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A ciência política em sala de aula: recursos didáticos e metodológicos

Article  in  Imagens da Educação · November 2015


DOI: 10.4025/imagenseduc.v5i3.26492

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A CIÊNCIA POLÍTICA EM SALA DE AULA: RECURSOS DIDÁTICOS


E METODOLÓGICOS1
http://dx.doi.org/10.4025/imagenseduc.v5i3.26492

Naiara Dal Molin*


Marcelo Pinheiro Cigales**

* Universidade Federal de Pelotas – UFPel. naymolin@terra.com.br


** Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. marcelo.cigales@gmail.com

Resumo
A questão das metodologias de ensino na área de Ciência Política há tempos é
abordada pela legislação que regula o ensino de licenciatura em Ciências Sociais no
Brasil. Este artigo busca discutir alternativas metodológicas para o ensino de
conteúdos da área de Ciência Política que abordam conceitos-chave como
democracia, participação, representação política e cidadania. A partir do conceito
de transposição didática, sugere-se a análise de letras músicas relacionadas às
questões políticas e sociais no contexto de redemocratização política no Brasil após
a ditadura civil-militar de 1964. Esse recurso didático e metodológico possibilita
que o professor sensibilize o aluno e viabilize o aprendizado que pode ser
entendido como o processo de transformação de um saber a ensinar em um objeto
de ensino.
Palavras-chave: ciência política, metodologia de ensino, transposição didática,
democracia.

Abstract. Political Science in the classroom: teaching resources and


methodology. The issue of teaching methodologies in the field of Political
Science has long been addressed by legislation regulating teaching degree in Social
Sciences in Brazil. This paper discusses methodological alternatives for teaching
contents in the area of Political Science, addressing key concepts such as:
democracy, participation, political representation and citizenship. From the
concept of didactic transposition, the analysis of songs related to political and
social issues in Brazil in the context of political democratization after civil-military
dictatorship of 1964 is suggested. This didactic and methodological resource allows
the teacher to sensitize the student and make learning possible which can be
understood as the process of transformation of knowledge to teach in an object of
teaching.
Keywords: political science, teaching methodology, didactic transposition,
democracy.

1
Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no IX Encontro Brasileiro de Ciência Política, em 2014.

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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conceitos em sala de aula; é, também, assumir o


Introdução compromisso de trabalhar de forma
interdisciplinar, pois, além de ser acessível à
grande maioria dos alunos, esse recurso é uma
A questão das metodologias de ensino na expressão artística e cultural que se insere em
área de Ciência Política há tempos é abordada quase todos os contextos sociais.
pela legislação que regula o ensino de Por meio da análise de conteúdo, foi
licenciatura em Ciências Sociais no Brasil. A possível contextualizar as letras musicais e
referida legislação aborda a dimensão prática que relacioná-las com a Ciência Política. A análise de
a área deve ter no processo de formação dos conteúdo pode entender-se como “[...] um
professores, explicitando que teoria e prática conjunto de técnicas de análise das
devem estar presentes desde o início do curso, comunicações” (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005,
de forma a facilitar tanto a aprendizagem como p. 308), e objetiva estabelecer uma significação
o desenvolvimento de sua prática docente profunda, legítima e científica de um texto ou de
(BRASIL, 2002). Nesse sentido, o objetivo deste um documento. Por meio dessa metodologia, é
trabalho é proporcionar aos estudantes de possível, portanto, “[...] ultrapassar as aparências,
licenciatura em Ciências Sociais e aos os níveis mais superficiais do texto, residindo
professores da área uma reflexão sobre a nesse processo de descoberta a desconfiança em
possibilidade de serem abordados conteúdos da relação aos planos subjetivo e ideológico [...]”
disciplina de Ciência Política por meio da música. (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, p. 310).
A música pode ser um recurso para aproximar e
relacionar as experiências subjetivas e o A transposição didática por meio da música
cotidiano dos estudantes com conceitos e
conteúdos da área de Ciência Política, tais como: O conceito que perpassa este artigo foi
democracia, participação, representação política trabalhado por Chevallard, que, em seu livro La
e cidadania em sala de aula. transposition didactique: du savoir savant au savoir
O referencial teórico se apoia no conceito de enseigné 2 , busca analisar como o conhecimento
transposição didática de Chevallard (2013) para científico é transposto para conhecimento
analisar três músicas que tratam de temas escolar. Apesar de Chevallard ser um
relacionados às questões políticas e sociais no pesquisador ligado ao ensino da matemática,
Brasil em período que abrange o contexto da muitas reflexões enquadram-se na análise de
ditadura civil-militar de 1964 e da outras áreas, como a das Ciências Sociais.
redemocratização. Ressalta-se que as músicas A transposição didática é realizada, segundo
apresentadas devem ser observadas no contexto o autor, em uma ‛noosfera’, uma esfera pensante,
histórico-social em que foram produzidas. na qual se encontram os aspectos objetivos do
Portanto, não são completas e acabadas, conhecimento a ser ensinado. Dessa forma, leis,
tampouco pretendem servir de padrão para o decretos, pesquisadores, professores, instituições,
trabalho com o assunto em voga; buscam universidades, especialistas etc. definem o que se
propiciar a abordagem do tema de uma maneira ensina e de que forma se ministram os
interdisciplinar, fazendo com que os alunos conteúdos escolares.
possam relacionar seu cotidiano com os
conceitos de Ciência Política. Na noosfera, pois, os representantes do
As músicas escolhidas para essa tarefa fazem sistema de ensino, com ou sem o mandato
parte do próprio contexto político e histórico- (desde o presidente de uma associação de
social que marcou profundamente nosso país, e, ensino até o simples professor militante),
se encontram, direta ou indiretamente,
ainda hoje, fomentam discussões e temas de
(por meio da comissão de ética, projetos
pesquisas no campo acadêmico. Para além do transacionais, comissões ministeriais) com
conteúdo propriamente dito, destacam-se as os representantes da sociedade (pais dos
canções que se enquadram no gênero da Música alunos, especialistas da disciplina que
Popular Brasileira (MPB). Desse modo, a fim de militam em torno de seu ensino, os
sugerir alternativas a serem trabalhadas em sala
de aula, detalham-se e contrastam-se as seguintes 2
Publicado pela primeira vez em 1991 e traduzido
canções: Disparada, de Geraldo Vandré; Apesar de para o espanhol com o título La transposición didáctica:
Você, de Chico Buarque; E É, de Gonzaguinha. del saber sabio al saber enseñado, alcançou a quarta
Trabalhar com músicas é mais que buscar reimpressão da terceira edição em 2013 pela editora
um recurso didático atrativo para abordar Aique, de Buenos Aires.

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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emissários do órgão político). diversificada e pode variar a depender do


(CHEVALLARD, 2013, p. 28-29)3. indivíduo. Cabe salientar, ainda, que a forma
tradicional da educação, apesar de todas as
Nesse sentido, para Chevallard (2013), a críticas que recebeu no decorrer de décadas, até
trajetória do saber passa por três níveis distintos: hoje se faz presente em grande parte do cenário
do momento em que é produzido educacional brasileiro 4 . Talvez isso aconteça
(conhecimento científico), passando pela escola porque custa ao professor encontrar novas
(conhecimento escolar) e chegando à sala de aula abordagens metodológicas que valorizem a
(trabalho interno de transposição). No último experiência dos educandos e pelas quais estes
estágio, o professor é o responsável pelo possam relacionar os conteúdos disciplinares
planejamento e pela gestão do saber, ainda que com os conceitos da área que se estuda.
possam haver formas de negociação com a Nesse sentido, as músicas apresentadas
turma. Nesse processo, é o professor quem podem servir para essa prática, desde que se
define o conhecimento a ser transposto, que levem em consideração os aspectos do contexto
passa a depender, assim, de aspectos subjetivos histórico-social em que foram produzidas, assim
do ministrante. Dessa forma, as experiências e como os da subjetividade dos alunos e
práticas subjetivas do professor afetam a forma professores. Destaque-se que essa interpretação
como o saber será transposto. também faz parte de nossas experiências
A transposição didática, nesse sentido, é um pessoais, que, de forma geral, orientaram nossas
conceito importante para se compreender como escolhas e análises. Logo, em sala de aula, cabe
ocorre o processo de ensino. Este não é algo ao professor conciliar tais aspectos
estático, parado no tempo, imóvel. Há inúmeras (subjetividade do aluno, subjetividade própria,
variáveis que devem ser levadas em conta, não conceitos científicos que pretende transpor).
somente em nível específico, tais como: o
conhecimento do professor e do aluno, mas Análise das músicas
também em nível geral, como o currículo, o
curso, os parâmetros curriculares e o próprio As três músicas que abordaremos refletem a
campo acadêmico em que o conhecimento é história política e social do Brasil. Disparada, de
produzido e reproduzido (BOURDIEU, 2012). Geraldo Vandré e Theo Bastos, assim como
Conhecer esses aspectos não é simples, pois Apesar de você, de Chico Buarque, foram
muitos deles agem de forma dissimulada, elaboradas no contexto do golpe de 1964, que
legitimando suas práticas e suas concepções. instalou a ditadura civil-militar e que, no ano de
Discutir essas questões nem sempre é 2014, completou cinquenta anos. Tais canções
confortável para o professor, pois se trata de fazem várias críticas a esse momento político,
uma estrutura vertical em que poucos se social e cultural do Brasil, porém não se
questionam ‘por que ensinar isso e não aquilo?’, restringem a isso, haja vista que vislumbram uma
‘por que aquele conhecimento deve estar no democracia possível. Enquanto a primeira é
programa e não este?’. composta antes do AI-55, a segunda retrata uma
Entende-se que a transposição didática realidade após esse decreto: a remoção de muitos
poder ser pensada a partir de diferentes esferas e dos direitos civis, políticos e sociais da
que, por isso, ocorre de diversas maneiras, não
havendo uma fórmula pronta e acabada de
transpor saberes. Essa aquisição se dá de forma
4
Para uma literatura crítica sobre a educação
consultar as obras de Freire (2005) e Apple (2006).
5 Os Atos Institucionais (AI) foram implantados
3 Traduzido do espanhol: “En la noosfera, pues, los durante o Regime Civil-Militar no Brasil. Conforme
representantes del sistema de enseñanza, con o sin Gomes e Lena (2014, p. 81) “[...] os militares
mandato (desde el presidente de una asociación de adoratam os AI – que viriam a ser normas de
enseñantes hasta el simple profesor militante), se natureza constitucional expedidas entre 1964 e 1969 –
encuentran, directa o indirectamente, (a través del como medidas precípuas de gestão política. Logo no
libelo denunciador, la demanda conminatoria, el primeiro AI se afirmava que o regime recém
proyecto transaccional o los debates ensordecidos de instaurado não procuraria legitimar-se através do
una comisión ministerial), con los representantes de la Congresso, mas, a contrário, o Congresso é que
sociedad (los padres de los alumnos, los especialistas receberia por meio daquele ato sua legitimação. Ao
de la disciplina que militan en torno de su enseñanza, todo foram promulgados 17 AI, que, regulamentados
los emisarios del órgano político).” (CHEVALLARD, por 104 Atos Complementares (AC), conferiram um
2013, p. 28-29). alto grau de centralização à administração e à política
do país”.

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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população. As músicas foram produzidas E nos sonhos que fui sonhando, as visões
utilizando-se de sentido figurado durante uma se clareando
época em que criticar o governo poderia As visões se clareando, até que um dia
ocasionar uma série de represálias, inclusive acordei
torturas e mortes. Por sua vez, a terceira música
Então não pude seguir valente em lugar
analisada foi composta no período da tenente
redemocratização. A música É, de Gonzaguinha, E dono de gado e gente, porque gado a
reflete o despertar da consciência política da gente marca
população brasileira nesse período e a exigência Tange, ferra, engorda e mata, mas com
da sociedade civil por seus direitos. gente é diferente
Antes da análise das músicas, devemos Se você não concordar não posso me
discorrer sobre o conceito de democracia. O desculpar
período histórico abordado, por abranger uma Não canto prá enganar, vou pegar minha
ditadura no Brasil, caracteriza-se pela falta de viola
democracia. Segundo o clássico estudo de Dahl Vou deixar você de lado, vou cantar
noutro lugar
(2012) sobre poliarquia, duas dimensões são
consideradas para a existência da democracia, a Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
saber: a contestação pública e a participação Não por mim nem por ninguém, que junto
política. Por isso, um regime que contém comigo houvesse
limitações à competição política e em que Que quisesse ou que pudesse, por
parcelas expressivas da população têm negado o qualquer coisa de seu
direito de voto não pode ser considerado Por qualquer coisa de seu querer ir mais
democrático. longe do que eu
Para discutir a forma como essa falta de
Mas o mundo foi rodando nas patas do
democracia se expressa no nosso objeto de
meu cavalo
estudo, passamos à análise da primeira música, E já que um dia montei agora sou
denominada Disparada e composta por Geraldo cavaleiro
Vandré e Theo de Barros. Laço firme e braço forte num reino que
não tem rei (VANDRÉ; BARROS, 1999).
Disparada
Prepare o seu coração prás coisas que eu Pelo significado do título da canção, pode-se
vou contar ter uma ideia de sua proposta. A música foi
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do
sertão
interpretada no Festival Popular da Canção por
Eu venho lá do sertão e posso não lhe Jair Rodrigues, em 1966. A canção dividiu o
agradar prêmio de primeiro lugar com A Banda, de
Aprendi a dizer não, ver a morte sem Chico Buarque. Contudo, é visível, para quem
chorar assiste ao vídeo do festival daquele ano, a
E a morte, o destino, tudo, a morte e o preferência do público por Disparada.6
destino, tudo A canção se insere nas músicas de protesto
Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar produzidas durante o período da ditadura civil-
militar brasileira, implementada em 1964. A letra
Na boiada já fui boi, mas um dia me se desenvolve numa espécie de narrativa de um
montei
Não por um motivo meu, ou de quem
boiadeiro que desperta para a realidade vivida
comigo houvesse naquele momento e retrata a conscientização
Que qualquer querer tivesse, porém por política desse sertanejo.
necessidade É importante lembrar que as artes, de um
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro modo geral, e a imprensa sofreram um duro
morreu processo de censura pelo Estado autoritário. No
período em que essa música foi composta,
Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço houve, por parte do governo militar, uma
forte preocupação com a institucionalização do novo
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era
um rei
6
O vídeo do Festival de 1966 pode ser visualizado no
Mas o mundo foi rodando nas patas do link
meu cavalo <https://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs
>. Acesso em: 02 mar. 2015.

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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Estado, assumindo grande importância a redação representando o governo, estava a Aliança


de uma nova constituição. Esta deveria Renovadora Nacional (Arena); do outro, uma
incorporar as várias medidas incluídas nos atos oposição responsável que oferecesse crítica
institucionais decretados até aquele momento, a construtiva ao governo, na visão dos
saber: o AI1, AI2 e AI3. idealizadores do Estado, o Movimento
Com o AI-1, foram suspensas Democrático Brasileiro (MDB).
temporariamente as garantias da imunidade Segundo Alves (2005), o Estado começou a
parlamentar, dando ao Executivo o poder de construir uma base paralela de poder em seu
cassar os mandatos de representantes próprio quadro legal por meio dos atos
governamentais. A partir desse ato, os poderes institucionais, bem como no aparato repressivo.
do congresso nacional ficaram drasticamente Instaurou-se um conflito permanente entre os
limitados e muitos poderes foram transferidos ao dois grupos dentro do Estado. A extinção dos
Executivo. O presidente da república poderia partidos políticos desarticulou a oposição,
introduzir emendas constitucionais e, pelo permitindo ao presidente Castelo Branco
mecanismo de decurso de prazo, os projetos aprofundar medidas para a institucionalização
considerados urgentes seriam automaticamente definitiva do Estado de Segurança Nacional
aprovados caso o Congresso não tomasse (ESN).
decisão no prazo de trinta dias. O Executivo O AI-3, de 1966, estabeleceu que, a partir
passou a ter competência exclusiva em legislação daquele momento, os governadores seriam
financeira ou orçamentária. Além disso, eleitos indiretamente por maioria absoluta das
transferiu do Congresso ao Executivo o poder assembleias legislativas. A votação seria pública e
de decretar Estado de Sítio, reservando ao nominal. Os prefeitos de todas as capitais teriam
Executivo o direito de rejeitar ou aprovar a de ser nomeados pelos governadores; os de
iniciativa (ALVES, 2005). outras cidades, por seu turno, poderiam ser
Já o AI-2, segundo Alves (2005), eleitos por voto popular secreto (ALVES, 2005).
implementou três categorias de medidas Disparada é uma canção engajada
destinadas a controlar o Congresso Nacional, o politicamente na crítica ao Regime. O narrador
Judiciário e a representação política. Esse Ato da história deixa bem claro que, mesmo não
determinou a redução da maioria de dois terços agradando a todos, não se priva de dizer ou de
para a maioria simples no que concerne ao ‛cantar’ o que pensa. Isso se sugere nos versos
número de votos necessários à aprovação de em que reforça a identidade de sertanejo: “Eu
emenda constitucional apresentada pelo venho lá do sertão e posso não lhe agradar”
Executivo. Além disso, estabeleceu o prazo (VANDRÉ; BARROS, 1999). A afirmação da
máximo de 45 dias para que o Congresso identidade de protesto aparece várias vezes na
discutisse qualquer projeto de lei de iniciativa do letra da música, como nos versos a seguir:
presidente da república e de trinta dias para que “Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar”
decidisse sobre projetos de urgência. (VANDRÉ; BARROS, 1999). A coragem do
O ato institucional aumentou o número de narrador mistura a noção da coragem do
ministros do Superior Tribunal Federal (STF) boiadeiro, do vaqueiro, com a coragem para a
indicados pelo presidente para garantir maioria luta política. A morte causada pelo aparelho
em caso de interesse do Executivo. Também repressivo do Estado fez parte da realidade
transferiu aos tribunais militares os processos brasileira naqueles anos. “E a morte, o destino,
que envolvessem questões de segurança nacional, tudo... estava fora de lugar, eu vivo pra conserta”
eliminando a possibilidade de recurso. Previu, (VANDRÉ; BARROS, 1999). Nesse excerto, há
ainda, que o presidente da república e o vice- a disposição do narrador em mudar a realidade,
presidente fossem eleitos indiretamente por um em consertar o que está errado; as coisas não
colégio eleitoral: uma eleição que ocorreria em deveriam estar fora de lugar, por isso, é preciso
sessão pública com voto nominal. Os direitos reacomodá-las. Na afirmação “eu vivo prá
políticos seriam suspensos por dez anos para consertar” (VANDRÉ; BARROS, 1999) existe
aqueles que desafiassem a segurança nacional e mais que uma disposição de mudar a realidade,
as cassações não teriam substituições. há um objetivo de vida: ‛consertar’. A
O fato político mais importante do AI-2 foi apresentação disso é feita em tom de desafio,
a extinção dos partidos existentes. Como as por alguém que vê a morte sem chorar.
exigências para a constituição de novos partidos Os versos da segunda estrofe narram a
eram muito grandes, na prática, constituiu-se, no história do boiadeiro. “Na boiada já fui boi, mas
Brasil, o bipartidarismo forçado. De um lado, um dia me montei [...]” (VANDRÉ; BARROS,

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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1999). Abordam-se as circunstâncias em que o despertar político, o narrador poderia fazer com
narrador se torna um boiadeiro “por que outros também acordassem do sonho para a
necessidade/ Do dono de uma boiada cujo realidade da ditadura no Brasil. É como se
vaqueiro morreu” (VANDRÉ; BARROS, 1999). dissesse: Acorda! O Congresso está com seus
No entanto, a expressão “na boiada já fui boi” poderes diminuídos, os partidos foram extintos,
(VANDRÉ; BARROS, 1999) pode também não temos liberdade de opinião e de expressão
referir-se ao fato de que ele fora mais um, sem no país! As pessoas estão perdendo seus direitos
senso crítico, que apenas seguia o rumo de um políticos; estão sendo presas, torturadas e mortas!
grupo, de outros, sem se questionar sobre a Não podemos mais escolher nossos
realidade que o cercava. governadores e nem os prefeitos das capitais.
Os próximos versos, que figuram na terceira Os versos da quarta estrofe simbolizam o
estrofe, narram a saga do boiadeiro: “Boiadeiro período após o despertar político do narrador,
muito tempo, laço firme e braço forte/ Muito que não pode seguir como se nada tivesse
gado, muita gente pela vida segurei/ Seguia acontecido. “E dono de gado e gente, porque
como num sonho, e boiadeiro era um rei” gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e
(VANDRÉ; BARROS, 1999). Retrata-se, neles, mata, mas com gente é diferente” (VANDRÉ,
o sonho no qual vivem os autores, distante da BARROS, 1999). Trata-se de um alerta, para
realidade, de falta de liberdade do país. O trecho aqueles que dominam pela força e apostam na
pode significar que, no âmbito pessoal, os subserviência dos demais, de apenas seguir como
autores estavam plenamente realizados no ruminantes, sem pensar. O narrador, ao
cumprimento do ofício de boiadeiro; não diferenciar gado de gente, adverte que pessoas
obstante, pode significar, de um ponto de vista pensam e que podem despertar do sonho para a
mais abrangente, em termos das classes sociais, realidade a qualquer momento. É, ao mesmo
que o boiadeiro era o rei, não era contestado, tempo, um alerta para as autoridades do ESN,
tinha o domínio do gado e das pessoas para as classes dominantes de um modo geral, e
hierarquicamente inferiores a ele na escala social. um chamamento para as classes populares
O fato de ser boiadeiro seria suficiente para fazer dominadas, ou para a população em geral, para
a felicidade do narrador, uma vez que era uma que abram os olhos à realidade. Lembremos que,
pessoa realizada por meio do seu ofício, do seu nesse período, ainda não havia sido decretado o
trabalho. Nesse sentido, aponte-se que muitas AI-5 (denominado ‛o golpe dentro do golpe’), o
pessoas, no Brasil, viveram o período da ditadura mais restritivo dos atos institucionais, que marca
sem notar a falta de liberdade, as prisões, as a ascensão da linha dura ao poder. Em 1966,
torturas e as mortes que ocorreram no período. havia a esperança de que o Brasil pudesse voltar
Pode-se, inclusive, trabalhar com os dados sobre a ser uma democracia. Essa foi a promessa que
a democracia no Brasil e ver que uma grande os militares fizeram ao assumir o poder em 1964
percentagem da nossa população não tem a e que se mantinha em 1966, numa dialética
democracia como um valor a ser defendido nos relação entre Estado e oposição (ALVES, 2005).
dias atuais. Por isso, é comum ouvir-se falar que Os últimos versos da quarta estrofe se
no tempo dos militares não havia tanta referem àqueles que não concordam com a visão
desordem, tantos problemas com drogas e tantas do narrador. O narrador afirma que se isso “[...]
favelas como existem hoje. acontecer/ Não posso me desculpar/ Não canto
Os versos seguintes da terceira estrofe “Mas prá enganar, vou pegar minha viola/ Vou deixar
o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo/ você de lado, vou cantar noutro lugar”
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se (VANDRÉ, BARROS, 1999). Com certeza,
clareando/ As visões se clareando, até que um haveria quem não concordasse com o canto
dia acordei” (VANDRÉ; BARROS, 1999) alusivo ao despertar da consciência política dos
sinalizam a conscientização política do narrador. autores. Mas os autores não se desculpariam,
Ele acordou de um sonho, que foi interrompido utilizariam seus versos – que funcionam como
pela consciência da realidade que o cercava. Mas um discurso político – para convencerem outros
o movimento do mundo rodando nas patas do para a causa deles, que era a da liberdade, a de
seu cavalo fez com que houvesse uma mudança, certa dose de igualdade, e que se manifesta no
nascendo, assim, a ideia de uma relação causa- último verso da música: “Laço firme e braço
efeito entre o movimento e a mudança. Foi a forte num reino que não tem rei” (VANDRÉ,
sonoridade estridente da realidade que o BARROS, 1999). A ousadia e a coragem dos
despertou daquele sonho, daquela fantasia que autores, no entanto, foram alvo de repressão.
vivera até então. Ao contar a história de seu Geraldo Vandré teve sua coragem testada pelo

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.


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regime militar, sendo preso e torturado. Hoje, ao Nesse meu penar


assistirmos a documentários e a entrevistas com
Vandré, não conseguimos reconhecer o jovem Apesar de você
corajoso que escrevera esses versos e tantos Amanhã há de ser
Outro dia
outros, que desafiara um regime de exceção com
Você vai ter que ver
suas lindas canções, conclamando a todos para A manhã renascer
lutar pela liberdade e falando de flores em E esbanjar poesia
tempos de canhões. Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
Apesar de você De repente, impunemente
Hoje você é quem manda Como vai abafar
Falou, tá falado Nosso coro a cantar
Não tem discussão Na sua frente
A minha gente hoje anda
Falando de lado Apesar de você
E olhando pro chão, viu Amanhã há de ser
Você que inventou esse estado Outro dia
E inventou de inventar Você vai se dar mal
Toda a escuridão Etc. e tal (BUARQUE, 1978).
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar A música Apesar de você, de Chico Buarque,
O perdão foi composta em 1970, período imediatamente
posterior à decretação do AI-5. Para “driblar” a
Apesar de você
Amanhã há de ser censura, o autor utiliza uma linguagem figurada,
Outro dia sugerindo que a música trata de uma relação
Inda pago pra ver amorosa, na qual a mágoa do autor poderia ser
O jardim florescer interpretada como decorrente de um amor não
Qual você não queria correspondido. No entanto, o fato de a música
Você vai se amargar ter claros objetivos políticos fez com que fosse
Vendo o dia raiar censurada e pudesse ser incluída somente em um
Sem lhe pedir licença álbum de 1978.
E eu vou morrer de rir O AI-5 deu plenos poderes ao Executivo
Que esse dia há de vir
para fechar o Congresso Nacional, as
Antes do que você pensa
assembleias estaduais e as câmaras municipais.
Apesar de você Também permitiu a cassação de mandatos
Amanhã há de ser eleitorais de membros dos poderes Executivo e
Outro dia Legislativo nos níveis federal, estadual e
Eu pergunto a você municipal (ALVES, 2005).
Onde vai se esconder Além disso, suspendeu por dez anos os
Da enorme euforia direitos políticos dos cidadãos e a reinstituição
Como vai proibir do Estatuto dos Cassados. O AI-5 previu o direito
Quando o galo insistir de emitir, remover, aposentar e pôr em
Em cantar
disponibilidade funcionários públicos, juízes,
Água nova brotando
E a gente se amando afetando a vitaliciedade, a inamovilidade e a
Sem parar estabilidade do Judiciário. Deu ao Executivo o
poder de decretar estado de sítio, direito de
Quando chegar o momento confiscar bens, como, por exemplo, em casos de
Esse meu sofrimento punição por corrupção.
Vou cobrar com juros, juro Um dos direitos civis fundamentais – o
Todo esse amor reprimido habeas corpus – foi suspenso em todos os casos de
Esse grito contido crimes contra a segurança nacional. O
Este samba no escuro julgamento de crimes políticos passou a ser
Você que inventou a tristeza
realizado por tribunais militares. O AI-5 deu ao
Ora, tenha a fineza
De desinventar Executivo os direitos de legislar por decreto e de
Você vai pagar e é dobrado baixar outros atos institucionais ou
Cada lágrima rolada complementares. Previu também a proibição de

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que o Judiciário apreciasse recursos impetrados renascer/ E esbanjar poesia”. O governo é


por pessoas acusadas pelo AI-5. Segundo Alves questionado: “Como vai se explicar [...]”,
(2005), o AI-5 marcou o fim da primeira fase de lembrando que, em algum momento, depois das
institucionalização do ESN e provocou um mudanças e do retorno à liberdade, o governo
padrão constante de sublevação oposicionista será chamado para explicar as prisões, as torturas
contra ofensiva por parte do Estado. e as mortes, bem como o cerceamento da
Talvez seja por esse motivo que o autor liberdade. Afinal de contas “O céu vai clarear de
inicia a música afirmando o poder de mando do repente, impunemente” (BUARQUE, 1978).
Estado. “Hoje você é quem manda/ Falou tá Esse último termo tem uma função importante
falado/ Não tem discussão”. As consequências na letra, ao remeter à ideia de punição. Um
dessa falta de liberdade de opinião vêm logo a regime que pune constantemente seus críticos
seguir: “A minha gente hoje anda/ Falando de não poderá punir para sempre aqueles que
lado/ E olhando pro chão, viu” (BUARQUE, desejam a mudança política, aqueles que buscam
1978). a luz que vem clarear o horizonte, ou seja, acabar
A responsabilidade por tudo o que estava com a escuridão. Afinal, não há como punir,
acontecendo é imputada ao governo ou ao nem como abafar o coro do povo que está a
Estado repressor: “Você que inventou esse “cantar na sua frente” (BUARQUE, 1978).
estado, e inventou de inventar toda a escuridão”. Na última estrofe, ressurge a dura realidade
Esse Estado não perdoa, não permite oposição, de um regime sem liberdade, de “Todo esse
segundo o autor: “Você que inventou o pecado/ amor reprimido/ Esse grito contido/ Esse
Esqueceu-se de inventar o perdão” (BUARQUE, samba no escuro”. Mas, novamente, temos a
1978). presença da esperança em um momento de
Na segunda estrofe, percebemos o estado de redenção, no qual “Esse meu sofrimento/ Vou
espírito do autor, que acredita na mudança do cobrar com juros, juro” (BUARQUE, 1978).
rumo político do país. “Apesar de você”, desse Quando esse momento chegar, e quando o
Estado autoritário, desse governo... “Amanhã há regime ou o presidente tenham a fineza de
de ser outro dia”. Em seguida, surgem várias ‘desinventar’ a tristeza, será um momento de
expressões que demonstram essa esperança e acerto de contas do governo com seu povo.
esse otimismo: “enorme euforia”, “Água nova Afinal, “Você vai pagar e é dobrado/ Cada
brotando/ E a gente se amando sem parar” lágrima rolada/ Nesse meu penar”. E a música é
(BUARQUE, 1978). Ao mesmo tempo que crê encerrada num tom ameaçador, apontando para
na mudança, o autor adota um tom provocativo esse novo dia, no qual o governo “[...] vai se dar
em relação ao governo. Isso fica evidente no mal/ Etc. e tal” (BUARQUE, 1978).
trecho: “Como vai proibir/ Quando o galo O tom provocativo de Chico Buarque lhe
insistir em cantar” (BUARQUE, 1978). causou perseguições durante todo o período do
Percebemos que o autor deseja dizer que não se regime militar. O compositor chegou a utilizar
pode calar a todos o tempo todo. pseudônimos para enganar a censura. Apesar de
Ao analisarmos a letra dessa música, você é um dos exemplos da criatividade de um
percebemos que Chico Buarque dedica somente compositor que, por meio das figuras de
a primeira estrofe para falar da escuridão da linguagem, expressa o desejo de mudança em um
ditadura, enquanto nas três estrofes restantes tempo no qual não se podia dizer abertamente o
encontramos a alternância entre essa grande que se pensava, não impunemente, como bem
expectativa por mudança e a crítica ao governo, retrata a letra.
ao regime e ao presidente. A provocação fica
evidente nos versos: “Inda pago pra ver/ O É
jardim florescer qual você não queria”. O autor a gente quer valer o nosso amor
afirma que o governo (que aqui poderia parecer a gente quer valer nosso suor
se tratar de um amor não correspondido) “Vai se a gente quer valer o nosso humor
a gente quer do bom e do melhor
amargar/ Vendo o dia raiar/ Sem lhe pedir
a gente quer carinho e atenção
licença”. Em tom sarcástico, o autor afirma que a gente quer calor no coração
“E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/ a gente quer suar mas de prazer
Antes do que você pensa” (BUARQUE, 1978). a gente quer é ter muita saúde
Na penúltima estrofe, temos novamente o a gente quer viver a liberdade
refrão: “Apesar de você/ Amanhã há de ser a gente quer viver felicidade
outro dia”. E, diante dessa nova situação que se É
afigura, o presidente terá de admitir “A manhã a gente não tem cara de panaca

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a gente não tem jeito de babaca de cidadania, cunhado na obra Cidadania, classe
a gente não está com a bunda social e status, na qual o autor resgata o
exposta na janela pra passar a mão desenvolvimento da cidadania no fim do século
nela XIX e no século XX. Marshall divide o conceito
É em três partes: civil, político e social. Nas
a gente quer viver pleno direito
a gente quer é ter todo respeito
palavras do próprio autor:
a gente quer viver numa nação
a gente quer é ser um cidadão O elemento civil é composto dos direitos
(GONZAGA JUNIOR, 1988). necessários à liberdade individual –
liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa,
pensamento e fé, o direito à propriedade e
A música É, de Gonzaguinha, foi lançada de concluir contratos válidos e o direito à
em 1988. Nesse mesmo ano foi promulgada uma justiça [...]. Por elemento político se deve
nova constituição para o país. Segundo Gomes, entender o direito de participar no
exercício do poder político, como um
A Constituição de 1988 consagrou um membro de um organismo investido da
novo patamar para os direitos da cidadania autoridade política ou como um eleitor
no Brasil, expandido os políticos, dos membros de tal organismo [...]. O
resguardando os civis e incorporando os elemento social se refere a tudo que vai
sociais. Desse modo, tornou-se conhecida desde o direito a um mínimo de bem-estar
como a ‘Constituição Cidadã’, econômico e segurança ao direito de
particularmente por inaugurar novas participar, por completo na herança social
dimensões de direitos, como o direito do e levar a vida de um ser civilizado de
consumidor, e por fortalecer instituições, acordo com os padrões que prevalecem na
como o Ministério Público, cujo papel na sociedade (MARSHALL, 1967, p. 63-64).
salvaguarda da cidadania tem-se
demonstrado valioso e crescente (GOMES, É nesse sentido que podemos entender a
2002, p. 63). música de Gonzaguinha como uma versão
poética da exigência de direitos no Brasil. Numa
A música analisada retrata, de modo vivo, o mistura de questões ligadas às esferas pessoal ou
período da redemocratização no Brasil e a privada, ou ligadas a sentimentos como amor,
efervescência dos movimentos sociais que carinho e atenção, prazer, humor, o compositor
despontaram após longos anos de ditadura civil- traz também os direitos coletivos. Ele afirma “a
militar. Registram-se, nesse sentido, os gente quer é ter muita saúde, a gente quer viver a
movimentos populares de bairros, o movimento liberdade” (GONZAGA JUNIOR, 1988). Isso
feminista e o movimento sindical. Este último remete aos direitos sociais, como o direito à
destacou-se com as greves do ABC paulista, que saúde, bem como aos direitos civis e políticos,
se concentraram, principalmente, no período de como o direito à liberdade, que envolve os
1978 a 1980 e que se espalharam no tempo e no direitos de ir e vir, e à livre expressão, tão
espaço. cerceados no período da ditadura civil-militar.
A canção foi composta após o fim do ESN Gonzaguinha encerra a primeira parte da
implantado no Brasil, quando se buscava uma música com a expressão “a gente quer viver
participação política mais intensa. Nesse felicidade”. Para se ter felicidade, precisamos ter
momento histórico-político, os brasileiros viram nosso amor, receber carinho e atenção, ter muita
frustrada a aprovação da emenda Dante de Oliveira saúde, viver a liberdade. As marcas da visão
no Congresso, que propunha eleições diretas coletiva do autor estão presentes na reincidência
para presidente da república. A campanha Diretas das expressões ‘a gente’ e ‘nosso’.
Já conseguiu reunir milhares de pessoas em Até o humor é ‛nosso’. Afinal, ter calor no
praças públicas, numa demonstração de coração pode não significar algo individual, mas
participação política, exigindo o direito de algo da gente brasileira. O carinho e a atenção
escolher o presidente. não têm de ser necessariamente individuais,
O compositor Gonzaguinha mistura as podem ser o carinho e a atenção das autoridades,
esferas pública e privada na música, colocando dos políticos ou daqueles que tomam as decisões
como sujeito ‛a gente’, e passa a listar uma série públicas. A música fala em nome dessa gente
de direitos no horizonte do conceito de brasileira que estava expressando suas vontades
cidadania. Esse, por exemplo, é um conceito- nesse momento. Por isso, o termo ‛quer’ tem um
chave que pode ser trabalhado com a música. significado-chave na letra e remete a várias
Podemos utilizar o clássico conceito de Marshall

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demandas contidas no querer do povo ao longo de uma nação na qual a cidadania tenha um
da história do país. papel central.
É o momento de expressar esse ‛querer A nação brasileira foi um tema de
mais’ da população, sufocada por 21 anos de preocupação de diversos pensadores e artistas
ditadura e sem acesso ao mínimo de bem-estar, brasileiros que, desde José de Alencar, tentam
assolada pelo arrocho salarial e pela inflação. consolidar nossa identidade. A preocupação
Essas pessoas tiveram pouca participação central de Gonzaguinha, porém, talvez não seja a
política ao longo da nossa história e não questão da identidade nacional baseada na raça,
figuraram como atores políticos importantes na embora, com certeza, os tópicos da desigualdade
independência do país, nem na proclamação da e do preconceito racial estejam presentes quando
república. Elas tiveram os direitos sociais se trata de cidadania. O acesso aos bens e às
‛concedidos’ pelo Estado após 1930, antes informações, em nosso país, sempre esteve
mesmo de os direitos civis e políticos lhes serem relacionado a questões raciais e de gênero.
assegurados. A nação presente na música de
Entendemos essa letra como uma tentativa Gonzaguinha é uma nação de direitos plenos, na
de abordar a visão da população brasileira e de qual o povo quer ser cidadão. É uma nação que
seus quereres. Ao mesmo tempo que o autor respeita os direitos das pessoas que querem
afirma isso na primeira estrofe, na segunda, expressar suas opiniões e suas vontades (o
afirma o que não é. A interjeição de negação tem querer é a expressão da vontade na música).
um papel fundamental. Afinal, “a gente não tem Vontades que devem ser respeitadas por aqueles
cara de panaca/ a gente não tem jeito de que tomam as decisões, pois a população
babaca...” Isso pode ser analisado do prisma de expressa sua visão por meio da luta por direitos,
que estava havendo uma conscientização da cada vez mais presente na sociedade brasileira.
população em busca dos seus direitos A música também pode ser vista como um
fundamentais e de que não seria fácil enrolar o sinal de alerta para o despertar da consciência
povo com promessas vãs. Assim, “a gente não política da população brasileira no processo de
está com a bunda exposta na janela pra passar a redemocratização: seja com base num viés
mão nela” (GONZAGA JUNIOR, 1988). crítico representado na luta pelos direitos, seja
Podemos trabalhar, nesse momento, em sala por meio de um momento de esperança, de um
de aula, com a noção de consciência política da novo tempo de maior participação política. O
população e do despertar na luta por direitos. O período em que se compôs a música É foi um
autor sinaliza o fato de que o povo – a momento crítico do ponto de vista econômico,
população ou essa gente – sabe dos seus direitos com hiperinflação e um endividamento externo
e não se deixará enganar facilmente. crescente do Brasil, no qual era cada vez mais
Na última estrofe da música, Gonzaguinha difícil às classes mais baixas ter boa qualidade de
afirma que “a gente quer viver pleno direito/ a vida. A discussão leva à abordagem de uma
gente quer é ter todo respeito” (GONZAGA temática sempre presente e atual, a da
JUNIOR, 1988). Esses versos remetem à busca constituição da nação brasileira: uma nação que,
da plenitude dos direitos, tão distante de ser para Gonzaguinha, não pode prescindir da
alcançada no Brasil – um dos países mais cidadania.
desiguais do mundo. Aparece, após, outra
categoria fundamental para se entender a visão Considerações finais
do autor: a noção de respeito. Por um lado,
Gonzaguinha traz a visão da população, exigindo Após essa reflexão, concluímos que
dos governantes e das elites do país o respeito trabalhar com a música nas aulas de Ciência
que pouco demonstraram pelo povo ao longo da Política é buscar uma metodologia diferenciada
nossa história. Por outro lado, o respeito pode para a transposição de conceitos. A transposição
ser interpretado como aquele que o povo deve didática tem papel fundamental nesse processo,
ter pelo bem público, fazendo a sua parte para pois, por meio dela, o professor pode sensibilizar
que as coisas funcionem. o aluno e viabilizar o aprendizado, que se
Nos últimos versos, dois conceitos entende como o processo de transformação de
fundamentais podem ser trabalhados de forma “[...] um saber a ensinar em um objeto de
individual ou conjunta: o de nação e o de ensino” (CHEVALLARD, 2013, p. 45), em
cidadão. Nos versos “a gente quer viver uma outras palavras, é o conhecimento científico
nação/a gente quer é ser um cidadão” transposto em conhecimento escolar.
(GONZAGA JUNIOR, 1988), remete-se à ideia

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Esse processo não pode ser entendido como FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 41. ed.
vertical e finito, mas contínuo, dialogado e Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
prazeroso. Além disso, praticizar a teoria e
teorizar a prática (FREIRE, 2005) são GOMES, V. L. C.; LENA, H. de. A construção
movimentos intelectuais que precisam ser autoritária do regime civil-militar no Brasil:
exercitados cada vez mais nos cursos de Ciências Doutrina de Segurança Nacional e Atos
Sociais, e a música pode se tornar um suporte Institucionais (1964-1969). OPSIS, v. 14, n. 1, p.
importante para a realização dessa tarefa. 79-100, set. 2014.
Desse modo, foi possível abordar categorias
e conceitos da área de Ciências Sociais que GOMES, A. de C. Cidadania e direitos do
podem ser aplicados na prática educativa nas trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
aulas de Ciência Política, tais como: democracia,
ditadura, cidadania, representação, governo, GONZAGA JUNIOR, L. É. In: ______. São
nação, corrupção, participação política etc. Mais Paulo: Warner Music Group, 1988. CD-Rom.
que uma proposta metodológica, busca-se
conciliar a teoria com uma prática que esteja MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e
contemplada no cotidiano do aluno para, assim, status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
possibilitar a concretização do que se prevê nas
resoluções concernentes ao ensino de ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. Análise de
licenciatura em Ciências Sociais no ensino conteúdo e análise do discurso: aproximações e
superior (BRASIL, 2002). afastamentos na (re)construção de uma trajetória.
Alea, v. 7, n. 2, p. 305-322, 2005.
Referências
VANDRÉ, G.; BARROS, T. de. Disparada. In:
ALVES, M. H. M. Estado e oposição no RODRIGUES, J. 500 anos de folia. São Paulo:
Brasil: 1964-1984. São Paulo: Edusc, 2005. Trama, 1999. [ano de composição 1966]. CD-
Rom.
APPLE, M. W. Ideologia e currículo. 3. ed.
Artmed: Porto Alegre, 2006.

BOURDIEU, P. O Poder simbólico. 16. ed. Recebido em: 11/02/2015


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. Aceito em: 06/04/2015

BUARQUE, C. Apesar de você. In: ______.


Chico Buarque. São Paulo: Polygram/Philips,
1978. [ano de composição 1970]. CD-Rom.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação.


Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1 de 18
de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, em nível
superior, curso de licenciatura, de graduação
plena. Disponível em: <
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp
01_02.pdf>. Acesso em: 23 out. 2015.

CHEVALLARD, Y. La transposición
didática: del saber sabio al saber enseñado. 3.
ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 2013.

DAHL, R. Poliarquia: participação e oposição.


São Paulo: EDUSP, 2012.

MOLIN, N. D.; CIGALES, M. P. Imagens da Educação, v. 5, n. 3, p. 19-29, 2015.

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