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Sobre duas proposições relacionadas à clínica e à reforma

psiquiátrica

Paulo Amarante

O objetivo deste artigo é refletir sobre duas proposições bastante comuns. A


primeira afirma que a reforma psiquiátrica é tão-somente uma reestruturação do modelo
assistencial psiquiátrico. A segunda defende que ela, particular¬mente se ancorada na
tradição fundada por Franco Basaglia, descuidou-se da clínica, privilegiando apenas a
relação e/ou as transformações sociais.
Muitos autores, de fato, definem a reforma psiquiátrica como algo restrito à
reorganização de serviços e vinculado à mera reestruturação do modelo assistencial
psiquiátrico. Grosso modo, ela tem sido sinônimo de modernização das técnicas
terapêuticas, quando não de simples humanização das característi¬cas violentas da
instituição asilar. Exemplo dessa última condição foi a adoção, pela Organização Pan-
americana da Saúde em sua "Declaração de Caracas" (OPAS 1992), do termo
reestruturação da assistência psiquiátrica, que desde então é utilizado com pouca ou
nenhuma crítica no meio profissional.
O termo "reforma" implica algumas limitações e favorece mal-entendidos, uma
vez que, historicamente, tem sido associado a transformações superestruturais e sem
profundidade. Ainda assim, é uma expressão consagra¬da internacionalmente no âmbito
das políticas públicas de saúde, a exemplo da Inglaterra, da França, da Espanha e da
Itália, para citar apenas alguns dos países que adotaram oficialmente as reformas
sanitária e psiquiátrica como estratégias de transformação.
Essa boa aceitação pode ser explicada pelo próprio termo, que induz a pensar em
"mudança de aparência" ou metamorfose, na designação proposta por Robert Gastei
(1978a, 1978b, 1978c, 1987), além de ser o que congrega a maior possibilidade de
adesão com as menores resistências. Com uma expres¬são mais contundente, por
exemplo, "revolução" — mesmo que nos sentidos propostos por Thomas Kuhn (1975)
ou Guattari (1986) - teríamos "revolu¬ção psiquiátrica", certamente mais adequada à
pretensão atual do projeto, como veremos, mas que, em contrapartida, causaria arrepios!
Essa amplitude do conceito de reforma, no entanto, não tem muito tempo, nem é
a mesma em todos os países. No Brasil, a expressão reforma sanitária generalizou-se
após a histórica 8a Conferência Nacional de Saúde, quando passou a fazer parte da
agenda política do Movimento Sanitário. Por exten¬são, e com a mesma dimensão
estratégica, isto é, voltada para a construção de viabilidade política e social, a expressão
reforma psiquiátrica foi adotada pelo (p.103) Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental, pouco depois transformado em Movimento por uma Sociedade sem
Manicômios.
Tenho buscado desenvolver um conceito de reforma psiquiátrica que supere a
idéia de aggiornamento, de uma simples reforma administrativa ou técnica do setor de
saúde mental ou, se preferirem, de desinstitucionalização, na interpretação norte-
americana. A reforma pode assumir a concepção de transformação estrutural, em
analogia com o conceito de reforma sanitária desenvolvido por Sônia Fleury Teixeira
(1989). Entendo por reforma psiquiátrica um processo social complexo, com a
amplitude e a dinâmica que o termo com¬plexidade adquiriu, nas últimas décadas, no
âmbito da filosofia e da história das ciências. Sendo um processo, é antes de tudo
permanente, não tem fim predeterminado e articula várias dimensões simultâneas e
inter-relacionadas. Abordaremos sucintamente algumas dessas dimensões.

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A dimensão epistemológica se refere ao conjunto de questões teórico-
conceituais concernentes à produção de conhecimentos que fundamentam e autorizam o
saber/fazer médico-psiquiátrico. Incluem-se aqui a revisão tanto do conceito de ciência
como produção de verdade - ou de "neutralidade" das ciências - quanto dos conceitos
produzidos pelo referencial epistêmico da psiquiatria: isolamento terapêutico,
degeneração, alienação e doença mental, normalidade e anormalidade, terapêutica e
cura, entre outros.
Dois conceitos têm sido fundamentais nesse empreendimento epistemológico. O
primeiro é o de desinstitucionalização na tradição basagliana que, superando a
experiência norte-americana, designa as múltiplas formas de tratar o sujeito em sua
existência e em relação com as condições concretas de vida. Nessa tradição, a clínica
deixa de ser o isolamento terapêutico ou o tratamento moral pinelianos para se tornar
criação de possibilidades, produção de sociabilidades e subjetividades. O sujeito da
experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, incapaz de obra ou de
voz, torna-se sujeito e não objeto de saber.
A desinstitucionalização não se restringe à reestruturação técnica, de serviços ou
de novas e modernas terapias. Torna-se, nessa concepção, um complexo processo de
estabelecer novas relações e reconstruir saberes e práticas. Acima de tudo, um processo
ético-estético, de reconhecimento das situações que produzem novos sujeitos de direito
e novos direitos para os sujeitos.
Se o conceito de doença - como muitos outros produzidos pela psiquiatria - é
posto em discussão, transformam-se as relações entre as pessoas envolvidas, mudam-se
os serviços, os dispositivos e os espaços e alteram-se as práticas jurídicas. O sujeito, não
mais visto como alteridade incompreensível, torna possível outras formas de
conhecimento, que por sua vez produzem no¬vas práticas. A superação do internamento
manicomial transforma o "curso natural da doença" em um ciclo complexo que se
retroalimenta.
Foi no contexto teórico das ciências naturais e do sensitivismo, inspirado tanto
em Lineu e Buffon quanto em Locke e Condillac, que Philippe Pinei produziu seu
Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale ou Ia manie, (p.104) no qual
apresentou o conceito de alienação mental e consolidou a prática sistemática do
internamento da loucura. Embora o conceito de alienação não signifique ausência
abstrata de razão, mas somente contradição na razão, como afirmava Hegel, essa
contradição impossibilita a razão absoluta. Portanto, segundo Pinel, aquele em cuja
razão existe tal contradição é um alienado, o que o torna incapaz de julgar e de escolher;
incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a liberdade e a cidadania implicam direito e
possibilidade de escolha.
Em uma dimensão técnico-assistencial, podemos argüir: qual o modelo
assistencial decorrente de um conceito que pressupõe tal contradição na ra¬zão, tal falta
de juízo? Não seria o sequestro desse não-mais-sufeito ou ainda-não-sujeito? A resposta
é óbvia: o manicômio, expressão de um modelo que se calca na tutela, na vigilância
panóptica, no tratamento moral, na disciplina, na imposição da ordem, na punição
corretiva, no trabalho terapêutico, na custódia e na interdição. Como alienado (alheio,
ausente), o paciente estaria incapaz até mesmo de decidir pelo tratamento, motivo que
justificaria que a decisão fosse tomada em seu lugar. O tratamento deveria ser realizado
em instituição fechada, tanto porque o isolamento favoreceria a observação do "objeto
em seu estado puro" - sem as indesejáveis interferências da vida social — quanto
porque seria terapêutico, já que as mesmas interferências que prejudicam a observação
contribuiriam para as causas da loucura.

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O asilo, esse espaço cientificamente ordenado, como insistiam Pinel e Esquirol,
seria, portanto, o lugar ideal para o exercício do tratamento moral, da reeducação
pedagógica, da vigilância e da disciplina. Tratado, o alienado perderia sua condição
miserável e somente então poderia ser considerado cidadão, homem livre, pleno de
direitos e deveres. Passamos assim à dimensão jurídico-política do processo: rediscutir e
redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, direitos humanos e sociais.
Na dimensão cultural, podemos resumir o processo de reforma psiquiátrica da
seguinte maneira: seu objetivo maior não é a transformação do modelo assistencial, que,
como vimos, é um elemento de uma de suas dimensões, mas a transformação do lugar
social da loucura, da diferença e da divergência.
As representações sociais associam tais comportamentos à incapacidade social, à
impossibilidade de estabelecer trocas sociais. A dimensão estratégica, assim, diz
respeito ao campo cultural, ao conjunto de intervenções e estratégias que visam
transformar o lugar da loucura no imaginário social. Com esse objetivo, existem
associações de usuários e familiares, de amigos e voluntários, cooperativas sociais
regulamentadas com lei do Congresso Na¬cional, e muitas outras formas de trabalho,
atuações com a comunidade, projetos, festas, rádios, vídeos, camisetas etc. Um exemplo
importante é a criação do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Desde 1988, a data é
co¬memorada em todos os estados, em praticamente todas as capitais e principais
cidades. Em muitos lugares, a comemoração não dura mais apenas um dia, mas uma
semana ou até mesmo um mês. (p. 105)

Complexidade e reforma psiquiátrica


Umberto Maturana, Ilya Prigogine, Isabelle Stengers, Edgar Morin e Henri
Atlan, para citar apenas alguns poucos, são exemplos de autores que frequentemente nos
auxiliam nas reflexões sobre a reforma psiquiátrica, no desafio presente e fundamental
de ressituar a dimensão das relações entre conhecimento e objeto.
Advém daí outro conceito fundamental: o de complexidade. Se adotamos a
noção de complexidade para lidar com o conceito de doença, este deixa de ser um
objeto naturalizado, reduzido a uma alteração biológica ou de outra ordem simples para
se tornar um processo saudei enfermidade.
A noção de complexidade não deve ser confundida com a de complica¬ção.
Complexo não é sinônimo de complicado. Isabelle Stengers (1979) utiliza a noção de
complexidade como uma questão que "põe em jogo e explica os riscos que o conceito
corre em relação ao observador". Para a autora, essa noção aponta para "a necessidade
eventual de inventar novos tipos de problematização que o operador não autorizava".
Não existe um paradigma da complexidade, pois ela é tão-somente uma atitude de
"nova aliança" entre as ciências naturais e humanas. Do ponto de vista construtivista, a
complexidade aponta para a superação do paradigma clássico inaugurado com a
dualidade cartesiana de causa e efeito, do conhecer o objeto em sua verdade, das
soluções definitivas - uma vez que o próprio problema é construído a partir da solução -,
e traz à luz mais problemas que soluções. Ela atende ao desafio de resgatar a
singularidade da operação que o conceito oculta, sem que esse desmascaramento
signifique "descobrir" a verdadeira realidade do objeto, mas sim reabrir a possibilidade
de sua recomplexificação. Essa operação surge como tentativa de superação do
"especialismo" dos saberes e da hegemonia da ciência na apreensão do real. A
complexidade "não é, então, nem nova visão do mundo nem novo tipo de teoria, mesmo
se ela implica novas visões dos saberes e se refere a teorias. A questão da complexidade
é prática: ela surge quando "um novo encontro empírico [...] impõe um novo

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questionamento do poder atribuído a um conceito e atualiza uma dimensão da
interrogação prática que tal conceito ocultava" (idem).
A noção de complexidade tem como objetivo pôr em cena e problematizar a
posição do sujeito. Os mitos da neutralidade, do distanciamento crítico e da autonomia
da ciência são postos em discussão no questionamento das relações entre ciência e
poder, já que a impressão de que as ciências têm uma identidade é, em si mesma, um
efeito de poder, assim como o é a aceitação de que as ciências são uma construção
neutra não associada à história.
No cerne do processo de reforma psiquiátrica existe, portanto, uma importante e
contemporânea discussão sobre as ciências. A psiquiatria foi fundada (p. 106) em um
contexto epistemológico no qual a realidade era um dado natural, capaz de ser
apreendido, mensurado, descrito e revelado, e a ciência era sinônimo de produção de um
saber positivo, neutro e autônomo: a expressão da verdade! A partir de então a
psiquiatria vem contribuindo, tanto no aspecto conceituai, com a construção de
conceitos como degeneração, cretinismo, idiotia, quanto no aspecto prático, pela
invenção do manicômio, do tratamento moral e das terapias de choque, para a
consolidação de um imaginário social no qual a diferença é associada à anormalidade.
A estratégia de desinstitucionalização proposta por Franco Basaglia se inscreve
nesse contexto de superação paradigmática, com a conseqüente abertura de um novo
contexto prático-discursivo sobre a loucura e o sofrimento humano. Ao tornar possível a
recomplexificação da experiência denominada loucura, contribui com estratégias
cognitivas e práticas para a teoria das ciências e do conhecimento. Dentro do mesmo
propósito está a discussão iniciada em Gorizia, que procurou desenvolver uma crítica e
uma ação política sobre o papel e a função dos técnicos na produção e reprodução das
práticas e conceitos tradicionais.
Em "A doença e seu duplo" (Basaglia &C Basaglia, 1982b) e em "A maioria
desviante" (Basaglia & Basaglia, 1982a), Franco e Franca aprofundaram a ideia de
doença entre parênteses - a redução analógica de Edmund Husserl -, que significa a
suspensão do conceito e implica a possibilidade de novos contatos empíricos com o
fenómeno em questão. A psiquiatria deixou o sujeito entre parênteses para se ocupar da
doença. Para Basaglia, no entanto, a doença é que deveria ser posta entre parênteses
para que pudéssemos nos ocupar do sujeito em sua experiência.
Pôr a doença entre parênteses não significa sua negação, negação de que existe
algo que produz dor, sofrimento, diferença ou mal-estar, mas sim a recusa à explicação
psiquiátrica, à capacidade de a psiquiatria dar conta do fenómeno com a simples
nomeação abstrata de doença. A doença entre parênteses é ao mesmo tempo a denúncia
social e política da exclusão e a ruptura epistemológica com o saber naturalístico da
psiquiatria. Para Rotelli, "o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um
objeto fictício, a doença, da existência global e complexa dos utentes e do corpo social.
Sobre esta separa¬ção artificial se construiu um conjunto de aparatos científicos,
legislativos, administrativos (precisamente a instituição) todos referidos à doença"
(Rotelli 1990a: 28). A reforma psiquiátrica representa uma ruptura fundamental com
essa separação.
Assim, ao considerar a loucura como doença, erro absoluto, distúrbio da razão,
perda do juízo, incapacidade civil ou irresponsabilidade social e jurídica, a psiquiatria
clássica criou para o louco um lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais
(Rotelli 1990b), cuja expressão mais radical é o manicômio. (p.107)

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A clínica na reforma psiquiátrica
Como já foi dito, é muito freqüente ouvir que a reforma psiquiátrica não
consi¬dera a dimensão clínica ou que a experiência italiana inaugurada por Franco
Basaglia, embora tenha sido importante como fato e denúncia política, "se descuidou da
clínica". Ao concluir seu último livro, pouco antes de falecer, Franco Basaglia disse que
seu maior desejo era que a história do movimento liderado por ele não fosse contada
com base em datas, portarias ou atos oficiais, mas pelas histórias de pessoas, de muitas
pessoas cujas vidas tivessem sido transformadas por seu trabalho. Não parecer haver
nessa atitude um descuido com a clínica. Basaglia se preocupava concretamente com os
sujeitos, e não com suas doenças. Essa é uma preocupação rigorosamente clínica, mas,
como veremos, de uma outra forma de pensar e fazer a clínica.
A primeira questão levantada por Basaglia tinha relação com o conceito e com a
constituição da clínica. O que é e como nasceu a clínica? Ora, a clínica já foi um
produto do método de conhecimento empiricista/sensitivista - observar, descrever,
comparar, classificar -, cujo principal objetivo era conhecer a doença, fato natural.
A necessidade epistemológica de isolamento possibilitou que o médico e o
alienista tivessem disponíveis, para observação sistemática e contínua, em um só lugar e
por todo o tempo, todas as modalidades de doenças e sintomas. Essa relação com a
doença (e não com os sujeitos) ao lado do leito, no dia-a-dia da instituição, fundou a
clínica. Clínica vem do grego klinus - leito ou cama - e contém o sentido de inclinar-se,
por extensão, estar junto ao leito durante a evolução da doença. Esse inclinar-se ocorreu
no espaço da internação: a clínica nasceu de uma relação com a doença como fato
objetivo e natural e como fenômeno institucionalizado, por isso mesmo produzido e
transformado pela própria institucionalização.
A loucura internada, institucionalizada, passaria a ser moldada pela própria ação
da institucionalização: "És um demente precoce!", afirmava o alienismo. Após alguns
longos anos de institucionalização, a demência nele se assentava. Fazendo uso de uma
analogia baseada em Stengers, tratava-se do fenómeno da testemunha fidedigna: o efeito
seria produzido tanto pela teoria quanto por sua ação prática.
Sabemos que Pinel foi um dos responsáveis pela fundação não apenas da clínica
psiquiátrica, mas também da moderna clínica médica, conforme de¬monstram Michel
Foucault (1963b) e Bercherie (1980). Segundo eles, Pinel fundou a tradição da clínica
como orientação consciente e sistemática.
A clínica, portanto, valorizava originalmente a relação do observador com o
objeto natural denominado doença. O objetivo era perceber os sintomas fundamentais e
verdadeiros e captar a essência da natureza deformada que era a doença. Por esse
motivo é que se a doença é questionada, posta entre parênteses, no cenário da reforma
psiquiátrica, a clínica também tem de ser (p.108) desconstruída e transformada
estruturalmente, uma vez que a relação a ser estabelecida não é mais com a doença, e
sim com o sujeito da experiência. Antes de tudo:

é preciso pensar a diferença não necessariamente inserida em um processo


mais ou menos linear de adoecimento. Deslocando a base de nosso
pensamento, conduzimo-nos à criação de novas práticas, de novas
estratégias de ação. E, nesse sentido, não estaremos apenas inovando,
estaremos produzindo descontinuidades, discursivas e não-discursivas. [...]
O referencial clínico, se insiste na representação de doença, mesmo sendo
"alternativo" ou de "boa vontade", pode acabar operando um único sentido e
um único tempo e excluindo potencialidades de criação de formas
instituintes (ou, por que não dizer, revolucionárias) de relação (Carvalho &
Amarante 2000: 50).

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A reconstrução do conceito e da prática clínica tem sido, enfim, um aspecto
fundamental da reforma psiquiátrica, para que a relação técnico-instituição — sujeito
não seja a reprodução daquela praticada pela medicina naturalista. É preciso reinventar
a clínica como construção de subjetividades, como possibilidade de ocupar-se de
sujeitos com sofrimentos e de efetivamente responsabilizar-se com esse sofrimento,
através de paradigmas centrados no cuidado, na tomada de responsabilidade
(DelPAcqua 1991) e na cidadania, ou seja, uma clínica que não seja mais uma estratégia
de normalização e disciplinamento. Como Deleuze (1990) lembrou, mesmo a
psicanálise pode aspirar a tais projetos.
Ao pôr a doença entre parênteses e lidar com os sujeitos, a clínica deve ser
radicalmente transformada. Parece estranho dizer que a clínica não deve ficar restrita à
dimensão clínica. Por isso fala-se em clínica ampliada (Goldberg 1992), em clínica
antimanicomial (Lobosque 1997) ou em uma articulação do eixo político com o clínico
(Soalheiro 1997). Para Eduardo Torre, a desconstrução da clínica a transforma em uma
relação estratégica nos espaços (Torre 1999).
Mais recentemente, Ana Marta Lobosque, em Experiências da loucura, trouxe
contribuições muito importantes ao propor uma fundamentação lacaniana para a clínica
no contexto da reforma psiquiátrica e atentar, por exemplo, para a necessidade de
privilegiar a palavra: "A esta palavra, matéria-prima do tratamento, cabe-nos cavar-lhe
um lugar - quando partimos do princípio de que o sujeito fala, situando a materialidade
do seu dizer como o alicerce possível da nossa construção" (Lobosque 2001: 40).
No contexto da reforma, a clínica é um processo permanente que aprende e
constrói, cotidianamente, novas formas de lidar, de escuta ou de "reprodução
social dos sujeitos", como prefere Rotelli (1990a e b). Nenhuma teoria ou corrente é
superior à outra se o clínico deixa de ser apenas um técnico, se consegue superar a
simples vocação terapêutica e a atitude clínica tradicional e vislumbra-se como ator
social, sujeito presente no sofrimento do outro. Como exemplifica Lobos que ao
descrever a "curiosa versatilidade de um psiquiatra" em um dos novos serviços da
reforma psiquiátrica: (p.109)

Ele pode ser ao mesmo tempo o terapeuta e o médico de um paciente que


atendeu na recepção; pode ser o médico cujo tratamento é conduzido por
outro terapeuta; pode ser, como colegas de outras categorias, o monitor de
uma oficina de letras ou de artes plásticas; pode, também, em rodízio com
outros profissionais, ser o coordenador de uma assembléia geral do serviço,
ou de uma reunião de familiares; pode acompanhar os usuários ao cinema;
pode fazer uma visita domiciliar a um paciente ausente... E ele é, sobretudo,
como todos e cada um, um membro da equipe - um agente, portanto,
responsável pela construção de um empreendimento coletivo, onde a
parceria, a solidariedade, o compromisso com o valor e a viabilidade do
trabalho são imprescindíveis para os efeitos obtidos (Lobosque 2001: 91).

Pode ser psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, assistente social, terapeuta


ocupacional. Pode ser de uma ou outra corrente psicológica ou psiquiátrica, desde que
não reduza sua intervenção à forma única e exclusiva de sua corrente de pensar o fato
psíquico e de lidar tecnicamente com o mesmo. É necessário estabelecer a ruptura
com conceitos como doença, terapêutica, cura, ciência, técnica e verdade!
Assim, por exemplo, um núcleo de atenção psicossocial não é apenas um serviço
novo, mas um "novo serviço", isto é, um espaço de produção de novas práticas sociais
para lidar com a loucura, o sofrimento psíquico, a experiência diversa; um espaço para a
construção de novos conceitos, de novas formas de vida, de invenção de saúde. A
significativa extinção de leitos e hospitais psiquiátricos no Brasil (cerca de trinta mil nos

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últimos dez anos), com a progressiva substituição por outros dispositivos assistenciais
(no mesmo período, foram criados cerca de trezentos serviços de concepção territorial,
além de cooperativas, associações, clubes, centros de convivência etc.), representa o
processo de transformação estrutural das formas sociais de lidar com a loucura.
O técnico de um desses novos serviços precisa ter consciência de que ali se estão
operando rupturas conceituais, com transformações técnicas, políticas, jurídicas e
sociais. Ao escutar, acolher, cuidar, interagir e inserir (em vez de sequestrar, disciplinar,
medicalizar, normalizar), está fazendo parte da construção de novas formas de relação
entre a loucura e a sociedade.
Eis por que a clínica da reforma psiquiátrica - e muitos não conseguem entender,
pois pensam as ciências como verdades e as técnicas como definitivas e inquestionáveis
- é um processo permanente de invenção. (p.110)

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