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Violência e violações contra Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e o

Papel da Sociedade Civil na construção de ações de proteção.


Antonio Francisco de lima Neto1
Apresentação

O presente trabalho final da disciplina Direitos Humanos e Movimentos Sociais


do Programa de Pós-Graduação em Politicas Públicas em Direitos Humanos (PPDH)
pretende abordar uma temática que, tratada da forma que apresentamos nesse texto, é
relativamente recente para sociedade civil e movimentos sociais brasileiros. Nossa ideia
é de forma inicial, abordar a proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos
(DDHs) em sua perspectiva integral, de forma a dialogar com o que vem sendo
construído no cotidiano das lutas sociais de resistências a violências e violações de
direitos humanos sofridas nos últimos tempos no nosso país.
O presente trabalho tem como Objetivo Geral estudar a realidade dos Defensoras
e Defensores de Direitos Humanos no Brasil, frente ao atual momento de crescente
violência e violações dos direitos humanos e qual o papel da sociedade civil e
movimentos sociais nas ações de proteção.
Para isso, este trabalho esta estruturado em três partes, com ajuda dos textos e
temas estudados na disciplina vimos a necessidade de abordar uma leitura sobre o
Estado em Marx e Engels e o posterior enriquecimento dessa abordagem a partir da
leitura de Gramsci de Estado que explora o caráter Ampliado e as complexidades que
decorrem dele na parte 1. Ainda na parte1, buscamos aprofundar um pouco sobre o
conceito de sociedade civil de Gramsci que orienta o nosso entendimento de sociedade
civil e trataremos mais especificamente na parte 2.
Na parte 2 com a ajuda de Virginia Fontes tentamos trazer uma leitura da
sociedade civil gramsciana e como se deu esse debate no Brasil. Trazemos elementos
históricos e analíticos que nos ajudam a entender a complexidade das organizações da
sociedade civil no nosso país. Ainda nesse ponto buscamos, baseado na perspectiva
crítica de direitos humanos de Joaquim Herrera-Flores e Costa Douzinas, localizar de
quais organizações da sociedade civil que estamos falando quando estamos falando de
proteção a DDHs.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Politicas Públicas em Direitos Humanos (PPDH), do
Núcleo de Estudos de Politicas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DDH) e Pesquisador da Justiça
Global na equipe de Proteção à Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e da democracia.
Já na parte 3 trataremos das violências e violações contra DDHs e o Papel da
Sociedade Civil na construção de ações de proteção. Para isso discorreremos
inicialmente para entender quem são as pessoas defensoras de direitos humanos. Em
seguida trataremos quais as principais violências e violações afetam essas pessoas e
também a resposta do Estado em termos de politica pública para enfrentar os ataques e
criminalização contra DDHs. Por fim, traremos a Proteção Integral como uma ação
construída pelos movimentos sociais e as organizações da sociedade civil no
enfrentamento a essas situações de violências. Uma metodologia que permite o
fortalecimento das lutas de resistências contra os avanços do capital nos diversos
territórios, contra as ações dos estados nessas violações e por direitos humanos no nosso
país.

1. Estado, Estado Ampliado

Para iniciar essa discussão precisamos colocar o nosso entendimento sobre o


estado. Essa discussão é um debate antigo e traz interpretações diferentes. Nesse
trabalho nos apoiaremos nas elaborações de Marx e Engels, mas sobretudo, no conceito
de Estado Ampliado elaborado por Antonio Gramsci que agrega novos elementos a
teoria marxista de estado e qualifica melhor essa teoria. O Estado Ampliado em Gramsci
foi sendo apropriado, muitas vezes de maneira distorcida, no debate sobre a sociedade
civil e no chamado “terceiro setor” onde foram colocadas as organizações não
governamentais (ONGs) e organizações da sociedade civil como expressão desse
terceiro setor. Nossa intenção é dialogar sobre essa apropriação e localizar a proteção a
DDHs como uma necessidade para o seguimento das lutas emancipatórias por uma
sociedade livre e democrática.
Para entendermos as ideias de Karl Marx e Friederich Engels podemos partir da
clássica afirmação de que “a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de
classes” (MARX, 1996, p.66). É importante salientar que essa é uma visão que tem uma
perspectiva histórica, ele estava se referindo ao mundo e a sociedade da sua época, ou
seja, a sociedade capitalista em 1848 e sua teoria se desenvolverá nesse contexto
histórico da modernidade. Nesse mesmo texto ele segue afirmando que “a nossa época,
a época da burguesia, caracteriza-se, entretanto, por ter simplificado os antagonismos de
classe. A sociedade vai se dividindo cada vez mais em dois grandes campos inimigos
[…]: burguesia e proletariado” (MARX, 1996, p.67).
Na teoria marxista o Estado tem o papel de defender os interesses das classes
dominantes por meio de instrumentos regulatórios, através do sistema jurídico e do
aparato militar e policial, com o intuito de manutenção da ordem. No caso da sociedade
moderna, a função do estado é também de caráter repressivo para a manutenção do
status quo. Na obra “A guerra civil na França” Marx escreveu:

À medida que os progressos da moderna indústria


desenvolviam, ampliavam e aprofundavam o antagonismo de
classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi
adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital
sobre o trabalho, de força pública organizada para a
escravização social, de máquina do despotismo de classe.
Depois de cada revolução, que assinala um passo adiante na luta
de classes, revela-se com traços cada vez mais nítidos o caráter
puramente repressivo do poder do Estado (s/d. p.79).
.
Outro ponto expressivo da teoria marxista trata de que não é em todo momento
que o estado é administrado diretamente por um burguês, como analisou em na Obra “O
18 brumário” (1997), mas sua estrutura segue burguesa, representando os interesses da
classe dominante. Ou seja, o Estado está estruturado, nas sociedades capitalistas, em
função do capital.
Marx sustenta ainda que o Estado é essencialmente classista, ou seja,
representante de uma determinada classe e não da sociedade como um todo. Para ele,
“[…] o poder político do Estado representativo moderno nada mais é do que um comitê
para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A necessidade de um
grupo ou classe social é o que origina o Estado que mantém seu domínio econômico e
domínio politico sobre outras classes. Marx afirma (1993, p.96), “toda classe que aspira
a dominação […], deve conquistar primeiro o poder político, para apresentar seu
interesse como interesse geral, ao que está obrigada no primeiro momento”. É por isso
que as ideias dominantes de uma época, segundo Marx, são as ideias dos grupos
dominantes.
A organização da sociedade não era determinada pelo Estado, a composição da
sociedade, em suas relações de classes, que define a estrutura do Estado. Se de um lado
o Estado com sua atuação jurídica seria responsável por determinar a estrutura da
sociedade, por outro, Marx destaca que a estrutura de classe da sociedade determina a
estrutura do Estado. E neste sentido Marx afirma:
Através da emancipação da propriedade privada em relação à
comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular, ao
lado e fora da sociedade civil; mas este Estado não é mais do
que a forma de organização que os burgueses necessariamente
adotam, tanto no interior como no exterior, para garantir
recíproca de sua propriedade e de seus interesses (MARX, 1993,
p.98).

Antonio Gramsci enriquece a teoria marxista sobre o Estado e aceita o principio


básico do materialismo histórico de primazia da estrutura econômica sobre a
superestrutura jurídica-política. A teoria gramsciana de Estado amplia a leitura de Marx
e faz uma distinção entre “sociedades ocidentais” e “sociedades orientais” e é a partir
daí que ele desenvolve a sua teoria de Estado Ampliado.
Para Gramsci nas "sociedades ocidentais", existe uma relação de equilíbrio entre
a sociedade política e a sociedade civil. A luta de classes se da em meio às disputas
dentro dos aparelhos privados de hegemonia, quando mira obter a direção político-
ideológica e do consenso. Dessa forma o Estado se amplia e o cerne da luta de classes
está na “guerra de posição” (GRAMSCI,1988, p.68, 75), ou seja, numa conquista
constante de lugares dentro e por meio da sociedade civil, visando à conquista de
posições. Para isso é necessário que a classe dominada se transforme em classe
dominante antes da tomada do poder, o que não acontecerá de um dia para o outro, de
forma messiânica.
Nas "sociedades orientais" a sociedade civil não se desenvolveu de forma
autônoma e forte e nelas a sociedade civil é primitiva e gelatinosa onde a luta de classes
se dá de maneira que visa à conquista abrupta do Estado. Quando o Estado é restrito, a
luta revolucionária aparece como "guerra de movimento", ou seja, dá-se à luta de
classes uma estratégia de ataque frontal, com objetivo de conquista e conservação do
Estado restrito.
A partir dessas diferenciações nas formações sociais, fica nítido que a
ocidentalidade ou orientalidade de uma formação social não é um fato geográfico, mas
sim um fato histórico. Nesse sentido o Estado ampliado em Gramsci é a junção de duas
esferas, a sociedade política (o Estado em sentido estrito) e a sociedade civil (estado
ético). A “sociedade política” é formada pela reunião de dispositivos dos quais a classe
dominante exerce o monopólio legal da repressão e da violência através dos aparelhos
coercitivos ou repressivos de Estado e que são dirigidos pelas burocracias dirigentes. É
através da sociedade política que as classes dominantes exercem sempre uma ditadura,
uma dominação mediante coerção (COUTINHO, 1999, p. 127-129). Já a “sociedade
civil” é formada por organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das
ideologias. Podemos citar sindicatos, partidos políticos, igrejas, escolas, organizações
profissionais, meios de comunicação, dentre outros. É na sociedade civil que as classes
buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam atrair aliados para suas posições
através da direção política e do consenso. Os condutores materiais são os "aparelhos
privados de hegemonia", que são estruturas sociais e coletivas que exercem uma relativa
autonomia da sociedade política.
Gramsci conceitua "sociedade civil" como portadora material da figura social da
hegemonia, como esfera de mediação entre a infraestrutura econômica e o Estado em
sentido restrito. Conceitua também como a “sociedade civil” pertence ao Estado
ampliado, ela seria estatal em sentido amplo (COUTINHO, 1999, p. 121).
O marxista italiano sustenta que "no oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil
era primordial e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma
justa relação e em qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa
estrutura da sociedade civil"(GRAMSCI, 1988, p. 75 e GRAMSCI, 2000, p.262).
Segundo Coutinho, nesse fragmento de frase, Gramsci resume sua posição que define a
novidade de seus conceitos de Estado e revolução em relação à experiência dos
bolcheviques (COUTINHO, 1996, P. 58).
Como dissemos anteriormente, Gramsci enriquece a teoria de Estado de Marx,
mas traz uma diferença fundamental na sua teoria. Isso não o coloca em contraposição
com Marx, como muito autores supõem, pelo contrário, os colocam no mesmo campo.
Para Marx a sociedade civil e a estrutura econômica são a mesma coisa. O Estado é
parte da superestrutura e, portanto, resultado da sociedade civil, mas não é uma parte
com racionalidade própria ou autônoma. Gramsci traz uma perspectiva diferente e
coloca que a sociedade civil faz parte da superestrutura e não da estrutura ao contrário
do que defende Marx. A sociedade civil é o momento das relações ideoculturais e
políticas e não o momento das relações econômicas.
Para Gramsci a superestrutura não termina sociedade civil, pois ela é a soma da
sociedade política com a sociedade civil. Ou seja, é na sociedade política que se
desenvolve as funções de ditadura, coerção e dominação, por meio dos aparelhos
coercitivos e repressivos, enquanto a sociedade civil tem as funções de hegemonia,
consenso e direção, mediante os aparelhos privados de hegemonia. É a “unidade na
diversidade”, elas formam um par conceitual, que mesmo sendo lidas separadamente
não podem ser entendidas de forma separada. Não podem negar seu valor unitário, sua
ideia de totalidade. É o Estado amplo e a estrutura econômica (COUTINHO, 1999, p.
130).
É importante frisar que Marx e Gramsci dão a sociedade civil uma centralidade
ontológica, mas é em Gramsci que identificamos a possibilidade e a necessidade para a
revolução que uma classe que ainda não dominante no plano do poder político, possa já
ser no plano ideológico. Isso não significa que Gramsci confira ao plano econômico um
papel secundário, pelo contrário, em Gramsci é reforçada a centralidade ontológica do
ser social e do econômico como momento determinante da transformação social Como
se Gramsci conferisse à esfera econômica um papel secundário.

2. Sociedade Civil e perspectiva crítica dos Direitos Humanos

Sabemos que o conceito de sociedade civil formulado por Gramsci suscitou


diferentes leituras que influenciaram diretamente o que hoje entendemos como
“sociedade civil”, “terceiro setor”, ONGs etc. O que entendemos hoje começou a ser
difundido no Brasil na década de 70 do século XX e o seu ingresso no mundo
acadêmico se deu com muita polemica e dificuldades a partir das primeiras traduções de
Gramsci no período pós-golpe militar. As ideias foram sendo incorporadas no
pensamento social brasileiro de maneira paulatina como base de leitura e interpretação
da realidade do país. (FONTES, 2010, p. 223).
É importante salientar que quando falamos de sociedade civil nas pesquisas e
avaliações sobre a realidade brasileira, principalmente depois dos anos 1970, é comum
centrarmos nossas análises nos setores organizados que, de certa forma, criticam o
capitalismo a nível local e internacional. Na maioria das vezes deixamos de lado as
organizações ou setores da sociedade civil que não questionam o estado de coisas que
vivemos e visam a manutenção do status quo.
Hoje, sociedade civil, é um termo muito genérico onde cabe uma diversidade
grande de setores, interesses e se confundem quando tentamos tratar dos setores e
organizações mais críticas ao capitalismo e ao modelo de desenvolvimento do país.
Diante disso, nesse trabalho, trataremos mais especificamente de organizações da
sociedade civil que trabalham com violências e violações dos direitos humanos –
entendidos numa perspectiva crítica – e se colocam junto aos movimentos sociais e suas
organizações no questionamento a esse modelo e ao capitalismo de maneira geral.
À luz do conceito gramsciano já vivemos no Brasil distintos momentos na
conformação e atuação da sociedade civil, em momentos de forma mais autônoma e em
outros de forma mais vinculadas as ações do Estado. Focaremos no período posterior a
1970, pois alguns autores tratam esse momento como ressurgimento e também como
uma fundação efetiva do que entendemos hoje como sociedade civil. O ressurgimento
tem como centro a oposição ao estado autoritário da ditatura militar, pois a existência
anterior da sociedade civil estava muito vinculada ao Estado e, portanto, sem autonomia
(AVRITZER, 1994, apud DAGNINO, 2002, p. 9)2.
Vários fatores influenciaram, nesse período, da formação ao fortalecimento da
sociedade civil brasileira. Em âmbito internacional a luta contra o apartheid e a lutas dos
negros pelos direitos civis; o maio de 1968 francês e a influência que ele teve no
mundo; a fragmentação das experiencias dos partidos comunistas europeus; o
surgimento das lutas feministas e as lutas pacifistas. No Brasil o maio francês foi
sentido, mas influenciou de forma distinta, pois vivíamos a luta contra a ditadura como
principal bandeira de luta de parte significativa da sociedade civil. Essa luta reverberou
nas lutas estudantis e populares de 1968, aumentando as manifestações de rua e
influenciando diretamente no fortalecimento da resistência armada contra a ditadura
(FONTES, 2010, p. 224).
Com o golpe civil-militar de 1964 vemos um aumento significativo de
organizações da sociedade civil de cunho empresarial e que apoiavam diretamente o
Estado ditatorial brasileiro, mas também vemos um fortalecimento de organizações da
sociedade civil, muitas delas pré-existentes ao golpe e que desempenharam um papel
muito importante na resistência antiditatorial. Podemos citar a Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) e muitas outras (ALVES, 1987, apud FONTES, 2010, p. 225)3.
A sociedade civil nas décadas de 1970 e 1980 foram especialmente importantes
quando tratamos de organizações e fortalecimentos das lutas populares de caráter
urbano, com destaque para os movimentos de favelas e de bairros, que ousaram traduzir
as demandas populares das periferias das grandes cidades que não estavam sendo
contempladas pelo acelerado processo de urbanização do país. Nesse período também
2
AVRITZER, L. (Org.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

3
ALVES, M. H. N. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 4. ed., 1987.
ganham destaque as lutas classistas com abrangência nacional organizadas no contexto
da formação dos três principais instrumentos da classe trabalhadora rural e urbana do
país que ajudou a formar Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
É esse terreno que propicia a construção do primeiro surto do que hoje
conhecemos como Organizações não governamentais (ONGs). As ONGs foram se
formando através da atuação de muitos antigos militantes contra a ditadura que foram
exilados fora do país como mais uma forma de atuação política. Foram financiadas
quase sempre com recursos internacionais, o que trouxe uma modificação forte nas
formas de organização popular que se seguiu posteriormente. Como afirma Fontes, esse
termo mais atrapalha do que ajuda a entender o fenômeno, pois:
[...] uma vez que usa como critério de classificação o
pertencimento institucional ou não de uma entidade, o que
envolve dois problemas graves: esquece o fato de que a
contraposição fundamental a governo/público é privado/empresa
e, em seguida, decreta essa diferenciação unicamente por
decisão nomeadora, sugerindo uma existência idealizada,
apartada tanto da propriedade privada (mercados) quanto da
política. Se a etiqueta ONG não é inocente, bem menos
inocentes são os que procuraram justificar tais entidades através
de argumentos angelicais (FONTES, 2010, p. 231).

Esse foi também um período especialmente difícil para a formação das ONGs no
Brasil. Se por um lado vivíamos a efervescência de uma sociedade civil que criou três
dos principais instrumentos de lutas e resistência contra os entulhos autoritários da
ditadura, por outro, as organizações empresariais já tinham o seu espaço conquistado
anteriormente e fortalecido com a ditadura militar. O campo para a atuação das ONGs
era minado e mesmo elas se colocando como novidade tinham dificuldades de ocupar
um terreno já ocupado. Foi aí que religiosos ligados a Teologia da Libertação que
estavam em constante disputa com a estrutura da igreja, passaram a converter as
estruturas construídas pelas comunidades eclesiais de base e hegemonizadas por eles em
ONGs. Suas institucionalidades já atuavam através de entidades privadas e com fontes
de financiamentos internacionais e foi um caminho “natural” que formou muitas ONGs
atuais. Os centros de estudos e pesquisas criados no final da década de 1960 com intuito
de desviar as atenções dos órgãos de repressão para a sua atuação de formação popular,
também foram sendo constituídos como ONGs no final da ditadura que também
contavam com financiamentos internacionais e que se converteram em forma de atuação
profissional de muitos militantes.
É inegável o papel importante que as ONGs que se formaram na década de 1980
tiveram na atuação conjunta com os movimentos sociais e populares. Houve um
fortalecimento do movimento sindical e a unificação das lutas dentro do Partido dos
Trabalhadores que sintetizou, com todas as críticas e dificuldades, os anseios da
sociedade civil de caráter classista, democrático e anticapitalista. Porém a década de
1990 essas condições se modificaram muito fortemente. A queda do muro de Berlim, a
expansão do neoliberalismo com Collor e Fernando Henrique Cardoso, os recuos na
atuação do PT e da CUT e fortalecimento da Força Sindical, as privatizações,
expropriações e a concentração empresarial, conformam o terreno que trouxe profundas
modificações na base organizativa da classe trabalhadora brasileira, que viria a ser em
parte desmantelada e também, em grande medida reconfigurada. Esse conjunto de
acontecimentos trouxe mudanças centrais também nas ONGs e organizações da
sociedade civil no Brasil.
A década de 1990 com o aprofundamento do neoliberalismo e o chamado fim
das utopias foram sendo incorporados também dentro do campo das ONGs. Foi nessa
época que uma quantidade grande de ONGs que se identificava com o campo popular
passa a recusar o vínculo e o seu reconhecimento com a classe trabalhadora.
Aprofundaram seu viés filantrópico e, de certa forma, contribuíram para o desmonte dos
direitos universais e passaram a querer gerir o espólio desse desmonte, se colocando
para executar políticas públicas como gestoras mais confiáveis dos recursos públicos,
pois estava se fortalecendo a ideia de que o Estado é ineficaz e incompetente (FONTES,
2010, p. 268).
A gestão privada de recursos públicos se conformou como um campo de atuação
não somente das ONGs empresariais, mas também das ONGs que em outros momentos
estavam no campo popular e em articulação direta com os movimentos sociais. Elas
reafirmavam o seu caráter privado, mas sem fins lucrativos, e se colocavam para
gerenciar de forma mais flexível e descomplicada as políticas públicas. Esse é um
problema que persiste desde então e identificamos hoje quando analisamos a política
pública de proteção a defensoras e defensores de direitos humanos que é executada por
organizações da sociedade civil.
ONGs ligadas ao campo popular na década de 1980 passam a construir na
década de 1990 um discurso de abandono das classes sociais e de suas lutas, das
agendas totalizantes, estruturante para uma atuação focalizada, desestruturante, na
administração de uma pobreza genérica, essencializada e sem ligação com a questão da
desigualdade e da distribuição da riqueza e da renda. Um “terceiro setor” entre o Estado
e as empresas, que na essência visava substituir a ação do Estado pela sua ação nas
áreas sociais. A maioria das ONGs estavam desconectadas da base social e de certa
forma orgulhosas dessa desconexão. Reduziam o horizonte de sua própria intervenção,
adaptadas e, sobretudo, adaptadoras aos “novos” tempos. Aparelhos privados de
hegemonia não se definem, em Gramsci, unicamente pela vontade de transformação (ou
de conservação), mas pelos laços orgânicos que os ligam às classes sociais
fundamentais (FONTES, 2010, p. 282).
Para nós, em acordo com a elaboração de Fontes, com influência do pensamento
Gramsciano a sociedade civil é arena da luta de classes e, portanto, do embate entre
aparelhos privados de hegemonia e de contra hegemonia no sentido do convencimento,
da formação, da educação de quadros, de sua organização segundo objetivos e projetos
de classe contrapostos. Nesse sentido, entendemos como organizações da sociedade
civil aquelas que compartilham a perspectiva crítica de direitos humanos e o
compromisso com o fortalecimento dos movimentos sociais e de suas lutas na resolução
dos problemas estruturais no país. Este é um recorte claro do que estamos afirmando.
O conceito de direitos humanos é muito amplo e suscita muitas disputas na sua
concepção teórica e prática pautadas por amplos setores da sociedade em suas mais
diversas matrizes políticas. Nesse sentido, é preciso demarcar o nosso lugar na
concepção crítica dos direitos humanos e a influência de Herrera-Flores e Costa
Douzinas.
No ano de 2022 completamos 74 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos que criou um instrumento internacional de direitos humanos que foi
incorporada às constituições nacionais dos países que assinaram a declaração e ao
mesmo tempo instalou uma contradição, pois os governos e grupos econômicos
constantemente a desrespeitam e vivemos uma recorrente violação dos seus princípios.
No decorrer desses anos, fomos produzindo cada dia mais riqueza e mercadorias,
aumentando a circulação de pessoas no mundo e, ao mesmo tempo, aprofundando a
desigualdade e violação aos direitos humanos. Produzimos o holocausto, faxinas
étnicas, massacres, genocídio, e, no entanto, como afirmado por Douzinas, os “direitos
humanos tem apenas paradoxos a oferecer” (DOUZINAS, 2009, p. 17).
A teoria crítica dos direitos humanos identifica algumas críticas a teoria tradicional e
se coloca para denunciar e desmistificar as falácias sustentadas por ela. A primeira delas
questiona o seu caráter utópico que se contradiz diretamente com a atitude dos estados e
de grupos econômicos. De certa forma é irrealista se propor uma Declaração Universal
num mundo pluricultural e esconde a diversidade do mundo que vivemos e as lutas
constantes por afirmação de direitos consagrados e dos direitos que ainda não tomaram
forma jurídica formal. A principal crítica a essa universalidade entende que esse
discurso é eurocêntrico e branco e que o resto do mundo teria que se encaixar a valores
e princípios que não nos são próprios e que foram sendo impostos nos nossos
continentes desde a colonização.
Outra crítica importante parte do campo marxista, que afirma que o direito nada
mais é do que a vontade das classes dominantes e um mero reflexo da estrutura
econômica da sociedade. Assim, as classes dominadas não teriam proteção segura nas
leis, que seriam simples instrumentos de dominação. Esse campo de crítica entende que
os direitos humanos podem ser usados para esconder as maneiras como o poder é
exercido, seja pelo estado ou por empresas. No entanto, é também através da luta pela
efetivação dos direitos que se pode lutar contra os modelos de opressão e dominação.
Nesse sentido, os direitos humanos podem ser entendidos como “processos de luta pela
dignidade”. Cabe aos movimentos sociais junto com organizações da sociedade civil
construírem um o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e
culturais que possam organizar a luta para a efetivação dos seus direitos e por uma vida
digna (FLORES, 2019).
Uma crítica adicional à concepção tradicional de direitos humanos a classifica como
uma perspectiva estagnada e simplória. Pois quando não se leva em conta as diferenças
das sociedades, coloca todos os questionamentos sobre direitos humanos no momento
da sua implementação. As violações aos direitos humanos não são somente uma questão
de vontade política, mas também uma questão estrutural no âmbito da sociedade
capitalista. Ademais, ao não colocar em xeque a estrutura social, a teoria tradicional
imobiliza as lutas e as reivindicações sociais.
Como defende Flores, os direitos humanos não podem ser encarados como um fim
em si mesmo, nem como algo que precisa ser institucionalizado, precisamos entender os
direitos humanos como meios para alcançar a dignidade, entendendo dignidade na
mesma chave colocada por Flores, que afirma:
Desse modo, os direitos humanos seriam os resultados sempre
provisórios das lutas sociais pela dignidade. Entenda-se por
dignidade não o simples acesso aos bens, mas que tal acesso seja
igualitário e não esteja hierarquizado “a priori” por processos de
divisão do fazer que coloquem alguns, na hora de ter acesso aos
bens, em posições privilegiadas, e outros em situação de
opressão e subordinação. Mas, cuidado! Falar de dignidade
humana não implica fazê-lo a partir de um conceito ideal ou
abstrato. A dignidade é um fim material. Trata-se de um objetivo
que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens
que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida (FLORES,
2009, p. 31).

Outro aspecto importante da teoria crítica faz-se do entendimento de que as


diferenças de poder são intrínsecas à sociedade capitalista e que parte da luta pelos
direitos humanos é questionar a atual estrutura social e dar visibilidade às diferenças de
poder relacionadas a classe, raça, gênero etc. E neste ponto as diferenças em relação à
teoria tradicional são profundas:
O que rechaçamos são as pretensões intelectuais que se
apresentam como “neutras” em relação às condições reais nas
quais as pessoas vivem. Se não temos em conta em nossas
análises tais condições materiais, os direitos aparecem como
“ideais abstratos” universais que emanaram de algum céu
estrelado que paira transcendentalmente sobre nós (FLORES,
2009, p. 31).

Pensar os direitos humanos nessa perspectiva proposta por Flores Douzinas e


pelos partidários da teoria crítica, nos provoca a entende-los não como uma questão
individual, e sim como uma questão coletiva, mas não universalista, que parte de um
relativismo relacional em que se entendem que os direitos e as instituições nascem
como resposta aos seus contextos específicos. Não significa, também, que vamos
ignorar as leis, convenções ou declarações de direitos humanos dos diferentes países,
mas precisamos ter consciência que elas são limitadas para a garantia de direitos numa
estrutura de sociedade que é desigual e cheia de conflitos. Por isso é fundamental que
comunidades, coletivos e indivíduos se empoderem e se organizem para realizar lutas
políticas e jurídicas.
Temos que reconhecer o potencial do conceito de direitos humanos, a partir da
perspectiva crítica, para defender os “mais fracos” e de defender os indivíduos do
autoritarismo do estado, mas ao mesmo tempo admitir que é limitado a sua formulação
e é ingênuo deixar de lado o seu principal objetivo: mitigar os efeitos da discrepância e
das diferenças sociais. Não podemos ignorar que o estágio atual do que entendemos por
direitos humanos e a sua evolução histórica é resultado da mobilização da sociedade
civil e dos movimentos sociais contra todos os tipos de exclusão, repressão e desmandos
que podem servir, de alguma forma, como instrumento de fortalecimento das lutas
populares.

3. A violência e violações contra defensoras e Defensores de direitos humanos e


o papel da Sociedade civil na Proteção Integral

Quem são as defensoras e defensores de direitos humanos?


Quando identificamos o aprofundamento das violências e desigualdade na
sociedade também pensamos nas pessoas que lutam para enfrentar e resistir essas
desigualdades. A estas pessoas chamamos de Defensoras e Defensoras de Direitos
Humanos (DDHs). Afinal, quem são essas pessoas? Por definição e com o intuito de
proteção e como forma de reconhecimento ao trabalho dessas pessoas, grupos ou
organizações a ONU através da Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações
Unidas de 9 de dezembro de 1998, reconhece e conceitua que são as e os DDHs:
“pessoas físicas que atuem isoladamente, pessoa jurídica, grupo, organização ou
movimento social que atue ou tenha como finalidade a promoção ou defesa dos direitos
humanos” (ONU, 1998). Esse mesmo conceito foi utilizado para a construção dos
decretos presidenciais e projetos de lei que instituíram o a política nacional de proteção
a DDHs no Brasil.4
Podemos destacar o que dispõe o art. 1º da Declaração sobre DDHs (1998), de
que “todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de
promover e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais a nível nacional e internacional” (ONU, 1998).
Destacamos que a criação da declaração foi um salto no sentido de dar maior
segurança, proteção e reconhecimento para as pessoas defensoras. Mas para o seu
funcionamento pleno precisa que seja efetivada nos estados nacionais na construção de

4
O projeto de lei nº 4.575/2009, que institui o Programa Nacional de Proteção de Defensores de Direitos
Humanos (PPDDH) tramita no Congresso Nacional até hoje, sem aprovação. Hoje o PPDDH é regido
pelo Decreto nº 10.815/2021 que institui a politica pública e utiliza o mesmo conceito de defensores da
ONU.
políticas públicas para proteção de DDHs. A declaração contribuiu também a atuação de
organizações da sociedade civil e movimentos sociais na atuação nessa temática.
No Brasil diversas organizações da sociedade civil – aqui destacamos a Justiça
Global – que trabalham com o tema desenvolveram um conceito que dialoga com o
desenvolvido na declaração de defensores da ONU, mas agregas outras questões de
coletividade e resistência política. Destacamos,
As defensoras e defensores de direitos humanos são todos os indivíduos,
grupos, organizações, povos e movimentos sociais que atuam na luta pela
eliminação efetiva de quaisquer violações de direitos, violências e em prol
das liberdades fundamentais dos povos e indivíduos. Isso inclui aqueles que
buscam a conquista de novos direitos individuais, políticos, sociais,
econômicos, culturais e ambientais, ainda que esses direitos não tenham
assumido forma jurídica ou definição conceitual específica. São
contempladas nessa definição também as pessoas e coletivos que resistem
politicamente aos modelos de organização do capital, do racismo, do
patriarcado e do machismo, às estratégias de deslegitimação e criminalização
praticadas por ação do Estado e/ou articuladas em conjunto a atores privados,
bem como às violações perpetuadas pela sua omissão, como aquelas
provocadas pela ausência de reconhecimento social de suas demandas e
identidades (JUSTIÇA GLOBAL, 2021, P12.).

Essa conceituação será nossa referência para entendermos e identificarmos de


quem estamos falando. Destacamos ainda que dentro dos movimentos sociais e da
sociedade civil brasileira essa é uma constante discussão e disputa e os diferentes
conceitos usados orientam a construção de suas ações e estratégias de proteção.

Violações e violências contra Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no Brasil


O Brasil e América Latina continuam a ser uma das regiões mais violentas do
mundo para defensores e defensoras de direitos humanos. Segundo dados coletados pelo
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH)5 , de
1323 assassinatos de defensores no mundo entre 2015 e 2019, 933 aconteceram na
América Latina e Caribe, com destaque para Colômbia (397), Brasil (174), México
(151), Honduras (73), Guatemala (65) e Peru (24).

5
A/HRC/46/35. Final warning: death threats and killings of human rights defenders: report of the Special
Rapporteur on the Situation of Human Rights Defenders, Mary Lawlor. United Nations General
Assembly, 24 de Dezembro de 2020
Ainda que essa violência esteja presente nos mais diversos campos da defesa de
direitos, há uma prevalência no campo dos defensores ambientais, ou seja, as/os que
atuam no contexto de luta pelo direito à terra e território, e de povos indígenas e outros
povos e comunidades tradicionais. Nesse sentido, o relatório 6 da organização
internacional Global Witness revela que em 2020, dos 227 assassinatos de defensores
ambientais analisados pela organização no mundo, 165 casos (75%) aconteceram na
região, com destaque para Colômbia (65), México (30), Brasil (20) e Honduras (17).
Não coincidentemente, esses Estados que lideram os rankings de assassinatos
estão também entre os poucos países do mundo que possuem mecanismos estatais de
proteção a defensores/as de direitos humanos. A extrema violência política que
historicamente marca a atuação das defensoras e defensores nesses países produziu uma
pressão que fez com que esses Estados criassem esses mecanismos em resposta as
situações de violências e violações.
Segundo informe da Relatoria Especial sobre a Situação de Defensores de
Direitos Humanos das Nações Unidas7 , mesmo nesses países com mecanismos
específicos de proteção, o Estado continua falhando em cumprir sua obrigação de
proteger, considerando a falta de recursos suficientes aos mecanismos e as críticas dos
próprios defensores atendidos sobre sua atuação.
O informe ressalta ainda que, ao analisar denúncias sobre assassinatos das
defensoras e defensores ambientais na América Latina enviadas nos últimos anos, na
grande maioria dos casos as vítimas haviam relatado e denunciado ameaças e violações
anteriores, mas a falta de proteção adequada possibilitou que essas ameaças escalassem
até o assassinato dessas vítimas.
Apesar das recomendações internacionais quanto aos mecanismos de proteção
de defensores de direitos humanos, que têm exigido que altas autoridades estaduais
garantam ambientes propícios e seguros ao trabalho das defensoras e defensores dos
direitos humanos e tomem todas as medidas preventivas necessárias para sua proteção,
os discursos governamentais e suas ações, na prática, vão contra o seu cumprimento.
O uso do discurso criminalizador não é dirigido apenas contra os defensores,
mas também contra grupos e coletivos que defendem seus direitos. No caso do Brasil,
discursos de autoridades estatais contra povos indígenas, quilombolas e movimentos
6
https://www.globalwitness.org/es/comunicados-de-prensa/global-witness-reports-227-land-and-
environmental-activists-murdered-single-year-worst-figure-record-es/
7
A/HRC/46/35. Final warning: death threats and killings of human rights defenders: report of the Special
Rapporteur on the Situation of Human Rights Defenders, Mary Lawlor. United Nations General
Assembly, 24 de dezembro de 2020
negros e sociais como o Movimento Sem Terra, são exemplos dessa criminalização e
acarreta impactos negativos para as demais defensoras e defensores que continuam
lutando em defesa do território e de suas bandeiras, pois cria um ambiente hostil e
intimidador.
O uso da estigmatização, criminalização, torturas e assassinatos também devem
ser mencionados como um dos principais ataques dirigidos às mulheres defensoras dos
direitos humanos, nas quais, além de desacreditar seu trabalho, as deslegitimam e as
colocam em risco por sua condição de mulher. Isso responde ao fato de que, com sua
atividade, eles também desafiam estereótipos e papéis tradicionais de gênero.
As pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil enfrentam acusações
criminais e/ou ameaças de uso do direito penal contra elas e eles. Esta situação não é
recente, é uma prática generalizada e persiste, conforme corroboram os relatórios
contínuos dos diferentes sistemas de proteção, tanto regionais como universais. Segundo
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o direito penal é utilizado
indevidamente, de forma geral “(...) em contextos onde há tensões ou conflitos de
interesse com atores estatais e não estatais que fazem uso do aparato penal com a
finalidade de obstruir o trabalho dos defensores dos direitos humanos e, assim,
interromper seu trabalho por considerá-lo contrário aos seus interesses”8. Esta
criminalização é baseada no uso indevido e intencional do direito penal, e pode
significar sentenças de prisão de longo prazo9.
Crimes como usurpação, associação ilícita, classificação como organização
criminosa, formação de quadrilha, violência contra servidores públicos, obstrução de
vias públicas, paralisação de serviços públicos, danos à propriedade alheia, atentados
contra a ordem pública, danos agravados, violência e resistência à autoridade, extorsão,
sequestro, atentado à segurança do Estado, terrorismo, sabotagem e rebelião, entre
outros, são usados contra as defensoras e defensores de direitos humanos. Atores
estatais e privados participam da criminalização destes, e da mesma forma, a
instauração de processos judiciais se efetua a partir de uma formulação genérica ou
ambígua dos tipos penais que tende a ser utilizada “arbitrariamente” pelas autoridades.

8
OEA/Ser.L/V/II. CIDH. 31 de dezembro de 2015. Criminalização do trabalho dos defensores dos
direitos humanos
9
A/76/143. 19 de julho de 2021. Informe de Mary Lawlor. Relator Especial sobre a situação dos
defensores dos direitos humanos
A Política Pública de Proteção as Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no
Brasil
Em quase duas décadas de existência, o Programa de Proteção a Defensores de
Direitos Humanos passou por muitas modificações que inclui desde a sua localização
dentro da estrutura governamental, até mudanças mais estruturais, como por exemplo a
retirada da sociedade civil da gestão do programa, desmontando a participação social.
Organizações da sociedade civil participaram ativamente desde o início da
discussão e implementação sobre o programa entendendo que seria importante o seu
fortalecimento e institucionalização, ao mesmo tempo que se desafiou a executar a
política pública nos estados, assumindo o papel desse na responsabilidade de executar.
Seguiu denunciando os desmontes e ameaças que afetaram o programa e emitir
propostas para o efetivo funcionamento do programa exigindo a garantia de efetividade
de proteção às defensoras de direitos humanos no Brasil.
O PPDDH foi pensado em seu início como uma resposta estatal as ameaças,
ataques e violações contra DDHs que historicamente afetam quem lutam pelos seus
direitos um pouco depois da declaração da ONU de 1998. Em 2003 a então Secretaria
Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, atual Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), criou um Grupo de Trabalho
com participação do Estado e de organizações da sociedade civil, com o objetivo propor
medidas e programas nos âmbitos nacional, regional e local que garantissem o
cumprimento dos direitos reconhecidos na Declaração da ONU e também pensando na
análise de projetos de lei que estavam em tramitação no Congresso Nacional que
visavam melhorar a legislação existente em matéria de proteção a DDHs10.
Em 2004, por meio da portaria nº14/2004, do Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana (vinculado à SEDH), foi criado o Programa Nacional de Proteção
aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), incluindo sua Coordenação Nacional,
formada por órgãos governamentais, representantes da sociedade civil e pela
coordenação dos programas estaduais. Apesar da sua criação em 2004, o programa só
passou a funcionarem 2005 depois do assassinato da missionária Dorothy Stang, que era
uma defensora destacada na luta por terra e território no país. A partir da grande
repercussão que o caso proporcionou, o Estado se sentiu pressionado e lanços projetos

10
SEDH. Manual de procedimentos dos Programas de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
Brasília, DF, 2007, 74 p; p. 11.
pilotos nos estados do Pará, Espírito Santo e Pernambuco através de convênios
assinados entre o governo federal e os governos estaduais.
Em 2007, o PPDDH foi instituído legalmente pelo decreto presidencial nº 6.004,
que lançou as bases da Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos
Humanos (PNPDDH), determinou um prazo para a O decreto determina um prazo para
elaboração do Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. É
importante destacar que até os dias atuais a política nacional de proteção a DDHs é
regida por normas infralegais, por diversos decretos presidenciais. Até hoje está parado
no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) nº 4575/200911 que foi apresentado pelo
Poder Executivo, passou por diversas comissões, mas não foi aprovado. A última
movimentação legislativa do projeto foi em junho de 2018 através de um requerimento
de urgência no contexto do assassinato de Marielle Franco.
Em 2016, um novo decreto presidencial, nº 8.724, que como principal ação
acabou com a coordenação nacional e retirou a sociedade civil da gestão do programa.
Esse decretou foi um grande golpe na participação social que até então era um dos
pilares do programa. A gestão desde então se dá através de um conselho deliberativo
formado somente por órgãos do Estado. No mesmo ano a portaria nº300 12, ampliou o
escopo do programa incluindo comunicadores e ambientalistas como público-alvo da
política, se chamando agora “Programa de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos, Comunicadores sociais e Ambientalistas”.
Hoje o PPDDH é regido pelo Decreto nº. 9.937, de 24 de julho de 2019 13 –
revoga o decreto nº8.724, de 27 de abril de 2016 - Institui o Programa de Proteção aos
Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas e o Conselho
Deliberativo do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos,
Comunicadores e Ambientalistas no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos14. E que posteriormente foi alterado pelo Decreto nº 10.815, que
muda a composição e competências do Conselho Deliberativo15.
O PPDDH passa por dificuldades desde o início de sua implementação, sendo
acompanhado de perto pela sociedade civil e movimentos sociais que vem alertando
para essas dificuldades e incidindo para a melhoria de suas ações e para que este seja de
11
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=422693
12
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/39528373/do1-2018-09-04-
portaria-n-300-de-3-de-setembro-de-2018-39528265
13
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9937.htm#art11
14
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9937.htm#art11
15
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.815-de-27-de-setembro-de-2021-348154009
fato efetivo. Com o passar dos anos as críticas se mantêm, o que mostra que o pouco
esforço estatal de transformar a política efetiva e com capacidade de respostas.
Neste sentido, em pesquisa recente “O começo do fim?” realizada pelas
organizações Justiça Global e Terra de Direitos16, destacam que hoje estamos vivendo o
pior momento da política publica de proteção a defensora e defensores.
Entre essas questões estão a baixa execução orçamentária, que não usa todo o
recurso do orçamento na execução do programa; a falta de participação social e
transparência, na medida em que retira a sociedade civil da gestão do programa; a baixa
institucionalização do programa, onde até hoje não existe uma lei que garanta o
programa como política de Estado; Falta de estrutura e equipe para atendimento da
demanda, que é muito pequena nos estados onde existe o programa e na equipe técnica
que atendem onde os casos nos estados que não tem programa em funcionamento;
Diminuição de casos incluídos no programa, com o passar dos anos, a falta de ações
efetivas e a desconfiança nas execução da política, a solicitação de entrada de novos
casos foram diminuindo ano a ano; Insegurança política na gestão: demora, ineficácia e
inadequação das medidas protetivas, que não são pensadas de acordo com a realidade
das e dos DDHs e muitas vezes as e os colocam em situações de
vulnerabilidadeInadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe, onde não
existem nenhuma ação protetiva que leve em consideração a perspectiva interseccional
e as diferente formas em que as violências são exercidas, sobretudo contra mulheres
defensoras; Demora, insuficiência e inadequação, onde o tempo para análise, definição
de um plano de proteção e sua execução não atendem à natureza urgente dos casos17.

Sociedade Civil e Proteção Integral


Diante do aumento das violências e violações contra defensoras e defensores de
direitos humanos e das dificuldades que vem passando a política pública de proteção
que não garante um ambiente propício para a atuação de mulheres e homens que lutam
por seus direitos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil foram sendo
obrigadas a desenvolver ações de proteção que possibilitassem o seguimento de suas
lutas de forma mais seguras e protegidas.
É importante destacar que o papel constitucional e legal de garantir proteção e
segurança para a atuação de pessoas defensoras é do Estado, que ao mesmo tempo é um

16
http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2021/12/comeco-do-fim-3.pdf
17
Idem.
dos maiores violadores de direitos humanos. Não cabe as organizações da sociedade
civil se responsabilizar por essas ações protetivas, mas no vácuo deixado pelo Estado,
foi necessário criar metodologias que permitam a avaliação de risco e de construção de
estratégias de proteção.
No bojo da construção de ações de proteção foi se desenvolvendo uma
metodologia, por parte da sociedade civil que permite olhar para a realidade que vivem
as defensoras e defensores de direitos humanos, entender o seu contexto e sua
conjuntura, identificar os atores e atrizes que atuam na realidade em que vivem e que
estão a favor, contra ou numa posição dúbia em relação as lutas desenvolvidas pelas e
pelos DDHs. Além de identificar os pontos fracos e fortes relacionados a proteção e
segurança de suas ações, identificar as ameaças e ataques recebidos formando um
quadro geral que nos possibilita saber quais os riscos e vulnerabilidades que são
inerentes ao trabalho e luta dos e dos DDHs. A esse processo chamamos de avaliação de
risco que é acompanhado pela construção de estratégias de proteção integral que
possibilitem diminuir os riscos para a atuação de pessoas defensores.
Chamamos de proteção integral as ações de proteção que são construídas
levando em consideração três aspectos fundamentais: a) proteção física (individual,
coletiva e institucional); b) comunicação segura (digital e física na produção de dados);
e c) cuidado e autocuidado.
Essa é ainda uma concepção pouco conhecida e desenvolvida na sociedade civil,
e nos movimentos sociais brasileiros que recentemente, influenciados por organizações
internacionais que trabalham com o tema passaram a desenvolver ações de proteção e
segurança levando em consideração a perspectiva integral. Cabe destacar o trabalho da
organização Justiça Global que desenvolve um longo trabalho de proteção a defensoras
e defensores de direitos humanos e foi uma das primeiras a trabalhar com essa temática
no país sistematizando um conceito próprio de DDHs e uma metodologia de análise de
risco e construção de estratégia de proteção que contribuiu bastante para que essa
temática ganhasse uma importância dentro da sociedade civil brasileira18. Outras
organizações vem desenvolvendo trabalhos nessa temática, mas não conseguiremos
aprofundar uma análise nesse trabalho.

18
JUSTIÇA GLOBAL. Guia de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Rio de
Janeiro, 2021.
A partir desta concepção de proteção entendemos que ela não é uma prática
individual e isolada de cada DDH ou uma ação de organizações e espaços responsáveis
pela proteção que constrói sem diálogo. É imperativo a participação direta das e dos
DDHs como beneficiárias das medidas de proteção e que estão cientes da sua realidade,
necessidades e riscos, e portanto, melhor do que ninguém, podem definir as melhores
ações para a sua proteção. Afirmamos isso, pois em geral a politica publica de proteção
define medidas sem a participação das pessoas defensoras e que por conta disso não se
sentem reconhecidas nas ações e não as implementam da maneira que deveria
implementar. “Quanto mais relação com as forças coletivas, atrizes e atores públicos,
privados e da sociedade civil organizada, mais a proteção se estrutura como uma prática
social compartilhada que transversaliza atores e forças e que visa a integralidade do
cuidado e a autonomia dos indivíduos e coletividades que defendem direitos humanos”
(JUSTIÇA GLOBAL, 2021, P23).
Pensar proteção é construir ações que, na prática, sejam assumidas de maneira a
dividir as corresponsabilidades entre cada pessoa envolvida diretamente nas situações
de violências e violações enfrentadas. Ela deve possibilitar a manutenção e a
potencialização da defensora, defensor, organização ou movimento social a seguir
realizando a sua luta e exigir os seus direitos. Podemos afirmar que quando estamos
falando de proteção integral não significa a ausência de riscos na atuação das e dos
DDHs, mas sim pensar em formas de diminuí-los e mitiga-los. A proteção é por
principio um ação de redução de danos.
Como já falamos, as ações de proteção precisam estar adequadas a realidade que
vivem as e os DDHs e implica a construção de procedimentos que devem ser assumido
individual e coletivamente no sentido de romper o isolamento e fortalecer as
capacidades de lutas e resistências. Sendo um aspecto coletivo, é importante ressaltar
que quando um aspecto é ignorado, todo o coletivo torna-se exposto a riscos, ou seja,
executar uma ação de proteção não depende sentimento ou da sensação individual de
segurança, ou seja, o fato de uma pessoa achar que corre menos riscos não quer dizer
que os riscos não estejam presentes.
A grande maioria das situações de violência, ataques e criminalização decorre da
não resolução de questões estruturais que fazem com que as pessoas se envolvam nas
lutas por seus direitos. O racismo, o machismo, a concentração de terras, a desigualdade
socioeconômica, a falta de demarcação de territórios tradicionais, a falta de moradia
digna, a falta de educação e saúde, a violência policial, trazem consigo problemas a
serem enfrentados de formas diferentes e, com isso, a necessidade de ações de proteção
integral é também distinta entre eles. Saber identificar os elementos presentes em cada
contexto faz a diferença para a construção de estratégias seguras e adequadas a cada
grupo social e aumentar a segurança das pessoas e coletividades defensoras. Mesmo
levando todos esses aspectos em consideração, entendemos que a proteção nunca vai ser
total, sempre terá algum aspecto que não será considerado e que precisaremos nos
preocupar depois.
Os movimentos sociais historicamente desenvolveram em suas lutas cotidianas
ações de proteção e segurança que possibilitaram seguir lutando por seus direitos e que
a melhor forma de se proteger é o fortalecimento da organização e da luta popular. Por
isso, construir ações de proteção é resgatar as experiencias histórica dos movimentos
sociais que lutam no campo e na cidade e aliar ao que temos de mais atual desenvolvido
nas lutas de resistência no intuito de construir uma cultura de proteção que respeite as
experiencias e conjugue com as novas tecnologias existentes no mundo em que vivemos

Referências Bibliográficas

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