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Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa

DEBATE DEBATE
e contribuição ao debate
On the concept of buccality: notes for research
and contribution to the debate

Carlos Botazzo 1

Abstract The article discusses the concept of “buc- Resumo Neste artigo é discutido o conceito de
cality” as an expression of social works performed bucalidade, entendido como expressão dos traba-
by the human mouth. The reference was the so- lhos sociais que a boca humana realiza. Tomou-
cial theory of health (within the field of collective se como referência uma teoria social da saúde,
health), focused on social relations and related construída no campo da saúde coletiva, que en-
conflicts. The author situates the theoretical and contra seu foco nas relações sociais e nos conflitos
practical problems faced by collective health as a elas articulado. Foram localizados os problemas
those of its scientificity and the specific way the teórico-práticos enfrentados pela saúde coletiva,
field participates in social reproduction. He also vistos como os da sua cientificidade e do específi-
considers the field’s current limits in the collective co modo como participa da reprodução social e
organization of healthcare as an effect of neo-lib- considerados seus limites quanto à organização
eral policies. Problems arising from the concept of coletiva dos cuidados de saúde, como efeito das
collective buccal health were seen as having the políticas neoliberais. Os problemas derivados do
same nature and can only be faced using analyti- conceito da saúde bucal coletiva foram vistos co-
cal categories from collective health or the social mo sendo da mesma natureza, cujo enfrentamen-
theory of health. The field’s scientificity is reiter- to só pode ser realizado com o uso das categorias
ated by highlighting its proximity with the hu- de análise da saúde coletiva ou teoria social da
man sciences, which requires an epistemological saúde. Reitera-se a cientificidade deste campo pe-
repositioning, i.e., its shift from the biomedical la explicitação do seu pertencimento às ciências
terrain and abandonment of the notion of para- humanas, que exige reposicionamento epistemo-
digm. Its essential instability is emphasized, char- lógico, isto é, seu deslocamento do solo biomédico,
acterized in the object and not the method. Final- e o abandono da noção de paradigma. É afirma-
ly, the author draws attention to the constitution da sua instabilidade essencial, caracterizada no
1 Instituto de Saúde, of “extra-discursive” health structures based on objeto e não no método. Finalmente, verifica-se a
Núcleo de Investigação their inclusion among the State’s Ideological Ap- constituição das estruturas “extradiscursivas” da
em Cidadania e Saúde. parels, in which the narrative’s guiding thread is saúde, pela sua inclusão entre os Aparelhos Ideo-
Programa de
Pós-Graduação em the critique of ideology. lógicos de Estado, que tem na crítica da ideologia
Ciências, CCD/SES-SP. Key words Public health, Buccality, Epistemol- o fio condutor da narrativa.
Rua Santo Antônio 590, ogy Palavras-chave Saúde coletiva, Bucalidade, Epis-
1o andar, 01314-000,
São Paulo SP. temologia
botazzo@isaude.sp.gov.br
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Botazzo, C.

“Nesta peça, nada há de predisposto idéias, isto é, produzem novos pensamentos


e preordenado: tudo o que nela acontece (Vieira Pinto2).
e se desenvolve deve ser entendido como Um primeiro problema, então, se anuncia:
tentativa improvisada [...]. Não é em vão o que dizer da existência prática da saúde bu-
que se dá vida a uma personagem.” cal coletiva? Como entender ou tornar visível
Luigi Pirandello37 (1867-1936) seu “conteúdo tecnológico”? Só nesta dimen-
são é que a entenderíamos como “ferramen-
ta”? E ela não seria “ferramenta” com condi-
O problema da saúde bucal coletiva ção de possibilidade de produzir “novas ferra-
mentas” ou, ainda, “novos entendimentos” ou
Parece que alguns conceitos se tornam ao lon- “idéias”?
go do tempo problemáticos, isto é, a escala de De uma coisa assim constituída poder-se-
problematizações e de deduções lógicas e infe- ia dizer que funciona como referente, isto é,
rências que permitem volta-se para eles mes- que contém a possibilidade de ser referência
mos e os torna, num certo sentido, e forçada- para outras coisas, uma baliza que possa guiar
mente, tautológicos. Quer dizer que então, em ou escorar qualquer projeto. Por isso falamos
lugar de permitir a construção de problemas e em marco teórico e ainda referencial teórico-
a correspondente solução, o conceito vem a metodológico, pois fica claro que aquele que
ser um “problema em si”. Ora, se uma ferra- guia ou referencia contém em germe a chave
menta é “problemática” na sua aplicação ou da explicação e o modo de fazer.
uso prático, não serve como ferramenta. Se Decorrentemente, um conceito ou catego-
não funciona conforme esperado, engripa-se; ria, para funcionar como referente ou ser este
se induz deformações no objeto ou se simples- referencial teórico-metodológico, precisa ex-
mente é de difícil manuseio, não há que se fa- plicitar o que Althusser3 denomina de índice
lar em ferramenta. O mesmo ocorre com con- de eficácia, isto é, que tenha como “vantagem
ceitos, noções e idéias e, assim vem parecendo teórica” a capacidade de revelar as determina-
com o que denominamos saúde bucal coletiva. ções objetivas e subjetivas que cercam o obje-
Espera-se haver energia numa categoria to e permita formular seu “problema teórico”.
dessas porque igualmente se espera que elas Ora, como assinala Narvai4, com a saúde
sejam traduzidas em políticas e na organiza- bucal coletiva estaríamos longe disso. De fato,
ção dos processos de trabalho. Por isso, admi- em seu artigo o autor encontrou oito possibi-
te-se que as idéias que importam devem se ar- lidades distintas de significados para esta de-
ticular ao mundo concreto, ao mundo da ação nominação, excludentes entre si a maior parte
prática. Isto pode ser facilmente compreendi- delas. Este verdadeiro octólogo seria produzido
do e demonstrado. Duplo modo de existir, pa- por efeito das representações dos diferentes
ra o sujeito que cogita e para o Outro: é só grupos (dentistas, entidades, serviços, pesqui-
aqui que os conceitos, as noções, as idéias to- sadores, reforma sanitária e “bucaleiros”...),
mam significado e se efetivam. Isto quer dizer cada um a seu modo realizando a reprodução
existência (cultural e política) prática. As pes- do conceito.
soas querem apenas não pensar bobagens; Discutindo a mesma limitação, Moysés &
ninguém quer pensar idéias que não sirvam Sheiham5 perguntam se saúde bucal coletiva
para nada. (SBC) seria um novo paradigma no campo da
Falando como Thomas Kuhn1, pensamos saúde. Eles entendem, tanto quanto Narvai,
o que deve ser pensado para resolver proble- haver dispersão de significados ou “mistura”
mas ou, para ser exato, uns “quebra-cabeças”. de áreas e disciplinas imbricadas na denomi-
Thomas Kuhn pensa a partir de uma das for- nação, e depois, dizendo que “a filiação episte-
mas do pensamento, o científico, e se restringe mológica e o consenso discursivo entre os pro-
ao mundo das idéias. Sendo mundo por refe- tagonistas ainda não materializam uma iden-
rência à ciência, nele não há sujeitos. Esta tidade científica comum” concluem que difi-
questão será abordada mais adiante, mas o cilmente se encontrarão, entre os autores e
que vale ser ressaltado é que idéias seriam personagens que fazem a SBC no Brasil, reali-
também “forças produtivas”, sobretudo se en- zações científicas que apresentem problemas e
tendemos que os produtos da ideação (teoria) soluções modelares para uma comunidade de
alimentam a vida prática tanto quanto são praticantes. Muito menos, ajuntam, teríamos a
“forças produtivas” para a produção de novas delimitação consensual dos fatos relevantes a
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serem investigados, com métodos e abordagens para si uma realidade idealizada, sejam os ho-
adequados e respectivas soluções legítimas. mens ou a sociedade, seja a saúde ou a odon-
A inspiração kunhiana é evidente e de fato tologia. Mas, ao se retirar o conteúdo crítico
os autores pensam a saúde bucal coletiva na do conceito, nele se aniquilam as possibilida-
perspectiva do paradigma. Visto assim, não des de transformação e criação. Freqüente-
haveria “identidade científica comum” entre mente reduzido a um componente “odontoló-
os protagonistas, nem a saúde bucal coletiva gico”, vem servindo para justificar a reprodu-
se realizaria como ciência, pois estaria longe ção do mesmo, isto é, interessa aos grupos he-
de ser uma fornecedora de “problemas e solu- gemônicos a conservação das suas práticas, as
ções modelares para uma comunidade de pra- profiláticas, inclusive, de modo que, nestes ca-
ticantes”. sos, assumir a denominação “saúde bucal co-
Moysés & Sheiham, diante de tão contun- letiva” não é mais que um efeito de superfície.
dente assertiva, e depois pensando que esta- Por outro lado, a produção teórica em SBC
mos nos “remotos trópicos latino-america- é ainda bastante descritiva. Ela dá conta de ser
nos” e que podem existir “quase-paradigmas”, um começo, o ponto inicial, “o princípio deci-
como racionalidades construtivas abertas ao sivo de qualquer desenvolvimento posterior
que contestam ou em “diálogo com o real que da teoria”, porque suas descrições (estudos
lhe resiste”, se perguntam se não estaríamos epidemiológicos, avaliação de produtos e pro-
“inovando em saúde (bucal) coletiva” e finali- cessos, etc.) tornam “possível fazer com que a
zam com a proposição de que a SBC seja “uma vasta maioria dos fatos observáveis no domí-
racionalidade não dogmática nem normativa, nio que a ela concerne corresponda à definição
mas aberta ao debate”. que ela fornece do seu objeto” (Althusser3).
Que seja. E, no entanto, há duas distinções Moysés & Sheiham não se equivocam quan-
notáveis nas abordagens de Narvai e nas de do pensam produção científica, mas, pelo uso
Moysés & Sheiham a serem consideradas. En- da noção de paradigma, tiveram a mirada re-
quanto o primeiro vincula o conceito quase duzida, pois paradigma diz respeito às “ciên-
imediatamente aos serviços de saúde, e por cias duras” e, não só isso, ao modo bastante es-
dentro deles propõe a crítica da odontologia, pecífico com que Thomas Kuhn encara a his-
Moysés & Sheiham, ao recorrerem à noção de tória da ciência, em tudo desligada da história
paradigma, dão realce a expressões como dos homens e, assim, anistórica, pois que se
“identidade científica”, “fatos a serem investi- passa apenas na cabeça dos cientistas. No en-
gados” e o fornecimento de “problemas e so- tanto, o estudo de Moysés & Sheiham, marca-
luções modelares para uma comunidade de do por rigor conceitual e metodológico inco-
praticantes”. Mas, os “praticantes” daqui não muns, é muito pouco “paradigmático”, feliz-
são os de acolá: paradigma não diz respeito ao mente, e nele ousam a demonstração exitosa
“pessoal dos serviços”, mas, antes, ao “pessoal de hipóteses pouco testadas.
da ciência”, quer dizer, os cientistas. Seria possível, sem dúvida, pensar da saú-
Duas considerações devem aqui ser postas, de bucal coletiva o seu desarranjo científico, o
pois o octólogo de Narvai nos remete às formas que a impediria de funcionar como paradig-
que a saúde bucal coletiva assume, isto é, aos ma, isto é, como referente. Ser, portanto, um
esquemas de conservação e reprodução se- estruturante. E também não se poderia pensá-
gundo os sujeitos envolvidos, enquanto em la com a formidável dispersão conceitual que
Moysés & Sheiham deve-se considerar os ele- Narvai assinala. Aqui, todavia, se poderia en-
mentos constituidores de uma teoria e suas tender esta dispersão como a dos significados,
formas elementares, isto é, ao seu componente em tudo sempre desbordantes e excessivos em
descritivo. relação ao significante. Na relação entre o sig-
Em Narvai, trata-se de apreender a saúde nificante e o significado há sempre um sujei-
bucal coletiva como expressão teórico-políti- to; sem ele, o significante jazerá inerte; é por
ca, porque então interessa aos diferentes ato- meio dele e nele que significados são produzi-
res em situação e esses diferentes atores não dos, o produto de um sujeito ativo, ainda que
são outros senão os diferentes sujeitos em apenas no pensamento.
ação no campo da saúde coletiva, esta arena Pensar o sujeito é pensar no comporta-
que Donnangelo6 percebeu atravessada pelos mento material do sujeito, e isto nos remete
conflitos, pela política e pela ideologia. Assim, para o terreno das pulsões, do desejo e da po-
não é de espantar que sujeitos representem lítica. É a isto que o octólogo de Narvai nos
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conduz, pois, operando cada um daqueles sig- A Saúde Coletiva como campo
nificados, vislumbra-se uma política, modos de práticas e locus de reprodução social
de organizar a prática, de conceber os servi-
ços, de produzir discursos sobre o paciente, de Diante das explanações precedentes, nas quais
organizar o ensino, de também fazer ciência. E se desvelam as “crises” da ciência ou dos para-
não poderia haver paradigma neste lugar, pois digmas em saúde, ou o esgotamento do seu re-
os discursos que nele encontramos não são ferencial teórico-metodológico, torna-se rele-
discursos de ciência: no lugar deles encontra- vante perguntar: haveria uma teoria da saúde
mos a ideologia do cientista (dos gestores, das coletiva? E teria essa teoria encontrado o pon-
entidades, dos dentistas). to da sua suficiência?
Apresentar essas questões é interrogar so- Os problemas que cercam a saúde bucal
bre a organização e o conteúdo do saber cien- coletiva, no entanto, são extensamente os mes-
tífico em cada época, e esta questão precisa ser mos que animam a produção teórica da saúde
levantada pois, do contrário, seria manter a coletiva. São genericamente traduzidos como
ciência num estado puramente descritivo, co- crises, e a eles vieram se juntar o de certa iden-
mo se não houvesse relação entre teoria e co- tidade (Campos9, Carvalho10, Goldbaum et
nhecimento científico com o objeto que faz al.11, Paim & Almeida Filho12).
existir um e outro (Castoriadis7). Sem dúvida, a saúde coletiva vem encon-
De modo que seria conveniente examinar trando ocasião de afirmar uma teoria, e isto
as condições de possibilidade para que se cons- aprendemos – arqueologicamente – com Nu-
tituam os discursos dos sujeitos, pensando nes13, Minayo14, 15, Campos9, Ferreira16, Paim
que a ideologia nada tem a ver com a ilusão, & Almeida Filho12, e antes com Donnangelo6.
com uma representação equivocada e distor- É bem verdade que estas distintas abordagens
cida dos conteúdos sociais, mas, antes, é parte implicam momentos diferenciados no percur-
da construção simbólica da realidade (Zizek8). so da saúde coletiva, mas também é fato que
Este autor pensa que a linha separatória entre formam o corpus teórico do campo, no qual
a verdadeira realidade e a ilusão não é clara, extensamente as teorias e as práticas parcela-
que a realidade nunca é diretamente ela mes- res buscam inspiração e referência.
ma, e que a realidade, tal como a verdade, nun- O que se deveria destacar nesta discussão é
ca é, por definição, toda. saber se a “crise do pensamento” que abalaria
A realidade não é o real, isto é, a própria a saúde coletiva não estaria na dependência da
coisa, mas o que vivenciamos como realidade “crise do seu objeto”, a um só tempo desvela-
é o real já simbolizado, constituído e estrutu- do como objeto de conhecimento e da organi-
rado por mecanismos simbólicos – e o proble- zação coletiva do cuidado em saúde. Se assim
ma reside no fato de que a simbolização, se- fosse, se a “crise do objeto” tivesse precedência
gundo Zizek, em última instância, “sempre sobre a “crise do pensamento”, então estaría-
fracassa, jamais consegue abarcar inteiramen- mos diante de um caso de “contaminação” do
te o real, sempre implica uma dívida simbóli- sujeito pelo objeto, acusação de que não se li-
ca não quitada, não redimida”. O autor ainda vram as ciências sociais e humanas.
nos lembra que a própria idéia de um acesso à Seria interessante, por isso, verificar como
realidade que não seja distorcido por nenhum esta posição se acha implicada nessa Teoria da
dispositivo discursivo ou conjunção com o po- Saúde Coletiva. Donnangelo6 assinalou os
der é ideológica, não existindo a possibilidade pontos teóricos fundamentais que cabem nes-
de haver “nível zero” de ideologia nas práticas ta discussão. Eles dizem respeito ao objeto, aos
discursivas. Também não há ideologia que não modos como se investiga, à proximidade com
se afirme distinguindo-se de outra ideologia; as ciências sociais e humanas e, por último,
o sujeito que realiza este movimento, isto é, o seu atravessamento pela ação política. Na aber-
de distinguir entre a “sua” e as “demais” ideo- tura do ensaio, a autora afirma que não utili-
logias, requer sempre a construção de um ou- zará definições formais para delimitar o cam-
tro corpo de opiniões. po, e mais, sem que faça referência ao conjun-
to de práticas em saúde que a cada momento
adquirem especificidade, a abertura de um
novo espaço, como ela diz.
Assim, existem as “práticas sanitárias brasi-
leiras”, e na relação com estas, a saúde coletiva
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ocupa uma posição. Só por isso, por essa pri- tural. Não seria por esta especificidade, a de
meira delimitação, a saúde coletiva não se põe participar da organização da vida social, que à
como equivalente à “saúde pública”, tal como Saúde Coletiva se recusaria o estatuto de cien-
também pensou Minayo15, mas antes ocupa tificidade. Parece que desta condição padece-
um lugar. Tal especificidade se expressa como riam todas “as” ciências, escapando dos influ-
tendência em se ver ampliada e recomposta em xos culturais e históricos – e mais ou menos –
seu espaço de intervenção, quer dizer, o do seu tão somente as ciências básicas.
campo de saber e de prática. Se amplia-se e se Por este motivo, Donnangelo6 afirmará a
recompõe, é de produção e reprodução que se transparência e o caráter político da Saúde
trata, que encontrará, todavia, outra forma de Coletiva, que não podem ser ocultados por
especificidade. A produção do conhecimento um estatuto de cientificidade, e a um só tem-
em Saúde Coletiva incorpora o social, não co- po dirá que as práticas que tomam o “coletivo”
mo variável adicional, mas como um campo como objeto tornam-se tributárias de campos
estruturado no qual a doença adquire um es- de saber cujo estatuto não se subordina às
pecífico significado. Esta posição mereceu a ciências naturais.
atenção de Nunes13, quando comentou o ensi- Se não se subordinam às naturais, se su-
no das ciências sociais na graduação médica, bordinarão às sociais e humanas, as mesmas
que deslocaria o social para a periferia da for- ciências humanas (sociologia, antropologia,
mação, e mais, que também na pesquisa a na- direito, economia, psicologia, história, etc.)
tureza social do homem poderia ser vista co- vistas como co-extensivas e em relação com as
mo um acréscimo ao biológico, tão somente. disciplinas da saúde, porque partilham todas
Samaja17, a propósito, nos lembra que os elas a perspectiva da análise do normal e do
fatos sociais, suas normas e mecanismos de re- patológico, dos conflitos, das regras e dos sig-
gulação são tão reais quanto os fatos biológi- nificados. Além disso, pela agregação dessas
cos. Ele insistirá nesta temática para marcar a disciplinas sociais ao seu próprio campo, exa-
existência de espaços sociais, que são em tudo cerbam o desafio de desmedicalizar a saúde
diferentes dos biológicos, e diz isso no mo- (Foucault19, Samaja17).
mento em que a “literatura médico-social pa- De fato, não se negam às ciências humanas
recia apagar estas decisivas diferenças sob o o seu atravessamento pela vida social genéri-
rótulo abstrato de ‘o social’”. ca, nem elas se livram das polêmicas ou de cer-
Seria, então, este campo estruturado no tas perturbações; e, no entanto, admitem um
qual a doença adquire significado, isto é, pela capital comum de aquisições, conceitos, mé-
sua internalidade, que a Saúde Coletiva en- todos e procedimentos de verificação. O pro-
contraria as condições de sua produção e re- blema com elas é que freqüentemente revelam
produção. Assim vista, esta Saúde Coletiva é coisas ocultas e às vezes reprimidas, e costu-
produto histórico. Para Laurell & Noriega18, mamos nos livrar de verdades perturbadoras
também a doença pode ser vista como produ- afirmando que não são científicas e sim políti-
to histórico porque a questão do desgaste do cas. Tal proximidade e atravessamento garan-
corpo vem intimamente articulada à produ- tiriam às ciências humanas uma instabilidade
ção e à reprodução dos modos de viver e tra- essencial, que é como uma permanente tensão
balhar. entre saberes e poderes (Foucault19, 20, Bour-
Ademais disso, Donnangelo6 ainda vê as dieu21).
práticas da Saúde Coletiva como parte da his- Restaria lembrar a questão dos objetos que
tória política brasileira, não negando que o comparecem neste campo. Donnangelo6 sus-
campo é imediatamente atravessado por dis- tenta que a permanente recomposição das prá-
tintas posições diante das possibilidades de ticas sanitárias propõe novos objetos à pesqui-
organização da vida social. sa em saúde coletiva, ressaltando que as práti-
Ora, organizar a vida social para que se or- cas de investigação não são uniformes, encon-
ganizem os modos de viver e trabalhar é pos- trando no novo espaço aberto, todavia, ime-
sibilidade que igualmente se dá como cultura, diatas condições de desenvolvimento. A auto-
isto é, de certa forma a produção de redes sim- ra concluirá que esta produção é marcada por
bólicas de elaboração e transmissão de expe- variações temáticas, pela ênfase em distintos
riências e aprendizagem (Samaja17). Ou, co- objetos e em distintos campos do saber, por
mo disse Vieira Pinto2, conhecer é condição variações metodológicas e de análise, por dis-
de existência e, nesta condição, é produto cul- tintas opções sobre modelos experimentais.
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Botazzo, C.

Se os modos de investigar não são os mes- saúde e veremos como este processo se acha
mos nos diferentes campos do conhecimento, imbricado com a ideologia. O autor pensa um
descrever objetos em Saúde Coletiva é proble- plano primordial da reprodução dos proces-
ma e exercício diverso que o colocado para a sos sociais e o localiza como o da reprodução
pesquisa biomédica, médico-cirúrgica ou ci- das relações de produção, incluindo o regime
rúrgico-odontológica, porque a teoria do pro- da propriedade e as formas de distribuição
blema que terá de ser construída é diferente dos meios produtivos. Ora, não sendo a socie-
em um e em outro campo de investigação. dade por inteiro composta pela classe dos pro-
Mesmo fortemente gravitada pelas ciências prietários, ao contrário sendo os expropriados
humanas, convém lembrar que a Saúde Cole- desses meios o maior contingente, resulta
tiva não se esgota nelas, como afirma Ferrei- aberto o conflito entre as classes sociais.
ra16, e que seu atravessamento pelas contradi- Zizek8 acerca disto dirá que são numerosas
ções da vida social a instalam, no limite, como as tentativas de conceber o antagonismo social
um campo crítico em sua práxis. Decorrente- como coexistência de dois pólos num ambien-
mente, um específico modo de se articular te neutro, um dogmatismo que colocaria lado
com a (re)produção social, somente possível a lado a ciência “burguesa” e a ciência “prole-
por meio do seu sujeito. tária”. Esses pólos, todavia, não encontram ja-
Paim & Almeida Filho12 apresentam como mais a possibilidade da sua convergência, e re-
questão preliminar, na análise que fizeram so- sulta que a polaridade se verá rompida porque
bre os efeitos do neoliberalismo, a de conside- o ambiente que a cerca, não sendo neutro, é o
rar como os sujeitos que atenderam à convo- lugar de um terceiro enunciado e jamais o
cação para a discussão de tais efeitos vêem o campo neutro compartilhado pelas duas posi-
campo social da saúde, e acrescentam a preo- ções antagônicas (sejam sexuais ou de classe).
cupação com o tipo de profissional que atuará Do mesmo modo, no que concerne à ciência
nesta nova realidade, quer dizer, a do trabalha- ela não é neutra, quer dizer, seu conhecimento
dor da saúde e sua qualificação e como nele se objetivo não se acha por inteiro à disposição
reproduz (e como ele produz) uma teoria so- de todas as classes sociais. A ciência é una, sem
cial da saúde. dúvida, mas o que ela expressa é afetado pela
Faltou acrescentar que neste movimento luta de classes, a luta por esta ciência única,
encontra-se a possibilidade de entender a tão por quem irá apropriar-se dela ou dos seus
propalada “crise da saúde pública” como ideo- produtos.
logia, lembrando Zizek8 para quem é procedi- Da saúde se poderia dizer a mesma coisa,
mento ideológico reduzir a crise a uma ocor- mas o modo como se articula com a reprodu-
rência externa, em última instância, contin- ção social precisa ser mais bem especificado.
gente, deixando assim de levar em conta a ló- Samaja17 distingue quatro esferas ou dimen-
gica inerente do sistema que a gerou. sões que comportam a reprodução da existên-
Isto indicaria que a compreensão de qual- cia social, como sendo: 1) reprodução biológi-
quer crise se encontra fora da ciência, que não ca; 2) reprodução da autoconsciência; 3) re-
seria produtora de sujeitos ou, como diz Cas- produção econômica, e 4) reprodução ecoló-
toriadis7, a ciência não descobre cientistas, gico-política. Não são estanques e, ao contrá-
mas coisas. Isto é comentar de outro modo a rio, cada um deles contém os outros, funcio-
conhecida expressão de Althusser3 para quem nam reciprocamente como insumos ou é a sua
todo discurso científico é um discurso sem su- condição de efetivação. Podia parecer que a
jeito, “pois não existe ‘sujeito da ciência’, a não saúde comparecesse exclusivamente no pro-
ser numa ideologia da ciência”. cesso da reprodução biológica, porque nesta
Isto é fácil de compreender, se levarmos dimensão se localizaria o pólo clínico desta
em conta que a ciência é produto da razão, en- saúde e também todas as suas profilaxias. No
quanto a ideologia interpela os sujeitos nos entanto, estas práticas se acham profunda-
seus desejos e em suas práticas, necessitadas mente penetradas pela cultura, a segunda di-
permanentemente de justificativas e racionali- mensão, e depois podemos ver que compare-
zações. Aqui também reside a diferença entre ce, junto com outros conhecimentos e práti-
explicar e compreender, entre objetividade e cas, na reprodução da ordem econômica e, fi-
subjetividade. nalmente, as várias concepções do processo
Samaja17 dedicou todo seu ensaio à abor- saúde-doença circulam com familiaridade no
dagem das relações entre produção social e mundo da política e das relações estatais. So-
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bre essas múltiplas dimensões, a saúde se abre ação que põe em relação às estruturas visíveis
em suas possibilidades práticas e nelas deposi- localizadas na parte superior do aparelho di-
ta seus discursos de verdade, as disputas e os gestório com as vísceras não-visíveis localiza-
conflitos que põem permanentemente neste das mais abaixo, e tudo isto garante a sobrevi-
território os vários sujeitos implicados, a pro- vência do homem naquilo que ele tem de na-
dução e a reprodução de tudo isso, em meio tureza, a preservação ou reposição dos ele-
aos impulsos de conservação e transformação mentos que constituem sua unidade corpórea.
dos modos de existir. Aqui também é produzido o gosto ou a
A saúde comparece neste campo como formação do paladar, porque imediatamente,
parte da (re)produção total da sociedade. As- para o homem, o ato de se alimentar é em tu-
sim, o seu modo de ser não se esgota na forma do atividade social, isto é, produzida como
clínica mas, antes, encontra na interface com cultura. Lembrando Marx23, pode-se dizer
outros dispositivos, com os quais partilha as que a atividade e o gozo também são sociais,
noções de normal e patológico, certo destino tanto em seu modo de existência como em seu
natural (Donnangelo6, Samaja17). conteúdo. Se os sentidos tornam-se capazes de
gozo humano, tornam-se sentidos que se con-
firmam como forças essenciais humanas. Só
De Humana Bucca por isso, a formação dos cinco sentidos é um
trabalho e um produto histórico.
Se afirmamos uma teoria social da saúde, seria Deste modo, para Marx a satisfação e o go-
conveniente pensar as possibilidades de reor- zo humanos, o gozo que lhe propiciam os sen-
ganização da saúde bucal coletiva na mesma tidos, não mais se acham prisioneiros de
perspectiva, pela proposição de novo arranjo “grosseiras necessidades práticas”, pois que es-
teórico-metodológico. tas significam a limitação do sentido. A satis-
As primeiras referências ao que significa fação e o gozo não podem ser tão somente
bucalidade podem ser encontradas no prefá- “necessidades fisiológicas”, posto que para o
cio do As palavras e as coisas. Nele, Foucault19 homem que morre de fome não existe a forma
fez emergir certa cavidade bucal, um palato ou humana da comida e seria impossível dizer
um palácio, em ato de produção e consumo. então em que se distingue esta atividade para
Primeiro, vem sua natureza amorosa, langui- se alimentar de uma atividade animal.
damente considerada Vênus: por ela passam É, pois, como cultura, que a satisfação e o
os beijos e as palavras de amor. Mas se agora gozo bucais esbarram na razão e no desejo:
ela beija e fala, se agora, como dizem Abraham freqüentemente comemos o que não devemos
& Torok22, ela se enche de palavras (e de den- ou o que certa racionalidade recomenda, ou
tes), antes ela estava simplesmente cheia de mais ou menos ou, ainda, não do modo como
seio, no gozo inescrupuloso do corpo do ou- devíamos, de sorte que tudo isto resulta atra-
tro pois, edêntula, é puramente mammalia. vessado pelo psiquismo o que põe o sujeito
Esta boca sedutora, todavia, não permanecerá em conflito consigo e com os outros.
o tempo todo em erótica produção. Logo re- Talvez isto ocorra por uma peculiaridade
velará outras habilidades. Foucault encontrará dessas vísceras bucais e do prazer que elas pro-
seres de viscosidade e podridão, dirá ele, sob porcionam. A este propósito, Brillat-Savarin24
os dentes e a saliva de Eustenes, que antes pu- nos lembra que, ao contrário do gozo genital,
sera em ato de mastigação: ele se havia ali- necessitado sempre de um período de repouso
mentado e já não estava em jejum. entre uma descarga e outra, os prazeres bucais
Nesta breve passagem antevemos os traba- repetem-se incessantemente. Por isso, sem que
lhos bucais – a manducação, a linguagem e a haja dispositivos reguladores, a manducação
erótica – e que são o funcionamento dela, sua pode tornar-se deletéria para o próprio ho-
fisiologia própria e permanentemente enco- mem.
berta. O que se diz para a manducação é signifi-
Poder-se-ia dizer que estes três trabalhos cativo para os demais trabalhos bucais. Produ-
se dão como consumo e produção, num mo- zimos palavras e as consumimos; somos obri-
vimento que envolve o sujeito em permanente gados a pensar naquilo que falamos, e não raro
elaboração na fronteira entre razão e desejo. dizemos o que não queríamos dizer; também a
Assim, manducar, isto é, apreender, triturar, palavra exagerada ou equivocada pode revelar-
insalivar e deglutir, é consumo do mundo, a se deletéria. Do mesmo modo, na relação amo-
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Botazzo, C.

rosa produzimos atos bucais sexuais, a retoma- coisas, e de bocas e dentes as disciplinas apre-
da da função genital primordial (Aberastury25), sentariam mais ou menos as mesmas versões.
o consumo e o deleite com o corpo do outro Não é o que observamos, todavia: nas rela-
(agora consentido), e resulta igualmente outra ções, nas situações e nos contextos, bocas e
vez o conflito entre razão e emoção (porque dentes apresentam contornos e significações
não raro esta boca fará o que não devia ou não diferenciados, consoante se trate de discursos
do modo recomendado, etc.). odontológicos, psicanalíticos, paleo-antropo-
Ora, esses três trabalhos são na realidade lógicos, ou ainda os da mãe que amamenta ou
três dimensões da vida do homem em socieda- – enfim – os do próprio sujeito que experi-
de, e então seria da produção social da boca hu- menta na sua cotidianidade as sensações que
mana que deveríamos falar. Simplesmente por esses órgãos lhe proporcionam.
este acontecimento ela contém as imensas pos- É assim que essa bucalidade se desloca do
sibilidades do seu objeto ou, o que dá no mes- solo odontológico e da carga da disciplina den-
mo, sua fantástica dispersão, a enorme capaci- tária que lhe é próprio, porque a odontologia,
dade que tem de permanentemente ser objeto historicamente articulada como um construc-
de representação e de a um só tempo represen- to biológico, só pode falar dos dentes (e da bo-
tar a vida do homem para ele mesmo. Só por ca) dos homens como natureza e assim igual-
isso, por este deslizamento, já se encontra essa mente naturalizar (odontologizar) o adoeci-
boca em pertencimento às ciências humanas. mento deles e os procedimentos que adota.
Aqui nos afastamos do terreno da biologia, Esta é a sua política, ou a representação políti-
embora não seja possível ignorar a condição ca do homem que incessantemente elabora, e
de vizinhança. Lembremos: estamos tratando pela mesma razão nos parecem canhestros
de vísceras – mucosas, dentes, glândulas, mús- seus discursos sociológicos (ou os econômi-
culos – que em sua delicada solidariedade ga- cos, os psicológicos, etc.), assim como as arbi-
rantem que a boca não apareça como um ór- trariedades e artificialismos que emprega para
gão ou massa tissular homogênea, mas confi- garantir a separação do seu objeto a um só
gure um território. tempo do corpo do homem e da sociedade
Na forma das ciências humanas, propicia a (Botazzo26, 27).
emergência de novos objetos. Um objeto não Do que tratam, então, esses diferentes dis-
é unívoco em sua materialidade, nem suscita cursos? Primeiramente devemos reconhecer
nos sujeitos discursos assemelhados, a partir que não há lugar, no discurso odontológico,
de pretensa existência objetiva e exterior a im- para uma fisiologia bucal, de sorte que ime-
pressionar os sentidos. Um objeto é já um cons- diatamente ficam ressaltados os componentes
tructo, que não aguarda a ordem da sua liber- mecânicos da sua prática, dos quais decorre a
tação, encarnado como pura objetividade, mas ênfase nas técnicas e no adestramento da mão.
existirá nas condições positivas de um com- Fracassaram as tentativas de compor uma
plexo de relações, entre as quais a que tem com leitura estomatognática da sua clínica e os que
um sujeito. As condições para que surja um ainda insistem nesta abordagem não são mais
objeto de discurso, as condições históricas pa- que resíduos na profissão. Por isto, uma pri-
ra que se possa dizer alguma coisa, para que meira tarefa da saúde (bucal) coletiva seria a
várias pessoas possam dizer coisas diferentes de recuperar essa fisiologia e apresentá-la na
dele, para que se possa inscrevê-lo numa rela- forma dos trabalhos que a boca realiza.
ção de parentesco com outros objetos – as se- Difícil ultrapassagem, sem dúvida, porque
melhanças, as vizinhanças, o distanciamento, estamos acostumados com as teorias odonto-
a diferença, a transformação – essas condições lógicas, o que significa centramento dentário.
são numerosas e o que se estaria a tratar não Em si mesmo, este centramento não seria um
seria então esse horizonte único de objetivida- obstáculo epistemológico. Ocorre, todavia,
de, mas regras, prescrições, medidas de discri- que, de não haver fisiologia no lugar, a não ser
minação e de repressão presentes na prática como embriologia, a função dentária, que não
cotidiana, na jurisprudência, na ordem reli- é equivalente à função bucal, se vê privada de
giosa, nas descrições patológicas, nos códigos, norma e de normalidade.
nas receitas, nos tratamentos e nos cuidados Entendamos este ponto. A função, sendo
(Foucault20). algo que não é visto mas cujo efeito é sentido,
Se assim não fosse, de bocas e dentes desde em primeiro lugar não expressa relação causal
sempre se teria dito mais ou menos as mesmas de tipo simples, mas antes opera com base nu-
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ma rede causal, ampla o suficiente para conter algum efeito, esta boca mecanizada torna, ob-
ações individuais (a parte) que exibem a mes- viamente, a manducação um ato mecânico e
ma propriedade geral no âmbito do coletivo exterior ao próprio homem. Os discursos
(o todo). Por isso se poderá dizer que a parte é odontológicos cessam diante do homem des-
funcional em relação ao todo e, mais, que o dentado (e nele se esfuma sua ciência política,
conceito de função é inseparável do de organi- suas profilaxias e a porção pública da sua clí-
zação e de morfogênese. Neste nível as rela- nica).
ções de funcionalidade podem ser vistas como A inseparabilidade das vísceras da boca e o
causalidade recíproca, em que as causas e os conceito de função bucal, os trabalhos que
efeitos se configuram como totalidade relacio- realiza em meio a regulações éticas e sociais,
nal no qual a ação das partes reproduz o todo. poderiam, ao contrário, representar a possibi-
Isto vale quer consideremos o órgão em rela- lidade de a odontologia se reconciliar inicial-
ção com o organismo ou o do indivíduo com mente com a clínica (pois função e norma, no
o coletivo de indivíduos (Samaja17). caso dos seres vivos, implicam a noção de
É deste modo que o conceito de função en- meio interno e a realidade de sua comunica-
contra no conceito de norma o seu par, por- ção sistêmica), e depois reconciliar-se com a
que se o organismo responde a estímulos ou a sociedade e consigo mesma.
eles se adapta, este organismo age não apenas
segundo regularidades, mas segundo condi-
ções de existência e a possibilidade de encon- Notas para uma conclusão
trar normas médias de ajustamento que lhe
permitem exercer suas funções. Essas normas As explanações precedentes permitem deduzir
médias são configurações culturais, e nelas é os seguintes pontos, que a pesquisa em saúde
que emergem os conceitos de normal e pato- bucal coletiva deveria considerar. Eles consti-
lógico e todas as regulações éticas ou sociais tuem as superfícies de emergência da bucali-
que atuam sobre os homens, os quais se en- dade ou a sua condição de possibilidade:
contram mais ou menos liberados dos influ- 1) Uma teoria social da saúde (ou a teoria da
xos “biológicos” ou nos quais as regulações saúde coletiva) se afirma pela proximidade
biológicas se acham mais ou menos suprimi- que mantém com as ciências sociais e huma-
das ou superadas (Samaja17, Foucault19, Can- nas, das quais toma por empréstimo seus mé-
guilhem28, Fernandes29). todos e referências, por meio dos quais orga-
Na teoria odontológica falta exatamente niza a relação com o campo biomédico. Sua
este conceito de função. A função dentária ne- categoria central é a de reprodução social.
la presente não dá conta de recuperar o ho- 2) A boca humana participa (é parte) da re-
mem por inteiro. Tendo por base o órgão den- produção social de específico e singular mo-
tário isolado, nele encontra espaço suficiente do. De fato, nenhuma outra parte da nossa
para sustentar sua etiopatogenia restrita e, a economia animal é tão presente na organiza-
partir dela, suas noções sobre o homem em ção e nos eventos e fatos sociais todos – e de
sociedade, seus modos de ser, seus conflitos, todos os eventos que cercam a vida de um su-
sua relação com o próprio corpo (e a própria jeito – que esta. Se os seus trabalhos recobrem
boca). É neste momento que a odontologia se tão amplamente a vida do homem em socie-
desvela como biopolítica, com suas regras de dade, a um só tempo a afastam dessa econo-
limpeza e suas prescrições pastorianas (con- mia e das demais vísceras – suas primas – esse
trole da bucalidade na criança, para ter bons interiora cujo funcionamento acompanha-
dentes). mos: sua autonomia está para o sujeito.
Por aqui não há como pensar em função e 3) A boca humana é lugar institucionalizado
norma porque simplesmente as peças dentá- e lugar de função institucional, tanto quanto o
rias podem ser removidas por completo, sem é a Saúde Coletiva. Quando Campos9 comen-
que este drástico evento ameace a existência tou os perigos desta institucionalização, antes
do indivíduo. Não há norma se não há o ór- deveria ter dito aparelhamento: é esta saúde
gão, porque falta o objeto por meio do qual coletiva morta que encontramos em muitos
será produzido um efeito. Eis a desimportân- sistemas locais, governos estaduais, departa-
cia social e econômica dos órgãos dentários mentos acadêmicos etc. Uma instituição se re-
naturais. Substituídos pela dentadura artifi- produz e também reproduz os homens bons
cial, e assim podendo garantir a produção de (palingenesia), que se encarregam disto (Bo-
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Botazzo, C.

tazzo30). A materialidade do processo saúde- 5) A boca humana é corpo humano. Produ-


doença indica que a doença e o doente são ção e reprodução são eventos que se realizam
produtos históricos. Se a boca participa da re- no corpo do homem, pelo corpo e para o cor-
produção social, o faz em meio a prescrições, po. É aqui que os fenômenos da saúde e da
ritmos, modos, tempos; nisto ela é instituída. doença se dão como expressão da cultura (in-
E se ela trabalha (produção e consumo), deve cluindo o psiquismo) e se fundem nos nexos
se desgastar conforme as solicitações e as pos- poderosos dos modos de produzir a existên-
sibilidades (ou as condições de existência) do cia. Suporte de ações (e das relações) sociais;
sujeito que está vivo, trabalha e fala. Assim vis- são inseparáveis as suas instâncias sensórias e
ta, esta bucalidade vem acomodar-se confor- as da razão. Duplo gozo, pois que é o gozo que
tavelmente numa Teoria Social da Saúde, esta lhe proporcionam suas mucosas, músculos e
mesma da qual Cecília Donnangelo fez o in- glândulas, como Freud mesmo teria dito, e
superável desenho e da qual fez aparecer sua também o gozo da coisa pensada, uma idéia,
instabilidade essencial como modo de existir um raciocínio ou um cálculo. Ele se reveste de
(pois essa instabilidade essencial é antes cons- cultura e civilização e, nesta, se expressam os
tituída no objeto, isto é, no modo de ser do controles da sua fisiologia, quer dizer, é no
homem). processo civilizador que se instauram disposi-
4) As variações temáticas, a eleição de obje- tivos de controle dos modos de comer, a dis-
tos, a opção por uma ou outra técnica são ex- posição no leito, o controle dos odores, a de-
pressões de uma prática social dotada de poli- positação das suas excretas, a efetivação da sua
ticidade. Isto se evidencia no discurso odonto- limpeza (Elias33, Douglas34). Para si, é um va-
lógico, a um só tempo sincrônico e diacrôni- lor de uso, mas não apenas. O corpo é a (úni-
co. A odontologia se perfila com o pensamen- ca) propriedade do sujeito, o bem que ele dis-
to que lhe é contemporâneo (a episteme de põe para efetivar-se no mercado de trocas. Sua
uma época ou a resposta a por que se pensa o força de trabalho (energia física e psíquica) é a
que pode ser pensado e do modo como é pen- mercadoria assim disposta. O corpo para si é
sado, e não de outro), mas não se põe limites valor de uso corporificado e disponível social-
na recorrência ao passado: busca Pierre Fau- mente como valor de troca. Talvez se explique
chard do início do século 18 para ser o Pai no o porquê de tantas polêmicas para resolver se
final do século 19, quando já não havia vanta- a saúde é mercadoria, porque ela é valor de
gem teórica nele. Em Fauchard, os dentes são uso, sem dúvida, mas não se entende qual a
causa de perturbações no corpo do homem e troca que proporciona (Campos35). Saúde é
o apodrecimento (caries) bucal é conseqüên- estar bem e manter-se com capacidade produ-
cia das práticas deletérias do sujeito e do mau tiva, disposta como possibilidade de ação. A
uso e do mau trato que faz com sua própria doença, ao contrário, limita, tolhe, cerceia ou
boca (Fauchard31). A cariologia contemporâ- dificulta a realização desta capacidade. Assim,
nea é expressão acabada desta forma de pen- o corpo adoecido é mercadoria defeituosa, com
sar: a um só tempo desce até as minúcias da escasso ou nenhum valor (o sujeito pode se
biologia molecular, mas não recusa adotar o conformar com seu estado, não obrigatoria-
sujeito como o primeiro inimigo dos próprios mente o comprador). O que esperam os usuá-
dentes. Por isso, numa vertente a cariologia se rios dos serviços de saúde? Esperam recuperar
dá ao modo da ciência; na outra, como ideo- essa capacidade, isto é, incrementar valor ao
logia que busca cientificizar-se. Pode-se regis- próprio corpo, se capitalizar. É neste duplo
trar esse movimento, que é a produção do co- entendimento, o de estar ligado ao processo
nhecimento originada nos Departamentos de civilizador e ao mercado, que o corpo compa-
Odontologia Social: neste lugar o aluno tem rece à clínica, bocas inclusive, nem deveria es-
confirmado o que é o paciente e sua doença, a tranhar que assim seja.
“realidade” das políticas públicas e o que pode São nessas superfícies e interfaces que uma
ou não ser praticado nos serviços de saúde, clínica ampliada, a de acolhimento e desvio
dando concretude (e justificativa) ao recorte e (Souza36), pode se localizar e ter sua possibili-
encolhimento da assistência odontológica no dade de efetivação.
SUS (Narvai32).
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