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A HISTÓRIA ECONÔMICA COMO DISCIPLINA INDEPENDENTE

Departamento de História – U.S.P.


Área: História Econômica
Seminários de Pós-Graduação
Coordenadora: Profa. Dra. Vera Lúcia Amaral Ferlini
Palestrante: Wilson do Nascimento Barbosa (Ph.D.)
Sala Caio Prado Jr.
05 de setembro de 1988
U.S.P.

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1 – O Lugar da História Econômica.
Há trinta anos, o apogeu da História Econômica como disciplina independente havia atingido o
seu máximo. Contudo, apenas dez anos depois, antes do fim da Guerra do Sudeste Asiático, seu
prestígio parecia declinar inapelavelmente. Com relação à América Latina, o prestígio da História
Econômica não alcançou tempo suficiente para granjear-lhe um espaço próprio, separado das
outras “histórias”, como nos “institutos de história econômica” das universidades do chamado
Primeiro Mundo.
Como explicar, seja o ascenso, seja o rápido descenso desta “ciência social de síntese”? Que
possui a História Econômica para fazer-se tão prestigiada e, ao mesmo tempo, para cair tão de
súbito no interesse de intelectuais e acadêmicos?
Penso que a causa da sua “ascensão e ruína” é um só motivo: o seu poder metodológico para
corroer fantasias. O que tornou a História Econômica fascinante foi o seu poder de “corroer,
destruir explicações fantasiosas”. O que a tornou desagradável, indesejável até, foi este mesmo
“poder metodológico”. Ele “não interessa”, numa sociedade de massas controlada pela mídia.
Com forte associação metodológica com a chamada “Teoria do Desenvolvimento Econômico”, a
História Econômica como disciplina tornou-se independente da Economia Política no período
1870-1930. Como se sabe, a “Teoria do Desenvolvimento Econômico” apareceu como uma
disciplina independente um pouco defasada em relação à História Econômica, ou seja, no período
1905-1945. A História Econômica em sua expressão moderna consolidou-se a partir da publicação
do primeiro volume do livro “O Capital”, de Karl Marx. O historiador e filósofo alemão reuniu em
sua versão metodológica da História Econômica os ingredientes básicos que ela possui até hoje: (a)
uma doutrina econômica definida; (b) uma doutrina histórica definida; (c) a problematização
destas doutrinas através de um modelo bem específico; e (d) a formulação de hipóteses claras, a
partir deste modelo, com vistas a enriquecer ou reformular as doutrinas básicas. Este roteiro
baconiano e cartesiano de Marx, ao contrário do que possa parecer, não se constituiu um
“engessamento” da História Econômica, mas, de fato, o caminho para sua expressão como “ciência
social”, ou seja, uma disciplina que permite a diferentes observadores lançarem mão de suas
ferramentas de trabalho.

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Vejamos o roteiro escolhido por Marx:
É INFORMA
(a) Doutrina Econômica Economia Política, versão marxista-leninista.

(b) Doutrina Histórica Materialismo histórico.

(c) Problematização Desvendar a lei (mecanismo) fundamental da


produção (exploração) capitalista.

d) Hipóteses Diversas.

(e) Reformulação Teórica As “leis” do capital funcionam não apenas no “modo-


de-produção mais avançado” como também em suas
“reservas”, “coloniais”, etc.

É importante perceber-se que as opções conteudísticas de Marx para a metodologia da História


Econômica não se tornaram um “monopólio do saber”, mas a estrutura formal da metodologia
acabou por se impor a todos os investigadores da História Econômica, independentemente de sua
postura ideológica. E isto caracteriza a fundação desta “ciência social moderna” por K.Marx.
Vejamos o mesmo quadro em sua expressão atual:
É INFORMA
(a) Doutrina Econômica Economia Política Marxista
Outras Economias Políticas
Doutrina Keynesiana
Doutrinas Estruturalistas
Doutrinas Neoclássicas
Doutrinas Neoneoclássicas
(b) Doutrina Histórica Materialismo Histórico
Materialismo Empírico
Método Explicativo
Método Dedutivo-Indutivo
Método Indutivo, etc.
(c) Problematização Diversas
(d) Hipóteses Diversas
(e) Reformulação Teórica Diversas

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O surgimento da História Econômica correspondeu, portanto, à necessidade de se abandonar o
“método sincrônico” utilizado pelos clássicos para expor a formação das categorias da Economia
Política, e adotar em seu lugar uma “abordagem diacrônica”, “contínua”, das ocorrências
econômicas na vida das sociedades. A construção de hipóteses explicativas sobre a dinâmica da
sociedade ocidental foi seu ponto de partida, com o estudo da chamada “Revolução Industrial”, da
“Grande Depressão de 1873-1894”, etc., chegando finalmente à discussão dos fatores não
dinâmicos em escala mundial.
Chega-se, assim, portanto, à questão crucial da História Econômica. Em virtude do seu caráter
metodológico formal aberto, esta disciplina veio assimilar rapidamente os avanços dos métodos
quantitativos de pesquisa social, tornando-se, pois, fonte de pronta interpretação, seja das
aplicações práticas da Teoria do Desenvolvimento Econômico, da disciplina da Política Econômica,
seja das políticas públicas praticadas pelos diferentes governos, etc. O poder corrosivo da sua
interpretação destruiu não somente as opções de política econômica do passado, como veio
desmistificar as ideologias contemporâneas das doutrinas econômicas, que, como caracterizou
Gunnar Myrdal, apresentam a economia social como um fenômeno “doméstico”.
Por outro lado, em virtude do choque de interesses que caracteriza o problema da distribuição
da riqueza, a História Econômica como disciplina tem-se revelado uma parte de informação sobre
o status quo, sobre o Establishment, e em certos países avançados desmascarou o papel grande-
apropriador de determinadas elites, aparentemente “vítimas do capital”, mas de fato grandes
beneficiárias dos mecanismos da acumulação e da injusta distribuição.
O movimento de reação contra a História Econômica surgiu na Europa, ainda nos anos 60, sob a
capa, primeiramente, de uma hostilidade às correntes neoclássica e keynesiana da História
quantitativa, geralmente denominadas de “Nova História Econômica”. Este disfarce era talvez
necessário para esperar a consolidação de uma nova metodologia da História Social, baseada na
Escola de Frankfurt e nos métodos psicanalíticos, que negam o caráter objetivo da racionalidade
científica.
Verificou-se logo após, no período 1970-80, o ataque aberto à História Econômica, e a todos os
métodos materialistas de ciência social, sob a alegação de suas vinculações com formas totalitárias
de poder (socialismo real, capital monopolista, etc.) e de doutrinas (estalinismo, liberalismo,
althusserianismo, maoísmo, etc.). Esta ofensiva ideológica da pequeno-burguesia intelectualizada
revelou-se uma nova cruzada “pela liberdade”, em que eram combatidas as doutrinas
“deterministas e proletárias”, qual seja, as doutrinas que analisavam como fator objetivo a
apropriação econômica e a natureza de classe do poder social.
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Proclamou-se, portanto, o “fim da História Econômica”, pela ausência de objeto específico para a
mesma, vindo supostamente a ocupar o seu lugar, a “Nova História” (Social). O nome da “Nova
História” deriva da hipótese, considerada por seus fundadores, de que só a (Nova) História Social é
História, não havendo, pois, uma “história econômica” com que dividir ou compartilhar a
observação analítica.
Esta rebeldia da “ideologia pequeno-burguesa” ao nível acadêmico critica a História Econômica
por trabalhar com “tabelas e gráficos” e fazer da “pobreza imaginativa”, porque as questões
fundamentais do homem não são econômicas, etc. Poder-se-ia argumentar que gráficos e tabelas
são necessários para criar explicações a diferentes níveis de abstração; que o problema econômico
é o centro da vida humana; que há tanta imaginação na abstração lógica quanto na explicação
intuitiva, etc. Contudo, há um argumento crucial que se impõe, desde fora do debate teórico-
metodológico. As grandes interpretações da “Nova História” só foram realizadas sobre temas já
explorados pela História Econômica, o que parece indicar que o “voo da imaginação” histórico-
social se desprende da “sólida rocha” da explicação histórico-econômica. Sem negar, pois, o papel
dos métodos intuitivos na explicação da história, seja ela social ou econômica, parece-me
excessivo negar um objeto próprio à história econômica, sem recorrer-se a argumentos puramente
ideológicos, do tipo “a luta econômica é o horizonte do operário”, não há “interesse numa
disciplina operária”, etc.
A História Econômica tem um objeto, um lugar específico. Este lugar é o processo cultural de
produção e distribuição de bens materiais. Sem a explicação desta cultura material torna-se difícil
explicar os aspectos não materiais das culturas societárias. A luta ideológica de classes não pode
obscurecer este aspecto, qual seja a existência de um objeto específico para a História Econômica,
e a importância crescente de suas metodologias, para a explicação do conjunto do tempo e do
fazer históricos.
De fato, a amplitude dos horizontes do tempo histórico requer ou pressupõe uma relativização
em todas as imposições doutrinárias, sob a pena de, se assim não se fizer, convertê-las em simples
impostura. Uma pesquisa, um parâmetro, um conjunto de postulados, não pode se converter em
um fim em si mesmo. Deve constituir-se apenas em pretexto para se aprofundar uma visão, uma
compreensão. E, embora esta visão possa prestar um serviço maior ou menor a outras, ela justifica
por si mesma, e não pelas outras.
A relativização de um certo saber não implica o abandono do seu contexto, mas a compreensão
que é preciso recriá-lo e ampliá-lo continuamente. Nesse sentido é que se pode falar do resultado
da pesquisa como uma realimentação da teoria, ou uma reformulação teórica.
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Vimos que diferentes pontos de vista doutrinários (ou corpos estabelecidos de teorias) podem
informar os Métodos ou Doutrinas Econômicas e Históricos da Metodologia Histórico-Econômica.
Caracterizamos que isto também é uma vantagem, uma vez que diferentes “escolas de
pensamento” possam se confrontar na prática das pesquisas, sendo de menor importância ou
eficiência “proclamar” a extinção de outra corrente por meios “ideológicos” ou “administrativos”.
Por exemplo, é uma prática corrente no meio acadêmico impedir-se institucionalmente a
existência de correntes de opinião diversas da ali dominante, o que é o caso típico da “solução
administrativa” para o problema da verdade científica.
Sabe-se que na história das ciências não predominam os desenvolvimentos lineares nas novas
teorias e explicações dos distintos campos de pesquisa. Em algumas áreas é bem visível a
cooperação de um corpo social que produz o saber; em outras, a incompreensibilidade das
rupturas parece ser o traço dominante. Nesses casos, a visão “ex ante” revela-se, com frequência,
enganadora.
Talvez aqui se verifique algo do lado interessante da metodologia histórico-econômica. Uma
visão “ex post”, ao apropriar-se inclusive da visão “ex ante” que vem de balancear, por contê-la,
como o cilindro de Arquimedes, é necessariamente maior, mais ampla. Há, portanto, um elemento
adicional para explicar a maior riqueza da análise “ex post” histórico-econômica: ela não se limita
literalmente ao interesse social que representa no objeto.
Esta é, portanto, uma das principais advertências que se pode fazer ao pesquisador, na aplicação
das metodologias histórico-sociais e/ou histórico-econômicas: não se limitar a fazer perguntas de
seu interesse ideológico, mas apresentar um amplo leque de questionamento, que ultrapasse a
vida de relações que se percebe no objeto.
Como já referi as doutrinas econômicas, os métodos lógicos, históricos, e lógico-históricos, etc.,
tem uma forte amalgamação de ideologia e ferramental objetivamente manipulável, razão porque
o historiador econômico, como manipulador de uma disciplina de síntese (“economia” +
“história”), tem uma oportunidade de analisar seu material metodológico ao abrir estas duas
“caixas de ferramentas”. É o que Myrdal fez em seu célebre “O Elemento Político”, conjunto de
palestras proferidas em 1928, sobre a Metodologia Econômica.
É evidente que o objetivo de tal procedimento não é extirpar a “ideologia da lógica”, mas
compreender a “lógica da ideologia”.
Por exemplo: como o Materialismo Histórico compreende o papel da Metodologia Histórico-
Econômica? Para responder a tal pergunta deve-se compreender a lógica da ideologia do
Materialismo Histórico, mas não necessariamente extirpar a ideologia de sua lógica.
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A lógica do Materialismo Histórico é a dialética de Marx, que por sua vez deriva do método
dialético de Hegel. Portanto, para se compreender como se formou o Materialismo Histórico deve-
se estudar as obras de ambos os filósofos, como as de Feuerbach, Engels, etc. Se como ponto de
partida, lemos o livro de F. Engels, “Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã”,
começa-se a entender o problema.
Sucintamente, posso dizer que o Materialismo Histórico é a forma com que Marx e Engels
aplicaram o Método Dialético à História, entendendo-o como um método geral para o que
chamamos de ciências sociais.
Ora, a aplicação deste Método Dialético à História formou um corpo categorial específico, ou
seja, o Materialismo Histórico. Uma categoria é uma definição lógica, que pressupõe a existência
das coisas que a ela se referem. Uma definição lógica que pretende existir de modo inequívoco é
uma categoria, isto é, um elemento que permite a abordagem objetiva da realidade. Há a
suposição ou comprovação de uma estabilidade naquilo que a compõe, daí seu potencial
explicativo ou observativo. As categorias do Materialismo Histórico são díades, isto é, elas existem
em pares, que pretendem expressar duas condições extremas da existência contraditória de um
processo. Esta dialética dos opostos foi utilizada pelos sacerdotes egípcios, por certos filósofos
gregos, hindus, outros medievais, por Hegel e por Marx para expressar o movimento, a dinâmica
de tudo que existe, que é e deixa de ser. Pois bem, duas destas categorias, uma díada (ou díade),
portanto, é: Infraestrutura e Superestrutura. A Infraestrutura refere-se à produção econômica; ela
trata, pois, do processo da criação e transformação da riqueza material, e das formas de repartição
que este processo de produção gera. Com relação à superestrutura, ela refere-se à “estrutura que
é mais nova”, ou “que vem posteriormente”; ela trata do processo de criação e transformação dos
elementos não materiais da cultura, ou da vida da sociedade.
Embora tanto a “infraestrutura” como a “superestrutura” se referissem a processos
independentes, contraditoriamente eles se constituem um único processo que, por sua vez,
movem-se da “infra” para a “super” e, decorrentemente, da “super” para a “infra”. Portanto, do
ponto de vista histórico-materialista, se a História Econômica trata da infraestrutura, ela conduz
necessariamente suas conclusões para a explicação da História Social, que trata da superestrutura,
e vice-versa.
Quando digo “trata”, refiro-me obviamente ao aspecto dominante da pesquisa, pois não se pode
fazer história econômica sem fazer história social e vice-versa.
Outros exemplos podem ser buscados para os diferentes métodos que informam as distintas
metodologias que referi para a disciplina em questão. Pode-se perceber, igualmente o caráter
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arbitrário, desde um ponto de vista externo, de qualquer parâmetro doutrinário ou teórico, posto
que a finalidade de tal parâmetro é dar coerência interna à teoria ou à doutrina a que pertence, e
não satisfazer a outras doutrinas ou teorias.
Assim, a lógica de cada ideologia específica, dá prioridade a uma dada arrumação interna de seus
métodos, de seus fluxos de comunicação ou de transformação, etc. Um historiador pode e deve
buscar entender estas lógicas ideológicas, tanto ao nível dos métodos econômicos, como
históricos, fazendo a opção por aquele ou aqueles de sua preferência.
Quanto à História Econômica, ela continuará existindo e se desenvolvendo, qualquer que seja a
opção pessoal deste ou daquele historiador. A ausência de uma feição dramática nestas opções
profissionais deve constituir-se uma importante fonte de reflexão para todo jovem historiador, que
se inicia, seja na história econômica, seja em outra disciplina.
Pode parecer paradoxal que a História Econômica tenha este poder de corroer fantasias, quando
ela mesma é presa metodológica das ideologias das diferentes lógicas de sua abordagem.
Penso que uma explicação parcial reside no fato da elevada sofisticação da explicação histórico-
econômica. Ela permite, com sua amplitude metodológica, elaborar, como em Labrousse, uma
análise da crise francesa no governo de Luís XVI, e deixar claro que à revolução francesa havia
precedido uma crise econômica e um processo de estagnação; como em Braudel, criar um
substrato, através dos ciclos de longo prazo, para a dialética da longa duração; como em
Kondratieff, compreender o mecanismo da estagnação econômica; mas, ao mesmo tempo,
aplicada ao estudo dos condicionantes da elaboração teórica, entender o porquê das proposições
teóricas de um Schumpeter, de um Keynes, de um Prebisch ou de um Celso Furtado, etc.
Ao estabelecer a verdade parcial de sua explicação no tempo, a História Econômica não combate
a boa fantasia, a intuição proveitosa; combate, porém, a “fantasia fantasiosa”, ou seja, a
elucubração que não é produto do nervo intelectual, do músculo intelectual, mas puro fruto da
verbosidade, da literação ou do jogo de palavras. Infelizmente, as disciplinas sociais têm seu
terreno eivado dos escombros da imaginação fácil, não da imaginação que socorre a ciência.
Categorias instáveis, criadas para uma única monografia, corretamente alinhavado eclético de
opiniões incoerentes, entram em ruína à primeira oportunidade, ao forte reencontro da
metodologia mais consequente. Quando há uma história que é produto de grandes deduções, o
Grande Deduzidor será necessariamente hostil a uma história que generalize a partir das
observações empíricas.
Daí a importância de combinar métodos empíricos com a reflexão, ou com a simples intuição.
Uma caracterização mais pormenorizada, que segue melhor as circunstâncias indicadas pela massa
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das observações não é necessariamente aquela incapaz de conduzir às grandes generalizações.
Desde que se observe, portanto, que à generalização inicial, indicada doutrinariamente e base de
partida, deve ser modificada, enriquecida ou até substituída, como conjunto hipotético que é, pelo
resultado da análise da base de dados, e pelo processo de realimentação da teoria.
A importância da reflexão é, portanto, decisiva. A fantasia que não é produto de uma reflexão
profunda não subsiste. Mas tampouco subsiste uma visão que busca substituir a reflexão pura e
simplesmente por uma argumentação em excesso, porque a força da argumentação decorre da
reflexão, e não o contrário. A sofisticação da explicação histórico-econômica é, pois, decorrência
da combinação de: (a) métodos de abordagem mais poderosos; e (b) uso sistemático do
procedimento reflexivo como método analítico.
Em sua condição de disciplina autônoma, ao combinar os métodos historiográficos e econômicos,
a História Econômica exige que seu pesquisador seja, ao mesmo tempo, historiador e economista;
todo estudo de História Econômica é, portanto, um estudo de economia ao longo do tempo, e
todo estudo temporal ou diacrônico de economia, reciprocamente, é um estudo de História
Econômica.
Esta percepção é muito importante para que se possa entender o padrão específico de
conhecimento, que é a contribuição desta disciplina. A pesquisa econômica tem suas
características próprias, e raramente ela se circunscreve num espaço atemporal. A variação no
tempo dos seus elementos introduz o problema do tempo histórico, sendo esta importância cada
vez maior, quanto mais ampla seja a faixa de tempo abrangida. Por isso, geralmente se aceita que,
num período de tempo de cinco ou mais anos, o campo seja “histórico-econômico”, e não
simplesmente “econômico”. A medida e a comparação em períodos de médio ou longo prazo
envolvem metodologias para tratar a historicidade do tempo, resultando em problemática distinta
dos simples “métodos econômicos”.
O interesse dos “métodos econômicos” enfatiza a redução, tanto quanto possível, do “histórico”
ao “lógico”, através de tipologização, ou seja, sistemas classificativos que padronizam os elementos
comuns, ou os componentes de regularidade, lançando fora o resto. Tais métodos sincrônicos são
importantes para o entendimento dos processos em estudo, mas não eliminam a necessidade de
entender o movimento temporal, a dinâmica, do referido processo.
Para tanto, é necessário lançar mão de “métodos históricos”, que por procedimentos diacrônicos,
especificam os parâmetros da tipologia a ser adotada, fixam os modelos dinâmicos supostos
descritores dos mecanismos que se buscam evidenciar e, por último, permitem a relativização das
soluções, simbólicas ou não, encontradas nos modelos utilizados.
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Esta habilidade necessária ao historiador econômico, de ser a síntese do historiador com o
economista, é que dá à História Econômica o seu lugar próprio entre as demais ciências sociais.
O modo como as diferentes “escolas” ou correntes ideológicas da historiografia econômica
abordam esta “relação de síntese” é que responde pelo uso maior ou menor destes ou daqueles
instrumentos analíticos, de tal ou qual método econômico ou histórico.
Por exemplo, se uma determinada corrente historiográfica está convencida que o objetivo da
pesquisa é “descrever a realidade”, então ela pode ser levada a adotar métodos estatísticos e
probabilísticos em suas técnicas de investigação, para aferir a probabilidade potencial de suas
descrições dos mecanismos societários.
Evidentemente, a escolha das metodologias utilizáveis não é apenas resultado da ideologia da
corrente historiográfica, mas também uma imposição das fontes de dados. Muitas vezes há
problemas do custo da obtenção dos dados ou, mesmo, impossibilidade física de reproduzi-los.
Nesse caso, a fonte de dados limita fortemente as metodologias que podem ser adotadas para a
construção de uma base de dados. Infelizmente, tais vicissitudes atingem todas as correntes
historiográficas, e não dependem de parâmetros ou opiniões. Sendo os postulados teóricos a
premissa das pesquisas, a coleta de dados pode impor a qualquer base teórica a limitação
informativa, e numa escala tal que possa impedir tanto a verificação de uma hipótese quanto, até
mesmo, a verificação da própria base teórica.
Por outro lado, há também correntes historiográficas – particularmente os estruturalistas – que
não creem seja possível “descrever a realidade”. Estas “escolas” supõe existir um véu, um permeio,
produto da própria culturalidade ou da fisiologia psíquica, que impede a captação do que é
“principal” do que é “essencial”. Daí, por exemplo, a “história estrutural”, que se satisfaz com uma
“recriação do ambiente”, mas recusa-se a buscar “leis” ou “fatores persistentes”.

2 – A Metodologia da História Econômica.


Todos nós sabemos que a História Econômica possui dois tipos de metodologia: (I) uma
metodologia instrumental, geralmente identificada com métodos quantitativos, mas que implica
também um método inferencial; e (II) uma metodologia expositiva, ou seja, envolvendo a técnica
específica de redação dos relatórios de pesquisa. Não posso aqui estender-me em detalhes sobre
tais metodologias, mas vou indicar uma pequena bibliografia com que um estudante possa iniciar
seu treinamento.

I – Metodologia Instrumental.
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Ela compreende quatro aspectos interligados: (a) métodos lógicos; (b) métodos econômicos; (c)
métodos históricos e (d) métodos estatísticos.
(A) Métodos Lógicos – Embora hoje em dia haja a disponibilidade de se estudar 36 diferentes tipos
de lógica, não é a isto que quero me referir. Penso que o historiador econômico deve ter
conhecimento relativamente sólido do que se chama “lógica geral”, ou seja, os métodos básicos do
“bom raciocinar”, pelos quais se evitam os sofismas, tão comuns na argumentação corrente.
Na minha opinião a melhor e a mais simples exposição de conjunto é o livro em espanhol “Lógica
General”, de Eli de Gortari, editado pela Grijalbo S.A. do México, nos anos 60. Os fundamentos
estão todos neste texto. Parece-me muito difícil alguém iniciar-se em pesquisa e redação de
relatórios de pesquisa, desconhecendo ao menos este livro.
Para aqueles que se interessam pelo método dialético, recomenda ler, na seguinte ordem: (a)
“Princípios de Filosofia”, de Guy Besse e Maurice Caving, editado pela Fulgor, nos anos 60; (2)
“Cuadernos Filosoficos” de V.I. Lênine, com várias edições em espanhol; (3) “Ciência e Existência”
de A. Vieira Pinto, editora Paz e Terra, particularmente o capítulo 9: “A significação da Lógica
Dialética”; (4) Os artigos “Sobre a Contradição” e “Sobre a Prática” de Mao Tse Tung, editados nas
“Obras Escolhidas”, publicadas em espanhol e português em Pequim; e pelas editoras Vitória e
Alfa-ômega; (5) O livro “Lógica”, de G.F. Hegel, em diversas edições espanholas e latino-
americanas; (6) “Categorias do Materialismo Dialético”, de M. Rosenthal e G.Straks, publicado pela
Editorial Juan Grijalbo; e o livro “Lógica Dialectica”, de V.P. Rozhin (há uma edição argentina, muito
rara). Deve-se reconhecer que a polícia política latino-americana conseguiu praticamente extirpar
a literatura sobre dialética, o que, convenhamos, não é a melhor forma de se lutar contra ideias.
Fica a pergunta: se esta literatura é tão ruim, por que foi erradicada pela polícia, e não pelo debate
intelectual?
(B) Métodos Econômicos – Recomendo o estudo das seguintes doutrinas, para formar um

conhecimento básico na área: (1) Economia Política; (2) Economia do Desenvolvimento; (3)
Contabilidade Nacional; (4) Teoria dos Modelos Econômicos; (5) Teoria do Consumidor.
(1) Economia Política – Pode-se ler aqui o “Manual de Economia Política” de A. Rumiántsev
(Moscou, 1980, em espanhol) e/ou o livro do mesmo título de A. Ciências da Ex-U.R.S.S., editado
por Grijalbo; um clássico é o “Dicionário de Economia Política” de W. Heller, editorial Labor, Madri,
há, de fato, dezenas de manuais publicados.
(2) Economia do Desenvolvimento – Recomendo a leitura do clássico do mesmo nome, da autoria de
Everett E. Hagen, editado em dois volumes pela Atlas, nos anos 70.

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(3) Contabilidade Nacional – Leia-se o clássico de Ruggles & Ruggles (1954) traduzido pela editora
portuguesa “Sá da Costa Editora”, chamado “Contabilidade Nacional e Análise Macroeconômica”
(1962). É o melhor livro sobre o assunto. Os capítulos 12 e 14 do livro de formação de Estatística
Econômica de Karmel e Polasek são muito úteis.
(4) Teoria dos Modelos Econômicos – É uma área essencial para se entender as doutrinas neoclássica
e keynesiana, além de aprender-se a técnica de criação de modelos, ferramenta de todas as
historiografias econômicas. Recomendo a leitura de Yiannis Venieris e Frederick Sebold,
“Macroeconomic Models and Policy” (1977). Este livro deve ser combinado com o texto de Marc
Guillaume, em francês, “Modèles Ecónomiques”, da Coleção Thémis, Presses Universitaires de
France, sem dúvida, o que de mais fácil já se escreveu sobre o assunto.
(5) Teoria do Consumidor – O clássico é o texto de H.A. John Green, utilizado no “Primeiro Mundo”,
como roteiro do curso do mesmo nome de pós-graduação (nível mestrado e doutorado).
“Consumer Theory”, John Green, Penguin Modern Economics, Inglaterra, 1971.

(C) Métodos Históricos – Através de três livros pode-se adquirir o conhecimento introdutório: o
clássico “Os Métodos da História”, de Ciro Cardoso e Héctor Brignoli (editado pela Graal); outro
clássico, de José Van Den Besselaar, “Introdução aos Estudos Históricos”, editado pela E.P.U.
(Editora Pedagógica e Universitária, e a coletânea da Maria Beatriz Nizza da Silva, “Teoria da
História”, editado pela Cultrix.
Para os interessados no Materialismo Histórico, há os clássicos “Fundamentos del Materialismo
Histórico”, de Konstantinov, editado por Grijalbo e o “Tratado de Materialismo Histórico”, de
Nikolai Bukharín, traduzido por Edgard Carone para a Editora Laemmert, do Rio de Janeiro (1970).
Não vou me estender sobre métodos históricos porque é, de fato, a especialidade de todos nós
aqui no Departamento de História. As bibliografias dos nossos cursos de Historiografia e
Metodologia são uma fonte melhor para todos os interessados.

(D) – Métodos Estatísticos - Dois textos são indispensáveis para uma introdução nesta área: o livro
“Estatística Geral e Aplicada para Economistas”, de P. Karmel e M. Polasek, editora Atlas S.A.; e o
livro “Introdução à Econometria”, de Harry Kelejian e Wallace Dates, da Editora Campus. Ambos os
textos só exigem a álgebra do colegial, dispensando Cálculo Diferencial e Integral ou Álgebra
Matricial mais complicada, sendo por isso de acesso prático a todos.

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II – Metodologia Expositiva.
Eu havia pontualizado que, além da metodologia instrumental, a História Econômica compreende
uma metodologia expositiva, a qual é mais restrita, mais limitada, que a metodologia expositiva da
História em geral.
O historiador econômico trabalha pouco com os métodos de coligação e da explicação em
detalhe. Normalmente, ele utiliza os métodos da explicação em princípio e da explicação histórica
prática. Para lembrar apenas, definirei sucintamente os quatro métodos.
(a) Método de Coligação – Neste método, o historiador explica um fato através de suas relações

intrínsecas com outros fatos, e procura localizá-lo em seu próprio contexto histórico. Duas são as
preocupações do historiador, ao utilizá-lo: (1) estabelecer previamente qual é o elemento
explicativo central, fazendo a “série de fatos” se desdobrarem a partir deste elemento; (2) fazer
com que a causalidade do fato histórico principal pareça emergir naturalmente da narrativa, pela
ordem de sucessão dos fatos relacionados. Este método foi usado por Mousnier no estudo das
rebeliões camponesas do século XVII.
(b) Método da Explicação em Detalhe – Neste método o historiador compara um modelo teórico,
com a análise de informações empíricas da base de dados. Ele procura explicar um fato histórico
em termos das diferenças entre o modelo e os atores sociais e individuais envolvidos, buscando, a
partir da ação social, estabelecer processos e estruturas. O centro da explicação é decifrar a lógica
interna das relações, como na montagem de um quebra-cabeças (puzzle).
(c) Método da Explicação em Princípio – Neste método o historiador trata o fato como um derivado

teórico de uma categoria ou “família” de fatos conhecidos, cujas necessidades lógicas internas já
estão mapeadas e/ou tipologizadas.
A partir daí, o historiador localiza e destaca as diferenças, ou “logicidades” com relação à família
do caso-padrão. Segundo Weber, trata-se de “ajustar a estrutura lógica de um sistema conceitual…
e o imediatamente dado na realidade empírica”. No espírito da afirmação de Colin Lucas (1973),
está-se à procura da “diversidade específica”.
(d) Método da Explicação Prática - Neste método o historiador produz um amálgama do método da
explicação em detalhe (MED) com o método da explicação em princípio (MEP). No dizer de Phillip
Abrahms, não se pergunta apenas o que ocorreu (fato histórico), mas qual a natureza do que
ocorreu (categoria do fato).

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Portanto, a metodologia expositiva da História Econômica tem por objetivo explorar a unicidade,
a excepcionalidade do fato histórico, para ascender do particular ao geral; ou seja, estabelecer
possíveis regularidades, leis ou mecanismos pela qual (ou quais) a excentricidade “eleva-se” como
necessidade social. A síntese analítica revela, pois: (1) a excepcionalidade dos fatos analisados; e
(2) ordena os mecanismos e as estruturas que porventura logrou revelar. A partir daí, com a
conclusão do trabalho científico do historiador, exerce-se a sua capacidade literária. A recriação
narrativa (a) “bola” a forma literária do relatório e (b) assegura a sua efetivação.
Para compreender melhor esta seção, leia-se: Max Weber; “A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo”; Max Weber - “The Methodology of the Social Sciences” (N.Y., Free Press); Max
Weber - “General Economic Theory” (N.Y., Collier-McMillam, 1961); F. Stern - “Gold and Iron”,
(Allen & Unwin, Londres, 1980); a revista “Past & Present” (publicação inglesa), etc.
Muitas vezes a conclusão do trabalho científico do historiador econômico dispensa a parte
artística de um melhoramento literário. Por exemplo, quando se está estudando flutuações ou
ciclos econômicos, geralmente o nível de abstração não traz de volta a ação específica dos
personagens históricos individuais, ou mesmo, de grupos definidos, prescindindo-se de um certo
“pôr em cena”, ou seja, a construção de um cenário com personagens humanos. Mas quando a
personalidade de um indivíduo representa de fato a síntese de um grupo social ou de relações
entre-classes, entre-instituições, etc., como no caso do clássico de Stern, “Gold and Iron”, a arte da
apresentação literária torna-se indispensável.
Depois da listagem dos aspectos metodológicos que fiz, vou explicar um pouco a história da
síntese histórico-econômica.
Como se sabe, os “economistas” apareceram com os fisiocratas. O texto de Henry Higgs, “Los
Fisiócratas”, Fundo de Cultura Económica, México, 1944 é o clássico no assunto, para o estudante.
A partir da Fisiocracia, desenvolveu-se a escola clássica de Economia Política, cujos principais
expoentes foram A. Smith e D. Ricardo. As explicações de Smith eram dadas pela combinação do
método histórico com métodos lógicos, sendo que para o estudante de hoje é possível rastrear
algumas inconsistências lógicas nos textos de Smith, embora haja mantido outras; finalmente,
Stuart Mill fez um esforço no sentido de melhorar formalmente os elementos da visão dos
clássicos, eliminando certas falhas. A esta altura, porém, K. Marx já havia estudado as ideias
básicas de Smith, Ricardo e Say, dando-lhes consequência e, em muitos aspectos, as ultrapassando
por via do método histórico.
Como se explica que somente a partir dos fisiocratas (1750-1810) cria-se uma percepção das
relações do capital como um fenômeno social? Penso que isso se deve ao processo da Revolução
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Industrial, em que a apropriação da mais-valia começou a se deslocar da esfera das trocas para a
esfera produtiva. Nesse sentido, creio ser bastante compreensível que os primeiros grandes
pensadores que se dedicaram ao problema da criação e apropriação sistemática do excedente
social, tivessem que encontrar dificuldades insanáveis para explicar certos problemas, mesmo
aqueles básicos. Os economistas clássicos centravam, pois, sua atenção nas cercanias do
desempenho do capitalista como individualidade, buscando, a partir daí, entender o fenômeno do
autoacrescentamento do capital. Eles não conseguiam, pelo formalismo do seu método lógico,
chegar à abstração científica, que não confunde as diferentes formas do capital com diferentes
agentes históricos.
Temos, assim, que os economistas fisiocratas e clássicos, como Guilherme Petty, Boisguillebert,
Gulherme Franklin, Cantillon, F. Quesnay, Turgot, A-Smith e David Ricardo, trabalharam com um
nível de abstração inferior ao da pesquisa de hoje; daí que haja uma diferença metodológica entre
eles e nós, a nosso favor, e este patrimônio metodológico começou a ser construído por aqueles
economistas.
Vê-se, pois, que não faz sentido ignorar o processo objetivo de desenvolvimento metodológico.
Como nos explica Schumpeter em sua introdução à “História da Análise Econômica”, um
pesquisador não pode ignorar o conjunto do avanço científico. Nos quatro aspectos da
metodologia instrumental a que me referi, foram feitos avanços de grande impacto, de modo que
todo historiador e/ou economista tem que estar familiarizado com estas técnicas, para que seu
trabalho seja efetivamente uma contribuição de caráter profissional.
É uma atitude errada declarar: “nada sei nem quero saber d’ ‘O Capital’” de Marx; ou ainda: “os
neoclássicos não deram qualquer contribuição importante”; etc. Estas atitudes são pré-científicas e
revelam falta de disciplina, sem disciplina não se pode efetivar um trabalho que contribua para o
nosso ramo de atividade.
A reação contrária aos equívocos da metodologia clássica consagrou o método histórico e criou a
“escola” marxista nas ciências econômicas. Por outro lado, a reação contra a “escola” marxista
criou a chamada “escola” neoclássica, com sua preferência pelo desenvolvimento da metodologia
formal e simbólica, que consagrou um retorno do método lógico, particularmente por via o
simbolismo matemático (1860-1910).
Finalmente, um novo movimento de “escolas” veio de reagir contra os excessos do formalismo, a
partir de Joseph Schumpeter, criando-se as metodologias da contabilidade nacional, dos modelos
econômico-estatísticos, de estudo das flutuações e ciclos, etc., que hoje são inseparáveis das
ciências econômicas.
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Esta historicidade ou relatividade das diferentes contribuições indica o caminho (a metodologia)
de maior objetividade, de busca por via da autossuperação, e da pesquisa efetiva, que é uma
obrigação das diferentes historiografias econômicas, mas não apenas delas; antes de todas as
ciências sociais.
A experiência demonstra que todas as correntes de opinião podem-se valer do apoio das
metodologias instrumentais e expositivas, e que, de fato, elas o fazem. Há a importância, para
aquele que se inicia, de enfrentar o problema da sua formação com objetividade. Nos cursos de
economia, particularmente no Brasil, há um enorme preconceito contra os métodos
historiográficos; nos cursos de história, o preconceito é contra as metodologias instrumentais.
Estas visões “capengas” prestam um grande desserviço aos estudantes e à ciência social em nosso
país; ou em outro país em que subsistam.
Podemos concluir, portanto, que a história econômica, como uma ciência social de síntese, é uma
das ciências econômicas. Que a história não deve se confundir com a sociografia, um sociógrafo
não é um historiador. A matéria-prima da história é o fato na perspectiva do tempo. A redução
sociológica do fato à estrutura; e do tempo cronológico à sincronia; não são matérias do
historiador. O historiador trabalha com o tempo, e isto é uma verdade também para o historiador
econômico, caso contrário ele confundiria “história” com “economia” (ou “economia política”). A
combinação do espaço com o tempo, para o historiador, faz-se sob o império do tempo.
Daí a importância crucial, para o historiador econômico, da metodologia da análise das séries
cronológicas; a combinação desta metodologia com os métodos historiográficos constitui-se uma
poderosa fonte de iluminação sobre a base teórica, sobre a explicação histórico-econômica,
permitindo de modo efetivo o estabelecimento de novos postulados de pesquisa, e a construção
de hipóteses mais profundas e, consequentemente, verificáveis.
A grande força das metodologias da história econômica está vinculada, portanto, com a
compreensão do tempo histórico. Com a percepção do movimento temporal.
É evidente que o movimento do tempo histórico, como parte que é do tempo físico, é um
“continuum”. No entanto, o homem como sociedade repartiu este tempo em conformidade com o
desempenho observável e/ou previsível do nosso sistema solar, atribuindo uma repartição
cronológica ao tempo histórico que, além de ser sua medida, socialmente se confunde com o
próprio tempo.
Assim, cada um de nós “vive” 3600 segundos por hora (60 segundos por minuto vezes 60
minutos), vezes 24 horas por dia, vezes 365 dias por ano, vezes o número de anos do todo de

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nossa vida. A cronologia atribui, pois, uma descontinuidade ao tempo histórico que nos permite
entender (ou supor que entendemos!), quando alguém diz: “14 de abril de 1873”.
O que significa esta descontinuidade? O que significa este “atempamento do tempo”? Significa
que para intentar entender o que se passa, a vida social necessita ser fracionada em medidas de
tempo, apresentada de modo descontínuo, sendo então passível de abstração e comunicação
social. O filósofo Hegel costumava caracterizar esta “atempação do tempo” como uma negação
necessária do caráter de fluxo da própria vida. Neste caso, esta negação da dialética do tempo foi
um implícito de formalização do quotidiano.
Ora, a vida social se passa no tempo contínuo, mas só é por nós, percebida, no tempo
cronológico, uma “medida errônea” do tempo astronômico. A totalidade do processo social se
passa, pois, como um contínuo, mas é somente referida como atos isolados, como fetichizações
fotográficas no tempo. Estes “flashes” de tempo, estas ocorrências, estes eventos humanos, são,
portanto, os “fatos”. Todos os “fatos” fazem, pois, parte da história, embora os historiadores os
dividam em “fatos relevantes” seriam aqueles que acarretam “transformações” ou “mudanças”, ou
seja, aqueles que teriam consigo uma certa ruptura, uma certa descontinuidade. Penso que cada
historiador gosta de estabelecer por si mesmo o que é e o que não é relevante, e não insistirei
neste ponto. Chamarei apenas o “fato irrelevante” de “acontecimento”.
A matéria da História é, pois, o “fato histórico”, ou seja, esta ação humana coletiva “congelada”
numa fração de tempo (horas, dia, semana, ano?). E a matéria da História Econômica? É a
dimensão econômica do fato histórico, ou dito de outra forma, o “fato econômico” como “fato
histórico”.
A importância do “fato” é, pois, teoricamente relevante, no sentido em que: (a) o “fato” preserva
a “instância empírica” como algo distinto da “instância teórica”; (b) estabelecido o parâmetro
entre “teoria” e “realidade”, a metodologia histórico-econômica ganha em caráter objetivo, em
impessoalidade – ou em poder simultâneo – de suas explicações; por outro lado, (c) os processos
econômicos podem ser reproduzidos por via da abstração e descritos ou redesenhados não apenas
por métodos “dedutivos”, como “hipotético-dedutivos” ou “indutivos”.
A superioridade destes “ganhos” metodológicos, ao longo da história da síntese histórico-
econômica, não pode ser contestada. Esta superioridade não se confunde com a simples noção de
“estrutura”, ou o esvaziamento da categoria do “fato histórico”. (No nosso caso, “fato histórico-
econômico”). Quando eu me refiro à “crise do mercado de escravos, brasileira de 1857-58”, não
estou me referindo apenas à “crise internacional de 1857”, mas à forma histórica de que esta crise
se revestiu no Brasil. Ela é, portanto, um “fato histórico-econômico”, que não se confunde
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simplesmente com a ação dos agentes históricos, e que não pode ser apreendida em seu processo
ou suas relações estruturais, antes de ser especificada como um fato.
Esvaziar este fato pelo apelo a uma “estrutura econômica” ou para atender a uma “explicação de
longo prazo”, que diluiria as “conjunturas” numa “estrutura” é um “enriquecimento metodológico”
discutível. Parece-me, antes, um empobrecimento metodológico.
Max Weber pontualizou há muito a “ausência de fatos” como o característico da ciência
sociológica. Como ele disse: “relativamente vazia de conteúdo concreto”. Esta tendência a tornar
objeto de pesquisa, suas próprias abstrações torna-se evidente em muitos projetos de pesquisa de
sociólogos. Pergunta-se “qual seu objeto de pesquisa”? Responde-se: “vou estudar as relações
industriais naquela fábrica”. (Quer dizer: vai estudar as ações sociais naquela fábrica, no suposto
de que uma parte delas expresse “relações industriais”).
Com o “imperialismo” atual da Sociologia, particularmente da Sociologia da Cultura e da
Antropologia Social, sobre a História, pelo menos no mundo de influência francesa e inglesa, é
natural que haja “uma cobrança” para uma História que se faça sem tempo (Cronologia) e sem
objeto (fatos históricos). Curiosamente, os “fatos históricos” têm sido classificados de
“positivismo” (e não “positivos”). Esta tendência a rejeitar os fatos como objeto de análise
constitui-se “de fato” na reedição de uma metodologia disciplinar “absolutamente dedutiva”, que
prescinde, pois, de qualquer esfera de “trabalho empírico” para obter uma explicação verificável.
Como disse um célebre sábio: “não se pode retirar alguma coisa de nada”.
É difícil aceitar-se a elaboração de uma teoria simplesmente a partir de outra teoria, sem o
recurso da análise de uma natureza exterior à teoria e que dela se diferencia. Particularmente para
o historiador, sem um “curso de fatos”, não há como chegar à percepção de “processo” ou
“estrutura social”, por exemplo. Porque, mesmo sabendo o que é “estrutura social” ou “estrutura
econômica”, sei também, epistemologicamente, que tais conceitos derivam da observação de
fatos, e não podem, pois, ser atribuídos a fatos que não são considerados, ou que são supostos
não existirem. A palavra “trubar” nada significa, simplesmente porque não observamos o “trube”.
A insistência em negar o caráter empírico dos fluxos sociais consiste em recriar apenas uma
escatologia sem princípios. Ou seja, uma contradição em termos. Por detrás da negação dos fatos
está o estudo de fatos, que são cuidadosamente selecionados, para serem posteriormente ocultos
pela demão final do “artista”, que assim recria do “não essencial” o “novo essencial”. Ao redigir sua
explicação, retira parte dos alicerces, junto com andaimes.

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Esta discussão, é óbvio poderia se prolongar “pela eternidade de nossas vidas”. Meu intuito não é
este. É apenas levantar questões de “filosofia da história” ou “metodológicas”, para que os pós-
graduandos e formandos pensem sobre elas.
Apenas a nós, historiadores, cabe a tarefa da reflexão sobre o lugar da História como ciência. E
dentro deste lugar, completamente independente, eu gostaria de insistir no caráter autônomo da
História Econômica como disciplina, fiel e atenta guardiã que é do “gigante incomensurável”,
CHRONOS.
Obrigado pela atenção que me dispensaram.

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