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O QUE É ?
Antonio Fontoura
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Há duas grandes maneiras de examinarmos a ideia de teoria nos
estudos de história. Primeiro, teoria pode significar m odelos de a n á
lise. Nesse sentido, a teoria procura aprimorar o raciocínio histórico,
além de evitar erros como anacronismo e falácias ou confundir a
origem de um evento com sua explicação. Trata-se, por assim dizer,
de uma teoria do pensamento histórico.
O que abrange esse primeiro entendimento de Abrange
temas como as idéias de causalidade, o que significa "explicar", em
história, quais os problemas ligados à narrativa, qual a necessidade
de rigor conceituai, que formas são adequadas para se trabalhar com
a memória e o tempo e por que a coleta aleatória de dados não pro
duz conhecim ento histórico. Esses são alguns exemplos de tópicos
presentes neste livro e que tratam dessa noção de teoria como rigor
e correção do pensamento histórico.
O segundo entendimento do conceito de teoria se refere a modelos
da realidade. Quando se fala em feudalismo, tem-se, sobre esse con
ceito, um determinado modelo de realidade. Nesse caso, é uma forma
de compreender parte da ordem sócio-política da Europa Medieval.
Quando se fala em barroco, por sua vez, pensa-se em um estilo de
arte ligado ao movimento da Reforma Católica (Contrarreforma).
A teoria, nesse sentido, procura tomar períodos mais ou menos lon
gos da história e sintetizá-los em determinados modelos explicativos.
Alguns conceitos fazem parte desse entendimento de teoria, como
os já citados feudalismo e barroco, além de outros, como Revolução
Inglesa, Renascimento, llum inism o, Antiguidade, que estão liga
dos a certos períodos históricos. Outros conceitos, com o gênero,
poder, classe, civilização, Estado, oligarquia, miscigenação e tradi
ção são também conceitos teóricos ligados a modelos da realidade,
embora tenham a pretensão de servir como ferramentas de análise
para diferentes períodos. Estão, ainda, dentro dessa ideia de teoria,
T eoria da história
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as chamadas filosofias d a história, que procuram construir modelos
explicativos para o desenvolvimento histórico em sua totalidade.
Usadas como modelos da realidade, as teorias são sempre hipó
teses: ao mesmo tempo que buscam organizar o passado estudado,
devem estar abertas para que permitam o seu aperfeiçoamento (ou
a sua contestação) com base nos dados empíricos. Por isso, as teorias
funcionam por meio de um diálogo entre a abstração e os dados, e
são sempre provisórias. Teorias que exigem o estrito respeito às suas
formulações e ignoram como exceções todos os dados que as contes
tem abandonam o campo da análise racional e passam a ser profis
sões de fé (pois já alcançaram a verdade incontestável). Se definidas
ideologicamente, são ortodoxias que se tomam inúteis e perniciosas.
As duas formas apresentadas de compreender a ide ia de teoria se
entrelaçam nos trabalhos de história. Por exemplo: para entender
a sociedade medieval europeia, deve-se compreender o conceito de
feudalismo (como um modelo da realidade) ao mesmo tempo que se
deve aplicá-lo de forma rigorosa, compreendendo sua especificidade
temporal e sua relação com o contexto (usos que se fundam na ide ia
de teoria como modelo de análise).
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Observe um trecho do Manifesto Comunista, de 1848, escrito por
Karl Marx (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895):
A história de toda sociedade existente até hoje tem sido a história das
lutas de ciasses. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo,
T eo ria da história
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Observe que essa é uma análise bastante simplista, que tem como
objetivo apenas salientar como uma filiação teórica, uma determi
nada compreensão da realidade, dirige a atenção de historiadores.
O foco na luta de classes, a importância econômica na definição dos
acontecimentos, a redução da participação do indivíduo, a atenção
a certos temas e documentos históricos estão interconectados por
conta de certa visão teórica.
Neste ponto, pode surgir a seguinte pergunta: Mas todo historia
dor segue uma determinada filiação teórica? A resposta sim, embora
muitos ignorem os princípios teóricos que norteiam o próprio tra
balho (o que costuma ser muito perigoso). Basta pensarmos que, a
não ser que a historiadora ou o historiador queiram começar do zero
absoluto, iniciarão sua pesquisa com base em determinadas obras que
trataram de temas semelhantes. Isso faz com que já tenham analisado
ao menos algumas fontes e concluído que determinadas abordagens
teóricas parecem responder melhor aos problemas levantados.
Identificar a filiação teórica de um autor demanda experiência e
leitura. Usualmente, requer analisar os argumentos da pesquisa em
conjunto com a bibliografia apresentada, descobrir quais são as idéias
reforçadas e quais as refutadas, quais são os conceitos fundamentais.
Um ponto relevante é saber quando a pesquisa foi publicada.
Como exemplo, compare os dois textos a seguir. Ambos são de livros
didáticos de história, de períodos diferentes (o primeiro de 1930; o
segundo de 1987}, e tratam do mesmo tema: as causas da Guerra do
Paraguai (1864-1870).
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Livro Minha Pátria, de 1930
No ano de 1864, o Brasil foi arrastado para uma guerra terrível, em que
milhares de patriotas se sacrificaram em defesa da Pátria. Foi a Guerra do
Paraguai. Francisco Solano Lopez, presidente do Paraguai, arvorando-se em
defensor do Uruguai, quis intervir erri nossos negócios com esse país. Não
tendo sido atendido, declarou guerra ao Brasil.
O seu primeiro ato de hostilidade foi aprisionar o vapor brasileiro Marquês
de Olinda, ancorado em Assunção, capital do Paraguai. O vaso |navio| con
duzia a Mato Grosso o presidente desta província, coronel Frederico Carneiro
de Campos. Além de mandar encarcerar Carneiro de Campos e outros pas
sageiros, Lopez fez retirar de bordo a quantia de 400 contos de réis.
T e o r i a da história
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político: a Guèrra do Paraguai é vista de forma isolada, sem qual
quer relação com outros eventos do período. Além disso, sua causa
é a atuação de uma única pessoa, o presidente do Paraguai, Solano
Lopez. Nesse modelo teórico, não existem contextos, influências
econômicas, religiosas ou culturais, apenas a decisão de indivíduos,
de "grandes homens" com poder político e militar, que efetiva mente
fazem a história. E, além disso, uma história apresentada de maneira
apenas narrativa: afinal, sem contextos ou análises, resta ao texto
histórico relatar, de forma cronológica, os eventos que se sucederam.
Trata-se de um modelo histórico associado à defesa e à justificativa
de nacionalidades, daí o patriotismo explícito do texto.
No texto de 1987, a Guerra do Paraguai associa as questões polí
ticas às econômicas. A economia é tomada como a verdadeira causa
da guerra e a determina. Interesses econômicos dirigem os eventos
históricos e mobilizam a atuação de soldados que, sem poder político
e econômico, são impotentes diante da conjuntura. Nesse modelo
teórico, há uma redução na importância da atuação das pessoas,
pois elas agem de forma determinada pela estrutura econômica, o
verdadeiro motor da história. A narrativa existe, mas a análise eco
nômica estrutural é a mais importante. Trata-se de um modelo teó
rico associado à denúncia da violência que dominadores impõem a
dominados. Daí se segue o texto inflamado, que tem como um de
seus objetivos provocar indignação nos leitores.
Nenhuma dessas duas visões históricas sobre a Guerra do Paraguai,
aliás, é considerada adequada pelos historiadores nos dias de hoje.
De toda forma, os dois exemplos mostram que determinadas con
cepções de teorias de história geram diferentes idéias de causas, de
atores principais (quem faz a história?), da importância do contexto,
da forma de apresentação do texto e dos objetivos a serem atingidos
na pesquisa.
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