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psiquiátrica
Paulo Amarante
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A dimensão epistemológica se refere ao conjunto de questões teórico-
conceituais concernentes à produção de conhecimentos que fundamentam e autorizam o
saber/fazer médico-psiquiátrico. Incluem-se aqui a revisão tanto do conceito de ciência
como produção de verdade - ou de "neutralidade" das ciências - quanto dos conceitos
produzidos pelo referencial epistêmico da psiquiatria: isolamento terapêutico,
degeneração, alienação e doença mental, normalidade e anormalidade, terapêutica e
cura, entre outros.
Dois conceitos têm sido fundamentais nesse empreendimento epistemológico. O
primeiro é o de desinstitucionalização na tradição basagliana que, superando a
experiência norte-americana, designa as múltiplas formas de tratar o sujeito em sua
existência e em relação com as condições concretas de vida. Nessa tradição, a clínica
deixa de ser o isolamento terapêutico ou o tratamento moral pinelianos para se tornar
criação de possibilidades, produção de sociabilidades e subjetividades. O sujeito da
experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, incapaz de obra ou de
voz, torna-se sujeito e não objeto de saber.
A desinstitucionalização não se restringe à reestruturação técnica, de serviços ou
de novas e modernas terapias. Torna-se, nessa concepção, um complexo processo de
estabelecer novas relações e reconstruir saberes e práticas. Acima de tudo, um processo
ético-estético, de reconhecimento das situações que produzem novos sujeitos de direito
e novos direitos para os sujeitos.
Se o conceito de doença - como muitos outros produzidos pela psiquiatria - é
posto em discussão, transformam-se as relações entre as pessoas envolvidas, mudam-se
os serviços, os dispositivos e os espaços e alteram-se as práticas jurídicas. O sujeito, não
mais visto como alteridade incompreensível, torna possível outras formas de
conhecimento, que por sua vez produzem no¬vas práticas. A superação do internamento
manicomial transforma o "curso natural da doença" em um ciclo complexo que se
retroalimenta.
Foi no contexto teórico das ciências naturais e do sensitivismo, inspirado tanto
em Lineu e Buffon quanto em Locke e Condillac, que Philippe Pinei produziu seu
Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale ou Ia manie, (p.104) no qual
apresentou o conceito de alienação mental e consolidou a prática sistemática do
internamento da loucura. Embora o conceito de alienação não signifique ausência
abstrata de razão, mas somente contradição na razão, como afirmava Hegel, essa
contradição impossibilita a razão absoluta. Portanto, segundo Pinel, aquele em cuja
razão existe tal contradição é um alienado, o que o torna incapaz de julgar e de escolher;
incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a liberdade e a cidadania implicam direito e
possibilidade de escolha.
Em uma dimensão técnico-assistencial, podemos argüir: qual o modelo
assistencial decorrente de um conceito que pressupõe tal contradição na ra¬zão, tal falta
de juízo? Não seria o sequestro desse não-mais-sufeito ou ainda-não-sujeito? A resposta
é óbvia: o manicômio, expressão de um modelo que se calca na tutela, na vigilância
panóptica, no tratamento moral, na disciplina, na imposição da ordem, na punição
corretiva, no trabalho terapêutico, na custódia e na interdição. Como alienado (alheio,
ausente), o paciente estaria incapaz até mesmo de decidir pelo tratamento, motivo que
justificaria que a decisão fosse tomada em seu lugar. O tratamento deveria ser realizado
em instituição fechada, tanto porque o isolamento favoreceria a observação do "objeto
em seu estado puro" - sem as indesejáveis interferências da vida social — quanto
porque seria terapêutico, já que as mesmas interferências que prejudicam a observação
contribuiriam para as causas da loucura.
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O asilo, esse espaço cientificamente ordenado, como insistiam Pinel e Esquirol,
seria, portanto, o lugar ideal para o exercício do tratamento moral, da reeducação
pedagógica, da vigilância e da disciplina. Tratado, o alienado perderia sua condição
miserável e somente então poderia ser considerado cidadão, homem livre, pleno de
direitos e deveres. Passamos assim à dimensão jurídico-política do processo: rediscutir e
redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, direitos humanos e sociais.
Na dimensão cultural, podemos resumir o processo de reforma psiquiátrica da
seguinte maneira: seu objetivo maior não é a transformação do modelo assistencial, que,
como vimos, é um elemento de uma de suas dimensões, mas a transformação do lugar
social da loucura, da diferença e da divergência.
As representações sociais associam tais comportamentos à incapacidade social, à
impossibilidade de estabelecer trocas sociais. A dimensão estratégica, assim, diz
respeito ao campo cultural, ao conjunto de intervenções e estratégias que visam
transformar o lugar da loucura no imaginário social. Com esse objetivo, existem
associações de usuários e familiares, de amigos e voluntários, cooperativas sociais
regulamentadas com lei do Congresso Na¬cional, e muitas outras formas de trabalho,
atuações com a comunidade, projetos, festas, rádios, vídeos, camisetas etc. Um exemplo
importante é a criação do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Desde 1988, a data é
co¬memorada em todos os estados, em praticamente todas as capitais e principais
cidades. Em muitos lugares, a comemoração não dura mais apenas um dia, mas uma
semana ou até mesmo um mês. (p. 105)
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questionamento do poder atribuído a um conceito e atualiza uma dimensão da
interrogação prática que tal conceito ocultava" (idem).
A noção de complexidade tem como objetivo pôr em cena e problematizar a
posição do sujeito. Os mitos da neutralidade, do distanciamento crítico e da autonomia
da ciência são postos em discussão no questionamento das relações entre ciência e
poder, já que a impressão de que as ciências têm uma identidade é, em si mesma, um
efeito de poder, assim como o é a aceitação de que as ciências são uma construção
neutra não associada à história.
No cerne do processo de reforma psiquiátrica existe, portanto, uma importante e
contemporânea discussão sobre as ciências. A psiquiatria foi fundada (p. 106) em um
contexto epistemológico no qual a realidade era um dado natural, capaz de ser
apreendido, mensurado, descrito e revelado, e a ciência era sinônimo de produção de um
saber positivo, neutro e autônomo: a expressão da verdade! A partir de então a
psiquiatria vem contribuindo, tanto no aspecto conceituai, com a construção de
conceitos como degeneração, cretinismo, idiotia, quanto no aspecto prático, pela
invenção do manicômio, do tratamento moral e das terapias de choque, para a
consolidação de um imaginário social no qual a diferença é associada à anormalidade.
A estratégia de desinstitucionalização proposta por Franco Basaglia se inscreve
nesse contexto de superação paradigmática, com a conseqüente abertura de um novo
contexto prático-discursivo sobre a loucura e o sofrimento humano. Ao tornar possível a
recomplexificação da experiência denominada loucura, contribui com estratégias
cognitivas e práticas para a teoria das ciências e do conhecimento. Dentro do mesmo
propósito está a discussão iniciada em Gorizia, que procurou desenvolver uma crítica e
uma ação política sobre o papel e a função dos técnicos na produção e reprodução das
práticas e conceitos tradicionais.
Em "A doença e seu duplo" (Basaglia &C Basaglia, 1982b) e em "A maioria
desviante" (Basaglia & Basaglia, 1982a), Franco e Franca aprofundaram a ideia de
doença entre parênteses - a redução analógica de Edmund Husserl -, que significa a
suspensão do conceito e implica a possibilidade de novos contatos empíricos com o
fenómeno em questão. A psiquiatria deixou o sujeito entre parênteses para se ocupar da
doença. Para Basaglia, no entanto, a doença é que deveria ser posta entre parênteses
para que pudéssemos nos ocupar do sujeito em sua experiência.
Pôr a doença entre parênteses não significa sua negação, negação de que existe
algo que produz dor, sofrimento, diferença ou mal-estar, mas sim a recusa à explicação
psiquiátrica, à capacidade de a psiquiatria dar conta do fenómeno com a simples
nomeação abstrata de doença. A doença entre parênteses é ao mesmo tempo a denúncia
social e política da exclusão e a ruptura epistemológica com o saber naturalístico da
psiquiatria. Para Rotelli, "o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um
objeto fictício, a doença, da existência global e complexa dos utentes e do corpo social.
Sobre esta separa¬ção artificial se construiu um conjunto de aparatos científicos,
legislativos, administrativos (precisamente a instituição) todos referidos à doença"
(Rotelli 1990a: 28). A reforma psiquiátrica representa uma ruptura fundamental com
essa separação.
Assim, ao considerar a loucura como doença, erro absoluto, distúrbio da razão,
perda do juízo, incapacidade civil ou irresponsabilidade social e jurídica, a psiquiatria
clássica criou para o louco um lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais
(Rotelli 1990b), cuja expressão mais radical é o manicômio. (p.107)
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A clínica na reforma psiquiátrica
Como já foi dito, é muito freqüente ouvir que a reforma psiquiátrica não
consi¬dera a dimensão clínica ou que a experiência italiana inaugurada por Franco
Basaglia, embora tenha sido importante como fato e denúncia política, "se descuidou da
clínica". Ao concluir seu último livro, pouco antes de falecer, Franco Basaglia disse que
seu maior desejo era que a história do movimento liderado por ele não fosse contada
com base em datas, portarias ou atos oficiais, mas pelas histórias de pessoas, de muitas
pessoas cujas vidas tivessem sido transformadas por seu trabalho. Não parecer haver
nessa atitude um descuido com a clínica. Basaglia se preocupava concretamente com os
sujeitos, e não com suas doenças. Essa é uma preocupação rigorosamente clínica, mas,
como veremos, de uma outra forma de pensar e fazer a clínica.
A primeira questão levantada por Basaglia tinha relação com o conceito e com a
constituição da clínica. O que é e como nasceu a clínica? Ora, a clínica já foi um
produto do método de conhecimento empiricista/sensitivista - observar, descrever,
comparar, classificar -, cujo principal objetivo era conhecer a doença, fato natural.
A necessidade epistemológica de isolamento possibilitou que o médico e o
alienista tivessem disponíveis, para observação sistemática e contínua, em um só lugar e
por todo o tempo, todas as modalidades de doenças e sintomas. Essa relação com a
doença (e não com os sujeitos) ao lado do leito, no dia-a-dia da instituição, fundou a
clínica. Clínica vem do grego klinus - leito ou cama - e contém o sentido de inclinar-se,
por extensão, estar junto ao leito durante a evolução da doença. Esse inclinar-se ocorreu
no espaço da internação: a clínica nasceu de uma relação com a doença como fato
objetivo e natural e como fenômeno institucionalizado, por isso mesmo produzido e
transformado pela própria institucionalização.
A loucura internada, institucionalizada, passaria a ser moldada pela própria ação
da institucionalização: "És um demente precoce!", afirmava o alienismo. Após alguns
longos anos de institucionalização, a demência nele se assentava. Fazendo uso de uma
analogia baseada em Stengers, tratava-se do fenómeno da testemunha fidedigna: o efeito
seria produzido tanto pela teoria quanto por sua ação prática.
Sabemos que Pinel foi um dos responsáveis pela fundação não apenas da clínica
psiquiátrica, mas também da moderna clínica médica, conforme de¬monstram Michel
Foucault (1963b) e Bercherie (1980). Segundo eles, Pinel fundou a tradição da clínica
como orientação consciente e sistemática.
A clínica, portanto, valorizava originalmente a relação do observador com o
objeto natural denominado doença. O objetivo era perceber os sintomas fundamentais e
verdadeiros e captar a essência da natureza deformada que era a doença. Por esse
motivo é que se a doença é questionada, posta entre parênteses, no cenário da reforma
psiquiátrica, a clínica também tem de ser (p.108) desconstruída e transformada
estruturalmente, uma vez que a relação a ser estabelecida não é mais com a doença, e
sim com o sujeito da experiência. Antes de tudo:
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A reconstrução do conceito e da prática clínica tem sido, enfim, um aspecto
fundamental da reforma psiquiátrica, para que a relação técnico-instituição — sujeito
não seja a reprodução daquela praticada pela medicina naturalista. É preciso reinventar
a clínica como construção de subjetividades, como possibilidade de ocupar-se de
sujeitos com sofrimentos e de efetivamente responsabilizar-se com esse sofrimento,
através de paradigmas centrados no cuidado, na tomada de responsabilidade
(DelPAcqua 1991) e na cidadania, ou seja, uma clínica que não seja mais uma estratégia
de normalização e disciplinamento. Como Deleuze (1990) lembrou, mesmo a
psicanálise pode aspirar a tais projetos.
Ao pôr a doença entre parênteses e lidar com os sujeitos, a clínica deve ser
radicalmente transformada. Parece estranho dizer que a clínica não deve ficar restrita à
dimensão clínica. Por isso fala-se em clínica ampliada (Goldberg 1992), em clínica
antimanicomial (Lobosque 1997) ou em uma articulação do eixo político com o clínico
(Soalheiro 1997). Para Eduardo Torre, a desconstrução da clínica a transforma em uma
relação estratégica nos espaços (Torre 1999).
Mais recentemente, Ana Marta Lobosque, em Experiências da loucura, trouxe
contribuições muito importantes ao propor uma fundamentação lacaniana para a clínica
no contexto da reforma psiquiátrica e atentar, por exemplo, para a necessidade de
privilegiar a palavra: "A esta palavra, matéria-prima do tratamento, cabe-nos cavar-lhe
um lugar - quando partimos do princípio de que o sujeito fala, situando a materialidade
do seu dizer como o alicerce possível da nossa construção" (Lobosque 2001: 40).
No contexto da reforma, a clínica é um processo permanente que aprende e
constrói, cotidianamente, novas formas de lidar, de escuta ou de "reprodução
social dos sujeitos", como prefere Rotelli (1990a e b). Nenhuma teoria ou corrente é
superior à outra se o clínico deixa de ser apenas um técnico, se consegue superar a
simples vocação terapêutica e a atitude clínica tradicional e vislumbra-se como ator
social, sujeito presente no sofrimento do outro. Como exemplifica Lobos que ao
descrever a "curiosa versatilidade de um psiquiatra" em um dos novos serviços da
reforma psiquiátrica: (p.109)
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últimos dez anos), com a progressiva substituição por outros dispositivos assistenciais
(no mesmo período, foram criados cerca de trezentos serviços de concepção territorial,
além de cooperativas, associações, clubes, centros de convivência etc.), representa o
processo de transformação estrutural das formas sociais de lidar com a loucura.
O técnico de um desses novos serviços precisa ter consciência de que ali se estão
operando rupturas conceituais, com transformações técnicas, políticas, jurídicas e
sociais. Ao escutar, acolher, cuidar, interagir e inserir (em vez de sequestrar, disciplinar,
medicalizar, normalizar), está fazendo parte da construção de novas formas de relação
entre a loucura e a sociedade.
Eis por que a clínica da reforma psiquiátrica - e muitos não conseguem entender,
pois pensam as ciências como verdades e as técnicas como definitivas e inquestionáveis
- é um processo permanente de invenção. (p.110)