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Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC

19º Congresso Brasileiro de Sociologia

9 a 12 de julho

GT11 - Ensino de Sociologia

A CIÊNCIA POLÍTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS

Joana da Costa Macedo


Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro

Santa Catarina, 2019


Resumo
Este trabalho propõe um estudo comparativo dos conteúdos de ciência política
presente em dois livros didático, um deles é adotado no Brasil e o outro na
França. O objetivo principal é analisar as principais diferenças entre os conceitos
de movimentos sociais, democracia e cidadania nos dois livros. Tendo em vista
a perspectiva da operacionalização da transposição didática da área de Ciência
Política na disciplina escolar de Sociologia, este trabalho insere-se em uma
discussão maior sobre a formação de currículo nos livros didáticos. Os
resultados encontrados, preliminarmente, indicam que o livro didático brasileiro
apresenta um conteúdo moldado sob a perspectiva conceitual apresentando
modelos teóricos, enquanto que o conteúdo do livro francês opera no âmbito da
perspectiva institucionalista e procedimental apontando as possibilidades de
participação institucional dos indivíduos.

A importância dos livros didáticos na produção de currículo


A produção e utilização do livro didático passaram por um processo de
institucionalização e o contexto escolar atual, bem como os sistemas de
educação, não podem mais ser concebidos sem esse suporte de mediação
didática. Silvia Helena de Andrade Brito (2010) reconhece um cenário atual no
qual predomina “o império do material didático” que se mantém com o passar
dos anos. Expressão designada pela autora para reforçar a predominância do
uso do material didático, mesmo esse tendo sofrido modificações ao longo do
tempo no que concerne a uma linguagem mais adaptada, e de forjarem um
aspecto mais interativo e dinâmico com proposições de exercícios e de filmes.
Os livros didáticos distribuídos nas escolas compõem um aparato crucial
no ciclo de ensino-aprendizagem. Não faz parte do escopo desse trabalho
pretender mensurar ou qualificar o uso do material didático em sala de aula. Esse
trabalho reconhece, no entanto, a importância do livro para nortear os conteúdos
e a forma que esses conteúdos disciplinares são transmitidos aos alunos, e é
justamente com base em seu conteúdo que se construirá a linha argumentativa
fundamentada neste texto. Nesse sentido, parte do pressuposto de que os livros
escolares são parte constitutiva da preparação e da dinâmica das aulas.
Os livros didáticos são um instrumento legitimado pela comunidade
escolar e pelas instâncias oficiais envolvidas na produção e distribuição desses

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materiais. Essas instâncias podem ser o Ministério da Educação do Brasil, e seu
equivalente na França, bem como as secretarias estaduais (ou municipais) de
educação. Além disso, outros atores participam desse processo, tais como o
mercado editorial e os autores que dele circunscrevem-se. Existem,
adicionalmente, as instâncias educacionais incorporadas nas universidades e
nas escolas básicas.
A finalidade de compreender os conteúdos e os temas propostos nos
materiais didáticos existentes está assentada na intenção em inserir esses
materiais em uma possível chave interpretativa da esfera educacional presente
em nossas sociedades. Em outras palavras, a escolha estratégica sobre o
conteúdo a ser abordado via material didático pode ser interpretada como uma
vertente analítica de um contexto maior de construção social, política, e
econômica de um país. Em outras palavras, a importância de analisar os livros
didáticos, e consequentemente a produção de discurso neles contida, é parte de
um esforço de incluí-los como um elemento estruturante de uma política nacional
de educação que importará para o tipo de formação dada aos indivíduos.
Dentro desse contexto, a perspectiva adotada neste artigo considera,
portanto, que os livros didáticos compõem um quadro mais abrangente de
produção de currículo. A produção de currículo significa produção de sentido que
forja as relações que se estabelecem em sala de aula. Assim, entende-se
currículo como uma forma de estruturar as atividades escolares cotidianas, no
sentido de organizar as relações entre sujeito e objeto científico no processo de
ensino-aprendizagem (Lopes & Macedo, 2011).
A ideia de analisar o conteúdo específico relacionado à área de ciência
política está calcada na tentativa de entendimento sobre a forma pela qual o
conhecimento de ciência política é transmitido para os alunos. Além disso,
encontra-se poucos trabalhos que se debruçam nesse tema1.
Pode-se pensar na relação que o estudo dos os conteúdos de ciência
política podem agregar à construção de uma cultura política. Em outras palavras,
este estudo pretende contribui para uma reflexão mais abrange da possibilidade
da aprendizagem que conteúdos didáticos de ciência política podem provocar
na formação de um interesse na construção política do país. De alguns conceitos

1
SCHNEKENBERG, Guilherme Fernando, 2017; BODART, Cristiano das Neves; LOPES, Gleison Maia, 2017.

3
possíveis de serem analisados, optei por analisar três conceitos caros à ciência
política, mas que podem ser uma chave de interpretação para uma suposta
cultura política formada no Brasil e na França.

Analisando o conteúdo dos livros didáticos


Brasil
O livro escolhido para analisar neste artigo é o livro Sociologia em
Movimento (Vários autores et al., 2013). Esse livro foi escolhido tendo por
motivação o fato de que ele tem se tornou um dos mais adotados pelas escolas
públicas do Rio de Janeiro. Para os propósitos desta pesquisa, optei por
concentrar esforços na leitura de dois capítulos da Unidade 3, pois nesses
capítulos são apresentados os conceitos que estou me propondo a estudar. Na
Unidade 3 “Relações de poder e movimentos sociais: a luta pelos direitos na
sociedade contemporânea”, será analisados os capítulos 7, “Democracia,
cidadania e direitos humanos”, e o 8, intitulado de “Movimentos sociais”.
No capítulo 7, referente aos estudos sobre democracia, cidadania e
direitos humanos, é narrada sua finalidade como consistindo em estudar as
“diferenças conceituais e ideológicas, relacionadas à democracia, suas diversas
expressões históricas, e os principais pensadores das teorias democráticas
modernas e contemporâneas” (Vários autores et al., 2013, p. 166).
Nesse sentido, seus subtítulos são apresentados com a palavra “teoria”
no nome, tais como “teoria democrática moderna” (Vários autores et al., 2013,
p.170) ou “teoria democrática contemporânea” (Vários autores et al., 2013,
p.172). Além disso, outros subtítulos são compostos pelos conceitos que serão
definidos ao longo do texto, como o subtítulo “cidadania e direitos humanos”
(Vários autores et a., 2013, p.176). Importa acrescentar o fato de que esses
subtítulos são compostos pelas palavras “formação” ou “formas”, conduzindo,
portanto, a mensagem de que os conteúdos serão trabalhados do ponto de vista
conceitual. No capítulo 8, referente aos movimentos sociais, seu início intitula-se
“movimentos sociais como fenômenos históricos” (Vários autores et al., 2013,
p.190). O fragmento abaixo apresenta textualmente como a explicação dos
movimentos sociais é narrada de forma cronológica.

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Nos anos 1970 e 1980, as manifestações contra regimes autoritários
marcaram os movimentos sociais da América do Sul na luta pela democracia
e pelo retorno dos direitos de cidadania. A partir dos anos 1990, os
movimentos sociais passaram a ser vistos de maneira difusa, organizados
em redes nacionais e internacionais e reuniam bandeiras de reivindicação
locais e globais. Os sociólogos se viram, então, diante da tarefa de encontrar
semelhanças e diferenças entre os movimentos existentes desde o século
XVIII em lugares tão diferentes quanto França e Bolívia, Polônia e Brasil, por
exemplo. A história será sempre uma variável fundamental para a
compreensão dos movimentos sociais, mas a apuração de seus elementos
estruturais se tornou indispensável para compará-los no tempo e no espaço,
possibilitando a identificação das transformações que promoveram e pelas
quais passaram. (VÁRIOS AUTORES et al., 2013, p.192).

Outro aspecto comum a esses dois capítulos, é o fato de que os conceitos


de poder, de Estado, e de democracia são tipificados. A forma como estruturou-
se o conteúdo escolar, permitiu que se fizesse uma tipologia desses conceitos.
Nesse sentido, os três tipos de dominação de Max Weber são definidos
conceitualmente. Cada forma de dominação é definida em um parágrafo
diferente. O mesmo ocorre com o conceito das formas de governos,
presidencialista e parlamentarista, e das diferentes possibilidades de
organização estatal. Nesse momento, o texto didático indaga: “Mas o que vem a
ser o Estado moderno? Quais são as suas principais características e formas?”
(Vários autores et al., 2013, p.144). Em cada uma das formas de Estado2
apresentadas são dissertados seu contexto de surgimento, as teorias e os
possíveis autores que estudaram `referido modelo, e ao final, é explicada sua
decadência ou potenciais aspectos causadores de sua crise.
Sobre o conteúdo específico abordado neste livro, são apresentados
modelos de democracia, tais como democracia direta, democracia
representativa e democracia participativa. Em cada parte dedicada a esses
termos, definições foram concentradas nas expressões “virtudes cívicas” e
“discussão (sem intermediários) das principais questões de interesse comum”
(Vários autores et al., 2013, p.168), sendo acompanhadas de uma imagem que

2
Estado absolutista, Estado liberal, Estado socialista, Estados nazistas e fascistas, Estado de bem-estar
social, e Estado neoliberal.

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visualmente representaria o que está sendo conceituado. Na parte da
democracia direta, é apresentada uma pintura do que seria uma reunião de
políticos na ágora em Atenas antiga.
Dentro do conceito de democracia, o livro aborda estruturas teóricas que
explicam suas principais abordagens. Além disso, cada conceito é acompanhado
de uma imagem que supostamente o representa. No caso da democracia
representativa a imagem que a caracteriza é uma foto de uma urna eletrônica,
cujo princípio definidor converge para o entendimento de “soberania popular”
(Vários autores et al., 2013, p.168). Esse modelo de democracia é apresentado
historicamente como “um conceito moderno de democracia que surgiu com as
revoluções burguesas da Europa, entre os séculos XVII e XIX [...]” (Vários
autores et al., 2013, p.168).
Por fim, a democracia participativa foca, diretamente, na “participação
cidadã” e na “redução da distância entre representantes e representados”
(Vários autores et al., 2013, p.169). Ao longo do texto referente à democracia
participativa é enfatizada a busca pela ação política de forma igualitária por meio
de mecanismos institucionais, entre eles, o orçamento participativo. Na imagem
ilustrativa que o acompanha, uma reunião do orçamento participativo é usada
como um exemplo de democracia participativa.
Dentro desse contexto, é possível argumentar que os termos até então
apresentados seguem uma linha analítica típica-ideal weberiana dos conceitos
trabalhados dentro do conceito de democracia, representando, portanto, uma
tentativa de construção de modelos teóricos característicos da perspectiva
estruturalista de construção de currículo.
Adicionalmente, o subtítulo desta parte do livro é “expressões históricas
da democracia”, indicando, de forma direta, que a abordagem escolhida pelos
autores do livro caminha na direção de apresentar um conteúdo que preza por
seu caráter histórico, conceitual e teórico.
Esse capítulo continua com uma parte dedicada às teorias democrática
moderna e contemporânea. Nesse momento, vários autores são evocados de
forma consecutiva de modo a apresentar diferentes influências para a teoria da
democracia. Os autores são listados conforme segue: para a teoria democrática
moderna: Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jaques Rousseau, Montesquieu,
Karl Marx e Friedrich Engels; para a teoria democrática contemporânea:

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Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville, Jonh Stuart Mill, Antonio Gramsci,
Rosa Luxemburgo, Robert Dahl, Joseph Schumpeter, Crawford Brough
Macpherson, e por fim, são citados brevemente os autores da teoria das elites,
tais como, Vilfredo Pareto, Gaetano Mosta e Robert Michels.
Essa ênfase na formatação de conteúdos didáticos pelos pensamentos e
teorias de diversos autores é constante ao longo do livro de Sociologia,
indicando, nesse sentido, a principal forma de construção e apresentação do
conteúdo disciplinar. A esse aspecto, pode-se acrescentar o fato de que ao lado
de cada parte escrita apresenta-se em uma espécie de box uma imagem dos
rostos dos autores juntamente com sua biografia resumida.
Em relação ao conceito de cidadania, este é explanado sob o ponto de
vista histórico tendo como marco inicial as teses de Thomas Humphrey Marshall,
cujo desenvolvimento centra em traçar uma linha histórica que ordena o
aparecimento dos direitos políticos, sociais e civis na Inglaterra do século XIX,
indicando sua definição do que significa ser um cidadão. Em determinado
momento, a discussão sobre cidadania e direitos é focalizada no Brasil e as
referências ao historiador José Murilo de Carvalho que dialoga com as teses de
Marshall e Wanderley Guilherme dos Santos vem à tona. No caso deste último
autor, o texto chama atenção para a significação do termo “cidadania regulada”,
que foi cunhado por Wanderley Guilherme como uma chave-interpretativa do
Brasil no que concerne à concessão de direitos por parte do Estado.
A forma como o conteúdo de ciência política, especialmente os de
democracia, cidadania e movimentos sociais, é transposto neste livro didático
segue uma linha argumentativa sociohistórica afeita à descrição de modelos
teóricos, que por definição, servem aos propósitos de aproximação com uma
realidade a ser estudada. A escolha do conteúdo didático exposto no livro
prioriza a contextualização teórica dos autores, bem como as narrativas
históricas, criando, em algumas passagens, descrições cronológicas dos
acontecimentos históricos.
A estrutura do conteúdo abordado no livro didático serve à construção de
modelos teóricos que não, necessariamente, indicam uma problematização de
uma realidade3.

3
A forma como cada conteúdo poderá ser problematizado está na condução pedagógica que cada professor
escolhe fazer em seu planejamento aula, e cuja investigação foge aos propósitos deste trabalho.

7
Da mesma forma, no capítulo referente aos movimentos sociais são
apresentados pela perspectiva teórica ao longo de todo conteúdo textual exposto
no material didático, e a formação dos movimentos dos trabalhadores e dos
movimentos estudantis é narrada historicamente. O texto explora as diferentes
abordagens de interpretação que foram atribuídas aos movimentos sociais ao
longo do tempo. Tendo em vista uma cronologia histórica, cada parágrafo é
iniciado com uma menção a uma data específica: “a partido de meados dos anos
1960, as manifestações pelos direitos civis [...]”, “Nos anos de 1970 e 1980, as
manifestações contra o regime autoritário [...]”, “A partir dos anos 1990, os
movimentos sociais passaram a ser vistos [...]”, “A história será sempre uma
variável fundamental para a compreensão dos movimentos sociais [...]” (Vários
autores, 2013, p192-193).
No entanto, a imagem representativa da forma pela qual os movimentos
sociais se apresentam ao longo de um tempo históricos. Além disso, a imagem
que mais é ilustrada dos movimentos sociais é o seu formato de protesto. Na
foto superior à esquerda, é indicado na legenda que é um movimento social em
1968 contra a ditatura civil-militar, abaixo a imagem representa um movimento
social atual. Na outra página, a imagem mais acima é um protesto dos
professores em Brasília no ano de 2012, e abaixo a imagem fotografa um
momento da Parada do Orgulho Gay em 2011 na cidade de São Paulo.

França
O livro francês escolhido para analisar nesta monografia chama-se
Sciences socialies & politiques. Enseignement de spécialité. O livro foi escrito
por um conjunto de professores das ciências econômicas e sociais de diversos
liceus, localizados em diferentes regiões da França: Delphine de Chouly, Cyrill
Gispert, Olivier Leblanc, Fabienne Lapage e Peggy Ségas-Rouland. Este livro é
referente ao programa de ensino de 2012 e foi publicado pela Editora Nathan.
Diferentemente, do livro brasileiro que serve às séries do ensino médio,
todo o conteúdo do livro francês é direcionado aos alunos o último ano. Portanto,
todo o seu conteúdo é inserido no arcabouço conceitual de ciência política. O
livro é dividido em 3 partes: “o sistema político democrático”, “a participação
política”, e “a ordem política europeia”. Analisarei somente as duas primeiras.

8
Cada capítulo possui uma página de apresentação que é padronizada.
Essa página apresenta o título do capítulo, e algumas imagens representativas
do conteúdo que será estudado. Ao lado ou abaixo de cada uma dessas
imagens, são disponibilizadas questões que indicam a reflexão proposta. Além
disso, na parte inferior, é apresentado um plano do capítulo, ou seja, uma
espécie de índice referente à subdivisão do capítulo.
A parte 1 apresenta o conteúdo escolar referente ao sistema político
democrático, abordando, especificamente, os componentes institucionais dos
regimes democráticos, o modo pelo qual ocorre a “competição política
democrática”, e problematizando as instituições de participação política, como
os partidos políticos e outros movimentos sociais. Essas questões visam
entender o funcionamento do sistema democrático em suas várias vertentes.
Uma parte deste conteúdo é década ao estudo da democracia
representativa com seu significado conceitual, bem como sua importância para
o sistema política. Neste estudo é apresentado o perfil dos grupos
representados. Essa discussão é seguida de um conteúdo sobre a democracia
participativa. Nesse momento, é incluída uma discussão sobre a diferença entre
as democracias participativas e deliberativas.
Na parte 2 é abordada, diretamente, a temática da participação política.
O denominador comum de todos os capítulos dessa unidade refere-se à ação
social e política, e para isso, passam pelo conceito de cidadania, ação coletiva e
comportamento eleitoral. No entanto, a unidade começa com uma apresentação
sobre o conceito e o papel dos partidos políticos na sociedade francesa, bem
como seu funcionamento. Nesta unidade, é discutido o papel dos militantes
políticos no desenvolvimento da democracia participativa.
Além disso, a problemática da mobilização política vem à tona, bem como
os elementos que podem contribuir para sua formação, tal como a internet. Outro
ponto que a unidade dedica atenção são os atores potencialmente envolvidos
no funcionamento democrático, como por exemplo, os sindicatos e os diversos
grupos de interesse.
Este livro inaugura sua exposição com uma parte teórica dedicada ao
direito constitucional na formação do Estado moderno. As duas principais
referências são destacadas nas figuras de Montesquieu com sua tese sobre a
separação dos poderes e de Hans Kelsen cujo destaque está em um desenho

9
de uma pirâmide esquemática que representa a hierarquia das normas jurídicas
(Échaudemaison, 2012, p.13). Considero emblemático iniciar o livro com Hans
Kelsen, pois ele foi um jurista que se tornou um dos principais autores da área
do Direito, desenvolvendo sua teoria embasada na concepção de Estado
moderno. Com essa introdução teórica, a linha que o livro didático aborda está
centralizada na concepção de Estado de Direito (l’État de droit).
A imagem a seguir ilustra uma pirâmide com as normas jurídicas na
França de acordo com Hans Kelsen. De baixo para cima essas normas são
referentes aos atos administrativos, aos regulamentos, aos princípios gerais do
direito, ao bloco da legalidade, ao bloco das convenções e por último, no topo
da pirâmide, o bloco da constitucionalidade. Na metade da página para baixo, é
dedicada ao papel do conselho constitucional, e sua atuação em uma medida
específica relacionada ao consumo da taxa de carbono. Cada um dos assuntos
tratadas é seguido por 4 perguntas diretamente associadas ao conteúdo
exposto.
A parte inicial do livro pode ser considerada significativa, contudo, uma
vez que grande parte do percurso do conteúdo de ciência política que é abordada
no material didático francês é voltada para os aspectos normativos e
institucionais da democracia, sem, no entanto, abandonar os modelos típico-
ideais das teorias conforme exemplificado no modelo de Kelsen.
Nesse sentido, o conteúdo didático francês aborda os conceitos sob a
perspectiva das normas e das regras adotadas nos países, com especial
atenção para o funcionamento do sistema francês. Portanto, o conteúdo do
material francês, mesmo que apresentando uma proposta conceitual, é menos
sustentado por uma análise histórica e mais nas regras vigentes na França. A
análise histórica e conceitual está presente no material didático francês, como,
por exemplo, a definição do Estado de Direito (Échaudemaison et al, 2012, p.
14) ou a noção de sociedade civil organizada (Échaudemaison et al, 2012, p.
44). No entanto, predomina a apresentação do funcionamento institucional dos
sistemas políticos, seja da França ou de outros países, conforme pode ser
ilustrado na imagem 7.
Nesse momento, o livro francês apresenta, o significado e as
caraterísticas dos modelos presidencialista e parlamentarista, expondo em um
quadro explicativo, quais países adotam esses modelos. Apresenta-se um

10
quadro esquemático que descreve toda a estrutura do sistema político norte
americano. A presença de um presidente da república, como é eleito, e qual a
duração do mandato. Essas informações são repetidas para os casos de
formação dos gabinetes e para a estrutura do congresso. Na base dessa figura,
estão os eleitores compostos por “homens e mulheres de nacionalidade
americana com mais de 18 anos” (Échaudemaison et al, 2012, p. 17).
Importa ressaltar que os países citados estão localizados no continente
europeu, a exceção dos Estados Unidos4, cujo regime presidencial é detalhado
em uma imagem esquemática.
Nesse sentido, para além dos conceitos teóricos, os capítulos do material
escolar apresentam elementos explicativos na composição e no funcionamento
institucional do sistema político, ilustrando com desenhos esquemáticos sobre
as etapas dos processos de votação eleitoral, de participação e de
funcionamento das instâncias de governo. O conteúdo de ciência política
apresentado no material está diretamente ligado à temática eleitoral, focalizando
seus textos prioritariamente, nos partidos políticos, seu significado, qual seu
papel nos regimes democráticos, como eles funcionam, e abordam,
adicionalmente, os comportamentos eleitorais. Interessante notar que, em
alguns poucos momentos, o livro direciona seu conteúdo aos jovens e a
importância de uma militância política na sociedade atual5.
O conteúdo didático de ciência política do livro francês preza por um
conteúdo predominantemente institucional da vida eleitoral e partidária do
sistema político da França. Conforme argumentado, uma parte normativa e
procedimental também compõe esse conteúdo, uma vez, que, são apresentadas
algumas normas e regras mais gerais do campo político-eleitoral. Em outras
palavras, o conteúdo didático foca grande parte de sua apresentação em
discussões sobre as normas de funcionamento do sistema político francês. Este
conteúdo mostra como funciona as eleições municipais.
No entanto, o que predomina neste material é o espectro institucional de
sua abordagem. Em complemento à parte textual, o material expõe diversos

4
Nessa primeira parte, os Estados Unidos são o único país mencionado fora do circuito europeu. Na página 24, há um
texto explicando a diferença do modelo político norte-americano e francês. O motivo da utilização dos Estados Unidos
reside em reconhecê-lo como um modelo arquetípico do sistema presidencialista.
5
Essa parte do conteúdo aparece nos capítulos Doc.3 “Un exemple de formation des militants”, e no Doc.4 “Les
organisations de jeunesse de partis politiques” (autor, ano, p.41)

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dados estatísticos ou gráficos de vários tipos, de modo a informar o perfil de
composição das instituições as quais os capítulos referem-se, a saber, os
partidos políticos, o parlamento, as áreas de atuação das associações, a
participação feminina no processo eleitoral, o grau de adesão partidária dos
cidadãos franceses, entre outros.
Ao longo do livro é utilizada a expressão “socialização política”. O conceito
de socialização no livro didático brasileiro é elaborado por meio da perspectiva
durkheimiana, mais próximo da área de Sociologia (Lopes & Bodart, 2017),
enfatizando a predominância da sociedade sobre os indivíduos, e como as
relações sociais são forjadas por um processo de aprendizagem dos códigos,
dos valores e dos símbolos sociais. Por isso, esse tema está presente,
predominantemente, na primeira série do ensino médio na qual a proposta
curricular é composta majoritariamente pelo tema relacionado à cultura.
No livro didático francês analisado, a socialização política referida está
relacionada diretamente à formação do indivíduo dentro de um arcabouço
normativo e institucional político de seu país. O posicionamento transmitido pela
forma como esse conteúdo está estruturado no livro permite a associação entre
a participação política-eleitoral e partidária das pessoas, com o processo de
socialização. Na primeira parte do capítulo 3, da unidade 1, fala-se
explicitamente que as organizações militantes, entre elas os partidos políticos,
constituem uma instância de socialização, da mesma forma, que o são, a família,
a escola, as organizações profissionais, entre outras modalidades de inserção
social.
Nesse sentido, os capítulos da unidade 2 são dedicados à sociedade, à
sociedade civil, em relação à esse sistema eleitoral e partidário. Os capítulos
são: “Por que passar da democracia direta à democracia representativa?”,
“Quais são os diferentes modos de escrutínio?”, “A representação nacional é
representativa da população?”, “Como assegurar a paridade na política?”, e
“Quais as evoluções para a via democrática contemporânea?”. A problemática
das categorias sistema e agência são indicadas na estruturação do conteúdo
didático, sem necessariamente provocar uma abordagem histórica como
percurso norteador do material didático.

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Esse tipo de socialização pode ser entendido como sendo uma identidade
política reconhecida como integrante de um aspecto da formação cultural
francesa, da mesma forma que o é a identidade partidária.
.A segunda parte do capítulo 5 questiona se o voto seria um ritual social.
Com base nessa perspectiva, a proposta de encadeamento do material didático
segue com capítulos que abordam as possibilidades institucionais de
participação dos indivíduos.
Dentro desse contexto, são abordados referenciais teóricos que o manual
francês considera como constitutivo da chamada cultura política. O conteúdo
didático tenta ligar as esferas da política com as esferas sociais, em uma
equação bourdieusiana, na qual as esferas políticas e sociais são estruturadas
por uma relação interconectada ao mesmo tempo em que são estruturantes.
Sendo assim, o livro dá especial atenção aos aspectos institucionais do
sistema político da França, explicando com certo nível de detalhe as regras e as
normas de todo o processo eleitoral e partidário do país. Além disso, utiliza-se
de temas bastante atuais da realidade política francesa complementando a
ênfase em seu aspecto normativo, incluindo, a sociedade civil como parte
estruturante desse sistema. Assim, parte do conteúdo é composto por temas da
sociedade civil organizada e suas possibilidades de atuação nas instâncias de
poder inserindo-a como ator no processo de tomada de decisão política.

Considerações Finais
O conteúdo de ciência política do livro didático do Brasil parece seguir
uma linha estruturalista de priorização de uma abordagem parecida com um
currículo disciplinar que na visão de Alice Casimiro Lopes (2008), uma vez que
“é entendido como consequência de princípios da organização curricular
baseada na lógica das ciências e ou na natureza do conhecimento [...]” (Lopes,
2008, p. 43). A lógica de construção do conteúdo didático apresenta-se
fortemente marcada por conceitos e autores característicos dos fundamentos da
disciplina de ciências sociais.
O livro didático não sugere um descolamento enrijecido da realidade do
aluno, conforme sugere algumas críticas à disciplinarização científica (Lopes,
2008). No entanto, Lopes (2008) chama atenção para o fato de que no século
XX os conteúdos disciplinares, o conhecimento científico, podem ser

13
compreendidos como sendo inter-relacionado. Com o desenvolvimento das
sociedades e com os avanços tecnológicos, os conhecimentos científicos
deixaram de ser considerados como categorias estanques cuja fronteira entre os
conteúdos são claramente demarcados. No entanto, as disciplinas possuem
conteúdos específicos que os caracterizam, e nesse sentido, o material didático
de Sociologia do Brasil tenta demarcar os conteúdos específicos dessa disciplina
escolar.
No livro didático da França, escolhe-se outro tipo de abordagem sendo o
processo de recontextualização realizado com base em alguns textos escritos
pelos próprios autores do livro, além das referências teóricas. No entanto, o
conteúdo de ciência política é apresentado tendo em vista uma gama de
informações direcionadas para seus os aspectos institucionais. O conteúdo de
ciência política abordada no material didático evidencia as normas que regem o
funcionamento das diversas instituições políticas.
A forma como os conceitos de democracia, cidadania e movimentos
sociais são abordados no conteúdo didático brasileiro está atrelado a uma
abordagem histórica, na qual são mobilizados recursos cronológicos para
promover a transposição didática. Nesse sentido, o conteúdo mostra-se dotado
de uma carga teórica ao mobilizar sempre um formato de definição dos conceitos
e as referências bibliográficas.
No livro francês, por seu turno, os conceitos de democracia, cidadania, e
movimentos sociais estão mais relacionados a uma ciência sociais aplicada, na
qual são mostrados a própria realidade da vida política francesa. A democracia
é interpretada nos termos de uma ciência política procedimental na qual é
mostrado o funcionamento do sistema político francês. Contudo, os conceitos
estudados estão, de uma forma geral, associados à ideia de participação da
população na vida política do país. Uma característica marcante nesse aspecto
é
Sendo assim, a forma pela qual os países adotam um formato de currículo
está relacionada a uma política cultural, e, portanto, a um tipo de política pública
que implicará, diretamente, na formação dos cidadãos de cada país. Em outras
palavras, a escolha do conteúdo na elaboração dos currículos indica que, por
meio do livro didático, “quem tem força nessa política impõe ao mundo suas

14
representações, o universo simbólico de sua cultura particular” (Costa, 2005,
p.35).
Sendo assim, a análise do material didático embasado no método
comparativo importa na compreensão do modelo de currículo que o sistema
educacional de cada um dos países adota. Adicionalmente, a diferença
encontrada no conteúdo estruturante dos livros didáticos pode indicar, dessa
forma, sobre os parâmetros culturais, políticos e econômicos relevantes para a
construção das organizações sociais, e para a formação de seus indivíduos.

Bibliografia
BODART, Cristiano das Neves; LOPES, Gleison Maia. A ciência política nas
propostas curriculares de sociologia para o ensino médio. Cadernos d
Associação Brasileira de Ensino em Ciências, Vol.1, nº.1, p. 131-152 | Jan./Jun.
2017.

BRITO, Silvia Helena Andrade de. A produção de manuais didáticos e o ensino


de sociologia na escola média em dois momentos históricos (1935-1989).
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, número especial, p. 58-75, maio 2010.

ÉCHAUDEMAISON, Claude-Danièle et al. Sciences sociales & politiques Term.


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LOPES, A.C. O pensamento sobre organização curricular. In Políticas de


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SCHNEKENBERG, Guilherme Fernando. Política e Ciência Política no livro


didático de Sociologia: teorias, temas e conceitos nos livros aprovados no PNLD
2015. V Encontro Nacional sobre o Ensino de Sociologia na Educação Básica,
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VÁRIOS AUTORES. Sociologia em movimento. São Paulo: Moderna, 2013.

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