reforma sanitária brasileira. O que se entende
começam a se contrapor ao que se com isso é que um dos efeitos da consolidação
estabeleceu de forma hegemônica como e crescimento da rede privada em saúde seria
estratégia política: o liberalismo e o progresso a implantação da rede pública em termos de
mediante recursos conceituais e financeiros atenção primária e participação comunitária
do capital privado. (BRASIL, 2001).

Desse modo, no Brasil, na década de 80, A reforma sanitária abre espaço para outras
elabora-se a constituição do SUS, em 1988, a formas de objetivação da humanização. A
partir de movimentos que emergem na área razão e o progresso por meio do capital privado
da saúde, tais como os de técnicos da saúde, deixam de ser vetores fundamentais na
sindicatos e trabalhadores, agrupados no que constituição da humanização, e esta passa a
se denominou reforma sanitária. São traçadas assumir uma outra forma. Essa outra forma é
diretrizes políticas para o campo da saúde, marcada pelas discussões em saúde coletiva,
amparadas tanto em dados epidemiológicos isto é, tomam-se por base as formas de
quanto em ideais a serem atingidos em termos objetivação do sujeito segundo um conjunto
de saúde coletiva e cidadania. O avanço de regras e relações de força, sustentado pelas
tecnocientífico não se torna um advento em lutas entre o campo tecnocientífico e a reforma
termos de promoção de saúde da população sanitária. Enquanto o campo tecnocientífico se
e sim, critério de universalização, eqüidade e caracteriza pelas aplicações científicas na vida
integralidade. cotidiana e pelo estreito vínculo com o capital
privado, a reforma sanitária toma como base
As biopolíticas da saúde pública, entre as as necessidades sociais, tais como saúde,
3 Alma-Ata é a titulação
da Conferência Mundial décadas de 60 e 80, haviam promovido o educação, moradia, alimentação. A
de Saúde, realizada no recrudescimento do setor privado, na medida humanização começa a ser tecida nesse solo
ano de 1978, na qual
fica acordada a em que se assentavam no seguinte tripé: “a) que articula relações entre ciência e
priorização da atenção
e dos cuidados primários o Estado como financiador do sistema por meio necessidades de sobrevivência da população.
de saúde em âmbito
internacional.
da previdência social; b) o setor privado A humanização começa a engendrar-se sobre

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as noções de coletivo, de comunidade e de que vão desenhar comunidades. A forma-


redemocratização, e não mais sobre a razão. Homem transforma-se em forma-
O indivíduo passa a ser tomado pelo coletivo Comunidade. É nas comunidades que as
no campo da saúde pública, visto ser por meio biopolíticas passam a investir, visto o conceito
das objetivações em um conjunto de de saúde ampliar-se como condições e acesso
população que a epidemiologia tenta se a possibilidades de vida, e não mais apenas
deslocar de bases mercadológicas para bases ausência de doença. Comunidade, aqui, é
coletivas. As ações em saúde direcionam-se, formada por coletivos da periferia, usuários e
enquanto políticas públicas, para as trabalhadores da rede pública de saúde que
comunidades. A comunidade, como objeto de se tornam focos de estratégias políticas
governo, de formas de governo, vem a ser (controle e prevenção) e produção de
utilizada por caracterizar-se de modo mais conhecimento (epidemiologia e qualidade de
específico que a população. Segundo Mendes vida). Nessa esteira da constituição de reformas
(2004), o tropo da população em comunidades na saúde, estabelecidas, em 1988, no Sistema
ampara-se na heterogeneidade que os grupos Único de Saúde, emerge o discurso da
representam dentro de uma população. Humanização, atravessado pelas biopolíticas
Quando Foucault (1999) propõe o conceito e pela forma-Comunidade.
de biopolíticas para analisar as formas de
investimento e o controle da população, trata- Humanizar a saúde
o como um objeto homogêneo. A população
caracterizava-se pelos fenômenos que a A Humanização da saúde, como estratégia de
objetivavam: natalidade, moradia, habitação, governo, volta-se justamente para as A Humanização
investe sobre a
mortalidade, etc. Assim, a noção de comunidades, pois deve considerar o “sujeito
diferença, sobre
comunidade vem demarcar a heterogeneidade da história de muitas vidas” (BRASIL, 2003). um “sujeito histórias
da população como forma de controle. As Essas “muitas vidas” caracterizam a de vida”, ou seja,
humanizar é
comunidades são os diferentes grupos que heterogeneidade do campo da saúde, ao considerar, no
conformam uma população, nas palavras de mesmo tempo em que criam a necessidade campo da saúde,
a diversidade da
Mendes (2004, p.58): de diferentes tecnologias de governo. A
população, das
Humanização investe sobre a diferença, sobre histórias de vida e
São vários os mecanismos de controle um “sujeito histórias de vida”, ou seja, conformá-las em
categorias
contemporâneo em torno das comunidades humanizar é considerar, no campo da saúde, formuladas pelas
de risco, comunidades de rap, comunidades a diversidade da população, das histórias de noções de
gays, comunidades de jogadores. Essas e vida e conformá-las em categorias formuladas epidemiologia e
vulnerabilidade,
outras comunidades identificam grupos de pelas noções de epidemiologia e entre outros.
sujeitos sob os mais diversos objetivos para a vulnerabilidade, entre outros. A Humanização,
conduta(...); contudo, essas conceituações e como biopolítica, não se volta para a vida, mas
administrações, como também as para as distintas formas de vida. O que se quer
comunidades a elas ligadas, não existem a apontar com isso é que, ao considerar a
priori; existem, sim, como invenções Humanização uma biopolítica, aponta-se o fato
momentâneas que constantemente mudam de não ser possível escapar do conjunto de
de configuração e sentidos. regras que a constituem e que, portanto,
marcarão o modo como se articula no tecido
Nesse caso, as biopolíticas voltam-se para os social. A Humanização também implica certas
grupos: saúde da mulher, saúde do trabalhador, experiências, certas formas de vida que
DST/AIDS, usuário de drogas, entre outros, estabelecem regras e códigos, normatizações
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Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

e controle, bem como formas de subjetivação. a quem se destina o SUS, de que modo essas
Tomar a Humanização como um efeito do doutrinas e princípios organizativos se
discurso do SUS não é considerá-la como a materializam no cotidiano. Nesse sentido, a
etapa final desse discurso, mas como a própria Humanização entra como uma micropolítica,
possibilidade de existência do discurso. A pois, com os modelos de atenção integral à
Humanização não é exterior ao discurso, mas saúde, bem como com a educação
possível pelo discurso. Por meio da descrição permanente em saúde, vai produzir corpos e
do discurso é que se delineia o sistema de sujeitos do Sistema Único de Saúde.
regras colocadas em prática para que surjam Micropolítica é uma ferramenta conceitual
certos objetos, conceitos e sujeitos. Saúde, utilizada por Foucault (2003) para problematizar
enquanto direito do cidadão e dever do Estado, as relações de poder. Ao considerar que o
ramifica-se em usuários, trabalhadores, rede poder não é um atributo do indivíduo nem
pública de saúde, integralidade, tampouco uma superestrutura, o autor entende
universalização, eqüidade, o que dá forma à que o poder se refere às relações de força, de
Humanização (BRASIL, 2001). A política de jogos políticos que se estendem por todo o
Humanização sustenta-se nas regras do SUS, tecido social, nas relações do cotidiano, nas
nos seus objetos, conceitos e sujeitos, mas, micropolíticas entre homens e mulheres, entre
ao mesmo tempo, começa a formar seus crianças e adultos, entre alunos e professores,
objetos, conceitos e sujeitos: co- entre trabalhadores e o trabalho, por exemplo.
responsabilidade na produção de saúde, o
sujeito história de muitas vidas. Enfim, não se Essa produção de corpos e sujeitos acontece
trata de definir o que é a Humanização, e mediante a noção de que a atenção tem que
sim, o que ela produz. A partir disso, marca- ser integral: deve-se voltar para o humano em
se o modo como problematizamos a sua integralidade, ou seja, para aquilo que está
Humanização. visível enquanto sinais e sintomas enunciativos
do campo da saúde bem como para os modos
A Humanização é forjada como uma linha de viver, para o modo como o sujeito narra a
que atravessa todo o Sistema Único de Saúde, si mesmo (Foucault, 1999). Entende-se que,
reforçando-o por meio de estratégias políticas, para compreender o usuário como um sujeito
isto é, a Humanização estabelece um integral, um ser que vive, trabalha e fala, é
conjunto de regras coercitivas que colocam necessária uma formação permanente do
em jogo a relação entre gestores, trabalhador. Nesse sentido, entra, na esteira
trabalhadores da saúde e usuários. Como de discussões e articulações do SUS, a
política nacional, a Humanização torna-se uma necessidade de formação, ou seja, um
estratégia de controle dos sistemas de saúde, programa de educação permanente do
uma forma de estabelecer o modo de trabalhador.
funcionamento e as maneiras de
relacionamento que devem caracterizar as A educação permanente, como estratégia de
relações entre gestores, trabalhadores da saúde produção de trabalhadores, acaba por
e usuários. sustentar-se em duas noções distintas. A
primeira considera o humano historicamente
É importante entender que falar em discurso, e, desse modo, é necessária uma
aqui, é marcar um modo de entender aquilo transformação perene no modo como se
que organiza o tecido social, ou seja, quem é objetiva o humano, pois ele não é uma forma
usuário, quem é trabalhador, quem é gestor, estável, e sim, efeito de uma série de

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transformações históricas. A segunda diz controle (relação entre gestores, trabalhadores


respeito ao que um modelo de acumulação da saúde e usuários); questões epistemológicas
flexível determina como fundamental para o (sujeitos de muitas vidas, saúde como uma
trabalhador. questão plural), e tecnologias de si (modelos
de atenção à saúde do usuário e do
Em um mercado flexível, a formação tem que trabalhador). No entanto, para ter efetividade,
ser permanente, não se dando mais por meio essas técnicas têm que conformar sujeitos,
de migrações de um espaço para o outro, como o próprio documento assinala: “pautar-
como nas sociedades disciplinares, mas na se pela construção de trocas solidárias,
exigência de um mercado que se modifica comprometidas com a dupla tarefa de
continuamente. Os jogos são compostos por produção de saúde e produção de sujeitos”
regras que, assim como forjam um discurso, (idem, p.10). Os sujeitos produzidos devem
são sustentadas e alimentadas por esse ser objetivados em relação à saúde e à
discurso. As regras não são resultado de uma solidariedade e separados em três instâncias
sedimentação histórica, mas de um conjunto de ações – profissionais da saúde, usuários e
de jogos anônimos que possibilitam a formação cidadãos (idem, p.11), pois ainda, conforme
de objetos e de conceitos (Foucault, 2000). esse documento (BRASIL, 2003, p.6), afirma-
O sujeito, aqui, é o modo como um indivíduo, se que a tarefa de Humanização do SUS
ou um grupo, se posiciona na rede discursiva convoca a todos: “gestores, trabalhadores e
do Sistema Único de Saúde, na forma- usuários”. Posteriormente, encontra-se a
Comunidade. Assim, descrever o discurso no estratificação em “profissionais da saúde,
jogo de sua instância é voltar-se para a formação usuários e cidadão” (p.11). Quando o
de objetos, conceitos e sujeitos que só se documento passa a descrever os princípios
tornam possíveis pelo discurso do Sistema norteadores da política de humanização, as
Único de Saúde. marcas, estratégias, definições e orientações,
estes passam também a operar com os
Humanizar-se: conceitos de usuário, trabalhadores e gestores,
tecnologias de produção abandonando o conceito de cidadão. .
Tecnologias de controle
A Humanização é considerada política
(BRASIL, 2003), e não programa, por instituir- As tecnologias de controle giram em torno do
se como diretriz transversal que atravessa modo como é proposta a política de
todas as instâncias e ações em saúde. É por Humanização. Considerar-se a co-gestão, a co-
meio dessa política que programas devem ser responsabilidade e a participação são
elaborados localmente. Uma política estratégias de governo que não agem sobre
estabelece a estrutura de um sistema, a os outros no sentido de orientar como devem
maneira como este deve funcionar e sustentar ser as atitudes apenas, mas determinam como
os objetivos propostos. Elaboram-se, assim, esse outro deve ser, de que modo deve
técnicas para a conduta das pessoas consigo relacionar-se consigo mesmo para tornar-se
mesmas e com o sistema de saúde. Essas parte do processo de Humanização da saúde.
técnicas propostas pela política de São ações impositivas em que o sujeito deve
Humanização amparam-se em três formas de se tornar gestor, responsável e participante na
tecnologias, que são utilizadas como produção de saúde. A noção de saúde como
estratégias de análise para problematizar a dever do Estado e direito do cidadão implica a
política de Humanização: estratégias de integração desse personagem às formas de
472
Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

produtividade da saúde. Não pode mais ser Essas práticas de avaliação, acompanhamento
um personagem passivo, como se considerava e criação de indicadores produzem tanto um
o paciente (que aguardava pelas ações), mas modelo de atenção à saúde quanto o sujeito
um sujeito ativo – ativo em sua comunidade, desse modelo. Esse modelo de atenção implica
um agente de saúde. Não é uma questão de o sujeito tornar-se ator desse processo de
poder participar, mas de dever participar, é institucionalização da Humanização, que deve
um estado de direitos e de deveres. Para ser sistematicamente avaliado e acompanhado
tornar-se cidadão e não ser apenas usuário, o por meio de indicadores. Os indicadores são
sujeito, assim como tem direito de acesso aos conjuntos de regras que estabelecem o que é
sistemas de saúde, tem o dever de co-gerir e da ordem do verdadeiro, como, por exemplo,
de se co-responsabilizar pela estruturação e indicadores de saúde sobre taxas de
funcionamento desses sistemas. Controlam- natalidade, mortalidade, saneamento básico e
se o dever e o direito mediante a co-gestão e habitação, que estabelecem o grau de saúde
a co-responsabilização. O “eu” é um sujeito de uma determinada comunidade.
protagonista e autônomo, uma empresa de si
próprio que, ao ter que gerir, também se Assim, a saúde não é apenas ausência de
responsabiliza e participa, organizado em doença, e essa concepção deve ser trabalhada
coletivos por meio da cooperação e da nos sistemas de saúde mediante a educação
solidariedade. permanente. Dessa forma, o controle não é
exercido pela grande autoridade estatal, mas
A Humanização objetiva a desconstrução dos devem ser criados localmente núcleos de
processos burocráticos da saúde, mas cria controle, como grupos ou comitês. As formas
“...não é outras formas que também produzem divisões de controle não são verticalizadas, mas
necessário saber sociais: gestores, trabalhadores e usuários transversalizadas, no que tange às
exatamente quem micropolíticas da rede de saúde, e estendidas
se é, mas o modo
(BRASIL, 2003, p.6). Para dar conta dessas
como a vida e o diferenças estabelecidas, o discurso da pelo tecido social, que é organizado em grupos,
trabalho permitem Humanização as equaliza (gestores, em comunidades, ou seja, em protagonistas
que o sujeito se
torne diferente do trabalhadores e usuários) por meio do dos processos de produção de saúde.
que é”. personagem cidadão que participa, se Entretanto, por tratar-se de uma diretriz do
responsabiliza e gere os cuidados com a SUS, as formas de implantação da política são
Foucault
própria saúde e a saúde de sua comunidade. verticalizadas; são determinações que, apesar
de serem construções locais, seguem uma
As formas de controle de si encontram imposição nacional, fabricam-se como um
diretrizes nas formas de controle da política dever da rede de saúde: os sujeitos da saúde
de Humanização, pois, ao fazer-se enquanto devem humanizar-se, pois é uma política em
política, a Humanização deve: saúde.

instituir sistemática de acompanhamento e Tecnologias epistemológicas


avaliação, incluindo indicadores relacionados
à PNH (Política Nacional de Humanização), De acordo com Foucault (1998), não é
articulados com os processos de avaliação do necessário saber exatamente quem se é, mas
MS (Ministério da Saúde) no Programa de o modo como a vida e o trabalho permitem
Avaliação de Serviços Hospitalares e Pactos que o sujeito se torne diferente do que é.
de Atenção Básica, entre outros. (BRASIL, Dessa maneira, tornar-se diferente do que se
2003, p.16). é não implica apenas uma ação despótica, de

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controle sobre si mesmo, mas também uma como sujeito psicológico capaz de narrar a si
transformação na forma de conhecer-se. A mesmo. Essa narração de si é importante no
necessidade de conhecer a si mesmo não é que tange à modificação das posições do
um atributo inato do humano, mas uma conhecimento: não é o outro que tem a
fabricação de formas de se relacionar consigo verdade sobre o sujeito, como na relação
mesmo por meio da objetivação do verticalizada entre Medicina e clientela, mas
conhecimento e do pensamento como é o próprio sujeito que faz uma inflexão sobre
estratégias de governo dos indivíduos. A si mesmo para desvelar suas necessidades,
política de Humanização também agencia desejos e histórias de vida. A contrapartida
relações epistemológicas do sujeito consigo desse processo de constituição de um sujeito-
mesmo. O conhecer a si mesmo torna-se protagonista na saúde é operar com uma
necessário, pois as categorias de “profissionais racionalidade que é herdeira da modernidade:
da saúde, usuários e cidadãos” (BRASIL, 2003, o indivíduo, como uma identidade psíquica,
p.11) são constituídas pela “mudança na que, por meio dos atributos do pensamento e
cultura da atenção dos usuários e da gestão dos afetos, é capaz de modificar a si mesmo.
dos processos de trabalho” (idem, p.10), o
que envolve trabalhos e diálogos em equipes Tecnologias de si
multiprofissionais, fundamentados em
necessidades, desejos e interesses dos As formas de cuidados de si forjadas pela
“diferentes atores do campo da saúde” (idem). Humanização estabelecem um sujeito vivo,
A Humanização, ao considerar as ativo e produtivo, que deve cuidar e ser
necessidades, os desejos, os interesses, bem cuidado pela política. A Humanização cola a
como as histórias de vida ou histórias de muitas saúde às noções de participação,
vidas, cria tecnologias de transformação das responsabilidade, processos de gestão e
“mentalidades” ou, como nomeia Rose (2001), produção de vida. Os cuidados com a vida
“técnicas intelectuais”, por meio de “debates referem-se aos indicadores de saúde: doenças,
orgânicos, salas de conversas, ouvidorias e epidemias, mas também habitação,
educação permanente”. Essas práticas de natalidade, saneamento e emprego. Todas
domínio do conhecimento da relação que o essas categorias formam a estrutura de um
sujeito estabelece consigo mesmo a partir de modo de vida saudável. A política de
questões epistemológicas também constituem Humanização, ao tornar o sujeito vivo, ativo e
o protagonista, ator das ações em saúde. Para produtivo, transforma-o também em
ser um ator-protagonista, deve-se conhecer o responsável pelo cuidado de si mesmo. É um
perfil do personagem: seus gostos, seus dever do Estado, mas, como condição de
desejos, suas necessidades, suas histórias de direito, de cidadania, o sujeito deve participar
vida. Os debates, as conversas e a educação da gestão em saúde, deve cuidar de si mesmo.
permanente criam a possibilidade de esse “eu” Cuidar de si mesmo é um compromisso com
protagonista surgir, um “eu” participativo, “a defesa da vida” (BRASIL, 2003, p.11)
encorajado a falar de si, a descobrir e revelar voltado para “prevenir, cuidar, proteger, tratar,
necessidades, desejos e histórias de vida. recuperar, promover, enfim, produzir saúde”
(idem, p.5). O ator-protagonista, cidadão que
Essa tecnologia de poder reforça a noção de deve cuidar de si mesmo, é uma necessidade
um “eu”, de uma autoria nos processos de para o desenvolvimento e “contágio” da
saúde. As questões epistemológicas operam política de Humanização. A transformação no
e produzem uma forma de o indivíduo modelo de gestão em saúde implica o
experimentar-se como sujeito “cognoscente”, envolvimento de todas as instâncias
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Estratégias de Produção de Si e a Humanização no SUS

estabelecidas como participantes da produção facultativas, de produção e apropriação da vida.


de vida: gestores, trabalhadores e usuários. É uma forma de interrogação sobre aquilo que
se encontra como norma; norma como um
O cuidado de si transforma cada um desses
conjunto de regras que determinam os modos
personagens em cidadãos, em sujeitos de
de viver, as formas de o sujeito se relacionar
direito que têm, como dever, produzir saúde
e defender a vida. Assim, a saúde torna-se consigo e com o outro, um princípio regulador
um dever. Nesse caso, reforça, no discurso que se estende pelo tecido social e, ao
da saúde, a busca perene pela saúde da vida. institucionalizar-se, torna-se natural. Usar a
A saúde torna-se uma forma de inclusão social. ética como uma forma de problematização é
Buscar saúde, ter saúde, ser usuário, considerar a necessidade perene de colocar
trabalhador, gestor do sistema de saúde em análise as práticas sociais a partir daquilo
produz e determina as formas de viver, os
que elas produzem em termos de formas de
modos de acesso e trabalho na saúde. A
subjetivação e tecnologias de poder.
inclusão segue um conjunto de regras que
devem conformar comunidades, marcar os
corpos, tornando a política de Humanização A ética deve tornar-se um analisador da Política
um agenciador de saúde e, ao mesmo tempo, Nacional de Humanização na medida em que
de controle. É uma forma de estabelecer problematiza a política no que tange aos
como atender, como acolher, como relacionar- procedimentos coercitivos. Não se trata de um
se, ou seja, torna-se um princípio normatizador pensamento que objetiva a desconstrução da
nos sistemas de saúde.
Política Nacional de Humanização, e sim, de
uma reflexão sobre aquilo que ela produz no
Ética e norma na Humanização
momento em que se torna uma norma, uma
Operar com um princípio ético significa fazer biopolítica de controle das formas de viver e
um exercício de reflexão a partir de regras trabalhar na saúde.

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (3), 462-475


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Anita Guazzelli Bernardes & Neuza Guareschi PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (3), 462 - 475

Anita Guazzelli Bernardes


Psicóloga, doutora em
Psicologia pela PUCRS e docente da Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões.

Neuza Guareschi
Professora/pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUCRS.

PUCRS - Faculdade de Psicologia, Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, 9º andar


E-mail: nmguares@pucrs.br

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