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Chuck Palahniuk

SNUFF

Tradução de Paulo Reis

ROCCO
Título original
SNUFF

Copyright © 2008 by Chuck Palahniuk

preparação de originais
Amanda Orlando

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

P178s Palahniuk, Chuck


Snuff/Chuck Palahniuk; tradução de Paulo Reis. — Rio de Janeiro: Rocco,
2010.
Tradução de: Snuff
ISBN 978-85-325-2577-2
1. Romance americano. I. Reis, Paulo. II. Título.
10-2697
CDD-813
CDU-821.111(73)-3
DUQUESA: Dizem que os diamantes têm mais valor quando já passaram
pelas mãos de muitos joalheiros.
FERDINANDO: Por essa regra, as vadias são preciosas.

— John Webster, A duquesa de Malfi (I.ii)


1

Sr. 600

Um dos caras passou a tarde toda só de calção perto do bufê, lambendo o


pó alaranjado das batatas fritas. Ao lado dele, outro cara ficava
mergulhando uma batata na pasta de cebola e lambendo. A mesma batata
encharcada, vez após vez. O pessoal tem um milhão de maneiras de mijar
no que acha que é só seu.
O serviço de bufê se resume a duas mesas dobráveis com marcas comuns
de sacos de petiscos e latas de refrigerantes. Quando a coordenadora de
elenco anuncia os números dos participantes, os caras sobem para entrar em
cena ainda mastigando pipoca caramelada, e com os dedos cobertos de sal
ou melados de doce.
Alguns dos novatos só estão aqui para poder dizer que estiveram. Já nós,
veteranos, estamos aqui para mostrar a cara e fazer um favor à Cassie.
Contribuir com mais um pau para o tal recorde mundial. Testemunhar um
marco histórico.
Nas mesas do bufê, há vasilhas plásticas cheias de camisinhas perto de
outras com biscoitinhos. Barras de chocolate gigantescas. Amendoins
torrados ao mel. No chão, os invólucros plásticos dos petiscos e das
camisinhas se misturam, mordidos e rasgados. As mesmas mãos que
agarram punhados de confeitos se metem nas braguilhas e cinturas elásticas
das cuecas para alisar os paus semieretos. Dedos tingidos de corantes
açucarados. Ereções com sabor de rango ruim.
Hálito de amendoim. Hálito de refrigerante. Hálito de batata frita
ofegando no rosto de Cassie.
Viciados com arranhões vividamente avermelhados nos braços.
Estudantes do ensino médio querendo perder a virgindade diante das
câmeras. Aquele garoto ali, o Número 72, deve estar a fim de ser deflorado
e entrar para a história no mesmo fotograma.
Os magricelas nunca tiram as camisetas. São camisas mais velhas do que
alguns dos participantes aqui, fabricadas para o lançamento de Sexo com a
cidade, séculos atrás. São camisas do fã-clube de Horizonte metido,
estrelado por Cassie. Camisetas mais velhas do que o Número 72 e
estampadas antes do nascimento dele.
Alguns falastrões usam o celular, conversando sobre alternativas de ações
e oportunidades imobiliárias, enquanto beliscam e ordenham seus
prepúcios. Os bíceps de todos os participantes foram numerados de um a
seiscentos com caneta hidrográfica pela coordenadora de elenco. Os
penteados formam monumentos à brilhantina e à paciência. Peles
bronzeadas e névoas de perfume.
O lugar está cheio de cadeiras metálicas dobráveis. Para dar mais clima,
velhas revistas de gente nua.
A coordenadora de elenco é uma gata chamada Sheila, que segura uma
prancheta. Ela berra os números 16, 31 e 211. Os três participantes sobem a
escada atrás dela em direção ao cenário.
Caras com tênis nos pés. Mocassins. Sungas. Sapatos de cordões com
meias azuis até o meio das canelas, presas por ligas antiquadas. Sandálias
Havaianas ainda cobertas de areia, cada passo uma fonte de atrito.
Aquela piada antiga: para que uma gata aceite fazer um filme erótico,
você oferece a ela um milhão de dólares. Para que um cara aceite, você só
faz o convite... Isso não é uma piada, na realidade. Não do tipo que provoca
riso.
Com exceção de nós, veteranos, a maioria desses zés-ninguém viu o
anúncio na contracapa de uma revista do ramo. É um teste de elenco aberto.
Um membro duro e um atestado médico para mostrar saúde... o teste era
isso. Isso, e a barreira contra pornografia infantil, de modo que era preciso
ter dezoito anos.
Na fila, tem gente com os peitorais raspados e os pelos pubianos
encerados ao lado de um time de beisebol com síndrome de Down.
Caras asiáticos, negros e hispânicos. Um cara numa cadeira de rodas.
Opções para cada um dos segmentos do mercado.
O tal garoto, Número 72, está segurando um buquê de rosas brancas que
já começaram a murchar. As pétalas estão encolhendo e ficando marrons. O
garoto tem o braço estendido, mostrando algumas palavras escritas no dorso
da mão com esferográfica azul. Olhando para aquilo, ele diz:
— Eu não quero nada, mas sempre amei você...
Outros caras carregam caixas embrulhadas com laços e fitas,
suficientemente pequenas para caber na mão, quase escondidas pelos dedos.
Os participantes veteranos usam robes de cetim parecidos com os de
boxeadores, amarrados por faixas, enquanto aguardam a chamada.
Lenhadores profissionais. Metade deles até namorou Cassie, falando em
casar para virar o casal Lunt, o Desi e a Lucy do entretenimento adulto.
Naquela fimagem não havia um só participante que não amasse Cassie
Wright e quisesse contribuir para que ela fizesse história.
Já outros caras viviam de pau na mão, vendo vídeos só de Cassie Wright.
Para eles, isso é uma espécie de fidelidade. Um casamento. Para esses
caras, segurando seus presentinhos, o dia de hoje é uma espécie de lua de
mel. A consumação.
Hoje é a última apresentação de Cassie. O contrário de uma estreia. Lá
em cima desses degraus, para qualquer participante após o quinquagésimo,
Cassie Wright parecerá a cratera de um míssil lubrificada com vaselina.
Carne e sangue, mas como se algo houvesse explodido dentro dela.
Olhando para nós, ninguém diria que estávamos fazendo história. O
recorde para superar todos os recordes.
— Pessoal — exclama a tal gata, Sheila, voltando. Ela ajeita os óculos no
nariz. — Quando eu chamar, vocês precisam estar prontos para a câmera.
Ela quer dizer com ereção completa. Prontos para a camisinha.
A sensação mais próxima do dia de hoje é a de limpar a bunda de trás
para a frente. Você está no vaso. Não está pensando, e suja de merda a pele
na parte de trás do enrugado saco pendente. Quanto mais você tenta limpar
aquilo, mais a pele se estica, e a sujeira só aumenta. A fina camada de
merda vai se espalhando nos pelos e desce pelas coxas. Guardar segredo
num dia como este provoca essa sensação.
Seiscentos caras. Uma rainha pornô. Um recorde mundial para a
posteridade. Um filme obrigatório para todo colecionador de erotismo
criterioso.
Nenhum de nós planejava fazer um filme snuff.
2

Sr. 72

Trazer rosas foi um plano idiota. Sei lá. Assim que você entra, eles lhe
dão um saco de papel pardo com um número entre um e seiscentos escrito
na lateral.
— Ponha suas roupas aí dentro, garoto — dizem, entregando também um
pregador de madeira com o mesmo número escrito com tinta preta. —
Prenda isso no calção. Se perder o número, você não recebe as roupas de
volta.
A coordenadora de elenco tem um cordão com um cronômetro
pendurado no peito, onde o coração dela deveria estar.
Grudado na parede atrás da mesa onde o pessoal se despe, há um cartaz
de papel pardo com a mesma tinta preta, avisando que a produtora não se
responsabiliza pelos pertences de ninguém.
Outro cartaz anuncia: “É proibido usar máscaras.”
Alguns sujeitos põem os sapatos nos sacos, com as meias emboladas
dentro. O cinto bem enrolado e aninhado num dos pés. As calças vão
dobradas, com os vincos retos, por cima de tudo. Eles prendem a camisa
embaixo do queixo, enquanto dobram as mangas, o colarinho e as fraldas
para amarrotar menos. A camiseta também é dobrada. A gravata é enrolada
e enfiada no bolso do paletó. Sujeitos com roupas boas.
Já outros sujeitos arrancam o jeans ou calças de malha, as camisetas ou
suéteres, e deixam as roupas viradas do avesso. Depois tiram as cuecas
úmidas e metem tudo dentro do saco, pondo por cima os tênis fedorentos.
Depois que cada um se despe, a garota do cronômetro põe o saco com a
roupa no chão, perto da parede de concreto.
Todo mundo fica parado ali de calção, segurando carteiras, chaveiros,
celulares e coisas do gênero.
Foi pura burrice minha trazer esse buquê de rosas já quase murchas,
porque é mais um bagulho para segurar.
Enquanto eu desabotoava a camisa, a garota do cronômetro distribuía
sacos de papel. Ela aponta para o meu peito e pergunta:
— Você está planejando usar isso diante da câmera?
Ela está segurando um saco de papel marcado com o número 72. Há um
pregador de roupa preso numa das alças de papelão. Meu número. A garota
do cronômetro aponta um dos dedos para o meu peito como quem aponta
um revólver e diz:
— Isso.
Encolhendo o queixo, eu baixo o olhar até doer, mas só consigo enxergar
o crucifixo na corrente dourada em torno do meu pescoço.
Pergunto se isso é problema. Um crucifixo.
A garota estende o pregador de roupa à frente, abrindo as pontas, e tenta
prender meu mamilo, mas eu recuo. Ela explica:
— Nós fazemos isso há muito tempo. E sabemos que precisamos vigiar
os fanáticos religiosos como você.
Pelo rosto, a garota do cronômetro talvez seja uma estudante de ensino
médio, com mais ou menos a minha idade. Ela conta que para estabelecer o
recorde de 721 atos sexuais da atriz Candy Apples foi usado o mesmo
grupo de cinquenta homens na produção inteira. Isso foi em 1996, e Candy
só parou porque a polícia de Los Angeles invadiu o estúdio e interrompeu a
filmagem.
— Isso é fato — conclui a garota.
Depois ela conta que, quando Annabel Chong estabeleceu o antigo
recorde de 252 atos sexuais, embora oitenta homens tenham se candidatado,
uns 66% deles não conseguiram ficar com o pau suficientemente duro para
fazer o serviço.
Nesse mesmo ano, 1996, Jasmin St. Claire quebrou o recorde de Annabel
com trezentos atos sexuais numa única filmagem. Spantaneeus Xtasy
quebrou o recorde com 551. No ano 2000, a atriz Sabrina Johnson recebeu
dois mil homens, fodendo até ficar tão machucada que a equipe precisou
colocar gelo entre suas pernas enquanto ela chupava o restante do elenco.
Depois que seus cheques de direitos autorais começaram a ser devolvidos,
Sabrina foi a público com a notícia de que seu recorde era uma fraude. No
máximo, ela participara de quinhentos atos sexuais, e apenas trinta e sete
homens haviam comparecido ao teste de elenco, em vez de dois mil.
A garota do cronômetro aponta para o crucifixo dizendo.
— Não tente salvar a alma de ninguém aqui.
O próximo sujeito na mesa tira uma camiseta preta. A cabeça, o peito e
os braços exibem um bronzeado uniforme. Ele tem um anel dourado num
dos mamilos. Os pelos do peito parecem achatados, todos aparados do
mesmo tamanho curto. Olhando para mim, ele diz:
— Ei, carinha... não salve a alma dela antes que eles façam um close
meu, tá legal?
E dá uma piscadela tão grande que metade do rosto se enruga em torno
do olho. Ele tem cílios suficientemente longos para levantar uma brisa.
De perto, dá para ver que ele passou uma camada de maquiagem rosada
na testa e nas bochechas. Há três tons de base marrom acumulada nos pés
de galinha em torno dos seus olhos. Enfiado embaixo do braço, entre o
cotovelo e as costelas bronzeadas, o sujeito segura um troço branco. Talvez
sejam mais roupas.
Do outro lado da mesa, a garota do cronômetro vira a cabeça para olhar
nas duas direções, e depois enfia a mão no bolso dianteiro da jaqueta,
perguntando para mim:
— Ei, pastor, quer comprar uma garantia?
Ela mostra um frasco pequeno, da largura de um tubo de ensaio, mas
mais curto, e chacoalha as pílulas azuis que estão lá dentro.
— Dez paus cada. — A garota do cronômetro chacoalha as pílulas azuis
ao lado do rosto. — Para você não fazer parte daqueles 66%.
Para o sujeito de maquiagem, ela entrega um saco com o número “137”,
perguntando:
— Você poderia colocar o urso de pelúcia dentro do saco?
A garota do cronômetro meneia a cabeça na direção do troço branco
embaixo do cotovelo do sujeito. Mais que depressa, o Número 137 estende
a coisa à frente.
— O Mister Toto não é uma coisa vulgar feito um urso de pelúcia... ele é
um caçador de autógrafos. — Ele beija o troço. — Você não acreditaria na
idade que ele tem.
O bicho é feito de lona branca costurada: um corpo de cachorro em forma
de salsicha, com quatro pernas troncudas se projetando para baixo.
Costurada no topo, uma cabeça de cachorro com olhos feitos de botões
pretos e orelhas molengas de lona. Letras se apinham por toda a lona
branca, escritas com canetas azuis, pretas e vermelhas. Algumas são letras
tortas, outras são de forma. Algumas têm datas. Números. Um dia, mês e
ano. O cachorro fica com uma mancha vermelha no lugar em que o sujeito
beijou.
Ele ampara o cachorro na dobra do cotovelo, tal como se ampara um
bebê. Com a outra mão, aponta para as letras escritas. Assinaturas.
Autógrafos. Carol Channing, mostra ele para nós. Bette Midler. Debbie
Reynolds. Carole Baker. Tina Turner.
— O Mister Toto é mais velho do que eu jamais admitiria ser — diz o
sujeito.
Ainda segurando o frasco de pílulas azuis, a garota do cronômetro
indaga:
— Você quer que a Cassie Wright autografe o seu cachorro?
O Número 137 nos informa que Cassie Wright é sua estrela adulta
favorita. O nível do trabalho dela está muito acima de qualquer outro.
Ele conta que Cassie Wright passou seis meses seguindo uma
endocrinologista, aprendendo as tarefas dela, estudando o comportamento e
a linguagem corporal, antes de interpretar uma médica no inovador filme
adulto Plantão médico pelos fundos. Cassie Wright fez uma pesquisa de
seis meses, escrevendo para sobreviventes e estudando documentos de
tribunal, antes de pôr os pés no set de filmagem do megaépico filme adulto
Titanic pelos fundos. A única frase de Cassie Wright, “Essa embarcação não
é a única que vai se abrir toda hoje à noite”, era falada com um certeiro
sotaque do Oeste da Irlanda, ilustrando com perfeição o ardor da suruba
geral em que o convés deve ter se transformado nos últimos instantes do
pior desastre naval da humanidade.
— Na cena lésbica com as duas fogosas assistentes de laboratório em
Plantão médico, é óbvio que Cassie Wright é a única participante que sabe
manipular corretamente um espéculo — lembra o Número 137.
Ele conta que os críticos deliraram, justificadamente, com a interpretação
dela no papel de Mary Todd Lincoln no épico da Guerra Civil Ford a porta
dos fundos do teatro. Mais tarde relançado como Camarote particular. Mais
tarde ainda, relançado como Camarote presidencial. E que, na cena em que
transa com John Wilkes Booth e o Honesto Abe Lincoln ao mesmo tempo,
Cassie Wright faz a história americana voltar verdadeiramente à vida,
graças à pesquisa que realizou.
Ainda amparando o cachorro de lona, com o mamilo de anel dourado
encostado nos olhos de botões pretos, o Número 137 pergunta:
— Quanto custam as suas pílulas?
— Dez paus — diz a garota do cronômetro.
— Não — recusa o sujeito, enfiando o cachorro de volta embaixo do
braço e tirando uma carteira do bolso traseiro da calça. Ele pega vinte,
quarenta, cem dólares. — Quero saber quanto custa o frasco inteiro.
— Vire para cá, que eu escrevo o número no seu braço — pede a garota
do cronômetro.
O Número 137 pisca para mim outra vez, com o olho grande parecendo
maior ainda dentro daquela base marrom, e comenta:
— Você trouxe rosas. Quanta doçura...
3

Sr. 137

Na academia, às vezes você está erguendo uma carga pesada, fazendo


flexões com um braço só, ou puxando argolas, repetindo as séries com a
maior rapidez e energia, mas, de repente, fica esgotado. Dá uma baixa geral,
e cada movimento exige mais esforço. Em vez de se exercitar com vigor,
você fica só contando e suando. Ofegando.
Não é uma queda do nível de açúcar. Já era até de se esperar. A grande
mudança é causada pelo retardado que desligou a música lá na recepção.
Talvez você não estivesse escutando para valer, mas, quando aquela música
para, o exercício vira esforço puro.
É o mesmo apagão, aquela queda na pressão sanguínea que bate quando a
música é desligada às três da madrugada na ManRod ou na Eagle, e você
fica parado ali, completamente sozinho, sem ser fodido.
Essa é a grande decepção que você vai notar acerca de uma filmagem:
não há trilha sonora. Não há música para dar clima. No final do corredor,
naquela sala com Cassie Wright, você não ouve nem os gemidos daquelas
guitarras elétricas de jazz pornô. Não, só depois de editar as cenas e de
montar os diálogos é que eles vão colocar uma trilha musical para melhorar
a continuidade.
E já era até de se esperar... trazer o Mister Toto para cá foi um plano
péssimo.
Agora, tomar um frasco inteiro de Viagra... pode ser a solução para mim.
Do outro lado da área de espera, Branch Bacardi em pessoa está
conversando com o Número 72, o garoto que empunha um buquê de rosas
murchas. Os dois poderiam ser imagens de antes e depois do mesmo ator.
Bacardi está com um calção de cetim vermelho. Enquanto fala, ele alisa o
peito com um lento movimento circular. Na outra mão, segura um
barbeador descartável azul. Quando a mão que alisa para, a mão do
barbeador vai para o mesmo lugar, raspando pelos invisíveis. A lâmina
desfere golpes rápidos e curtos, como uma enxada arrancando mato num
jardim. Branch Bacardi continua a conversar, jamais baixando o olhar para
a mão que já alisa outro ponto. Ele apalpa e depois repuxa a pele bronzeada
enquanto a mão do barbeador vai raspando por todos os ângulos.
Bem aqui: Branch Bacardi, astro de O pródigo da Vinci, O sol é para
gozos e O desatino bate à sua bolota, assim como de Cantando na vulva, o
primeiro filme adulto todo cantado e dançado.
Mesmo aqui dentro, todos os dinossauros machos da indústria adulta
como Bacardi, Cord Cuervo e Beamer Bushmills continuam de óculos
escuros. Eles alisam e ajeitam os cabelos. Pertencem a uma geração de
autênticos atores de teatro. Formaram-se na UCLA ou na NYU, mas
precisavam pagar o aluguel quando não conseguiam personagens legítimos.
Para eles, fazer um filme pornô era uma farra. Um gesto político radical.
Interpretar o galã em Além da masturbação ou Um corno de duas beldades
era uma brincadeira para colocar no currículo. Depois que virassem
legítimos astros bancáveis, aqueles trabalhos iniciais se tornariam motivo
de piadas que eles contariam em programas de entrevistas tarde da noite.
Atores como Branch Bacardi ou Post Campari encolhiam os ombros
bronzeados e raspados, dizendo:
— Diabo, até o Stallone fez filme pornô para pagar as contas...
Antes de alcançar fama mundial como arquiteto, Rem Koolhaas fazia
filme pornô.
Do outro lado da sala de espera, uma jovem com um cronômetro
pendurado num cordão preto em volta do pescoço para ao lado de Bacardi e
escreve o número “600” no braço dele com a grossa ponta de feltro de uma
caneta preta. O seis vai em cima, com o primeiro zero embaixo e o segundo
mais embaixo ainda. É assim que os triatletas são numerados. A tinta é
indelével. Enquanto a coordenadora de elenco escreve na lateral externa de
cada bíceps, rabiscando “600” num braço e no outro, Bacardi continua
conversando com o garoto das rosas. Seus dedos passam a apalpar o
abdome em busca de pelos, com o barbeador pairando no ar, pronto para
agir.
Os homens que não estão comendo batata frita ficam brandindo os
barbeadores plásticos, ou espremendo espinhas. Ou, então, esfregam tubos
de gosma na palma das mãos, para depois cobrir de marrom os rostos, as
coxas, os pescoços e os pés. Bronzeador. As palmas parecem manchadas de
marrom. A pele em torno das unhas fica suja de marrom escuro. Esses
atores ficam parados com sacolas de ginástica junto aos pés, inclinando-se
para procurar tubos de gel capilar, bronzeadores, barbeadores plásticos ou
espelhos de bolso dobráveis. Eles fazem flexões, com as cuecas brancas
borradas de marrom. Quem entra no único banheiro disponível para
seiscentos atores, com uma privada, uma pia e um espelho, vê que a parada
que o pessoal passa nas nádegas manchou o assento branco da privada com
várias camadas marrons. A pia está coberta de manchas marrons em forma
de mãos. A porta branca exibe uma confusão de marcas de dedos e palmas
deixadas por dinossauros pornôs cambaleando cegamente atrás dos óculos
escuros.
É difícil deixar de visualizar Cassie Wright no cenário, afundada numa
cama de cetim branco, a esta altura agarrada, manchada e borrada, ficando
mais escura com cada participante. Pornô menestrel.
Eu engulo uma pílula.
A coordenadora de elenco para ao meu lado e diz:
— É claro que você pode ficar cego, mas não venha nos pedir
indenização.
— O quê? — eu pergunto a ela.
— Citrato de sildenafil. — A jovem bate com a ponta de feltro da caneta
na minha mão, que segura o frasco de pílulas azuis. — Endureça o troço aí,
mas cuidado para não exagerar na dose, por causa da neuropatia ótica
isquêmica anterior não artrítica.
Ela se afasta. E eu engulo outra pílula azul.
— Eles não filmam os participantes em ordem — explica Branch Bacardi
para o garoto das rosas, erguendo com uma das mãos em concha um
músculo peitoral caído e passando o barbeador na pele oculta por baixo. —
A razão oficial é que só há três uniformes da Gestapo, pequeno, médio e
grande, e eles precisam chamar o pessoal que cabe nos figurinos.
Ainda raspando os pelos, ele ergue o olhar para a parede perto do teto,
onde um monitor exibe um filme pornô, e arremata:
— Quando chegar a sua vez, não vá esperando que o uniforme esteja
seco, muito menos limpo...
Em todos os cantos do teto há monitores inclinados para baixo exibindo
filmes adultos bastante explícitos. Um deles é O magicu de Oz. Outro é o
clássico As virgens da ira. Todos são os maiores sucessos de Cassie Wright.
Nenhum foi feito há menos de vinte anos. O monitor que atraiu a atenção de
Branch Bacardi mostra uma versão bem mais jovem dele mesmo, montado
feito um cachorro na traseira de Cassie Wright em Primeira guerra da
bacanal: no fundo das trincheiras. Na fita de vídeo, ele não tem peitorais
flácidos nem caídos. Os braços não estão avermelhados devido à lâmina do
barbeador, nem cheios de pelos encravados. As pontas dos dedos das suas
mãos quase se tocam ao redor da cintura estreita de Cassie Wright, e as
cutículas não estão delineadas por restos de bronzeador.
Na versão ao vivo, a mão que apalpa e a mão que barbeia de Branch
Bacardi param quando ele olha para o monitor. A mão do barbeador tira os
óculos do rosto dele. Branch continua paralisado, movendo apenas os olhos
do filme para o rosto do garoto, e vice-versa. Sob seus olhos, há dobras
esmagadas e amarrotadas de pele roxa. Por baixo do bronzeado, veias roxas
sobem pelo nariz. Mais veias roxas sobem pelas coxas.
O jovem Branch Bacardi, que tira o pau e goza por cima dos belos lábios
daquela boceta, é exatamente idêntico ao garoto das rosas murchas. O
garoto que a coordenadora de elenco marcou com o número 72.
Segurando as rosas, Número 72 está de costas para o monitor, sem ver a
tela. O garoto está olhando para o monitor atrás de Bacardi, que exibe o
filme Segunda guerra da bacanal: ilha Hopping, em que Cassie Wright
aplica uma garganta profunda no jovem Hirohito, numa cena intercalada
com tomadas do Enola Gay se aproximando de Hiroshima com sua carga
mortífera.
Quando Segunda guerra da bacanal ganhou o prêmio Adult Video News
na categoria de rapaz-moça-moça, com a cena em que Cassie chupava
Winston Churchill em dobradinha com Rosie, a Rebitadora, ela parou de
filmar por um bom período. Um ano inteiro.
Depois disso, Cassie voltou ao ritmo normal, participando de dois
projetos por mês. Ela fez o épico Moby dotada. Conquistou outro prêmio
AVN na categoria de melhor cena anal com Gozo de uma noite de verão,
que chegou a vender um milhão de cópias no ano de lançamento. Já
trintona, Cassie abandonou o cinema a fim de lançar uma marca de xampu
chamada “100 Carícias”. Era uma substância lilás embalada num frasco
alto, curvado demais para um dos lados. As lojas detestavam estocar
aqueles recipientes instáveis, e ninguém fazia encomendas pela internet.
Então Cassie conseguiu fazer merchandising do produto em dois filmes. Em
Muito barulho por orgasmo, a atriz Casino Courvoisier enfiava o frasco
dentro de si mesma e demonstrava como a alongada forma curva atingia o
cérvix, provocando profundos orgasmos vaginais todas as vezes. A atriz
Gina Galliano fez o mesmo truque em O décimo segundo cavaleiro, e
pronto... os varejistas mal conseguiam atender à demanda por 100 Carícias.
Mas já era até de se esperar... a Wal-Mart não ficou feliz por ser
enganada, estocando brinquedos sexuais no mesmo corredor da pasta de
dente e do talco para os pés. Houve uma reação. E depois um boicote.
Depois disso, Cassie Wright tentou encenar um retorno, mas os
monitores daqui não exibirão qualquer projeto dessa fase. São filmes como
A menina e o pônei feitos para o mercado japonês, em que as mulheres
usam selas e bridões, executando números equestres para um homem que
estala um chicote. Ou filmes fetichistas, como Ataque das guloseimas, de
um gênero chamado pornô-pastelão: depois de despidas, belas mulheres são
bombardeadas com bolos de aniversário, creme batido e musse de morango,
além de receber jatos de mel e xarope de chocolate. Não, ninguém aqui quer
ver o último projeto de Cassie, um filme chamado Lassie e o gozo
interminável.
Entre o pessoal do ramo, circula o boato de que o filme feito por nós aqui
hoje será lançado no mercado como Terceira guerra da bacanal: a suruba
das surubas.
Assim que a transa canina em Primeira guerra da bacanal dá lugar a
uma cena em que três soldados liberam um convento de freiras francesas na
Alsácia, Bacardi recoloca os óculos escuros no rosto. Sem o hábito e a
touca, uma das freiras revela a marca do seu biquíni. Nenhuma das freiras
tem pelos pubianos. Os dedos de Bacardi alisam a pele em torno de um dos
mamilos e a lâmina começa a raspar.
A coordenadora de elenco passa por mim com o cronômetro e a
prancheta, contando nos dedos e dizendo:
— Como essas pílulas são de cem miligramas, cuidado com tonturas...
náusea... inchaço nos tornozelos e nas pernas...
Eu engulo outra pílula.
Do outro lado da sala, Branch Bacardi se inclina um pouco à frente,
estendendo os braços atrás das costas. Com uma das mãos, ele estica o cós
elástico. Com a outra, enfia o barbeador plástico dentro do calção de cetim
vermelho e começa a raspar a bunda.
A coordenadora de elenco se afasta, ainda listando:
— Angina... ritmo cardíaco irregular... congestão nasal... dor de cabeça...
e diarreia...
Durante o ano em que Cassie Wright tirou folga, no auge de sua carreira
cinematográfica, corriam boatos entre o pessoal do ramo de que ela teve
uma criança. Um bebê. Ela fora emprenhada fazendo uma vaqueira
invertida, porque Benito Mussolini acabara gozando ainda dentro. Dizem
que ela entregou o bebê para adoção.
Já era até de se esperar... Mussolini foi interpretado por Branch Bacardi.
E eu engulo outra pílula.
4

Sheila

O suor se acumula.
O suor empoça, formando pálidas bolhas dentro das minhas duas
camadas de luvas de látex. Peguei emprestada uma antiga precaução do
pornô gay: você usa uma camisinha azul por dentro de uma camisinha
rosada comum, e, assim, se o pau ficar azulado ao fazer sexo anal, dá para
perceber que a camisinha de fora estourou. Uma garantia. Isso é fato. Ao
usar luvas rosadas por cima de luvas azuis, eu sinto calor nos dedos, que
latejam a cada batida do meu coração. O suor se acumula em bolhas que
deslizam por baixo da minha pele de látex, unindo-se e fundindo-se a outras
bolhas de suor. Crescendo. Gordos calombos de suor surgem na palma das
minhas mãos. O suor escorre sobre ajunta dos meus dedos por dentro do
látex, avolumando a ponta, que parece inchada e macia. Dormente.
Eu não sinto coisa alguma. Só meu próprio pulso, e o suor que desliza
por dentro da minha pele.
O látex está manchado por esse bronzeador marrom de merda.
Alaranjado por poeira de batata frita ou embranquecido por açúcar em pó e
cocaína. Avermelhado por dinheiro manchado de ketchup ou sangue.
Dá para sentir outras bolhas. Às vezes, minha mão se curva em torno de
uma esferográfica, ou meus dedos pegam um dólar. Então outras bolhas
escorrem de volta para o punho das luvas, estourando em cima do meu
antebraço, quente e molhado. O filete de suor já está frio quando começa a
pingar dos meus cotovelos.
Um bundão segura uma nota de cinquenta pelas pontas. Suas mãos
esticam bruscamente a nota duas vezes, fazendo uma espécie de estalido.
Depois o bundão repete a coisa. Ele está tão perto que a cabeça gotejante do
seu pau encosta no meu quadril. Suave feito um beijo. Um aríete diminuto.
Depois de mais dois estalidos, eu olho para ele, recuando.
E baixo o olhar para o reluzente fio que se estende entre a perna da minha
calça jeans azul e a cabeça do pau dele.
O bundão coloca a nota de cinquenta na minha prancheta, dizendo:
— Escute aqui, gata. Eu só tenho uma hora para almoçar. Meu patrão já
vai me matar...
Eu dou de ombros, enxugando meus cotovelos molhados na cintura já
manchada de suor da camiseta.
O que está em jogo aqui hoje é uma questão de livre-arbítrio.
Devemos permitir que indivíduos adultos tomem suas próprias decisões
em termos jurídicos?
Esses bundões. Esses punheteiros. Basta um olhar para ler a mente deles.
Por exemplo: aquele garoto com a braçada de rosas. Ele se imagina uma
espécie de Príncipe Valente. Aparece aqui hoje para salvar Cassie Wright de
uma vida inteira tragicamente composta por escolhas ruins. Tem metade da
idade dela. Acha que com um beijo ela vai despertar e chorar de gratidão.
É preciso ficar de olho nesses fracassados.
Desde o primeiro recorde de Annabel Chong, a regra do sexo em série é
que todos os homens precisam aguardar de pau para fora, nus. O medo de
Annabel era que aparecesse algum maluco com uma arma ou faca. Algum
fanático, ouvindo ordens diretamente de Deus, poderia responder ao
anúncio de elenco e assassinar Annabel. Isso é fato. Portanto, todos os
seiscentos panacas precisam ficar ali quase de bunda de fora.
O que está em jogo aqui hoje é uma questão de livre-comércio.
Devemos restringir a capacidade do indivíduo de gerar renda e exercer
poder pessoal?
Devemos restringir o comportamento das pessoas para impedir que elas
saiam machucadas? Mas e os pilotos de carros de corrida? Ou os peões de
rodeio?
Esses estranguladores de frangos. Nem se deram ao trabalho de ler
alguma teoria feminista além daquela baboseira ultrapassada de Andrea
Dworkin. Nada sexo positivo. Nada segundo as linhas de Naomi Wolf. Eu
gozo, logo existo... Não. A mulher pode ser uma concubina para foder ou
uma donzela para salvar, mas nunca deixa de ser um objeto passivo para
realizar o objetivo de um homem.
Esses ordenhadores de macacos. Um deles ergue o indicador e o dedo
central, acenando para mim como se chamasse o garçom num restaurante.
Meu olhar cruza com o dele, e eu vou até lá. O fracassado ergue a outra
mão, abrindo os dedos para mostrar uma nota de cinquenta dobrada ali. O
dinheiro está tão coberto de manteiga de pipoca que parece translúcido.
Úmido de água engarrafada. Manchado de batom vermelho num dos cantos.
O fracassado coloca a nota na minha prancheta, dizendo:
— Se você conferir a sua lista, meu bem, vai ver que eu sou o próximo...
Dinheiro de propina.
Pela versão oficial, nós temos um gerador aleatório de números. Vai para
o cenário o número que aparecer, seja qual for.
Eu puxo do bolso traseiro a caneta fluorescente. Traço uma linha na nota
para testar se não é falsa. Uso a luz projetada por um monitor para ver se há
uma faixa metálica magnética passando pela nota. Por trás do dinheiro, a
bunda de Cassie Wright se contorce lá no filme.
Enfiando a nota embaixo da primeira folha de nomes, eu anoto o número
do fracassado. Batedor de carne 573. Achatado sob a folha, dá para sentir
um grosso maço de notas de cinquenta ou vinte. E duas de cem. Um gordo
colchão de grana.
Na minha opinião, o que Annabel Chong fazia melhor era controlar
multidões. Foi ideia dela trazer os homens para o cenário em grupos de
cinco. Entre os cinco, o primeiro homem a ter uma ereção era o que
conseguia comer Annabel. Cada grupo permanecia dez minutos no cenário,
e quem conseguisse podia ejacular. Mesmo que alguns homens nunca
ficassem de pau duro ou tocassem em Annabel, todos eram contados para o
recorde total de 251.
O toque genial foi transformar aquilo numa competição. Uma corrida
pela ereção. Além disso, há estudos mostrando que a contagem de
espermatozoides sempre sobe quando alguns machos são agrupados antes
de um ato sexual. Esses estudos se baseiam em fazendas produtoras de leite,
onde os touros são agrupados perto de uma vaca fértil. A colheita resultante
sempre produz volumes maiores de sêmen viável. A base da pelve sofre
convulsões mais fortes, maximizando a altura e a distância do fluido
seminal expelido.
A ciência por trás de uma boa gozada.
Aumento da tensão de superfície e da afinidade. Viscosidade mais alta. A
física de uma gozada na cara.
Um imperativo biológico, só que melhor. Basear o cinema pornô em
procedimentos modernos da produção leiteira. Segredos comerciais que
podem destruir o romantismo de qualquer boa suruba.
Isso é fato.
Quer dragar das profundezas todos os fracassados e tarados com
problemas de intimidade, homens com pavor de rejeição e completamente
incapazes de se expor? Quer um corte transverso desses habitantes das
trevas? Basta publicar uns dois anúncios procurando participantes
masculinos para um filme de suruba.
Segundo a antropóloga britânica Catherine Blackledge, o feto humano
começa a se masturbar no útero um mês antes de nascer. Na trigésima
segunda semana, aquela ondulação, aquele tremor dentro do útero não é um
chute do bebê. O sacaninha começa a bater bronha no terceiro trimestre, e
nunca mais para.
Foi essa turma de punheteiros, de puxadores de salsicha, que matou a
Betamax da Sony. Eles decidiram que o VHS era melhor que a tecnologia
Beta. Trouxeram para suas casas a primeira geração da internet, que era
bastante cara. Tornaram a Rede possível. Tudo com seu dinheiro solitário
pago aos provedores. Foi a aquisição de pornô on-line que gerou a
tecnologia de compras, com toda a segurança antivírus que permite a
existência do eBay e da Amazon.
Esses gozadores solitários, votando com seus paus, decidiram que Blu-
ray era melhor que HD para dominar a tecnologia mundial de alta definição.
“Primeiros a adotar” é o nome que a indústria de bens eletrônicos dá a
eles. Com sua solidão patológica. Sua incapacidade de formar laços
emocionais.
Isso é fato.
Esses punheteiros lideram o restante de nós. O que eles curtem é que
decide aquilo que os seus milhões de crianças vão querer no próximo Natal.
Do outro lado da sala, mais um fracassado atrai a minha atenção com o
braço erguido, agitando no ar entre dois dedos uma nota de cinquenta.
Se você quisesse falar de uma terceira onda feminista, poderia citar Ariel
Levy e a ideia de que as mulheres já internalizaram a opressão masculina.
Passar as férias de primavera em Fort Lauderdale, tomar um porre e colocar
os peitos para fora não é um ato de libertação pessoal. É você, tão formada
e programada pelos construtos da sociedade patriarcal, que já nem sabe o
que é melhor para si mesma.
Uma donzela burra demais até para saber que está em perigo.
Você poderia citar Annabel Chong, cujo nome verdadeiro é Grace Quek,
que estabeleceu aquele primeiro recorde mundial fodendo com 251
fracassados porque queria, ao menos uma vez, que uma mulher fosse “o
garanhão”. Porque ela adorava sexo e estava farta de ver as teorias
feministas retratarem as participantes do cinema pornô como idiotas ou
vítimas. No início da década de setenta, Linda Lovelace já apresentava
exatamente as mesmas razões filosóficas por trás do seu trabalho em
Garganta profunda.
E a última coisa em jogo aqui hoje é o crescimento pessoal.
Devemos respeitar o direito individual de procurar desafios e revelar
potenciais? Em que participar de uma suruba é diferente de arriscar a vida
escalando o Everest? O sexo pode ser aceito como uma forma viável de
terapia emocional?
Só mais tarde veio a público que Linda Lovelace fora violentada e
mantida como refém. E que, antes de virar uma estrela pornô, Grace Quek
havia sido estuprada em Londres por quatro homens e um garoto de doze
anos.
Os primeiros a adotar adoram Annabel Chong. Os danificados adoram os
danificados.
Isso é fato.
Enquanto conto o dinheiro que acolchoa a lista de nomes, o látex na
ponta dos meus dedos torna-se preto devido ao contato com as cédulas.
Outro fracassado avança até seu pau quase encostar em mim. Ele pergunta
onde estão as camisetas. Vai ao meu lado enquanto cruzo o piso de
concreto, passo a passo, sempre junto ao meu cotovelo.
— Trinta dólares em dinheiro vivo — eu informo ao homem.
Ele terá chance de comprar uma camiseta ao deixar o prédio. Os bonés de
suvenir custam mais vinte pratas. Já para reservar uma cópia autografada do
filme, estamos falando de 150 paus.
Cassie Wright já assinou as capas, ou as folhas para enfiar dentro das
caixas, caso seja estrangulada pelo batedor de carne 573 por ordem de
Deus. Ou sofra um derrame enviado por Ele. Ou seja vítima de um
terremoto. Ou um tsunami.
Outra última coisa em jogo aqui hoje é a realidade.
O que você faz quando toda a sua identidade é destruída
instantaneamente? Como reagir quando toda a sua história de vida se revela
errada?
O suor se acumula dentro das minhas luvas, que continuam rosadas, de
modo que as duas camadas de látex ainda estão intactas. Meus dedos estão
enrugados feito ameixas por ficarem submersos por tanto tempo. A pele
parece manchada e velha. Minhas defesas continuam intactas. Eu estou
segura e limpa, mas não sinto coisa alguma. Sou velha demais para o resto
de mim, que só tem vinte anos.
Do outro lado da sala, à luz de uma dúzia de filmes pornôs, outro par de
dedos acena. As juntas peludas e curvadas querem que eu vá até lá. Há mais
dinheiro de propina, dobrado e escondido na mão fechada.
5

Sr. 600

Sem sacanagem, eu contei para o Garoto 72 uma mentira sobre os


figurinos, falando que eles estavam nos filmando fora de ordem porque só
tinham alugado três uniformes da Gestapo. O garoto está vendo os filmes
que ficam passando perto do teto. Aquele filme ali é Por dentro da loira. Os
olhos dele parecem dois pequenos monitores de vídeo, com duas imagens
gêmeas de Cassie Wright se retorcendo. O garoto está de queixo caído,
cagando e andando para o que eu tenho a falar.
— Não vá esperando que ela esteja bonita assim... — eu tento adverti-lo.
Os olhos do Garoto 72 são castanho-claros, como eram os meus.
A garota que está chupando o clitóris do Boodles Absolut ali em cima
vivia falando que um dia comandaria o nosso ramo. Ainda jovem e cheia de
doçura, aquela Cassie Wright falava como se fosse capaz de foder qualquer
pessoa no mundo.
Entretanto, ao olhar ao redor deste curral e vendo a triste coleção de paus
que eles reuniram hoje, eu diria que a carreira dela acabou indo ladeira
abaixo.
O Garoto 72 revira os olhos diante de Cassie e Boodles.
— Isso foi uma piada. — Eu dou uma cotovelada nele. Hoje em dia,
qualquer pessoa no mundo pode foder Cassie.
Um cara do outro lado da sala, segurando uma espécie de urso de pelúcia
embaixo do braço, está de olho em mim. O cara é o Número 137 e tem uma
argola dourada no mamilo. Parece um tarado.
Na verdade, digo ao garoto, é melhor ele torcer para ser chamado logo. A
produtora tem um motivo para intitular esse filme de A suruba de todas as
surubas. Ninguém vai bater esse recorde de hoje. O que nós fizermos aqui
vai durar todo o restante da história humana. Esse garoto, eu e o Cara 137
olhando para nós... depois de hoje, nós teremos um lugar nos livros de
recordes.
Os olhos do Garoto 72 tremem e deslizam por aquela tela de vídeo. Ele
segura as tais rosas bem junto do peito, como se aquilo já não fosse lixo.
— Não vá esperando que Cassie Wright sobreviva a isto... — eu
continuo.
Não, não tem coisa alguma a ver com apenas três uniformes nazistas. A
coordenadora de elenco chama o número 45, depois o número 289 e depois
o número 6. Parece uma ordem amalucada de sujeitos, mas, na verdade, é
para esconder o fato de que aquelas câmeras continuarão funcionando
mesmo depois de Cassie Wright entrar em coma. Alguns caras aqui farão o
troço pensando que ela só está dormindo. Nenhum corpo humano aguenta o
tranco de seiscentos paus duros.
É que um peido da boceta pode ser empurrado para o fundo. Quando
alguém chupa uma xota, basta um sopro de ar lá dentro e uma bolha se
forma na corrente sanguínea. Uma embolia. A bolha vai ziguezagueando
até o coração ou o cérebro, e Cassie Wright sai rapidamente de cena.
Eu falo isso olhando para outro monitor de vídeo, que mostra Cassie
fazendo um boquete num cara em Primeira guerra da bacanal. Os lábios
do cara parecem inchados e vermelhos, feito o cu de um viado. Tríceps
muito bem definidos. Nenhum pentelho nos culhões. Quando eu tiro os
óculos escuros, percebo que sou o cara lá em cima.
O Garoto 72 continua olhando para Por dentro da loira. O Cara 137
continua olhando para nós.
Eles nos filmam fora de ordem para que o montador possa cortar os
planos de gozada juntos, de um a seiscentos. Depois disso, Cassie vai gemer
e se contorcer com o número 599 tanto quanto com o número 1. Nos
intervalos, ela só vai ficar deitada lá como se estivesse dormindo, mas, na
verdade, estará em coma. Ou coisa pior. Nenhum de nós, esses babacas
aqui, saberá mais do que a versão oficial para a imprensa: “Superestrela
pornô morre após estabelecer recorde sexual mundial.”
Claro, ela vem se preparando. Pesos especiais para fortalecer a
musculatura pélvica. Aeróbica. Pilates. Até ioga. Cassie vem dando duro,
como se quisesse cruzar o Canal da Mancha, mas que diabo: naquela sala
ali, fazendo papel de colchão embaixo de seiscentos caras... ela está sendo o
Canal da Mancha.
— É outra piada. — Eu dou mais uma cotovelada no garoto.
Mas a verdade é que ninguém vai chamar a ambulância antes que o filme
esteja na lata e o cenário seja desmontado.
Não. Se houver inquérito, qualquer pau desses aqui vai jurar que ela
estava viva quando ele enfiou. Estamos falando de negação em alto grau.
Depois disso, o público americano vai protestar e reclamar. Para conseguir
espaço na mídia, os bons-moços religiosos vão subir nas tamancas. Tipos
feministas raivosos. O governador vai intervir e nenhuma gata estabelecerá
um novo recorde de 601.
Cassie estará morta, mas os nossos seiscentos paus aqui entrarão para os
livros de história. Metade de nós usará isso como trampolim: novatos se
lançando na carreira, e veteranos tentando um retorno. Todos nós usaremos
camisetas estampando “Eu sou o pau que matou Cassie Wright”.
Cassie Wright estará morta, mas todos os seus vídeos antigos, como O
ménage da vida, a compilação só de gozadas no rosto A apanhadora no
campo de sêmen, e o clássico Separados, mas anais, virarão ouro puro. A
última trepada de um comedor. Conjuntos em caixas para colecionadores.
Uma deusa do entretenimento adulto que se sacrificou, tal como a eterna
Marilyn Monroe.
O tal Garoto 72 continua grudado no monitor.
A gata que coordena, a tal Sheila, vem rabiscar “600” nos meus braços e
diz:
— Cuidado para não arrancar um mamilo.
Ela meneia a cabeça para o barbeador na minha mão, com as lâminas
triplas que raspam a sombra embaixo dos meus peitorais.
— Quem é o abutre? — pergunto eu, falando do cara com o ursinho de
pelúcia. O Número 137, sempre de olho em mim.
A gata Sheila folheia umas páginas na prancheta, arrastando a unha pela
lista de nomes e números.
— Uau. Você jamais adivinharia. — Depois, aponta a unha para o meu
abdome. — Você esqueceu um ponto.
Está falando do meu caminho para o paraíso, que não é simétrico.
Ainda raspando, eu insisto:
— Eu conheço esse cara?
— Você vê televisão no horário nobre?
Eu bato com o barbeador no número “600” escrito no meu braço, dizendo
que sou mais importante que ela, e que ela precisa deixar de me sacanear e
falar logo o nome do cara. Não preciso lembrar a ela o que acontecerá com
este projeto se eu pular fora. Se Cassie Wright foder com seiscentos caras,
será uma recordista mundial, e a produtora terá o melhor produto da
temporada. Se ela foder com 599 caras, porém, será apenas uma grande
vagabunda. E a produtora não terá merda alguma para colocar no mercado.
Só que a sacana da gata que coordena pisca para mim e diz:
— Você é um sujeito esperto. Vai descobrir...
E sai andando a filha da mãe.
O Cara 137 continua olhando para mim. Segurando aquele ursinho de
pelúcia. Deve ser um figurão com nome e rosto famosos, tirando um sarro
longe da TV.
Ao meu lado, já olhando para mim, e não para o monitor, o Garoto 72
puxa assunto:
— Ei, você não era... — Ele inclina a cabeça de lado e estreita os olhos
castanho-claros. — Você não era o Branch Bacardi?
Meneando a cabeça para o Cara 137, eu pergunto:
— Como é o nome dele?
O Garoto 72 olha na direção que indiquei.
— Uau. Aquele detetive do seriado de quinta à noite.
O barbeador está deslizando sobre o meu abdome, procurando a
resistência de pequenos pelos ainda invisíveis. Eu pergunto ao garoto:
Que seriado?
Qual é o nome do cara?
Por que ele fica me encarando?
Mas o Garoto 72 já voltou a olhar para o vídeo. Ele meneia a cabeça para
a tela e diz:
— Você me acha parecido com ela? A Cassie Wright. Acha que nós
somos parecidos?
Com os olhos castanhos ainda grudados na cena de Cassie e Boodles,
sem nem olhar para mim, o garoto continua:
— Não é por nada, não... só estou perguntando.
Do outro lado da sala, o Cara 137 encosta a ponta de um dos dedos no
peito. Tocando a argola no mamilo. Ele aponta o indicador para mim,
depois baixa o olhar e toca no peito outra vez.
E, baixando o olhar, estamos falando de um longo filete negro de sangue
jorrando do meu mamilo.
6

Sr. 72

Um sujeito está comendo batata frita no bufê oferecido pela produção, e


um outro se aproxima dele. O segundo tem o número “206” escrito nas
costas, mas não com caneta hidrográfica, e sim tatuado em letras azuis,
gordas e espinhosas. O algarismo dois está numa espádua, o zero na espinha
e o seis na outra espádua.
O primeiro sujeito entope a boca de batata frita, engolindo enquanto a
mão pega mais batatas na mesa do bufê. Ao mastigar, ele faz um ruído
áspero, parecido com o de alguém que anda sobre cascalho. O braço que
ergue as batatas tem “206” rabiscado no bíceps.
O sujeito tatuado se curva um pouco, dobrando os joelhos. Depois se
apruma rapidamente e dá uma bofetada na cara do outro com as costas da
mão, jogando o peso do corpo inteiro no golpe. O estalo é forte. Um longo
jato de cuspe e migalhas de batata é projetado em direção ao teto. O tabefe
ecoa, surdo devido ao duro impacto dos ossos dos nós dos dedos sobre os
ossos do crânio, com quase nada no meio. Os nós dos dedos são
acolchoados apenas por uma luva de pele peluda. O crânio só é amaciado
por uma bochecha cheia de batata mastigada e sal.
Enquanto o sujeito das batatas fica tossindo no chão, o sujeito tatuado
torce os ombros dele para o lado. Com a mão da bofetada ainda erguida no
ar, ele aponta o dedo indicador esticado para os algarismos espalhados nas
costas do outro, e diz:
— Dois, zero, seis... meu número. — O sujeito se curva para encarar o
homem no chão. — Pegar outro número. — Ele torce o braço e aponta para
as costas. — Esse ser meu.
Com um jato vermelho de sangue saindo do nariz, o sujeito das batatas
fritas continua mastigando. E engole. Ele limpa os lábios com uma das
mãos, manchando a bochecha de vermelho. Depois limpa outra vez, criando
um bigode de sangue em ambas as bochechas.
A garota que carrega a prancheta e tem o cronômetro preso num cordão
em torno do pescoço se aproxima dos dois sujeitos.
— Cavalheiros. — Ela passa um punhado de guardanapos de papel da
mesa do bufê para o sujeito com o nariz sangrando. — Posso resolver isso?
O sujeito do nariz ensanguentado funga o sangue de volta e pega outro
punhado de batatas fritas. Inchados devido ao sal, os lábios se racham,
vazando sangue.
Enquanto a garota folheia a papelada na sua prancheta, o sujeito de
número 137 se aproxima de mim. O sujeito da televisão. Com o cachorro
autografado.
— Com certeza alguém aí não foi amamentado... — ele comenta.
A garota do cronômetro está cancelando o número no braço do sujeito
das batatas fritas. E escrevendo outro número.
O sujeito tatuado abaixa o braço, olhando para os dois, enquanto esfrega
o nó dos dedos daquela mão com a palma da outra.
— O sujeito tatuado é da Sureno, uma gangue lá de Seattle — explico
para o Número 137. — Ele matou uma pessoa, passou doze anos na cadeia
e foi solto ano passado.
Abraçando o cachorro autografado junto ao peito, o Sujeito 137 pergunta:
— Vocês se conhecem?
— Olhe para a mão dele — digo.
No pedaço de pele entre o polegar e o indicador de uma das mãos, o
sujeito tatuado tem duas curtas linhas paralelas, com três pontos ao longo de
uma delas. É o símbolo asteca para o número treze. A numerologia asteca e
o idioma nahuatl são populares entre as gangues Sureno do Sul da
Califórnia. Na parte baixa das costas, pouco acima do cós do calção, há
uma tatuagem ornamentada do número “187”, que corresponde a
assassinato no Código Penal da Califórnia. Ao lado do umbigo foram
tatuadas uma lápide e duas datas com um intervalo de doze anos,
registrando a sentença que ele cumpriu.
— Você é de alguma gangue? — Sujeito 137 quer saber.
Meu pai adotivo me ensinou.
Eu vou apontando as tatuagens de outros sujeitos na sala. O asiático com
listas pretas tatuadas em torno do bíceps é membro da Yakuza, a máfia
japonesa, e cada lista representa um serviço criminoso que ele já prestou.
Outro asiático tem as letras “CNA” tatuadas nas costas, indicando que ele é
membro da família criminosa Clã de Ninjas Assassinos. Parados ou
andando, esperando sua vez, há sujeitos com um pequeno crucifixo na pele
entre o polegar e o indicador. Três pequenas linhas para cima marcam a
tatuagem como a Cruz Pachuco, o sinal das gangues hispânicas. Outros
sujeitos têm no mesmo lugar três pontos tatuados em forma de triângulo. Se
forem mexicanos, esses três pontos significam Mi vida loca. “Minha vida
louca.” Se o sujeito for asiático, os pontos significam To o can gica. “Nada
me importa.”
— Seu pai era de uma gangue de rua? — o sujeito insiste.
Meu pai adotivo era contador numa grande empresa que constava na lista
das quinhentas mais lucrativas da revista Fortune. Ele, eu e minha mãe
adotiva morávamos numa casa suburbana em estilo Tudor. Lá havia um
porão gigantesco, onde ele montava miniaturas de trens. Os outros pais
eram advogados e pesquisadores químicos, mas todos tinham miniaturas de
trens. Sempre que tinham um fim de semana livre, eles se juntavam numa
van familiar e iam ao centro da cidade pesquisar. Tiravam fotos dos
membros das gangues. De suas pichações. Das profissionais do sexo em
atividade. De lixo, poluição e sem-teto viciados em heroína. Depois eles
estudavam e debatiam ardorosamente aquilo tudo. Competiam uns com os
outros, vendo quem criava as cenas de decadência urbana mais realistas e
sórdidas em miniatura num porão de um condomínio.
Meu pai adotivo usava um só fio de pelo de vison para pintar o número
“312” no dorso nu de um boneco diminuto e criar um membro da gangue de
rua Lordes do Vício de Chicago. É assim que os gângsteres demarcam seu
território: tatuando o código telefônico da área, geralmente na parte superior
das costas. Às vezes é no peito ou na barriga. O sujeito que bateu no sujeito
da batata frita se apossou do código de área de Seattle... deve ser território
Norteno. Eu digo que não é de espantar que ele seja tão defensivo.
Os membros da gangue Blood sempre cruzam a letra “C” em todas as
suas tatuagens, para negar qualquer identidade com os rivais da gangue
Crip. E uma tatuagem com a letra “B” cruzada mostra que o sujeito é da
Crip.
— O seu pai ensinou isso a você? — indaga o Sujeito 137.
Meu pai adotivo. Trabalhando na sua miniatura de trem. Ele nunca traía
minha mãe adotiva, mas passava dias inteiros fotografando piranhas e
pintando bonecas diminutas iguais a elas. Ele nunca tomava drogas ilegais,
mas cada um dos seus viciados em metanfetamina era uma obra-prima.
Usando um pincel fino como uma agulha, meu pai adotivo punha letreiros
em paredes de fábricas decadentes, conjuntos habitacionais abandonados e
hotéis baratos.
Eu falo para o Sujeito 137 que sinto muito pelo cancelamento do
programa dele na temporada anterior.
Ele dá de ombros e diz:
— Então você é adotado?
— Só desde que nasci.
Esperando sua vez com Cassie Wright, um balofo louro, de barba
comprida, está parado com os braços cruzados sobre o peito. Os fios da
barba amarela são tão duros e grossos que se projetam à frente do queixo, e
não para baixo, devido à gravidade. Talvez seja sujeira. Os pálidos
antebraços do sujeito estão cobertos de borrões pretos com as letras A ou B,
suásticas e trevos. São tatuagens de cadeia, furadas com a ponta de uma
corda de violão quebrada e tingidas com xampu misturado à fuligem de
talheres plásticos queimados. A Irmandade Ariana. Teias de aranha tatuadas
cobrem os dois grandes cotovelos dele.
Perto do sujeito ariano, Branch Bacardi engancha o dedo na corrente
dourada em torno do seu pescoço. No ponto mais baixo da corrente, sobre a
garganta dele, há um coração dourado. É um medalhão que Cassie Wright
usou em um zilhão de cenas. Com o polegar e o indicador, Bacardi faz o
medalhão deslizar de um lado para o outro na corrente.
— Minha mãe verdadeira é uma grande estrela de cinema, mas eu não
posso contar quem é — informo eu.
Depois falo que já escrevi toneladas de cartas para ela, aos cuidados da
produtora e dos distribuidores, até do seu agente, mas ela nunca me
respondeu.
O Sujeito 137 baixa o olhar para as flores que estou segurando.
— Não é que eu queira dinheiro, ou que ela me ame — explico. — Só
quero encontrar com ela. Pelos meus cálculos, devo ter a idade que ela
estava quando precisou me passar adiante.
Não sei se o agente ou alguém está interceptando as cartas e jogando tudo
no lixo. Mas tenho o plano secreto de um dia encontrar com ela. Minha
mamãe de verdade.
— Você conhece seu pai verdadeiro? — pergunta o Sujeito 137.
E eu dou de ombros.
Do outro lado da sala há um sujeito negro, com uma tatuagem na parte de
trás da cabeça raspada: uma bandeira ondulante com o número “415”, que é
o símbolo da Nação Africana Kumi, uma dissidência da Família da
Guerrilha Negra. Ao menos segundo meu pai adotivo, que recitava esses
detalhes com uma lupa numa das mãos e um pincel na outra, trabalhando
nos pequenos bonecos que chegavam da Alemanha como médicos, garis,
policiais e donas de casa. Com pinceladas de tinta nova, ele transformava os
bonecos em membros da máfia mexicana La eMe, dos Guerreiros Arianos,
ou dos Gangstas da rua 18. Se eu parasse ao lado dele, pusesse a mão na
bancada de trabalho e ficasse imóvel, meu pai adotivo pintava “PB” e
“666”, símbolos do Poder Branco, na base do meu polegar.
Depois dizia para mim: “Vá logo lavar as mãos e não deixe sua mãe ver
isso.”
Minha mãe adotiva.
Neste exato momento, a dama que está atrás da porta em cima daquelas
escadas é território neutro. Um santuário para receber os tributos de
peregrinos que percorrem mil quilômetros ajoelhados, tal como Jerusalém
ou algumas igrejas. Sendo especial para adeptos da supremacia branca,
Bloods, Crips e Ninjas, ela é uma dama que transcende as guerras por poder
territorial. Que transcende raça, nacionalidade e família. Cada homem aqui
pode odiar todos os outros, e fora daqui talvez nos matássemos uns aos
outros, mas todos nós amamos Cassie.
Nossa Terra Santa. Cassie Wright, nosso anjo da paz.
Ao meu lado, o Sujeito 137 sacode o frasco de pílulas azuis que
comprou. Segurando o cachorro autografado embaixo do braço, ele põe
uma delas na palma da mão. Depois a joga dentro da boca.
Alguém pisou no sangue que escorreu do nariz do outro sujeito e
empoçou no piso de concreto. Há trilhas de pegadas ensanguentadas, feitas
por pés de tamanhos diferentes, em todas as direções.
Eu pergunto o que ele está fazendo... neste exato momento, quero dizer...
para retomar sua carreira televisiva.
— Isto — diz o Número 137, sacudindo o pequeno frasco de pílulas.
7

Sr. 137

Um mexicano enorme esbofeteia um gorducho na mesa do bufê. Então o


Ator 72, segurando o buquê de flores mortas, chega para mim e começa a
explicar o ataque. A luta tem algo a ver com trens em miniatura e a cidade
de Seattle. A máfia mexicana e o Vaticano. Tagarelando sem parar, o
Número 72 me diz:
— Sinto muito.
Eu lhe digo que não é preciso.
— Estou falando do cancelamento do seu seriado na TV — diz ele.
Eu lhe digo para deixar para lá.
— Estou falando de todas aquelas revistas de fofocas metendo o pau em
você — insiste ele.
Eu lhe peço para esquecer o assunto.
Então o Ator 72 pergunta:
— O que você está fazendo? Quero dizer, aqui?
Branch Bacardi, o número 600, encosta um bolo de papel higiênico no
mamilo sangrento. Toda vez que eu olho para aquele lado, vejo que ele está
olhando de volta para mim. A qualquer momento ele vai vir aqui, e eu ainda
não tenho uma boa frase para abrir a conversa. O astro de Punhetas do
Caribe e Agarra-me e possua-me está me paquerando.
Já era até de se esperar...
Não dá para simplesmente dizer: “Olá, Branch, eu tenho absoluta
adoração pela imitação do seu pau...”
Todo mundo que eu conheço, homem ou mulher, mantém um pau na
mesa de cabeceira. Ou um vibrador movido a pilha, ou um pau de imitação
operado manualmente. O seu é o campeão. Não é um pau comprido feito
um lápis, como as cópias do membro ereto de Ron Jeremy. E com certeza
também não é um daqueles tão grossos que você se sente entalado feito uma
privada entupida. Não. Entre os brinquedos sexuais licenciados por
celebridades, o Branch Bacardi tem comprimento e largura para agradar a
todos os gostos.
Claro que esse tipo de conversa é simplesmente impensável...
Zanzando em torno de nós, os homens demasiadamente nus formam um
mar de tatuagens e cicatrizes. Inflamações e feridas. Estrias e queimaduras.
Um catálogo de tudo que é problema de pele. Além das picadas de
mosquito e das espinhas, vejo Branch Bacardi junto de Cord Cuervo. Os
dois estão conversando com as cabeças inclinadas. Bacardi aponta para
mim. Cuervo olha para cá, meneia a cabeça e sussurra no ouvido de
Bacardi. Os dois riem.
Eu penso, pode rir. O Cord Cuervo Super Deluxe afina demais na ponta,
a partir da cabeça circuncisada, que é do tamanho daquelas borrachas na
ponta dos lápis, a vara vai se alargando até a base, que é do tamanho de uma
lata de cerveja. Um pesadelo ergonômico.
Uma possibilidade seria perguntar a Bacardi sobre os aspectos de
produção em massa, ou seja, as linhas de montagem na China, onde
operários explorados embrulham e empacotam inúmeras cópias do membro
ereto dele feitas de borracha siliconada, ainda quentes dos moldes de aço
inoxidável. Ou então empacotam e enviam exércitos sacolejantes de rosadas
vaginas plásticas modeladas a partir da boceta raspada de Cassie Wright. É
um trabalho escravo chinês, feito à mão, implantando com pinça pelos
pubianos ou colorindo com spray diferentes tons de vermelho, rosa e azul.
Reproduzindo com precisão até a cicatriz da episiotomia de Cassie. Todas
as veias e verrugas de Bacardi. Era assim que eram feitas as máscaras
mortuárias, modelando com gesso os rostos das celebridades no intervalo
entre o falecimento e a decomposição.
Muito tempo depois que Cassie Wright envelhecer, enlouquecer, morrer e
apodrecer, sua vagina continuará nos assombrando: seja enfiada sob camas,
seja enterrada em gavetas de cuecas ou cômodas de banheiros, sempre ao
lado de velhas revistas eróticas. Ou, então, exposto em vitrines de
antiquários, o membro ereto de borracha de Bacardi, com o mesmo preço
daqueles paus de marfim ou osso entalhados à mão das há muito falecidas
esposas dos baleeiros de Nantucket.
Uma espécie de imortalidade.
Sempre é possível perguntar: qual é a sensação de ver o peru de Branch
Bacardi e a vagina de Cassie Wright se reduzirem a algo kitsch? A objets
exóticos, como o urinol de Duchamp ou a lata de sopa de Warhol.
É possível perguntar: Graças ao Tampão de Bunda Branch Bacardi, qual
é a sensação de saber que as pessoas ao redor do mundo vão para o
trabalho, a escola e a igreja com o seu pau enfiado no ânus?
Qual é a sensação de ver seu pau e seus culhões, ou seu clitóris e os
lábios da sua boceta, serem clonados um zilhão de vezes e depois serem
expostos na prateleira de uma loja pornô atrás de um atendente mascador de
chiclete? Ou pior: ver suas partes mais íntimas amontoadas num estande de
promoções, sendo erguidas, apertadas, beliscadas e rejeitadas por
desconhecidos como abacates num supermercado?
Mais uma vez, esta conversa é simplesmente impensável.
Outra possibilidade seria tentar uma anedota engraçada, um caso real
sobre um amigo querido. Carl. Um grande fã do Branch Bacardi Super
Deluxe. Certa manhã, Carl olhou para a privada e viu fiapos finos e rosados
no produto do seu intestino. Vermes horrendos. Quando levou sua merda
numa caixa de papelão para o laboratório examinar, porém, os resultados
foram negativos. Aqueles fiapos rosados não eram parasitas. Eram de
borracha. O rosado prepúcio de borracha do seu Super Deluxe começara a
se degradar e esfarelar. Quando o proctologista empregou esse termo, Carl
se sentiu exatamente assim: esfarelado. Degradado.
Também seria possível arriscar a história do encontro de Carl com um
michê... ah, anos atrás. Os dois homens foram para casa juntos, mas
descobriram que ambos tinham bundas radicalmente passivas. Para
satisfação mútua, compartilharam um modelo especial do Branch Bacardi,
com duas cabeças. Essa feliz colisão de esfíncteres funcionou bem até que...
já era de se esperar... Carl sentiu que seu paramour du jour estava
usufruindo mais do que a metade estipulada. O que começara como um
encontro anônimo e casual virou um selvagem cabo de guerra sexual,
embora não houvesse nós na corda, nem bandeira para impedir que um dos
parceiros engolisse todo o terreno comum. Um guarda-corpo contra a
ganância. Ou um Muro de Berlim feito de borracha siliconada para garantir
a honestidade geral.
Sim, seria possível arriscar essa história, mas o último fato que um
piroqueiro célebre como Branch Bacardi quer ouvir é que seu produto é
defeituoso.
E Deus me livre de Bacardi pensar que eu sou Carl. Que inventei um
amigo só para disfarçar.
O suor se acumulou tanto no meu sovaco que vazou para a pele de lona
do Mister Toto, apagando a inscrição de Bette Midler: “Vamos continuar
sempre amigos! Amor, Bette.” As palavras viraram uma mancha azul. Seja
devido às pílulas azuis ou ao nervosismo, meu suor já apagou Carol
Channing e Barbra Streisand. “Nosso fim de semana em Paris foi o paraíso.
Sempre sua, Barbra.”
Passando o buquê de um braço para o outro, o Ator 72 olha para o Mister
Toto e pergunta:
— Como é a Goldie Hawn?
Nem dá para chorar de verdade, porque a inscrição de Bette Midler era
falsa. Assim como a de Carol Channing. E a de Jane Fonda. Tá legal, a
verdade é que todas são falsas. Eu mesmo escrevi tudo com caligrafias e
tintas diferentes.
Nenhum caçador de autógrafos pode abordar uma estrela feito Cassie
Wright de mãos vazias. Eu queria que ela assinasse seu nome no meio de
uma galáxia de estrelas. Como se todos nós fôssemos amigos íntimos.
A verdade é que eu nunca encontrei essas mulheres.
Depois que assinar, meu plano é copiar sua caligrafia e acrescentar
“Obrigada pela melhor foda da minha vida”.
Ninguém pode pedir a uma grande estrela feito Cassie Wright esse tipo
de inscrição pessoal. Principalmente se for mentira.
E você não pode contar a um ator como Branch Bacardi que, graças ao
Super Deluxe dele, sua próstata ganhou um calo. Mesmo que seja verdade.
O sangue no mamilo já deve ter estancado, porque Bacardi parou de
secar a ferida com papel higiênico. Em vez disso, está mexendo num colar.
Um pingente. Um pequeno troço dourado pende de uma corrente no
pescoço dele. Branch segura o pingente com a ponta dos dedos das duas
mãos. Pressionando com a unha, ele abre o troço e examina o interior. É um
medalhão, ou uma caixa. Sem dúvida, lá dentro há um retrato ou uma
mecha de cabelo.
Outra forma de imortalidade.
Quando o Número 600 olhar para cá outra vez, e realmente chegar mais
perto, posso lhe falar do Vaticano. Lá, se você pede com educação, os
curadores abrem gaveta após gaveta para lhe mostrar as relíquias guardadas.
Segundo Carl, aninhados em algumas gavetas há paus esculpidos em
mármore. Pênis. Feitos de alabastro, ônix ou obsidiana. São fileiras e mais
fileiras, gavetas e mais gavetas de caralhos antigos, todos numerados e
ligados a alguma obra-prima que foi castrada. É uma coleção com centenas
de paus numerados, todos arrancados de estátuas gregas, romanas, egípcias
ou bizantinas, e substituídos por folhas de figueira feitas de gesso.
Caralhos minoanos de bronze, cortados, pequenos como balas. Caralhos
etruscos de terracota, virando farelo. Essas salsichas de valor inestimável
não são coisas que os virtuosos queiram que você veja, mas ainda são
importantes demais para serem descartadas.
São iguais a todos aqueles pênis Branch Bacardi e todas aquelas vaginas
Cassie Wright dentro das mesas de cabeceira e dos porta-luvas de carros.
Eu poderia contar a Bacardi que o primeiro vibrador elétrico foi lançado
no mercado na década de 1890. Os primeiros eletrodomésticos da história
foram a máquina de costura, o ventilador e o vibrador. Os americanos já
usufruíam de vibradores elétricos dez anos antes de terem aspiradores de pó
ou ferros de passar. Vinte anos antes que as frigideiras elétricas fossem
lançadas no mercado.
Ao inferno com as tarefas domésticas. A prioridade máxima sempre
esteve entre nossas pernas.
A coordenadora de elenco passa por mim, carregando um saco de batatas
fritas cheio de guardanapos de papel com o sangue do ator do lábio
rachado. Papel branco manchado por sangue vermelho e poeira alaranjada
com gosto de churrasco. Quando passa por Branch Bacardi, a jovem faz
uma breve pausa. Ele joga dentro do saco o papel higiênico com o sangue
do seu mamilo.
— Eu odeio essa garota — diz o garoto das flores, Ator 72, olhando para
a jovem. Ele amassa e esmaga o cone transparente que embrulha as flores.
O plástico vai estalando, enquanto os punhos dele apertam cada vez com
mais força, até os espinhos aparecerem. — Quanto você quer apostar que
essa puta joga fora todas as cartas que as pessoas mandam para a Cassie
Wright, por mais que seja importante o que está escrito, ou por mais que um
cara só queira dizer para a Cassie quanto ela significa para ele?
Se Bacardi se aproximar, é sobre isso que eu vou falar com ele: aqueles
curadores do Vaticano, com suas gavetas empoeiradas, cheios de paus
numerados, anônimos, e de valor inestimável.
Dentro do colar de Branch Bacardi há algo que ninguém mais pode ver,
mas ele fica olhando para aquilo durante muito tempo. Em termos dos
filmes que passam perto do teto, ele fica olhando para aquele segredo
durante uma suruba a três... dois boquetes... e um orgasmo clitoriano.
Já era até de se esperar... nesse momento Bacardi ergue o olhar para mim.
E fecha o medalhão.
8

Sheila

Na primeira vez que abordei Cassie Wright, eu perguntei o que ela podia
me falar sobre uma imperatriz romana chamada Messalina.
Nosso encontro cara a cara foi num café. Ficamos bebendo cappuccinos
enquanto nossos joelhos se esbarravam embaixo de uma mesa de mármore
diminuta. Cassie Wright sentou de lado para poder olhar pela janela, com as
pernas cruzadas na altura dos joelhos. Dizem que isso provoca varizes. Mas
seus olhos não seguiam os passantes. Tampouco observavam os cães nas
coleiras, ou os bebês em carrinhos. Sem olhar para mim, Cassie perguntou
se eu já ouvira falar de uma atriz chamada Norma Talmadge.
Ou Vilma Bánky? John Gilbert? Karl Dane ou Emil Jannings?
Com os cílios falsos realçados por rímel, sem piscar, Cassie Wright
contou que Norma Talmadge era uma estrela do cinema mudo. A maior
bilheteria de 1923. Recebia três mil cartas de fãs por semana. Em 1927,
essa tal de Norma pisou por acidente num trecho de cimento úmido na
frente do Grauman’s Chinese Theater, inaugurando a era das marcas de pés
e mãos deixadas por astros de cinema.
Cerca de dois anos após o episódio do concreto, Hollywood começou a
fazer filmes sonoros. Norma Talmadge trabalhou um ano com um
especialista vocal, mas continuava soltando ganidos do Brooklyn quando
abria a matraca. O principal astro hollywoodiano, John Gilbert, pronunciava
suas falas guinchando feito um canário. Já Mary Pickford, que só
representava meninas e moças, falava grosso como um caminhoneiro. Os
diálogos de Vilma Bánky se perdiam devido ao sotaque húngaro. Os de
Emil Jannings também, só que devido ao sotaque alemão. Já os de Karl
Dane se afogavam no pesado sotaque dinamarquês.
Lá fora escurecia por causa de algumas nuvens baixas. O toldo sobre a
janela do café também não ajudava. Cassie Wright ficou sentada, absorta no
reflexo de seus olhos e lábios na vidraça, e disse:
— John Gilbert nunca mais fez outro filme. Ele bebeu até morrer aos 37
anos. Karl Dane se matou com um tiro.
Todos esses astros, os atores mais poderosos do cinema, desapareceram
num instante.
Fato real.
Aquilo que o cinema sonoro fizera com as carreiras deles, explicou
Cassie Wright, a alta definição estava fazendo com uma nova geração de
atores. Dando informação demais. Uma overdose de realidade. A
maquiagem de cena já não aparentava ser pele. Batom parecia graxa
vermelha. Base virava uma camada de gesso. Arranhões de navalha e pelos
encravados passavam por lepra.
Tanto no caso de os astros machões que se revelam bichas, como no de
atores de filmes mudos cujas vozes parecem horríveis quando gravadas, o
público só quer uma quantidade limitada de honestidade.
Fato real.
No ano anterior, só um roteiro fora oferecido a Cassie Wright. Era um
musical de baixo orçamento: um filme fetichista, baseado no clássico de
Judy Garland e Vincent Minnelli sobre uma doce moça inocente que vai
para a Feira Mundial e se apaixona por um belo rapaz sádico. Intitulado
Agora treparemos felizes.
Cassie Wright aprendeu as canções e tudo. Fez aulas de dança. Mas
nunca foi chamada para um segundo teste.
Ela olha pela janela, inclinando a cabeça um pouco para cima como que
em direção a um refletor, e fecha os olhos brevemente. Com a voz de quem
sussurra uma cantiga de ninar, cantarola:
— I got bang, bang, banged on the trolley...
Seus olhos se abrem, e a voz se perde. Cassie Wright engole em seco,
inclina o corpo para o lado, mete a mão dentro da bolsa no chão e tira um
par de óculos escuros, que põe no rosto.
Ela continua com o olhar perdido voltado para a janela do café, sem ver
os carros passando na rua ou os transeuntes andando na calçada. Um
infindável cortejo de figurantes. Personagens anônimos abrindo guarda-
chuvas ou segurando jornais para proteger o cabelo. Ainda sem ver tudo
isso, Cassie Wright pergunta:
— Mas então... qual é a sua grande ideia?
Minha jogada. Por que eu ando telefonando para o seu agente? Telefonei
para cada produtora em que ela trabalhou nos últimos cinco anos. Escrevi
cartas. Por que fiquei insistindo que eu não era uma tarada? Uma babaca
qualquer.
Eu perguntei se ela sabia que Adolf Hitler inventou a boneca sexual
inflável?
E os óculos escuros de Cassie Wright se viraram para mim.
Durante a Primeira Guerra Mundial, eu contei a ela, Hitler trabalhou
como estafeta, entregando mensagens entre as trincheiras alemãs, e ficou
enojado ao ver seus colegas soldados visitando os bordéis franceses. Para
manter a pureza do sangue ariano e impedir a proliferação de doenças
venéreas, ele encomendou uma boneca inflável que as tropas nazistas
pudessem levar para a batalha. O próprio Hitler desenhou o modelo, com
cabelos louros e seios fartos. O bombardeio aliado sobre Dresden destruiu a
fábrica antes que as bonecas fossem amplamente distribuídas.
Fato real.
As sobrancelhas depiladas de Cassie Wright se arqueiam, aparecendo
acima dos óculos escuros. As lentes negras refletem a minha imagem. E
refletem a borda de papel do copo de café dela, manchada de batom
vermelho. Os lábios dizem:
— Sabia que eu sou mãe?
Nas lentes dos óculos eu estou com um conjunto de tweed. Meus dedos
puxam a trava e eu abro a maleta, inclinando o corpo à frente. Meu cabelo
está preso num coque francês.
Para a minha jogada, eu planejava desenvolver um projeto baseado
naquela primeira boneca sexual. Explorar o ângulo nazista. Explorar o
aspecto histórico. Alinhavar uma história com autêntico valor educacional.
Os lábios de Cassie Wright prosseguem:
— Pois é, tive um bebê quando eu tinha mais ou menos a idade que você
tem agora.
Se esse projeto da boneca sexual de Hitler for realizado da maneira
correta, eu digo, o tal bebê receberá uma montanha de dinheiro. Seja quem
for que o bebê tenha virado, Cassie Wright poderá lhe proporcionar
dinheiro para estudar numa faculdade, dar entrada numa casa e investir num
negócio próprio. Seja quem for que o bebê tenha virado, será simplesmente
forçado a amar Cassie.
Ela vira o rosto a fim de olhar para si mesma, refletida na janela. Nos
reflexos dos reflexos dos reflexos, entre a janela e os óculos escuros, as
muitas imagens de Cassie Wright vão ficando cada vez menores, até
desaparecerem no infinito.
Na escola religiosa que frequentou quando criança, conta ela, todas as
meninas precisavam usar um lenço amarrado para tapar as orelhas o tempo
todo. Isso se baseava na ideia bíblica de que a Virgem Maria engravidou
quando o Espírito Santo sussurrou no seu ouvido. A ideia de que as orelhas
eram vaginas. De que, ao ouvir uma única ideia errada, a inocência era
perdida. Um detalhe a mais e tudo estaria arruinado. A pessoa teria uma
overdose de informação.
Fato real.
A ideia errada poderia se enraizar e crescer dentro das pessoas.
Os óculos escuros de Cassie Wright me refletiam abrindo uma pasta de
papel. Tirando um contrato. Destampando e estendendo uma caneta sobre a
mesa. Meu rosto relaxado e confiante. Meus próprios olhos sem piscar. Meu
conjunto de tweed.
— Esse cheiro é do xampu 100 Carícias? — dizem os lábios de Cassie,
sorrindo. — Quem foi que...
A imperatriz romana Messalina.
— Messalina — repetiu Cassie Wright, pegando a caneta.
9

Sr. 600

O Garoto 72 é bem fácil de achar, agora que seu buquê de rosas começa a
se desmanchar, largando uma trilha de pétalas murchas por onde ele anda na
sala. As pétalas de rosas brancas seguem o Cara 72, que persegue Sheila,
perguntando:
— Posso ir logo?
Ele olha para as flores que tem nas mãos e diz:
— É verdade?
Depois insiste:
— Você acha que ela vai morrer?
O Cara 137, da televisão, por sua vez, diz:
— Pois é, minha jovem, quando nós poderemos ver o corpo?
— Tu num é engraçado — resmunga o Garoto 72.
— Por que Cassie Wright quereria morrer? — quer saber a gata Sheila.
Seiscentos de nós esperando numa sala e respirando o mesmo ar pela
terceira ou quarta vez. Quase já não há oxigênio aqui, somente o fedor
adocicado de laquê. Água de colônia Stetson. Old Spice. Polo. A fumaça
azeda de maconha que sai de pequenos cachimbos de vidro. Há caras
parados junto ao bufê, farejando o cheiro doce de roscas polvilhadas,
tortilhas com queijo e manteiga de amendoim. Há caras engolindo e
peidando ao mesmo tempo. Com as tripas arrotando bolhas gasosas de café
preto. Respirando com a boca cheia de chiclete Juicy Fruit, goma de mascar
rosada ou pipoca amanteigada. Há também o fedor químico do gordo
marcador de feltro preto de Sheila. E o cheiro das sobras do buquê de rosas
do garoto.
Os pés descalços de algum cara fazem lembrar um odor de vestiário, e
nós respiramos esse cheiro como se fosse o de alguns queijos franceses, que
parecem o chulé daqueles tênis que usamos o ano inteiro sem lavar nas
aulas de educação física durante o ensino médio.
Cuervo passou tanto bronzeador que seus braços grudam nos músculos
laterais do peito. Os pés grudam no piso de concreto. Quando ele dá um
passo, a pele parece ser descascada do chão, fazendo o barulho de um
esparadrapo ao ser arrancado.
No único banheiro que temos, compartilhado por seiscentos caras, o piso
está tão inundado de mijo que o pessoal fica no umbral, tentando acertar a
pia ou o vaso dali mesmo. O fedor que exala daquela porta é tão ruim
quanto qualquer passo escorregadio que uma pessoa já tenha dado ao ar
livre, sabendo que é uma cagada antes mesmo de sentir o cheiro da bosta de
cachorro que será preciso escavar da sola do sapato.
Cuervo ergue o braço, fazendo aquele barulho de esparadrapo quando a
pele coberta de bronzeador se estica. Ele enfia a cabeça embaixo do
cotovelo e fareja o sovaco, dizendo:
— Devia ter trazido mais água de colônia.
Do Garoto 72 vem um cheiro verde de desodorante. Com um travo de
hortelã de antisséptico bucal.
Só para provocar o Cara 137, eu pergunto se esta será sua estreia diante
das câmeras.
O Cara 137 abana a cabeça, exalando cheiro de cigarro. Junto com isso,
vem o aroma do urso de pelúcia ensopado pelo suor do seu sovaco.
Eu falo para o cara pegar leve com as pílulas de tesão. Já tem gente do
outro lado da sala olhando para cá e apostando quanto tempo vai demorar
para que ele seja derrubado por um enfarte. O cara devia ver como seu rosto
está vermelho, com as veias na testa tão inchadas que parecem raios. Ou
isso, digo, ou é melhor ele também entrar no bolão e apostar num número
qualquer. Pelo menos assim vai ganhar alguma grana quando sofrer a
overdose.
— Por que uma estrela como Cassie Wright quereria se matar? — repete
o Garoto 72.
Talvez pela mesma razão que levou a superestrela Megan Leigh a rodar
mais de 54 filmes em três anos, e depois comprar uma mansão de meio
milhão de dólares para sua mãe. Só então a estrela de Ali Babá e as
quarenta devassas e Robocorno deu um tiro na própria cabeça.
Não existe um só jovem vivo que não sonhe em recompensar ou punir os
pais.
É por isso que o lendário garanhão Cal Jammer parou sob a chuva diante
da garagem da ex-esposa e deu um tiro na própria boca.
É por isso que a rainha da xota Shauna Grant morreu na ponta de seu
próprio rifle calibre 22. E porque certa noite Shannon Wilsey, a loura rainha
do pornô conhecida como “Savannah”, foi até a garagem e enfiou uma bala
na cabeça. Eu aposto na ideia de que Cassie Wright quer garantir o futuro
de algum bebê que ela teve há muito tempo. Se ela bater as botas hoje,
depois de quebrar esse recorde, a renda constante dos direitos de Terceira
guerra da bacanal, de suas camisetas, de sua lingerie e de seus brinquedos,
para não falar de todos os títulos na sua filmografia, tornará essa criança
outrora perdida... rica pra cacete. Tão rica que poderá perdoar a velha
Cassie. Por ter engravidado daquela maneira. Por ter doado o bebê. Isso, e
mais todo jeito fodido, cagado, triste e desperdiçado com que a velha Cassie
viveu e morreu.
Se fizer penitência com seiscentos caras, Cassie Wright será perdoada.
Eu, pessoalmente, conto ao Cara 137 que estou acrescentando um lema
gravado aos meus paus artificiais. Em alto-relevo ao redor da base, a
inscrição dirá: “O pau que matou Cassie Wright...” Será na parte mais
grossa, de forma que, se for torcido, as letras estimularão o clitóris.
— Você tem um pênis artificial? — pergunta o Cara 137. Sinto no seu
hálito um traço de birita. Além daquele cheiro de cera de vela que todo
batom tem. O cara usa gloss colorido nos lábios.
Bom pra cacete, falo pra ele. Um pau em seis cores diferentes, um
tampão de bunda e um cacetão com duas cabeças. Além disso, ando
desenvolvendo uma boneca inflável em tamanho natural.
— Você deve ter muito orgulho disso — comenta o Cara 137.
Digo a ele que antigamente eu vendia dez mil unidades por mês. Minha
comissão era 10% do preço de venda. Outros caras, como, por exemplo,
Cuervo, acrescentam alguns centímetros ao seu produto. Cuervo pode até
começar com um molde real, mas o que acaba chegando às prateleiras é
mais comprido e grosso do que ele jamais sonharia em atingir. Cuervo
chama isso de “licença artística”, mas é propaganda enganosa. De que vale
dizer que um produto é fiel à realidade quando não é?
O Garoto 72 fica parado ali, com as pétalas caindo das suas flores. Com
os dedos da outra mão, ele esfrega a pequena cruz de prata que pende da
corrente em torno do seu pescoço.
Toda vez que eu respiro, sinto o medalhão de ouro que Cassie me deu ser
apertado entre os meus peitorais. Dentro do pequeno coração de ouro
chacoalha a pílula. O ouro já está grudento devido ao sangue do meu
mamilo.
— Aquele ali é mesmo o Cord Cuervo? — O Cara 137 estreita os olhos
para espiar em meio ao nevoeiro formado por água de colônia e fumaça de
maconha. — O astro de Perverso tesão e A importância de comer
prudente?
— Além de O boquete de Lady Windermere — acrescento, balançando a
cabeça. Todos projetos de classe, intelectualizados. Faço um aceno para
Cord, e ele acena de volta.
Número 49. Número 567. Número 278. Cada cara que Sheila chama pega
o saco com suas roupas e segue atrás dela escada acima. Ninguém, exceto
Sheila, sai de lá. Aposto que, quando eles acabam, são levados até a saída
por outra porta. Para evitar que alguém volte aqui e nos conte o que esperar.
A definição jurídica de suruba é “instâncias de sexo”, abrangendo qualquer
buraco (a boceta, o cu ou a boca dela) e qualquer instrumento (seu pau, seu
dedo ou sua língua), por um minuto, no mínimo. Se você segue Sheila por
aquela porta, um minuto depois está tudo acabado. Gozando ou não, você
vai se ver despido e empurrado pela saída de incêndio, botando as calças na
viela dos fundos.
— Que visão patética — diz o Cara 137, ainda espiando Cord do outro
lado. Ele meneia a cabeça para Beamer Bushmills e Bark Bailey. —
Imagine um sujeito que conseguisse manter uma mentalidade virginal,
devotando sua vida a erguer pesos e ejacular na hora certa... Ele
permaneceria agressivamente retardado e preso a valores pré-adolescentes.
Até que um dia acordaria e veria que virou um pobre coitado de meia-idade,
flácido e pelancudo...
Juro que o cara olha bem para mim quando fala “pobre coitado”, mas
talvez estivesse simplesmente olhando para mim. Acho que poderiam
acontecer coisas piores. O sujeito poderia acabar escalado para duas
temporadas num seriado televisivo de sucesso em horário nobre, e depois
perder o papel por causa de algum escândalo sexual cabeludo. Mais tarde,
poderia descobrir que ficou tão marcado pelo personagem do programa
antigo (possivelmente um detetive particular amalucado) que jamais
arrumará um trabalho decente como ator no restante da sua carreira. Digo
que isso, sim, seria uma autêntica tragédia.
E eu falo para o Cara 137 que, caso ele queira cobrir o trecho calvo na
sua cabeça, tenho no meu saco um spray que pode funcionar. Apontando
com o dedão do pé (sempre uso sandálias Havaianas quando vou filmar),
mostro a trilha de cabelos que ele está deixando no chão. Todos nós
deixamos nossas pegadas, sejam pétalas de rosas, manchas de bronzeador
ou fios de cabelo.
Olhando para seu cabelo no concreto, para mim e para Sheila com sua
prancheta no outro lado da sala, o Cara 137 berra:
— Vamos logo! Quer acelerar isso um pouco, meu bem?
Eu pergunto se ele tem um lugar melhor para ir. Talvez algum teste?
Porque eu não tenho, confesso para ele. Posso esperar. E digo que, por
causa do que nós vamos fazer hoje, com aquela mulher lá atrás, algum
jovem que ela jamais viu nunca mais precisará trabalhar na vida. Para o dia
de hoje funcionar, eu preciso ser o senhor Último.
— Ninguém sabe quantos filhos já foram gerados por esses homens,
fazendo os filmes que fazem — diz o cara, olhando para o Garoto 72.
Olhando para mim, acrescenta: — Se é que realmente todos nós deixamos
nossas pegadas.
Isso nunca aconteceu, digo eu.
— Belo medalhão. — O Cara 137 estende a mão para o cordão de
Cassie, com o pequeno coração de ouro grudado pelo sangue entre meus
peitorais. Suas unhas brilham, envernizadas com esmalte transparente.
10

Sr. 72

— Os bebês pornô existem. — Eu balanço as rosas para Branch Bacardi


e o Sujeito 137. As pétalas flutuam por toda parte. — Há crianças que são
concebidas durante filmes adultos. Quer dizer, quando esses filmes são
feitos.
Branch Bacardi abana a cabeça.
— Isso é lenda urbana.
— Filhos do amor — acrescenta o Sujeito 137.
— É um pouco exagerado chamar de “filho do amor” qualquer coisa
concebida durante uma suruba filmada — observa Branch Bacardi.
E eu falo para eles que isso não tem graça.
— Não, esperem — diz o Sujeito 137. — Dizem os boatos que uma
criança foi concebida durante As bronhas de Madison.
Branch Bacardi sacode a cabeça.
— Não. Ela abortou.
— No ramo, isso se chama “tirar fora” — informa o Sujeito 137.
Eu falo para eles que nada disso tem graça. Minhas mãos tremem tanto
que as pétalas se acumulam em torno dos meus pés.
E Branch Bacardi me pergunta:
— Quem, então? Você pode indicar ao menos uma atriz que tenha tido
um bebê pornô?
Eu aponto para o monitor de vídeo, onde Cassie Wright está maquiada
como uma bela gueixa. Com pó de arroz nas faces e rímel preto nos olhos,
ela interpreta uma doce heroína nipo-americana em Neve sobre os cedros
em riste. A Cassie Wright, falo para eles. Ela teve uma criança.
Digo que os pais dela moram em Montana, onde a mãe ainda trabalha na
secretaria de educação, e o pai faz lavagem a seco. Eles contam que, há
vinte anos, Cassie chegou em casa e falou que estava grávida. Ela não
parecia esperar um bebê. Tingira o cabelo e fizera dieta até perder metade
do peso. Estava dirigindo um Camaro tão novo que ainda tinha as placas da
revendedora, pintadas de preto meia-noite.
A filhota contou aos pais que filmara sua primeira obra-prima, Primeira
guerra da bacanal, e tentou explicar a eles o que era rodar um plano de
gozo interno. Nem sempre as coisas correm de forma perfeita. Cassie
contou que sua menstruação atrasara três semanas e que o teste de gravidez
dera positivo. Pediu para ficar ali até a criança nascer, e eles negaram.
Guerra da bacanal já transformara Cassie numa estrela, e sua cidade natal
era pequena demais para que as pessoas não reconhecessem a filha pródiga
deles.
Secretamente, a mãe mandava dinheiro para ela toda semana. Assim
como o pai. Para um endereço aqui na cidade. Mas eles nunca viram a
criança.
O Sujeito 137 e Branch Bacardi ficam só olhando para mim. O Sujeito
137 segura e acaricia o cachorro de pelúcia. Branch Bacardi rola entre o
polegar e o indicador o medalhão de ouro que traz em torno do pescoço.
— Os pais nos sacaneiam sempre — diz ele.
Isso não é uma piada, insisto eu. Os bebês pornô são mais do que apenas
acessórios da indústria sexual. Ou sobras do entretenimento adulto. Um
produto colateral, como novas cepas de hepatite e herpes.
O Sujeito 137 ergue uma das mãos e fica mexendo os dedos no ar, até
que eu paro de falar. Depois diz:
— Espere aí. Eu preciso perguntar: o que é um plano de gozo interno?
Fico olhando para ele.
— Posso responder essa — Branch Bacardi interfere.
Eu balanço a cabeça para que ele assuma o comando.
Branch Bacardi ergue o olhar e pigarreia. Com voz monocórdica, como
se estivesse lendo um livro, explica:
— O participante masculino chega ao orgasmo dentro da participante
feminina, sem usar preservativo. Depois que ele recua, ela contrai o
assoalho pélvico com força suficiente para expelir do orifício vaginal o
material ejaculado.
A cor desaparece do rosto do Sujeito 137. Pálido e de olhos arregalados,
ele comenta:
— Mas essa não é uma boa forma de controlar a natalidade...
Exatamente o que eu quero provar.
Só que, diz Branch Bacardi, você não pode usar preservativos e querer
que seu produto venda bem na Europa. Com a cabeça ainda inclinada para
trás, ele olha para Neve sobre os cedros em riste, onde Cassie Wright está
sendo empurrada por baionetas para um campo de concentração nipo-
americano.
Ainda mexendo no medalhão, ele suspira:
— Ela era tão linda...
O Sujeito 137 respira fundo.
— A face que recebeu mil gozadas faciais.
O que eu quero provar é que essas crianças não são uma piada. Nem uma
lenda urbana.
Mais algumas pétalas de rosas caem em espiral até o chão.
— Você pode indicar ao menos um? — pede Branch Bacardi.
Nos monitores, o ornamentado quimono bordado de seda de Cassie
desliza até o chão poeirento de um pavilhão militar no deserto de Nevada.
Ao fundo borbulha uma banheira quente, lotada de mulheres risonhas. Elas
têm os rostos esbranquiçados com farinha de arroz e derramam saquê nos
seios desnudos umas das outras. O comandante do campo entra no pavilhão,
segurando um chicote enrolado.
Quase nada resta das minhas rosas, além de caules e espinhos.
A garota com a prancheta e o cronômetro está lá do outro lado da sala,
junto da comida.
Com a mão livre, eu aceno para que Branch Bacardi e o Sujeito 137 se
aproximem mais. Mantendo a voz mais baixa do que as chicotadas na tela,
eu bato no peito com o indicador.
— Eu — confesso.
Não sou uma piada, nem uma lenda.
Eu sou o tal bebê pornô.
11

Sr. 137

Já era até de se esperar... é o maldito xampu. Aquela bosta de 100


Carícias que Cassie Wright lançou. E daí que o frasco tenha um formato
perfeito para... Se você lavar, enxaguar e repetir por mais de dois dias, fica
careca. Todo esse prejuízo só para que Cassie possa sentir o cheiro no meu
cabelo e, quem sabe... achar que é uma homenagem a ela.
Não que ela consiga sentir o cheiro de alguma coisa aqui. Este lugar fede
como um curral.
Balançando a cabeça, Branch Bacardi examina o rebanho de homens nus.
Apontando para o Ator 72, que está parado numa poça de pétalas de rosas
do outro lado da sala, ele diz:
— Aquele cara ali... o carinha é totalmente brochante.
Depois Bacardi gira a mão que está com o dedo apontado, virando a
palma para cima, e continua:
— Cara, arruma uma pílula de tesão para mim?
Ele me estende a mão em concha, com a palma manchada pelo mesmo
bronzeador que os dedos, e fica olhando para mim. Depois olha para a mão
aberta. Olha outra vez para mim e insiste:
— Uma pílula, cara?
Eu falo para ele tomar as dele mesmo.
Bacardi balança a cabeça mais uma vez.
— Num trouxe nenhuma.
Então sou eu quem abana a cabeça, informando a Bacardi que preciso do
meu estoque. Depois pergunto pela pílula que há dentro do seu lindo
medalhão de menina, em forma de coração. Por que ele não engole essa?
Segurando o medalhão entre os peitorais raspados, Bacardi fica de queixo
caído. O pomo de Adão pula quando ele engole em seco. Acariciando o
medalhão, ele diz:
— Num é esse tipo de pílula, cara.
Parado do outro lado da sala, quase a ponto de sair do prédio, o Ator 72
esfrega entre o polegar e o indicador a pequena cruz de prata que pende da
corrente no seu pescoço. Seus olhos verdes pousam em toda parte, menos
sobre mim e Bacardi. O outro braço do ator ainda segura o buquê de rosas.
— Além do mais, isso aqui é para um amigo. — Bacardi bate com um
dos dedos tão violentamente no medalhão que um baque oco e profundo
ecoa em seu peito. — Só estou tomando conta.
Eu falo que ele é Branch Bacardi. Não vai precisar de uma muleta
quando a hora chegar.
— E você é o Dan Banyan, cara — diz Bacardi.
Era Dan Banyan, corrijo.
O Ator 72 larga sua bomba maternal de sigilo completo e depois se afasta
depressa, com os pés descalços ressoando no piso de concreto. Pisando com
a maior força possível no concreto frio e espargindo pétalas de rosa a cada
passo.
— Um cara como Banyan não precisa de pílulas. — Bacardi curva um
dos braços bronzeados para manter a mão estendida, enquanto o bíceps e o
tríceps pulam por baixo da pele. Flexionando e relaxando, com o número
“600” expandindo e encolhendo, seu braço tem vida própria. Respirando.
— Como Dan Banyan, um detetive particular, você num tava comendo dez
figurantes por episódio. Todas as gatas que eram clientes ou testemunhas, e
até advogadas. O cara era um moedor de carne de gata...
Meneando a cabeça para o Número 72, eu digo:
— É preciso admitir, ele realmente parece com ela...
O televisor pendurado acima da cabeça do rapaz mostra a revolucionária
declaração no campo de direitos civis feita por Cassie Wright sobre o
racismo, numa comédia sensual em que uma jovem aluna no segundo ano
da universidade volta para casa e conta aos pais amorosos que está
namorando um militante dos Panteras Negras. Chama-se Adivinhe quem
vem para gozar. Mais tarde relançado como Falão negro em perigo.
— Cara, eu pago você depois. — Bacardi estende a mão. — Prometo.
Ponho outra pílula entre os lábios, deixando menos uma no frasco.
— Cinquenta paus — oferece Bacardi. — Em dinheiro vivo.
E eu engulo. Meneando a cabeça para o Número 72, digo a Bacardi:
— Aquele jovem atormentado também parece muito com você.
Bacardi olha para o ator com as rosas. Depois olha para Cassie Wright,
esticando os lábios em torno de uma grande ereção negra. E diz:
— Não aconteceu.
Olhando para o medalhão em seu peito, onde o ouro tem um brilho
rosado devido a uma camada de sangue seco que saiu do mamilo, eu
aconselho:
— Tome sua própria pílula, só isso.
— É por isso que eu estou no ramo há tanto tempo, cara. Em toda a
minha vida, só dei tiros de festim. — Bacardi estala os dedos para mim. —
Uma pílula, e eu assino o seu urso de pelúcia.
Mister Toto. A caneta ainda está enganchada atrás de uma das orelhas do
cachorro. Dou de ombros. Claro. E entrego o bicho para Bacardi. Os dedos
morenos pegam o cachorro de lona enquanto eu espero.
Os olhos de Bacardi estão fixados no que ele escreve, rabiscando com a
caneta na perna de lona do cachorro. Erguendo o olhar, ele pergunta:
— Você conheceu a Ivana Trump? E a Tina Louise? De Gilligan’s
Island? Como ela é?
Seus dentes têm jaquetas demasiadamente brancas. É o branco dos
ladrilhos do metrô e das radiopatrulhas. O branco dos banheiros públicos. O
homem a partir do qual todos os outros homens vêm se medindo há uma
geração. O maior garanhão do pornô.
— Você é mesmo estéril? — eu pergunto.
Bacardi segura Mister Toto, virando o cachorro, examinando nome após
nome.
— Lizbeth Taylor... Deborah Harry... Natalie Wood... estou
impressionado...
Ele me devolve o cachorro. A lona de Mister Toto está toda manchada de
impressões digitais morenas deixadas pelo bronzeador. A assinatura de
Bacardi é um enorme “B”, e um segundo enorme “B”, com ambas as letras
seguidas por rabiscos ilegíveis feitos em tinta preta.
Eu pego Mister Toto.
— Agora os cinquenta dólares.
Bacardi solta um muxoxo. Seus ombros caem, arredondados, e a boca se
abre tanto que o pesado queixo quadrado esconde o medalhão, quase se
apoiando nos peitorais raspados.
— Cara... por que isso?
Agora sou eu quem estende a mão, com a palma em concha virada para
cima.
— Porque Dan Banyan passou por muitas amortizações do financiamento
da casa, prestações de carro e parcelas do cartão de crédito. Porque, neste
exato momento, você precisa de uma pílula, e eu preciso dos fundos.
O Número 72 está cruzando a sala e vindo para cá. Mas não
imediatamente. Ele dá alguns passos até o bufê, onde come uma batata frita.
Dá outro passo e para perto da coordenadora de elenco. Diz alguma coisa
no seu ouvido, e ela folheia as páginas na prancheta. O tempo todo, ele está
descrevendo um grande círculo de volta para nós dois aqui.
Olhando para a prancheta, a coordenadora de elenco grita:
— Pessoal, um pouco de atenção, por favor. Preciso dos seguintes três
participantes...
Lá junto ao bufê, o pessoal para de mastigar. Os veteranos ficam
paralisados, com os barbeadores plásticos pairando sobre o couro dos
glúteos e das panturrilhas. Os homens com celulares nas orelhas, ou fones
de ouvido sem fio, param de falar e silenciosamente erguem as cabeças para
escutar.
— Número 21... Número 283... e Número 544 — grita a coordenadora.
Ela alisa a papelada na prancheta e ergue o braço esticado acima da cabeça,
agitando a mão no ar. — Por aqui, pessoal.
Eu sacudo o frasco de pílulas, já semivazio, de modo que o restante das
pílulas chacoalha, e digo:
— Essa foi por pouco. Agora... ou cinquenta dólares, ou você pode tomar
aquela pílula que está só guardando.
Branch Bacardi aspira, fazendo os músculos peitorais, laterais e oblíquos,
incharem imensamente. Depois expira com um prolongado suspiro de
hortelã.
— Então você era mesmo enturmado com a Dolly Parton? — ele quer
saber.
Com a pulsação martelando nos ouvidos, fecho um dos olhos. Depois
abro. Fecho o outro. Abro. Não estou ficando cego. Ainda não.
E uma voz diz:
— Posso falar com você?
Já era até de se esperar... O Número 72 está parado aqui, a meros dois
passos de distância de nós.
— Essa pílula é uma daquelas drogas milagrosas. — Bacardi cutuca o
medalhão de ouro com um dos dedos morenos, cuja unha apresenta uma
silhueta em marrom mais escuro ainda. Ele dá um sorriso tenso, com os
dentes falsos escondidos atrás dos lábios bronzeados. — Pouco importa o
que está errado, cara... Isso aqui cura. Isso aqui cura qualquer coisa.
Eu me inclino um pouco para o rapaz, o Número 72, roçando os dedos no
topo da cabeça a fim de que ele possa ver, e pergunto:
— Meu cabelo está mesmo ficando ralo?
12

Sheila

Cassie Wright vai correndo ao longo da calçada, com os joelhos


bombeando à altura da cintura e as coxas apertadas dentro de um apertado
short de ciclismo preto. Seus seios quicam e balançam de um lado para o
outro, presos dentro de um sutiã esportivo branco. Ela mantém os cotovelos
dobrados em L, com as mãos inertes sacudindo em cada pulso. Os pés
chocam-se com a calçada de concreto dentro de um par de tênis.
A pele do estômago é dura e bronzeada, sem estrias. Nada indica que
Cassie já foi mãe.
Na virilha, a lycra negra se estica, cobrindo um pequeno calombo. Já
maior do que um dedo de camelo, e ficando maior do que uma junta de
alce. Muito maior do que um clitóris. A virilha de Cassie cresce, incha e
quica. Quando seu pé bate no concreto depois de mais um passo, o calombo
dentro do short de ciclismo começa a deslizar pela lycra na perna.
Estamos correndo ao longo do gramado de um parque. Cassie olha para
as páginas de um fichário com três argolas que eu carrego. Cada página é
uma folha dupla de plástico transparente, com seis polaroides. Cada
fotografia mostra a cabeça e os ombros de um homem, além de um número
escrito com marcador preto na borda de baixo. São os seiscentos e poucos
sugadores de veias que se inscreveram no nosso projeto. Os esgrimistas de
estiletes e vomitadores de bebês. Os lançadores de girinos que passaram no
teste de hepatite. Com uma das mãos, seguro a borda superior do fichário,
apoiando a inferior na cintura. A outra mão vai virando as páginas, com os
dedos em torno de uma caneta.
A cada passada, o fichário machuca meu umbigo com o peso das cento e
poucas páginas.
O calombo dentro do short de Cassie para por um instante, preso pelo
elástico em torno da beira da calça. A lycra e o elástico se curvam,
florescem e arrotam. Reluzente e molhada, uma bola cor-de-rosa cai,
quicando e deixando três manchas de umidade no concreto cinzento.
Dando um tapa na perna onde a bola escorregou para fora, Cassie
sussurra:
— Puta que pariu.
A bola cor-de-rosa quica quatro, cinco, seis vezes na calçada atrás de nós.
Deixa sete, oito, nove manchas de umidade, até ser agarrada pelos dentes de
um cachorro preto que pula do gramado. Escorregadio feito uma foca com
pernas rígidas e pequeno feito um gato com orelhas pontudas, o cachorro
cerra as gengivas negras sobre a bola cor-de-rosa e sai correndo pelo
gramado do parque.
— Sabe aquele filme O mágico de Oz? O cachorro que fez o Toto era um
caim terrier chamado Terry — diz Cassie, vendo a distância o cachorro
encolher e sua bola cor-de-rosa sumir. — Na cena em que os guardas da
bruxa saem do castelo atrás do Toto, na tomada final, um dos guardas, no
meio da ponte levadiça, deu um salto e caiu em cima do coitado do Terry.
Quebrou a perna traseira do cachorro.
O cachorro passou semanas afastado das filmagens. Fato real.
De volta à corrida, bombeando os joelhos e sacudindo as mãos inertes,
Cassie continua a falar. Nesse mesmo filme, O mágico de Oz, o ator Buddy
Ebsen quase morreu devido a uma reação alérgica a pó de alumínio, que era
parte do seu figurino como o Homem de Lata. A atriz Margaret Hamilton
deveria partir de Munchkinland numa explosão de labaredas, só que o
clarão do fogo incendiou sua maquiagem verde à base de óxido de cobre,
envolvendo em chamas seu rosto e sua mão direita.
Buddy Ebsen perdeu o papel para Jack Haley. Margaret Hamilton passou
seis semanas acamada, envolta em gaze e picrato de butesin.
Cassie baixa o olhar para as seis polaroides que estou segurando. São os
próximos seis lançadores de porra. Ainda correndo, ela prossegue:
— Muitos atores fazem coisas piores em prol do seu ofício.
A tal bola cor-de-rosa, explica ela, foi moldada em silicone. Setenta
gramas. Vinte milímetros de diâmetro. Um exercício de Kegel. Deve ser
enfiada lá dentro enquanto se tensiona o assoalho pélvico. Antigamente as
asiáticas inseriam duas bolas metálicas com mercúrio em seus âmagos ocos.
O mercúrio passava o dia inteiro oscilando, rolando as bolas, estimulando
as mulheres e aumentando o tesão delas. O peso das bolas fortalecia a
musculatura da vagina. Quando os maridos chegavam em casa, eram
fodidos por aquelas donas de casa recauchutadas ainda na porta da frente.
Fato real.
Cassie diz que infelizmente o mercúrio tendia a vazar, enlouquecendo a
mulherada. O veneno matava.
Hoje em dia, a maioria das asiáticas vive com bolas de jade lá dentro.
Quanto mais forte você fica, mais peso consegue carregar.
Ainda correndo, a virilha do short de Cassie incha. A lycra se estica tanto
que a cor muda de preto para cinza-escuro. Mais um passo, e algo sai pela
perna elástica. Bate na calçada, ricocheteando, quicando e deslizando, até
parar na sarjeta. Redonda feito uma bola de tênis, branca, mas lisa e com
veios, como mármore ou ônix.
É uma pedra para exercícios de Kegel, diz Cassie, curvando o corpo e
apanhando o troço com as duas mãos. Pouco mais de um quilo. Ela esfrega
a pedra na perna do short para limpar as folhas mortas e os grãos de poeira.
Mais dois meses carregando isto e minha xota poderia ir às Olimpíadas...
Tudo isto é treino para Terceira guerra da bacanal.
Ela diz que uma verdadeira estrela de cinema está sempre disposta a
sofrer. Naquele filme de 1952, Cantando na chuva, o ator Gene Kelly
passou dias dançando a canção-tema, tomada após tomada, com uma febre
de quase quarenta graus. Para melhorar a aparência da chuva no filme, a
produção usou uma mistura de água e leite. E lá está Gene Kelly, doente à
beça, ensopado de leite azedo, mas sorrindo como se fosse o dia mais feliz
da sua vida.
Em 1973, num filme chamado Os três mosqueteiros, Oliver Reed tinha
uma luta de espada num moinho e foi ferido por alguém no pescoço.
Sangrou até quase morrer.
Dick York arrebentou a espinha ao filmar Heróis de Cordura em 1959.
Apesar das dores, ele continuou atuando até 1969, como o marido da bruxa
em A feiticeira. Passou catorze episódios no hospital e perdeu o papel.
Cassie Wright dá de ombros, ainda correndo e jogando a pedra de
exercícios de uma mão para a outra. O peso faz seus bíceps incharem a cada
movimento. Ela meneia a cabeça para que eu vire a página. Troco o lote
atual de borrifadores de teto pelos próximos seis manipuladores de salsicha.
Virando a folha plástica, eu conto que Annabel Chong comparou um
gang bang a uma maratona. Às vezes, ela se sentia cheia de energia, outras
sentia-se exausta. Então, recuperava o fôlego e sentia a energia aumentar.
O ator Lorne Greene, continua Cassie Wright, fazia o programa
televisivo Bonanza. Anos mais tarde, ele foi filmar seu outro programa,
Lorne Greene’s New Wilderness, e teve o mamilo arrancado pela dentada de
um jacaré.
Ela diz isso examinando as polaroides. Os joelhos bombeiam e os peitos
quicam, mas os olhos se mantêm fixos numa só fotografia. Um jovem
semeador de carpete. Número 72. Mesmos olhos que ela, mesma boca. Que
bom. Não parece alguém que arrancaria o seu mamilo com uma dentada.
De minha parte, tentei organizar a suruba como Messalina faria,
espalhando ao máximo os mexedores de iogurte feiosos, os alisadores de
osso velhos e obesos, os manobristas de glândulas sujos e deformados. Um
monstro inserido a cada oito ou dez punheteiros comuns.
— Este aqui é quente. — Cassie Wright meneia a cabeça diante de um
rosto conhecido, o piloto de peru de número 137. Um canastrão televisivo
já acabado, procurando espalhar molho de bebê.
Algo novo incha sob a lycra preta na virilha de Cassie. O calombo vai
descendo pela perna e aparece sob o elástico, verde e brilhante. Rola pela
calçada e some num bueiro, chacoalhando feito uma bola de fliperama
pelos canos metálicos na escuridão.
— Puta que pariu. — Cassie viu o troço sumir. — Essa era de jade
autêntica.
Nós duas abaixamos a cabeça para examinar a grade de ferro do bueiro.
Eu conto que Aristóteles costumava escrever sobre filosofia segurando uma
pesada bola de ferro na outra mão. Quando ele começava a adormecer, seus
dedos relaxavam, e a bola caía no chão. O estrondo fazia Aristóteles
acordar, e ele continuava a trabalhar.
— Aristóteles? — diz Cassie, erguendo o olhar do bueiro para mim.
É, digo. Fato real.
Cassie estreita os olhos.
— O sujeito que casou com a Jackie O?
É, digo. Depois viro a folha de plástico transparente no fichário e mostro
a ela mais seis candidatos.
Cassie conta que o famoso amante Casanova costumava enfiar duas bolas
de prata dentro das damas que namorava. Ele alegava que a prata evitava a
gravidez, porque era um pouco venenosa. Era a mesma razão que levava as
pessoas a comer com talheres de prata: matar bactérias.
São pesos vaginais, como ela diz. Alguns têm sinetas dentro. Outros têm
o formato de ovos de galinhas. Podem ser usados enquanto a pessoa corre,
anda de bicicleta ou faz tarefas domésticas.
Ainda correndo e jogando a pedra de uma mão para a outra, sempre com
um estalo sonoro, Cassie diz:
— Eu só detesto correr quando chacoalho, porque fico parecendo uma
lata de tinta.
A pedra chega à outra mão de Cassie, ressoando feito uma palma.
Eu viro outra página no meu fichário de três argolas. Mais um lote de seis
candidatos.
— Grande Branch Bacardi — diz Cassie, diante do esfregador de
espingarda número 600. Depois lança o olhar para o distante horizonte do
gramado verde, onde o cachorro desapareceu. — Terry, o tal cairn terrier
que fez o Toto em O mágico de Oz... Você sabia que aquele vira-lata
continua zanzando por aí?
Quando o cachorro morreu, seus donos empalharam o corpo. Em 1996,
Toto foi leiloado por oito mil dólares.
Fato real.
— Toto nem sequer era macho. Terry era fêmea — continua Cassie. —
Mesmo morta, aquela garota ainda rende dinheiro para o pessoal.
Uma coisa redonda e pesada já está deslizando lentamente pela perna do
short dela.
13

Sr. 600

A tal da Sheila solta um berro, mandando todo mundo calar a boca.


Depois confere as folhas de chamada e diz:
— Número 21... preciso do número 21...
Ninguém respira, com dedos cruzados e orelhas esticadas para ouvir os
números.
— Número 283 e número 544 — chama Sheila, conferindo a prancheta.
Ela acena com a mão, chamando os caras para irem amas dela até o cenário.
— Por aqui, pessoal.
Nos monitores, vemos Cassie Wright de combinação branca,
interpretando uma frustrada beldade sulista, desesperada para se encaixar na
abastada família rural do marido. O sujeito é um ex-jogador de beisebol
semiprofissional que bebe demais e que não afoga o ganso em Cassie há
tanto tempo que ela já tem medo que ele seja bicha. Cassie está nervosa
com seu sogro, chamado Papaizão, além de seus sobrinhos e suas sobrinhas,
que ela chama de monstrinhos sem pescoço. Esfregando as mãos nos
quadris de cetim branco, ela diz:
— Eu me sinto... eu me sinto uma xota num telhado de zinco quente.
Mais tarde o filme foi relançado como Vadia em teto de zinco quente.
Mais tarde ainda, relançado como Xota em teto de zinco quente.
Cord interpreta o marido possivelmente bicha. Sentado numa cadeira de
rodas, ele diz:
— Então pule para cá, Maggie! Pule para cá!
Só que ninguém está vendo. Estamos todos com o olhar aguçado para
Sheila e os três caras, esperando que eles cheguem ao topo da escada. Lá
Sheila passa o cartão magnético, e a porta do estúdio se abre com um
estalido. Todos nós erguemos a mão espalmada para bloquear o clarão
formado por todos os refletores do cenário, tão forte que dói nos olhos.
Mesmo assim, os caras olham. A lateral de todos os rostos se ilumina de
branco quando os vultos escuros de Sheila e os três caras se fundem,
desaparecendo no clarão de luz.
Os caras continuam esperando, cegos feito toupeiras, mas ainda
estreitando os olhos e espiando através das pestanas. Não conseguimos
enxergar coisa alguma, além de pele branca sobre lençóis brancos, cabelo
louro-branco e unhas brancas. Tudo isso esmaece sob uma luz vívida,
quente e branca. Há cheiro de alvejante, amônia e algum detergente. E uma
forte rajada de ar-refrigerado.
Nesse clarão, tanto a cruz que o garoto usa quanto o medalhão que
ganhei de Cassie cintilam e refulgem, por um átimo, aquecidos pela luz
refletida.
Os olhos dos caras começam a se adaptar, e a porta já está se fechando.
Fechada. O porão em que estamos esperando já tem o piso grudento devido
às gotas de refrigerante e migalhas de batata frita derramadas que colam nos
pés descalços dos caras, mas fica muito mais escuro depois dessa olhadela.
A espiadela que damos no nada brilhante nos deixa cegos.
Fico mexendo no cordão do medalhão que Cassie me deu e dizendo algo
para o cara da televisão com o urso de pelúcia.
E o Garoto 72 aparece do meu lado, pedindo para conversar.
— Não com você — diz ele para o Cara 137. Depois fica mexendo num
troço pendurado numa corrente em torno do pescoço. É uma cruz de prata,
uma espécie de crucifixo. — Preciso perguntar uma coisa ao Branch.
Aposto que o cara da televisão, o Número 137, tem sangue sujo correndo
no corpo. Ele dá de ombros e se afasta, mas não muito: só alguns passos.
Eu meto o dedo na cara do garoto.
— Cara, você veio aqui ajudar ou castigar a sua velha?
Com os lábios tremendo, o garoto diz:
— Vim aqui salvar a Cassie.
As gatas do nosso ramo não fazem controle de natalidade porque a pílula
pode causar erupções na pele, ou deixar os cabelos oleosos e ralos.
Ninguém quer ter diafragmas ou esponjas dentro do corpo, se está escalada
com uma dupla de paus profissionais como Cord. Beam ou eu mesmo.
Nenhuma gata vai aceitar penetração dupla com um pedaço de arame
enfiado centro dela, explico ao garoto. Não é metade impossível que ele
seja filho de Cassie Wright.
— Ela fez com que eu fosse adotado — diz ele. — Tentou me dar uma
vida melhor. Eu só quero retribuir esse favor.
— Como? Invadindo o estúdio?
— Se for preciso. — O garoto ergue o queixo para mim.
Invadindo o estúdio e constrangendo Cassie, quando ela está concentrada
em estabelecer um recorde mundial que ressuscitará sua carreira?
Constrangendo Cassie diante da equipe e de todos os seus colegas
profissionais?
— Garoto, não faça esse tipo de favor a ela — digo.
Parados ali, os quatrocentos ou quinhentos caras ficam só deslocando o
peso de um pé para o outro, e olhando para os monitores pendurados no
teto. Nas telas, Cassie Wright está montada no pau de Cord Cuervo, que
continua na cadeira de rodas. Ela apoia um dos braços no gesso falso da
perna quebrada dele. O fato de ninguém ter ido embora só comprova o que
os homens são capazes de suportar em troca de uma trepada. Se existisse
uma bela xoxota grátis no topo do Everest ou da Lua, já teríamos construído
um elevador de alta velocidade. E haveria voos espaciais de ida e volta a
cada dez minutos.
Eu meneio a cabeça para a escada, a porta trancada, as luzes e o cenário
lá atrás, dizendo:
— Garoto, acredite ou não... aquela mulher lá em cima não quer ser
salva.
— Eu sabia que você não entenderia — o garoto rebate.
As folhas e as pétalas das flores que ele está segurando já ficaram
murchas e escuras.
O garoto conta que, quando era criança, encontrou na internet a foto de
uma mulher mais do que bonita e ficou viciado em navegar todo dia depois
da aula a fim de olhar para ela. Na foto ela estava nua, brincando de lutar
com alguns super-heróis musculosos também nus. As partes íntimas deles
apareciam, mas todos tentavam esconder tudo dentro uns dos outros. Era
uma espécie de pique esconde. O garoto descobriu na borda inferior da foto
as letras do nome da mulher, que diziam “Cassie Wright”. Ele digitou as
letras na internet e apareceu um monte de outras fotos dela nua. Eram fotos
e videoclipes: um milhão de zilhão de resultados para o garoto rastrear.
— Cara, o critério jurídico é instâncias de sexo — digo. Depois falo que
ele pode revelar seus sentimentos para Cassie, dizendo “Obrigado, mamãe”.
Contar seu amor por ela. Mas será que não dá para enfiar um dedo lá dentro
ao mesmo tempo? Talvez, ao abraçar Cassie, seu mindinho entre no cu dela
por acidente. — Assim, cara, todo mundo sai ganhando.
O garoto só abana a cabeça, dizendo que cresceu com as fotos de Cassie,
caçando os filmes dela, descobrindo tudo sobre ela. Na puberdade, a
obsessão só piorou.
— Cara, não seja tão egoísta. Hoje é o grande dia dela — digo.
O garoto diz que foi bater umazinha uma tarde e esqueceu de trancar a
porta. Sua mãe adotiva deve ter chegado mais cedo do trabalho, porque
entrou no quarto e começou a berrar. Pegou o garoto no ato.
— Em flagrante, cara? — pergunto.
— Não, batendo umazinha — diz o Garoto 72.
A mãe adotiva do garoto começa a berrar, perguntando se ele sabe quem
é aquela mulher. O garoto sabe com quem anda fantasiando? Tem alguma
ideia ou noção da identidade daquela vadia? O garoto fica lá, com o pinto
na mão e uma imagem de Cassie Wright arreganhada no monitor, enquanto
a mãe adotiva continua sua arenga.
— Cara... — eu falo.
— Ela ficou berrando — contou o garoto. — Ficou urrando: “Essa é a
sua mãe natural...”
A mãe adotiva berra que ele está batendo bronha diante de fotos do que
provavelmente foi a sua própria concepção.
— Cara, se a Cassie não for comida por seiscentos caras hoje, ela está
fodida — eu comento.
— Mas eu não consigo. — O Garoto 72 mexe na cruz de prata. — Se eu
conversasse com ela primeiro, talvez conseguisse. Depois que minha mãe
adotiva falou o que falou, contando a verdade, eu nunca mais consegui...
O garoto baixa o olhar para as flores murchas e caídas.
Eu ergo o braço bem alto no ar, estalo os dedos e lanço a voz em direção
ao cara da televisão.
— Cara do urso de pelúcia, temos uma emergência aqui. O garoto precisa
de uma pílula, ou ninguém vai ficar famoso hoje.
Uma lâmpada se acende no alto e bem para o lado. A porta no topo da
escada se abre e um vulto escuro aparece em silhueta, dizendo:
— Pessoal, preciso dos seguintes números...
Com a mão no ar, eu continuo estalando os dedos, acenando em busca de
ajuda para nós.
14

Sr. 72

A versão que eu contei para Branch Bacardi estava incompleta. Não era
nem metade da história. Quando baixei os clipes de Cassie Wright pela
primeira vez, eu queria que ela estivesse, sei lá, tricotando alguma coisa,
cozinhando algo numa panela no fogão, ou simplesmente lendo um livro
numa cadeira ao lado de um abajur numa sala agradável, sem litros de porra
quente por cima do corpo.
Nos grupos de discussão da internet, os fãs postam detalhes sobre todas
as verrugas, pestanas ou marcas de batom de Cassie Wright. Alguns caras
dissecam cada boquete, como se fosse dever de casa extra na faculdade, sei
lá. Cassie nasceu em Missoula, no estado de Montana. Seus pais se chamam
Alvin e Lenni Wright. Moram em Great Falls atualmente. E, sim, há
dezenove anos Cassie teve um bebê que acabou sendo adotado.
Navegando pela Rede, eu procurava imagens de Cassie passando o
aspirador no carpete ou dirigindo um carro. Vestida, sem algo sendo enfiado
dentro do seu corpo.
Fiz encomendas de fotos ou vídeos desse tipo, enviando dinheiro, e nada
voltou. Mas o primeiro pacote que recebi foi uma vagina de bolso Cassie
Wright. Era uma versão numerada, de luxo, com edição limitada. Número
4.200. Com qualidade digna de um museu. Nova em folha. Suficientemente
pequena para ser carregada para a escola no bolso da minha calça jeans.
Com a mão esquerda, eu ia alisando as dobras e os pelos macios ali dentro.
Na aula de estudos modernos americanos, sentava na última fila com os
dedos cegos tateando em braille no fundo do bolso, até conhecer de cor
cada dobra e ruga que havia ali. Se alguém me perguntasse quais eram as
capitais dos estados de Wyoming ou Phoenix, eu daria de ombros. Caso
perguntassem qualquer coisa sobre as dobras da xota de Cassie Wright,
porém, eu desenharia um mapa completo.
Quando pressionado, o clitóris daquela vagina de bolso se projetava para
fora. Empurrado, voltava para dentro do capuz. Pressionado outra vez,
tornava a se projetar para fora. Eu podia fazer isso até meus dedos ficarem
em carne viva, quase sangrando. Dormia com o troço embaixo do
travesseiro.
Um dia o professor Harlan, da aula de dinâmica da ciência, estava
devolvendo trabalhos corrigidos quando notou os calos na ponta dos meus
dedos, que parecia rachada, com um tom rosa escuro. Ele perguntou se eu
estava aprendendo violão. Sei lá. Digamos que aquelas horas e semanas de
prazer constante também não andavam fazendo bem à vagina de Cassie
Wright.
Olhando para alguns dos seiscentos sujeitos reunidos aqui hoje, a
esperança é que o artigo verdadeiro seja um mais durável do que a versão
em látex. Quando a vagina começou a se esfacelar, eu fui entregar jornais,
economizando dinheiro até poder encomendar pelo correio uma réplica de
segunda mão, feita em látex, dos seios de Cassie. Meu dinheiro só dava
para comprar o esquerdo, mas qualquer um diria que era o melhor dos dois.
Obviamente, é grande demais para caber no meu bolso ou sob o travesseiro.
É grande demais para fazer qualquer coisa além de acumular poeira
embaixo da cama.
Então fui aparar gramados. Fui devolver garrafas vazias para o depósito.
Fui passear com cachorros. Fui lavar carros. Fui recolher folhas secas.
Essa parte não contei a Branch Bacardi. Como poderia?
Nos invernos, eu retirava neve. Limpava calhas negras e fedorentas com
as mãos desnudas. Lavava cães São Bernardo. Pendurava lâmpadas
natalinas e aparava sebes.
À noite, eu ficava apertando minha réplica de seio. Esfregava nos lábios
o mamilo poeirento. Lambia. Torcia o bico entre dois dedos até adormecer.
Eu trocava o óleo dos carrões com quatro portas e transmissão
automática das velhotas. Quem precisa de dinheiro para comprar uma
réplica de Cassie Wright, de realismo sexual completo, vira quase escravo
de toda velhota da cidade. Sei lá.
No Dia das Bruxas, eu recolhia donativos para o UNICEF, mas aquelas
crianças esfaimadas e cheias de vermes não viam um tostão dos trinta
dólares que o povo doava.
No dia que o embrulho marrom chegou pelo correio, minha mãe adotiva
ligou para mim na escola, perguntando se devia abrir a encomenda.
Digamos que eu entrei em pânico. Contei a pior mentira que um garoto
pode contar. Falei para ela: Não. Disse que aquilo era um presente... um
presente especial e secreto que encomendara para dar a ela no Natal.
Pelo telefone, ouvi minha mãe adotiva sacudir a caixa e dizer:
— É tão pesado. Espero que você não tenha gastado uma fortuna.
Que vergonha.
Falei para minha mãe adotiva que todo o trabalho que eu fazia, aparando
gramados, passeando com cachorros e lavando carros, era para poder
comprar o presente dos seus sonhos, porque ela era uma mãe maravilhosa,
amorosa e incrível.
Ao telefone, ela disse com voz derretida:
— Ah, Darin, você não devia ter...
Quando cheguei em casa, o pacote estava sobre a minha cama. Era mais
pesado do que eu esperava: entre um grande dicionário de biblioteca e um
São Bernardo. Minha mãe adotiva fora para o curso de decoração de bolos,
e meu pai adotivo estava trabalhando. Sem ninguém mais em casa, eu
desembrulhei a caixa. Lá dentro parecia haver uma múmia cor-de-rosa, toda
dobrada e amarrotada. A pele lembrava o couro enrugado de uma múmia da
revista National Geographic.
O leilão on-line vendia a coisa como sendo nova em folha, uma virgem,
mas a peruca loura fedia a cerveja, e o cabelo parecia fragmentado quando
esticado. A parte interna das coxas era grudenta. Os seios, oleosos. Na sola
de um dos pés, encontrei o tipo de bico que se vê em bolas de praia para
encher o corpo de ar.
Desenrolei o troço em cima da cama e comecei a soprar.
Enquanto eu soprava, os seios subiam, desciam e subiam. Eu soprava, e
algumas rugas se alisavam, mas depois voltavam. Fiquei soprando ar na
sola daquele pé até começar a ver relâmpagos diante dos olhos.
Neste instante, aqui e agora, enquanto espero meu número na suruba ser
chamado, a garota do cronômetro passa, e eu estendo a mão. Para fazer com
que ela pare, encosto os dedos na curva do seu cotovelo e pergunto se é
verdade o que Branch Bacardi está falando para os caras. Cassie Wright
pode morrer hoje?
— Embolia vaginal. — A garota olha para mim e baixa o olhar para as
folhas na prancheta. Ainda passando a caneta pela lista de nomes, ela faz
uma marca ao lado de um cara. Torcendo o braço, olha para o relógio no
pulso e faz uma marca ao lado do nome de outro cara. Depois fala que é
preciso um sopro de ar equivalente ao necessário para encher um balão, mas
devido à densidade da corrente sanguínea na região pélvica da mulher, é
possível criar uma bolha de ar dentro do seu sistema circulatório. — Se a
mulher estiver grávida, é até mais fácil.
Em um caso ocorrido em 2002, lembra ela, uma mulher da Virgínia
estava usando uma cenoura para se estimular e morreu de embolia, mas
qualquer coisa com um formato estranho pode prender o ar e formar um
bolsão dentro da corrente sanguínea. Outros casos documentados incluem
pilhas, velas e abóboras.
— Para não falar de sabonetes amarrados a cordas — acrescenta a garota.
A coisa pode acontecer em qualquer buraco, tanto na vagina quanto no
reto.
— Mais de novecentas mulheres morrem assim por ano em média — diz
ela.
Todas as vítimas morrem dentro de poucos segundos.
— Caso você precise de fatos e números, recomendo Manual definitivo
do Cunnilingus, de Violet Blue. Ou o artigo “Embolia gasosa venosa:
considerações clínicas e experimentais”, na edição de agosto de 1992 da
Critical Care Medicine. — A garota olha outra vez para o relógio. — Agora
se me der licença...
Sei lá... abóboras?
Tantos anos atrás, soprando ar dentro da minha réplica de Cassie Wright,
eu quase desmaiei antes de ouvir o silvo. Um leve e suave sussurro de ar
escapando.
Depois de encher a banheira e arrastar o vulto rosado pelo corredor até lá,
enfiei a réplica embaixo da água à procura das bolhas do vazamento.
Minhas mãos ficaram espalmadas sob a superfície, segurando o corpo
submerso, enquanto os cabelos louros flutuavam em torno do rosto e os
olhos olhavam fixamente para cima. Morta. Afogada.
As bolhas foram subindo pelos lados do pescoço. Bolhas delineavam os
mamilos e as dobras da xota. Eram largos buracos em forma de semicírculo
vazando ar. Marcas de dentes. Mordidas naquela pele rosada.
Como meu pai adotivo tinha um trem em miniatura, usava todo tipo de
plástico e cola que era possível encontrar. Eu espalhei a pele rosada sobre a
paisagem plástica de montanhas e aldeias dele. Depois fui salpicando
borracha, epóxi, esmalte de unha transparente e acetato, até fechar todas as
marcas de mordida.
No fundo da gaveta de roupas íntimas na cômoda da minha mãe adotiva,
peguei emprestada a camisola rendada que ela usara na lua de mel e que
vivia enterrada lá entre camadas de lenços de papel. Também peguei o colar
de pérolas que ela só usava para ir à igreja no Natal. Ao vestir a réplica, fui
dizendo todas as falas iniciais de todos os vídeos com Cassie Wright que eu
já vira. Escovando a peruca loura, falei:
— Ei, dona, você encomendou uma pizza?
Passando nela o batom de minha mãe adotiva.
— Ei, dona, parece que você está precisando de uma boa massagem nas
costas...
Borrifando perfume.
— Relaxe, dona, eu só estou aqui para examinar os seus canos...
Meu computador exibia uma cópia pirata de Primeira guerra da bacanal,
e tudo que Lloyd George ia fazendo eu também fazia. Puxei para baixo a
diminuta calcinha rosada. Soltei o sutiã. Tanto Lloyd quanto eu estávamos
mandando brasa quando os seios de Cassie foram de convexos para
côncavos. A essa altura, meu pau já batia no colchão. Ela estava vazando e
perdendo ar. Quanto mais depressa eu metia, mais achatada ela ficava,
passando de côncava a plana. O corpo encolhia e se enrugava embaixo de
mim, emagrecendo. Quanto mais eu metia, mais o rosto de Cassie Wright
despencava e sumia. Sua pele parecia frouxa, bojuda e folgada. A cada
movimento meu, ela envelhecia uma década, morrendo. Já morta, ia
apodrecendo enquanto eu me apressava cada vez mais, golpeando e
esfregando o colchão, já em carne viva devido ao ímpeto de gozar. Metendo
naquele fantasma rosado. Aquela silhueta assassinada no meio do meu
beliche.
Toda mulher morre dentro de poucos segundos.
Não ouvi a porta se abrir atrás de mim. Nem senti a corrente de ar na
minha bunda desnuda e suada. Só virei para trás ao ouvir a voz de minha
mãe adotiva. A camisola da sua lua de mel. Suas pérolas de Natal.
Lá no computador, Lloyd George estava gozando na lateral do lindo rosto
de Cassie Wright.
Lá atrás, minha mãe adotiva berra:
— Você tem ideia de quem é essa mulher?
E eu me viro, com o pau ainda duro: uma vara envolta em látex rosado,
balançando uma bandeira com a forma de Cassie Wright.
Minha mãe adotiva urra:
— É a sua mãe biológica.
Foi a última vez que meu pau ficou duro.
Não. Não cheguei a contar esta parte a Branch Bacardi.
15

Sr. 137

Na primeira oportunidade que tenho, vou até a coordenadora de elenco e


pergunto por que ela entende tanto de embolias vaginais. Quase mil vítimas
fatais por ano? Mortas por cenouras e pilhas que empurram o ar para dentro
dos corpos delas? Isso me parece um conjunto de fatos notavelmente
rarefeito para alguém acumular por acaso.
— Desculpe, mas não pude deixar de ouvir — digo a ela.
A coordenadora vai brandindo a esferográfica feito uma vara de condão
em direção a cada homem ainda aqui, enquanto articula silenciosamente
cada número... 27... 28... 29...
Depois escreve algo na prancheta e comenta:
— É por isso que a Cassie me paga tanta grana.
A coordenadora conta que é assistente pessoal, pesquisadora de projetos
e faz-tudo de Cassie Wright. Olhando para o relógio de pulso enquanto
rabisca uma espécie de equação numérica na página de cima, diz para mim:
— Ela me pediu para avaliar o risco.
Eu pergunto se é verdade que Cassie Wright teve uma criança, hoje já
adulta.
— É verdade. — A coordenadora ergue o olhar para mim. Há flocos
brancos grudados na gola rulê e nos ombros do seu suéter preto. Caspa. Ela
amarrou os lisos cabelos pretos num rabo de cavalo, mas alguns fios soltos
e escrespados exibem pontas rachadas.
Eu meneio a cabeça, inclinando o pescoço um pouco para o garoto
Número 72 e pergunto:
— É ele?
A coordenadora olha para lá, pisca e olha outra vez. Depois dá de
ombros.
— Ele com certeza dá a impressão de que pode ser...
Toda semana Cassie Wright recebe uma pilha de cartas enviadas por mil
rapazes diferentes, cada um convencido de que é o bebê que ela deu para
ser adotado. Uma das funções da coordenadora é abrir, separar e, às vezes,
responder essas cartas. Facilmente, 90% delas vêm desses candidatos a
filho. Todos imploram por um encontro. Apenas uma hora cara a cara, para
que cada garoto possa descrever seu amor por Cassie. Falar que ela sempre
foi sua única mãe verdadeira. O único amor que ele jamais poderá
substituir.
— Só que a Cassie não é idiota — diz a coordenadora.
Cassie Wright sabe que uma mulher, assim que se torna disponível para
um homem, sempre passa a ser tratada como propriedade dele. Talvez, no
primeiro encontro, ela seja amada pelo tal filho. No segundo, porém, ele
pedirá dinheiro a ela. No terceiro, pedirá um emprego, um carro e uma
dose. Ela será culpada por tudo que deu errado na vida dele. Será xingada e
todos os erros que já cometeu serão esfregados na sua cara. E ainda será
chamada de piranha se não lhe der tudo que ele quer.
— A Cassie sabe que o negócio não tem nada a ver com amor — explica
a coordenadora.
Os rapazes que escrevem pedem um encontro. No mês seguinte escrevem
outra vez, implorando. Depois ameaçando. Afirmam que só querem
descobrir seu histórico genético, qualquer predileção por doenças
hereditárias. Diabetes. Alzheimer. Alguns alegam que só querem agradecer
a Cassie pessoalmente por lhe dar uma vida melhor. Ou então querem exibir
suas realizações para que ela veja que agiu certo.
— A Cassie nunca respondeu uma só daquelas cartas — diz a
coordenadora.
É por isso que o maior público de Cassie Wright, a única parte do seu
público que ainda cresce, é formada por homens de 16 a 25 anos de idade.
Esse pessoal compra os filmes antigos, as relíquias plásticas de seios e
vaginas de bolso, mas não com fins eróticos. As réplicas infláveis e as peças
de lingerie assinadas são colecionadas como se fossem relíquias religiosas,
ou suvenires da mãe verdadeira, a tal mãe perfeita que eles nunca tiveram.
São partes de um Frankenstein, ou totens da mãe que eles passarão o resto
da vida tentando encontrar... para receber elogios suficientes, apoio
suficiente e amor suficiente.
— A Cassie sabe que jamais conseguiria suprir todas essas carências,
mesmo que encontrasse a criança — diz a coordenadora. Depois olha para
as letras na pele de lona branca de Mister Toto e pergunta: — Como você
conheceu a Celine Dion?
Lá em cima, os monitores exibem trechos de Uma gozada de mestre, em
que uma equipe internacional de ladrões de joias trama roubar de um museu
romano um bilhão em diamantes. Durante o golpe, Cassie Wright prejudica
a vigilância ao atrair os dois guardas para uma suruba a três com penetração
dupla. Logo que os alarmes do museu são acionados, com sirenes altas e
luzes piscantes, ela contrai o assoalho pélvico e a mandíbula. Assim, vira
um eficiente conjunto de algemas chinesas e prende os guardas dentro do
próprio corpo.
A coordenadora ergue no ar a esferográfica, para contar os homens ao
redor da sala, e diz:
— É por isso que a Cassie está filmando este projeto.
Culpa.
Culpa e vingança.
Cassie Wright sabe que este filme será o último do gênero,
principalmente se ela morrer. A vendagem será eterna. Mesmo que o filme
seja banido aqui, cópias serão vendidas pela internet. Cópias suficientes
para enriquecer o único herdeiro de Cassie Wright. Seu único filho.
— Para não falar no dinheiro do seguro de vida — prossegue a
coordenadora.
Esse é outro aspecto do projeto que ela pesquisou: as seguradoras não
excluem as mortes causadas por traumas em surubas na maioria das
apólices de seguro de vida. Pelo menos até agora. Até que seis das maiores
seguradoras tenham que desembolsar um total de dez milhões de dólares ao
único filho de Cassie Ellen Wright, devido a sua morte por embolia. Não,
Cassie não quis conhecer o filho. Para ela, essa relação era tão importante,
ideal e impossível quanto seria para ele. Cassie esperaria que o rapaz fosse
perfeito: inteligente e talentoso, tudo para compensar todos os erros que ela
cometera. Toda a confusão desperdiçada e infeliz da sua vida.
Esperaria que o rapaz tivesse por ela uma quantidade de amor que sabia
ser impossível.
Do outro lado da área de espera, o Ator 72 continua de pé, segurando as
rosas. Com a cabeça inclinada, seus olhos castanhos veem Cassie Wright
malocar vários milhões em diamantes frios como gelo no fundo de sua
boceta raspada.
— A Cassie queria deixar uma fortuna para o filho, mas queria que os
tribunais esclarecessem tudo com testes de DNA. — A coordenadora ergue
a prancheta na frente da metade do meu rosto, tapando um dos olhos. —
Você consegue enxergar com este olho?
Eu respondo que sim.
Ela desloca a prancheta, tapando meu outro olho e deslocando o
primeiro.
— E com este aqui?
Eu balanço a cabeça como quem diz sim. Consigo enxergar com os dois.
— Que bom — diz a coordenadora. O primeiro sinal de uma overdose de
Viagra é a perda de visão em um dos olhos. Parcialmente cego, você perde
a noção de profundidade. Ela olha em torno da área de espera, examinando
a multidão de homens alisando os paus semieretos ainda dentro das cuecas.
— Talvez seja por isso que a maioria de vocês escreveu 25 centímetros na
ficha de inscrição...
— E o pai? — pergunto. — Ele não vai receber parte da fortuna de
Cassie Wright?
A coordenadora abana a cabeça.
— A Cassie foi deserdada pela família há muitos anos.
— Estou falando do pai da criança.
— Quem, o puto tarado que jogou a Cassie nesse ramo horroroso? O
cagalhão vivo que deu Demerol e Drambuie para ela, depois instalou as
câmeras e fodeu com ela por todos os ângulos? — A coordenadora olha
para mim boquiaberta e abanando a cabeça. Ela revira os olhos. — Você
sabia que ele mandou pelo correio uma cópia anônima daquele primeiro
filme para os pais dela?
É por isso que eles expulsaram Cassie quando ela chegou em casa
grávida.
É por isso que para sobreviver Cassie precisou voltar de cabeça baixa
para o puto tarado e fazer mais filmes pornôs.
A coordenadora solta uma risada parecida com um latido.
— Por que ela deixaria algum dinheiro para ele?
Não, eu digo. Eu queria dizer “Quem?”
Quem foi esse homem, o pai do filho misterioso que está prestes a ficar
rico?
— O puto tarado? — pergunta a coordenadora.
Eu balanço a cabeça.
E já era até de se esperar... ela ergue uma das mãos e aponta com a
esferográfica diretamente para o outro lado da sala, onde está... Branch
Bacardi.
16

Sheila

Valeria Messalina, uma descendente de César Augusto, nasceu vinte anos


depois de Cristo e foi criada na corte do imperador Calígula. À guisa de
brincadeira, o imperador obrigou Messalina a se casar com um primo em
segundo grau, Cláudio, que era um idiota trinta anos mais velho que ela.
Quando os dois casaram, Messalina tinha dezoito anos; o noivo, quarenta e
oito. Três anos depois, Calígula foi assassinado, e Cláudio ascendeu ao
trono.
Segundo o historiador Tácito, ao se tornar imperatriz, Messalina passou a
foder com gladiadores, dançarinos e soldados. Quando era rejeitada por
alguém, mandava o sujeito ser executado por traição. Escravos ou
senadores, casados ou solteiros, se Messalina dizia que você era gostoso...
você tinha de comparecer.
Isso é que é causar ansiedade de desempenho em alguém.
A fim de limpar seu paladar dos garanhões e gatinhos, Messalina era
conhecida por procurar o homem mais feio do império. Fodia com ele como
se o sujeito fosse uma espécie de sorvete sexual.
Na época, a prostituta mais famosa de Roma se chamava Scylla, e ela foi
desafiada por Messalina para ver quem conseguia copular com o maior
número de homens numa só noite. Tácito registra que Scylla parou depois
do vigésimo quinto parceiro, mas que Messalina foi em frente e ganhou por
larga margem.
O historiador Juvenal registra que Messalina gostava de vadiar. Ela se
esgueirava para os prostíbulos, onde trabalhava sob o pseudônimo de
Lycisca. Ali pintava os mamilos reais com poeira dourada e vendia acesso à
aristocrática vagina que parira seu filho. Britânico, que provavelmente seria
o próximo imperador. Continuava trabalhando bem depois que as colegas
piranhas já haviam encerrado o expediente noturno.
Aos 28 anos, Messalina se juntou a Gaio Sílio e conspirou para assassinar
seu marido. No entanto, a trama foi revelada a Cláudio, que ordenou a
execução dela. Messalina rejeitou o suicídio, embora até sua mãe rogasse
que ela fizesse isso, pois seria a única maneira honrada de terminar a vida.
Os soldados romanos entraram à força no palácio, encontraram sua
imperatriz esperando no jardim e mataram Messalina ali mesmo.
Eu contei tudo isso a Cassie Wright no meu apartamento, enquanto
estávamos sentadas comendo pipoca e vendo Annabel Chong foder 251
propulsores de porra. Eram grupos de cinco. Cada grupo tinha dez minutos.
Molhadores de meias. Batedores de bronha. O cenário era uma recriação
histórica do desafio entre Messalina e Scylla, com colunas brancas,
chafarizes e estátuas romanas de mármore falso. A maior suruba do mundo.
Annabel Chong estudava gêneros sexuais na Universidade do Sul da
Califórnia, com uma média de 3.7, e este filme era seu tributo a Valeria
Messalina.
Fato real.
O vídeo pornô mais vendido de todos os tempos: uma lição de história
feminista, desperdiçada com incontáveis socadores de salsicha.
Vendo o filme, eu perguntei: Em que isso difere das Olimpíadas?
Depois perguntei: Por que uma mulher não pode usar seu corpo do jeito
que quiser?
E perguntei: Por que ainda estamos lutando a mesma batalha dois mil
anos mais tarde?
Nós duas estávamos comendo pipoca. Sem manteiga. Sem sal. Bebendo
refrigerantes dietéticos. Nosso anúncio convocando o elenco fora publicado
em dois ou três jornais, e virara notícia em alguns sites da internet. Os
bundões e pilotos de palma já estavam ligando para entrar na lista.
Nossos rostos cobertos por máscaras de abacate enriquecidas com
colágeno para reduzir os poros. Nossos cabelos penteados com creme e
enrolados em turbantes feitos de toalhas. A tigela de pipoca no meu sofá
entre nossos corpos envoltos em roupões felpudos. Cassie Wright comenta:
— Uma gata poderosa feito essa Messalina não deveria ter se deixado
matar por eles.
Poucos anos depois de ordenar a execução da esposa, o imperador
Cláudio enfiou uma pena na própria garganta. Era o ano 54 depois de
Cristo: ele comeu feito um porco num banquete, tentou vomitar para comer
mais e acabou morrendo sufocado pela tal pena.
Ouvindo isso enquanto via Annabel Chong ser fodida, foi Cassie Wright
quem mencionou o seguro de vida. Ela fez com que eu prometesse arranjar
uma apólice. E que eu jurasse, caso algo desse errado, que encontraria a tal
criança perdida e lhe entregaria o pagamento, além dos direitos sobre o
vídeo.
Ela ainda estava falando que queria deixar a tal criança rica quando eu
meti a mão entre as almofadas do sofá. Fui apalpando os grãos de milho e
as moedas até encontrar um papel lustroso.
Ali mesmo, entreguei a Cassie Wright a papelada de seis apólices. Só era
preciso a sua assinatura. Total de pagamentos em potencial: dez milhões.
Sem os óculos bifocais, Cassie Wright estreita os olhos diante da
papelada, enquanto sua máscara de abacate racha, esfarela e solta migalhas
verdes. Ela segura os papéis com o braço esticado e espia as letras miúdas.
— Você está sempre um passo à frente, não é mesmo?
Eu falo que é por isso que ela me paga tanta grana e meus dedos acham
uma esferográfica entre as almofadas do sofá.
— Essa gata imperatriz aí, a Messalina? — diz Cassie Wright, já
autografando as apólices de seguro e meneando a cabeça para o televisor.
— Devia simplesmente ter se matado...
17

Sr. 600

Um parceiro está falando ao celular quando surta. O parceiro penteia o


cabelo preto para trás com gel para cobrir a careca, revelando uma enorme
testa branca. Está tagarelando sobre o mercado de ações, preços de venda e
margens de reserva, quando Sheila ergue o olhar da prancheta que segura.
A fim de organizar nosso rebanho, ela berra:
— Pessoal, ouçam os números, por favor. Eu preciso de...
Todos os ouvidos viram e se inclinam para escutar. Alguns caras param
de mastigar os punhados de petiscos. Outros saem do banheiro com o pau
ainda na mão. Todos de olhos bem abertos, esperando as palavras. Alguns
caras assobiam pedindo silêncio, erguem a mão e gesticulam no ar para
fazer outros caras se aquietarem.
— Número 247... número 354... e número 72. — Sheila lança cada
palavra com o peso de uma gozada bem no olho de alguém. Depois ela
acena com a mão para a escada. — Esses três cavalheiros podem me seguir,
por favor...
O Número 72 é o possível filho de Cassie.
É então que o tal parceiro do celular surta. Primeiro, ele fecha o telefone
sobre o peito. O cara exibe uma raspagem modelo: aquela em que se coloca
a lâmina número um no aparelho e apara os pelos do peito, deixando todos
com meio centímetro de comprimento. Igual aos caras do Catálogo
Internacional de Homens, mas sem os músculos definidos.
— Espere um instante — diz o cara ao telefone. Depois joga a cabeça
para trás e berra para Sheila: — Isso aqui está uma bosta, garota! Você acha
que nós vamos esperar o dia todo para afogar o ganso numa baranga?
Já no meio da escada, Sheila vira e olha para trás, protegendo os olhos
com a mão a fim de enxergar o oceano de cabeças cabeludas dos caras.
Acima de nós, os monitores mostram um policial feio, diretor da Scottish
Yard ou da Interpol, lambendo Cassie Wright na traseira de um camburão.
Sua língua esbarra num diamante. Então ele vai puxando a longa fieira de
um colar para fora da xota dela. Como os diamantes são os seus melhores
amigos, Cassie está totalmente molhada.
O Garoto 72, o cara das rosas, surge junto ao meu cotovelo.
— O que eu faço?
Fode com ela, eu falo para ele.
— Não. — O garoto abana a cabeça. — Não com a minha mãe.
O tal parceiro exibe um bronzeado de San Diego nos braços e nas pernas.
Não é aquele rico tom caramelado de Mazatlán, nem o marrom seco e liso
de Las Vegas. Seu rosto e pescoço não mostram aqueles traços uniformes de
um bronzeado artificial, nem o tom profundo e amanteigado que se
encontra em Cancún ou Havaí. O cara está ali com um bronzeado barato, de
tanto fritar na praia em San Diego, e ainda tem coragem de berrar:
— Eu sou o Número 14 e tenho outros compromissos! Já deveria ter
saído daqui há horas!
Com o número “14” rabiscado no braço bege-marrom de San Diego, o
parceiro diz:
— Ficar nessa bosta aqui é pior do que esperar para fazer revisão no
carro...
Todos os outros caras se fingem de estátuas, imóveis, esperando para ver
o que acontece. Agora que o parceiro falou o que estava na cabeça de todo
mundo, estamos prontos para uma revolução. Os caras parecem preparados
para começar uma rebelião carcerária e subir correndo as tais escadas.
Sheila periga ver o estouro de uma boiada de paus duros.
Uma manada ensandecida rumo a Cassie Wright ou à saída.
O Garoto número 72 se vira para mim.
— Vou falar do amor que sinto por ela...
Vá em frente, eu falo para ele. Foda com o retorno da Mamãe. Seja um
garotinho carente. Arruine todo o trabalho duro, os planos e o treinamento
que a Mamãe investiu neste recorde mundial. Eu falo para ele: Faça isso.
— Você acha que eu devo foder com ela? — pergunta o Garoto 72.
Eu falo que a decisão é dele.
— Não posso foder com ela. Não consigo ficar de pau duro. — diz ele.
Sheila fica no meio da escada com os números 247 e 354, que já estão
sacudindo os paus, com as mãos enfiadas dentro do cós da cueca. Parada
ali, ela avisa:
— Peço, por favor, que todos tenham paciência. Pelo bem-estar da
Cassie, precisamos conduzir isto de forma calma e organizada.
O parceiro grita:
— Vão se foder!
Seus pés em tom marrom comum cruzam o piso de concreto até a pilha
de sacos de papel. Com as mãos bronzeadas em San Diego, ele pega o saco
marcado com o número “14”. Tira uma camisa, calças e meias. Além de
sapatos que parecem ser Armani, mas não são. Sua pele parece um couro de
boa qualidade.
Acima de nós, os monitores mostram o tal policial feioso enrabando
Cassie com tanta violência que diamantes, rubis e esmeraldas vão jorrando
da boceta dela, feito de uma máquina caça-níqueis.
O Garoto 72 se inclina para mim, com os lábios perto da minha orelha e
o queixo quase enganchado no meu ombro.
— Se você me der uma pílula, eu consigo.
Foder com ela? Eu pergunto. Ou correr escada acima, ganindo: “Eu amo
você, Mamãe, eu amo você, eu amo você, Mamãe, eu amo você...?”
O parceiro desamarrota uma camisa. Não é uma Brooks Brothers
autêntica. Nem mesmo uma Nordstrom. Ele enfia os braços nas mangas e
começa a abotoar a frente, alisando os punhos como se aquilo fosse seda de
verdade. Ou até 100% algodão. O parceiro levanta o colarinho e passa uma
gravata sem marca em torno do pescoço, dizendo:
— Foda-se o seu recorde mundial, garota. Fui.
Acima de nós os monitores mostram o tal cara feioso. Aposto que o seu
sub-bronzeado já tem dois anos: uma semana decente em Mazatlán com
nuvens nos dois últimos dias, e, alguns meses mais tarde, uma semana em
Scottsdale para manter o bronzeado; uma semana grelhando em Palm
Springs, um longo período desbotando e por fim uma semana em Palm
Desert para conseguir aquele acabamento seco e liso. Não é o bronzeado
liso feito cetim de Ibiza. Nem um daqueles bronzeados acobreados de bicha
que se consegue em Mykonos. O cara feioso no televisor ostenta um brilho
oleoso e espesso feito óleo de cozinha. Um bronzeado tão sensual quanto
uma fina camada de sujeira.
O Garoto 72 sibila no meu ouvido:
— Arranje uma pílula para mim.
Sheila continua parada ali, pagando para ver o blefe.
Todos os caras continuam esperando.
— Então, Branch... isso no seu medalhão é Demerol? — pergunta ao meu
lado outra voz. É o cara do urso de pelúcia, Número 137. — Você está
planejando um bis com a Cassie?
— Do que ele está falando? — quer saber o Garoto 72.
— Por que você não droga o seu filho? Já drogou a mãe dele... — diz o
Cara 137.
O parceiro está colocando no pulso um Rolex President espetacular. No
saco de papel pardo, ele pesca uma imitação ruim de um cinto Hugo Boss
que eu tenho pendurado no armário lá no meu apartamento.
Sheila olha para nós.
— Número 72... pode se juntar a nós, por gentileza?
O Garoto 72 sussurra:
— O que eu faço?
Eu falo para ele “Fode com ela”.
E o cara do urso de pelúcia completa:
— Obedeça ao seu pai.
— O que significa isso? — o Garoto 72 pergunta.
E eu dou de ombros.
O parceiro está colocando as abotoaduras, esticando ao máximo a tarefa,
porque as abotoaduras têm pelo menos nove quilates, mesmo nessa luz
fraca.
O tal garoto vira para o cara do urso de pelúcia, com o rosto reluzente de
suor e os olhos arregalados.
— Você pode me dar uma pílula?
O Cara 137 dá uma boa olhada no garoto, de cima a baixo. Depois sorri
feito um urso de pelúcia.
— O que você pode pagar por isso?
— Só tenho quinze contos na carteira.
Ainda observando Sheila, que continua olhando para o parceiro naquele
impasse, eu falo que o cara do urso de pelúcia não está a fim de dinheiro.
Pelo menos não de quinze contos.
— Então é quanto? Depressa — o garoto insiste.
Eu pergunto ao garoto se ele conhece o significado do termo
“boqueteiro”. E falo que é isso que o Cara 137 quer.
Ainda sorrindo e segurando o urso de pelúcia, o cara confirma:
— É isso que eu quero.
Acima de nós os monitores mostram uma penetração em close: o saco do
tal cara feioso é cheio de cicatrizes devido a uma eletrólise malfeita.
Parecem crateras lunares. Numa dúzia de monitores, aparecem seus dois
culhões tensionados pela explosão desastrosa do cu vermelho e enrugado do
cara.
O parceiro amarra os cordões dos sapatos.
— Vamos fazer silêncio, por favor... eu preciso pensar — berra Sheila,
ainda no meio da escada. Ela olha para a prancheta e para o Garoto 72.
Depois olha para o Número 14, já vestido e pronto para ir embora. Ela
acena com o polegar para o parceiro e com o indicador para o garoto.
— Número 14, venha comigo. Número 72, espere mais um pouco.
Todos os caras voltam a tagarelar, mastigar os petiscos, mijar e esquecer
de puxar a descarga. Os dedos se descruzam. Nos televisores, o cara feioso
está suando tanto que o bronzeador rola por suas bochechas formando
listras zebradas, revelando a pele seca, escamada e frita por baixo. Para
ninguém em particular, mostrando o cara derretendo no televisor, eu digo:
— Caras, vocês podem me fazer um favor? Se um dia eu ficar tão feio
assim, por favor, me matem.
Ao meu lado, parado um pouco atrás de mim, o Cara 137 diz:
— Essa foi por pouco...
— O que é um boqueteiro? — pergunta o Garoto 72.
— Do que você está falando, cara? — Cord Cuervo fecha o punho e dá
um soco leve no meu ombro. Como seu bronzeador gruda no meu, ele
precisa fazer força para descolar os dedos da minha pele. Depois diz: — Na
tevê? Aquele ali é você, cara. Tipo... cinco anos atrás.
18

Sr. 72

Branch Bacardi olha para os televisores pendurados no teto que exibem


filmes pornôs e fica dizendo:
— Não... puta que pariu, não pode ser...
Branch simplesmente para ali, olhando para os televisores e beliscando a
pele frouxa sob a mandíbula. Puxa e solta. Olha para o filme no televisor
enquanto alisa as bochechas, esticando a pele em direção às orelhas para
fazer as rugas em torno dos lábios desaparecerem.
— A porra do câmera me deixou com essa cara de merda — diz ele. Em
alguns pontos, a pele é tão enrugada quanto a minha réplica sexual de
plástico cor-de-rosa. Ele continua: — De jeito maneira eu estou esse lixo.
Foi a porra do iluminador.
O Sujeito 137, o tal que antigamente era Dan Banyan, ergue seu cachorro
autografado, encarando os botões que servem de olhos, e diz:
— Alguém está tão fora da realidade...
Às vezes, as manchetes daqueles jornais vendidos na saída dos
supermercados são verdadeiras, como as fofocas sobre o que fez o seriado
de Dan Banyan ser tirado do ar. As fofocas que eles publicaram eram reais.
— Eu estava esfaimado, era um ator esfaimado — explica o Sujeito 137,
o tal de Dan Banyan, com a cabeça inclinada para trás. Só que ele não está
olhando para os televisores. Em vez disso, está sorrindo para o teto. Rindo
para o nada lá em cima. — Se alguém consegue se identificar com o que
Cassie Wright está sentindo neste momento, esse alguém sou eu...
Nos televisores acima de nós, minha mãe está estrelando Uma gozada de
mestre, em que ela interpreta uma misteriosa mulher estrangeira que tenta
roubar as joias da coroa de algum país.
Branch Bacardi encolhe a barriga e endireita a coluna.
— Nesses vídeos de bosta, a resolução é um cu. Daria no mesmo se eles
tivessem filmado isso da porra de um satélite.
O Sujeito 137, o tal de Dan Banyan, chama isso de raiva.
— Eu tinha a sua idade. — Ele olha para mim. Depois respira fundo e
solta o ar devagar. Seus ombros se erguem até as orelhas. — A financeira
ficava me ligando, dizendo que ia tomar meu carro de volta. Só porque eu
atrasei dois meses no pagamento dos meus cartões de crédito, eles
aumentaram os juros para 30%.
Seus ombros baixam de forma que as mãos chegam quase até os joelhos,
e ele prossegue:
— Trinta por cento! Sobre um saldo de 25 mil, parecia que eu ia passar o
resto da vida pagando aquilo.
Então ele fez um filme pornô.
— Só é preciso um instante para estragar o resto da sua vida — diz ele.
Depois ele pergunta se eu conheço um filme chamado Três dias do
pornô. E diz:
— Bom, deu para pagar o carro. Não resolveu o saldo devedor do meu
cartão de crédito, mas eu consegui ficar com o carro.
Ele achava que ninguém ia ver aquele filme. Na época, sua carreira não
estava indo a lugar algum. Demorou dez anos para que ele tivesse sua
grande chance em Dan Banyan, detetive particular.
O tal filme vem pairando sobre sua cabeça desde então.
— Fazer um filme de suruba gay, só com homens, é um ato de
resignação. — Ele acena com uma das mãos e varre com o olhar metade da
sala. — Pouco importa o que você ou qualquer desses homens faça lá
dentro. Pode falar para Cassie Wright do seu amor por ela, pode foder com
ela ou fazer as duas coisas juntas... só não espere um dia ser confirmado
como membro da Suprema Corte.
Filme pornô, afirma ele, é uma coisa que a gente só aceita quando
abandona todas as esperanças.
Depois ele fala que metade dos sujeitos aqui dentro foi mandado pelos
agentes só para ganhar alguma exposição. Que a expectativa geral no ramo
de entretenimento é que Cassie Wright morra hoje, e todo candidato a ator
na cidade deseja usar a polêmica como trampolim.
— Aqui entre nós, garoto. — Ele aponta para mim e depois para o
próprio peito. — Quando um agente manda você foder com uma mulher
morta, pode ter certeza que a sua carreira está no buraco.
A certa distância, Branch Bacardi enfia os dedos na pele da barriga.
— Vocês acham que eu deveria fazer mais flexões de joelho?
Branch abre e vira as duas mãos, examinando ambos os lados.
— Existe uma tal de microdermoabrasão, que faz a pele ficar jovem outra
vez.
Ele agarra um punhado de pele acima do quadril.
— Talvez uma lipoaspiração não esteja fora de cogitação. Implantes nas
panturrilhas. Ou talvez aqueles implantes peitorais.
O Sujeito 137, o tal do Dan Banyan, ergue o cachorro cara a cara.
— Barganhando.
As telas dos monitores mostram uma cena antiga de Branch Bacardi
bimbando minha mãe por trás. Cada vez que ele tira e enfia a salsicha outra
vez, suas cansadas bolas de velho balançam, batendo naquela terra de
ninguém raspada, entre a xota e o cu da minha mãe.
O Sujeito 137, o tal do Dan Banyan, fala que o único truque para estrelar
um filme de suruba gay, só com homens, é realmente relaxar. Continuar
respirando fundo. Você precisa esquecer suas décadas e décadas de
treinamento na privada. Visualizar cachorrinhos e gatinhos. Ele fala que
você ajoelha na borda de uma cama, enquanto cinco sujeitos entram e
ferram seu rabo, dando duas bimbadas cada. Esses cinco gozam no seu
lombo. Depois entram mais cinco. Ele realmente não estava contando de
verdade e logo perdeu a conta. Ele tomou uma dose forte de um relaxante
muscular usado por veterinários, e isso ajudou bastante.
Minha mãe, no alto daquela escada, atrás daquela porta trancada,
embaixo de todas aquelas luzes brilhantes.
O Sujeito 137, o tal de Dan Banyan, olha outra vez para o teto e ri.
— É muito menos romântico do que pode parecer.
Até hoje, quando qualquer coisa é enfiada no seu rabo, ele sabe logo qual
é o tipo da camisinha. Borracha versus látex versus bexiga. Sem olhar, só
pela sensação, ele pode dizer até a cor do preservativo.
— Eu deveria fazer comerciais desses produtos — diz ele. — Poderia
excursionar como o “Cu vidente”...
Um boqueteiro, ele continua, é alguém cuja função é chupar ou alisar os
paus, garantindo que os caras estejam prontos para entrar em ação na deixa.
Não sei.
— A grande ironia é que a maioria dos homens que fizeram o filme
comigo era hétero — lembrou ele. — Só estavam ali pela grana.
Quando descobriu isso, diz ele, não se sentiu muito lisonjeado pela
atenção.
Nos televisores, minha mãe está pondo grandes diamantes falsos dentro
da boca, lambendo cada um. Os lábios e a xota que ela tem neste filme em
nada se parecem com o que eu tenho em casa. Os troços que encomendei
pela internet.
— Quem eu estou tentando enganar? — Branch Bacardi olha para o chão
e abana a cabeça. Depois olha para os pés e fecha os olhos.
— Desperdicei a dádiva preciosa da minha vida.
Tapando os olhos com a palma da mão em concha, Branch arremata:
— Joguei fora toda a minha vida preciosa... joguei minha vida fora como
se fosse uma punheta mal dada.
O Sujeito 137, o tal do Dan Banyan, vira a cabeça depressa e dá uma
olhadela para Branch Bacardi.
— Cristo! Saia dessa! Quer parar de bancar a Elizabeth Kübler-Ross na
nossa frente?
Quando tinha a minha idade, diz o Sujeito 137, o tal do Dan Banyan, ele
viu Cassie Wright em Primeira guerra da bacanal e talvez tenha visto até a
minha concepção. Enquanto ela encarava um soldado francês, um soldado
alemão e um recruta inglês, ele dizia para si mesmo: “Cacete, bem que eu
gostaria de ser popular assim...”
Em todos os testes de elenco, porém, ele era apenas mais um jovem num
mar de outros jovens. Fossem comerciais de tevê ou longas-metragens, ele
nunca era chamado novamente. Os produtores de elenco já falavam que ele
era velho demais antes de chegar aos 21 anos de idade. A única coisa que
lhe restava fazer era comprar uma passagem de ônibus de volta para
Oklahoma.
Ele inclina o frasco de pílulas até uma rolar para a palma da sua outra
mão. Ele olha o comprimido.
— Meu agente acha que ser visto neste projeto vai me “denunciar” como
secretamente hétero. Ele está apostando em bissexual, pelo menos.
Ele fica olhando para a pílula azul na palma da sua mão. Sob a pele do
rosto, veias inchadas cruzam a testa vermelho-escura. Enquanto o rosto vai
assumindo o tom arroxeado de carne moída, as veias tremelicam e pulsam
logo abaixo da pele.
Seu agente já tem um comunicado à imprensa pronto para ser distribuído.
A manchete no topo diz: “Dan Banyan sai por cima!” Embaixo disso, o
texto fala da recente morte trágica de uma das maiores estrelas de filmes
adultos do país. A maior parte do resto traz o Sujeito 137, o tal Dan
Banyan, negando oficialmente os rumores de que sua rígida salsicha maciça
e seu ritmo de penetração incansavelmente animalesco tenham sido
responsáveis pela morte da minha mãe.
Ele estende a mão mostrando a pílula para mim. Fala que eu posso pegar
se quiser. De graça. Não tenho que pagar boquete para ele, nada.
Branch Bacardi está mexendo no colar em torno do seu pescoço, abrindo
o tal medalhão e espiando lá dentro.
Eu já vi esse medalhão pendurado no pescoço de minha mãe em As
bronhas de Madison. Branch está usando o colar de Cassie Wright.
— Basta um erro, e nada mais que você fizer terá importância — diz o
Sujeito 137, o tal do Dan Banyan, segurando minha mão nas suas, que estão
vazias. Seus dedos parecem quentes, até febris, e pulsam com as batidas do
seu coração. Ele vira minha palma para cima. — Por mais duro que você
trabalhe e por mais inteligente que se torne, sempre será conhecido por
aquela decisão errada.
Depois ele coloca a pílula azul na minha palma.
— Se você fizer essa única coisa errada, passará o resto da vida morto.
Branch Bacardi está olhando para uma pílula dentro do medalhão da
minha mãe.
— É bom alguém morrer hoje — diz o Sujeito 137, o tal do Dan Banyan.
— Se não, vou ter de voltar para Oklahoma.
Então ele fecha meus dedos, com a pequena pílula azul lá dentro.
19

Sr. 137

A última vez que eu vi Oklahoma é a última vez que eu quero ver


Oklahoma. Imagine um grande círculo de céu azul, encontrando a terra e
circundando você inteiramente. A terra e as rochas se estendem até o
horizonte. Terra, rochas, o sol sempre alto e o tradicional apito de cidade
pequena assinalando a metade do dia, vindo do corpo de bombeiros
formado por voluntários. Terra, rochas e meu querido pai, um homem
simples e de bom coração, indo comigo esperar o ônibus interestadual que
me levaria para as tentações da perversa cidade grande.
Conversando com a coordenadora de elenco, eu digo que, se o estado de
Oklahoma tivesse qualquer semelhança com o musical, eu ainda moraria lá.
Caubóis sapateando nas plataformas ferroviárias. Gloria Grahame. Camelôs
ciganos. Elaboradas sequências de sonho coreografadas por Martha
Graham.
Inclinando o corpo à frente, eu tiro com a ponta dos dedos um floco de
caspa especialmente feioso do suéter preto da coordenadora. Pela sensação,
é uma mistura de 50% de acrílico e 50% de algodão, com mangas raglã e
gola volumosa. Malha canelada. Cheio de fios soltos. Pavoroso. E eu dou
um peteleco no floco sebento.
No dorso de Mister Toto, ao lado do autógrafo falso de Gloria Grahame,
está escrito: “Que garota poderia dizer ‘Não’ para você?!”
Vendo o floco branco descrever um arco e desaparecer na luz trêmula dos
monitores, a coordenadora diz:
— Eu uso o xampu dela...
Ela meneia a cabeça para o filme exibido na tela acima de nós, em que
Cassie Wright está presa num antiutópico futuro de ficção científica.
Segundo a premissa da trama, a guerra e os resíduos tóxicos mataram todas
as outras deusas sexuais, exceto ela. Como a última gostosa sobrevivente,
Cassie precisa usar calcinha fio dental, um sutiã reforçado e saltos altos,
além de foder ou chupar todos os integrantes de um governo maligno,
fascista, semirreligioso, teocrático e inspirado no Antigo Testamento. O
filme se chama O conto do rala.
Um clássico pornô em termos de crítica social.
— Foi assim que eu consegui este emprego — lembra a coordenadora. —
Durante a entrevista, a Cassie sentiu o cheiro do meu cabelo.
Eu também, digo eu, tocando os fios trespassados sobre meu couro
cabeludo.
— Eu meio que adivinhei. — Ela franze a testa. — Ou isso, ou você está
fazendo quimioterapia, ou tem uma doença terrível e fatal.
Não, eu respondo. É só o xampu.
— Engano seu — corrige ela.
Tá legal, digo eu, talvez eu tenha dado o rabo para um exército de
desconhecidos numa fita de suruba que é melhor esquecer, mas não tenho
nenhuma doença terrível. Ela pode desenterrar meu atestado de DST no
meio da papelada na sua prancheta.
— Não. — A coordenadora lê os nomes e dizeres rabiscados na pele de
lona branca de Mister Toto. — Não foi Martha Graham. Foi Agnes de
Mille.
No dorso de Mister Toto, eu escrevi o autógrafo dela com um “l” só.
“Agnes de Mile”. Assim eu próprio me denuncio.
Tudo bem, eu falo para ela. Passei a vida me enganando sobre quase
tudo.
É melhor vocês acreditarem que eu não contei a eles toda a história sobre
mim, meu adorado pai e toda aquela bela planície de Oklahoma, que se
estende até onde a vista pode alcançar. Não, vocês podem perguntar, mas eu
estou me guardando para Charlie Rose. Barbara Walters. Larry King. Ou
Oprah Winfrey. Ninguém, com exceção de um deus do universo de
programas de entrevistas, vai dissecar minhas partes íntimas.
Enquanto esperava o tal ônibus interestadual, meu pai me falou para
escrever. Assim que eu me acomodasse na Califórnia, deveria enviar um
cartão-postal a eles, dizendo para onde ele e minha mãe poderiam mandar
minha correspondência. É claro que ele também me mandou telefonar e até
a cobrar se fosse preciso. E imediatamente, assim que eu chegasse a Los
Angeles, para que minha mãe ficasse despreocupada.
Pais. Mães. Com toda a sua devoção e atenção. Eles fodem conosco,
todas as vezes.
A coordenadora de elenco fica imóvel, com os ombros para trás, a fim de
que eu tire os alvos flocos sebentos do seu suéter. Diminutas imagens de
Cassie Wright surgem refletidas nos olhos dela. Como última gostosa no
futuro de ficção científica, Cassie só pode sair em público usando uma capa
folgada e um chapéu largo. É quase um hábito de freira, só que vermelho.
Uma voz diz:
— Obrigue esse cara a usar camisinha, Sheila.
É a voz de um homem. Branch Bacardi está parado ao nosso lado,
puxando o estômago para trás até encostar na espinha. Sua pele, porém,
continua caída sobre o cós elástico do calção de boxeador de cetim
vermelho.
Sheila não diz nem uma única palavra. Sequer olha para ele.
Bacardi aponta o polegar para mim.
— Você está procurando na freguesia errada, meu bem.
Depois ele cruza os braços sobre o peito raspado. Sorri, passando a
língua sobre os dentes superiores, dá uma piscadela e diz:
— Mas se quiser bebês dentro de você, eu sou o cara.
O pavoroso suéter preto da coordenadora de elenco, feito de algodão e
malha, estremece. Os ombros tremem e os olhos fecham quando ela acusa.
— Estuprador.
Lá em Oklahoma, minha formatura de ensino médio foi no sábado à
noite, e o resto aconteceu na manhã de segunda. Um minuto eu estava
atravessando o campo de futebol, de beca e capelo, para receber meu
diploma do diretor Frank Reynolds. No minuto seguinte, estou parado junto
à minha mala, um presente de formatura encomendado pelo correio. Tanto
meu pai quanto eu aguçamos o olhar estrada abaixo. Procurando o tal
ônibus, meu pai diz:
— Escreva se conhecer alguma garota especial.
Cerca de dois flocos de caspa depois de Branch Bacardi se afastar, a
coordenadora de elenco me conta:
— Ele pressionou para que ela fizesse um aborto. Falou que arcaria com
o custo. Disse que um bebê arruinaria os peitos de Cassie e acabaria com a
carreira dela no cinema.
A coordenadora diz que precisa recolher os sacos de papel pardo dos três
sujeitos que estão com Cassie Wright no cenário. Precisa levar as roupas e
os sapatos para eles.
Do outro lado da sala, o jovem ator olha para a pílula que segura na
palma da mão.
Só para provocar, eu pergunto por que nós nunca revemos quem é
chamado ao cenário. É um filme snuff sobre alguma aranha viúva negra
compulsiva? Alguém no cenário mata cada um dos seiscentos atores no
momento seguinte à ejaculação?
É só brincadeira, quero dizer.
Mas a coordenadora fica simplesmente olhando para mim durante dois
ou três flocos de caspa, tirados pela ponta dos meus dedos e lançados a
distância com petelecos. Quatro, cinco, seis flocos mais tarde, ela diz:
— Pois é. Na realidade, isto é um plano requintado para roubar roupas
masculinas usadas...
Catando flocos brancos, eu pergunto à coordenadora por que ela
simplesmente não renumera um ator e faz com que ele passe pelo cenário
várias vezes. Seria possível filmar apenas o braço do sujeito, cada vez com
um número diferente. Assim, o rapaz de número 72 poderia ir embora. A
produção não precisaria manter todos presos e felizes aqui dentro.
A coordenadora segura a prancheta com uma só mão, apoiando a borda
inferior na barriga, e com a outra solta da garra a caneta preta com ponta de
feltro. Ela agita a caneta ao lado do rosto, junto aos olhos.
— Essa tinta é indelével.
Naquela manhã de segunda-feira lá em Oklahoma, aguçando o olhar a
distância sob o sol, com os olhos marejados devido ao cheiro que sai do
asfalto quente, meu pai me aconselha:
— Você sabe, não sabe? Quer dizer... quando estiver com uma garota...
precisa se proteger...
Eu disse a ele que sabia. Eu sei.
— Já fez isso?
Usar camisinha?, perguntei. Ou estar com uma garota?
Ele riu, dando um tapa na perna e levantando poeira da calça jeans.
— Por que outra razão você usaria camisinha se não estivesse com uma
garota?
Oklahoma nos rodeava, e o mundo se estendia a partir do ponto onde
estávamos parados, no cascalho do acostamento. Só nós dois. Eu falei para
o meu pai que jamais conheceria a garota certa.
— Não fale assim. — Ele ainda olha para o horizonte. — Você só precisa
se encorajar mais um pouco.
A tinta daquela caneta preta, explica a coordenadora, não pode ser
lavada. Não pode ser apagada. Depois que ela escreve um número em você,
aquilo vira uma tatuagem permanente, que dura tanto quanto um sabonete
novo no seu banheiro.
Enfiando a caneta de volta sob a garra da prancheta, ela conclui:
— Espero que você tenha muitas camisas de manga comprida.
As rochas e o sol. O ônibus interestadual que não chega. Todas as minhas
roupas dobradas e enfiadas na mala. Eu deveria ter calado a boca. Deveria
ter mudado o assunto da conversa, falando da previsão do tempo ou do
preço por atacado do trigo de inverno. Nós poderíamos ter ficado o dia rodo
falando da sra. Wellton, que administra a agência do correio, e seu intestino
espasmódico. Outro tema bom para um diálogo seria a comparação entre os
tratores da Massey e da John Deere, com uma breve troca de palavras sobre
a umidade do último verão. Nós dois estaríamos muito mais felizes hoje em
dia.
O ônibus interestadual continuava escondido sob a linha do horizonte.
Mas já era até de se esperar... eu fodi com tudo. Dez minutos antes de
partir, contei para meu pai que era um Oklahomo.
Conversando com a coordenadora de elenco, eu engulo outra pílula. O
suor desliza pela minha testa até as sobrancelhas, e das têmporas para as
bochechas. Gotas de suor pendem dos lóbulos das minhas orelhas. As gotas
caem, deixando pontos escuros ao redor dos meus pés. A pele do meu
pescoço arde de calor.
— Largue essas pílulas. — A coordenadora de elenco aconselha. — Você
não parece muito saudável.
Eu falo para ela que não estou doente.
O ônibus ainda não chegou quando meu pai diz:
— É um mal-entendido você achar que é assim.
Depois ele cospe no cascalho poeirento do acostamento.
— É por causa de uma maldade que fizeram quando você era pequeno.
Alguém me enrabou.
E eu pergunto: “Quem?”
— Você não precisa saber o nome — diz meu pai. — Só precisa saber
que não é uma coisa tão natural quanto você pensa que é.
Eu perguntei: “Quem me enrabou?”
Meu pai só abanou a cabeça.
Então é mentira, eu falo. Ele está mentindo, com esperança de que eu
mude. Está inventando uma história para me confundir. Inventando um
motivo para me impedir de ser feliz do jeito que eu sou. Ninguém por estas
bandas molesta crianças.
Mas ele só abana a cabeça.
— Não é mentira. Quisera eu que fosse.
O ônibus ainda não chega.
— Relaxe, cara — diz uma voz. É Branch Bacardi, aqui no porão. — Se
você morrer lá dentro por causa de um derrame ou um enfarte, eles
simplesmente vão rolar seu corpo de costas, mandando a Cassie fazer uma
vaqueira invertida no seu pau duro e morto.
Já se afastando, Branch completa:
— O dia de hoje não passa de uma loteria.
Catando flocos brancos no suéter da coordenadora, falo de uma
possibilidade sinistra: talvez eu tenha deixado cinquenta ou mais
desconhecidos me enrabarem só para provar que meu pai estava errado...
Meu pior temor é ter sido fodido pelo equivalente a cinco equipes de
beisebol só para provar que meu pai não era um tarado.
Na mesma fração de segundo que o ônibus surgiu no horizonte, meu pai
disse:
— Você precisa confiar em mim.
Eu falo que ele está mentindo. Meus joelhos se dobram para que minha
mão alcance a alça da mala. Depois minhas pernas se endireitam. Minha
boca diz que ele está mentindo para tentar me manter hétero.
O ônibus fica maior a cada palavra.
— Você acreditaria se eu contasse quem fez isso? — ele oferece.
Quem me enrabou quando eu era bebê.
Minha outra mão, segurando a passagem de ônibus, treme.
O ônibus já está quase chegando. Nesse último momento da nossa
conversa em Oklahoma, meu pai confessa:
— Fui eu.
Foi ele que me enrabou.
Conversando com a coordenadora de elenco, enquanto arranco flocos do
seu suéter, sem querer eu enfio entre os lábios um pedaço de caspa, em vez
de uma pílula. Sua pele morta parece coberta de gordura ou cera. Eu cuspo
o troço fora.
Acima de nós nos monitores, Cassie Wright rasga seu hábito de freira de
ficção científica em longas faixas, que ela começa a trançar com sutiãs e
calcinhas rosadas e amarelas, em tons pastéis, formando uma corda para
fugir pela janela.
Eu pergunto à coordenadora se posso catar os flocos no seu cabelo.
E a coordenadora dá de ombros e diz:
— Só os que estiverem aparecendo...
Lá em Oklahoma, o ônibus interestadual para diante de nós: eu e meu
pai, no planalto central do nosso estado. Ele diz:
— Foi um erro cometido uma única vez, menino. Não faça isso durar o
resto da sua vida.
Os freios pneumáticos são acionados. A porta metálica se abre. Três
degraus, e meus pés estão a bordo. Minha mão entrega a passagem para o
motorista. Meus lábios indicam meu destino:
— Los Angeles.
Lá embaixo, meu pai pede:
— Escreva como você prometeu. Não viva o que não é culpa sua.
Meus ouvidos escutam tudo isso.
A coordenadora de elenco vigia Branch Bacardi, com os olhos grudados
nele. Só desvia o olhar quando ele olha de volta para ela. Então diz:
— Pois é, os pais sempre nos fodem...
Meus pés foram me levando pelo corredor do ônibus interestadual até o
fundo. Minha bunda me sentou numa poltrona.
Minha bunda já realizou muita coisa desde então.
Minha bunda é uma estrela de cinema.
Só que como já era até de se esperar... nunca escrevi para casa.
20

Sheila

Em 1944, enquanto atuava em Kismet, Marlene Dietrich bronzeava as


pernas com uma tinta acobreada. Era uma tinta à base de chumbo, em tom
de cobre. O chumbo penetrou na pele dela e Marlene quase morreu
envenenada. Cassie Wright me conta isso enquanto eu mexo a cera que
derrete numa vasilha de água fervente. Ela vai tirando a blusa de manga
comprida, a calça jeans e a calcinha. Já nua, Cassie se inclina para estender
uma toalha de banho sobre a mesa da cozinha. As paredes do seu
apartamento de dois cômodos estão nuas. Só há buracos de pregos, e o
único móvel é um sofá-cama branco, todo sujo. Há também duas cadeiras
de cozinha cromadas e tortas que combinam com a mesa. Cassie estende
mais duas toalhas sobre a superfície. E estende mais uma, até as toalhas
formarem um acolchoado grosso.
Os armários estão vazios. Dentro da geladeira, pode haver uma quentinha
mandada pelo restaurante grego que há no andar térreo. Equilibrado em
cima do reservatório da privada fica o último rolo de papel higiênico.
Apoiando a bunda desnuda na borda da mesa da cozinha, Cassie fala que
a atriz Lucille Ball sempre se recusou a fazer cirurgias cosméticas. Nada de
lifting para Lucille. Em vez disso, ela deixava crescer o cabelo nas
têmporas, criando longas mechas grossas que cobriam as orelhas. Antes de
fazer qualquer aparição pública e rodar qualquer filme ou programa, Lucy
enrolava esses longos cachos de cabelo no redor de palitos de madeira. Com
uma rede apertada sobre o topo da cabeça, ela puxava os palitos para cima e
para trás, esticando e erguendo a pele frouxa das bochechas. Encaixava os
palitos na rede e depois colocava uma peruca ruiva para esconder o troço
todo. A partir de uma certa época, sempre que você avistar Lucille Ball
numa reprise televisiva, fazendo caretas em busca de risadas, sorridente e
com uma aparência ótima para sua idade, pode ter certeza: ela está sofrendo
muito.
Fato real, segundo Cassie Wright.
Meneando a cabeça para as caixas empilhadas na sala e rotuladas como
“Caridade” ou “Lixo”, pergunto se ela está planejando uma viagem.
Cassie Wright desliza a bunda para trás, agarrando a borda da mesa para
manter as toalhas no lugar, até ficar sentada no centro da mesa. Inclina o
corpo para trás sobre os cotovelos e apoia os pés na borda da mesa. Toda
nua. Com os joelhos abertos e dobrados como se fosse uma rã, ela diz:
— Você quer saber se eu vou a algum lugar?
Suas unhas vasculham os pelos entre as pernas, retirando de lá um fio
grisalho. Ela joga o pentelho no chão e continua:
— Vamos deixar de frescura, está bem?
Ela conta que a atriz Barbara Stanwyck costumava passar cola branca
Elmer no próprio rosto. A mesma cola que nós passávamos nas mãos no
ensino fundamental. O ácido lático soltava todas as células da pele que
estivessem mortas. Ao ser arrancada, aquela máscara de cola seca aspirava
todos os poros e retirava os pelos soltos.
Cassie fala que a estrela cinematográfica Tallulah Bankhead costumava
colecionar cascas de ovos, que moía para fazer um pó grosseiro.
Acrescentava um copo de água e bebia a mistura. Como as cascas de ovo
esmagadas esfregavam, arranhavam e arruinavam a sua garganta, ela
adquiria uma voz grave e sensual. Dizem os boatos que Lauren Bacall
usava o mesmo truque.
Cassie olha para o meu cabelo, empinando o queixo. Depois manda que
eu esmague uma aspirina e misture os fragmentos com um pouco de xampu.
Se o cabelo for lavado com essa mistura, qualquer caspa desaparecerá.
Eu? Simplesmente continuo a mexer a cera.
Com as pernas esticadas sobre a mesa da cozinha, Cassie Wright
pergunta:
— Sua mamãe não ensinou nada a você?
Ela fala que Marilyn Monroe costumava cortar o salto de um dos sapatos
para encurtar uma das pernas e fazer as nádegas roçarem uma na outra
quando ela andava.
A melhor maneira de disfarçar a marca de um chupão é passar pasta de
dente comum. Para reduzir o inchaço nos olhos, deite com uma fatia de
batata crua sobre cada um deles. O ácido alfalipoico da batata interrompe a
inflamação. Esfolie o rosto esfregando fermento e nunca use sabonete.
Eu digo a ela que a cera está pronta. Nem quente demais, nem muito
grossa. Sobre o fogão, há uma panela com aquela cera amarela e macia, que
é fervida na própria lata. Outra panela contém um saco daquelas cápsulas
francesas, idênticas a ervilhas, só que num tom de azul-escuro. Cera dura,
derretida até virar uma pasta azul-escura.
— Você cortou a musselina? — Cassie Wright quer saber.
O rolo de musselina é largo e branco feito um rolo de papel de
calculadora ou caixa registradora. Já cortei uma boa pane em quadrados
pequenos.
Ao me ver enfiar uma espátula de madeira, aquilo que os médicos
costumavam chamar de depressor lingual, na panela de cera amarelada,
Cassie manda que eu comece com a cera azul-escura, que é mais fácil de
controlar. A dura cera francesa possibilita um contorno melhor, com mais
controle ao redor da borda sensível das coisas.
Quando eu pego um naco quente de cera azul-escura e viro para me
inclinar entre seus joelhos, Cassie conta que Dolores del Rio costumava
usar pó de gelatina de uva para escurecer os mamilos, que ficavam mais
visíveis através das roupas. Já Rita Hayworth usava pó de gelatina de
morango para tingir os seus de rosa-choque.
Betty Grable, a famosa pin-up, borrifava laquê na bunda e nos peitos até
lambuzar tudo. Assim as panes do seu maiô ficavam grudadas onde ela
queria. Dentro de sapatos de salto alto, laquê tem o mesmo efeito.
A boceta grisalha de Cassie Wright se abre sobre a mesa. É um matagal
louro com raízes grisalhas. A ponta da cicatriz rosada da sua episiotomia
aparece lá em baixo. Com a espátula de madeira, vou espalhando a cera
azul, seguindo a direção em que os pelos crescem. Os músculos das pernas
pulam, endurecem e tremelicam de várias formas sob a pele. Os olhos se
fecham com força.
Cassie conta que Lon Chaney costumava ferver ovos. Quando interpretou
o Fantasma da Ópera, Chaney trazia ovos cozidos para a filmagem. Antes
de rodar, ele descascava um ovo e retirava cuidadosamente a elástica
membrana branca que envolve a clara. Para parecer cego, estendia essa
membrana de ovo sobre sua íris, forjando uma catarata. As bactérias foram
se acumulando sob a membrana, e Chaney acabou perdendo a visão naquele
olho.
Fato real.
Com o depressor lingual, eu pego outro naco de cera quente, espalhando
um pouco mais sobre os pelos de Cassie Wright.
Para evitar a dor excruciante e escaldante quando você arranca os pelos,
diz Cassie, a maioria dos profissionais pressiona o local. Pressionar com
força amortece as terminações nervosas. A melhor maneira, porém, diz ela,
é dar um tapa no lugar. Os verdadeiros peritos arrancam a cera com força e
dão um tapa no local desnudo. Com força.
Ela fala que só se deve raspar as pernas de manhã. À noite, elas ficam um
pouco inchadas, de modo que os fios nunca saem inteiros. Pela manhã, já
terão crescido um pouco.
Pegando outro naco de cera quente, eu pergunto por que ela teve o bebê
que acabou dando. Por que simplesmente não, sabe como é, terminou com a
coisa? Por que ter todo o trabalho de dar à luz se ela não iria ficar com a
criança? E, inclinando o corpo sobre aquela mesa de cozinha cromada,
pinto outra fumegante faixa azul-escura entre as suas pernas.
Para esfoliar, Cassie Wright manda esfregar com pó de café frio e já
usado. O ácido tânico descasca delicadamente a pele morta. Para ocultar
celulite, pressione a pele com uma camada de pó de café quente por dez
minutos. A celulite nas suas coxas parecerá diminuir instantaneamente, mas
o efeito só dura doze horas.
Cassie diz que a concepção do seu bebê foi algo tão pavoroso, uma
traição tão grande, que ela queria ao menos um fruto bom daquilo tudo.
Ela meneia a cabeça para o próximo naco fumegante de cera derretida.
— Se você põe uma faca embaixo da mesa da cozinha, ouvi dizer que a
dor é cortada ao meio...
Nos filmes adultos, explica Cassie, o close da penetração do membro
ereto no orifício é chamada de “tomada do filé”. Com os olhos ainda
fechados, os dentes trincados e os punhos cerrados, enquanto a cera seca e o
suor ensopa a toalha dobrada, ela diz:
— Cecil B. DeMille, estou pronta para a “tomada do filé”...
Ela manda que eu arranque a cera, puxando na direção oposta à que os
pelos crescem. Manda puxar depressa e dar um tapa no local desnudo.
O cheiro lembra velas ardendo na igreja. É um cheiro de bolo de
aniversário, antes que a pessoa faça seu desejo e sopre. Da boceta de Cassie
Wright sai um cheiro de pão quente na padaria.
Com os dentes trincados, ela prossegue:
— Eu nunca planejei ser uma estrela pornô...
Cassie Wright conta que um clássico truque francês é passar vários
minutos com o rosto coberto por um pano de prato encharcado em leite frio.
Depois se troca o primeiro pano por outro, encharcado em chá quente. A
proteína fria do leite e os antioxidantes quentes do chá aumentam o fluxo
sanguíneo da pele, e a pessoa fica reluzente.
Trilhas de suor escorrem pelas coxas desnudas de Cassie, formando
poças mais escuras no amontoado de toalhas.
— Você amava a sua mamãe? — ela pergunta.
Eu pego a ponta da cera azul. Descasco um pouco da pele. Puxo uma
longa faixa endurecida. Arranco um trecho de carpete louro com pontas
cinzentas. E dou um tapa na pele com força.
Isso deve doer, porque os olhos de Cassie Wright ficam cheios de
lágrimas.
Da cintura para baixo, ela está reduzida a uma menininha. Lisa feito a
bunda de um bebê.
Gotas de sangue surgem por toda parte. Cada folículo de cabelo é um
diminuto ponto vermelho.
Dou outro tapa para amortecer a dor. Uma lágrima misturada com rímel
rola de um dos olhos, deixando uma faixa negra no rosto de Cassie Wright.
Então dou um tapa com mais força ainda, deixando nós duas cobertas pelo
sangue dela.
21

Sr. 600

Sheila e o cara do urso de pelúcia parecem se dar bem. Amigões. O cara


fica tocando nos peitos e no cabelo dela. Sheila está falando merda sobre
mim para ele. Os dois não param de olhar para cá. Apontando o dedo para
mim. Falando merda.
O cara da televisão fica tocando a própria cabeça, soltando fios de
cabelo. As veias do seu rosto parecem inchadas como balões, todas
esgarçadas e vermelhas para caralho. Os globos oculares estão arregalados,
feito os de um buldogue, e prontos para rolar bochecha abaixo. Os olhos
também parecem avermelhados pelas veias e piscam cheios de água. O suor
jorra do couro cabeludo, escorrendo pela testa e a nuca.
O cara do urso de pelúcia não está muito bem.
São sintomas que nem o seu bronzeado de Palm Springs, profundo e
vitrificado, consegue encobrir.
Aqueles exames que Sheila mandou todos os caras fazerem, trazendo
atestados das clínicas, não são 100% confiáveis. As camisinhas se rompem.
Dizem os boatos que as camisinhas nem têm espessura suficiente para
bloquear um vírus.
Caminhando por aqui, pareço um daqueles tigres de zoológico,
ziguezagueando entre os caras. Descrevendo largos círculos ao redor da
sala, vou navegando através de nuvens de colônia Stetson e óleo de bebê
fedorento, tomando cuidado para não escorregar nas pegadas oleosas
deixadas por caras que só querem brilhar.
O cara do urso de pelúcia não vai ser fodido por um milhão de doentes
tarados por sexo e depois passar seus problemas para mim. Claro, eu posso
ser o âncora número 600, mas não vou cavalgar uns segundos de merda
depois dele. Tudo bem que ele mate uma gata que quer morrer, mas não vai
me matar só para ter trabalho pelos próximos dois anos.
Os caras repetem a mesma piada pelo salão:
— Quantos filmes de surubas entre bichas acabam virando filmes snuff?
A resposta é: “Se você esperar bastante... todos eles!”
Essa piada... não é uma piada.
Sheila e o cara do urso de pelúcia continuam olhando para mim. Falando
merda.
Um pouco afastado, o Garoto 72 continua olhando para a palma da mão e
rolando a pílula de tesão.
Nos televisores, Cassie está saindo nua de uma janela. Ela desliza por
uma espécie de corda feita com sutiãs e outras merdas. Cai em cima de um
gramado do lado de fora à noite. Vestida só com sapatos de salto alto e
brincos de pingentes, foge correndo, perseguida por um bando de
dobermans de orelhas pontudas ao som de sirenes fortes. Holofotes
vasculham o gramado, a noite e tudo mais.
O cara do urso de pelúcia ri. Sheila ri. Os dois estão olhando para mim.
Não, eu não sou jovem como já fui, mas não preciso aceitar todo esse
desrespeito. Meu nome atraiu parte do financiamento deste projeto. Meus
anos de trabalho duro ajudaram a bancar os petiscos e outras merdas que
eles estão botando goela adentro. O aluguel do lugar. A cama que os caras
estão arrebentando lá em cima. Tudo isso parece indicar que eu mereço
algum respeito.
O bobalhão do Garoto 72 fica ali parado, olhando para a pílula em sua
mão e para Cassie, que foge dos latidos dos cachorros.
Eu paro ao lado do garoto.
— Ei, você veio aqui hoje com o intuito de morrer? Porque eu, não. E
nem você. Aquele cara do urso de pelúcia, o tal de Dan Banyan, vai snuff
nós dois.
Depois explico que tenho um plano e que ele deve me seguir. Nós dois
caminhamos inocentemente até o lugar onde Sheila e o cara estão parados
conversando. Ela segura a prancheta. Ele segura aquele urso com o nome de
Britney Spears.
Eu falo para Sheila que o bronzeador já começou a manchar o número
“600” no meu braço e pergunto se ela pode me emprestar a caneta para
fazer um rápido retoque nos algarismos.
Sheila olha para mim, torcendo o canto da boca e mostrando os dentes
desse lado. Os buracos do nariz dela crescem tanto que os túneis de ar na
sua cabeça parecem rosados feito conchas, indo diretamente até o cérebro.
Ela solta a caneta de cima da prancheta e estende a ponta para mim.
Eu pego a caneta.
— Obrigado, benzinho.
Sheila fica calada. Ela e o cara do urso de pelúcia não dizem nem uma
única palavra. Nem riem. Seus olhos e xingamentos ficam esperando que eu
me afaste.
Para enganar os dois, dou dois passos com o garoto a reboque. Juntos,
nós passamos por trás de Sheila. Displicente, destampo a caneta e escrevo
um novo “600” no meu braço, por cima do número antigo. Troco de mão e
escrevo no outro braço.
O garoto fica olhando para a mãe, que tenta trepar, nua e de salto alto,
numa árvore grande. A cena é filmada de um ângulo muito baixo, com
cachorros latindo ao redor e seguranças chegando. A marca de biquíni de
Cassie está desbotada nas bordas por um vestígio do sol de Acapulco, duas
semanas do bronzeado bege de Monterrey e as sobras avermelhadas de um
fim de semana perdido em Tijuana.
Com apenas um passo, chego às costas do cara do urso de pelúcia e enfio
minha mão livre por baixo do seu sovaco. Passo a mão pela sua nuca e
agarro os cabelos ralos atrás da sua cabeça. Puxando para trás, dou uma
meia gravata no cara, que agita a mão livre. Seus pés escorregam no óleo de
bebê derramado no piso, chutando a esmo, enquanto eu encosto a ponta de
feltro da caneta no seu rosto e escrevo o que planejei. Três grandes letras
naquela testa de astro de televisão. Meus músculos relaxam, e ele se solta,
girando para me encarar.
A descrição leva mais tempo do que o ato em si.
Toda a frente do meu corpo, peito, braços e abdome, está pegajosa devido
ao suor do cara do urso de pelúcia.
Vermelho feito uma beterraba, olhando para a caneta na minha mão, ele
pergunta:
— O que você escreveu?
Depois passa as mãos na testa, procurando manchas pretas na ponta dos
dedos. Esfregando com as duas mãos, ele diz:
— Você escreveu “BICHA”, não foi? — Ele olha para o Garoto 72. —
Ele escreveu “BICHA”?
O garoto simplesmente abana a cabeça.
O cara do urso de pelúcia olha para Sheila.
— Pior — ela atesta.
Jogo a caneta de volta para Sheila e digo:
— Ele não quer publicidade? Isso deve render bastante publicidade para
ele.
Sheila deixa a caneta cair no concreto ao lado dos seus sapatos. Perto da
caneta, o cara largou o urso de pelúcia que vive segurando. Os rabiscos de
tinta já estão manchados e borrados, dissolvendo no óleo de bebê espalhado
no piso.
O cara do urso de pelúcia fica cuspindo nos dedos e esfregando a testa.
— Você estuprou a mãe desse garoto. Você a drogou e arruinou a vida
dela.
— Como é que é? — o Garoto 72 quer saber.
Sheila ergue a mão para consultar o relógio de pulso.
— Pessoal, um minuto de atenção...
Claro que todos os caras erguem o olhar. Erguem os olhos para ouvir
melhor. Braços se estendem para tirar o som de alguns televisores. Os
latidos dos cachorros e as sirenes desaparecem.
O cara do urso de pelúcia vai emburrado para o banheiro, dando
cotoveladas em quem encontra pelo caminho e batendo com as solas
descalças no piso.
— Preciso dos seguintes participantes. — Sheila examina a lista.
Para mim, o Garoto 72 pergunta:
— Quem você drogou?
No silêncio reinante, o cara do urso de pelúcia dá um berro imenso de
volta para nós:
— Acorde, idiota. Esse escroto aí é seu pai.
Sheila chama:
— Número 569... número 337...
O cara do urso de pelúcia entra no banheiro, afastando com o ombro os
caras que estão no umbral, com os corpos escorregadios devido ao óleo de
bebê e paralisados para ouvir melhor.
Sheila se curva para pegar a caneta aos seus pés. Ela endireita o corpo.
— E número 137...
Para o garoto, eu digo:
— Eu não vou morrer por causa de hoje.
O Garoto 72 se inclina para apanhar o urso de pelúcia largado no piso
engordurado.
E, lá no banheiro, olhando para o espelho acima da pequena pia, o cara
do urso de pelúcia começa a urrar.
22

Sr. 72

A garota do cronômetro fica chamando o tal de Dan Banyan até ele sair
do banheiro com o rosto molhado e sabão no couro cabeludo. O que sobrou
do seu cabelo está grudado nos lados da cabeça. A garota da prancheta fica
parada no topo da escada, silhuetada no umbral da porta aberta. Os
refletores do cenário são tão fortes que nem se pode olhar diretamente para
lá. A luz dança por trás do vulto escuro da garota. Ela continua chamando o
tal de Dan Banyan pelo número 137, até que ele parte escada acima, ainda
esfregando na testa chumaços molhados de papel toalha.
Todo mundo desvia o olhar, tanto do brilho lá em cima quanto da
imagem do detetive Dan Banyan fungando e secando os olhos com as duas
mãos. Seus ombros se projetam para a frente e tremem. Entre grandes
arquejos que engasgam na sua garganta, ele diz:
— Não é verdade...
Para desviar o olhar, eu me inclino, estico uma das mãos e apanho o
cachorro autografado caído no chão. Só que é tarde demais. Não sei se foi o
óleo dos pés de alguém, soda derramada ou mijo frio que vazou do
banheiro, mas algo encharcou o cachorro de pelúcia, borrando as letras que
antes formavam os nomes de Liza Minnelli e Olivia Newton-John. A pele
do cachorro está cheia de manchas escuras.
Sem ninguém ver, o Sujeito 137, o tal de Dan Banyan, desaparece no
clarão de luz, com a testa ainda devastada pela palavra que Branch Bacardi
escreveu lá: “HIV”.
No cachorro, já não dá para saber o quanto ele é amado por Julia Roberts.
O corpo de lona parece molhado, frio e pegajoso. Meus dedos ficam
enegrecidos quando eu toco em qualquer ponto.
Conversando com Branch Bacardi, falo que Dan Banyan vai querer seu
cachorro. Para que minha mãe possa autografar o bicho.
Ele simplesmente fica olhando para a porta que se fecha no topo da
escada, onde Dan Banyan sumiu. Ainda olhando para a porta, diz:
— Garoto, o seu velho já levou com você aquele papo clássico sobre
sexo?
Eu falo que ele não é meu pai. E estendo o cachorro à frente, mas ele não
pega o bicho.
— O melhor conselho que meu velho me deu na vida foi-se você raspar
os pentelhos, duros ou macios, na base do seu pau, vai parecer que tem
cinco centímetros a mais ali. — Branch Bacardi ainda olha para a tal porta.
Ele sorri, fecha os olhos e abana a cabeça. Depois os abre, já olhando para
mim. Observa o cachorro na minha mão. — Você quer ser um herói?
No cachorro, as partes molhadas continuam dissolvendo as palavras,
transformando Meryl Streep em mais borrões de tinta vermelha e azul,
contusões arroxeadas da cor de bolhas de sangue, as marcas de pico e
câncer que meu pai adotivo costumava pintar numa miniatura de viciado
nos trens.
Branch Bacardi abre os dedos de uma das mãos, acenando para me
mostrar o porão inteiro.
— Você quer salvar todos os caras aqui dentro?
Eu só quero salvar minha mãe.
— Então dê isto aqui para a sua mãe. — Branch Bacardi bate com um
dos dedos no coração de ouro que pende de uma corrente em torno do seu
pescoço. A corrente está esticada feito um arame para poder abarcar o
pescoço grande dele, e o coração fica diante da garganta, tão junto que
chacoalha e pula a cada palavra que ele pronuncia. Fazendo o coração
dançar. Branch Bacardi diz: — Dê isto para ela, e você sairá daqui rico.
Sem chance.
Por descuido, acabei falando para meus pais adotivos do filme que seria
feito aqui hoje, e imediatamente eles me deram um esporro, dizendo que me
deserdariam se eu saísse de casa. Trocariam as fechaduras e pediriam que o
Exército da Salvação mandasse um caminhão buscar todas as minhas
coisas. A assinatura deles é necessária para fazer qualquer retirada na minha
conta bancária, já que o dinheiro é para financiar minha faculdade. Depois
que minha mãe adotiva contou que me pegara com aquela réplica sexual
inflável de Cassie Wright, eles impuseram essa condição para me permitir
ter uma poupança. Qualquer dinheiro que eu ganhasse, aparando gramados
ou passeando com cães, precisava ser posto nessa conta, onde não pode ser
gasto sem a concordância deles.
Ao contar isso para Branch Bacardi, vou me aproximando da comida
exposta aqui. As pastinhas e os doces. Depois de comprar estas rosas para
minha mãe, não fiquei com o suficiente para pagar uma pizza grande.
Enchendo a barriga de petiscos mexicanos e pipoca sabor queijo, falo que
meu plano era aparecer e salvar minha mãe. Salvar e sustentar minha mãe,
para que ela não seja forçada a fazer filmes pornô. Só que agora não posso
bancar nem meu jantar.
Passando pasta de queijo em bolachas e mergulhando bastões de aipo
num molho, continuo conversando, falando para Branch Bacardi que dentro
daquele saco de papel pardo com meu número, 72, está tudo que possuo no
mundo.
Equilibrando o buquê de rosas, vou fisgando salsichinhas com palitos.
Segurando o corpo encharcado do cachorro autografado sob o sovaco,
vou espalhando molho de churrasco em pão de alho.
Branch Bacardi fica olhando para mim, com a testa enrugada e a boca
franzida. Depois ergue as duas mãos até a nuca, revelando os curtos pelos
grisalhos nas axilas.
— Espere um instante. — Branch solta a corrente em torno do pescoço.
Ele balança o cordão numa das mãos e depois estende o coração de ouro
para mim. — Agora você tem isto... sua chave para a fama e a fortuna.
Balançando no ar o coração, que reflete a luz dos televisores, ele
continua:
— Imagine nunca mais precisar trabalhar na vida. Você consegue, cara?
Tente se visualizar rico e famoso de hoje em diante.
Minha mãe adotiva, eu falo para ele, é uma hipócrita. No dia em que me
pegou com a réplica sexual, ela estava chegando da aula de decoração de
bolos. Ela e meu pai adotivo dormem em quartos separados há séculos.
Minha mãe adotiva me impediu de navegar na internet com medo de que eu
ficasse mais corrompido, mas sua turma de decoração de bolos contratou
um padeiro que faz bolos eróticos para demonstrar seu trabalho. São
aqueles bolos sexuais com gente nua, uma espécie de brincadeira, do qual
ninguém pede o pedaço do canto ou uma flor do glacê, e sim o testículo
esquerdo. Que hipócrita. Depois disso, ela passava o tempo inteiro na
cozinha, treinando sacos escrotais com glacê fervido e cus de creme de
limão. Também misturava corantes alimentares para criar clitóris e
mamilos. Desperdiçava litros de glacê amanteigado espremendo fileira após
fileira de prepúcios em folhas de papel encerado. Quem abrisse nossa
geladeira encontraria folhas de lábios vaginais e sobras de coxas ou
nádegas, tal como na cozinha de Jeffrey Dahmer.
Meu pai adotivo ficava lá no porão, transformando diminutas enfermeiras
alemãs em prostitutas menores de idade: reduzia os seios delas com lixas de
unha, sujava as unhas e enegrecia os dentes delas. Minha mãe adotiva
ficava tingindo coco ralado para fabricar pentelhos, ou torcendo a ponta de
um saco de confeiteiro para injetar veias vermelhas na lateral de um
membro ereto feito de chocolate.
Um filete de tinta aguada vai escorrendo do corpo molhado do cachorro
autografado pelo meu flanco, pela minha perna e pela parte interna do meu
braço.
— Pegue. — Branch Bacardi segura o coração de ouro diante do meu
rosto. — Olhe aí dentro.
Meus dedos estão grudentos por causa do açúcar polvilhado e da geleia
que recheia as roscas. Continuo segurando na mão fechada a pílula que Dan
Banyan me deu, a tal droga que vou usar na hora que precisar endurecer a
salsicha. Enquanto faço malabarismo com o buquê de rosas, a pílula de
tesão e o cachorro molhado, meus dedos apertam o coração de ouro, que
acaba se abrindo com um estalido. Lá dentro há um bebê olhando para fora.
É só um chumaço esmagado de pele, careca e fazendo biquinho, tão
enrugado quanto a réplica sexual. Eu. Eu sou este bebê.
O coração ainda está quente pelo contato com a garganta de Branch
Bacardi. Escorregadio devido ao seu óleo de bebê.
Em outro compartimento interno, jaz uma pequena pílula.
Uma simples pílula pequena. Dentro do coração.
— É cianeto de potássio — informa Branch Bacardi. Depois manda que
eu esconda a pílula dentro do funil de papel das minhas flores. — A Cassie
é uma masoquista nata. Esse é o maior presente que um filho pode dar a
ela...
Eu não sei.
Ela quer isso, Branch insiste. Implorou para que ele trouxesse a pílula e
chegou até a emprestar o colar para que o troço entrasse escondido aqui
dentro.
— Fale que é da parte de Irwin, e ela entenderá — diz ele.
Eu pergunto a ele, Irwin?
— Era eu — explica Branch. — Esse era o meu nome antigamente.
Ele fala que se eu der a pílula a Cassie ela morrerá, e eu sairei daqui um
homem rico. Terei dinheiro suficiente, não precisarei de uma família, nem
de amigos. Quem é rico o suficiente não precisa de ninguém, diz Branch
Bacardi.
Lá dentro, o bebê é enrugado e ossudo. A pílula é lisa e pequena.
O que Cassie Wright não queria versus o que ela queria.
O que ela descartou versus o que ela pediu.
— Sua mãe sempre foi obstinada. Quando ela quis uma lipoaspiração, eu
paguei. Quando quis um implante nos peitos, eu paguei. Todo aquele
dinheiro para sugar gordura e injetar plástico.
Ela passou a maior parte da vida com o retrato do bebê em volta do
pescoço. E Branch continua:
— Foi a Cassie que quis fazer um filme pornô para fugir da casa dos
pais. E pediu que eu arranjasse alguma coisa para que ela ficasse relaxada.
O nariz do bebê é o meu nariz. O queixo gordo é o meu queixo. Os olhos
estreitos são os meus olhos.
Se minha mãe engolir essa pílula, talvez se der só uma mordida nela, seus
músculos ficarão paralisados. Ela não conseguirá respirar, porque o
diafragma estará parado e sua pele ficará azulada. Sem dor, nem sangue, ela
simplesmente morrerá.
Minha mãe estará simplesmente morta. Esse será o último filme de
suruba a quebrar um recorde mundial. Ela será uma heroína morta, e todos
nós entraremos nos livros de história.
— Uma vantagem adicional é que ninguém precisará pegar a doença do
cara do urso de pelúcia — prossegue Branch Bacardi. — Você estará
salvando vidas, garoto.
Eu só preciso esconder o cianeto no buquê, dar a ela as flores e falar que
são de Irving.
— Irwin — corrige Branch Bacardi.
Eu falo que temos um problema grande.
A umidade do cachorro autografado imprimiu o nome de Cloris
Leachman na minha pele, só que ao contrário. Ao lado disso está impresso
“Você significa o mundo para mim”, só que também ao contrário.
— Eu juro que é isso o que ela mais quer — garante Branch Bacardi.
Aquele bebê erguendo o olhar para nós dois.
E eu falo que não. O problema é a luz, que é fraca aqui embaixo. Sobre a
palma da minha mão estão as duas pílulas, a de cianeto e a de tesão. Eu não
consigo distinguir qual é qual. O que é sexo e o que é morte... não sei a
diferença.
E pergunto qual devo dar a ela.
Branch Bacardi se inclina para olhar. Nosso hálito parece quente e úmido
sobre a palma da minha mão.
23

Sr. 137

A coordenadora de elenco se esforça ao máximo para me mostrar a porta.


Um casal ri logo depois que eu ejaculo sobre os lindos seios de Cassie
Wright. Meus espermatozoides ainda estão quentes, rastejando ali em cima,
mas a coordenadora já enfia um saco de papel cheio de roupas nos meus
braços. Depois manda que eu me vista. Eu fico falando para Cassie Wright
que fiquei comovido pelo seu desempenho como uma professora
batalhadora e incansável, tentando melhorar a vida dos alunos
marginalizados de uma pobre escola suburbana. Ela estava inspirada.
Simplesmente inspirada. A vulnerabilidade e a determinação do seu
personagem eram as melhores coisas de A selva do anal.
Posteriormente relançado como Como era grande o meu falo.
Mais tarde relançado como Por dentro da senhorita Jean Brodie.
Cassie Wright soltou um ganido. Ela realmente ganiu ao saber que eu
conhecia o filme. Que eu conhecia todos os seus filmes, desde Anjos de
cara suja até Gozadas de ternura.
Sua cor predileta é fúcsia. Seu aroma predileto: sândalo. Sorvete:
baunilha. A coisa que a deixa mais irritada: lojas que vasculham sua bolsa
na entrada.
Ao farejar meu cabelo, ela solta outro ganido.
Nós dois ficamos de papo, comparando lençóis de algodão puro e de
fibras mistas. Fofocamos sobre Kate Hepburn... sapata ou não? Cassie
Wright diz: Com certeza. Trocamos figurinhas sobre nossas mães. Durante
a conversa fiada, vou enfiando na sua vagina, na sua bunda, na sua mão e
entre os seus seios. Vamos fazendo nossas fofocas, só de blá-blá-blá,
enquanto o meu membro ereto entra e sai, entra e sai.
A coordenadora de elenco se posta ao lado da cama, fora de quadro,
segurando um cronômetro numa das mãos.
Já era até de se esperar... mal Cassie Wright e eu entramos no assunto de
dietas favoritas, a coordenadora aperta o cronômetro com o polegar e diz:
— Tempo.
Logo estou segurando um saco de roupas e sou empurrado para uma
porta aberta iluminada pelo sol. Minhas cuecas continuam presas em volta
dos tornozelos, de modo que vou cambaleando, com o membro ereto
balançando diante de mim feito uma bengala. E a coordenadora de elenco
ainda tem coragem de dizer:
— Obrigada por ter vindo...
Eu me vejo parado na viela, nu, com a pele ainda quente devido às luzes
do cenário. Examino o saco e vejo uma camisa masculina de rúgbi com dois
botões feitos de acrílico vagabundo, com um colarinho e listras
contrastantes, mangas cintadas. Resolvo dar um basta naquilo.
Essas roupas não são minhas. Sim, o saco está marcado com um “137”, o
meu número, mas as minhas roupas, os meus sapatos e Mister Toto estão
todos ainda lá na sala verde. A coordenadora precisa permitir que eu volte.
Se não deixar, eu falo para ela que vou chamar a polícia. Batendo com o pé
descalço no piso de concreto do corredor a um passo da viela, eu aguardo.
Olhando para o relógio e suspirando, a coordenadora concorda:
— Tá legal. Tudo bem. Volte e dê uma olhada.
No topo da escada, olhando para os poucos atores que restam, ainda
aguardando, eu falo: Cavalheiros. Apenas de cueca, fazendo uma reverência
profunda, abro os dois braços e falo: Os senhores já não estão olhando para
um Kinsey Seis perfeito.
Com Mister Toto enfiado sob o braço e uma batata frita quase dentro da
boca, o jovem Ator 72 pergunta:
— Ela está morta?
Batendo com o dedo na testa, Branch Bacardi diz:
— Mas o que adiantou? Eles não podiam filmar o seu rosto. Isso
significa zero de publicidade.
Para esticar o momento, eu desço um degrau da escada. Depois desço
outro. Nos monitores, Cassie Wright pega a mão de um ator surdo e cego.
Dobra os dedos do sujeito e encosta a mão dele na sua virilha, dizendo:
— Água...
É a minha cena predileta em O orgasmo de Anna Sullivan. Com outro
passo, eu estico um pouco mais o momento. Há uma longa pausa silenciosa,
enquanto eu cruzo o piso de concreto até o lugar onde Bacardi está parado.
Sem dar uma palavra, meneio a cabeça para aceitar Mister Toto, que o rapaz
me estende.
Ainda em silêncio, eu sorrio e ergo a mão para afastar o cabelo da testa,
revelando a pele e o que está escrito por baixo: “How I loVe U” Como eu
amo você... rabiscado e autografado por Cassie Wright.
— Foi ideia dela — digo para o jovem Ator 72. Levando os dedos aos
lábios, sopro um beijo em direção à escada e ao cenário. — Sua mãe é um
verdadeiro anjo.
Branch Bacardi revira os olhos acima do peito raspado, nu e vazio. O
medalhão sumiu.
— Então você conseguiu foder com ela.
Não quero me gabar, mas meu desempenho foi tão bom que já estou
começando a imaginar que o coitado do meu querido pai lá em Oklahoma
talvez não seja realmente o tarado que confessou ser.
O Ator 72 fecha a mão em torno de algo: o medalhão, com a corrente
pendurada entre os dedos. Ele olha para Bacardi.
— Estou começando a imaginar a mesma coisa.
Do seu poleiro no topo da escada, a coordenadora grita:
— Pessoal, um pouco de atenção, por favor...
Ao pé da parede se estende a fileira de sacos, inclusive o meu. A sala
ficou mais escura depois que eu saí. A luz ambiente que vem dos monitores
parece mais fraca.
— Dan Banyan? — diz o Ator 72, abrindo o punho e erguendo a mão até
o meu nariz. Há duas pílulas na palma de sua mão. — Qual dessas você me
deu para que eu tivesse uma ereção?
— Preciso dos seguintes participantes — grita a coordenadora.
As duas pílulas parecem iguais.
— Número 471 — chama a coordenadora. — Número 268...
Eu pisco. Estreito os olhos. Inclino o corpo demasiadamente à frente,
com uma rapidez excessiva, bato com o rosto na mão do ator.
— Fique parado...
Com o olho direito fechado, fico cego. Aberto ou fechado, não consigo
enxergar coisa alguma com o esquerdo. Já era até de se esperar... é aquele
miniderrame, ou coisa assim, do qual a coordenadora e o Bacardi não
paravam de falar.
Neste momento, Branch Bacardi está sob o meu controle. Neste cintilante
momento mágico, Branch virou minha puta. Não posso deixar que ele tenha
razão. Vou cambaleando até meu quadril roçar na borda da mesa do bufê;
mesmo sem enxergar, estendo a mão e agarro o primeiro petisco que meus
dedos encontram. Enfio o troço na boca e começo a mastigar. Relaxado.
Displicente.
A coordenadora conclui:
— E número 72...
O jovem ator meneia a cabeça para a mão.
— Depressa, por favor. Qual das duas eu tomo?
Na mão do jovem ator, eu sinto cheiro de queijo cheddar, alho, manteiga
e vinagre. E rosas.
Mas não consigo enxergar. A sala está escura demais, e as pílulas são
muito pequenas.
O petisco na minha boca, que meus dentes estão roendo, é uma
camisinha nova em folha, ainda enrolada. Lubrificada, a julgar pelo sabor,
um gosto amargo de gel espermicida. Aquela sensação escorregadia de K-Y
na minha língua.
A coordenadora grita:
— Número 72, precisamos de você no cenário... agora. Imediatamente.
Branch Bacardi, todo mundo, esperando.
Então... eu simplesmente aponto e digo:
— Essa aí.
Continuo mastigando e engasgando com aquele gosto amargo inventado
para matar espermatozoides e impedir a vida. E simplesmente aponto para
uma pílula. Qualquer pílula. Não faz diferença.
24

Sheila

Inclinada sobre Cassie Wright, com uma pinça cromada entre os dedos,
aperto as pontas afiadas em torno de um fio da sobrancelha. Mordendo
minha própria língua. Fechando os olhos quando arranco o fio. E apertando
a pinça em torno de outro fio fora de lugar.
Cassie Wright nem pisca. Ela não faz careta de dor, nem recua na cadeira
para fugir. Fala que, quando alguém chamado Rudolph Valentino morreu de
apendicite, duas mulheres se jogaram dentro de um vulcão ativo no Japão.
Esse tal Valentino era um astro do cinema mudo e, quando morreu, em
1926, uma garota londrina tomou veneno em cima de uma coleção de fotos
dele. Em Paris, um ascensorista do Hotel Ritz tomou veneno em cima de
uma cama com uma coleção semelhante. Em Nova York, duas mulheres se
postaram diante do Hospital de Policlínicas, onde Valentino morreu, e
cortaram os pulsos. Durante o funeral, uma multidão de cem mil pessoas se
descontrolou e derrubou as janelas dianteiras da funerária, destruindo as
coroas e os arranjos de flores.
Um vibrador de vara chamado Rudy Vallee gravou uma canção de
sucesso sobre esse Valentino batedor de bacon, intitulada “There’s a New
Star in Heaven”.
Fato real.
Quando as sobrancelhas de Cassie parecem iguais, borrifo umidificador
numa esponja pequena, que passo na sua testa. Depois, passo a esponja em
suas bochechas e em torno dos olhos.
Nossos seiscentos cuspidores de creme ainda estão dormindo em casa,
com uma hora de despertador para gastar. Ainda está escuro, e o dia mal
nasceu. A iluminação já foi instalada. Os rolos de filme estão prontos. As
câmeras foram posicionadas. Os uniformes nazistas foram alugados e estão
pendurados, ainda nos invólucros plásticos da lavagem a seco. Aqui só há
Cassie Wright e eu.
Com os olhos fechados e a pele repuxada pela esponja com umidificador,
Cassie Wright fala que os agentes funerários embelezam os cadáveres,
aplicando maquiagem e penteando o cabelo a partir do lado direito, porque
esse é o lado que as pessoas verão num velório com caixão aberto. O dono
da funerária lava o cadáver com as próprias mãos. Ele encharca de
inseticida umas bolas de algodão, que depois enfia no nariz do morto, para
evitar que insetos se instalem ali. Com os dedos, ventila o ânus para
permitir que os gases presos escapem. Mete taças plásticas, feito bolas de
pingue-pongue cortadas ao meio, sob as suas pálpebras para manter os
olhos fechados. Passa cera derretida nos lábios para que não descasquem.
Estou passando base com a esponja. Espalhando suavemente um matiz
bege-médio em torno da boca de Cassie. Disfarçando as bordas sob a linha
da mandíbula.
Aboletada na cadeira de maquiagem branca, com o babador de papel em
torno do pescoço, Cassie Wright conta que um socador de salsicha chamado
Jeff Chandler estava filmando Bravos até o fim na Filipinas em 1961, mas
teve um problema de hérnia de disco. Esse Chandler era um grande nome,
rival de Rock Hudson e Tony Curtis. Gravou um álbum de sucesso e vários
compactos para a Decca. Então entrou na faca para fazer uma rápida
cirurgia no disco da coluna. Os médicos cortaram uma artéria. Despejaram
trinta litros de sangue dentro dele, mas mesmo assim o boiola morreu
fazendo aquele filme.
Com os olhos fechados, as pálpebras tremelicando e as sobrancelhas
arqueadas para deixar a sombra ser passada, Cassie Wright conta que o bola
murcha hollywoodiano Tyrone Power caiu fulminado por um enfarte
durante uma luta de espada nas filmagens de Salomão e a rainha de Sabá.
Ela conta que, quando Marilyn Monroe se matou, Hugh Hefner comprou
o nicho de mausoléu vizinho ao dela, porque queria passar a eternidade
deitado ao lado da mulher mais bela que já viveu.
Depois conta que o punheteiro Eric Fleming estava filmando High
Jungle, seu seriado de televisão, no rio Amazonas, quando a canoa em que
estava virou. A correnteza arrastou Fleming, e as piranhas locais
terminaram o serviço. Com as câmeras ainda rodando.
Fato real.
Enquanto uso o lápis para delinear seus olhos, Cassie Wright conta que o
poluidor de página Frank Sinatra foi enterrado com uma garrafa de uísque
Jack Daniel’s, um maço de cigarros Camel, um isqueiro Zippo e dez
moedas de dez centavos para poder dar telefonemas. O comediante Ernie
Kovacs foi enterrado com o bolso cheio de charutos Havana enrolados à
mão.
Quando o fã de figo Bela Lugosi morreu, em 1956, foi enterrado com seu
figurino de vampiro. O funeral parecia um dos seus filmes de Drácula, pois
ele estava usando aqueles dentes dentro do caixão. A capa de cetim, tudo.
Walt Disney não está congelado, diz Cassie Wright. Ele foi cremado e
lacrado dentro de um cofre com sua mulher. As cinzas de Greta Garbo
foram espalhadas na Suécia. As de Marlon Brando, em torno das palmeiras
de sua ilha particular nos mares do sul. Em 1988, quatro anos depois de
morrer, Peter Lawford continuava devendo dez mil dólares do pagamento
pelo seu último lugar de repouso no cemitério Westwood Village, bem perto
da mulher mais bela que já viveu. De modo que Lawford foi despejado, e
suas cinzas espalhadas no mar.
A esta altura, já estou passando blush em Cassie Wright. Cobrindo as
laterais do nariz com pó escuro. Enfatizando o contorno dos lábios com
delineador.
A porta que dá para a viela se abre, e dois integrantes da equipe entram
depois de descartar seus cigarros. São o sonoplasta e um câmera, fedendo a
fumaça e ar frio. Na viela, o ambiente já está indo do negrume para o azul-
escuro. Ao longe ouve-se o ronco surdo do trânsito. É a hora do rush
matinal.
Enquanto passo batom colorido nos seus lábios, Cassie Wright conta que
um sujeito chamado Wallace Reid, o “Rei da Paramount”, um homem com
um metro e oitenta e três de altura, morreu tentando se livrar do vício em
morfina numa cela acolchoada.
Quando o cinema falado mostrou ao mundo que a elegante e aristocrática
Marie Prevost falava com o sotaque popular do Bronx, ela desistiu. Bebeu
até morrer atrás da porta trancada do seu apartamento. Seu daschshund
esfaimado, Maxie, ficou roendo o corpo da dona por dias a fio, até o zelador
se dar ao trabalho de bater lá.
— A Marie Prevost era a maior estrela de cinema da época e virou
comida de cachorro assim. — Cassie Wright estala os dedos.
O astro cinematográfico Lou Tellegen ajoelhou em cima de uma pilha de
recortes de jornal e fotografias publicitárias, antes de arrancar as tripas com
um par de tesouras. John Bowers sumiu andando mar adentro. James
Murray pulou dentro das águas do rio East. George Hill estourou os miolos
com um rifle de caça. Milton Sills acelerou sua limusine na Curva do
Homem Morto no Sunset Boulevard. A bela Peg Entwistle escalou a
famosa placa de Hollywood e saltou para a morte. A modelo Gowili Andre
morreu queimada sobre uma pira alimentada por suas próprias fotos nas
revistas.
Umas gotas de perfume, algumas escovadas no cabelo, e eu acabo.
Cassie Wright abre os olhos.
Nada de algodão envenenado em seu nariz. Nada de ventilação anal.
Lentes de contato azuis, da cor do céu do deserto, nadam sobre seus olhos.
Nada de bolas de pingue-pongue cortadas ao meio.
Um exemplo perfeito da ideia que Hitler fazia de uma boneca sexual,
loura e com olhos azuis.
Cassie Wright examina seu reflexo no espelho acima da bancada.
Torcendo o pescoço para ver o perfil direito e esquerdo.
— Sempre existem maneiras piores de chutar o balde...
Sua mão tira um lenço de papel da caixa, e os lábios dizem:
— Vivi minha vida toda para mim mesma...
Com as duas mãos, ela amassa o lenço de papel e encosta os lábios no
bolo. Como se aquilo fosse um mata-borrão.
— Não que eu seja uma Joan Crawford...
Seus lábios soltam o lenço de papel, deixando um beijo vermelho
perfeito, e Cassie Wright continua:
— Mas talvez esteja na hora de fazer algo pela minha criança...
Estendendo a mão para o lenço de papel, eu pergunto:
— O seu menininho?
Cassie Wright fica calada. Só ergue o lenço beijado por seus lábios
perfeitos e entrega para mim o papel sujo.
25

Sr. 600

O cara do urso de pelúcia vira de lado para mim, torcendo a cabeça para
o outro lado. O cara acha que eu não estou vendo, mas dos seus lábios sai
uma camisinha usada e mastigada. Uma camisinha velha que ele usou ou
achou no cenário. Não quero saber. Já assisti à minha cota de filmes pornô
com viados e, para mim, não é surpresa que eles curtam comer a própria
porra. Ou a de qualquer um.
O garoto mostra a ele as duas pílulas, a de tesão e a de cianeto.
O cara do urso de pelúcia dá de ombros e aponta.
— Essa daí, acho eu.
Mantendo a porta aberta, de modo que as luzes do cenário nos cegam,
Sheila chama:
— Número 72, por favor, venha se juntar a nós...
O garoto entrega o urso de pelúcia encharcado de mijo. Ele tem a pele
dos dedos, dos bíceps, dos músculos laterais e oblíquos toda manchada de
preto e azul, que são as cores das lesões causadas pelo sarcoma de Kaposi,
o câncer gay. Os nomes manuscritos de Barbra Streisand e Bo Derek estão
sangrando por toda a sua mão.
— Obrigado — diz ele.
Nos televisores, é como se toda a minha vida estivesse passando diante
dos meus olhos. Em um deles, sou um presidente enfiando a ferramenta na
primeira-dama e Marilyn Monroe, até ter a cabeça baleada num conversível
que desce a rua. Em outro televisor, sou um entregador de pizza adolescente
trazendo mais salame para as meninas de um grêmio estudantil.
O Garoto 72 sobe a escada em direção a Sheila, que aguarda no umbral.
No último degrau, ele se detém e olha para trás. Parece magricela, com
todas as luzes ao seu redor. Mete algo na boca e joga a cabeça para trás.
Sheila lhe entrega uma garrafa cheia de água até a metade, e ele bebe um
pouco, criando bolhas cada vez que engole. Depois a porta se fecha, e o
garoto desaparece.
O cara do urso de pelúcia está agarrando a borda da mesa do bufê,
apoiando o corpo ali em cima.
Eu pergunto se ele, algum dia, teve qualquer tipo de conversa sexual com
o pai.
O cara do urso de pelúcia pede:
— Você pode me emprestar seu celular?
Para quê? Eu quero saber.
O cara do urso de pelúcia apalpa a mesa com uma das mãos e apanha
uma camisinha. Mete o troço na boca, mas logo depois cospe tudo.
— Eu gostaria de pedir reforços — ele responde.
É claro que eu tenho um celular. Na bolsa de ginástica. Entrego o
aparelho a ele, falando que no ensino médio eu namorava uma garota
chamada Brenda, que era um tesão total, mas ao mesmo tempo uma
autêntica dama.
O cara do urso de pelúcia ergue o telefone até o topo do nariz, deixando
espaço apenas para um dedo apertar as teclas.
— Estou escutando...
Nos televisores, eu sou um velhote bimbando uma jovem enfermeira
numa clínica para idosos. Ao mesmo tempo, outro televisor me mostra
como um lobinho, traçando a matriarca da minha alcateia.
Conto que já me imaginava passando o resto da vida com Brenda. Já me
via casando com ela, tendo filhos, construindo uma casa e envelhecendo ao
seu lado. Qualquer coisa, desde que sempre estivéssemos juntos. Eu tinha
muito sentimento por ela. Amava Brenda tanto que nunca tentei foder com
ela, nem implorei para chupar seus peitinhos ou enfiei a mão dentro da sua
calça jeans. Nós tínhamos esse tipo de afeto e respeito mútuos.
— Lenny? — diz ao telefone o cara do urso de pelúcia. Ainda segurando
a borda da mesa com a outra mão, ele continua: — Preciso fazer uma
encomenda urgente.
No segundo ano, meu amor por Brenda era tanto que mostrei um retrato
dela para o meu velho.
Ele reagiu como sempre. Pegou o instantâneo na minha mão e ficou
olhando para a foto, enquanto abanava a cabeça. Depois me devolveu
Brenda, dizendo:
— Como um panaca feito você arrumou essa belezoca? Garoto, essa xota
não é para o seu bico.
E eu falo que queria casar com ela.
Nos televisores, eu sou um soldado veterano no Havaí, driblando as
bombas japonesas e arrombando as gatas havaianas em A uma pica da
eternidade.
— Estou precisando imediatamente de um acompanhante, alguém com
um peru, de qualquer raça ou idade, desde que consiga endurecer, enfiar,
bombear e tirar — explica o cara do urso de pelúcia ao telefone. — Não,
não é para mim. Nunca estou desesperado a esse ponto.
Quando contei meu plano de casar com Brenda, meu velho sorriu e
passou o braço em torno dos meus ombros, perguntando:
— Já papou a garota?
Eu abano a cabeça, fazendo que não.
— Quer saber um jeito 100% seguro de não engravidar uma gata? — o
meu velho oferece.
O cara do urso de pelúcia me pega olhando para ele e diz:
— Vá falando, eu juro que estou escutando...
Meu velho falou que antigamente os caras nunca engravidavam suas
mulheres, mesmo antes de haver camisinhas, pílulas anticoncepcionais,
esponjas e outras merdas. O jeito era o seguinte: os caras antigos sabiam
que, pouco depois de gozar, com o peru ainda lá dentro, o lance era dar uma
mijadinha. Então eles soltavam algumas gotas de mijo. Meu velho falou que
o mijo continha ácido suficiente para matar os espermatozoides.
Ele está falando de mijar dentro dela.
E garante que Brenda não vai perceber.
Meu velho fala que esse truque é algo que todos os pais carinhosos
contam para os filhos. É uma espécie de legado que eles passam de geração
em geração, e, se um dia eu tiver um filhinho, direi o mesmo para ele.
Aquele segundo ano na escola foi a última época maravilhosa da minha
vida. Eu tinha uma garota que amava. E tinha um pai que me amava.
— Cinquenta paus... é pegar ou largar — diz o cara do urso de pelúcia ao
telefone. Depois ele ri. — Você deve ter algum fracassado, um viciado
qualquer, que venha até aqui por cinquenta paus...
A noite em que finalmente fiz amor com Brenda foi linda. Nós
estendemos um cobertor embaixo de uma árvore cheia de flores cor-de-
rosa. Só havia estrelas e flores acima de nós. Tínhamos uma garrafa de
vinho que meu velho tinha me dado só para aquela ocasião. Champanhe.
Brenda assou biscoitos de chocolate, e nós ficamos um pouco altos antes de
fazer amor. Mas não foi como nos filmes, onde há um pau e uma xota em
luta mortal de sacanagem, batendo e arrombando. Foi mais como se nossas
peles estivessem tendo uma conversa. Através de cheiros, sabores e toques,
nós estávamos nos descobrindo. Dizendo o que não podíamos pronunciar
com palavras.
Deitamos nus no cobertor, embaixo das pétalas das flores que caíam, e
Brenda perguntou se eu tinha trazido alguma proteção.
Eu pus meu dedo nos lábios dela e falei que ela não precisava se
preocupar. Disse que meu pai tinha me contado o segredo da prevenção.
— Pouco me importa se ele é sujo e velho. Mesmo que seja gordo e
nojento, eu pago os cinquenta paus — diz o cara do urso de pelúcia ao
telefone.
Embaixo daquela árvore florida, Brenda e eu nos abraçamos e partimos
para nosso primeiro clímax juntos, o começo de nossa vida. O anel de
compromisso estava ao redor do dedo dela, e nós tínhamos bebido a garrafa
de vinho. Ficamos abraçados ali, eu por cima dela, ainda lá dentro, louco
para dar uma mijada devido ao champanhe doce.
Nos monitores, sou um milionário grisalho mandando ver com uma
secretária em cima de uma escrivaninha de madeira trabalhada. Em outras
telas, sou um bombeiro hidráulico desentupindo os canos de uma dona de
casa entediada.
Ainda dentro de Brenda, apenas à guisa de proteção, deixo sair um pouco
de mijo. Só que minha bexiga estava estourando, e eu não consegui
interromper o fluxo. A torrente foi aumentando, e Brenda revirou os olhos
para me encarar. Nossos olhos estavam quase se tocando, nossos narizes
estavam encostados e nossos lábios ficavam se roçando.
— O que você está fazendo? — quis saber Brenda.
Tentando deter o mijo, fazendo força para interromper o jorro, ainda
dentro dela, eu respondi:
— Nada. Não estou fazendo nada.
— Você tem alguém em mente? — pergunta o cara do urso de pelúcia ao
telefone. Depois, ri. — Já falei, pouco importa que ele seja repugnante...
Brenda ficou lutando contra mim, rolando de um lado para o outro no
cobertor e me dando socos, enquanto me xingava:
— Seu porco. Você é um porco.
Embaixo dos meus quadris, ela pinoteava e se contorcia, mandando que
eu saísse de cima do seu corpo. E que saísse de dentro dela.
Mas eu dizia: Ainda não. Segurando os seus braços, repetia que aquilo
era para que ela ficasse segura.
Nos monitores, estou em épocas arcaicas, comendo Cleópatra de quatro.
Também sou um astronauta, fazendo a volta ao mundo com uma gata
alienígena verde numa estação espacial com gravidade zero.
Embaixo daquelas flores e estrelas, em cima de Brenda, só fui parar
quando ela enfiou um dos joelhos entre as minhas pernas, deu uma joelhada
rápida e esmagou meus colhões. Com o baque, a dor tomou conta de mim.
Meu pau se torceu e pulou para fora, mas ainda estava duro feito pedra e
continuava jorrando mijo. O jato de champanhe quente cobriu nós dois. Eu
agarrei os colhões esmagados com as duas mãos, largando os braços de
Brenda, e ela se afastou de mim rolando para o lado.
Alguma coisa caiu e bateu no meu rosto. Era muito dura para ser uma
flor e doía demais para ser cuspe. Brenda agarrou suas roupas e fugiu
correndo. Foi a última vez que pus os olhos nela: fugindo por trás, com o
meu mijo escorrendo entre as coxas.
— Ótimo. Seja quem for, mande o sujeito para cá agora. — O cara do
urso de pelúcia fecha o aparelho e me entrega.
Foi por isso que eu aconselhei o garoto a fazer aquilo.
O cara do urso de pelúcia faz uma careta e cospe algo mastigado no chão.
Outro preservativo. Ele estreita os olhos para mim.
— Você sugeriu que aquele jovem confuso urine dentro da própria mãe?
Não, eu nego. E explico que Cassie queria uma pílula de cianeto e que eu
deveria carregar a pílula dentro do medalhão, mas o garoto concordou em
levar a pílula para ela.
O cara do urso de pelúcia fica de queixo caído e ergue as sobrancelhas.
Depois ele se recompõe e engole em seco.
— Aquelas duas pílulas que ele me mostrou... você está dizendo que uma
era de cianeto?
E eu balanço a cabeça, fazendo que sim.
Nós dois ficamos olhando para a porta fechada do cenário.
Nos monitores, sou um homem das cavernas de priscas eras, enfileirado
numa orgia com uma tribo de outros humanoides, sujos, cabeludos e
corcundas, nenhum de nós completamente humano, nem evoluído ainda.
O cara do urso de pelúcia dá de ombros.
— Mesmo que o garoto tome a pílula errada, nós vamos bater o recorde
mundial. Eu liguei para uma agência e a cavalaria já está a caminho.
O cara fala que essa agência conhece alguém que trabalha uma hora por
menos de cinquenta paus. Um velhote qualquer, como explicou a pessoa da
agência, a piada do ramo adulto, pelancudo e enrugado, de pele escamosa.
Com olhos injetados e mau hálito. Um dinossauro pornô que a agência
nunca consegue colocar em nenhum filme. Falaram que iam tentar entrar
em contato com ele e mandar o cara vir correndo substituir o Garoto 72.
Caso o garoto tenha morrido, brochado, ou dito que ama Cassie e sido
expulso.
— Baseado na descrição deles, mal consigo esperar para ver a feiura
desse monstro. — O cara do urso de pelúcia pisca um olho e depois o outro.
Ele esfrega os olhos com as duas mãos, pisca depressa e estreita os olhos
para os monitores, franzindo a testa.
Nos televisores, sou um modelo totalmente nu, no centro de uma aula de
pintura, sendo chupado por belas alunas de arte.
O que quicou do meu crânio naquela noite, minha última noite com
Brenda, o que bateu em mim com força demais para ser uma flor cor-de-
rosa... foi o anel de noivado que eu dera para ela.
Na minha mão, o celular começa a tocar. Pelo número no visor, o
telefonema é do meu agente.
26

Sr. 72

A garota do cronômetro me deixa voltar, porque eu preciso dar algo


importante a Branch Bacardi. Ela me leva escada abaixo até o porão de
espera, com o cheiro de óleo de bebê e salgadinhos sabor queijo.
Logo que me vê, Bacardi encosta o celular no peito e pergunta:
— Deu cabo dela?
O tal do Dan Banyan completa:
— Ou pior... declarou seu amor por ela?
E a garota do cronômetro anuncia:
— Pessoal, um minuto de atenção...
Quando um sujeito sobe a escada para encontrar Cassie Wright, poderia
muito bem estar fazendo uma visita a ela no hospital. Eles puseram Cassie
estendida numa cama branca, com lençóis e travesseiros brancos. Ela fica
deitada de pernas abertas, bebericando um copo de suco de laranja através
de um canudo de plástico entortado. Um lençol cobre a parte inferior do seu
corpo. As lâmpadas quentes brilham sobre a cama, como se aquilo fosse
uma sala cirúrgica. E, quando a garota da prancheta entra com o próximo
ator, Cassie Wright parece uma mãe na cama, esperando que alguma
enfermeira limpe seu recém-nascido para que ela possa amamentar o bebê.
Em torno da cabeceira, há vasos e buquês de flores. São rosas, rosas e
mais rosas. De todos os tipos, mas sempre rosas. E erguidos sobre as mesas
ao lado dos travesseiros, há cartões de lembranças, cheios de bordas
rendadas ou cobertos de purpurina. Há cartões enfiados nos buquês. Cartões
derrubados no chão, ostentando as pegadas sujas dos sapatos de quem pisou
ali.
Todos esses cartões comemoram o Dia das Mães. “Para a melhor mãe do
mundo!” ou “Para a melhor mãe que um menino poderia ter!”...
A garota do cronômetro me leva para dentro, puxando-me pelo braço, e
aponta para as flores que eu estou segurando, dizendo:
— Cassie, trouxemos outro filho para você...
Lá no porão de espera, mais tarde, o tal de Dan Banyan diz:
— Sua mãe é tão engraçada! Se eu convidasse, você acha que ela sairia
para jantar comigo?
Branch Bacardi berra ao telefone:
— Como você pode dizer isso? Eu tenho o bronzeado mais profundo,
uniforme, escuro e bonito do ramo!
A sala do cenário está apinhada de gente vestida, equilibrando câmeras
no ombro, ou segurando os cabos soltos que serpenteiam das câmeras para
caixas de força, tomadas nas paredes, ou outros cabos. Há pessoas erguendo
varas com microfones pendurados na ponta. Pessoas curvadas sobre Cassie
Wright com batons e pentes. Pessoas mexendo nas lâmpadas brilhantes e
em reluzentes guarda-chuvas prateados que refletem a luz sobre Cas sie na
cama.
Parecem ser da mesma família, rindo com os olhos injetados por virarem
a noite, esperando que um bebê nasça. Há pessoas com belos cartões de Dia
das Mães colados na sola dos sapatos, andando pela sala. E pétalas de rosas
espalhadas por toda parte.
A garota do cronômetro me faz entrar, puxando meu cotovelo, e um
sujeito com uma câmera na mão comenta:
— Caramba, Cassie... quantos filhos você teve?
Todo o povo ri, menos eu.
É como nascer dentro de uma família inteira.
Falando em torno de um batom preso na sua boca e com o corpo
afundado na cama, Cassie Wright declara:
— Hoje, tive todos eles.
Lá no porão, Branch Bacardi berra ao telefone:
— O meu melhor trabalho não ficou para trás! Sabia que ninguém faz
melhor que eu uma penetração anal em pé, com o gozo na hora pedida sem
usar as mãos?
O tal de Dan Banyan ergue o olhar para as telas de TV e pergunta:
— Você acha que ela se casaria comigo?
Os três uniformes nazistas estão largados junto a uma parede do cenário,
todos manchados de suor. A garota do cronômetro informa que a equipe
parou de usar aquilo na metade da filmagem para ganhar tempo.
Um sujeito segurava o copo perto de Cassie, para que ela pudesse colocar
os lábios em volta do canudo. Enquanto ela sugava um pouco de suco de
laranja, o sujeito olhou para mim e disse:
— Vamos lá, garoto. Pode mandar ver. Tem gente aqui que quer ir para
casa ainda hoje.
Cassie Wright afastou o sujeito com uma das mãos. Com a outra, acenou
para que me aproximasse. Depois ergueu o seio com essa mesma mão,
esticando o mamilo na minha direção.
— Nem escute esses merdas. Ele é só o diretor. Venha aqui para a
mamãe...
Era o seio esquerdo, o melhor dos dois. Tal como eu tinha em casa.
Costumava ter. Na casa onde eu costumava morar, antes que os meus pais
adotivos trocassem as fechaduras.
— Vinte paus? Para dar uma passada e mergulhar meu pavio por trinta
segundos? — indaga Branch Bacardi ao telefone. Ele olha para o tal de Dan
Banyan. — Tem certeza de que você não quer dizer cinquenta paus?
Ainda estreitando os olhos diante dos monitores, o tal de Dan Banyan
diz:
— A rainha pornô e o rei do horário nobre televisivo casando. Nós
podíamos ter nosso próprio reality show...
A cena que ele está vendo na televisão nem tem Cassie Wright. São
alguns planos de ligação do filme, mostrando uma escavadeira despejando
terra dentro da caçamba de um caminhão.
No cenário, já um passo mais perto, com pétalas de rosas grudadas nos
pés descalços, eu me ajoelhei ao lado da enorme cama cintilante.
As únicas pessoas que observavam a cena olhavam para nós através da
câmera, ou então estavam de costas, olhando para nós num monitor e nos
escutando através de fios dentro dos seus fones de ouvido.
Ajoelhado ao lado da cama, enquanto Cassie Wright enfiava o seio no
meu rosto, eu perguntei, ela me reconhecia?
— Chupe. — Ela esfregou o mamilo nos meus lábios.
Eu perguntei, ela sabia quem era eu?
E Cassie Wright sorri.
— É você quem ensaca as minhas compras no supermercado?
Piscando e estreitando os olhos para os televisores, o tal de Dan Banyan
diz:
— Vamos nos casar em Las Vegas.
Branch Bacardi berra ao telefone:
— Meus fãs não querem um rosto novo. Meus fãs me querem!
Eu sou filho dela, falei para Cassie Wright. O bebê que ela deu para ser
adotado.
— Eu avisei — disse o sujeito que segurava o suco.
Eu vim até aqui porque ela não respondia minhas cartas.
— Não... mais um? — A voz do sujeito que equilibrava a câmera era
abafada atrás do metal e do plástico. A lente estava tão perto do meu rosto
que eu conseguia me ver falando, refletido no vidro curvo.
Gravado. Sendo filmado. Visto pelas pessoas para sempre.
Quando eu abri os lábios para falar, Cassie enfiou o mamilo na minha
boca. Para falar, precisei virar a cabeça para o lado.
— Não — disse eu. Havia um gosto de sal na pele do seio dela, o gosto
do cuspe de outros homens. — Estou aqui para dar uma nova vida a você.
Então a garota ergueu o cronômetro pendurado no pescoço e apertou com
o polegar o botão superior.
— Já chega.
Eu me sinto como aquela réplica sexual sem ar. Vazio. Achatado. Antes
de minha mãe adotiva sacudir a pele rosada na cara do meu pai adotivo, e
os dois juntos sacudirem o troço na cara do Pastor Harner, transformando
meu secreto amor predileto na coisa que eu mais odiava no mundo. Em vez
das diminutas piranhas viciadas trabalhadas à mão do meu pai adotivo ou
das xoxotas de baunilha com cereja da minha mãe adotiva, minha sombra
rosada é que foi mostrada a todo mundo.
A única coisa que me tornava especial virou minha maior vergonha.
Para provar que sou eu, mostrei a Cassie o coração de ouro que Branch
Bacardi usava. Desenrolando a corrente do pulso, abri o coração e mostrei a
ela meu retrato como bebê lá dentro. A pílula de cianeto ficou escondida no
meu punho.
Ao olhar para o retrato do bebê, o rosto sorridente de Cassie envelheceu
em torno dos olhos e da boca. Os lábios se afinaram, e a pele nas bochechas
despencou, formando dobras perto do pescoço.
— Onde você conseguiu isso? — ela quis saber.
Irving, respondi.
— Você quer dizer Irwin?
Eu balancei a cabeça.
— Ele lhe deu mais alguma coisa?
Com os dedos apertados em torno da pílula, eu abanei a cabeça.
Esse bebê dentro do coração sou eu, falei para ela. Sou filho dela.
— Não fique muito triste, garoto, mas o bebê que eu dei para ser adotado
não era um menininho. — Cassie sorriu novamente e fechou o coração.
Segurando a corrente e o medalhão, ela une as duas mãos na nuca. — Eu
falei para as pessoas que era um menino, mas era uma linda menininha...
O cronômetro ia fazendo tique-taque enquanto os minutos passavam. A
lente da câmera me refletia de tão perto que eu só conseguia ver uma
grande lágrima rolando do meu olho.
Cassie afastou o lençol da parte inferior do corpo.
— Agora seja um bom menino e comece a me foder.
Na área de espera lá no porão, o tal de Dan Banyan pergunta:
— E o que você fez com a pílula de cianeto?
Não sei.
Coloquei na braguilha da minha cueca. Primeiro embrulhada no chão.
Depois, por medida de segurança, presa embaixo dos meus colhões.
E o tal de Dan Banyan faz uma careta e pergunta:
— Como você espera que alguém coloque na boca uma coisa que já
passou pela sua cueca suja?
— É cianeto! — berra Branch Bacardi, encostando o telefone no peito.
— Não vai ficar mais venenoso com um pouco de suor e esmegma.
Fodendo com toda força Cassie Wright, que está com uma das pernas tão
curvada para trás que o joelho já encostou no rosto, ouvi a garota do
cronômetro dizer: — Tempo.
Ainda fodendo, mas já de lado, com as pernas dela abertas feito um
canivete, eu ouvi Cassie Wright dizer:
— Este garoto fode como quem tem algo a provar.
Metendo nela como um cachorro, de quatro, agarrando com as mãos a
pele molhada e frouxa da sua bunda, eu ouvi Cassie Wright ordenar:
— Tirem este putinho de cima de mim!
Várias mãos me pegaram por trás. Os dedos de alguém arrancaram meus
dedos das coxas dela. As pessoas foram me puxando para trás, até que só o
meu pau ainda estava tocando nela. Meus quadris continuaram mexendo,
até que só a cabeça do meu pau ainda estava dentro dela. Depois, tudo
escapuliu, e minhas gônadas foram soltando fita após fita de gosma branca
por cima da bunda dela.
Na outra ponta do corpo, a boca de Cassie Wright indagou:
— Vocês estão filmando isto?
— Esta parte vai para o trailer. — O diretor bebericou suco de laranja
pelo canudo entortado do copo. — Cuidado, garoto, assim você vai nos
afogar.
— É bom alguém me enxugar. — Ainda de quatro, Cassie Wright me
lançou um olhar por cima do ombro. — Foi bom conhecer você, garoto.
Continue comprando os meus filmes, tá legal?
Lá no porão a voz da garota do cronômetro chama:
— Número 600? Por favor, estamos prontos para você no cenário.
— Eu é que sustento essa porcaria de agência! Não é questão de dinheiro,
mas de desrespeito — berra Branch Bacardi ao telefone. Mas ele já parte
para a escada, a garota do cronômetro e o cenário.
Antes que Branch Bacardi comece a subir a escada, eu enfio a mão na
sunga, apalpando entre o apertado gancho elástico e as dobras frouxas da
pele no meu saco. Falo para Branch esperar. Depois, apalpando as bolas,
pulo três degraus até onde Branch está parado.
Falo para ele matar Cassie. Matar a puta da Cassie. Assassinar Cassie
Wright.
— Você não pode matar a Cassie — adverte o tal de Dan Banyan. — Eu
vou casar com ela.
Branch Bacardi fecha o celular, ainda dizendo:
— Uma porcaria de vinte paus...
Exatamente como ele planejou, falo para Branch Bacardi foder até matar
Cassie. E largo a pílula em uma das mãos dele.
27

Sr. 137

Já era até de se esperar... eu ainda nem casei com Cassie Wright e já


estou prestes a ficar viúvo. Para o jovem Ator 72, eu peço: Por favor. Por
favor, me diga que foi apenas um M&M que ele entregou a Bacardi.
— Cianeto de potássio — diz a coordenadora de elenco, inclinando o
corpo para pegar um guardanapo de papel no chão. — Encontrado em
estado natural nas raízes de mandioca na África e usado para tingir plantas
arquitetônicas sob a forma do pigmento azul-profundo conhecido como azul
da prússia. Vem daí o matiz azul “ciano”...
E vem daí, explica ela, o termo “cianose”, usado para descrever o tom
azulado da pele de quem é envenenado com cianeto. Morte instantânea,
certa e eterna.
O som dos monitores ecoa na sala quase vazia, onde só restam nós três.
Nas telas, uma Cassie Wright de seios fartos interpreta uma enfermeira
severa, virtuosa e tirânica: com um alvo uniforme engomado e sapatos
comportados, ela traz alegria e liberdade aos pacientes de um manicômio
masculino, aplicando boquetes em todos eles. Um clássico da cultura
adulta, intitulado Um estranho no cio.
Eu falo que adoro esse filme.
E o jovem Ator 72 pergunta:
— Do que você está falando?
Ele fala que o filme que estamos vendo é sobre uma jovem jogadora
faceira que ganha a vaga de titular numa equipe só de homens ao aplicar
boquetes em seus colegas de time.
Estreitando os olhos, ficando na ponta dos pés e tentando enxergar a tela
acima de nós, mantenho uma das mãos na borda da mesa dobrável do bufê.
Minha âncora. Um marco de orientação nessa sala escura.
— O filme se chama Chegou o boquete dos Bears. Você está cego? —
diz o Ator 72.
Pouco importa se Bacardi der a pílula para Cassie ou não, comenta a
coordenadora, enfiando guardanapos amarrotados dentro dos copos de
papel e empilhando tudo. Ela fala que a produção talvez já tenha seu
cadáver. Um homem morto, caminhando. Um homem capaz de desabar a
qualquer minuto. O cianeto, ela prossegue, viaja sob a forma de íons pela
corrente sanguínea e vai se ligar ao átomo de ferro da enzima citocromo c
oxidase na mitocôndria das células musculares. Essa união muda a forma da
célula, alterando sua natureza a ponto de impedir a absorção de oxigênio.
As células que sofrem esse efeito, principalmente no sistema nervoso
central e no coração, já não conseguem produzir energia.
Eu pergunto se um bom nome para meu reality show, depois que Cassie e
eu casarmos, seria O resgate do soldado Bráulio?
Recolhendo e amarrotando os sacos de batata frita vazios, antes de enfiar
tudo em sacos de lixo pretos, a coordenadora de elenco olha para o Ator 72
e completa:
— A maior parte dos casos de envenenamentos por cianeto ocorre por
via transdérmica. Como você está se sentindo?
Alguma fraqueza? Alguma perda de audição? Fraqueza nas mãos? Suor,
tontura ou ansiedade?
Foi cianeto que matou aquelas novecentas pessoas no suicídio em massa
de Jonestown em 1978. Foi cianeto que matou os milhões nos campos de
concentração nazistas. Matou Hitler e sua esposa, Eva Braun. Durante a
Guerra Fria, na década de cinquenta, os espiões americanos recebiam
óculos com armações muito grossas. Eram treinados a, caso fossem
capturados, mastigar displicentemente as hastes curvas de plástico, que
continham doses fatais de cianeto. São esses mesmos óculos suicidas com
armações de chifre, conta a coordenadora, que inspiraram a aparência de
Buddy Holly e Elvis Costello. Era um bando de jovens riquinhos andando
com a morte no nariz.
Assim que a coordenadora diz “Jonestown”, o ator e eu olhamos para a
jarra de ponche, já meio vazia. Guimbas de cigarro e cascas de laranja
flutuam na limonada rosada.
Em redação ao meu novo reality show com Cassie, eu pergunto que tal o
título Com o cu e a coragem. Parece ousado demais para a televisão aberta?
— O que é trans... — o Ator 72 começa.
— Transdérmica repete a coordenadora de elenco. — Significa “através
da pele”.
Recolhendo migalhas com a borda da mão para limpar as mesas do bufê,
a coordenadora nos explica que a maior parte dos casos de envenenamento
por cianeto ocorre através da pele das pessoas. Para o jovem ator, ela diz:
— Cheire a sua mão.
O garoto põe a mão sobre o nariz e funga.
— Não repreende a coordenadora. — Cheire a mão que segurou a pílula.
O ator fareja a outra mão, cheira novamente e diz:
— Amêndoas?
Esse cheiro de amêndoas amargas vem da reação do cianeto de potássio
da pílula com a umidade na mão dele, formando cianeto de hidrogênio. O
veneno já está vazando para a pele dele.
— Vou lavar logo as mãos — decide o ator.
E a coordenadora balança a cabeça, falando que a pílula não encostou só
ali. Aquele não é o único lugar no corpo dele cheio de terminações nervosas
e poros.
Acerca do futuro reality show com minha futura, e talvez falecida,
esposa, eu pergunto que tal o título Dona curvas e seu pé chato.
O Ator 72 baixa o olhar da coordenadora para sua virilha, enfiando o
queixo no peito.
— De jeito nenhum.
A coordenadora seca uma poça de refrigerante derramado, usando um
punhado de guardanapos. Depois apanha uns preservativos vermelhos, cor-
de-rosa e azuis que não foram usados, enfiando tudo dentro de um saco de
pipocas vazio.
O Ator 72 fareja a mão. Depois se inclina à frente, e com a outra mão
estica o cós da cueca. Curvando a espinha, que forma uma fieira de
calombos sob a pele, ele inspira longamente pelo nariz. Curva a coluna um
pouco mais e dá outra longa farejada. Então endireita o corpo.
— Não consigo chegar perto o suficiente. — O ator olha para mim. —
Você pode me fazer um favor? Cheirar minhas bolas?
A coordenadora de elenco está recolhendo punhados de balas, chicletes e
doces que rolam pelas mesas do bufê.
— Por favor... minha vida depende disso — o Ator 72 pede para mim.
Já era até de se esperar... isso só podia acontecer depois que eu descobri
que era heterossexual.
A coordenadora fala que o rapaz provavelmente só continua vivo por ter
comido algum doce. A glicose é um antídoto natural em casos de
envenenamento por cianeto. Essa evidência ainda é anedótica, mas parece
que a glicose se liga ao cianeto para formar compostos menos tóxicos.
O Ator 72 corre até o bufê e para ao lado da minha mão, que continua
agarrada à borda da mesa. Seus dedos recolhem rapidamente as sobras de
balas, doces, jujubas e bombons, enfiando tudo junto na boca. Mastigando
aquela mistura gosmenta, com a boca cheia de cuspe e açúcar, ele vira para
mim.
— Por favor... me cheira logo, tá legal?
A coordenadora fala que o monge maluco Grigory Rasputin seduzia e
manipulava as mulheres da corte russa com seu pênis, que alegadamente
media quarenta e cinco centímetros. Ela diz que o monge sobreviveu a
diversos atentados com cianeto, porque cada um dos assassinos misturou o
veneno com algo doce: vinho açucarado, balas ou tortas. Assim, as toxinas
eram misturadas com seu antídoto mais eficiente.
Nesse momento, diz ela, Branch Bacardi só precisaria introduzir a pílula
dentro do corpo de Cassie Wright. Fosse ingerindo o troço pela boca, ou de
outra forma, Cassie sentiria tontura, confusão e dores de cabeça. Sua pele
ficaria levemente azulada, e seu coração dispararia ao tentar dar às células
mais oxigênio do que poderia ser absorvido. Ela entraria em coma, sofreria
um enfarte e morreria poucas palavras depois.
— Mesmo que você fareje as bolas dele, nem todo ser humano consegue
perceber o cheiro de cianeto de hidrogênio — adverte a coordenadora.
Lá fora, um pouco acima e além deste lugar, ressoa o gemido crescente
de sirenes que parecem se aproximar cada vez mais.
A coordenadora de elenco estende o braço sobre a mesa, recolhendo
bolinhos comidos pela metade. Crostas de pizza. Maçã do amor,
encharcadas por serem lambidas até a cobertura desaparecer.
As sirenes chegam até aqui e ficam gemendo do outro lado das paredes
de concreto.
— Caso você tencione abordar Cassie Wright, não pense que pode
simplesmente invadir a vida dela — a coordenadora de elenco explica para
mim. Ela se abaixa para pegar algo no chão. Ela franze a testa e segura o
troço entre os dedos. — Algum maluco andou mastigando os
preservativos...
Eu dou de ombros e digo: Tem gosto para tudo.
Soltando com o bico do sapato um chiclete preso no chão, ela conta que
passou meses tentando conhecer Cassie Wright. Que Cassie mencionou
uma criança que dera para ser adotada, falando que isso fora o maior erro da
sua vida, algo que ela jamais conseguiria reparar. Não lhe custara muito
esforço para deixar Cassie culpada a ponto de fazer este filme, a fim de
legar uma fortuna a tal criança. Dando um belo ponto final à porcaria que
fora a vida triste e desperdiçada de Cassie Wright.
As sirenes já estão tão próximas que a coordenadora precisa gritar.
Ainda recolhendo migalhas e esfregando gosmas grudadas nas mesas, ela
grita:
— Só o ódio pode nos dar tanta paciência.
Ela grita que nada, exceto uma vida inteira de raiva e ódio crescentes,
poderia dar a alguém a determinação necessária para passar horas, sob sol
ou chuva, esperando em esquinas ou aguardando em pontos de ônibus caso
Cassie Wright aparecesse. Para se vingar.
As sirenes emudecem, deixando a coordenadora, o Ator 72 e eu olhando
uns para os outros na sala vazia.
— Você é ela — o Ator 72 sussurra, um murmúrio ainda ressoa alto no
novo silêncio. Ele engole a gosma de açúcar e cuspe. — Você é aquela
criança perdida pela Cassie. E ela nem sabe disso...
Esmagando uma lata de alumínio vazia com o punho cerrado e sorrindo,
a coordenadora diz:
— Corrigindo... a partir deste minuto, eu sou aquela criança perdida
muito rica.
O nariz da coordenadora é igual ao nariz comprido e reto de Branch
Bacardi. Seu cabelo preto também. Seus lábios são os lábios dele.
Eu pergunto por que ela sabe tanto sobre cianeto.
E já era até de se esperar... o Ator 72 vai correndo até o banheiro para
lavar os colhões.
28

Sheila

Talvez um cigarro antes que eu traga Branch Bacardi, nosso âncora,


Cassie Wright aponta a unha para o copo de suco de laranja, curvando o
dedo feito um gancho para que eu leve o troço até lá. E mexe o dedo três
vezes, rapidamente, para que eu ande depressa.
Eu levo o copo para ela, entortando o canudo ao nível da sua boca.
Cassie Wright mexe o dedo curvado para que me incline mais perto.
Perto o suficiente para sentir o cheiro do seu suor e ver as raízes grisalhas
dos seus cabelos louros. Em um bafo, o fedor azedo de sêmen velho. Em
outro, o cheiro mofado do látex de preservativos. O cheiro vívido de suco
de laranja.
— Eu sei. — Os lábios dela ignoram o canudo e sussurram como que
entoando uma cantiga de ninar. — Sempre soube, desde nosso encontro
naquele café. Quase chorei. Você parece tanto comigo...
Fato real.
Torcendo a cabeça de lado para se esquivar do canudo, Cassie Wright me
dá um sorriso cheio de batom.
— Citando aquele último rapaz... eu queria dar uma vida nova para você.
Ela conta que Richard Burton quase morreu enquanto filmava Noite da
iguana com Ava Gardner no México. No auge da história, Burton deveria
cortar a corda que prendia uma iguana viva e deixar o bicho fugir para a
selva. É claro que a corda foi cortada, mas o problema é que o tal lagarto
não queria correr para lugar algum, pois já passara várias semanas em
bebedeiras com ele, Ava e John Huston. Para fazer a cena funcionar, a
equipe ligou um fio elétrico à iguana e, assim que a corda foi cortada,
despejaram 110 volts no bicho.
O problema é que Richard Burton ainda estava tocando o lagarto. Ele
recebeu a carga inteira através da iguana e quase foi eletrocutado. O ator
mais famoso do mundo e um réptil escamoso de sangue frio quase
morreram fritos no mesmo choque elétrico.
Fato real.
Depois, Cassie Wright sorriu e disse:
— Aproveite bem, gastando todo aquele dinheiro do seguro...
E antes que ela pudesse dizer outra palavra, eu enfiei o canudo de
plástico dentro da sua boca. Empurrei o troço até o fundo da garganta.
Sufoquei a bruxa para que ela ficasse em silêncio.
29

Sr. 72

A garota do cronômetro vai descendo a escada, pondo o pé esquerdo,


depois o direito e depois o esquerdo nos degraus. Ela tem a boca tapada
com os dedos das duas mãos, apertados uns por cima dos outros, como se
quisesse prender algo lá dentro. Seus olhos se arregalam e esquecem de
piscar, tão secos que quase não brilham, feito o vidro do cronômetro
pendurado. Os dedos fazem tanta força sobre o rosto que a pele fica
esbranquiçada, sem sangue algum. E ela vem descendo, pé esquerdo, depois
direito, cada passo mais embaixo.
Eu não sei.
Sempre que você precisar ver alguém morrer, morrer de verdade, confira
como as pessoas chegam ao orgasmo no final de um filme pornô. Suas
bocas mordem para conseguir só um pouco mais de ar. Seus pescoços ficam
marcados por veias e tendões que formam uma teia na pele, enquanto os
queixos trabalham, estendendo os dentes e escavando o ar. Toda a pele das
suas bochechas puxa os lábios e as orelhas para trás. A mesma pele esmaga
e fecha os olhos delas, enquanto os dentes dianteiros tentam morder o maior
pedaço possível de vida.
Assista à Terceira guerra da bacanal e você verá por que certas pessoas
dizem que a cena da morte é só mais uma tomada com gozo.
A garota do cronômetro chega ao piso do porão e para. Ela arranca das
mãos a pele rosada e depois uma camada de pele azul. São luvas de
borracha tiradas pelo avesso, que ela joga no chão e que ficam espalhadas
lá, achatadas e mortas feito uma réplica sexual. A garota ergue as mãos
desnudas até cobrir todo o rosto. A pele das mãos está manchada e
enrugada, como se fosse velha, de tanto cozinhar dentro daquelas luvas. Ela
ergue os ombros e endireita a coluna, inspirando profundamente o cheiro de
mijo, óleo de bebê e suor aqui dentro. Prende o ar dentro dos pulmões, com
os peitos esmagados pelos cotovelos unidos à frente. Depois solta o ar em
bocados entrecortados, com o corpo inteiro arquejando.
Enquanto olho para ela, vou esfregando minhas bolas até a pele ficar
vermelha. Minha cueca está encharcada diante da pia. Sou um sem-teto.
Um órfão. Duro e desempregado.
O tal de Dan Banyan está olhando. Não diretamente para a garota, mas
virando a orelha para o lugar onde ela está chorando, realmente chorando
agora, com a respiração abafada pelos dedos, e o rosto enfiado nas mãos
abertas. O Sujeito 137 pergunta:
— A Cassie está morta?
Com frio, duro, órfão e em carne viva, eu vou dando passos grudemos
com o pé esquerdo, direito, esquerdo e direito até chegar perto da garota. Só
de cueca molhada, coloco meu braço em torno dos seus ombros, sentindo o
tremor dos nós do suéter. Enrolo o outro braço em torno dela, como se fosse
a roupa da garota. Até ela parar de tremer. Com o queixo enfiado por cima
do seu ombro, segurando a cabeça bem perto do meu peito, eu baixo o olhar
para a inscrição no meu braço.
Alisando seu cabelo com uma das mãos, eu digo a ela:
— Meu nome não é Número 72, na verdade...
Eu não sei.
Os flocos mortos da sua cabeça grudam na minha mão e chovem sobre o
piso. A garota do cronômetro está desmoronando. Eu farejo meus dedos e
falo que gosto do cheiro do seu xampu. Falo que pelo menos ela conhece
sua verdadeira mãe biológica. Sinto a frieza do cronômetro encostado no
meu umbigo. Mantendo o abraço até a respiração da garota voltar ao
normal, pergunto como ela se chama.
E a garota recua um pouco. O crucifixo de prata que pende do meu
pescoço gruda na sua bochecha e fica pendurado ali, encostado na pele. Ela
recua mais, e a corrente de ouro do crucifixo forma um fio entre nós,
ligando os dois. Mais uma respiração e o crucifixo se solta, caindo de volta
sobre o meu peito e deixando uma marca vermelha na bochecha da garota.
O cronômetro também estampou seu formato de relógio redondo em
torno do meu umbigo.
Ainda nos meus braços, a garota diz:
— Minha mãe me odiava tanto... eu falo que meu nome é Sheila, porque
minha mãe verdadeira me deu o nome mais feio que podia imaginar.
O nome na sua certidão de nascimento, quando Cassie Wright queria que
ela fosse adotada.
Com o dedo indicador de uma das mãos, a garota dá um peteleco nas
lágrimas de cada bochecha, rápida feito um limpador de para-brisa. Depois
sorri.
— A piranha me deu o nome de Zelda Zonk. Isso é que é ódio, não?
Abraçado a ela, neste momento pouco importa que eu nada tenha lá fora,
fora deste lugar. Que eu não tenha ideia do meu nome verdadeiro, nem de
quem sou. Aqui, com o suéter da garota encostado na minha pele, este
momento parece bastar.
— Você falou Zelda Zonk — diz o tal de Dan Banyan do outro lado do
porão, sorrindo e olhando para nós com sua orelha. — Ela lhe deu mesmo o
nome de Zelda Zonk?
Balançando a cabeça, ele começa a rir.
E eu falo que meu nome verdadeiro é Darin, Darin Johnson. Fico
abraçando Zelda até sua bochecha voltar a se apoiar sobre a cruz no meu
peito. Seu cronômetro vai fazendo tique-taque na pele da minha barriga.
30

Sr. 137

A diretora de elenco da Metro-Goldwyn-Mayer rejeitou Roy Fitzgerald


três vezes. O ator tropeçava quando ela pedia que ele caminhasse pelo
escritório. Tropeçava tanto que ela ficou com medo de que ele quebrasse a
mesa de centro, feita de vidro. Fitzgerald, um ex-marujo que virara
sindicalista e trabalhava no transporte de cenouras congeladas, mostrava as
gengivas quando sorria. Para piorar, vivia dando risadinhas. Falava com voz
fina feito uma menina adolescente e soltava risadinhas sempre que
tropeçava nos próprios pés.
Ninguém queria escalar a bichona, até seu agente, Henry Willson ensinar
Fitzgerald a encostar os lábios nos dentes quando sorrisse. Willson também
expôs Fitzgerald a um ator que tinha a garganta infeccionada. Depois que
Fitzgerald foi infectado e sua garganta ficou plenamente inflamada, o
agente ordenou que ele berrasse e gritasse até suas cordas vocais ganharem
cicatrizes. A voz do ator ganhou um tom mais baixo, virando um rosnado
profundo e rascante. Uma voz de homem. E seu nome foi mudado para
Rock Hudson.
Eu adoro os pedaços da história hollywoodiana que Cassie Wright
conhece. Foi o fato de nós dois conhecermos tantas trivialidades (as cascas
de ovo esmagadas que Tallulah bebia, ou o rosto esticado para trás de Lucy)
que fez com que eu me apaixonasse por ela. A maioria dos casamentos se
baseia em muito menos.
Cassie sabia que Marilyn Monroe cortava o salto de um dos sapatos para
fazer com que sua bunda rebolasse quando ela andava. Sabia que a
pneumonia e a bronquite que acompanharam Marilyn a vida inteira
provavelmente eram causadas pelo hábito que ela tinha de se enterrar numa
banheira cheia de gelo picado antes de qualquer aparição pública ou
filmagem. Deitar nua e passar horas enterrada no gelo, drogada para fugir
da dor, davam a Marilyn o peito e o rabo empinados que ela queria para a
tarefa do dia.
Já era até de se esperar...
Cassie conhecia o nome secreto de Marilyn Monroe, a pessoa que
Marilyn sonhava ser. Não aquela loura tatibitate e rebolativa. Marilyn tinha
o sonho de ser respeitada, uma intelectual feito Arthur Miller, uma atriz
respeitada e versada em Stanislavsky. Um ser humano digno. Era isso que
Marilyn virava quando viajava sem maquiagem e sem as roupas de grife
emprestadas pelo estúdio. Ela amarrava o cabelo embaixo de um lenço e
escondia o rosto atrás de óculos com aros de tartaruga. Era essa atriz
normal, inteligente e educada que se chamava Zelda Zonk. Que reservava
passagens aéreas ou se registrava em hotéis. Zelda Zonk. Que lia livros.
Que era colecionadora de arte. Era isso que Marilyn Monroe, a deusa sexual
loura, sonhava ser.
31

Sheila

Cassie Wright sabia.


O tempo todo, a mulher sabia quem eu era. E quem ela realmente era. Foi
levando a coisa, sabendo que iria morrer. Cassie Wright foderia
deliberadamente com seiscentos bundões só para me tornar rica.
Fato real. Outra última coisa em jogo aqui hoje é a realidade.
O que você faz quando toda a sua identidade é destruída num instante?
Como você reage quando toda a história da sua vida se revela errada?
Aquela piranha.
32

Sr. 600

Os monitores estão exibindo o primeiro filme de que Cassie participou. O


troço foi gravado em VHS, com uma câmera só um pouco melhor do que
essas usadas para vigilância em mercearias de esquina. Nas TVs, ela e eu
aparecemos jovens feito Sheila e o Garoto 72. Cassie revira os olhos,
mostrando só a parte branca, e agita frouxamente os braços ao lado do
corpo. Ela joga a cabeça tão para trás que a boca se abre, deixando a baba
escorrer pelo canto dos lábios.
Mole como uma boneca inflável modelada a partir dela mesma.
Se você quer saber, nesse primeiro filme que fiz com Cassie Wright, eu
joguei betacetamina e Demerol dentro do refrigerante diet dela. Com a
câmera instalada sobre um tripé ao lado do colchão, fui fodendo Cassie em
qualquer lugar que meu pau coubesse.
Porque eu sentia muito amor por ela.
Esse primeiro filme se chamava Negócio gozado. Depois que ela ficou
famosa, o distribuidor fez outro corte e relançou o filme como Perverso
tesão. Mais tarde relançado como Primeira guerra da bacanal.
Se você precisa saber, Cassie nunca planejou fazer esse primeiro filme.
O filme está sendo exibido para o porão vazio.
O garoto está na casinha, esfregando as gônadas para tentar tirar o
veneno. Ele esfrega como o cara do urso de pelúcia esfregava a testa.
Sheila desce a escada, balbuciando algo. Ela passa as mangas do suéter
sobre os olhos, espalhando catarro e sei lá mais o quê até as orelhas. Os
dentes de cima se fecham sobre os de baixo, com os músculos da mandíbula
contraídos nos cantos, e ela xinga:
— Puta que pariu...
Depois atira longe a prancheta, que se choca com a parede, numa
explosão de papéis com nomes e números. Pela sala se espalha uma nuvem
de cédulas de cinquenta e vinte, dinheiro que Sheila recebeu como propina.
O garoto sai do banheiro dizendo:
— Não chore. É o que Cassie Wright desejava...
Recém-formada pela escola de ensino médio de Missoula, Cassie tinha
um grande plano: estudar arte dramática numa universidade. Ela planejava
continuar na casa dos pais, estudando para virar uma atriz ou uma estrela de
cinema... fosse como fosse, Cassie estaria no mundo artístico. Fosse como
fosse, ela não queria casar comigo. E falou que suas notas eram boas
demais. Disse que só aceitaria minha proposta de casamento se fosse burra
e estivesse desesperada, realmente a fim de qualquer tábua de salvação,
emocionalmente carente e completamente arrasada.
De modo que calculei que ainda havia esperança. O problema é que os
pais dela tinham envenenado Cassie contra mim, com toda essa bosta de
autoestima.
Cassie me contou isso numa noite de sexta-feira, e eu disse que
compreendia. Disse que queria que ela realizasse o sonho de uma vida plena
e rica que tanto adorava. E perguntei se ela queria um refrigerante diet.
A coisa que mais se aproxima da sensação do dia de hoje é limpar de trás
para a frente. Você está no vaso. Não está prestando atenção e espalha
merda na pele enrugada do seu saco, pendurado ali. Quanto mais você tenta
limpar, mais a pele se estica, e a sujeira só aumenta. A fina camada de
merda se espalha nos pentelhos e nas coxas. É essa a sensação de um dia
como hoje.
Mais tarde, Cassie me contou que minhas drogas tinham feito seu
coração parar. Seu cérebro esfriou, e ela se elevou do corpo, pairando perto
do teto e olhando para baixo. Ela e a câmera ficaram vendo minha bunda se
tensionar e relaxar, tensionar e relaxar, enquanto eu fodia com ela até seu
coração voltar a bombear. Fui fodendo com ela até a morte e depois de volta
à vida. Fodendo seu corpo morto em cima daquele colchão, eu acabei com a
vida antiga que ela possuía, querendo atuar, e lhe dei uma vida nova.
O sexo fez aquela garota pura e boa reencarnar, mas como uma outra
coisa.
Cassie ficou pairando e vendo a ação, assim como eu estou fazendo
agora.
Atrás de Sheila, o cara do urso de pelúcia vem descendo a escada do
porão, segurando o corrimão lateral com as duas mãos.
Sheila arrebenta o cordão em torno do pescoço e atira o cronômetro
contra a parede de concreto. Outra pequena explosão.
Descendo mais um degrau, ela diz:
— Aquele porco... ele mesmo tomou a pílula.
O garoto atravessa a sala até seu saco de papel pardo, tirando de lá um
par de tênis, uma calça jeans, uma camiseta e um cinto. Já colocando as
meias, ele pergunta:
— Quem?
Sheila cruza os braços, erguendo o olhar para um televisor, onde eu estou
fodendo o corpo inerte de Cassie Wright:
— Meu pai.
— Quem? — o cara do urso de pelúcia quer saber.
Branch Bacardi.
Eu. Morto e pairando ali, tal como Cassie ficou flutuando depois que seu
coração parou.
Seiscentos caras. Uma gata. Um recorde mundial para a eternidade. Um
filme obrigatório para todo colecionador de coisas eróticas que seja
criterioso.
Nenhum de nós planejava deliberadamente fazer um filme snuff. Isto é
uma mentira.
Se você imaginava que eu estava vivo, isso é outra. Eu tomei a pílula.
Abotoando a camisa, o garoto diz:
— Branch Bacardi morreu?
E Sheila fala que é difícil saber.
— Com aquela pele bronzeada e a quantidade de bronzeador que passou,
ele parece mais saudável que qualquer um de nós.
Minha filha.
Nos monitores, eu estou lançando meu jato profundamente na xota morta
de Cassie, bombeando vida dentro dela. Um gozo decente, mas
desperdiçado, que só serviu para criar uma criança qualquer. Foi muita
burrice minha.
33

Sr. 72

Passamos para um momento posterior. Estamos parados na viela, depois


que os paramédicos perguntaram a Sheila se havia parentes. Algum familiar
a ser avisado?
Isto é depois de Sheila abanar a cabeça, dizendo que não. Os flocos
brancos foram caindo da sua cabeça, pequenos feito as cinzas de um fogo,
enquanto ela respondia:
— Ninguém. O porco não tinha ninguém.
Branch Bacardi não tinha ninguém.
Isto é depois de deixarmos o tal de Dan Banyan no porão. O sujeito se
vestiu, mas colocou a camisa pelo avesso. Apalpando os botões, ele insiste:
— Que tal chamar nosso reality show de A loira que conduz o leso?
Depois Dan Banyan fisgou um celular no bolso da calça e apertou uma
tecla de discagem rápida. Quando alguém atendeu, ele falou para não
mandarem o tal acompanhante. Estava tudo acabado. O sujeito velho e
pelancudo que eles iam mandar não era mais necessário.
O serviço estava feito.
Depois o tal de Dan Banyan liga para mais alguém, dizendo sim, sim,
sim para alguns implantes capilares de emergência. E depois liga para um
restaurante, reservando uma mesa para ele e Cassie Wright hoje à noite.
Só Sheila e eu ficamos parados na viela. O sol está se pondo no outro
lado do prédio. Aqueles tons de crepúsculo, vermelhos e amarelos como
num incêndio, estão por toda parte. Os dedos de Sheila passam o dinheiro
de uma mão para a outra, enquanto sua boca vai contando.
— Cinquenta, setenta, cento e vinte, cento e setenta...
O total chega a quinhentos e sessenta dólares só na mão direita. E o
mesmo na esquerda.
Não se preocupe, digo eu. Ela pode continuar odiando a mãe.
— Obrigada. — Sheila conta as cédulas novamente. Ela enxuga os olhos
com uma nota de vinte dólares. Assoa o nariz numa de cinquenta. — Você
está sentindo cheiro de carne cozinhando?
Eu pergunto se ela vai me envenenar.
— Você não sabe? — diz Sheila. — Os feridos amam os feridos.
Cianeto e açúcar. Veneno e antídoto. Talvez a gente se equilibre e se
complete.
Eu não sei. Mas este momento, parado aqui na viela com ela, diante da
porta de serviço, com o número “72” ainda escorrendo pelo braço,
esperando o que virá a seguir... este momento parece bastar.
Os caras da ambulância ainda estão lá dentro, massageando o peito do
cadáver de Branch Bacardi. Furando o corpo dele com grandes agulhas
cheias de alguma cura. Os olhos dele continuam totalmente fechados, por
causa do enorme sorriso na boca morta.
— Espere — pede Sheila.
Com metade do dinheiro em cada mão, ela interrompe a contagem. Olha
para a porta metálica fechada por onde acabamos de sair. A porta se fechou
atrás de nós. Depois que a tranca soltou um estalido, depois que tudo foi
feito. Sheila se inclina, torcendo a cabeça de lado até encostar a orelha na
porta. Ela aproxima o nariz da tranca e funga... as narinas buscam a
fechadura e fungam profundamente. Uma das mãos, cheia de dinheiro, puxa
o trinco. Puxa com mais força. A outra mão, também cheia de dinheiro, bate
na porta metálica. Bate com mais força. Puxa com mais força.
Sheila estende as duas mãos para mim, pedindo:
— Segure esta bosta um instante.
Há um leve cheiro de carne queimada. Churrasco.
O esboço vermelho da minha cruz, impresso pelo meu peito, está
desbotando na bochecha dela.
É depois de enfiar toda a grana nas minhas mãos que Sheila começa
realmente a berrar, estapeando e chutando a porta, antes de puxar o trinco
com as duas mãos.
34

Sr. 137

No cenário do filme, os paramédicos pressionam o peito de Branch


Bacardi. O látex das suas luvas gruda e depois se solta com um barulho
rascante. Na palma das suas mãos, o látex fica manchado pelo bronzeador
marrom, revelando a azulada pele morta de Bacardi. Eles socam e
bombeiam o peito, enquanto suas luvas vão ficando salpicadas de
vermelho-escuro devido ao mamilo cortado pela navalha, de onde não brota
mais sangue.
Enquanto o câmera se inclina e chega bem perto, os paramédicos suam.
As laterais das camisas dos seus uniformes brancos, das mangas ao cinto,
estão encharcadas de suor, em um tom quase cinza-escuro.
— Vocês estão filmando isto? — diz Cassie Wright.
O fotógrafo da produção está batendo foto atrás de foto, de todos os
ângulos, usando clarões estroboscópicos que inundam tudo de luz e nos
deixam cegos. Piscando. Respirando o ar quente e pesado, cheio de suor,
perfume e esperma.
Ao mesmo tempo, Cassie se agacha acima dos quadris de Bacardi,
sentando sobre o que resta dos pentelhos raspados dele. Apoiando as duas
mãos nos joelhos, ela se ergue um pouco o depois baixa os quadris
novamente, mas sem muita pressa, permitindo que se veja o rígido membro
ereto de Bacardi desaparecendo dentro dela.
Mesmo morto, trata-se de um pau bem grande.
O campeão dos paus artificiais. Movido a pilha, ou operado
manualmente. Morto leito a versão de borracha cor-de-rosa embaixo da
minha cama. Como qualquer relíquia santa numa catedral. Rígido como as
cópias embaladas vendidas nas lojas de brinquedos adultos. Agora um item
de colecionador. Uma antiguidade.
Cassie Wright ergue e baixa os quadris com força. Há um clarão azul,
com o pau morto aparecendo e desaparecendo. Os dois estão ensopados de
suor.
— Quis me derrubar em cena... seu panaca de merda. — Cassie baixa a
boceta com força. — Você roubou minha maior cena, seu escroto.
Lágrimas descem de seus olhos pelas bochechas, marcando com
delineador e rímel a teia de rugas que vai até o queixo. Seu rosto parece
estilhaçado pela rede de fendas negras que se ramificam.
Um dos paramédicos espreme uma bisnaga com pomada transparente e
lambuza uma pequena luva branca. Depois, ele esfrega a luva em outra luva
pequena, espalhando a pomada transparente. Das luvas saem fios que vão
até uma caixa onde brilha uma luz vermelha.
Depois de espalhar a pomada, o paramédico ordena:
— Fora!
O outro paramédico recua, sem tocar em Bacardi.
Na realidade, aquelas luvas pequenas são almofadas cardíacas. Um
desfibrilador de coração. Um choque de bilhão de volts, prontos para fazer
Bacardi voltar à vida.
Junto ao rosto sofrido e lacrimejante de Cassie, o paramédico que segura
as almofadas cardíacas grita:
— Fora, minha senhora!
Cassie vai erguendo o corpo, até o membro ereto, gordo e azulado ser o
único elo entre eles. Aquele pau vira a única ligação entre os dois. Até a
cabeça gorda escapulir dos seus gotejantes lábios vaginais. O rígido
membro azulado ainda se estende para cima, tentando alcançar o corpo de
Cassie, que se afasta.
O paramédico baixa com força as duas almofadas no peito caído e suado
de Bacardi, que ergue a coluna em arco devido à corrente elétrica recebida.
Os músculos de seus braços e suas pernas incham, bem definidos e
marcados. A pele fica dura e tensa. Com o choque, Bacardi rejuvenesce,
ficando esbelto, bronzeado, sem rugas e sorridente. Seus dentes brancos
reluzem. Os olhos se arregalam com o choque. O clarão do fotógrafo e a
centelha do relâmpago do paramédico transformam Bacardi num
Frankenstein saradão.
E nesse clarão Cassie Wright baixa o olhar para Branch Bacardi
restaurado ao apogeu dos áureos tempos, moço como na juventude dos dois.
Seu retorno triunfal.
Possivelmente foi suicídio, ou seus joelhos cansados simplesmente
cederam.
O gesto foi tão Romeu e Julieta. Mas, já era até de se esperar...
Só é preciso um instante para desperdiçar o resto da sua vida.
Diante das câmeras, com a potência de um bilhão de volts ainda pulsando
dentro de Bacardi, Cassie Wright se impala naquela cadeira elétrica de alta
voltagem, aquele aguilhão de gado... aquele pau da morte.
35

Sheila

Desfibriladores cardíacos acima de 450 joules deixam queimaduras de


contato. As almofadas podem queimar o peito dos pacientes. Qualquer joia
metálica, como um brinco ou um colar, pode fechar o circuito e se fundir
instantaneamente. Nos peitorais caídos de Branch Bacardi, as duas marcas
vermelhas deixadas pelas almofadas poderiam ser mamilos caricaturais.
Brilhantes auréolas novas, como cicatrizes, no seu peito. Já o medalhão em
forma de coração de Cassie Wright ficou tão quente que queimou o peito
dela. Marcou Cassie com um coração diminuto. Tanto os mamilos novos de
Bacardi quanto o coração de Cassie ainda fumegam. O medalhão se abriu, e
o ouro enegreceu. Lá dentro, a foto do bebê está enrolada, queimada e cheia
de fumaça.
Aquela imagem minha, de bebê recém-nascida... um clarão, uma chama,
e fim... queimou até virar cinzas.
Baixando o olhar para Branch Bacardi, um paramédico punheteiro
comenta:
— Foi até bom, porque o zíper do saco de cadáveres nunca ia fechar com
um pau duro daquele tamanho lá dentro.
— Pode esquecer — diz o outro paramédico bundão. — Aquele monstro
não caberia dentro de um caixão fechado.
O desfibrilador fundiu Branch Bacardi e Cassie Wright num X humano.
Unidos pelos quadris. Com suas carnes casadas pelo ódio e queimadas
juntas mais profundamente do que qualquer casamento conseguiria.
Conjugadas. Cauterizadas.
Mas não... eles não morreram. Branch e Cassie. Foi quase, mas não. O
fedor de boceta e bolas queimadas vem do choque que quase matou Cassie
Wright, mas trouxe Branch Bacardi de volta à vida. O choque que fundiu
suas genitálias. Seladas juntas.
Fato real.
Os paramédicos ficam só olhando e abanando a cabeça, sem saber como
erguer aqueles corpos inconscientes, gêmeos siameses unidos pelas virilhas,
e carregar os dois para o hospital. Fundidos por algumas camadas de pele
cozida, ou um espasmo muscular, ou suas partes moles assadas num só bolo
de carne.
O cheiro de suor, ozônio e hambúrguer frito.
Então eu falei: Branch Bacardi e Cassie Wright são meu pai e minha
mãe. São meus pais. Eu sou filha deles.
Fato real. Batendo no peito, eu informo aos paramédicos:
— Meu nome é Zelda Zonk.
Mas ninguém ergue o olhar dos dois corpos nus, que ficam gemendo com
as cabeças balançando frouxamente sobre os pescoços. Os olhos deles
continuam fechados. Uma espiral de vapor se eleva daquela carne fundida.
Com seus mamilos e coração novos marcados em brasa.
Eu ergo a mão com os dedos esticados e unidos, como se faz nas
promessas escolares ou nos testemunhos jurídicos. Aceno ligeiramente para
que os paramédicos prestem atenção. Com a outra mão, bato no peito, no
lugar onde supostamente fica meu coração.
Por um instante, tudo parece tão importante. Quase real.
E eu falo novamente. Meu nome secreto. Erguendo a mão um pouquinho
mais alto para que alguém finalmente olhe e me veja.

FIM

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