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ARTIGO ARTICLE
Some considerations about aesthetic medicine
Abstract In this article, we will discuss some as- Resumo Neste artigo, abordaremos alguns aspec-
pects of the construction of the meanings concern- tos da construção de sentidos acerca do corpo a
ing the body from the scientific speech which was partir do discurso científico que se moldou com o
modeled based on modern thinking and became pensamento moderno e se transformou no pensa-
the hegemonic thinking of some sectors of the med- mento hegemônico de alguns setores da área médi-
ical field. Meanings attributed to the body bring ca. Ressaltaremos que os sentidos atribuídos ao
questions that come from other areas of the social corpo incorporam questões oriundas de outras áreas
life and those questions will build the aesthetic da vida social e vão moldar os parâmetros estéticos
parameters which will be part of the identity con- que influenciam a construção da identidade, a re-
struction, in the relation with the body itself, sub- lação com o próprio corpo, a subjetividade e os
jectivity and healthcare. We will describe some cuidados com a saúde. Descreveremos alguns mo-
moments of the construction of the modern scien- mentos dessa construção do pensamento científico
tific thought and how this thought became hege- moderno, a forma como este pensamento se torna
monic, influences the common sense, naturalizes hegemônico, influencia o senso comum, naturali-
identity construction and how dealing with the za a construção da identidade e a forma de lidar
body, interferes in the healthcare, show a division com o corpo, interfere nos cuidados com a saúde,
among some sectors of the biomedicine, reinforce expõe uma divisão entre alguns setores da biome-
an specific type of medical rationality and makes dicina, reforça um tipo específico de racionalidade
an epistemic base and principle (theoretical and médica e serve de base epistêmica e fundamenta-
discursive) to some sectors connected to aesthetic ção (teórica e discursiva) para alguns setores liga-
medicine and aesthetic surgeries. dos à medicina estética e às cirurgias estéticas.
Key words Body, Aesthetic medicine, Scientific Palavras-chave Corpo, Medicina estética, Dis-
speech, Medical rationality, Health curso científico, Racionalidade médica, Saúde
1
Laboratório de Inovações
em Terapias, Ensino e
Bioprodutos, Instituto
Oswaldo Cruz, Fiocruz.
Av. Brasil 4365,
Manguinhos. 21040-900
Rio de Janeiro RJ.
frferreira@ioc.fiocruz.br
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Ferreira FR
percepção do corpo humano como uma máqui- aliada preferencial do mercado, componente es-
na é construída a partir dessa lógica, que abarca a sencial na ordenação da vida social. Os sentimen-
“natureza” com seus conceitos, próprios da raci- tos, as paixões, os desejos, os sentidos atribuídos
onalidade científica, e naturaliza seu discurso no ao corpo levam em consideração o componente
seio da vida social. Trata-se de uma cosmovisão sensual e a consequente ampliação de possibili-
que produz sentidos, cria realidades e transforma dades no mercado profissional ou sexual, fazen-
essas realidades em verdade única e indiscutível6. do com que o que antes era visto socialmente
Para o senso comum, a matéria que constitui como abominável, hoje seja visto como aceitá-
o corpo e o pensamento que lhe dá suporte ainda vel, desde que ajude a conseguir seu objetivo de
é concebida na perspectiva dualista e mecanicista ascensão social, otimize as possibilidades de su-
do pensamento moderno. O corpo geralmente é cesso econômico e aceitação social. A moral se
visto como uma máquina que pode ser recicla- torna mais flexível, os valores éticos idem, a esté-
da, aperfeiçoada ou “modernizada”. O conheci- tica também se adapta e oferece novos parâme-
mento científico que é divulgado e popularizado tros, no corpo se incorporam os novos sentidos
reforça esse modelo e se impõe como o “discurso e a “saúde” se adapta.
verdadeiro”, sem revelar suas ambiguidades, seus Algumas práticas e sentidos relativos ao cor-
conflitos e seus limites. As metáforas mecanicis- po ganham espaço e permitem a aproximação
tas da racionalidade moderna reaparecem hoje de valores sociais e éticos relativos ao corpo, à
travestidas de tecnologia informacional e o “cor- estética e saúde, possibilitando o surgimento de
po-máquina” de La Mettrie12 (1709-1751) volta à movimentos que visam modelar o corpo, ade-
cena, sendo que agora ele é um híbrido de tecno- quando-o às normas sociais15 (através do culto
logia computadorizada, carne e chips, matéria e ao corpo, fitness, cirurgias estéticas, prática de
megabytes de memória. O mito do corpo como esportes radicais, modelagem do corpo, etc.).
máquina que obedece ao nosso comando ainda A saúde passa, então, a ser um guarda-chuva
teima em persistir. simbólico no qual tudo cabe, ter saúde não se
Segundo o pensamento dominante, hoje, o restringe a evitar as doenças, a “preservar-se”, a
corpo não precisa mais ser obediente e fiel à na- “não correr riscos”, a permanecer na normalida-
tureza, ele pode se tornar mais “natural” do que de médica. Ter saúde passa a ser igualmente cui-
o que a própria natureza concebeu. A tecnologia dar da forma, do peso, da aparência (da pele, das
desenvolvida pela racionalidade científica e os rugas, dos cabelos brancos), da alimentação, da
valores e sentidos produzidos no mundo social dieta ou do cuidado com as calorias, da manu-
agora constroem um corpo que nem a mãe na- tenção da beleza e da juventude. Os cuidados com
tureza foi capaz de fazer13. A indústria da estética a estética passam a influenciar os cuidados com a
vai dizer (de forma racional, científica) como tor- saúde e com a “forma física”. As relações de traba-
nar o seu corpo mais que perfeito, melhor que o lho também são influenciadas por essa perspecti-
projeto natural, obedecendo ao que se espera no va, a empregabilidade passa a ser diretamente li-
mundo social. A indústria da metamorfose cor- gada à aparência física. A preocupação com a es-
poral possui a tecnologia adequada a cada situa- tética passa a ser não apenas uma forma de man-
ção, corpo ou bolso. Ela propõe uma transfor- ter a aparência ou a saúde, mas também uma
mação total da forma sem perceber, ou melhor, forma de distinção social, garantia da manuten-
se esquecendo das ambiguidades e limites do su- ção do seu lugar no mercado de trabalho, no
jeito. O corpo, por sua vez, não precisa mais ser “mercado de trocas” sexual ou até mesmo como
dócil e moralmente comportado, ele pode até ser forma de conquistar a mobilidade social.
imoral, desde que seja belo e magro14, construí- A estetização da saúde e da vida cotidiana
do a partir de uma dieta e de uma vida “natural” permite o crescimento de diversas atividades co-
e, quando necessário, a tecnologia pode dar uma merciais ligadas às indústrias da estética, da cos-
força à natureza, melhorar o que ela não foi ca- mética e da metamorfose, para atender a uma
paz de realizar. demanda crescente, oferecendo serviços, medi-
Essa racionalidade que transforma tudo em camentos, equipamentos, profissionais (qualifi-
valor monetário, mensurável, pragmático e utili- cados ou não), financiamentos, seguros, ativi-
tário vai virar de ponta cabeça mesmo os valores dades físicas (esportivas ou recreativas), publici-
morais mais tradicionais. A sensualidade, que já dade na grande imprensa, revistas especializa-
foi inimiga da razão científica natural e da razão das, spas e hotéis especializados em tratamento
da moralidade cristã, religiosa ou laica, e poderia estético, ou seja, os interesses comerciais desse
levar ao erro e à decrepitude, hoje é vista como setor não devem ser menosprezados.
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privilegia uma perspectiva técnico-científica, am- envolve os sujeitos. Tal rede de sentidos e valores
parada pela lógica do mercado, em detrimento institui o que é valorizado socialmente e o que
de uma atitude crítica diante do mundo. foge aos padrões dominantes passa a ser visto
Para compreender o discurso médico acerca como inadequado, imperfeito ou, no mínimo,
da estética ou dos sentidos do corpo, não se deve problemático. E a construção de sentidos acerca
ficar apenas no discurso médico, se fechar em do corpo não é necessariamente a mesma entre
um único circuito, pois esse discurso é constitu- profissionais e usuários, nem sempre eles falam
ído pelos discursos vizinhos, paralelos, conco- a mesma linguagem ou constroem os mesmos
mitantes1. Os acontecimentos discursivos são sentidos.
influenciados pelos acontecimentos não discur- A medicina estética utiliza de forma diferen-
sivos como a cultura, a política, a moral, a ética, ciada a relação entre doença, signo e sintoma,
a arte, a filosofia, a ciência, a ideologia, enfim, pois a doença (ou a deficiência estética) é algo
instâncias aparentemente independentes que se construído artificialmente no âmbito da cultura,
encontram de alguma forma e trocam influênci- ela não está no corpo, mas se inscreve nele, co-
as para a formação dos padrões de beleza, dos meça a fazer parte dele. A “eficácia simbólica”30
sentidos acerca do corpo e do olhar médico que atua e, uma vez sendo dito que aquele formato
vai interferir no corpo. de corpo é feio ou que aquele seio não é belo, se
Desta forma, podemos perceber o percurso essa opinião vai ao encontro da insatisfação exis-
dos discursos e identificar suas posições éticas e tente, dificilmente aquele corpo ou o seio voltam
políticas. Não se trata de tomar uma enunciação a ser vistos como normais. A questão, então, não
deslocada no tempo e no espaço e sim de identi- está apenas no corpo, mas na construção de sen-
ficar a materialidade constitutiva do enunciado a tidos que está na ordem da cultura e que é apro-
partir de uma perspectiva institucional, não ape- priada pelos discursos da publicidade, dos meios
nas uma fala emitida isoladamente, mas um con- de comunicação de massa ou dos profissionais e
junto de enunciados que formam um discurso instituições ligadas à medicina estética. Tais dis-
que traduz uma tomada de posição institucio- cursos atuam no senso comum e possuem uma
nal, que diferencia certos sujeitos de fala dos ou- eficácia simbólica bastante precisa, fazendo com
tros sujeitos do campo. Se o discurso científico que tais “defeitos” se inscrevam no corpo de fato.
não é neutro, o discurso oriundo de setores da O senso comum, informado também pelos
medicina estética, ligado a interesses mercantis especialistas e pelas revistas especializadas, cons-
diversos, muito menos. trói um ideal de beleza que é reforçado, valoriza-
A medicina estética opera um deslocamento do pelo discurso médico do setor, que reproduz
na medida em que inscreve na superfície corpó- um padrão estético hegemônico que nada tem de
rea um “problema” que existia apenas na imagi- “natural” ou espontâneo. A beleza é tratada como
nação ou no meio social. A linguagem transfor- algo natural quando, na verdade, ela é uma cons-
ma o invisível em visível, estrutura-se como co- trução social, não havendo beleza “natural” que
nhecimento que transcende o corpo para trans- não passe pela cultura31. Ela é o filtro que permi-
formá-lo em corpo ideal. Trata-se de uma rup- te construir tais padrões “naturais” através das
tura com a medicina tradicional, cujo modelo é o relações sociais e refletem em tais parâmetros seus
da clínica, que localiza no corpo o seu campo de conflitos e sua dinâmica. Existe uma razão ins-
ação, nele e a partir dele29. Essa medicina, ao con- trumental que desloca a questão e coloca tais cri-
trário, se inscreve na superfície do corpo a partir térios e parâmetros sob o seu domínio, opera a
de critérios subjetivos que estão fora dele, adota partir dos seus critérios, e a beleza “natural” pas-
padrões estéticos que habitam a órbita da cultu- sa a ser construída artificialmente. Por sua vez,
ra, no território impreciso e inconstante da moda. os meios de comunicação de massa e a indústria
E a ferramenta que orienta essa passagem e faz a de consumo ligada às metamorfoses corporais
ponte entre médicos e pacientes é o território atuam sem crítica, limitações ou aprofundamen-
igualmente impreciso da linguagem. to de questões que consideramos importantes.
Os parâmetros de beleza, do que é reconheci- Pensar de forma crítica nem sempre é agradável,
do socialmente como belo, a imagem do próprio não seduz e não vende, o espetacular vende mui-
corpo, a construção da identidade a partir da to mais. Por outro lado, como pensar essas ques-
imagem do corpo, os valores e sentidos atribuí- tões, no âmbito da Saúde Pública, com um míni-
dos ao corpo constituem um território impreci- mo de responsabilidade, seriedade e respeito com
so que recebe influências das mais diversas de os usuários, sem cair em preconceitos ou juízos
toda uma rede discursiva que atua no social e de valor?
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