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1. Introdução
O objetivo deste artigo é entender como formas organizativas de mulheres negras indica
a consolidação de um campo epistemológico feminista negro benéfico para a democracia. Para
tanto, dividi o texto em três seções, além da introdução e da conclusão. Primeiramente, busco
conceituar a epistemologia. Em um segundo momento, procuro refletir sobre como definir uma
“epistemologia negra” sem cimentá-la em ideias essencialistas sobre autenticidade negra,
reconhecendo, ao mesmo tempo, as suas particularidades. Por fim, procuro debater os
repertórios de consolidação de um campo emergente das epistemologias feministas negras.
Esse estudo se encontra em uma agenda semelhante à de Campos e Rodrigues (no prelo)
sobre o desenvolvimento da temática de raça no campo da ciência política. Os autores afirmam
que, ainda que os estudos sobre desigualdade e racismo tenham sido basilares para o surgimento
das ciências humanas no Brasil, as pesquisas sobre as relações entre o movimento negro e o
sistema político ainda são escassas. Além disso, existem problemas teóricos e metodológicos
que prejudicam o desenvolvimento dessas investigações. Assim, ainda que haja interesse no
tema, a sua agenda é restrita e as ferramentas disciplinares limitados. Podemos citar, também,
Pereira (2019) e Carneiro (2005), que indicam que os estudos clássicos do século XX sobre
raça frequentemente se assentam em estereótipos raciais, sobretudo no que se refere às mulheres
negras, além de contribuírem para a reprodução da ideia de uma democracia racial.
Procuramos enquadrar a produção acadêmica como parte de uma instituição que
comporta disputas tanto no que diz respeito aos temas passíveis de investigação quanto no que
tange às ferramentas e narrativas traçadas nos seus estudos. Assim, seguindo Sueli Carneiro,
devemos observar de que forma a narrativa da democracia racial se faz presente na prática
científica, observando os seus discursos, mas também as ideias que fundamentam a pretensão
de universalidade, generalidade, relevância e validade. Esses debates estão sintetizados no
1
Trabalho apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS como parte do SPG33 - Obstáculos à igualdade de
gênero e Crise da democracia.
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Mestranda no Programa de Pós-Graduação em ciência política da UFMG, pesquisadora do MARGEM – Grupo
de Pesquisa em Democracia e Justiça, bolsista CAPES e pós-graduanda em Estudos Afro-latino-americanos e
Caribenhos pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais.
campo de pesquisa sobre epistemologias que, como pretendo demonstrar, para além de uma
linha de pensamento filosófico, é um aspecto de qualquer pesquisa que precisa ser
desnaturalizado, discutido e justificado nas pesquisas com vistas à produção de uma ciência
universal em um sentido plural (Mbembe, 2018).
A epistemologia pode ser entendida como o campo dos estudos sobre o conhecimento.
Autoras de diferentes correntes teóricas vinculadas ao feminismo negro debatem as relações de
poder que definem o que é e como deve ser construído o conhecimento, indicando, também,
formas de resistência que apontam para a consolidação de um campo epistemológico próprio.
Do ponto de vista da fenomenologia, a filósofa portuguesa Grada Kilomba (2019) define a
epistemologia como o conjunto de normas que determina o que é conhecimento, como ele pode
ser validado e quais os procedimentos para a sua aquisição. Mais do que isso, os critérios
epistemológicos delimitam os sujeitos do conhecimento, isto é, aqueles que podem produzi-lo
e recebe-lo, bem como quem pode avaliar a pertinência das perguntas postas. Semelhantemente,
trabalhando a partir da teoria crítica, Patricia Hill Collins (2019) afirma que são esses critérios
que orientam “o motivo pelo qual acreditamos que aquilo em que acreditamos é verdade.” (p.
402). Assim, epistemologia é o que estabelece o que pode ser conhecido. Definindo o campo
dessa maneira, as autoras evidenciam as disputas de poder subjacentes à produção do
conhecimento.
Uma vez vinculado a processos de validação, o conhecimento deve satisfazer critérios
epistemológicos e, por conseguinte, políticos. O referencial positivista3 que insta o afastamento
das características humanas da pesquisa 4 é, assim, o que define na produção hegemônica a
3 É importante destacar que a tradição filosófica positivista comporta, também, disputas, tensões e esquemas rivais
e, portanto, não é minha intenção aqui tratá-la como uma narrativa filosófica monolítica, como Seyla Benhabib
(2018) alerta ser um risco na proposição de críticas. No entanto, ao retomar alguns dos autores canônicos do campo
da ciência política que estabelecem as bases da disciplina, observamos o imbricamento metodológico e epistêmico
do positivismo na definição do campo como “uma orientação de estudos que se propõe aplicar à análise do
fenômeno político, nos limites do possível, isto é, na medida em que a matéria o permite, mas sempre com maior
rigor, a metodologia das ciências empíricas (sobretudo na elaboração e na codificação derivada da filosofia
neopositivista). Em resumo, Ciência política, em sentido estrito e técnico, corresponde à "ciência empírica da
política" ou à "ciência da política", tratada com base na metodologia das ciências empíricas mais desenvolvidas,
como a física, a biologia, etc.” (Bobbio, 1998, p.164).
4 Segundo Collins (2019 [2000]), “As abordagens positivistas têm o objetivo de criar descrições científicas da
realidade por meio da produção de generalizações objetivas. Como há uma grande variedade de valores,
experiências e emoções entre os pesquisadores, a ciência genuína é considerada inatingível, a menos que todas as
características humanas, exceto a racionalidade, sejam eliminadas do processo de pesquisa. (...)” (p.408). A autora
afirma que a abordagem positivista se caracteriza por quatro elementos: 1) O afastamento do “objeto” de estudo,
o que define o pesquisador como “sujeito” diferenciado; 2) A ausência de emoções na pesquisa. 3) A ausência da
ética e dos valores no processo de pesquisa; 4) Os debates baseados em ideias contrárias, que entendem como mais
fortes aquelas teorias que sobrevivem a ataques.
capacidade do indivíduo de ser um pesquisador e dificulta o surgimento de novas abordagens
para questões de pesquisa. Essa perspectiva já é alvo de questionamentos por diversos campos
que podemos chamar de epistemologias críticas, que envolvem a crítica feminista,
decolonial/anticolonial, negra, indígena, entre outras.
De fato, conforme aponta Stuart Hall (2016), a epistemologia, entendida a partir de um
ferramental metodológico foucaultiano, é composta por um conjunto de discursos (episteme)
que só fazem sentido quando localizados histórica e socialmente. O discurso, segundo o autor,
é aquilo que constrói o assunto, ou seja, aquilo que está no campo do dizível sobre um
determinado tema. Para Michel Foucault, o estudo do discurso passa por (a) entender as
enunciações sobre um tópico, (b) o surgimento de regras sobre como ele pode ser abordado (c)
a personificação dos discursos, (d) a emergência de autoridades sobre o tema, (e) a sua
institucionalização (em escolas, burocracias, entre outros) e (f) o surgimento de novas
epistemologias, que criam novos discursos (Hall, 2016).
Em seu estudo clássico, História da Sexualidade (2014), o filósofo francês busca
entender como surgem os discursos sobre o sexo. Ele afirma que, por exemplo, o
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não era considerado como uma identidade
(homossexual), mas como uma prática pontual na vida dos sujeitos. Com o advento do registro
e estudo sobre práticas sexuais, elas se tornam eixos organizadores da sociedade e, assim, os
sujeitos passam a ser classificados por elas. Dessa forma, a sexualidade surge como campo do
conhecimento e de atuação estatal, religiosa e política. Ao invés de reprimir, o surgimento do
discurso da sexualidade, cria sujeitos e incentiva que eles sejam conhecidos e estudados.
Uma vez que são validados por instituições de conhecimento, os conhecimentos
formulados nesse contexto possuem status de verdade. É nesse sentido que o autor afirma que
a verdade é sempre parcial e contextual. Além disso, Foucault (2017) define o poder como um
regime de verdade. Isso porque os discursos, que produzem as verdades, são a base de
legitimidade sobre a qual aparatos de poder, tais como a disciplina, agem e instituições são
criadas. Ao longo de sua carreira, o autor produziu estudos sobre como discursos são
responsáveis por essa criação de sujeitos e instituições – a loucura, o crime e a ciência são, para
Foucault, sempre vinculados de discursos.
No entanto, para o autor, o poder sempre vem acompanhado de resistência (Foucault,
2010; 2014; 2017. Hall, 2016). Ela é definida como uma rachadura no discurso que permite
contestar as verdades, de forma que não existe ninguém sem poder, ainda que alguns possuam
acesso a aparatos para fazer valer a sua versão da verdade. Dessa forma, Tamsin Spargo (2017)
demonstra como a resistência tensionou o discurso sobre a sexualidade. Aqueles produzidos
inicialmente como homossexuais posteriormente se organizam politicamente em torno dessa
identidade e percebem diferenças significativas que motivam a diferenciação entre gays e
lésbicas. O movimento conhecido como GLBT modifica a sua sigla para LGBT com a intenção
de conferir destaque às mulheres lésbicas, que reivindicavam visibilidade. Atualmente, o
movimento queer provoca desestabilizações das identidades de gênero e sexuais, se definindo,
assim, pela abertura e “estranheza” (queerness) com relação às normas. Assim, a resistência faz
emergir novas possibilidades de verdade e, consequentemente, outro poder.
Seguindo uma linha semelhante de raciocínio, ainda que menos atrelado ao pós-
estruturalismo do que os autores pensando a teoria queer, o pensador camaronês Achille
Mbembe (2018) estuda como o colonialismo e o capitalismo produzem um sujeito negro. Para
o autor, em um primeiro momento, existe uma consciência ocidental do negro, que diz respeito
àqueles estudos cujos objetos são “as coisas e pessoas ‘de origem africana’” (p.60). Assim, ela
designa
Por outro lado, o autor identifica uma consciência negra do negro, que procura resolver
o conflito entre si e essa identidade racial imposta, procurando “reencontrar a verdade sobre si
mesmo, já não mais fora de si, mas a partir do seu terreno” (p.65). Essa modalidade do
pensamento negro é marcada, no entanto, pela tensão entre escape e retorno àquela ocidental.
Na segunda sessão deste texto, indico alguns caminhos que Mbembe e outros autores propõem
para esse conflito. Assim, o negro passa de objeto do conhecimento para um sujeito produtor
dele. É nessa passagem que Kilomba (2019) identifica a possibilidade de construir outro poder.
Um fato relevante que os autores apresentados até aqui destacam é que a crítica à ausência de
pessoas negras na academia não diz respeito à falta da tematização da negritude, mas do uso de
categorias e imagens de controle – para usar os termos de Collins (2019) – que constroem os
sujeitos negros como objetos exteriores à produção do conhecimento. A reivindicação desse
conjunto de autores e autoras é, portanto, que as perspectivas, interpretações e reflexões
realizadas por pessoas negras dentro e fora da academia são, também, conhecimentos e teorias
válidos.
A afirmação de sujeitos negros como produtores de conhecimento possui implicações
que não são necessariamente evidentes. Conforme aponta a autora americana bell hooks (2019)
na discussão sobre a teoria feminista, as mulheres negras são frequentemente tratadas como
uma presença necessária para legitimar um conhecimento que não as inclui no seu processo de
formulação. As contribuições de mulheres negras acadêmicas são por vezes desconsideradas
por não corresponderem à experiência “legítima” da negritude, que se vincularia
exclusivamente à existência na pobreza e nas ruas. Kilomba (2019), semelhantemente, afirma
que adjetivação das “acadêmicas negras” aponta para a dissociação das duas condições
“acadêmica, apesar de negra”. Assim,
A crítica de hooks, que pretendo levar adiante aqui, é a de que propor uma epistemologia
negra não significa propor uma forma de falar sobre as pessoas negras. O que entendo por
epistemologia negra são aqueles debates propostos por teóricos negros acerca do conteúdo e
das práticas científicas, que descentralizam e desnaturalizam as práticas eurocêntricas e brancas
de pesquisa e reflexão e propõem outros meios de validação do conhecimento. Assim,
questionar os caminhos de atribuição de validade da epistemologia dominante não quer dizer
abrir mão de qualquer procedimento de validação do conhecimento. Significa, no entanto, olhar
para os critérios atuais como parte de dispositivos de poder-verdade, com especial atenção ao
dispositivo de racialidade, como pensado por Sueli Carneiro (2005). Dessa forma, eles não são
naturais, fazem parte de processos de disputa e são objetos de escolha do pesquisador.
É importante distinguir, dessa forma, as epistemologias negras de uma espécie de
paradigma científico. Esse conceito diz respeito a um ferramental teórico segundo o qual
interpretamos nossas pesquisas, tais como a interseccionalidade ou o afrocentrismo. Outra
distinção relevante é com relação ao conceito de metodologia, isto é, o percurso lógico de
nossas investigações, que incluem, por exemplo, a genealogia e a análise de discursos. As
epistemologias negras se situam, antes, no debate sobre o que é a ciência, quem a produz, quais
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Cabe aqui um relato pessoal. Em um espaço de organização feminista que frequentei com algumas amigas, negras
e brancas, em um determinado momento as mulheres negras reivindicaram maior participação no processo de
elaboração de ações do coletivo, que estava pautado em concepções brancas da ação política. Uma das nossas
colegas brancas sugeriu, então, que marcássemos um dia para que as mulheres negras falassem. Assim, foi
delegado a nós o lugar de falar sobre raça, e não sobre as condições das mulheres de forma ampla, as relações de
poder ou as estratégias organizativas daquele coletivo. Assim, como pontua hooks (2019), a nossa presença cumpre
uma função anedótica ou de legitimação de um grupo de continua a atuar segundo critérios de validação assentados
em modus operandi brancos.
são as suas práticas, para quem ela se destina, o que a torna verdadeira e quais são as perguntas
e tema pertinentes a ela (Collins, 2019; Kilomba, 2019).
O essencialismo é uma forma de pensamento que entende que há algo de natural sobre
os desejos, interesses, estéticas e práticas de algumas pessoas. Ele diz respeito a uma versão
monolítica e estática dos sujeitos. Como já antecipei, uma das preocupações ao definir as
epistemologias negras é a de evitar confiná-la a alguma prática ou interesse que corresponda
“automaticamente” àquelas das pessoas negras, uma vez que essa identidade é profundamente
plástica. Outro motivo para evitar o essencialismo é o combate à ideia de que a adoção de
práticas alternativas, inovadoras ou não-hegemônicas está limitada às pessoas negras, o que
permite que os demais pensadores possam permanecer acríticos com relação à hegemonia
eurocêntrica6 (hooks, 2017, 2019b, 2019c). Por fim, evitar o essencialismo com relação às
pessoas negras é uma forma de reinscrevê-las no discurso da humanidade, isto é, percebê-las
como sujeitos históricos com a possibilidade de mudar, relatar, interpretar e projetar futuros
(Carneiro, 2005).
A raça não é um dado biológico, isto é, os sujeitos não nascem negros, mas são
entendidos e significados como tal no mundo. Segundo Stuart Hall (2016) não é que a
materialidade não exista, mas que ela não faz sentido sem que tenhamos um conjunto de
significados pelos quais as entendemos. O negro não faz sentido fora do discurso da raça, é
criado por este, assim como o sujeito branco. Nesse contexto, como Mbembe discute em Crítica
da Razão Negra (2018), o ser negro é definido exteriormente, o que provoca uma ruptura entre
o sujeito e aquele que dizem que é (Fanon, 2008; Kilomba, 2019). Além disso, ele é definido
com relação ao indivíduo branco7 e é a este que pertence o domínio do futuro e a capacidade de
significar e criar o mundo.
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Utilizo aqui os termos “eurocêntrico” e “branco” como intercambiáveis, seguindo estudos como os de Aníbal
Quijano (1999), que entendem o eurocentrismo como um discurso racial que coloca o sujeito branco como
universal ou como ponto de reverência. Outros autores, como bell hooks (2019b), preferem o uso de “supremacia
branca” para definir aquelas práticas que colocam a branquitude enquanto discurso e identidade como sinônimo
do bom, o que inclui as suas práticas epistemológicas.
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Tanto bell hooks (2000;2004) como Ângela Davis (2016) e Mara Viveiros Vigoya (2018) discutem, por exemplo,
como em determinados contextos a masculinidade dos homens negros é enquadrada hora como dócil e não
ameaçadora, privado da agência e passível de dominação pelo homem branco, hora como hiper-sexualizada ou
violenta, constituindo-o como uma ameaça para homens e mulheres brancos e suas famílias. Vigoya (2016) coloca,
ainda, que as relações de gênero podem ser entendidas, ainda, para além de uma relação entre homens e mulheres,
como uma relação racial. Nesse sentido, por exemplo, a feminilidade branca não é construída somente em oposição
à masculinidade, mas também à feminilidade negra.
A reinvenção da negritude sob um prisma positivo deve se atentar a, em que medida, se
vale de discursos também essencialistas. O entendimento de que os trabalhos de intelectuais
negros são expressivos de uma identidade ignora processos históricos desses sujeitos que, no
movimento da diáspora, passam a se caracterizar pelo movimento e pela plasticidade. De fato,
para Paul Gilroy (2017), se existe uma modernidade a ser definida pelas pessoas negras, ela
está fundamentada na figura do barco – das passagens, combinações e articulações que
acontecem nos movimentos de sobrevivência das pessoas negras. Assim, um grupo de autores
negros se preocupa com o resgate, a retomada de uma herança perdida, roubada, violentada.
Nesse sentido, procura-se atender a um desejo de comunidade, de se autoproduzir como origem
a partir de um sentimento de perda, reinscrevendo o passado a partir de feitos e impérios
gloriosos como tentativa de reafirmar a própria humanidade. Em outras palavras,
A reafirmação de uma identidade humana negada por outrem, nesse sentido, fazia
parte do discurso da refutação e da reabilitação. Porém, se o discurso da reabilitação
procurava confirmar a copertença negra à humanidade geral, ele tampouco não
recusava – exceto em raras ocasiões – a ficção de um sujeito racial ou da raça em
geral. (Mbembe, 2018, p.162, grifos do autor)
Dessa maneira, são necessários processos de interrogação crítica por parte dos
pensadores brancos que procurem documentar os processos pelos quais entendem seu ponto de
vista, motivação e direcionamento (hooks, 2019a, p.125). Para isso, é necessário reconhecer
que o próprio processo de formulação do conhecimento e as práticas pedagógicas das
instituições de conhecimento estão assentadas em práticas identitárias das pessoas brancas.
Assim, a crítica aos “argumentos de autoridade da experiência” dos quais se valem pessoas de
grupos marginalizados pode deixar de perceber que a validação epistemológica de perspectivas
das pessoas brancas já confere a estas a “autoridade” sem que elas precisem reivindicá-la
(hooks, 2017). Esse fenômeno se relaciona ao diagnóstico de que a razão ocidental e o domínio
da linguagem foram apropriados como subsídio para a desumanização das pessoas negras ao
longo de todo o período colonial e da modernidade, seja com o fim de negar a sua humanidade,
seja com o objetivo de ensiná-la a elas (Mbembe, 2018).
É nesse sentido que diversos autores apontam para a necessidade de olhar para as
práticas do conhecimento formuladas nas margens ou nos trânsitos. Se, por um lado, bell hooks
afirma que pertencer à margem significa estar dentro, mas distante do centro, o que permite
observar e compreender “tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora” (2019c, p.23), o
que é diferencial, para a autora é a percepção de que esses espaços pertencem a um todo do qual
o marginalizado não apenas faz parte, mas é componente fundamental. Assim,
semelhantemente, Hall (2003) afirma que a barreira entre uma “cultura negra” e uma “cultura
branca” esconde aproximações, trocas, tensões e convivências que compõem a cultura como
ente plástico.
Essa plasticidade das trocas e tensões entre diferentes grupos é pensada na crítica ao que
Aimé Césaire chama de reducionismo europeu8 (Césaire apud Mbembe, 2018), que postula a
possibilidade de emergência do novo, de uma pluralidade assentada na multiplicidade e na
coexistência de singularidades que são, ao mesmo tempo, o que une e diferencia os sujeitos.
Paul Gilroy (2017) afirma que o tráfico atlântico de africanos inaugurou um microssomo
político do qual surgem articulações políticas, estéticas e de conhecimento. Sem a intenção de
romantizar os horrores desse contexto, ele e outros autores que tratam da margem e do trânsito
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“Este sistema de pensamento ou, melhor ainda, a tendência instintiva de uma civilização eminente e prestigiosa
a abusar de seu prestígio para provocar um vazio à sua volta ao reconduzir abusivamente a noção de universal às
suas próprias dimensões, em outras palavras, pensando o universal a partir dos seus próprios postulados e através
das suas próprias categorias.” (CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010
apud Mbembe, 2018).
como local de emergência de outras práticas, simplesmente reconhecem a realidade histórica
de que foram inauguradas ali as bases do que pode ser entendida como uma esfera pública negra
– fora, mas paralela àquela teorizada por Jürgen Habermas, com os seus próprios marcos
históricos e epistemológicos (Gilroy, 2017). Assim, ali surge o que Mbembe chama de “nova
consciência planetária”.
Valorizar as margens significa retirar das pessoas marginalizadas o fardo de se construir
em oposição ao eurocentrismo do conhecimento, reconhecendo a sua capacidade de criar algo
novo (Kilomba, 2019). Alguns caminhos são indicados por perspectivas de aliança da
experiência com a crítica, a admissão das emoções como parte do processo de pesquisa, os
diversos formatos nos quais os textos podem se apresentar, tópicos que serão discutidos na
terceira sessão deste artigo.
Ser sujeito do conhecimento implica na habilitação para validar discursos, fazer valer
verdades e, assim, criar poder – idealmente, outro poder que não seja apenas aquele da
dominação (hooks, 2019c; Kilomba, 2019). A passagem para o status de sujeito é entendida por
Grada Kilomba como compreendendo cinco estágios. Primeiro, a negação, a recusa de admitir
para si a experiência do exílio e da violência; em segundo lugar, a frustração que vem da
identificação de barreiras impostas pelos discursos marginalizantes, que culmina no sentimento
de que os objetivos do indivíduo não podem ser alcançados. Em seguida, a ambivalência, isto
é, a convivência de sentimentos positivos e negativos quanto àquilo que marginaliza. O quarto
estágio é a identificação, compreendendo os saberes, histórias e pessoas do grupo
marginalizados como parte da própria subjetividade e como potenciais aliados. Por fim, a
descolonização, em que se deixa de existir como outro, como o que é objeto do conhecimento
e se torna um eu completo em si mesmo, quem descreve, quem narra.
Neste último estágio, é possível passar a compreender a raça como algo que atravessa o
sujeito, tomando o significante “negro”, no entanto, com o fim de “confundi-lo e, com isso,
melhor se afastar dele, melhor conjurá-lo e melhor reafirmar a dignidade inata de todo ser
humano, a própria ideia de uma comunidade humana, de uma mesma humanidade, de uma
semelhança e de uma proximidade humana essencial.” (Mbembe, 2018, p.299). A raça é parte
do sujeito, mas não é estática, pode ser reinventada, tensionada e não o define como todo9. Nas
palavras de Sueli Carneiro,
9 Entender a raça como uma construção político-discursiva que pode organizar horizontes políticos normativos
levanta algumas questões discutidas por Judith Butler (2018) e Nancy Fraser (2018). Butler coloca que a
problematização do sujeito como construído linguisticamente não implica afirmar a sua inexistência, mas
evidenciar a possibilidade da reinvenção. Assim, podemos transpor o debate de gênero realizado pelas autoras para
A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude
redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a
diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher,
ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é
converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para
além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta. (Carneiro,
2003, p.4)
As epistemologias negras podem ser entendidas, portanto, segundo aquilo que Cornel
West (1993) chama de intelectualidade profética. Ela se constrói como alternativa àqueles que,
em reação à segregação dos espaços de produção de conhecimento, se rebelam reproduzindo
hierarquias semelhantes, que limitam a sua criatividade ou àqueles que se distanciam da raça
no ingresso aos meios acadêmicos, a intelectualidade. A epistemologia – ou intelectualidade –
profética está, assim, atrelada ao “comprometimento com a fusão da vida da mente (inclusive
o trabalho da escrita) com a luta pela justiça e dignidade humana” (p.51), realizada por sujeitos
descolonizados, no sentido de transitar e transcender os discursos da raça.
o debate racial ao afirmar que desconstrução do sujeito negro não elimina a negritude enquanto categoria, mas
traça os processos e brechas discursivas que permitem a agência. Fraser questiona, por outro lado, se qualquer
definição do sujeito significa exclusão. Se, para Butler, a partir de um ferramental foucaultiano, a definição
significa dizer o que é e o que não é um sujeito, é na abertura das identidades à ressignificação que o movimento
emancipatório pode se inscrever. Para Fraser, no entanto, é preciso conteúdo crítico e normativo nessa
ressignificação, e, assim, alguma possibilidade de escrever grandes narrativas.
Acredito que, tanto a partir de Butler como de Jacques Rancière (2018), podemos tentar iniciar uma resposta a
essa questão. A filósofa americana não nega a possibilidade de narrativas amplas, mas afirma a desnaturalização
dos seus sujeitos. Assim, ela propõe que o sujeito – ou a universalidade – não seja o ponto de partida das narrativas
sobre o poder, isto é, Butler propõe um anti-fundacionalismo. Da mesma forma, a autora afirma que a identidade
em si não pode ser a única organizadora da ação política justamente porque, para isso, teria que assumir um
significado estático e fundacional. Nesse sentido, para estabelecer um diálogo com o questionamento de Fraser
sobre a exclusão necessária na definição do sujeito, recorro brevemente a Jacques Rancière. Para o autor, a
democracia é sempre uma conta imprecisa, uma vez que nela existe a possibilidade de emergência de novas
subjetividades que reivindicam partes da distribuição da igualdade. Assim, a identidade não necessariamente é
deliberadamente excludente – ainda que possa ser, como vimos nas tensões entre mulheres negras e brancas na
significação da “mulher” – mas ela não pode prever os sem parte, aquelas coletividades latentes, mas que ainda
não se formaram enquanto tal.
Assim, no que tange às epistemologias negras, podemos buscar um sujeito negro não-fundacional, retraçando os
processos políticos e discursivos da sua formulação. A partir dessa desnaturalização, podem emergir formas
autodeterminadas de definição, sem deixar de observar a sua localização contextual e as narrativas amplas nas
quais elas se inserem. Por outro lado, mesmo reconhecendo a dimensão histórica da negritude, essas
epistemologias se afirmam pela abertura à emergência de novas identidades e subjetividades. Nas palavras de
Mbembe (2018), “(...) o ponto de partida de um pensamento sobre o ‘tempo por vir’ é o reconhecimento de que
não se pode viver no passado. O passado pode servir como motivo de inspiração. Pode-se aprender com o passado,
mas os conceitos morais de dever, de responsabilidade e de obrigação decorrem diretamente do nosso
entendimento de futuro. O tempo do futuro é o tempo da esperança. O presente é o tempo do dever.” (p. 167).
negras trabalharam ao longo dos anos para evidenciar a articulação de diversas posicionalidades
sociais, que resultam em diversas experiências de opressão e de modos de resistência.
A colonização organizou as experiências e normas sociais a partir de marcadores de
raça, gênero e classe social. É nesse contexto que as formas organizativas de mulheres negras
puderam emergir enquanto tal. A historiografia dos gikuyu, por exemplo, mostra como no atual
Quênia, a educação sexual para as mulheres, que era parte do processo formativo do grupo,
passa a ser entendido como ofensivo à cultura cristã. Formas de contestação emergiram tais
como escolas alternativas àquelas cristãs, nas quais conhecimentos e histórias locais puderam
ser ensinados, entendendo-os como parte da luta anti-colonial (Njambi, 2011). Esse relato
demonstra como um senso de moralidade eurocêntrico, atrelado à necessidade de justificação
para a colonização e escravização de povos não-europeus, moldou papeis de gênero. No
entanto, a história das mulheres do grupo também exemplifica como, nesses contextos, também
surgem formas específicas de resistência.
A educação é um espaço de disputa do movimento de mulheres, uma vez que nele são
construídos e reproduzidos saberes sobre os sujeitos. No que se refere às práticas pedagógicas
do quotidiano, as mulheres negras têm disputado formas de socialização do cuidado e da
responsabilidade, assim como formas de empoderamento coletivo desde a infância. Patricia Hill
Collins (2019) retoma Barbara Christian para conceituar a maternagem coletiva como um
conceito útil para ler essa forma de ativismo das mulheres. Ela é definida como uma maneira
de pensar “[...] além do estreito sentido de maternidade como um estado físico, ampliando seu
sentido para alguém que cria, nutre e salva vidas em termos sociais, psicológicos e físicos”.
(Christian apud Collins, 2019). Com isso, as ações que se voltam para as necessidades
específicas da comunidade como educação, saúde, segurança, formam lideranças femininas.
Por outro lado, essa concepção comunitária de maternagem também desafia a imagem da
família burguesa heterossexual, pensando outra configuração mais ampla e com outros laços
para além do parentesco.
A contestação de conceitos comumente utilizados para pensar a sociedade, como
acontece com o de família, também é um aspecto importante do movimento de mulheres negras.
Desde o contexto do movimento anti-abolicionista, ativistas como Sojourner Truth já
procuravam contestar a ideia monolítica de mulher, por exemplo. Para esta, a feminilidade
definida como frágil e maternal é racializada, de forma que existem outras expectativas para
mulheres não-brancas, que não estão concentradas na esfera privada e para quem a maternidade
não é desejável a não ser que sirva a fins econômicos – isto é, para reposição de mão e obra, no
contexto escravagista (hooks, 2019c). Essas falas de mulheres negras no processo de atuação
política podem ser entendidas como desenvolvimentos teóricos das teorias sobre gênero e
classe, mais que apenas um relato.
Esse processo se dá, hodiernamente, de forma transnacional. Angela Davis (2017)
ressalta a importância do diálogo entre mulheres em diferentes contextos não apenas para a
formação de uma solidariedade mais ampla, mas também para que o entendimento sobre as
teorias e as experiências seja mais amplo. A autora destaca que, como professora e ativista,
pôde viajar para diversos países e criar pontes de diálogos entre as feministas nesses locais e as
suas alunas na universidade. Essa pode ser vista como uma extensão dos espaços de trocas e
debates que caracterizaram o início da organização feminista enquanto movimento, que serviam
ao propósito de entender experiências compartilhadas e os fatores que diferenciavam as
mulheres segundo raça e classe (hooks, 2019c).
Não é raro que mulheres negras acadêmicas sejam, também, ativistas. Isso permite que
essas discussões teóricas e deslocamentos de perspectivas sejam transportados para o ambiente
universitário que, como vimos, não tende a ser receptivo a esses temas e sujeitos. Autoras como
Sueli Carneiro (2005) e Ana Cláudia Jacquetto Pereira (2019) estudam as formas como essa
mediação acontece. Nas palavras da segunda autora,
Essa dupla atuação resulta em modificações nas pautas das investigações científicas e
nas formas de organização das mulheres. Um exemplo desse processo é a forma como a geração
do feminismo negro clássico brasileiro, nos anos 1980, se preocupava em mediar movimentos
sociais, academia e instituições estatais, reivindicando maior atenção às demandas das mulheres
na formulação de políticas públicas e, para tanto, um maior conhecimento das suas condições
por meio de estudos e indicadores que levassem a raça em consideração (Carneiro, 2003; 2005;
Rios, 2017). Em um modelo de organização mais recente, essas demandas se articulam com a
interseccionalidade não mais como uma ferramenta analítica, apenas, mas como estruturadora
dos movimentos de mulheres, que procuram entender como as suas reivindicações levam em
conta marcadores de raça, gênero, sexualidade, classe, entre outros (Rios, 2017). Assim,
espaços institucionais e extra-institucionais se constroem mutuamente, ainda que tensões entre
essas esferas existam.
No Brasil, as religiões de matriz africana se constituem como espaços de reivindicação
de autoridade e autonomia para as mulheres negras fora das instituições o que, no entanto, pode
se converter em mecanismos de atuação política (Carneiro, 2019; Pereira, 2019; Werneck,
2017). Nessas crenças, os Orixás femininos, masculinos ou aqueles que não se enquadram
nessas categorias, como Oxumaré, carregam características de diversas ordens que, por meio
da incorporação, são mobilizadas pelos sujeitos. Segundo Sueli Carneiro,
Desde a incorporação dos Erês (espíritos infantis) até os Caboclos, passando por
diferentes orixás, está aberto um leque de vivência e de manipulação de recursos
interiores do indivíduo que outros canais dificilmente propiciam. (Carneiro, 2019, p.
72)
5. Conclusão
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Conceito desenvolvido por Patricia Hill Collins (2019 [2000]) que se refere às representações de
mulheres negras que tem como origem e finalidade mascarar e justificar relações sociais que afetam as mulheres
negras. As imagens de controle pensadas pela autora são as mammies, as matriarcas, as mães dependentes do
Estado, as jezebeis e as damas negras.
A democracia se encontra em uma crise que vai além da institucionalidade. Se, por um
lado, diversos autores apontam que o sistema judiciário e o partidário estão enfraquecidos
(Levitski e Ziblatt, 2020; Santos, 2017), encontramos também evidências de uma crise
epistêmica e de subjetivação nesse sistema político (Brown, 2015; 2019). É possível que as
saídas para esse cenário envolvam observar como os movimentos contestatórios tem procurado
não apenas retornar a um modelo democrático aparentemente estável que precedeu esse
contexto, mas criar outras formas organizativas que resolvam déficits democráticos presentes
naquela organização, que foram fatores relevantes para a emergência da crise atual.
Em oposição à imposição neoliberal que individualiza o cuidado e a responsabilidade
pela sustentação dos sujeitos, as mulheres negras atuam de forma a coletivizar o trabalho da
maternagem, criando solidariedades e vínculos amplos. Essa é uma forma de retirar das
mulheres individualmente a responsabilidade exclusiva por serviços da esfera privada, o que
contribui para a contestação dos papeis de gênero tão fundamentais para o mundo neoliberal
(hooks, 2019c; Brown, 205; 2019).
Contrariando a tendência de esvaziamento da democracia e do niilismo que rejeita os
valores democráticos como importantes para a defesa dos direitos e da autonomia (Brown,
2019; West, 1993), as mulheres negras criam espaços de valorização intensa do coletivo. Nessas
formações, também é importante a capacidade de exercício de poderes outros que não aquele
da opressão, orientando a atuação política para um ideal emancipatório e autônomo.
Por fim, na crítica à exclusão das mulheres negras da construção de espaços e
conhecimentos progressistas, as mulheres negras diagnosticam uma falha fundamental na
construção da democracia. A partir da retomada de colaborações entre grupos diferentemente
posicionados local e transnacionalmente, é possível que a construção de uma democracia a
partir de solidariedades abrangentes seja mais sólida, estável e justa que aquela que tínhamos
em outros contextos (Davis, 2019; hooks, 2019c).
O incentivo à circulação de conhecimentos por meio de coletivos de tradução de obras
de mulheres negras foi o que possibilitou que os conhecimentos produzidos por elas circulassem
no Brasil até muito recentemente, uma vez que apenas nos últimos anos um corpo mais robusto
de produção intelectual fosse traduzido, no caso de autoras internacionais, ou publicado em
revistas acadêmicas e livros, no caso das pensadoras brasileiras. Além da esfera institucional,
esses modelos diferenciados de atuação democrática fazem-se visíveis em diversos contextos.
A presença majoritária de mulheres negras na formação de mandatos coletivos nas eleições
municipais e federais de 2016 e 2018 trazem um indício nesse sentido (Rodrigues, Campos e
Abreu, no prelo).
6. Referências Bibliográficas