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O que buscamos nos capítulos anteriores foi situar uma realidade histórica,
produzida de forma específica nas relações sociais brasileiras, cujo resultado é de uma
sociedade de aguda desigualdade e injustiça. As práticas educativas escolares e, mais
amplamente o conjunto das práticas sociais onde as crianças, os jovens e os adultos se
educam ou deseducam não estão descoladas das relações de classe, poder e de violência
(simbólica e física) que se efetivam neste monstrengo social. Elas são constituídas e
constituintes do mesmo.
A classe dominante ou burguesia brasileira e seus intelectuais, não só no campo
educacional, mas mais amplamente nas esferas econômica, social, política, cultural e
artística tem se apoiado na construção ideológica que contrapõe a quantidade à
qualidade. No campo específico da educação escolar tem sido um senso comum do
pensamento dominante, introjetado de forma muito ampla na categoria dos professores,
técnicos, alunos e pais, a antinômica entre a quantidade e a qualidade. Assim, a queda
da qualidade na escola pública e na universidade estaria relacionada à massificação da
escola mediante uma crescente luta da classe trabalhadora pelo direito à educação
pública. Por outra parte, de forma crescente e intensa, o tema da qualidade tem ocupado
os debates das conferências internacionais sobre educação e os documentos de
organismos internacionais vinculados ao sistema econômico.
Uma análise histórica sobre a questão da relação quantidade-qualidade na
educação, de imediato, nos revela que a mesma está visceralmente entranhada nas
1
Ao longo deste texto estaremos utilizando o conceito de tecnologia não em seu sentido comum de up-
grate da técnica, mas como a entende Carlos Paris (2000) como um salto qualitativo na forma de tratar a
matéria e os processos produtivos. Da mesma forma, entendemos o conceito de educação tecnológica no
sentido de educação politécnica na compreensão dada por Dermeval Saviani (2006) e desenvolvida no
capitulo anterior ( cap. III).
2
. Cap. IV do Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro. UERJ.CNPq. 2008 .
concepções de natureza e ser humano e nas relações sociais dominantes. Isto significa
dizer que seu entendimento e a explicitação de sua natureza vinculam-se aos mesmos
processos históricos das sociedades de classe nos quais estão inseridas as lutas pela
igualdade de condições (objetivas e subjetivas) de produção da existência humana. Do
mesmo modo vinculam-se aos processos históricos das lutas pela democracia, liberdade
e igualdade entre os seres humanos, nos limites das sociedades de classe e na busca de
sua superação.
Este pressuposto nos conduz a um segundo, de natureza teórico-metodológica o
qual nos serviu de eixo analítico da pesquisa em seu conjunto. A relação entre
quantidade e qualidade de educação vincula-se, primeiramente, a determinada
concepção de realidade, a métodos de abordá-la e a formas concretas ou a políticas de
tratá-la3. Vincula-se, por outro lado, às formas que assumem as relações sociais na
singularidade e particularidade dos processos históricos. Para o que nos interessa mais
especificamente, esta relação assume determinações específicas em sociedades
capitalistas dos centros hegemônicos do capital e em sociedades de capitalismo
dependente.
Neste capítulo trataremos, inicialmente, de evidenciar que a concepção da
relação quantidade-qualidade vincula-se à concepção da realidade humana no seu
conjunto e que se trata, portanto, de uma construção de uma concepção de acordo como
a ótica de classe. Em seguida nos buscaremos aprofundar a compreensão desta relação
na concepção burguesa e mercantil e sua especificidade na realidade brasileira,
sociedade de capitalismo dependente.
Examinaremos, em seguida, de forma exemplificativa, as mediações mais gerais
das “bases materiais” e das concepções e práticas pedagógicas de algumas escolas de
ensino médio técnico no Brasil.4 Nos interessa assinalar em que medida estas escolas
3
. Para o leitor interessado em aprofundar esta relação, ver Frigotto (1989) . Vale ressaltar que, na esteira
do entendimento de Marx, assumimos que nenhuma teoria, senso comum ou ideologia são despidas de
efeito sobre as ações humanas. Daí constituírem-se em parte da realidade mesma. Por isso o foco de
embate não é atribuir maquiavelismo as visões de mundo antagônicas da burguesia e de seus intelectuais
e às ações e políticas que daí decorrem, ainda que possa haver atitudes maquiavélicas.
4
. Esta exemplificação se fixa em três instituições (A, B. e C) que, de acordo com alguns indicadores que
desenvolveremos no item 4.3, as constituem como as de melhor qualidade no ensino público de nível
médio no Brasil. Esta exemplificação, todavia, toma um sentido mais amplo quando a relacionamos aos
projetos de pesquisa anteriores sobre o ensino médio técnico no Brasil. Os três últimos Projetos
Integrados que desenvolvi com o apoio do CNPq foram: Conhecimento e qualificação do trabalhador;
desafios face à nova base técnica do processo produtivo” (no período de 1994 a 1997); Educação básica,
formação técnico-profissional, empregabilidade e requalificação face aos limites do desenvolvimento e
crise do trabalho assalariado (Período de 1998 a 2000); e, finalmente, o Projeto Integrado desenvolvido
com Maria Ciavatta e outros pesquisadores associados sobre: A formação do "cidadão produtivo" – da
responde às demandas do mercado capitalista no Brasil, sociedade de capitalismo
dependente e/ou em que medida correspondendo à qualidade técnico/científica
mercantil buscam questionar as relações sociais dominantes na perspectiva de melhorar
as relações sociais capitalistas ou de superá-las.
Por fim, no último item, buscaremos esclarecer o enigma do denominado apagão
educacional centrado na idéia de que a escola brasileira não produz egressos em
quantidade e qualidade suficientes às demandas de um mercado emergente e de
crescimento acelerado. O foco aqui é demonstra que a análise dicotômica e antinômica
se fixa na realidade fenomênica e não alcança o terreno dos conflitos e contradições
resultantes de uma construção social produzida pela classe ou frações de classe que
reclamam do “apagão educacional”.
política de expansão do ensino médio técnico nos anos 80 à fragmentação da educação profissional nos
anos 90: entre discursos e imagens (Período de 2001 a 2004). Em relação à esta última pesquisa mais
diretamente vinculada ao que assinalo aqui com respeito às escolas tomadas como referência neste
trabalho, ver Frigotto, G. e Ciavatta. M. ( 2006)
5
. Registro e, ao mesmo tempo, agradeço a efetiva colaboração de Carlos Roberto Alexandre no
desenvolvimento deste capítulo. Ressalto, sobretudo, sua leitura atenta e crítica e a parcimoniosa atenção
com o desenvolvimento e mediações históricas implicadas nesta temática. A responsabilidade de
imprecisões que porventura permaneçam no texto é, todavia, de minha responsabilidade.
6
. Utilizamos aqui a compreensão de KOSIK (1978) que utiliza a idéia de visão metafísica no sentido de
uma visão religiosa e teocêntrica do mundo para referir-se a visões que buscam uma essência humana
transcendental ou a-histórica. Assim se refere à metafísica da vida cotidiana, metafísica da razão e da
cultura ou da realidade concebida como soma de fatores isolados
7
. Em Marx e Engels o modo de produção social constitui-se fundamentalmente por uma estrutura de
relações sociais que organizam a base material – relações econômicas ( não como fato, mas como uma
estrutura de relações), as relações políticas, jurídicas, éticas, religiosas, culturais justificadas por
concepções de realidade, teorias, idéias, ideologias, valores, símbolos, etc., e instituições que tem a
função de reproduzir a ordem social vigente.
existência de forças ou de ser eterno, fixo, onipotente e imutável. Isso não elide a
existência de um pensamento divergente que já engendra os elementos da dialética
como aponta Konder. Nos fragmentos deixados por Heráclito, pode-se ler que tudo
existe em constante mudança, que o conflito é o pai e o rei de todas as coisas (Konder,
1986, p. 8).
Mas, como observa Konder, esta concepção que os seres estão em movimento e
que podem deixar de ser aquilo que são, era tida como muito abstrata. O pensamento
dominante e que prevaleceu era o de Parmênides para quem a essência profunda do ser
era imutável e dizia que o movimento (a mudança) era um fenômeno de superfície.
(op.cit. p.9).
Em Platão, a história é feita em referência ao modelo fixo da esfera essencial
das idéias. Para Aristóteles, mesmo que em seu pensamento entenda a realidade em
movimento esse se dá dentro do Cosmos, dentro do qual cada ser ocupa seu lugar
natural, menor e efêmero. Na Idade média, a metafísica cristã, fundamentalmente da
igreja católica, a essência está em Deus e o homem, um ser finito e passageiro na
espera do juízo final. Trata-se de forças onipotentes das quais o ser humano depende e
deve a elas se submeter. Perante estas forças é reveladora a metáfora do grão de areia
que representa o ser humano.
Sob esta concepção ou visão de mundo justificava-se a escravidão, o servilismo,
o extermínio de índios e o direito ou não à cidadania. Da mesma forma, e por
conseqüência, apenas parte dos seres humanos tinham direitos sociais e individuais. As
idéia de “homens de ouro e de prata” em contraposição aos homens de ferro, barro etc,
em Platão, serviam para justificar a estrutura social de sua República. Na tradição
metafísica do mundo medieval, sob o auspício do poder hegemônico da igreja, as idéias
de eleito, dom e vocação, entre outras, justificavam as diferenças entre clero e leigos e,
mais que isso, a ordem social medieval. Também se estabelece uma hierarquia de
qualidade entre os seres humanos: seres de uma qualidade superior e outro inferior.
Qualidade que é restrita, sempre, a minorias.
Uma análise mais detida sobre o que acabamos de assinalar não é objeto deste
trabalho. O que buscamos é demarcar, por um lado, é a justeza da análise de Marx e
Engels (1986) quando na Ideologia Alemã evidenciam de que as idéias dominantes de
um determinado tempo histórico ou modo de produção são as idéias das classes
dominantes. Por outro lado, salientar de que nas mudanças de um modo de produção
para outro mantém-se elementos de continuidade e o surgimento de novos elementos
que definem no plano material e ideológico, o novo modo de produção.
Na modernidade a revolução burguesa realiza uma ruptura profunda com os
modos de produção pré-capitalistas, mas, como veremos adiante, mantém a concepção
dominante de uma “essência humana” supra-histórica. Mas é, também, no contexto da
modernidade que se desenvolve a dialética idealista e materialista histórica. Hegel é o
pensador do século XIX que vai permitir a que outros pensadores avancem no terreno
do pensamento da dialética e, mais profundamente, se constitui na base para Marx e
Engels construírem o materialista histórico ou da dialética materialista.. Sob a
influência das idéias da Revolução Francesa e do pensamento da economia clássica,
Hegel estrutura de forma densa a compreensão da dialética. As condições objetivas da
realidade condicionam a atividade do sujeito.
Por essa via, como indica Konder, Hegel vai buscar no trabalho o centro das
atividades criadoras do sujeito. É a intervenção do ser humano, como ser da natureza,
mas diferente da natureza em geral, que permite transformar a realidade e criar novas
realidades. Ou seja: O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir além da pura
natureza”(op.cit. p.34). Encontramos, pois, já em Hegel, formalmente, que o trabalho
humano é a chave da superação dialética – ou do movimento - tese, antítese e nova
síntese que incorpora algo novo. Trata-se de um movimento que nega e, ao mesmo
tempo conserva parte da realidade negada e se manifesta numa nova realidade.
Hegel, entretanto, não rompe com o idealismo e com o
dualismo. O pensamento, como um Espírito Universal Absoluto se
constitui em causa primária de todas as coisas, sendo a natureza algo
secundário e apenas um reflexo. Por isso o movimento dialético é do
pensamento e no pensamento e não deste na apreensão da realidade
histórica objetiva. O pensamento constitui-se, assim, numa essência
isolada e independente, que constitui a base dos fenômenos da natureza e da sociedade.
Sem o edifício filosófico de Hegel, todavia, seria impossível pensar o
desenvolvimento da construção de uma compreensão não dual do ser humano e,
portanto, de uma concepção unitária e materialista histórica da realidade humana que
encontramos em Marx e Engels. Trata-se de um processo acumulativo e, ao mesmo
tempo de rupturas tanto com o idealismo, quanto com o materialismo vulgar.
É partindo do legado de Hegel, mas invertendo seu idealismo, que Marx supera
a herança que entende a realidade como criação pura do pensamento e não o movimento
do pensamento no seu terreno próprio de mediação na construção do conhecimento
histórico. Trata-se de um esforço do pensamento para apreender o movimento, as
determinações e mediações que constituem a realidade humana, que se coloca como
desafio, como problemática a ser compreendida.
A produção das idéias, de representações da consciência, está
de início diretamente entrelaçada à atividade material e com o
intercâmbio material (...) os homens são produtores de suas
representações, de suas idéias, etc., mas os homens reais e
ativos (...) A consciência jamais pode ser outra do que o ser
consciente e o ser dos homens é seu processo de vida real
(Marx& Engels, 1986)..
Buscaremos neste item sinalizar, apenas, os elementos mais gerais das formas
que assume a educação escolar no processo de constituição da classe burguesa e a
função social da contraposição entre quantidade e qualidade. Destacaremos, também,
em linhas gerais, a particularidade na sociedade brasileira. Ao longo da análise
sinalizaremos algumas referências que permitem aprofundar aspectos do tema aqui
analisado.
A revolução burguesa resulta, como nos mostra Marx (1970) em sua análise
sobre as formações econômicas pré-capitalistas, das contradições do desenvolvimento
das relações sociais no plano da produção material destas sociedades e pelo surgimento
de novas instituições sociais e por novas idéias, teorias e concepções, ideologias,
símbolos e valores que, concomitantemente, foram se desenvolvendo sob estas bases
sociais. Assim, ao mesmo tempo em que se desenvolve a propriedade privada, também
se desenvolvem as ciências da natureza e as ciências sociais e afirmam ideologias e
teorias que se contrapõe ao domínio do poder absolutista e o poder da igreja.
Marx, como observa Hobsbawm, desde seu prefácio à Crítica da e economia
política,
preocupa-se em estabelecer o mecanismo geral de todas as
transformações sociais: isto é – a formação das relações sociais
de produção correspondentes a um estágio definido de
desenvolvimento das forças produtivas materiais; o
desenvolvimento periódico de conflitos entre as forças produtivas
e as relações de produção; as “épocas de revolução social” em
que as relações de produção se ajustam novamente ao nível das
forças produtivas (Hobsabawm, 1977, p. 15).
Por essa via sua análise rompe com a visão de uma história humana produzida
fora da história. São, pois, os seres humanos, em circunstâncias produzidas por seus
antepassados que produzem a história. A base objetiva do humanismo de Marx e de sua
teoria de evolução social e, simultaneamente de sua teoria de evolução social e
econômica, é a análise do homem como animal social. O homem – ou melhor, os
homens – realizam trabalho, isto é, criam e reproduzem sua existência na prática
diária, ao respirar, ao buscar alimento, abrigo, amor, etc. ( op cit. p.16).
A antinomia entre quantidade e qualidade nas relações sociais no seu conjunto
e, especificamente, nos processos educativos, cumpre uma função ideológica na
legitimação da estrutura de classe produzida pela revolução burguesa. A burguesia
rompe com o a visão metafísica de realidade, com o Estado Absolutista e com o regime
escravocrata, mas não rompe com as relações sociais classistas que dominaram a
história humana até o presente. A transição da sociedade feudal, num longo processo de
séculos, vai estruturar as novas classes fundamentais da modernidade: burguesia e
proletariado.9
Neste longo processo vai se definindo a propriedade privada dos meios e
instrumentos de produção como a base fundamental da geração do lucro mediante a
exploração dos que tem apenas sua força de trabalho para vender e receber em troca um
salário. O salário é apenas parte de seu tempo de trabalho despendido na produção, pois
a outra parte fica na mão de que comprou sua força de trabalho.
Os valores, idéias, teorias, valores, símbolos e instituições que sedimentam o
novo modo de produção são de natureza diversa dos modos de produção pré-capitalista.
O individualismo, o consumismo, os valores laicos, e ideário de liberdade, igualdade e
fraternidade e o direito positivo (ciência da burguesia) constituem a superestrutura do
novo modo de produção.
Entretanto, como mostra numa densa obra Domenico Losurdo (2006), uma
coisa e examinar as idéias do liberalismo na sua forma pura e abstrata e outra e analisar
as suas ações e políticas nas sociedades nas relações e práticas concretas. Passando um a
um os grandes momentos e principais personagens do pensamento liberal, Losurdo vai
evidenciando que na prática o liberalismo não podia ser liberal e nunca pode, pela
natureza da estrutura social classista, concretizar o que postula. Por isso no plano das
relações e dos interesses concretos, mesmo depois de abolida a escravidão, na prática
não é abolida de todo a idéia de que os escravos entendidos como bois que falam.
Assim, também, o ideário de igualdade, liberdade e fraternidade, ícones da força
aglutinadora da ideologia liberal, não é capaz de elidir os fatos que tratam os
9
.Numa nota de Engels, na edição inglesa do Manifesto Comunista em 1988, o mesmo define burguesia e
proletariado nos seguintes termos: Por burguesia compreende-se a classe de capitalistas modernos,
proprietários dos meios de produção social, que emprega o trabalho assalariado. Por proletários
compreende-se a classe de trabalhadores assalariados modernos, que privados dos meios de produção
próprios, se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poderem existir( In: Fernandes, 1983,
p.365).
trabalhadores, como salienta Taylor em sua teoria geral de administração, de macacos
domestificáveis.Trata-se de iguais apenas formalmente e, por isso, o espanto de
Manddeville diante do fato dos trabalhadores buscarem se organizar para lutar por seus
direitos.
Recebo informações de pessoas dignas de fé que alguns desses
lacaios chegaram a ser tão insolentes até o ponto de se reunir e
fazer leis conforme as quais se obrigam a não prestar serviço por
soma inferior à estabelecidas por eles, a não transportar cargas
ou embrulhos ou pacotes que superem certo peso, fixado a duas
ou três libras, e se impuseram uma série de regras diretamente
opostas ao interesse daqueles aos quais prestam serviço, e ao
mesmo tempo contrárias ao objetivo pela qual foram
assumidos(Mandeville, apud Losurdo, 2006, p. 224).
11
. A condição de classe conduz as análises num raciocínio linear e circular não alcançando, portanto, as
mediações e determinações que permitem entender como a desigualdade e a pobreza são produzidas nas
relações sociais de produção. Como observa Marx, os economistas burgueses presos às representações
capitalistas vêem, sem dúvida, como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz
essa própria relação.
único, a maioria não é pobre porque não conseguiu boa educação, mas, na realidade,
não conseguiu boa educação porque é pobre. (Beluzzo,2001, p. 2)
O segundo aspecto diz respeito a que a ideologia do capital humano foi utilizada
de forma ampla e intensa nos países do capitalismo periférico. Na América Latina todos
os países foram, primeiramente, colônia de metrópoles e, atualmente, reféns das dívidas
externa e interna e cujas burguesias locais assumem uma postura de sócios subordinados
aos centros hegemônicos do capitalismo. Implícito nas políticas capitaneadas pela noção
de capital humano estava a luta ideológica contra o socialismo, tendo Cuba como um
alvo a derrotar12.
Não por acaso, a América Latina foi assolada por ditaduras a partir da década de
1960. E é no contexto das ditaduras que são implementadas, sob orientação dos
organismos internacionais e regionais, as reformas educativas. O Banco Mundial
(BIRD), Organização Mundial do Comércio (OMC) e Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), fortemente apoiados pela grande imprensa, tornam-se
aparelhos de hegemonia na tarefa de convencimento das massas de que o problema da
desigualdade entre países e entre grupos sociais não se deve à relação assimétrica de
poder e relações de classe, mas as diferenças educacionais.
12
. Paradoxalmente, Cuba foi o único país latino-americano que teve uma mudança qualitativa no campo
da educação, porque a mesma se efetivou dentro de uma revolução socialista. O inimigo a ser derrotado
tornou-se exemplo concreto de que, mesmo com recursos escassos e um bloqueio econômico de meio
século, mudanças substantivas na educação só ocorrem quando há mudanças substantivas na sociedade.
Com efeito, a escola, na consolidação da hegemonia burguesa em relação à
sociedade feudal e ao poder da igreja e do Estado absolutista, nasce como uma
instituição pública, gratuita, universal e laica que tem, ao mesmo tempo, a função de
desenvolver uma nova cultura, integrar as novas gerações no ideário da sociedade
moderna e socializar de forma sistemática o conhecimento científico. É importante
ressaltar que, em sua característica clássica, a escola é um ambiente de diferentes
aprendizagens sistemáticas: os valores, as atitudes, os símbolos e as concepções são
traços tão importantes quanto o desenvolvimento de conhecimentos e de habilidades
cognitivas.
13
. Em relação às noções de sociedade do conhecimento e qualidade total ver Frigotto (1997). Para uma
análise da pedagogia das competências ver Ramos (2001).
14
. O leitor encontrará esta citação em diferentes trabalhos por mim publicados. A sua repetição deriva do
fato de que o autor explicita de forma direta o grau máximo de mistificação e cinismo num contexto de
desemprego estrutural. Desmistificá-la, científica e ético-política.
(...) uma bela palavra soa nova e parece prometida a um belo
futuro: “empregabilidade”, que se revela como um parente muito
próximo da flexibilidade, e até como uma de suas formas. Trata-
se, para o assalariado, de estar disponível para todas as
mudanças, todos os caprichos do destino, no caso dos
empregadores. Ele deverá estar pronto para trocar
constantemente de trabalho (como se troca de camisa, diria a ama
Beppa) (Forrester, 1997, p. 118).
15
. Referimo-nos aqui às análises que mostram que o sistema capitalista atual já esgotou sua parca
“capacidade civilizatória” e que, portanto, a luta não é de remediá-lo, mas de superá-lo. Ver a esse
respeito, entre outras análises, Mèszàros (2002)e Jameson (1996 e2001).
16
. Por fetiche entendemos aqui a mistificação ideológica que, por um lado, mascara a assimetria das
relações de poder e de classe da qual resulta a degradação, precarização e super-exploração dos
trabalhadores e desemprego estrutural e, por outro, empresta ao investimento na educação o poder mágico
de tornar cada trabalhador empreendedor e gerente do seu próprio negócio.
dos ingredientes da educação de qualidade total é fazer de cada trabalhador um mestre
na administração ou gerenciamento do seu negócio17.
Do que expusemos até aqui fica amplamente compreensível e demonstrado de
que a antinomia entre quantidade e qualidade na educação cumpre a função social de
justificar a dualidade estrutural, especialmente, mas não só, dos sistemas de educação
básica. Esta função social justificadora se refina e se agrava no contexto do caráter cada
vez mais regressivo das relações sociais capitalistas. As noções de capital humano,
sociedade do conhecimento, qualidade total, pedagogia das competências,
empregabilidade e empreendedorismo apontam que não basta qualquer qualidade da
educação, mas a qualidade definida pelos valores do mercado. Nos países de
capitalismo dependente o poder mistificador e justificador destas noções se plasma
como dogmas nas propostas de reforma educativa e no conteúdo, método e forma que
assumem os processos educativos.
17
. No Brasil, algumas instituições tornaram-se, paradoxalmente, especialistas em ensinar a gerenciar
qualquer coisas, reforçando a idéia senso comum que os problemas da educação, da saúde, do transporte,
emprego, trabalho, etc. devem-se ao mau gerenciamento. O leitor que queira comprovar isso é só
consultar, como exemplo, o site da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, que encontrará MBA ou
cursos de gerenciamento até para o campo do cinema. Instituição que no início da década de 1990, no
início do governo Collor de Mello, num ato unilateral mediante uma portaria, fechou oito cursos ligados
às ciências humanas e sociais.
18
. Do ponto de vista metodológico destacamos que estas três experiências tiveram sua escolha a partir
de estudos anteriores, mencionados na nota 3 deste capítulo. Especialmente o último projeto concluído
em 2004 sobre A formação do "cidadão produtivo" – da política de expansão do ensino médio técnico
nos anos 80 à fragmentação da educação profissional nos anos 90: entre discursos e imagens. Trata-se de
experiência que, tomados diferentes indicadores como carreira e formação docente, tempo do professor,
espaço físico, laboratórios, origem social dos alunos, história e características institucionais, desempenho
nas avaliações do Ministério da Educação e os “projetos e concepções pedagógicas, reúnem as condições
de ensino no patamar mais elevado na sociedade brasileira. Por isso, a exemplificação não pode ser
tomada apenas em si, mas como indicativo de um âmbito mais amplo que representam na rede de
ensino médio público federal. Mesmo que uma destas experiências seja uma fundação estadual ela se
enquadra muito mais nas condições da rede federal, já que o ensino médio nos Estados de uma maneira
geral se desenvolve dentro de uma ampla precariedade.
“redemocratização” na sociedade e educação. Um trabalho denso sobre este aspecto foi
desenvolvido por Luiz Antônio Cunha no livro: Educação, estado e democracia no
Brasil (1991). O processo constituinte colocou, como já discutimos no capítulo anterior,
em confronto as concepções e políticas educacionais do economicismo do período da
ditadura civil-militar e as concepções e políticas educacionais na perspectiva da
educação integral, omnilateral e politécnica e da escola pública, universal, gratuita,
laica e unitária. Confronto e debates que se prolongam na construção da nova Lei de
Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação.
A longa postergação da nova LDB, como demonstramos noutros trabalhos
(Frigotto, 2002 e 2005) não era fortuita. A conjuntura era outra. A década de 1990, sob
os oito anos de Fernando Henrique Cardoso como Presidente e Paulo Renato Souza
Ministro da Educação, como analisamos no Capítulo III, definiu-se, mediante as
privatizações e a Reforma do Estado o pêndulo entre construir uma nação soberana e
autônoma ou selar o que já era dominante – a opção por um capitalismo dependente de
desenvolvimento desigual e combinado.
A analise deste período em boa parte a fizemos no capitulo anterior e em outros
trabalhos. O que queremos salientar aqui é de que é nesta nova conjuntura, cujo
significado tem conseqüências profundas na desagregação social e educacional, que as
reformas educativas assumem como orientação o ideário da sociedade do conhecimento,
qualidade total, pedagogia das competências, da empregabilidade e do
empreendedorismo.
O bloco de poder que dirigiu o Brasil neste período, antes de assumir o governo
tinha um projeto elaborado por especialistas, todos com passagens pelos organismos
internacionais, para ser aplicado para a sociedade. O caráter minimalista e
desregulamentador da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei
9394.20.12.96) se coaduna tanto com a estratégia de impor pelo alto um projeto
preconcebido, quanto com à tese do “Estado mínimo” com a tríade do ajuste estrutural:
desregulamentação, descentralização e privatização. Ou seja, como observa Saviani,
isso deixa o caminho livre para a apresentação de reformas pontuais, tópicas,
localizadas, traduzidas em medidas como o denominado Fundo de Valorização do
Magistério, os Parâmetros Curriculares Nacionais, a lei de reforma do ensino
profissional e técnico (Saviani, 1997:200).
O peso deste período na conformação de um senso comum conservador na
sociedade e no meio educacional tem sido maior do que a literatura crítica dimensionou.
Isto não apenas pelo que expusemos no capítulo anterior em relação da perda da agenda
no debate teórico e político na década de 1990 e do viés quase que apenas cultural das
experiências dos governos populares. Os efeitos daquelas reformas e seu ideário no
essencial permanecem após quase seis anos de um governo eleito, no primeiro turno
pelo menos, pelo conjunto de forças que tinham uma proposta contra-hegemônica. E o
que, talvez, seja o mais letal é que as definições que se solidificaram no atual governo
Lula estão estilhaçando as frágeis forças de esquerda duramente construídas ao longo do
século XX e que poderiam dar a base para um projeto, no curto prazo, nacional popular
e solidificar as bases para embates para a construção do socialismo.
O deslocamento da disputa da escola unitária e politécnica da década de 1980
para os debates de uma educação de qualidade social na década de 1990 reforçam a
compreensão de Florestan Fernandes, exposto no capítulo anterior, sobre a tendência de
um teorismo ou subjetivismo revolucionários do campo da esquerda brasileira. A
categoria de qualidade social que se contrapõe à de qualidade total não tem sido
explicitada de forma sistemática em seu sentido teórico-prático. O que Florestan,
certamente, indicava não é uma crítica à justeza desta contraposição, mas a necessidade
de dar-lhe sentido mais concreto. Daí o esforço de buscarmos, brevemente, qualificar
esta expressão, a partir da pauta de luta dos educadores do campo de esquerda, em dois
níveis: a concepção e a materialidade que lhe podem dar saturação histórica.
19
. O sentido de práxis aqui se refere ao que Marx elabora na construção do materialismo histórico. Como
indica Konder (1992), Marx efetiva, quando encontra na classe trabalhadora, no proletariado, o sujeito
histórico ou o portador material da revolução capaz de superar a sociedade capitalista, uma modificação
decisiva na relação entre teoria e práxis e de práxis e poiésis. Teoria e práxis, e práxis e poiésis não são
realidades dicotômicas. Teoria deixa de ser uma pura abstração que idealiza o real. Práxis não se reduz à
atividade prática ou ativismo e poiésis a mera produção material, produção de objetos ou de produtos.
Teoria histórica, práxis revolucionária e poiésis, expressões da atividade vital dos seres humanos,
vinculam-se a um projeto de travessia do modo de produção capitalista para o socialismo e para a
sociedade sem classes.
mudam as relações sociais capitalistas para manter a ordem do sistema capital daquelas
que corroboram para a sua superação. Não por acaso é no projeto educativo do
Movimento dos Sem Terra que este horizonte aparece de forma mais explícita e
orgânica.20
Na direção da superação, ganha centralidade a não separação da quantidade da
qualidade da educação, tanto do ponto de vista do acesso universal das crianças e jovens
na escola básica (fundamental e média) quanto à natureza das bases materiais possíveis
de serem oferecidas pela sociedade brasileira no acesso ao patrimônio científico, técnico
e cultural. A quantidade é assim entendida, como elemento da qualidade e, esta,
atributo daquela. A separação, como assinala a epígrafe significa produzir processos
educativos ligados à manutenção das relações sociais capitalistas, produtoras da
desigualdade econômico-social, cultural e educacional. Nesta compreensão é que se
cola a defesa da universalidade, laicidade, gratuidade e o caráter público e unitário da
educação.
No plano dos conteúdos do ensino e educação de qualidade social o foco
centra-se na compreensão da escola unitária, omnilateral, politécnica ou tecnológica. O
foco central contra a tendência de um ensino médio técnico específico de cunho
profissionalizante e, mesmo do ensino médio integrado nesta perspectiva, é a afirmação
da defesa da escola politécnica ou tecnológica unitária que permita uma formação
básica “desinteressada”, nos termos de Gramsci, do imediatismo do mercado.
Trata-se das bases de conhecimentos que permitem ler, analisar, interpretar e
compreender como funciona o mundo da natureza e da matéria (o que Gramsci
denomina da sociedade das coisas) e como funcionam a relações sociais, políticas,
culturais (sociedade dos seres humanos). Neste aspecto, a contraposição de uma escola
20
. A indicação de que o MST tem de forma mais explicita e orgânica a concepção da qualidade de
educação e das lutas que interessam à classe trabalhadora pode ser apreendida pelo combate sistemático
do judiciário, das organizações quer representam o capital agrário, industrial e financeiro através da
grande imprensa televisada e escrita. Os editoriais e artigos assinados fazem um claro confronte de
classe e buscam demonizar o movimento. O editorial do Jornal O Globo de 24.04.2008, após estabelecer
um paralelo entre o objetivo das Ligas Camponesas lideradas por Julião, apoiadas, de acordo com o
jornal, por Cuba, afirma a derrota do socialismo pelo dinamismo e democracia capitalista e adverte a
sociedade sobre os perigos do MST. Derrubar cercas, invadir, fazer ocupações não surgiu com o
Movimento dos Sem Terra (MST). Mas é com o MST que esta reforma (agrária) ganha maiores – e
perigosas – proporções. (...).O movimento sem terra (sic), para sobreviver, ampliou a agenda de “lutas”
e assim perdeu a máscara de um movimento pró-reforma agrária. Apareceu a verdadeira face de uma
organização política anti-democrática. Este é um grave momento de reflexão para os seus líderes e
inspiradores: se desejam participar do livre jogo da democracia – e para isso precisam se legalizar
como força política -; ou se querem continuar a radicalizar, em choque com a Constituição, dispondo-se
a enfrentar o Estado Brasileiro.” ( Jornal O Globo, Seita Política. Rio de Janeiro, 24.04.200; p.6.) O
jornal apenas esqueceu dizer que Estado Brasileiro equivale dizer o comitê da burguesia brasileira.
conteudista ou não conteudista redunda numa discussão escolática. A questão central é
quais conteúdos e ao que se articulam. A burguesia e seus intelectuais, para seus
interesses, primam na busca de uma escola de conteúdos e valores que permitam a seus
filhos a sua continuidade.
Em relação ao método o confronto é entre a visão fragmentária e linear da
realidade que concebe a totalidade como somos das partes e a concepção dialética-
histórica ou materialista histórica, cujo fundamento é buscar entender quais as
determinações ou mediações que produzem determinada realidade humana. Aqui a
totalidade resulta da relação das partes. No plano pedagógico isso implica ter como
ponto de partida e de chegada os alunos como sujeitos concretos e as condições que os
produzem . Uma escola de outra qualidade social é a que permite, partindo de realidade
adversa produzida socialmente em relação aos alunos filhos da classe trabalhadora,
atingir o mais elevado grau intelectual e cultural historicamente produzido. Trata-se de
transitar da particularidade e singularidade na apropriação das dimensões historicamente
produzida de universalidade em todas as esferas da vida.
No método que historicisa a produção da realidade humana no trabalho, na
ciência, na técnica e na tecnologia, na arte, na cultura, na educação etc., situa-se a
possibilidade de entender que sob as relações sociais capitalista situam-se limites de
classe e de dominação que esgarçam a possibilidade do gênero humano produzir uma
rica universalidade nas diferentes esferas da vida. Na cisão das classes cinde-se e limita-
se avanços para a humanidade em seu conjunto. Essa compreensão, no plano da práxis,
é que permite criar a convicção da necessidade de superação das relações sociais
capitalistas.
Por fim, sob aspecto das concepções, a educação de outra qualidade social é a
que se efetiva orientada por relações democráticas, mesmo que a democracia no seu
sentido substantivo não seja possível no capitalismo. Trata-se de instaurar relações na
escola e na sociedade orientadas por critérios de justiça, igualdade e solidariedade.
Critérios que não reduzem a democracia a uma visão de igualdade matemática ou
baseada na meritocracia, mas numa relação de diálogo e considerando os tempos de
vida e especificidade na responsabilidade da criança, jovem e adulto, aluno e professor.
Na construção e reconstrução dos critérios (justiça, igualdade, solidariedade) e
no seu exercício efetiva-se a possibilidade de superação do autoritarismo, personalismo,
paternalismo e dominação de uns sobre os outros. A indicação de Marx relacionada à
contribuição de cada um na produção dos meios de vida para superar a exploração e
alienação, sinaliza o sentido de uma relação democrática baseada na justiça, igualdade e
solidariedade. De cada um, de acordo com suas possibilidades, a cada um, de acordo
com suas necessidades.
Os processos de conhecimento e educativos, no conteúdo, método e forma,
numa perspectiva contra-hegemônica às relações sociais dominantes na sociedade
brasileira, engendram a perspectiva de outra qualidade social na medida que ajudam: a
superar a compreensão burguesa que naturaliza a concepção de homem capitalista que
age pelo egoísmo e interesse próprio, como sendo a condição natural eterna do ser
humano; superação da ciência/ideologia burguesa em todas as áreas de conhecimento; e,
a compreensão das particularidades de como a classe burguesa brasileira tem produzido
uma sociedade de capitalismo dependente, de desenvolvimento desigual e combinado –
sociedade que produz a desigualdade e se alimenta dela.
21
. Para uma análise crítica das políticas de financiamento da educação ver Oliveira, R.P. de e Adriaão,
T. (org) (2002) e Pinto, J.M.R. (2000) Os recursos para a Educação no Brasil no Contexto das
finanças públicas. Brasília. DF. Plano. 2000.
horária 50% em sala de aula e 50% para estudo, reuniões, orientação e pesquisa com
esse montante de recursos?
Tomando-se, apenas, um dos aspectos relativos à valorização do magistério – o
piso salarial, quando comparado com o piso de salário de professores de escola públicas
de nível médio da rede federal ou com indicadores internacionais, chega-se à conclusão
que o valor discutido de R$ 850,00 é débil. Os argumentos e o fato de que em certas
regiões isso representa um aumento de mais de 100% encobre, por um lado o descaso
histórico com a educação básica e, de outro, as desigualdades regionais.
Deste quadro resulta que os atuais investimentos em educação pública passam
longe das necessidades para dar uma base material ao ensino público de qualidade e que
as atuais políticas de educação continuam com a tradição da classe dominante brasileira
do que Saviani denomina de mecanismos protelatórios. Fica-se com a impressão que
estamos diante, mais uma vez, dos famosos mecanismos protelatórios. Nós chegamos
ao final do século 20 sem resolver um problema que os principais países, inclusive
nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai, resolveram na virada do século 19 para o
20: a universalização do ensino fundamental, com conseqüente erradicação do
analfabetismo (Saviani,2007 p.2).
A conclusão a que chegou Florestan Fernandes com o desfecho do que se aprovou na
Constituição de 1988 foi de que, uma vez mais, a educação não era tema prioritário para as
forças políticas representantes do poder dominante no Brasil. A educação nunca foi algo de
fundamental no Brasil, e muitos esperavam que isso mudasse com a convocação da
Assembléia Nacional Constituinte. Mas a Constituição promulgada em 1988, confirmando
que a educação é tida como assunto menor, não alterou a situação (Fernandes, 1991).
Isso se repetiu pelo que se aprovou no texto da nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação e na aprovação do Plano Nacional de Educação. Os recursos vinculados e
garantidos constitucionalmente pelo seu montante obrigatório e vinculados
constitucionalmente revela este descaso. As avaliações que dão conta do frágil IDEB (Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica) e a desigualdade profunda entre regiões e a bateria
de avaliações nacionais expõem fenomenicamente o problema. Cabe explicar o que produz
esse quadro persistente. O que buscamos nesta pesquisa é mostrar que se trata de uma
construção social histórica da classe burguesa brasileira e que esse quadro se vincula
diretamente com o processo que foi definindo o Brasil como uma sociedade de capitalismo
dependente de desenvolvimento desigual e combinado.
Em relação ao debate contra-hegemônico o ponto nodal é a compreensão e a
luta de não separar a qualidade da quantidade ou a quantidade da qualidade, seja no
plano do acesso, cujo foco é a luta pelo atendimento do universo de crianças e de jovens
na educação básica, seja pela qualidade dos conteúdos e serviços educacionais, na
perspectiva da educação unitária, politécnica ou tecnológica.
22
. A breve caracterização das três experiências tomadas como exemplos referência para a análise que
estamos efetivando nesta pesquisa resulta de dados colhidos nas próprias instituições e, sobretudo, como
elas mesmas se apresentam no seu portal na internet. Em nenhum dos casos o objetivo é de fazer uma
caracterização específica institucional . A caracterização objetiva permitir ao leitor o entendimento da
natureza da instituição e suas especificidades.
nas diferentes áreas que atua, vários alunos foram premiados nacional e
internacionalmente. Seu desempenho no ENEM a situa como melhor escola da região
e das melhores do Estado e do país.
• Uma escola que prepara técnica e cientificamente seus egressos para disputarem
o mercado de trabalho dentro da atual estrutura e base técnica produtiva. Prepara
para o trabalho complexo, permite sucesso na disputa do mercado de trabalho e
também alternativas amplas no acesso ao ensino superior.
• Uma escola que prepare para o mercado, mas tem a preocupação com a questão
da cidadania, democracia e com o desenvolvimento de lideranças dentro de um
capitalismo não dependente e com melhor distribuição de renda.
• A escola prepara para as duas perspectivas anteriores, mas tem no seu ideário
pedagógico e ético-político o compromisso de formar sujeitos emancipados
capazes de buscar a construção de novas relações sociais que transcendam a
cidadania e democracia liberais, sob as relações sociais capitalistas.
23
. Mais recentemente desenvolveu-se um rico debate sobre se o conceito de politécnica seria, dentro do
pensamento de Marx, o mais adequado ou o de educação tecnológica. Dermeval Saviani (2006) e Paolo
Nosella (2006) nos trazem, de forma densa, os elementos históricos e conceptuais deste debate. A síntese
dos debates me conduz a perceber que, em nosso contexto, podemos utilizar o conceitos de educação
politécnia ou tecnológica, para significar aquela educação que faculta as bases científicas, sociais,
culturais para o desenvolvimento omnilateral de cada ser humana. No contexto da sociedade capitalista,
uma educação comprometida com a superação da sociedade de classes, vale dizer, a construção de uma
humanidade emancipada. .
natureza e conteúdo do embate24. À tradição de debates no campo da saúde pública, do
Sistema Único de Saúde, liderados pela FIOCRUZ, sendo um de seus ex-presidentes
Sérgio Arouca (de feliz memória) um dos mais destacados protagonistas, agregava-se o
pensamento educacional crítico.
A Escola Politécnica articula um amplo conjunto de atividades nacionais e
internacionais que a consolidam em seu papel de referência nacional na área de
Educação Profissional em Saúde no Brasil. Destacam-se, entre outras atividades: a
Secretaria Técnica da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS); coordena o
Programa de Formação de Agentes Locais em Vigilância em Saúde (Proformar) em todo
território nacional; sedia a Estação de Trabalho Observatório dos Técnicos em Saúde;
publica o periódico científico Trabalho, Educação e Saúde; coordena a Capacitação
Técnica de multiplicadores em Registros de Saúde para a implantação do Cartão
Nacional de Saúde (Cartão SUS); e elabora a Cartilha de Eventos Adversos Pós
Imunização. EPSJV realiza anualmente, a Semana de Vocação Científica.
Uma das marcas da Escola Politécnica, desde sua origem, foi dos jovens alunos
poderem conviver com cientistas em seus laboratórios e centros de pesquisa. Isto
impulsionou a Escola a se organizar com uma forte estrutura de pesquisa e produção
acadêmica, contratando e formando doutores e mestres.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio possui atualmente nove
laboratórios que congregam grupos de pesquisa:
• Laboratório de Educação Profissional em Atenção em Saúde;
• Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde;
• Laboratório de Educação Profissional em Informações e Registros em Saúde;
• Laboratório de Educação Profissional em Manutenção de Equipamentos de
Saúde
• Laboratório de Educação Profissional em Técnicas Laboratoriais em Saúde;
• Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde;
• Laboratório de Formação Geral na Educação Profissional em Saúde;
• Laboratório de Iniciação Científica na Educação Básica;
• Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde.
24
. Ver a síntese deste debate em Saviani ( 2003).
Seu principal foco e atuação é a Educação Profissional em Saúde no Ensino Médio
Integrado e a Iniciação Científica dos jovens alunos tendo como Áreas estratégiacas: a
Educação Profissional em Saúde; o Processo de Trabalho em Saúde e as Tecnologias
Educacionais em Saúde.
Congregam estas atividades a Semana de Iniciação Científica, seminários ao
longo de todo o ano, de caráter interno e de âmbito regional, nacional e internaiconal.
Um dos aspectos diferenciais desta experiência em relação às demais é a proposta
política e pedagógica da escola, construída coletivamente e centrada no debate e
concepção da escola unitária e politécnica e/ou tecnológica. Construção esta, que ao
longo de seus 30 anos de existência, não se fez sem percalços, tensões e contradições.
Uma escola comprometida em formar jovens que articulem ciência, cultura e trabalho e
lhes dê possibilidade de serem cidadãos autônomos.
O Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
(CEFET/RJ) por sua história, tamanho e complexidade apresenta características
peculiares, tanto do ponto de vista da cultura Institucional quanto do projeto
pedagógico.
Com efeito, um olhar em sua história de mais 90 anos, nos evidencia que em
1917 começou como Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Brás, mantida pela
prefeitura com a incumbência de formar professores, mestres e contramestres para o
ensino profissional. No ano de 1937 a escola Normal foi transformada em Liceu
destinado ao ensino profissional de todos os ramos e graus, agora sob jurisdição federal
vinculado ao Ministério da Educação. Curiosamente, antes mesmo do Liceu ser
inaugurado mudou de nome para Escola Técnica Nacional. Em 1965 passou a se
denominar Escola Técnica Federal da Guanabara e, dois anos depois, Escola Técnica
Federal Celso Suckow da Fonseca como homenagem póstuma ao primeiro Diretor
escolhido a partir de uma lista tríplice composta pelos votos dos docentes.
No ano de 1978, juntamente com mais duas escolas Técnicas Federais - de
Minas Gerais e do Paraná - foi transformada em Centro Federal de Educação
Tecnológica e passou a ter estatuto das instituições de educação superior. Com isto
passou a atuar como autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Educação
e Cultura – detentora de autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didática e
disciplinar –, na oferta de cursos de graduação e pós-graduação, em atividades de
extensão e na realização de pesquisas na área tecnológica. No momento presente a
instituição debate-se entre duas possibilidades de institucionalidade: transformar-se em
Instituto Federal de Educação Tecnológica, com status de Universidade ou lutar para ver
seu projeto de Universidade Tecnológica aprovado.
O percurso acima mostra, ao mesmo tempo, uma evolução, mas também as
implicações de ordem política que estão nestas mudanças. Mesmo tendo autonomia
institucional, o fato de pertencer a uma rede de Centros Tecnológicos Federais ligados a
uma Secretaria específica no Ministério da Educação, as mudanças de política do
governo federal tem interferência direta. Isto se agrava numa sociedade que tem cultura
políticas de governo e não de Estado. Isso consubstancia o que o sociólogo Luiz
Antônio Cunha denominou, referindo-se às políticas educacionais, de zig-zag para
designar a cultura de que quando muda os governos, mesmo das mesmas siglas
partidárias, mudam as políticas.
No caso da rede federal de Centros Federais de Educação Tecnológica, um exemplo
emblemático é a dos efeitos de desagregação que surtiu o Decreto Lei 2.208/97, no
ensino médio integrado25.
Hoje, a instituição conta com uma unidade-sede (Maracanã), um campus ligado
à unidade-sede (General Canabarro) e duas unidades de ensino descentralizadas: uma
em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense; outra em Maria da Graça, bairro da
cidade do Rio de Janeiro. Sua atuação educacional inclui a oferta regular de cursos de
ensino médio e de educação profissional técnica de nível médio, cursos de graduação
(superiores de tecnologia e bacharelado), cursos de mestrado, além de atividades de
pesquisa e de extensão, estas incluindo cursos de pós-graduação lato sensu, entre outros.
Estas peculiaridades fazem com que o caráter coletivo da proposta e das atividades
pedagógicas não tenha a mesma visibilidade das outras duas experiências. Neste
sentido a análise nos leva a destacar que as mudanças de política educacional pelo alto
e, por vezes, as dificuldades de processos democráticos internos, acaba configurando
uma situação de relativa anomia institucional. Os debates em tono do Decreto Lei
2.208/97 e mais recentemente o Decreto Lei 5154/2005, como mostramos em trabalhos
anteriores (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005), mostram que um pequeno grupo de
professores e de técnicos e funcionários se envolvem no debate disputando as
perspectivas científicas e político-ideológicas implicadas em tais medidas e a grande
maioria permanece passiva.
25
. Para uma compreensão dos efeitos desta desagregação do ensino médio integrado na rede dos Centros
Federais de educação tecnológica ver: Frigotto, Ciavata e Ramos ( 2005)
O sintoma mais agudo que salientamos é expresso por um dos coordenadores da
área de História da escola que revela ter dificuldade para fazer reuniões sistemáticas
para discutir temas relativos ao processo pedagógico, muito embora os professores
tenham a maior parte da carga horária para pesquisa e atividades de orientação e
reuniões pedagógicas. Não obstante a essa situação, como pondera outra coordenadora,
pela formação específica dos professores e pelas condições dos alunos, a escola se
sobressai nos resultados tanto dos exames do ENEM, quanto no acesso ao mercado de
trabalho.
Em relação aos elementos centrais das bases materiais do processo
pedagógico, que na compreensão da instituição, permitem os resultados conseguidos e
que desafios e limites são percebidos e trabalhados há uma grande semelhança entre as
três experiências, guardadas as suas especificidades.
Com efeito, nas três experiências nota-se que o ensino médio e médio técnico se
desenvolve dentro do conjunto de mediações que constituem a materialidade do
processo pedagógico. Todas elas têm um quadro docente, técnico e administrativo que
atua, em sua maioria, em regime de 40 horas ou dedicação exclusiva. Nas três
instituições corpo docente tem aproximadamente um terço de sua atividade em sala de
aula e o tempo restante ocupam-se das demais atividades de pesquisa, extensão,
orientação dos alunos e participação de reuniões pedagógicas, além dos vínculos com
outros projetos e ações da instituição. Ainda em relação aos professores e técnicos
destacam-se pela formação, grande parte com mestrado e um crescente número com
doutorado. Também nos três casos há uma carreira definida e cujos salários são
compatíveis com os que se praticam nas universidades públicas.
Da mesma forma as três instituições dispõem de: infra-estrutura física que
compreende a qualidade da construção, espaços específicos para as atividades
pedagógicas, tamanho das salas, ventilação, luminosidade, espaços para atividades de
esporte e lazer; recursos e material pedagógicos que compreende biblioteca e
laboratórios equipados e atualizados e almoxarifado para as diferentes áreas de
conhecimento que constituem o currículo da escola e pessoal qualificado para o apoio
na utilização dos laboratórios e biblioteca; núcleos ou laboratórios de pesquisa.
É sob esta base que Dermeval Saviani, numa de suas análises, conclui que é
dentro desta materialidade de condições que poderia desenvolver-se a formação dentro
da perspectiva da escola unitária, politécnica ou tecnológica, mesmo que sua efetiva
realização demande, ao mesmo tempo, a superação das relações sociais de caráter
classista. Por outro lado, Luiz Antônio Cunha, referindo-se à rede CEFET, assinala que
o tipo de formação que se desenvolve na rede não pode ser confundida com aquela que
se postula como educação politécnica.
O último aspecto deste item é justamente averiguar como estas experiências
educacionais, no que concerne ao ensino médio, médio integrado ou médio técnico, se
situam: na ênfase a formar para o mercado; preparar para o mercado, mas buscando
desenvolver nos alunos uma perspectiva crítica dentro dos marcos da democracia liberal
e de um capitalismo menos selvagem e dependente; ou, sem deixar de preparar para o
mercado e lutar pela superação do capitalismo dependente, tem no seu ideário a busca
da emancipação humana e social que implica a superação das relações sociais de classe.
Pela análise que aqui empreendemos, com base no acúmulo de 20 anos de
pesquisa sobre o tema ou correlato ao mesmo e pelos dados desta pesquisa no Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), na sua ótica
institucional dominante centra-se em responder às demandas do mercado, dentro de
uma ótica social no processo formativo que oferece aos seus alunos. Quando
assinalamos dominantemente, queremos destacar que há grupos, mas restritos que
defendem uma ótica puramente mercantil e outros que lutam por um ideário pedagógico
e ético-político na perspectiva da escola unitária, politécnica ou tecnológica e em
relações sociais não classistas.
O dominante, todavia, é responder às demandas do mercado numa ótica social. Isso
não só se evidencia pelos dados que analisamos mas pela própria ótica institucional
expressa em sua filosofia. Assim é que na sua página da Internet pode-se ler:
Por certo este não é um depoimento isolado. Muitos jovens, porque sensíveis a
seu tempo, desejam mais que ser bons técnicos e esperam formação para enfrentar suas
angústias. Isto parece ser o que Paola, aluna de Ensino Médio do Centro Federal
Educação Tecnológica do Maranhão ( CEFET/MA) expressa em texto que me entregou
após uma conferência e debate sobre educação num seminário na Escola Técnica de
Cajaseiras (PB).
Algum dia irei.....Na verdade não sei o que irei fazer um dia, na
verdade não sei o que irei fazer da vida. É engraçado quando
falamos. Quando eu me formar terei tal trabalho, terei tal salário
e terei tais amigos. Na verdade ninguém manda na vida, a vida é
que manda na gente. A vida é quem manda na gente porque
deixamos de fazer o que sonhamos para fazer o que a sociedade
manda. Se não lutarmos por nossos sonhos não teremos vida e
sem vida não teremos nada. É por isso que sem sonhos e sem
vontade de realiza-los a vida, ou seja, a sociedade nos faz viver do
pior modo. Viver sem vida. E viver é realmente viver a vida.” (Ana
Botelho, 2000)
O que Doglas e Paola expõem, resulta, paradoxalmente, de uma escola que lhes
deu formação técnica sob uma base material que, não obstante uma visão pedagógica
dominantemente pragmática, lhes facultou espaços de socialização e de intercâmbios
que permitiram interrogar os limites da sua formação e assinalar que a escola que
freqüentaram podia ter dado mais na sua afirmação como sujeitos emancipados. Este
algo mais possível fica evidente, ainda que de forma diversa, nas duas outras
experiências.
A Escola Liberato, como assinalamos acima, tem uma projeto pedagógico denso
e um formato institucional que resultam de forças em equilíbrio e de concepções
pedagógicas e ético-política diversas. Isto conduziu a escola a um denso trabalho
coletivo de negociação para definir o projeto pedagógico e institucional. Esta estratégia
institucional aliada à cultura regional que estabeleceu um forte elo com a sociedade
local e regional lhes permitiu avanços significativos em sua relação nacional e
internacional. O Seminário Nacional e a Mostra Tecnológica Internacional (Mostratec)
estimularam docentes e alunos à projetos de pesquisa e interface com a sociedade.
Por fim a experiência da Escola Politécnica Joaquim Venâncio. Por seu vínculo
institucional que tem forte cultura de debate interno e pela relação da escola com
pesquisadores, intelectuais e dirigentes vinculados a uma tradição crítica e de
pensamento da esquerda e, por outra, por ter nascido, como atestam vários documentos,
alguns já referidos nesta pesquisa, e outras revistas de divulgação, dentro da concepção
da escola unitária e politécnica, é experiência que além de preparar para mercado do
trabalho e a superação do capitalismo dependente, de forma explicita e orgânica busca
27
. Ver : www.clicnews.com.br/tecnologia/view
preparar intelectual e moralmente os jovens para a crítica e superação da sociedade
classista.
29
. Ver. Jornal O Globo. Rio de Janeiro,01 de novembro de 2006, Caderno País, p. 17
Oliveira sobre nossa formação histórica e nos permitem decifrar o enigma da falta e
sobre (sobra?) de mão de obra qualificada.
Por um lado os empregos que demandam qualificação técnica, em grande parte
pelo baixo salário ou por preconceito com o trabalho técnico não atraem a parcela de
jovens de classe média que tem os melhores níveis de escolaridade. Com efeito, dados
de pesquisa sobre juventude brasileira e emprego de Márcio Pochmann do Centro de
Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP mostram que no
Brasil há uma crise crônica na transição do sistema educacional para o universo do
emprego (Pochmann, apud Manir, M. 2007. P. 1). Esta dificuldade, motivada pela
opção econômica que de acordo com este autor perfila um pífio crescimento econômico
há duas décadas e meia, traduz o paradoxo de que nosso país está se transformando em
grande exportador de mão de obra juvenil qualificada (op. cit. P. 2). A cifra alarmante
apresentada é de que perdemos, por ano, 160 mil jovens para o olho gordo do mundo.
É biscoito fino, mão- de- obra qualificada que busca futuro fora do país. ( IB, p. 1).
Por outro lado, a grande massa de jovens filhos da classe trabalhadora freqüenta
um sistema público de educação básica destroçado. Aqueles que chegam ao ensino
médio, em sua maioria o fazem no turno noturno, onde é mutilado no tempo, na infra
estrutura e nos conteúdos. O baixo poder aquisitivo de suas famílias não lhes permite,
por outra parte, pagar um curso técnico que o sistema S oferece. Sistema este
subsidiado com quase seis bilhões anuais mas que cobra mensalidades elevadas, pois
de forma cínica seus dirigentes batizam os centros de formação de "unidades de
negócio"30.
Ficam assim dadas as condições para entender o enigma. Os que têm
qualificação preferem migrar para outros países para ganhar muito mais por trabalhos
que estão muito abaixo de suas qualificações ou seguem, nos mais diversos cursos
superiores. O depoimento de uma jovem que trabalha na nova Zelândia é esclarecedor
neste sentido.
O Brasil é um país de salários de Terceiro Mundo e o custo de vida de Primeiro
mundo. Os empregos de nível médio pagam uma miséria. Eu ganho mais trabalhando
como empacotadeira aqui do que ganharia como técnica de qualquer coisa lá. O
trabalho honesto não é valorizado. (Texto de Gilberto Scofiel JR, Jornal O Globo,
22.01.2008, Caderno Opiniã, p. 7).
30
. Acompanho há mais de 20 anos as instituições do sistema S. Grandes partes de seus trabalhadores que
vendem sua força-de-trabalho nestas instituições percebem e não concordam com as políticas ditadas
pelas confederações empresarias e seus prepostos. A reação orgânica das federações
Os que buscam os empregos técnicos, mesmo mal remunerados porque que
necessitam, não tem os pré-requisitos de formação e nem condições sociais de pagar
por esta formação. Os cursos que o SENAI oferece na área técnica se baseiam no
negócio – portanto cobram valores do mercado.
Nos três exemplos acima brevemente analisados, não temos dúvida, que
preparam seus alunos para o trabalho complexo e em nível internacional seus alunos.
Por isso seu custo ser compatível com os custos médios internacionais, o que reflete a
base material das condições em termos de laboratórios, bibliotecas, salário e carreira
docente, nível de formação – especialização, mestrado ou doutorado, tempo em sala de
aula menor que o tempo para estudo, pesquisa, orientação e reuniões pedagógicas. O
mesmo se poderia falar da grande maioria da rede de escolas federais que representam,
como vimos, apenas 0,7% da matricula total do ensino médio. Mas vimos, também, que
pelo menos parte dos que trabalham nestas instituições tem a preocupação de dar aos
jovens elementos para entender em que sociedade vivem e possam se organizar para, no
mínimo, lutara por um projeto que a literatura crítica caracteriza de desenvolvimento
nacional popular.
O fato da burguesia brasileira e/ou a "elite" não perceber de que o que ela
denomina de apagão educacional não é conflitante e nem paradoxal com o tipo de
relações sociais que ela mesma produz e advém, portanto, de uma contradição de suas
práticas, revela a posição de uma classe atrasada, violenta e subordinada aos centros
hegemônicos do sistema capital. A falta de jovens qualificados e, ao mesmo tempo de
jovens que buscam desesperadamente emprego e qualificação e o assustador número de
jovens, os melhor qualificados, que saem do país em busca de trabalho, resulta das
contradições de uma sociedade que, como vimos, a miséria, o mercado informal, o
analfabetismo ou escolaridade precária são condições de sua forma de ser.
O grito de apagão educacional reitera, e de forma cada vez mais cínica, uma
cultura de violência societária que culpa a vítima por sua desgraça. O analfabeto, o sem
terra, o subempregado, o não qualificado, o não empreendedor ou, o não empregável
assim o são porque não souberam ou não quiseram ou não se esforçaram em adquirir o
“capital humano” ou as “competências” que os livrariam do infortúnio e seriam a mão
de obra qualificada que iluminaria o crescimento acelerado.
Na verdade, mais de um século e meio depois, caberia à burguesia brasileira a
jocosa referência ao atraso da sociedade e dos capitalistas alemães em relação à
sociedade e capitalistas ingleses feita por Marx: fabula de te narratur. Vale dizer, se a
burguesia brasileira quiser ser coetânea ao capitalismo dos países desenvolvidos
necessita entender que isso implica, mesmo sob relações de classe, uma garantia efetiva
do conjunto de direitos sociais e subjetivos (educação, saúde, moradia, acesso à cultura,
transporte, etc.) que permitam à classe trabalhadora não ser reduzida a “boi que fala” ou
a macaco domesticável.
O estigma colonizador e escravocrata da burguesia brasileira a constitui, como se
referiu Francisco de Oliveira, em vanguarda do atraso e atraso da vanguarda. Por isso
que é uma burguesia que entende, como revela com fina ironia a crônica de Luiz
Fernando Veríssimo, que a culpa de nosso atraso é mesmo do povo brasileiro.
Pesquisa recente concluiu que a elite brasileira é a mais moderna, ética,
tolerante e inteligente do que o resto da população. Nossa elite, tão atacada através
dos tempos, pode se sentir desagravada com o resultado do estudo, embora esse tenha
sido até modesto nas suas conclusões. Faltou dizer que, além das suas outras virtudes,
a elite brasileira é mais bem vestida do que as classes inferiores, tem melhor gosto e
melhor educação, é melhor companhia em acontecimentos sociais e é
incomparavelmente mais saudável. E que dentes!
A pesquisa reforça uma tese que tenho há anos segundo a qual o Brasil, para
dar certo, precisa trocar de povo. Esse que está aí é de péssima qualidade. Não sei qual
seria a solução. Talvez alguma forma de terceirização, substituindo-se o que existe por
algo mais escandinavo ( ...)
Se não tivéssemos um povo tão inferior, nossos índices sociais e de
desenvolvimento seriam outros. Estaríamos no primeiro mundo em vez de empatados
com Botsuwana. São, sabidamente, as estatísticas de subemprego, sub habitação e
outros maus hábitos do povo que nos fazem passar vergonha.
Que contraste com a elite. Jamais se verá alguém da elite brigando e fazendo
um papelão numa fila do SUS como o povo, por exemplo. Mas o que fazer? Elegância e
descrição não se ensina. Classe você tem ou não tem. Mas o contraste é chocante,
mesmo assim. Esse povo, decididamente, não serve. Se ao menos as bolsas famílias
fossem Vuilton (Veríssimo, 2007).
Referencia Bibliográficas.