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Algumas considerações acerca da medicina estética

ARTIGO ARTICLE
Some considerations about aesthetic medicine

Francisco Romão Ferreira 1

Abstract In this article, we will discuss some as- Resumo Neste artigo, abordaremos alguns aspec-
pects of the construction of the meanings concern- tos da construção de sentidos acerca do corpo a
ing the body from the scientific speech which was partir do discurso científico que se moldou com o
modeled based on modern thinking and became pensamento moderno e se transformou no pensa-
the hegemonic thinking of some sectors of the med- mento hegemônico de alguns setores da área médi-
ical field. Meanings attributed to the body bring ca. Ressaltaremos que os sentidos atribuídos ao
questions that come from other areas of the social corpo incorporam questões oriundas de outras áreas
life and those questions will build the aesthetic da vida social e vão moldar os parâmetros estéticos
parameters which will be part of the identity con- que influenciam a construção da identidade, a re-
struction, in the relation with the body itself, sub- lação com o próprio corpo, a subjetividade e os
jectivity and healthcare. We will describe some cuidados com a saúde. Descreveremos alguns mo-
moments of the construction of the modern scien- mentos dessa construção do pensamento científico
tific thought and how this thought became hege- moderno, a forma como este pensamento se torna
monic, influences the common sense, naturalizes hegemônico, influencia o senso comum, naturali-
identity construction and how dealing with the za a construção da identidade e a forma de lidar
body, interferes in the healthcare, show a division com o corpo, interfere nos cuidados com a saúde,
among some sectors of the biomedicine, reinforce expõe uma divisão entre alguns setores da biome-
an specific type of medical rationality and makes dicina, reforça um tipo específico de racionalidade
an epistemic base and principle (theoretical and médica e serve de base epistêmica e fundamenta-
discursive) to some sectors connected to aesthetic ção (teórica e discursiva) para alguns setores liga-
medicine and aesthetic surgeries. dos à medicina estética e às cirurgias estéticas.
Key words Body, Aesthetic medicine, Scientific Palavras-chave Corpo, Medicina estética, Dis-
speech, Medical rationality, Health curso científico, Racionalidade médica, Saúde

1
Laboratório de Inovações
em Terapias, Ensino e
Bioprodutos, Instituto
Oswaldo Cruz, Fiocruz.
Av. Brasil 4365,
Manguinhos. 21040-900
Rio de Janeiro RJ.
frferreira@ioc.fiocruz.br
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Introdução cepções e teorias científicas que vão se mesclar à


vida social, chegando até o senso comum. As re-
Nos dias atuais, os valores e os saberes que atu- lações sociais vão ser orientadas por essa racio-
am na construção da identidade e nos cuidados nalidade científica, que tudo explica e resolve com
com a saúde são influenciados por parâmetros seu discurso “neutro”, racional e independente.
cada vez mais efêmeros e imprecisos. Os cuida- Esse modelo de racionalidade se constituiu tendo
dos com o corpo e a manutenção da saúde são como modelo as ciências naturais e sendo um
atravessados por sentidos e discursos que incor- modelo global, a nova racionalidade é também um
poram preocupações estéticas, com a beleza, a modelo totalitário, na medida em que nega o cará-
imagem e a forma física, e se encontram aparen- ter racional a todas as formas de conhecimento
temente muito distantes das principais discus- que não se pautarem pelos seus princípios episte-
sões da Saúde Pública. Pensar os sentidos atribu- mológicos e pelas suas regras metodológicas4. Tal
ídos ao corpo e os cuidados com a saúde signifi- modelo se constitui a partir de uma lógica mate-
ca pensar também neste terreno volátil da subje- mática que se torna o instrumento privilegiado
tividade, da beleza, da forma física, ou seja, pen- de análise, assim como a investigação e a repre-
sar nesse universo de questões que extrapolam sentação da própria estrutura da matéria. Sendo
as questões tradicionais do campo da saúde e assim, conhecer significa quantificar e represen-
constituem a percepção atual do corpo, do con- tar a partir de um modelo construído às vezes
ceito de saúde ou do que venha a ser saudável. arbitrariamente.
Os discursos sobre o corpo se inserem em um Desde Descartes, conhecer implica desmem-
processo mais amplo, que possui relação com brar, classificar, eliminar o acidental e o aleatório,
outros discursos realizados, imaginados ou possí- o que não pode ser medido, dividido, quantifica-
veis. Quando nascemos, os discursos já estão em do e organizado dentro de uma lógica própria
processo e somos nós que entramos nesse pro- não pode ser conhecido. Essa concepção, além de
cesso, eles não se originam em nós1. As palavras e possuir uma base matemática, tem como referên-
os enunciados não possuem sentido neles mes- cia um modelo mecanicista, funcional, que reduz
mos, o sentido é atribuído ou utilizado de acordo tudo o que há no universo a relações mecânicas
com o sujeito que fala, com o contexto da fala, de causa e efeito5. Esse método propicia a formu-
sua situação, a posição que ocupa, sua posição lação de leis gerais que poderiam explicar e con-
diante dos valores aceitos socialmente, ou seja, os trolar a natureza e a vida, as regularidades obser-
discursos são sempre determinados socialmente, vadas permitiriam estabelecer as leis que funda-
eles não são neutros2. Da mesma forma, a cons- mentariam o comportamento de todos os fenô-
trução social de sentidos e valores concernentes menos, naturais ou sociais. A ciência moderna
ao corpo e à saúde também estão inseridos nessa reduz a complexidade das coisas e se converte no
trama discursiva que está além do sujeito que fala modelo da racionalidade hegemônica que pouco
e reproduz a dinâmica da vida social. a pouco se impõe não apenas no estudo da natu-
No presente trabalho, iremos abordar alguns reza, como também no estudo da sociedade6.
desses aspectos da construção de sentidos e arti- Mas este paradigma que nasce com Descar-
culação de discursos acerca do corpo a partir do tes e Newton já não dá mais conta de explicar a
estudo da atuação de alguns setores da medicina realidade em sua totalidade e complexidade7. A
estética e das cirurgias estéticas. Este trabalho faz hipótese de causalidade implícita nesse paradig-
parte de uma pesquisa, iniciada em 2002, e con- ma já não é mais suficiente, nem necessária, para
tém trechos da tese de doutorado intitulada “Os dar conta das incertezas do real. Desde Kant, já
sentidos do corpo: cirurgias estéticas, discurso sabemos que o real é incognoscível e, desde Hei-
médico e saúde pública”, defendida na Escola senberg e Bohr, já aprendemos que não é possí-
Nacional de Saúde Pública, em 20063. vel conhecer o real sem interferir nele, sem o alte-
rar, e o próprio objeto do conhecimento se faz de
acordo com o processo de conhecimento, eles
O discurso da ciência não são neutros, nem o objeto nem o processo,
muito menos o sujeito. O que conhecemos do
A revolução científica iniciada no século XVI dá real se dá a partir da intervenção que operamos
início a um processo social e uma concepção de nele, a partir das condições de observação, dos
ciência que perdura até hoje. Os princípios que critérios de análise ou da seleção do objeto. O
nortearam o surgimento do método científico olhar do observador vai interferir decisivamente
continuam a produzir verdades e a orientar con- no processo8.
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A crise desse paradigma dominante se faz sen- disciplinadora de relações que são quase sempre so-
tir a partir de vários ângulos, o modelo de causa- ciais. As relações dos indivíduos e dos grupos sociais
lidade, finalidade e relação mecânica já não dá com seu corpo, seu sofrer, seu adoecer, sua morte, e
mais conta de conhecer a natureza e, menos ain- com o corpo, o sofrimento, o adoecimento e a morte
da, a vida social. Simultaneamente, junto com a dos outros são relações sociais11.
crise da ciência no século XX, se dá a percepção Para Madel Luz11, a medicina e a sociologia se
de que a autonomia da ciência, sua neutralidade confundem, pois ela atua em territórios que seri-
e sua desvinculação dos problemas que afetam a am estudados pela sociologia, ou pela antropo-
vida social, não são fatores irrelevantes, exter- logia, sendo que, enquanto a sociologia atua na
nos, alheios à realidade e desvinculados dos inte- macroestrutura, nas relações sociais, a medicina
resses e conflitos das questões políticas e econô- atua na microestrutura, no indivíduo. A medici-
micas. Bourdieu9 afirma que o campo científico é na age não apenas no seu campo específico, mas
um mundo social e, como tal, faz imposições, irradia conceitos, verdades, parâmetros e senti-
solicitações que são, no entanto, relativamente dos por todo o corpo social; seus conceitos in-
independentes das pressões do mundo social glo- terferem na regulação de vários aspectos da vida
bal que o envolve. Mas essa independência é sem- social, seu discurso vira norma. A medicina não
pre relativa, o grau de autonomia ou heterono- apenas participa da vida social e das forças pro-
mia de um campo se dá de acordo com a sua dutivas, como também modela a própria vida
capacidade de negociação com o mundo exterior social, fornece o modelo de percepção e constru-
e peso político ou econômico na hora da decisão. ção de sentidos, valores, hábitos e processos cog-
O campo científico é um campo de forças e, nitivos. “Naturaliza” o que é eminentemente so-
como tal, a dinâmica e a importância social de cial. O que é considerado natural vai ser recon-
seus atores influenciam o que ele pode ou não duzido à ordem da razão. Ela é quem vai deter-
fazer. É a posição que eles ocupam na estrutura minar esse novo conceito de natureza, mas não
social que determina ou orienta suas tomadas de se trata de uma razão qualquer, trata-se da raci-
posição10. A estruturação interna do campo pode onalidade científica que, como acabamos de ver,
ser determinada pela distribuição do capital ci- possui critérios próprios e rígidos para estabele-
entífico dentro do campo, mas ela também sofre cer e controlar a “natureza”.
influência dos fatores externos. Desta forma, a Essa racionalidade possui “ordens de senti-
racionalidade científica está impregnada das ques- do” que produzirão verdades específicas, disci-
tões existentes nas suas bases sociais; ela sofre os plinas científicas e conhecimentos sofisticados que
efeitos políticos e econômicos de sua inserção na nortearão o senso comum e formularão proces-
vida social, interage com eles. sos cognitivos que vão dar sentido à realidade,
A racionalidade moderna não se caracteriza em qualquer instância, seja ela científica ou não.
por seu caráter contemplativo, pelo contrário, Ela funcionará como espinha dorsal da estrutu-
trata-se de um saber que propõe uma interven- ra simbólica e cognitiva da vida social, ela é quem
ção na natureza com a intenção de dominá-la, dirá o que é correto ou não, coerente ou não,
transformá-la, agir sobre ela. Seus conceitos e “natural” ou não, ou seja, essa racionalidade dirá
pressupostos reproduzem uma concepção de o que pode ser considerado verdadeiro, coerente
mundo mecanicista, dualista, quantitativista e e confiável. E o que ficar fora dela corre o risco de
ordenador. Ou seja, é um tipo de conhecimento ser desqualificado, pois ela é a voz da verdade.
que, ao interferir, modela, constrói a realidade, Ou seja, o que é considerado natural, racional ou
organiza segundo seus interesses, seus pressu- social se confunde e se funde numa argamassa
postos e seus métodos; ele age no social embora que, em última análise, vai ser modelada pela mão
isso nem sempre fique explícito. da razão, melhor dizendo, da razão ancorada na
A medicina, que tem como objeto principal de ciência e nas suas verdades.
estudo as relações entre a doença e a sociedade, é A racionalidade moderna, que é a origem de
uma construtora de sentidos médicos, científicos todo esse processo, se constitui principalmente
e sociais11. Seu campo de atuação não se restringe como uma estrutura de explicação, uma forma
ao domínio asséptico da ciência pura, ela extra- específica de compreensão da realidade, de expli-
pola e dissemina o seu saber para muito além de cação do ordenamento do mundo que regula os
sua especialidade. Desta forma, a razão médica princípios, os valores, os corações e as mentalida-
moderna expõe, na ordem da racionalidade cientí- des. A ciência moderna é mais que uma forma de
fica, objetos de discursos que são de fato sociais. Te- desvendamento do mundo. Ela é, sobretudo, uma
matiza, portanto, o social. É disciplina do social, forma de “ordenação” do mundo; deste modo, a
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percepção do corpo humano como uma máqui- aliada preferencial do mercado, componente es-
na é construída a partir dessa lógica, que abarca a sencial na ordenação da vida social. Os sentimen-
“natureza” com seus conceitos, próprios da raci- tos, as paixões, os desejos, os sentidos atribuídos
onalidade científica, e naturaliza seu discurso no ao corpo levam em consideração o componente
seio da vida social. Trata-se de uma cosmovisão sensual e a consequente ampliação de possibili-
que produz sentidos, cria realidades e transforma dades no mercado profissional ou sexual, fazen-
essas realidades em verdade única e indiscutível6. do com que o que antes era visto socialmente
Para o senso comum, a matéria que constitui como abominável, hoje seja visto como aceitá-
o corpo e o pensamento que lhe dá suporte ainda vel, desde que ajude a conseguir seu objetivo de
é concebida na perspectiva dualista e mecanicista ascensão social, otimize as possibilidades de su-
do pensamento moderno. O corpo geralmente é cesso econômico e aceitação social. A moral se
visto como uma máquina que pode ser recicla- torna mais flexível, os valores éticos idem, a esté-
da, aperfeiçoada ou “modernizada”. O conheci- tica também se adapta e oferece novos parâme-
mento científico que é divulgado e popularizado tros, no corpo se incorporam os novos sentidos
reforça esse modelo e se impõe como o “discurso e a “saúde” se adapta.
verdadeiro”, sem revelar suas ambiguidades, seus Algumas práticas e sentidos relativos ao cor-
conflitos e seus limites. As metáforas mecanicis- po ganham espaço e permitem a aproximação
tas da racionalidade moderna reaparecem hoje de valores sociais e éticos relativos ao corpo, à
travestidas de tecnologia informacional e o “cor- estética e saúde, possibilitando o surgimento de
po-máquina” de La Mettrie12 (1709-1751) volta à movimentos que visam modelar o corpo, ade-
cena, sendo que agora ele é um híbrido de tecno- quando-o às normas sociais15 (através do culto
logia computadorizada, carne e chips, matéria e ao corpo, fitness, cirurgias estéticas, prática de
megabytes de memória. O mito do corpo como esportes radicais, modelagem do corpo, etc.).
máquina que obedece ao nosso comando ainda A saúde passa, então, a ser um guarda-chuva
teima em persistir. simbólico no qual tudo cabe, ter saúde não se
Segundo o pensamento dominante, hoje, o restringe a evitar as doenças, a “preservar-se”, a
corpo não precisa mais ser obediente e fiel à na- “não correr riscos”, a permanecer na normalida-
tureza, ele pode se tornar mais “natural” do que de médica. Ter saúde passa a ser igualmente cui-
o que a própria natureza concebeu. A tecnologia dar da forma, do peso, da aparência (da pele, das
desenvolvida pela racionalidade científica e os rugas, dos cabelos brancos), da alimentação, da
valores e sentidos produzidos no mundo social dieta ou do cuidado com as calorias, da manu-
agora constroem um corpo que nem a mãe na- tenção da beleza e da juventude. Os cuidados com
tureza foi capaz de fazer13. A indústria da estética a estética passam a influenciar os cuidados com a
vai dizer (de forma racional, científica) como tor- saúde e com a “forma física”. As relações de traba-
nar o seu corpo mais que perfeito, melhor que o lho também são influenciadas por essa perspecti-
projeto natural, obedecendo ao que se espera no va, a empregabilidade passa a ser diretamente li-
mundo social. A indústria da metamorfose cor- gada à aparência física. A preocupação com a es-
poral possui a tecnologia adequada a cada situa- tética passa a ser não apenas uma forma de man-
ção, corpo ou bolso. Ela propõe uma transfor- ter a aparência ou a saúde, mas também uma
mação total da forma sem perceber, ou melhor, forma de distinção social, garantia da manuten-
se esquecendo das ambiguidades e limites do su- ção do seu lugar no mercado de trabalho, no
jeito. O corpo, por sua vez, não precisa mais ser “mercado de trocas” sexual ou até mesmo como
dócil e moralmente comportado, ele pode até ser forma de conquistar a mobilidade social.
imoral, desde que seja belo e magro14, construí- A estetização da saúde e da vida cotidiana
do a partir de uma dieta e de uma vida “natural” permite o crescimento de diversas atividades co-
e, quando necessário, a tecnologia pode dar uma merciais ligadas às indústrias da estética, da cos-
força à natureza, melhorar o que ela não foi ca- mética e da metamorfose, para atender a uma
paz de realizar. demanda crescente, oferecendo serviços, medi-
Essa racionalidade que transforma tudo em camentos, equipamentos, profissionais (qualifi-
valor monetário, mensurável, pragmático e utili- cados ou não), financiamentos, seguros, ativi-
tário vai virar de ponta cabeça mesmo os valores dades físicas (esportivas ou recreativas), publici-
morais mais tradicionais. A sensualidade, que já dade na grande imprensa, revistas especializa-
foi inimiga da razão científica natural e da razão das, spas e hotéis especializados em tratamento
da moralidade cristã, religiosa ou laica, e poderia estético, ou seja, os interesses comerciais desse
levar ao erro e à decrepitude, hoje é vista como setor não devem ser menosprezados.
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Segundo Sheila Lobato16, diretora da Lobato o segundo mercado em número de cirurgias plás-
Merlin Editores, em matéria publicada no jornal ticas no mundo, perdendo apenas para os Esta-
Folha de São Paulo, em 13 de outubro de 2003, dos Unidos, onde há cerca de 800.000 procedi-
no Brasil, a indústria de cosméticos emprega 2,2 mentos por ano. Ou seja, se mantivermos a mé-
milhões de pessoas, o dobro do número empre- dia anual, teremos mais de 1.000.000 de cirurgias
gado em 1994, e aumentou 74,5% seu fatura- estéticas a cada três anos.
mento líquido entre 1997 e 2000. Existem cerca
de 1.200 empresas atuando no mercado de higi-
ene pessoal, perfumaria e cosméticos, sendo ca- Os sentidos do corpo mais que perfeito
torze de grande porte, com faturamento líquido
acima de R$ 100 milhões ao ano. A taxa de em- Atualmente, na medicina estética, os conceitos de
pregos no setor cresce à taxa anual de 10,6%, beleza, saúde, corpo saudável e corpo belo vão
acumulando 102,3% de 1994 a 2001. As exporta- ganhar outros contornos, outros sentidos, o dis-
ções de 1997 a 2001 saltaram de US$ 78,6 milhões curso acerca do corpo “perfeito” vai trazer à tona
para US$ 146,7 milhões. No acumulado de 1997 essa estratégia de uma racionalidade que atua na
a 2001, o PIB cresceu 10,4% e o setor de cosméti- construção de um olhar que constrói cientifica-
cos cresceu 56%. O faturamento líquido saltou mente, modela, torna o corpo “naturalmente”
de R$ 5,5 bilhões, em 1997, para R$ 9,6 bilhões belo. A doença agora é construída, ela é uma pro-
em 2002. Segundo matéria de Talita Figueiredo17, jeção, uma imagem idealizada que não se confir-
na pesquisa “O impacto socioeconômico da be- ma, uma construção fantasmática que gera dis-
leza. 1995 - 2005”, da Universidade Federal Flu- morfia20. O que é considerado normal ou pato-
minense, também publicada no jornal Folha de lógico muda de eixo.
São Paulo, em 13 de janeiro de 2006, o total de As exigências da vida contemporânea têm
profissionais ocupados em higiene pessoal no gerado uma insatisfação crescente com relação
Brasil é de 1.042.748 em 2005, enquanto que em ao corpo. São inúmeros os medicamentos que
1985 era de 361.813. O Brasil é considerado o regulam o humor e a química corporal, fazendo
quinto maior mercado de cosméticos do mun- do corpo um campo de testes de produtos quí-
do. Com o crescimento recente da economia e micos que regulam a relação afetiva das pessoas
com o aumento do poder de compra das cama- com o mundo, que, mesmo sem estar doente,
das médias da população, podemos imaginar que tomam remédios para dormir, para ficar acor-
este setor tenha também obtido um crescimento dados, ficar em forma, tornar-se enérgico, me-
considerável. lhorar a memória, o rendimento, a performance
Para Guattari18, a subjetividade é essencial- sexual, suprimir o estresse, a ansiedade, regular a
mente fabricada e modelada no registro do soci- depressão, aumentar a capacidade muscular, con-
al, e é aí, no social, que o corpo vai se tornar um trolar a fome, a tristeza ou a alegria. Ou seja, o
objeto a se moldar de acordo com um modelo corpo, com sua configuração atual, não corres-
ideal. O caráter pragmático de alguns setores da ponde às expectativas e exigências da vida, tor-
sociedade atual induz um número crescente de nando-se necessário o uso destas próteses quí-
pessoas a buscar uma solução rápida para resol- micas para torná-lo uma máquina confiável21. O
ver a demanda por um corpo ideal. A modifica- corpo é pensado como uma matéria indiferente,
ção dos hábitos alimentares, o investimento em o simples suporte material para o sujeito, um
exercícios físicos e as mudanças comportamen- objeto à disposição que pode ser melhorado de
tais são sempre uma barreira, um investimento acordo com as expectativas do seu dono e, com
a longo prazo que não combina com o imedia- isso, atender às exigências do mundo social. E a
tismo dominante. Fazer uma cirurgia que resol- biotecnociência estaria disponível para operar a
ve todos os problemas de imediato parece ser transformação.
um caminho muito mais atraente. Da mesma forma, o design corporal nem sem-
Segundo pesquisa da Gallup Organization19 pre corresponde às expectativas dos sujeitos. As
encomendada pela SBCP (Sociedade Brasileira cirurgias plásticas, as próteses estéticas e mecâni-
de Cirurgia Plástica), no Brasil, em 2004, foram cas, os processos de construção do corpo, as
realizadas um total de 616.287 cirurgias plásticas marcas corporais e o transexualismo moldam o
(sendo 365.698 estéticas e 250.598 reparadoras) corpo de acordo com o desejo de seus donos.
e, em 2003, haviam sido realizadas um total de Não há limite para a metamorfose corporal e
621.342 (sendo 374.271 estéticas e 247.071 repa- aquele corpo, antigo e precário, passa a ser obje-
radoras). Esses números colocam o Brasil como to de investimento, recriação, ressignificação. O
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corpo é o molde que se adapta às significações O desenvolvimento acelerado da biotecnoci-


sociais, ele passa a encarnar os significados do ência, a produção de sentidos no mundo con-
mundo, reproduz seus símbolos e marcas de dis- temporâneo e as transformações nas lógicas so-
tinção e identidade22, criando signos que tanto ciais estão alterando o estatuto do corpo, tor-
funcionam como linguagem de revolta como de nando possível ou tentando fazer crer que é pos-
adaptação às regras, que tanto questionam quan- sível operar a metamorfose do corpo de forma
to reforçam os valores do mundo ocidental. rápida e indolor. Narcisismo, hedonismo, indi-
A anatomia deixou de ser algo definitivo e vidualismo e consumo estão entre os fatores pro-
passou a ser provisória, de acordo com a moda pulsores de tais transformações, cujas consequ-
da ocasião. O corpo passa a ser um esboço, um ências começam a delinear um quadro preocu-
rascunho a ser aperfeiçoado de acordo com o pante para a Saúde Pública. Alguns setores da
desejo e o bolso do cliente. Esta pretensão à per- classe média são seduzidos por promessas de
feição também fica nítida no crescimento acele- uma beleza idealizada que pode vir a se tornar
rado da tecnologia que tenta controlar os pro- imediata, geralmente sem muito esforço por parte
cessos de fecundação in vitro, da gravidez fora do cliente, em suaves prestações mensais. Essa
do útero e de processos de inseminação artificial. pseudo democratização da tecnologia que per-
O mito do filho perfeito, planejado com a ajuda mite operar a metamorfose corporal leva a con-
da medicina e com selo de garantia morfogenéti- clusões precipitadas de que o processo é simples,
ca, fabricado fora do corpo, à margem da sexu- rápido, fácil e com riscos cada vez menores.
alidade e fora de qualquer relação com o outro é A imagem do corpo carrega a encarnação sim-
também um dos sintomas da obsolescência do bólica do sujeito desejante com suas histórias,
corpo, ou da tentativa de ampliar seus limites. O sensações erógenas arcaicas e sua memória in-
corpo da mulher se torna o laboratório onde se consciente relacional25. Alterá-la significa correr
produz não apenas a tecnologia reprodutiva de o risco de criar-se uma cisão no sujeito ou criar
ponta, mas também, uma nova antropologia; o uma insatisfação às vezes desnecessária. Além da
corpo passa a ser um detalhe biológico tecnica- possibilidade de ocorrer um erro médico, pode
mente controlável. Laboratório onde se redese- acontecer de que, mesmo a metamorfose sendo
nha a condição humana, a sexualidade, a procri- bem-sucedida, o sujeito entra em um processo
ação, o corpo, a infância, a filiação, a genealogia, de negação do próprio corpo, de sua “imagem
a maternidade, a paternidade, o casal, a ligação corporal” 26 que certamente afetará sua saúde
social e até mesmo a velhice e a morte21. mental e seu bem-estar. O investimento libidinal
No final do século XIX, uma das questões em um corpo idealizado pode se tornar um tiro
apontadas pela nascente psicologia era a proble- que sai pela culatra, criando ou agravando um
mática da histeria, que se caracterizava por sin- quadro psíquico que, caso o sujeito não esteja
tomas de ordem somática, tais como nevralgias, emocionalmente maduro ou seguro, pode trazer
anestesias e paralisias, convulsões, vômitos, etc. sérios inconvenientes.
Os sintomas histéricos seriam a expressão sim- O controle sobre o corpo exercido pela soci-
bólica de um conflito cujas raízes estariam na edade vai “ao encontro” dos interesses do merca-
história do sujeito23. Os sintomas corporais seri- do (moda, mídia, publicidade, etc.) e da indús-
am efeitos de processos psíquicos que, de certa tria da metamorfose (cirurgias, tratamentos,
forma, podem traduzir o conflito indivíduo x equipamentos e medicamentos com fins estéti-
sociedade daquela época. No final do século XX, cos), criando novos sentidos e necessidades para
em nossa sociedade, o culto ao corpo, a obses- os “consumidores”. Por outro lado, pode ir “de
são com a forma física e com as dietas, a dismor- encontro” às questões psíquicas dos sujeitos, caso
fia corporal, os distúrbios alimentares (bulimia, suas metamorfoses sejam malsucedidas, geran-
anorexia e obesidade), os processos de constru- do transtornos nem sempre aparentes, já que os
ção do corpo (por meio de práticas esportivas, corpos não são dóceis e escapam em parte às
medicamentos, próteses, etc.), a percepção dos estratégias de dominação. Desta forma, às vezes,
limites do corpo e as tentativas de ampliá-lo, a a afirmação da vontade própria e legítima dos
paixão pelos esportes radicais24 e a possibilidade sujeitos pode também levar à criação de corpos
de metamorfosear o corpo por meio de cirurgias hipocondríacos, paranóicos, esquizos, catatôni-
plásticas (corretivas ou estéticas), próteses ou cos, drogados, masoquistas, costurados, vitrifi-
marcas identitárias estão na ordem do dia. São cados, etc.27.
os sintomas do nosso tempo e apontam para As exigências crescentes da vida contemporâ-
uma nova identidade corporal a ser construída. nea colocam o corpo como um objeto obsoleto
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que necessita de próteses mecânicas, químicas e ainda, a mudança no enfoque relativo à obesida-
farmacológicas para “dar conta do recado”. O de, o crescimento das cirurgias corretivas pós-
corpo não é mais sagrado, ele pode ser profana- cirurgia de redução de estômago ou o floresci-
do, alterado, modificado, ampliado, reduzido ou mento dos regimes radicais e do consumo dos
substituído em partes, “trabalhado” nas acade- moderadores de apetite.
mias, reconfigurado e reproduzido artificialmen- É preocupante também o escamoteamento
te. Assim como no mundo virtual, cada vez mais de problemas ocorridos durante as cirurgias, in-
o corpo real vai sendo transformado em pura clusive com falecimentos; o crescimento do nú-
objetivação mercadológica, produção fantasmá- mero de denúncias e processos de erro médico
tica objetificada, pura imanência do desejo28. no setor; o surgimento e crescimento de ativida-
Não devemos aqui fazer juízos de valor nem des financeiras ligadas ao setor, como financia-
negar os benefícios advindos das cirurgias plásti- mentos, seguros e promoções; a fronteira indefi-
cas (tanto corretivas quanto estéticas). Mas cabe nida entre cirurgia estética e corretiva; o papel do
a nós, profissionais de saúde, chamar a atenção setor público e sua relação com o setor privado,
para a forma banalizada como tais cirurgias têm na medida em que o Estado paga uma cirurgia
sido divulgadas e propor uma discussão que leve corretiva fruto de um erro médico oriundo do
em conta os aspectos positivos e negativos da setor privado; os problemas relativos às próte-
questão, de modo a tornar claro para a socieda- ses e testes de moldagem no implante de silicone
de não apenas os benefícios (como tem sido feito nos seios; uso de produtos estéticos que, comer-
até agora), mas também os riscos possíveis, as cializados livremente no Brasil, têm comerciali-
implicações emocionais, as consequências inde- zação proibida ou restrita em outros países; as
sejadas, as sequelas, enfim, uma escolha consci- questões jurídicas relativas às cirurgias (a polê-
ente que implica ônus e bônus. mica entre atividade fim ou atividade meio). Ou
A preocupação crescente com a forma física e seja, as implicações e as complicações decorren-
o culto ao corpo fizeram com que o acesso a esses tes dessa forma de “pensar a saúde”, por meio de
serviços fosse ampliado significativamente. Um parâmetros estéticos e, principalmente, utilizan-
estrato da população que, até pouco mais de uma do processos cirúrgicos, são inúmeras.
década atrás, não cogitava fazer uma cirurgia es-
tética, hoje não só tem acesso a esse tipo de servi-
ço como também vê na utilização desses serviços O corpo, seus sentidos
um símbolo de status, distinção e ascensão social. e o discurso na medicina estética
No decorrer da nossa pesquisa, foi possível
perceber alguns fatores que interferem no campo O discurso é um acontecimento sócio-histórico
das cirurgias estéticas, entre eles o crescimento da no qual a sociedade se revela, expondo suas am-
concorrência nesse setor, a diminuição dos valo- biguidades, suas contradições, seus interditos,
res cobrados, a migração de médicos oriundos de seus valores, conflitos e interesses presentes em
outras especialidades que passaram a atuar neste cada campo de práticas. Sabemos que não há
campo, o surgimento de linhas de crédito, as faci- discurso sem sujeito e não há sujeito sem histó-
lidades oferecidas por esse mercado, o surgimen- ria e sem ideologia1. Por meio do discurso dos
to de mercado editorial especializado e a forma atores do campo da medicina estética, podemos
como a grande imprensa trata a questão. observar a compreensão que tanto profissionais
No campo profissional, podemos perceber quanto usuários fazem dos cuidados com o cor-
que as cirurgias plásticas, estéticas ou corretivas, po e a saúde.
passaram a ser vistas como filão de mercado Este forma dualista de pensar disseminada
profissional, gerando uma procura maior por socialmente implica a percepção do corpo en-
parte dos recém-formados e a migração de pro- quanto máquina a ser consertada, objeto a ser
fissionais anteriormente ligados a outras áreas, modificado ou melhorado, ou coisa distante,
gerando uma competição mais agressiva dentro como se o corpo fosse um “outro” com o qual
do campo (como o otorrino que faz rinoplastia, não houvesse identificação, uma percepção me-
o ginecologista que faz uma abdominoplastia ou cânica das partes sem considerar o todo, repro-
o oftalmologista que faz uma correção nas pál- duzindo um olhar tecnicista, que reproduz valo-
pebras). Paralelamente, percebemos o crescimen- res oriundos do discurso médico hegemônico,
to dos casos de dismorfia (ou dismorfobia) cor- reafirmando a obsolescência do corpo e a neces-
poral, dos casos de bulimia, anorexia, obesidade sidade de aprimorá-lo, modernizá-lo, adequá-
ou outras doenças ligadas à imagem corporal e, lo às novas exigências. Este olhar mecanicista
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privilegia uma perspectiva técnico-científica, am- envolve os sujeitos. Tal rede de sentidos e valores
parada pela lógica do mercado, em detrimento institui o que é valorizado socialmente e o que
de uma atitude crítica diante do mundo. foge aos padrões dominantes passa a ser visto
Para compreender o discurso médico acerca como inadequado, imperfeito ou, no mínimo,
da estética ou dos sentidos do corpo, não se deve problemático. E a construção de sentidos acerca
ficar apenas no discurso médico, se fechar em do corpo não é necessariamente a mesma entre
um único circuito, pois esse discurso é constitu- profissionais e usuários, nem sempre eles falam
ído pelos discursos vizinhos, paralelos, conco- a mesma linguagem ou constroem os mesmos
mitantes1. Os acontecimentos discursivos são sentidos.
influenciados pelos acontecimentos não discur- A medicina estética utiliza de forma diferen-
sivos como a cultura, a política, a moral, a ética, ciada a relação entre doença, signo e sintoma,
a arte, a filosofia, a ciência, a ideologia, enfim, pois a doença (ou a deficiência estética) é algo
instâncias aparentemente independentes que se construído artificialmente no âmbito da cultura,
encontram de alguma forma e trocam influênci- ela não está no corpo, mas se inscreve nele, co-
as para a formação dos padrões de beleza, dos meça a fazer parte dele. A “eficácia simbólica”30
sentidos acerca do corpo e do olhar médico que atua e, uma vez sendo dito que aquele formato
vai interferir no corpo. de corpo é feio ou que aquele seio não é belo, se
Desta forma, podemos perceber o percurso essa opinião vai ao encontro da insatisfação exis-
dos discursos e identificar suas posições éticas e tente, dificilmente aquele corpo ou o seio voltam
políticas. Não se trata de tomar uma enunciação a ser vistos como normais. A questão, então, não
deslocada no tempo e no espaço e sim de identi- está apenas no corpo, mas na construção de sen-
ficar a materialidade constitutiva do enunciado a tidos que está na ordem da cultura e que é apro-
partir de uma perspectiva institucional, não ape- priada pelos discursos da publicidade, dos meios
nas uma fala emitida isoladamente, mas um con- de comunicação de massa ou dos profissionais e
junto de enunciados que formam um discurso instituições ligadas à medicina estética. Tais dis-
que traduz uma tomada de posição institucio- cursos atuam no senso comum e possuem uma
nal, que diferencia certos sujeitos de fala dos ou- eficácia simbólica bastante precisa, fazendo com
tros sujeitos do campo. Se o discurso científico que tais “defeitos” se inscrevam no corpo de fato.
não é neutro, o discurso oriundo de setores da O senso comum, informado também pelos
medicina estética, ligado a interesses mercantis especialistas e pelas revistas especializadas, cons-
diversos, muito menos. trói um ideal de beleza que é reforçado, valoriza-
A medicina estética opera um deslocamento do pelo discurso médico do setor, que reproduz
na medida em que inscreve na superfície corpó- um padrão estético hegemônico que nada tem de
rea um “problema” que existia apenas na imagi- “natural” ou espontâneo. A beleza é tratada como
nação ou no meio social. A linguagem transfor- algo natural quando, na verdade, ela é uma cons-
ma o invisível em visível, estrutura-se como co- trução social, não havendo beleza “natural” que
nhecimento que transcende o corpo para trans- não passe pela cultura31. Ela é o filtro que permi-
formá-lo em corpo ideal. Trata-se de uma rup- te construir tais padrões “naturais” através das
tura com a medicina tradicional, cujo modelo é o relações sociais e refletem em tais parâmetros seus
da clínica, que localiza no corpo o seu campo de conflitos e sua dinâmica. Existe uma razão ins-
ação, nele e a partir dele29. Essa medicina, ao con- trumental que desloca a questão e coloca tais cri-
trário, se inscreve na superfície do corpo a partir térios e parâmetros sob o seu domínio, opera a
de critérios subjetivos que estão fora dele, adota partir dos seus critérios, e a beleza “natural” pas-
padrões estéticos que habitam a órbita da cultu- sa a ser construída artificialmente. Por sua vez,
ra, no território impreciso e inconstante da moda. os meios de comunicação de massa e a indústria
E a ferramenta que orienta essa passagem e faz a de consumo ligada às metamorfoses corporais
ponte entre médicos e pacientes é o território atuam sem crítica, limitações ou aprofundamen-
igualmente impreciso da linguagem. to de questões que consideramos importantes.
Os parâmetros de beleza, do que é reconheci- Pensar de forma crítica nem sempre é agradável,
do socialmente como belo, a imagem do próprio não seduz e não vende, o espetacular vende mui-
corpo, a construção da identidade a partir da to mais. Por outro lado, como pensar essas ques-
imagem do corpo, os valores e sentidos atribuí- tões, no âmbito da Saúde Pública, com um míni-
dos ao corpo constituem um território impreci- mo de responsabilidade, seriedade e respeito com
so que recebe influências das mais diversas de os usuários, sem cair em preconceitos ou juízos
toda uma rede discursiva que atua no social e de valor?
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Hoje, a preocupação estética é introduzida ser uma construção imagética traduzida em lin-
cada vez mais cedo no universo infantil ou ado- guagem, fazendo com que a construção de uma
lescente por meio dos produtos da indústria da imagem ideal se dê a partir de parâmetros que
moda, da indústria de cosméticos, medicamen- estão além do corpo, na ordem social.
tos, dietas e culto ao corpo; o componente estéti- Os valores e os sentidos acerca do corpo cons-
co passa a ocupar um lugar de destaque na vida troem um corpo ideal, mas um corpo onde a do-
de homens e mulheres, gerando preocupações, ença não está inscrita no seu interior, na sua mate-
angústias e um controle rígido acerca da imagem rialidade, ela agora vem de fora, do âmbito da
do corpo e da adequação dessa imagem às nor- cultura e se inscreve no próprio corpo, vem do
mas sociais. Nunca se falou tanto em dieta, ali- exterior e “cola” no corpo, é incorporada pelo su-
mentos saudáveis, recomendáveis, alimentação jeito que passa a perceber o seu corpo como do-
(in)adequada, controle de calorias, índice de ente, inadequado, insuficiente. O crescimento do
massa corporal, obesidade, anorexia, bulimia, mercado de cirurgias plásticas, da medicina estéti-
dismorfia, ou seja, técnicas disciplinares, proce- ca, da indústria de cosméticos e da preocupação
dimentos reguladores que incluem até as crian- com os parâmetros estéticos colocados como re-
ças no mundo dos cosméticos, produtos e trata- ferência para a “saúde” nos leva a acreditar que tal
mentos de beleza, controle alimentar, etc. expansão não está sendo acompanhada de uma
Da mesma forma que o controle rígido sobre discussão séria acerca do significado real desse cres-
a sexualidade tempos atrás produzia histeria e cimento. Em função disso, no nosso trabalho, in-
mal-estar, hoje, agindo por caminhos e estraté- vestigamos os princípios que organizam este dis-
gias diferentes, a preocupação estética comporta curso e analisamos os enunciados de um dos se-
uma série de saberes, práticas e formações dis- tores da medicina ligados à estética, de modo a
cursivas que trabalham de forma a “atualizar” o identificar essa construção de sentidos e a forma-
biopoder32, inscrevê-lo nas questões atuais. A ção dessa racionalidade que coloca o corpo como
doença e o doente não estão mais inscritos na objeto descartável, modificável e reciclável. Uma
ordem da doença tradicional. A doença passa a racionalidade que nem sempre respeita o sujeito.

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