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HOMEM/MULHER 164

que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nos
orientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcance
das investigações que os antropólogos devem prosseguir com os historiado-
res para reconstituir as razões e as formas objeetivas das relações entre as
classes e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a repro-
dução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca a
capacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.]. MULHER

o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações


de produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organização
da exploração da natureza e a redistribuição (cf. produçtlo/distribuição) dos produtos do trabalho,
deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produção,
Dicionários e enciclopédias defmem a1temadamente a mulher como fêmea
sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam para do homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica do
além das re~ de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto, termo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmições, ape-
está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinação sar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto natu-
das mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo das
mulheres. ralista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo femi-
Para além. destas observações existe um princípio «II8tural»(cf. masculino/feminino, natureza/cul- nino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de características
tura), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivência próprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Bri-
da espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través do
tannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women
mecanismo das .proibições» e das discriminações (cf. discriminaçtlo): basta pensar na proibição
do incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinação das mulheres é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»:
existe assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição, troca), simbólica o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objecto
(cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor, exclustla/inte- de uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o facto
gração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «pri-
mitivas» (cf. caça/coleeta, primitivo, selvagem!bárbaro/civilizado) que no entanto elaboraram for-
de que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher,
mas de igualdade por nós desconhecidas. . é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como o
macho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de
existir uma reciprocidade entre os dois pólos.
Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto,
resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhora
da casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano,
de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem que
a engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto histó-
ria da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua parte
de poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher,
antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea,
que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferença
natural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural do
homem em relação a ela. As definições que a consideram em termos par-
ciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas,
na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve um
papel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade.
A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social,
e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica que
tente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Que
história se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na qual
a sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta
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história comum senão a hist6ria do seu corpo, dado que a reprodução foi É difícil reconstituir de onde advém ao homem este direito à sUa pró-
a única função que socialmente lhe foi reconhecida? Ou que história retra- pria natureza como valor absoluto: a história é infmnada por aquilo que
çar senão a de uma sombra - cheia de peso e de significados, mas no somos desde então, e é uma história na qual os papéis foram fixados exa-
entanto sempre sombra -, reflexo da hist6ria do homem, da sua subjecti- cerbando as suas diferenças naturais através dos diferentes valores atribuí-
vidade, da sua capacidade de apropriação e de opinião sobre as coisas? Se dos às partes. Se os maniqueístas pensavam que quando Deus criou o homem
a hist6ria do homem é a história dos altos e baixos do seu poder sobre a não o tinha feito nem homem nem mulher, mas que a distinção entre os
natureza e do poder de grupos de homens sobre outros homens, qual poderá sexos era obra do diabo; e se alguns hebreus consideravam que o primeiro
ser a história da mulher, presa do poder da natureza com a qual foi identi- homem era andrógino e que um golpe de machado tinha separado os dois
flcada e objecto do poder do homem? De que poder foi ela o sujeito para corpo~, a hist6ria foi diabo e machadada ao exacerbar esta separação, consi-
conseguir construir a sua pr6pria hist6ria? derando um dos corpos um ser humano e o outro um acess6rio deste. Mas
A fêlllea do homem não tem outra hist6ria para além da história sempre os princípios masculino e feminino são complementares: é da unidade desta
idêntica da sua subordinação, e o ser. humano fêmea só há pouco começou diferença que nasce a vida. Não se pode criar para conservar sem que exista
a constI11í-la,tentando libertar-se dest~ sujeição. A sua hist6ria inicia-se no um elemento apto a conservar para criar. Em biologia, a tarefa do gâmeta
momento em que a mulher principia 11 lutar pela conquista de uma huma- feminino e do masculino é idêntica, se eles se fundem e se suprimem ao
nidade completa nunca possuída; quando começa a medir-se consigo pr6- criar uma vida que os supera a ambos. Diabo e machadada são, de facto,
pria e com a realidade, a tentar modificá-Ia e modiflcar-se. É uma luta radical a tradução desta diversidade biol6gica em termos de desigualdade, utilizando
porque e~volve todos os aspectos da vida: é luta contra a natureza, contra a presumida passividade do princípio feminino como um menos qualitativo.
a cultura, contra a assimetria do poder, pelo direito à pr6pria diferença, Mas será que esta desigualdade existiu sempre, ou houve um momento
pelo direito a valores que - na sua eSq'avidão - ela conseguiu manter intac- em que teve início?
tos, em nome de uma outra vida, de um outro mundo, de uma outra rela- Se houve um tempo em que a mulher era igual, é um igual que a histó-
ção. É à luz desta luta que se pode ver qual foi a história da fêmea dos ria apaga. São os mitos que falam de uma mulher senhora, amazona, guer-
homens, assim como é à luz desta luta que sé pode começar a entrever qual reira ou deusa das searas; mas deusa ou serva a mulher aparece sempre como
poderá ser a hist6ria do ser humano fêmea.
algo para além do humano para que não possa ser humana. Mesmo no tempo
em que era ela a primeira pessoa, que transmitia a linhagem através dos
1. A natureza seus fllhos, a gensa que pertencia só existia através do fllho, e o matriar-
cado, de que a história descobre sinais, na realidade não fala dela mas de
o princlpio masculino cria para conservar, o prin.
ela ser mãe de um fllho. É apenas o fllho que a legitima e lhe dá dignidade
clpio feminino conserva para criar (Simone de Beauvoir).
e é através do filho que adquire poder. A «grande derrotll» de que fala Engels
A mulher é anatomicamente diferente do homem, assim como o homem - o declínio do direito materno, o poder adquirido pelo homem no reino
é anatomicamente diferente dela. Mas enquanto o homem estabeleceu o seu exclusivo da actividade feminina, a casa - destrona uma mulher que era
direito a afirmar o seu ser diverso como um valor, a diferença da mulher a mãe, mas nada diz sobre se era um igual, se o facto de ser ela a transmi-
é definida em relação ao homem, por defeito ou por excesso, relativamente
àquilo que o homem é. t'. poder
tir o nome da suaou
do homem, gens significava
alguma alguma
coisa que agoracoisa que equivalesse
se defme ao mesmo
como «reciprocidade».
Sustentar que a mulher provém de Adão (Adão, o homem criado por Deusa ou mãe, esta mulher de tempos que a história não refere, e de que
I) Deus, e Eva, a sua c6pia imperfeita) ou julgá-Ia anatomicamente um homem se tem conhecimento pelas lendas, pelos mitos, pela tradição e pelos ritos,
I falhado significa negar-lhe um carácter específico natural para lhe imprimir parece existir enquanto via, percurso, corpo perpassado por uma presença
uma natureza criada a partir de uma comparação: o que daí resulta não é estranha, gesto feito em função dos outros, acolhimento de um sémen e
a diversidade natural, mas aquilo em que esta se torna através do juizo que expulsão de um fruto, geradora de searas, de abundância, de vida - que
a relaciona como outro. Trata-se de uma diferença que se traduz logo em todavia não é sua.
desigualdade, de tal maneira que a mulher fica prisioneira de uma natureza Mas é-nos impossível formular uma hipótese sem utilizar juizos e cate-
mediada por esta comparação, que se torna hostil e inimiga, porque a desi- gorias que hoje são as nossas, que fazem parte da nossa cultura. Não se
gualdade relativamente a qualquer coisa tem em si os limites e os modos pode olhar para a pré-hist6ria e projectar os problemas que nos dizem res-
em que se lhe consente que exista. É esta desigualdade que impede a união peito: como falar da maternidade como alienação ou expropriação do corpo,
da diversidade e que é a origem primeira da separação entre os sexos. O desi- relativamente a uma mulher que não tem consciência disso? Ou como falar
gual é-o relativamente a um mais que pode deflni-Io, e nesta apreciação a de «alteridade», de falta de «reciprocidade», de falta de vida própria, se não
diferença originária desaparece, submersa pelo valor que representará a sua temos elementos para dizer que coisa era - naquele tempo - a identi-
verdadeira natureza. ficação em termos de natureza e de corpo? S6 podemos fazer suposições
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- O próprio Engels fala de hipóteses - invalidadas pelo carácter que a his- obscuras, das quais aos seus olhos a mulher faz parte, traduzir-se-á em força
tória imprimiu a estes problemas e pelo nosso conceito de igualdade que e poder sobre uma natureza submetida e sobre uma mulher a quem com-
- no caso da mulher e do homem - só tem início quando a mulher começa pensará dos pesos com que a carregou e da humanidade de que a privou,
a tomar consciência clara do facto de que, através dos séculos, nascer fêmea com a sua protecção. Ela não é sua igual - é natureza dominada -, mas
tem sido uma pesada condenação. será ele a defendê-Ia, a protegê-Ia, a velar para 'que não seja perturbada na
É o momento desta consciência, da recusa desta condenação que faz surgir sua função essencial.
sob novas cores o que a mulher tinha sido: o momento a partir do qual Se a mulher é natureza submetida ao seu poder, o homem poderá definir-
se pode começar a usar o verbo no passado, rompendo o fluir de um tempo; -se como cultural, racional, espíritoj' transcendente, acção, ordem: esta será
que é sempre presente porque é sempre igual a si próprio. É só a partir a sua natureza, à qual gostará de escltpar para mergulhar e confundir-se nela,
desta consciência que a mulher sente o vazio da sua plenitude segUra e em quem encontra as suas raízes. Conservar para criar torna-se gradualmente
começa a ver a história com olhos diferentes e a senti-Ia como não sua. diferente do criar para conservar: o ,instante parece vencer a continuidade,
É como descobrir não se ter existido, ter acreditado existir, pensandol que o espírito tem a ilusão de superar ~a imanência, ainda que um não possa
aquela contínua azáfama para garantir a vida fosse mais importante que os passar sem o outro: porque o homem para sobreviver deve lutar contra as
empreendimentos do homem que com demasiada frequência têm nedessi- forças obscuras da natureza, de que a mulher constitui uma parte.
dade de morte. E apesar de, no fundo, ainda estar convencida disso, começa Quando o nómada se fixa para cultivar a terra e se apropria' dela for-
a sentir que não é ela a escolher o seu próprio destino e que, todavia,' não jando os seus primeiros instrumentbs, a desigualdade e a sujeiçãd estão já
pode fazer de outro modo porque quem distribuiu os papéis foi a na,t\jreza confirmados: mulher e terra são submetidas aos desígnios do homem. São
ou a história. Mas chegada a esse ponto não quer saber se a natureza foi precisos fllhos a quem deixar a terta, são precisos fllhos para a élultivar e
sua inimiga, porque é a história que quer mudar para unir o que a história a mulher é importante por isto: parirá, criará os fllhos, cuidará da casa,
dividiu. Nascida inferior ou fabricada subordinada, deixa de fazer diferença dos campos, da tecelagem e será p~opriedade do homem como 6s filhos,
se é a mulher a sair da tutela para se conquistar e se transformar a si ,pró- a casa, os campos, os tecidos. Os p*péis doravante estão fixados: I>mundo
pria. Ter a confirmação de que o matriarcado tenha existido não é crhcial diferente, inquietante e autónomo ,que a mulher representa já Mo mete
para legitimar a nova consciência, de si própria que a mulher adquiriu: as medo, fechado entre as paredes da: casa, neutralizado por uma força que
exigências que nascem desta nova consciência propõem uma dimensão se apropria dele, delimitando a sua hatureza e as suas fronteiras. A mulher
humana ainda não vivida que não tem necessidade de reportar-se a um pre- torna-se tudo aquilo que está encerr.ado dentro dessas paredes, e li sua his-
\ cedente para se realizar, mas que exige da mulher um conhecimento de si, tória é a de um corpo cercado no interior de uma propriedade e anulado
i da sua própria natureza e do que a história dela fez. por uma tutela. '
i Da natureza a mulher sabe apenas uma coisa, que se apresenta imutável Corpo para o homem e para a procriação, a sua subjectividadlt é redu-
no tempo e que é a única a falar-lhe da sua história. zida e aprisionada numa sexualidad~,essencialmente para outrosl corpo de
Presa da espécie, transporta no corpo uma possibilidade contínua de tida. que já não é dona, à volta do qual se centra uma vida que não pode ser
É terra fecunda e, como a terra, participe do mistério da natureza: niêns- senão a história de uma expropriação'.A sexualidade da mulher -,enfatizada
truos e procriação são obscuramente ligados ao ciclo cósmico peloq~al é e exaltada como função essencial -, deve ficar contida no interior de limi-
possuída. Durante muito tempo o homem não estabelece uma ligação entre tes que impedem que sexualidade; e reprodução sejam verdadeiramente
o acto sexual e a procriação, de maneira que a mulher representa a08 .seus «suas». Que seria do homem se se~alidade feminina e procriaçã~ tivessem
, olhos a plenitude autónoma de uma gestação contínua. O medo da' !)atu- sido «da» mulher? De quem são os ftlhos que dá à luz? Que garailtias tem
I reza desconhecida, misteriosa e inimiga encarna-se nela: ela é natureza, ani- o homem de ser o pai do ftlho? A' Ihulher tem a certeza da sua' materni-
I mal, contingente, mistério e trevas. O caos do mundo está encerradd hela, dade, mas ao homem, se a mulher 41ivre, só resta a dúvida. São as cercas, ,
os muros, os limites que podem dar esta certeza: a prisão, a reclusão,
natureza hostil que só pode ser amiga ~e for dominada. Identificada com
a terra nos ritos e nos mitos, aparece como algo a subjugar e a fec~\rtdar. a escravidão. E o homem encarcera-a e fá-Ia escrava porque é sua, mas sobre-
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I A luta do homem com a natureza inclui-a portanto também, visto que edcarna tudo porque devem ser seus os filhqs ,a quem irá deixar a propriedade. Não
I e contém todos os seus medos. O homem já não terá medo de si mesmo, se pode arriscar a passar os bens a ftlhos que não são seus e permuta a
da sua natureza animal, se a reconhece na mulher, de maneira que llloderá continuidade da propriedade com a ~iberdade da mulher que deverá ser vir-
superar os seus próprios terrores, submetendo-a. Plena como está da sua fun- gem e depois fiel.
ção essencial, bastará dominá-Ia para exorcizar os seus poderes, e quando Superada a fase do direito materno, os raros momentos históricos nos
o homem aprende a subjugar a terra, a fazê-Ia frutificar de acordo com os quais a mulher é mais livre coincidem com a ausência da propriedade pri-
seus desígnios e com os seus instrumentos, é também a ela que subjuga, por- vada, de maneira que a história da sua expropriação e da sua escravidão,
que no domínio contém o mesmo mistério. O medo perante as forças assim como está ligada à variação do valor da maternidade, está ligada
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- no decurso dos séculos - ao destino da propriedade. Comprada, ven- a sua natureza que - criada à imagem de necessidades que não são suas -
dida, expropriada dos seus haveres, desposada sem o seu consentimento, não pode senão ser-lhe hostil. Percorrer de novo as etapas essenciais desta
repudiada em caso de esterilidade, lapidada em caso de adultério, subordi- cultura dá-nos uma medida daquilo que o poder pode fazer; da determina-
nada ao pai e posteriormente ao marido como parte do seu património e ção constante em produzir uma dependência sem paralelo na história do
oferecida à Igreja para que este se conserve nas mãos dos machos, enfaixam- homem, apesar de ela ser a história do poder de um sobre o outro. Mitos,
-lhe os pés para ser mais frágil, tapam-lhe o rosto para não ser vista, religiões, filosofia, leis, literatura e ciência dão as mãos para produzir este
encerram-na no gineceu para que não possa ver, cortam-lhe o clítoris para ideal de mulher - fêmea ou mãe, anjo ou diabo, fonte de vida ou de males,
que não possa ter prazer, cosem-lhe qs genitais ou impõem-lhe um cinto portadora de dons ou de culpas - elevando-a ao céu ou precipitando-a no
de castidade para que não possa trair, ~ueimam-na para que não possa falar Inferl).o, sem nunca a admitir na Terra, onde vive como estranha.
ao homem dos mistérios do mundo dI! que provém e que quer esquecer. Nós mitos dos Gregos, Pandora, criada por Zeus, tem a tarefa de arrui-
Este é o símbolo de milénios da h+s~óriadurante os quais a mulher aco- nar os homens: «Tu regozijavas-te por teres roubado o fogo e por me teres
lhe, abraça, contém, garante a continuidade, mas também propõe de novo engaqado, mas isso será para teu mal e dos homens futuros. Na verdade,
ao homem o mundo da imanênciall que ele tem a ilusão de escapar, eles receberão de mim, em troca do fogo, um mal de que se alegrarão,
aprisionando-a e a que pode renunciar porque é sempre ela a garanti-Io: rodeando de amor aquilo que constituirá a sua desgraça» (Hesíodo). Este
ela, que continua a gerar a vida sem pdder intervir para a transformar, per- é o castigo de Zeus a Prometeu, e Pandora será portadora de males e de
manece através dos séculos testemunha li juiz daquilo que o homem faz desta morte. No Génesis, Eva é a causa da expulsão do Paraíso e da ira do deus
vida, garante do seu significado mais' essencial. que transforma a vida dos homens numa condenação de que ela será a res-
ponsável. Na tradição cristã, Maria será a mãe do ftlho de Deus e resgatará
a culpa de Eva, mas deverá ser virgem e a sua concepção será imaculada,
2. A cultura
confirmando assim simbolicamente a identificação da mulher, no sexo, com
Cabe-te dar a conhecer, por meio do teu respeito, o pecado.
que ele é senhor: fá-lo ser grande com a tua humil·
dade (São Jerónimo).' Será o eco do poder misterioso que a mulher detinha e de que o homem
aprendeu a defender-se subjugando-a e anulando-a? A mulher só poderá res-
Subjugada no interior das paredes da casa, confirmados os papéis pela gatar a culpa - culpa de ter nascido e de representar a parte da natureza
rígida divisão do trabalho, a mulher é objecto da lenta erosão da história desconhecida - aceitando as regras de um jogo imposto pelo homem que,
que - até ao momento da tomada de cpnsciência da sua condição - a anula, de vez em quando, lhe transmitirá as mensagens de Deus e lhe dirá o que
negando-lhe espaço, subjectividade, autonomia. é e qual deve ser o seu lugar:
Uma vez subjugada, o homem tem o poder de a definir. No Génesis, E Deus disse à mulher: «Eu multiplicarei as tuas fadigas e as tuas gesta-
Adão é explícito: «Estes ossos dos mCJlsossos, esta carne da minha carne, ções. Darás à luz os teus ftlhos na dor. Ficarás sujeita ao poder do macho
tomará o nome do homem, dado que 'foi tirada do homem». Mas defini-Ia e ele dominar-te-á» (Génesis).
significa criá-Ia à imagem das próprias necessidades, porque quem tem o Tu és a porta do diabo, és aquela que quebrou o sigilo da árvore, és
poder tem sobretudo a faculdade de estabelecer quem é o outro, quais as suas a primeira violadora da lei divina (Tertuliano).
exigências, quais os limites das suas expectativas e das suas aspirações, por É isto, sobretudo, que a vontade de Deus determinou para o homem:
conseguinte qual é a sua natureza em 'relação com aquilo que se quer que que a mulher mereceu ter o marido como senhor, não por natureza mas
seja. Esta faculdade de definir o outro de que o homem dispõe com base por culpa (Santo Agostinho).
no poder já assumido sobre a mulher fará dela um objecto à mercê das suas Durante a infância, uma rapariga deve estar sujeita à autoridade do pai;
necessidades: objecto que terá natureza e caracteres próprios, vari~veis na juventude, à do marido; e quando o seu senhor morre, à dos ftlhos: uma
segundo o variar dessas necessidades. A mulher será frágil, dócil, despreo- mulher nunca deve ser independente. .. Por muito que um marido possa
cupada, maternal, âncora segura, seguro ancoradouro, mãe do ftlho e do estar longe de todas as virtudes ou ser libertino ou desprovido de boas qua-
homem; mas - simultaneamente - deverá ser corpo, objecto sexual, fonte lidades, uma mulher fiel deve adorá-lo sempre como a um deus (C6digo de
de sedução, de desejo: mulher e fêmea. Se for uma destas coisas, ser-Ihe-á Manu).
censurado que não seja a outra; se for uma e outra, deixará de saber quem é. As vossas mulheres são um campo para vós: ide, pois, ao vosso campo
A imagem ideal a que a mulher se deve conformar para existir oscila como mais vos agradar (eorão).
entre dois pólos, negando-a ambos: mãe dedicada a outros ou objecto dos
desejos alheios, a sua existência é justificada por quem determina os modos Deus fala pela boca dos homens, e por isso a sua palavra é injusta e cruel.
em que pode ou deve exprimir-se. A cultura actua impondo qual deve ser O nome que eles deram à mulher - campo, pecado, culpa -, o nome dos
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seus medos, torna-se mnldiçao divina que ela deve expiar. Acusada de cul- Mulher. .. não convém que tu estejas de outra maneira que não seja
pas que s6 o mito inventou - a maça, o paraíso perdido, a boceta dos de cabeça baixa e inclinada para fIcares sob a cust6dia do homem ... Sem-
males - continuará a pagar durante milénios. pre que estiveres na igreja deves andar com a cabeça baixa e coberta. Sabes
Se não basta a voz de Deus, é a razão do homem que lhe explica o que porquê? Para não fazer cair ninguém em pecado (São Bernardino).
é, como é, de onde deriva a sua enfermidade, que lugar deve ocupar: E todas as mulheres têm pouco cérebro; e mal há uma que sabe dizer
Há um princípio do Bem que criou a ordem, a luz e o homem; e há duas palavras, apregoa-o, porque em terra de cegos quem tem olho é rei
um princípio do Mal que criou o caos, as trevas e a mulher (Pitágoras); (Maquiavel).
Se acontecer que ela deixe de lhe agradar. .. mande-a embora de casa Não está bem, e por muitas razões, que uma mulher estude e saiba tan-
(Deuteronómio) . tas coisas (Moliere).
Se [as mulheres] porém não sabem nada, é a pr6pria limitação do seu A mulher é feita para se sujeitar ao homem e para suportar até a sua
espírito que as afasta de fantasias lascivas... seria bom fazê-Ias estar s6 com injustiça. .. a mulher é feita especialmente para agradar ao homem; se o
animais mudos (Eurípides). homem por sua vez deve agradar-lhe, essa necessidade é menos fundamen-
Deve afIrmar-se que convém aos machos o que é elevado e que tende tal, visto que o seu valor reside na força, visto que ele agrada justamente
para a coragem; mas o que, pelo contrário, tende para a modéstia, para porque é forte. Essa não é a lei do amor, reconheço; mas é a lei da natu-
a ponderação e para a temperança, seja no nosso discurso seja nas leis, deve reza, anterior ao pr6prio amor (Rousseau).
apresentar-se como pertencente ao género feminino (Platão). , Oh! Celia, Celia, Celia, shits! (Swift).
A mulher é como um homem estéril. De facto, a fêmea é marcada por Todas as mulheres e, em geral, todos os que para assegurar a sua exis-
uma impotência. .. O macho fornece a forma e o princípio da mudánça; tência (para o seu sustento e para 4 sua protecção) não dependem da inicia-
e a fêmea, o corpo e a matéria... Nas relações do macho com a fêtnea, tiva própria mas das ordens dos oUtros (a não ser da autoridade do Estado)
um é por natureza superior, a outra inferior; um comanda, a outra é coman- carecem de personalidade civil e li sua existência é de certo modo apenas
dada - e é necessário que entre todos os homens seja assim ... O corpo inerência. .. A mulher não se prebcupa com a castidade do homem antes
tem origem na fêmea, a alma no macho (Arist6teles). , do casamento; pelo contrário, paia o homem, a da mulher é muitíssimo
Se surpreenderes a tua mulher em adultério, matá·la-ás impunentente importante (Kant).
sem processo; se fores tu a trair, ela não te tocará nem com um s6 dedo O destino de uma mulher é ser como uma cadela ou como uma loba:
(Catão). deve pertencer a qualquer um que a deseje (Sade).
A mulher aprende em silêncio, com toda a submissão. Visto que não A mulher não pertence a si pt6pria mas sim ao homem. .. o homem
permito que a mulher ensine nem que tenha autoridade sobre o homem, .é o administrador de todos os seus direitos... ele é o seu representante
mas quero que fIque tranquila. Porque Adão foi o primeiro a ser formado natural no Estado e na sociedade inteira. .. A mulher não pode sobretudo
e Eva depois, e Adão não foi seduzido; mas a mulher, tendo sido seduzida, confessar a si pr6pria o instinto sexual, a satisfação do seu instinto sexual;
caiu em transgressão. Contudo será salva criando fIlhos, se perseverar na e como, afmal de contas, qualquer' instinto deve no entanto ser confessado,
fé, no amor e na santifIcação (São Paulo). este instinto não pode ser outro ~enão o instinto de satisfazef o homem
O homem é a cabeça da mulher, do mesmo modo que Cristo é a cabeça (Fichte).
do homem ... A potência de geração na fêmea é imperfeita em relação à É improvável que as mulheres possam ter recursos sufIcientes para pro-
potência de geração que existe no macho (São Tomás). ' verem ao sustento dos filhos. Quando por isso uma mulher se liga a um
Adão foi levado a pecar por Eva e não Eva por Adão. É justo que a homem sem estipular com ele um ,acordo relativo à sustentaçãó dos pr6-
mulher aceite como senhor aquele que ela induziu a pecar (Santo Ambt?sio). prios filhos, se o homem, consci~nte das difIculdades com que se pode
A v6s falei, jovens mulheres, I que tendes os olhos de belezas orriados I defrontar, a abandona, estas criança~ deverão necessariamente set mantidas
I e a mente de amor vencida e pensattva (Dante). a expensas da sociedade ou então n~orrer de fome. E para prevertit o recurso
A fêmea tem menos fé que uma fera, I raiz, ramo e fruto de todo o mal, I frequente de uma situação tão lamentável como esta, os homerls poderão
I soberba, avara, tola, louca e austera, I veneno que corrompe o ãmitgo do acordar entre si puni-Ia com a desonta, visto que seria bastante injusto punir
corpo, I iníqua estrada para a porta infernal; I quando se chora, pica mais um erro tão natural com uma coaação pessoal ou infligindo uma pena. Por
do que o escorpião (Cecco d' Ascoli). outro lado a transgressão é bastante mais 6bvia e evidente na mulher, e são
Costumava, longínqua, no sono consolar-me I com aquela sua doce angé- menores os riscos de erro. Nem lIempre se consegue saber quem é o pai
lica vista. I Senhora; ora me assusta e me entristece, I nem de dor nem de de uma criança, mas é difícil que exista uma tal incerteza com respeito à
medo posso valer-me (Petrurca). mãe. Decidiu fazer-se recair a parte maior de responsabilidade onde é mais
Em princípio a natureza deu ao homem espírito orgulhoso e elevado, clara a prova da trangressão e onde ao mesmo tempo seria maior o prejuízo
enquanto fez a mulher humilde e submissa (Boccaccio). para a sociedade (Malthus).
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As mulheres podem ter boas ideias, gosto, delicadeza, mas não têm o de domínio, a face do poder: mas, para o homem: a mulher é a mesma.
ideal. .. O destino da jovem reside, essencialmente, apenas na relação do ~elegado por Deus, pela razão ou pela ciência, é sempre ele a defini.la à
casamento (Hegel). l1~age~ das s~a~ pr6prias ~ecessidades que variam com a variação da sua
Uma velha, isto é, uma mulher que já não é menstruada desperta a nossa hIstóna. A relI?Ião ou .0 ~to querem-na submetida, inventando a culpa;
repugnância. Juventude sem beleza tem sempre ainda atractivo; beleza sem a filosofi~ consIdera-a mfenor e chega a discutir se terá uma alma ou se
juventude não tem nenhum ... A fidelidade no homem é artificial, na mulher será destItuída ~ela; a lei não a considera como pessoa jurídica e impõe-lhe
é natural (Schopenhauer). uma tutela; a lIteratura não sabe se a há-de vestir de anjo ou de dem6nio
E recolhe no polido armário I a brilhllnte lã, o linho branco como a neve, I para não lhe emprestar a máscara da «persona»; a ciência - de modos diver:
I e junta ao bom, o esplendor e a lua I e nunca descansa (Schiller). s~s e com palavras diversas - defme o seu estado de inferioridade fisioló-
O sexo amante tem menos necessidlide do que nós da imortalidade sub- gIca. f; uma orquestra de vozes que, no decurso dos séculos transmitem
jectiva, da qual parece essencialmente desprovido (Comte). 1I a ~estna mensagem: os limites que a natureza te deu são int;ansponíveis,
A mulher casada é uma escrava que é preciso saber põr num trono I
i
ace!ta o lugar que te é reservado e serás agradável ao homem que te quer
assIm.
(Balzac).
A mulher explica as coisas finitas, o homem vai à procura das infini- O que é ~ue muda do Gorão a Rousseau, do Génesis a Santo Agostinho
tas ... Uma relação negativa com a mulher pode tornar-nos infinitos; uma de Catão a FIchte, de Rousseau a Nietzsche, de Pitágoras a Lombroso? U~
relação positiva torna o homem tanto qJlanto é possível finito (Kierkegaard). todos. as mesmas palavras para que a natureza, contra a qual todavia o
O homem deve afligir-se com o mundo e com a vida; a mulher, com homem sempre lutou, exprima na mulher o seu pleno poder. Apenas escrava
o homem (Hebbel). da ~atureza, a mulher será escrava das necessidades do homem; mas deverá
(Hortrude) é uma mulher que não conhece o amor. Com isto está tudo sentIr-se .escr~~a~a natureza para aceitar ser escrava do homem; deverá senti-
dito, e é a coisa mais terrível. A sua natureza é política. Um homem polí- -Ia .hostIl e mIm1ga~para ser sua prisioneira. E o deus do Génesis por certo
tico é repugnante, mas uma mulher política é horrível: eu tinha de repre- o tInha compre~ndI~o quando lançava a sua dupla mensagem: gerar a vida
sentar esse horror (Wagner). - por ele própno c~13dacomo o bem supremo - será uma condenação que
... Que se mais macios I e mais finos os membros, ela o espírito I menos a m~her deve expIar se tem de estar «sujeita ao poder do macho que a
dommará».
capaz e menos forte também recebe (Leopardi).
A felicidade do homem diz: eu quero. A felicidade da mulher diz: ele Mas o facto deo homem ter tido necessidade da palavra de Deus para
quer ... Enredar-se na questão de fundo «homem-mulher», negar, a esse confirmar o seu poder. significa .alguma coisa sobre a incerteza desse poder,
respeito, o antagonismo abissal e a necessidade de uma tensão eternamente q~~ portanto não. ?eVIa ser aSSImtão «natural», visto que precisava da lei
hostil, sonhar talvez direitos iguais, uma educação igual, iguais exigências dIVma para o legItImar. Ou seria a desigualdade natural entre o homem e
e deveres; tudo isto é um indício típico de um espírito superficial ... a mulher tão. pesada que levou o homem a inventar a maldição de Deus
O homem deve ser educado para a guerra e a mulher para o repouso do para dar sent~do .à mulher e à sua sujeição? Mas então, porquê o esforço
guerreiro; tudo o mais é tolice (Nietzsche). ~ue, de há ~émos, os homens fazem para justificar o seu domínio e legi-
Hesita em dizer-se, mas não podemos esquivar-nos à ideia de que o nível tImar a deSIgualdade, se a desigualdade já é natural?
do que é eticamente normal para a IÍlUlher seja diferente (Freud). ~sta insistência em ~efmir os limites que a natureza impôs à mulher faria
Que a mulher exista não significa portanto outra coisa senão que o homem maIS pensar num conflIto perpétuo, no qual o homem continua a afirmar
afirmou a sexualidade. A mulher é somente o resultado desta afirmação, a sua superi~ridade natural (física, moral, intelectual, espiritual) sobre uma
é a própria sexualidade. .. O animal não tem mais realidade metafísica do mulher dommada - que se cala, mas tem um poder subtil que não precisa
que a autêntica mulher; mas não fala e por consequência não mente (\Vei· de ser .expresso. Se esta superioridade fosse assim tão natural o homem
ninger). ~o ten~ falado t~nto, .não teria sido constrangido a definir em 'que modos
A semicriminalóide inócua que é a mulher normal... a sua estupidez e supenor. HaVIa ~vIdentemente alguma coisa que devia desmenti-lo:
dolorífica e darwiniana, para não dizer teológica; ela explica-nos porque é a. mulher ,e a neceSSIdade que o homem tinha dela, igual à que a mulher
que volta a cair tão facilmente na gravidez apesar das dores do parto e ape- tInha dele. É esta necessidade recíproca que continua, pelos séculos fora
sar de tomar tão pouca parte nos prazeres do amor. O homem não faria a colocar o problema nos mesmos idênticos termos: é esta necessidade reci:
o mesmo (Lombroso). proca qu~ é ,natural e que propõe de novo a mulher - anulada, subalterrrl-
Nestas palavras sempre iguais do homem passam milénios de história, ~ad~, opnmIda - c?mo um sujeito que continua a renascer para ser reob-
mas a mulher - da qual o homem continua a falar - reflecte-se idêntica JectIvado no domímo.
na idêntica imagem que pelos séculos fora permanece imutável. Mudam os . Sub?rdinada. e ~encida, a mulher conserva este carácter de necessidade
símbolos, a linguagem, a paisagem, a união dos grupos sociais, as formas ImpossIvel de elImmar, e o próprio homem precisa de a elevar a sujeito, no
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• . .
dade que ao mesmo tempo colide com o medo de perder o seu poder, de
momento em que a humilha e rebaixa a complemento das suas próprias
tal modo que o homem acaba por se encontrar a vacilar entre aquilo que
necessidades. À medida que estas necessidades se individualizam, passando
quer e que não quer. Neste sentido, a natureza de que a mulher é escrava
da relação puramente carnal e contratual para as exigências mais globais de
tranquiliza-o todas as vezes quanto a esse poder e de todas as vezes lhe serve
uma subjectividade que se vai diferenciando do grupo, é o homem que -
para tornar a pôr o conflito sob controlo, voltando a separar aquilo que,
no mundo de valores que vai produzindo e pelo qual simultaneamente é
para as suas próprias necessidades, se estava aproximando.
produzido - procura uma complementaridade rejeitada por ele próprio, mal
Mas o carácter de recíproca necessidade que produz o conflito pode
comprometa o seu poder seguro. Do casamento combinado e imposto com tornar-se uma arma nas mãos da mulher. Como a natureza - submetida
base na tutela do património - tal como se apresenta em traços largos a
relação homem-mulher até ao fIm da Idade Média - ao encontro amoroso aos desígnios de homem - se vinga,libertando-se dos constrangimentos que
este lhe impõe, a mulher, em cativeiro, elabora técnicas de defesa e de ata-
espontâneo e reciprocamente consensual que caracteriza a relação ~rótica
«moderna», é o homem que se eleva, elevando a mulher, enquanto ela con- que, reivindicando a própria existência como ser humano, ou instrumenta-
tinua a representar a resposta adequada às suas necessidades que vão lizando a seu favor a situação a que se encontra constrangida. São estas
mudando com o mudar dos valores e da vida social. Consensualidadel amor defesas que vão alimentar o conflito entre dois pólos que oscilam perma-
espiritual, amor cortês, ardor impetuoso, amor romântico, amor paixãci, com- nentemente entre a recíproca necessidade natural e a prepotência de um sobre
plementaridade permanecerão no interior destas necessidades, dado que é a outra imposta como natureza. Mesmo se este conflito variar de acordo
o homem, condicionado pela cultura e pelas estruturas de poder qUe vão com a variação do valor dado à «nâtureza» e da medida em qUé a mulher
mudando, que continua a criar o ideal de mulher correspondente aos novos se puder aí reconhecer e identifIcar, o homem terá de se haver com um
valores, à nova cultura e às novas estruturas de poder: mãe sublimada e inferior que não é para ele um companheiro e que, como em todas as situa-
assexuada na visão cristã, mulher angelizada e idealizada pelas vozes do «doce ções de subalternidade, procurará tirar do seu senhor o maior proveito.
estilo novo», remetida à opulência da carne no Renascimento, apat~cede A mãe será frequentemente umal fIlha incapaz, que transferirá a autono-
novo sublimada na perspectiva psicológica do drama romântico. A mulher mia de que foi privada para uma dependência pesada para o homem; a tutela
continua a calar-se: abraça e consola ou faz troça e maldiz, mas nlio fala que a incapacitou e que criou a sua enfermidade produzirá uma criança que
de si e não luta. Uma voz isolada ou um qualquer destino difererlte não jogará com a sua menoridade para daí tirar vantagem; a incorporação de
bastam para mudar a história: a mulher continua a corresponder a unia qua- passividade e de fraqueza, defInidas!como sua natureza essencial, criará um
lidade, que continua a mudar, de necessidades que não são suas, tOrbando- ente inferior que reagirá à sua própria impotência com a chantagem e com
-se de todas as vezes diferente, mas sempre idêntica à imagem que foi inven- a tirania; o poder que só pode exercer na casa e sobre os fIlhos tornar-se-á
tada. A gama· de possibilidades no âmbito desta invenção alarga ou reduz um torno no qual todos serão esmlfgados e devorados; a fIdelidade que só
o espaço, mas não depende dela, mesmo continuando ela a existir e á repre- dela se exige torná-Ia-á caprichosa, ,astuta e mentirosa; a beleza, .cnfatizada
sentar o pólo de uma contradição que não se pode sanar facilmettte. como seu dote principal, será a vingança e o seu poder sobre d homem,
A inexistência constante em defInir os limites naturais dentro dos quais dos quais o seu corpo será o instrpt,nento, e o sexo reunirá vítifua e car-
a mulher deve desempenhar o seu papel é o sinal mais explícito deste con- rasco num jogo de que nllo se sabe quem seja o vencedor. Mas serva dócil
flito contínuo que o homem procura exorcizar através da dominação, sem e submissa, cortesã intriguista ou prostituta, amante cruel e diabçlica, que
chegar a resolvê-Io: porque resolver este conflito conservando o domínio sig- aceite ou tenha a ilusão de zombar tias regras do jogo, a mulher permanece
nifIcaria para o homem objectivar-se ao mesmo nível de quem foi objecti- defInida no interior destas regras onde o seu lugar - qualquer qUe seja -
vado por ele. A necessidade que o homem tem da mulher - igual àquela já foi designado em funçllo do homem. Se o domina por meio do seu pró-
que a mulher tem do homem - determina o evoluir da qualidade desse con- prio corpo, é sempre, contudo, attavés do prazer que isto dá ao homem
flito que nllo pode senllo resolver-se npma relaçllo entre iguais. A lerlta evo- que conseguirá dominá-lo; e se escarnece dele ou dele se aproveita, é com
luçllo desta relação, que acompanha o nascimento dos novos conce~tos bur- o preço da sua identidade, da sua própria venda e degradação que conse-
gueses de igualdade e de paridade formal, não pode senão resulvar numa gue realizar a dominação. Não terldo o direito de ser humana, a mulher
igualdade e numa paridade reais, como única garantia para o horl1em de apenas pode ser ou sub-humana ou desumana.
uma reciprocidade humana com a mulher e com os outros homens: I aihuma- Educada a não pensar, a mulher é defInida como estúpida por natureza;
nidade do homem ainda não alcançada medir-se-á pela sua capacidade de
estimulada a ser bela para prazer do homem, é julgada, por natureza, frí-
viver com ela numa relação natural como «igualll, como expressão· da sua vola e sexualmente insaciável; impedida de participar e de influir na reali-
capacidade de viver com a natureza, com o outro e consigo própril'>. É por- dade social, lançam-lhe à cara a s'ua inabilidade e incapacidade naturais.
tanto a mesma necessidade do homem que, seguindo a evolução da sua his-
Prisioneira dos limites que lhe foram criados, não pode ser senão natural-
tdria, a pouco e pouco se enriquece de novos elementos até exigir uma
mente limitada. Aceitação e adaptação ao seu papel, segundo a natureza, pro-
mulher diferente, q[ue seia sua companheira e sua igual; mas é esta necessi-

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duzem, portanto, um «negativo»natural, mas também a recusa e a rebelião Defmi-lo podia ser uma maneira de esclarecer a ob~Úra vicissitude da iden-
fazem parte dessa mesma natureza, no momento em que - julgadas não- tificação da mulher na natureza hostil. Podia ser um modo dea tomar amiga,
-naturais - estas atitudes são estigmatizadas e perseguidas como expressão rcconheccndo-a como semelhante a si. «Não é bom que o homem esteja s6;
de uma anomalia e não de uma subjectividade que tenta exprimir-se. A arma- demos-lhe uma ajudante semelhante a ele» (Génesis). Mas este «semelhante»
dilha em que a mulher se encontra aprisionada alarga gradualmente as não clarificou as coisas porque, se estabelece a distância entre mulher e natu-
malhas, mas cada novo elemento recai no interior da natureza de que é pri- reza, confirma também a que existe entre o homem e a mulher, indispen-
sioneira, aumentando o palco que cobre a diversidade original - usado a sável talvez à primeira coesão dos grupos sociais. Empenhada em garantir
partir daí como oportunidade para cOflter o conflito. a vida (Adão tinha-lhe chamado Eva por isso), talvez a mulher nem se desse
Quando não são as tradições ou as religiões, é a lei a definir à mulher conta fio que o homem pretendia com aquela definição, e quando percebeu
qual é a sua natureza; quando não são as leis, são os costumes a impor-lhe que ClSemelhante» não significava Cligual»,era tarde de mais, porque o «seme-
lhante» já se tinha tornado «inferior». E se, simplesmente, a mulher tivesse
uma da
cita conduta
c~lturasegundo a sua natureza,
permaneceu, qe tal modo
durante sétulos, que a função
a de alargar mais explí-
ou restringir arti- tido mais que fazer do que inventar e transmitir as mensagens de Deus ou
ficialmeQte os limites desta natureza, sem nunca encarar de frente o pro- escutar a voz da razão? Talvez aquilo que se virá a tornar a sua «inferiori.
blema central da diversidade natural,' utilizada unicamente com vista à dade origina!>.pudesse consistir nisto: no facto de estar totalmente ligada
dominação. Tutela e protecção podem ter sido medidas capazes de com- à vida, por trazer no corpo o peso e a responsabilidade disso, acreditando
pcnsar e~ta diversidade original dc funções e de papéis, mas traduziram-se que o homem entretanto caçasse e a defendesse de todos os perigos e não
numa mfJ;limizaçãoquando o valor dll~tas funções e destes papéis foi defi- se delllorasse a procurar defmições, nomes e mensagens.
nido como diferente, de tal modo que ~ diferença natural cresceu e alargou A IIbstracção, o conceito, a superação de si necessária à acção pressu-
na meSma medida o fosso cavado Pclll fTIachadadado mito. Unidos e estra- põem uma margem de liberdade indispensável à dl.1vida. A mulher pode
nhos, ne<:,essáriosum ao outro mas peftencentes a dois mundos separados, ter estado cheia da certeza da sua função, que é uma função do corpo, de
o homem e a mulher continuam atravFs dos séculos a tentar conciliar este toda ela mesma e não de um gesto seu isolado; função que a absorve de
conflito que, embora evoluindo com a evolução dos valores e da vida social, maneira total e não admite perplexidades subjectivas, porque procede de
continua a colocar-se nos mesmos termos idênticos, até ao momento em que si, aut6noma e imutável. Este laço concreto com a continuidade da vida
a pr6pria evolução dos valores e da vida social levar a mulher a tomar uma será determinante na criação de uma natureza-cultura ancorada nestas cer-
consciência clara da sua condição e a começar a lutar. tezas que, em conjunto, garantem ao homem a existência de alguma coisa
com que se confrontar para continuar a avançar. Mas sem esta certeza _
que o conserva ancorado à natureza e à vida - ter-se-ia aventurado no reino
3. A assimetria (1 + 1 = 1) da dl.1vidae da razão? O homem tem sempre necessidade deste confronto
que o pode confirmar ou desmentir, porque a mulher, na sua ligação con-
Este processo de invenção da naturalidade da subordinação não será uti- creta com a natureza, com a vida e com a morte, no facto de conter em
lizado apenas para dominar a mulher. A diversidade natural representada si o passado com uma dimensão projectada para uma vida futura, continua
por outros elementos - cor da pele, raça, tradições e costumes diferentes a representar o significado essencial de toda a procura. O espírito, de que
dos do dominador, pobreza e miséria do dominado - será manipulada pelo o homem se fez o proprietário relegando a mulher para a imanência, é fruto
homem para submeter o homem, através do mesmo processo. O êxito obtido de uma incerteza que procura no mundo a sua justificação. A mulher pode
na subordinação da mulher com base na diferença natural parece ter ser'" ter sentido obscuramente que estava justificada por si pr6pria - pelo menos
vido de ponto de partida para uma técnica de dominação utilizada, pelos até ao momento em que garantir a vida representava um valor social. É esta
séculos fora, em todos os sectores. Se a relação entre o homem e a mulher certeza que a torna capaz de ser mãe do ftlho e do homem, e é esta certeza
é a primeira relação natural, ela foi também a primeira contradição da nhtu- que poderia explicar os séculos de aceitação e de silêncio de uma mulher
reza enfrentada e resolvida em termos de poder, matriz portanto de qual- que encontra na sua função uma certa plenitude. Mas esta certeza, pela qual
quer outra divisão utilizada com objectivos de domínio. o homem atinge vida e confronto, torna-se pura imanência no momento em
Isto pode dizer alguma coisa sobre o significado social da assimetria de que é separada e invalidada, numa esfera que não admite laços de necessi-
poder na relação entre o homem e a mulher. A vida gregária dos homens' dade recíproca, como se se tratasse de um mundo diferente de que se pode
parece assentar sobre uma subordinação que é funcional relativamente à orga- falar à distância, inventando-lhe uma natureza mais adequada a fazê-lo
nização dos grupos sociais. A primeira palavra não poderia ter sido a defi- calar-se.
nição do Outro (era de Adão que, segundo o Génesis, a mulher devia tomar Que esta separação seja uma invenção criada pela cultura para facilitar
o «nome»), um outro tão diferente do homem que se confundiria com a as relações sociais, resulta claro a partir da posição defendida pelos pais desta
natureza e com a terra, mas tão semelhante a ele que lhe seria necessário? cultura. Quando, por exemplo, Platão fala «daquilo que tende para a modés-
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tia, para a'ponderaçAoe para a temperança., precisa que se deve ocapresentá-Io rior do elA: núcleos patrimoniais bem definidos cujo interesse se sobrepõe
como pertencente ao sexo feminino», e quando Arist6teles sustenta que o à condição da pessoa singular e a cujo interesse a condição do indivíduo
«homem é por natureza superior e a mulher inferior, um comanda e a outra está subordinada.
é comandada», prossegue afirmando que «é necessário que entre todos. os As sociedades de direito materno toleram a liberdade e a promiscuidade
homens seja deste modo», assim como, mais tarde, Malthus dirá que «foi das relações: castidade pré-matrimonial e fidelidade raramente são impostas
decidido fazer recair a parte maior de responsabilidade onde era mais clara à mulher. A procriação é um valor social que tem valor por si, num mundo
a prova da transgressão». Trata-se portanto de uma oportunidade social de em que a sobrevivência precária é assegurada pelo número de novos nasci-
codificar os termos que possam facilitar o domínio, no sentido de que as mentos. A vida está tão pr6xima dó perigo e da morte que cada nascimento
coisas são certamente mais simples se um manda e o outro obedece, mesmo i é garantia de sobrevivência. É quando a vida se torna mais segura e se esta-
se acontece que um se aliena e o outro desaparece na prepotência. Mas se
i belece a .e.r.()Pri.e~ade
como um bem a transmitir, que a mulher - que se
esta prepotência responde a um critério de necessidade (e pode ter sido facil- \ torna veículo de transmissão dos behs através do fIlho que nasce - se trans-
mente realizada sobre uma mulher saturada pela plenitude da sua função),
isso significa também que a subordinação resultou, desde o início, como I forma ela pr6pria num «bem» que se compra e se vende. Isto implica. ~~a
tutela e um conjunto de regras que impedem que se confunda a legitimi-
fisiológica em relação ao corpo social que, para se organizar, teve necessidade dade dos herdeiros: é daqui que nasce o corpo de normas jurídicas que esta-
de estabelecer os espaços e os limites dos papéis e dos seus valores.. Que belecem a medida dessa tutela e o grau de autonomia consentida à mulher.
este processo fisiol6gico do organizar do corpo social tenha no fim de con- Para os Árabes o Corão é explícito: «Os homens são superioreS à mulher
tas produzido uma patologia - a mulher inferior, incapaz, impotente, ihapta seja através das qualidades com que Deus manifestou a sua superioridade,
para o mundo do homem -, nisso consiste a erosão da cultura, que criou seja porque são eles a dotar as mulheres»; e as muçulmanas serão obrigadas
uma natureza incompleta e amputada, correspondente ao espaço reduzido a usar véu, serão enclausuradas, subalternizadas, desprezadas como um
que lhe é concedido. «campo» para os prazeres do homem, sem voz nem direitos .. Entre os
A assimetria de poder entre o homem e a mulher configura-se, de facto,
Hebreus da época bíblica, os patriarcas praticam a poligamia, p04em repu-
como uma medida política que passa por regras e normas aptas a sanc~onar diar a mulher à sua vontade, exigêm a virgindade da esposa, a adúltera é
o estado de tutela em que a mulher deve permanecer. Que se trate de. nor- lapidada, a esterilidade é motivo de repúdio certo, por morte do marido
mas religiosas ou jurídicas, não faz diferença que elas resultem intrarisponí- a viúva deve-se casar com o irmão deste: a mulher é um acessório em que
veis, fundamentando-se sobre uma invalidez que não pode ser discutida. Que se pode pegar ou largar impunemente. Na Grécia é submetida a um tutor,
seja São Paulo a dizer: ocamulher aprende em silêncio, com toda a submis- pai ou marido; o marido pode repucUá-Iaou cedê-Ia a outros, a herança passa
são ... quero que fique sossegada», porque considerada culpada de ter sido aos fIlhos do sexo masculino, masi Il lei assegura-lhe, em caso dlj repúdio,
seduzida; ou que seja a lei a não lhe reconhecer uma personalidade ju~ídica a restituição do dote à fami1iade origem, à tutela da qual regressa. Dem6s-
porque incapaz de se representar a si própria, a conclusão não pode senão tenes resume em poucas palavras it condição da mulher grega, falando do
conduzir à afirmação de S6focles: «À mulher o silêncio dá encanto», com
grau de perfeição a que estava ligada a divisão do trabalho na. cbdificação
um s6 juízo, priva a mulher da palavra e, ao mesmo tempo, estabelece o
das diversas espécies de necessidal1es do homem a que diversas mulheres
valor deste silêncio para o homem e para a realidade social. I
eram incumbidas de satisfazer: «Temos as cortesãs para os prazeres do espí-
As normas que à medida que definiram os termos definiram a legitimi- rito, as concubinas para os dos se~tidos e a mulher para nos dar filhos».
dade da dependência baseiam-se todas no princípio da M~la! fonte dei uma Em Roma a mulher conquista algllns direitos através do confli~o que opõe
invalidação jurídica precedida, porém, de um juízo de valor estranho hs leis,
o Estado e a famflia: o Estado tOrn;\~seo seu novo tutor e garante, - árbitro
e que as leis servem s6 para sancionar: a mulher é inferior e deve peJlI1lane- das questões relacionadas com a vida familiar, o repúdio, o div6rcio - mas,
cer dominada, do que se deduz a necessidade de estabelecer pela lei a medida embora aumentando a gama de possibilidades de presença da mull1er na vida
e os limites da sua sujeição. Isto explica o facto de que, quando a lei reco- pública, mantém a sua integraçãol dentro do papel de mulher t de mãe.
nhece maiores direitos à mulher, as tradições ou os costumes recordam a Invocando a fraqueza do seu sexo,' na realidade o Estado impede a mulher
sua natureza «inferior», levando-a de novo para o ponto do qual tinha, par- de agir e de exercer o seu peso na dimensão pt1blica, de que aparentemente
tido. De facto, a mulher - salvo casos raríssimos - é considerada, através
lhe abre as portas. É isto que faz d~er a Simone de Beauvoir:. «A romana
dos séculos, juridicamente um «menor»(o que não pode deixar de ter influído da decadência era o tipo da pseudo-~mancipada, que possui apenas Uma liber-
na evolução da sua psicologia), menor que passa da tutela do pai à do marido dade vazia num mundo em que os homens são e permanecem os donos abso-
e dos filhos, sem ter uma voz e um direito reconhecidos. O elemento deter- lutos: era livre "para nada"». O cristianismo, na aparente revalorização da
minante desta tutela será oCpag-~Qgio' que se transfere - juntamente com mulher, considerada ao mesmo nível de todos os oprimidos a quem a pala-
ela - de um grupo familiar para um outro e que deve permanecer no inte- .vra do Evangelho se dirige, continua a sancionar o seu estado de sub-
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missão: por um lado, a mulher permanece a origem da queda e a fonte do


pecado; por outro, queda e pecado serão remidos no culto de Maria que, 4. O direito
todavia, é virgem, imaculada e sem pecado. A carne que a mulher repre- Se as mulheres tmbalhassem nos campos dos
senta aos olhos do cristão não é resgatada por este culto, uma vez que Maria, homens. .. seria duplicado o mlmero dos trabalha.
virgem e mãe sem mácula, é assim privada de corpo para ascender ao céu. dores e, por conseguinte, diminuiria outro tanto o
valor do trabalho (Moebius).
O seu culto pode portanto oferecer uma identificação com a mãe dolorosa,
mas não com a mulher, dado que o cristianismo confirma o seu estado de
dependência, limitando-se a dar-lhe um valor e um significado espirituais. Durante séculos a mulher calou-se e o homem falou por ela. Durante
N a Idade Média, as invasões bárbaras j;ontêm, com o relaxamento dos cos- séculos vive e fala ~ara si, dentro das paredes de casa, onde trabalha, dá
tumes próprio da decadência, um abra~damento do direito romano através à luz, amamenta, cna os filhos, ri, chora, assegura um refúgio, um abrigo
do enxerto de novos elementos do direito germânico, mais tolerante em rela- para o h~mem - que trabalha, faz a guerra, mata, escreve poemas, pinta
ção à mulher: na falta de herdeiros, a JIlulher herda os bens, mas sempre, frescos, mventa novos instrumentos para facilitar a vida: e dá-lhe protec-
contudo, debaixo de uma tutela do homem que se torna seu administrador ção. Uma protecção que a encerra na prisão, mas de que talvez não tenha
e tutor. Quanto maiores forem estes bens, tanto mais rigorosa será a tutela, c~nsciência, en~uanto o mundo de que o homem faz parte não for qualita-
de tal modo que a mulher mais liberta do domínio do homem vem a ser tivamente tão diferente dela e enquanto criar os filhos for um valor social
aquela qu~ é escrava da miséria: a miséria reúne o homem e a mulher no em que pode reconhecer-se e de que pode tirar compensações: o poder sobre
mesmo destino, ainda que, no seio deste destino comum, a mulher seja a cas~, sobre os filhos e, por vezes, sobre o homem, naquela parte de si
objecto da violência do homem, provocada por essa mesma miséria. pr6pno que ele destina à casa e à família. Única alternativa é o poder sobre
Salvo c;:asosexcepcionais que, de resto, confirmam plenamente a regra - o corpo do homem, que lhe advém do domínio profundo que pode exercer
o Egipto, onde a mulher é mais livre e desempenha um papel social, estando através do desejo e da necessidade que ele tem dela: mas é um domínio
a propriedáde centralizada nas mãos do rei e das castas superiores; Esparta, que fica sempre no interior do espaço que lhe é consentido e não ultrapassa
fundada sobre um regime de propriedade comunitária, no qual a mulher os limites do seu corpo ou os da casa.
é educada como uma igual do homem -, a figura jurídica da mulher segue Serão dois eventos - de natureza diferentes, mas, no entanto, entrela-
o destino da propriedade e da família de que é garante: propriedade - entre çados um no outro - a iniciar uma nova realidade e uma nova consciência
outras coisas - do homem, não· pode existir jutidicamente senão como abr~do o caminho' ao desbloqueamento para um início de acção, linha divi~
, objecto de tutela, de transacção e de contrato, sendo principalmente veí- s6na entre um tempo sempre igual a si mesmo e uma hist6ria em que a
culo de transmissão e de transferência de bens. mulher começa a falar e a agir: por um lado, O nascimento do indivíduo
Direito can6nico, direito romano, direito germânico - que consideram, como entidade separada do grupo e a imposição dos conceitos de igualdade
, embora em graus diversos, a mulher como uma menor incapaz, que é pre- ~ntre o~ homens, e, por outro lado - mais tarde -, o nascimento da era
ciso tutelar - influenciarão a elaboração dos c6digos europeus. Através dos mdustnal. Estes eventos serão determinantes e, simultaneamente, expres-
c6digos estabelece-se e sanciona-se o papel concreto, institucional, social- são da formação de uma nova consciência, e é apenas a partir do afIorar
mente reconhecido à mulher, mas o dever de não existir como figura social desta n?va .consciência que se pode falar da mulher como problema, porque
continua a dominar todo o direito. Única vantagem que a mulher tira é um pela pnmelra vez começa a tomar forma nela - sobre bases concretas que
reconhecimento de «irresponsabilidade>.que deriva do facto de ela ser, por vão mudando - o conhecimento da sua condição.
definição, «menor». A tutela de que é objecto torná-Ia-á gradualmente mais Enquanto eram os homens a falar dela, a imagem que construíam não
frágil e impotente, de modo que o homem - do alto da justiça e da equa- era real: era um fantasma que correspondia às necessidades do homem e
nimidade das suas leis - chegará a não lhe reconhecer a plena responsabi- não podia ter as suas pr6prias, já que os fantasmas são s6 o objecto do pen-
lidade dos seus delitos e pedirá para ela uma pena reduzida, invocando o samento do outro. Mas enquanto não tinha uma voz activa ou não falava
seu estado de inferioridade e debilidade naturais. ~ai~ alto d~ que quem falava por ela - com as cumplicidades e as impo-
A assimetria de poder entre o homem e a mulher não é, portanto, um tenclas contidas nesse silêncio -, a mulher existia s6 no quadro das pala-
processo natural: leis, c6digos, normas «apresentaram-na» - como diria vras .que lhe re;nviavam a imagem daquilo que era através da imagem
Platão - e estabeleceram-na por direito, negando à mulher uma personali- daquilo que deVIaser. Para chegar a esta nova consciência devia acontecer
dade jurídica, de tal modo que se pudesse facilmente deduzir que a única qualquer coisa que retirasse à mulher a sua ceneza origin'ária e que a ati-
personalidade jurídica é representada pelo homem. Deste modo tornou-se rasse, em igualdade com um homem, para uma situação precária na qual
possível uma operação matemática considerada habitualmente errada: um a certeza sobre a sua pr6pria função, separada e isolada do resto do mundo
homem mais uma mulher produziram, durante séculos, um homem. que avançava e mudava, começasse a ser discutida.
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MULHER 184
...
'
-

Por outro lado, os princípios de igualdade entre todos os homens pro- e social, encontra-se agora expropriada por uma nova exploração que uti-
clamados pela Revolução Francesa e o carácter concreto das necessidades liza a sua inferioridade para lhe pagar menos do que ao homem, como se
que tinha conduzido a estes princípios provocam - de modo diverso - a a sua remuneração - para trabalho igual - fosse diferente. ~ neste momento
mesma incerteza. que a Ínulher começa a organizar a luta pela conquista dos direitos que nunca
A mulher começa a descobrir que, se se deve ser igual, ela tem alguma possuiu.
coisa a dizer sobre esta igualdade, porque, se existe um «desigual» desde Mas isto comporta uma nova confusão, visto que o direito social, ao qual
sempre, esse desigual é ela. Já quando, do Renascimento ao Século da Razão, a mulher exige aceder, passa também pelo direito individual na relação com
começava a ailorar o «sujeito» e se aguçavam as exigências do indivíduo, o homem. O homem, condicionado por uma cultura que tem milénios de
a mulher procurava um modo de exprimir a sua subjectividade. Mas a única hist6ria e cada vez mais condicionado pela nova organização do trabalho,
maneira de a desenvolver - para além do domínio sexual sobre o homem - exige à mulher sempre mais amparo, abrigo e refúgio: mas o refúgio que
era competir com ele no terreno da inteligência: em Itália e em França a mulher pode oferecer torna-se cada vez mais amargo. A partir de meados
mulheres instruídas são centro, em cortes e salões, de uma cultura de que do século XIX, a mulher encontra-se empenhada numa dupla frente: a con-
a mulher se torna promotora. Mas são factos isolados: de elite; excepções quista de uma igualdade de direitos no trabalho e na vida social e a con-
que usaram o seu poder de classe para se inserirem numa cultura que con- quista de uma igualdade de direitds na relação com o homem.
tinua imutável e para influir obliquamente, como sugere Simone de Beau- E, todavia, o nascer da era burgtJesa funda-se sobre o reforço dos laços
voir, sobre o homem que tem o poder na mão. Estes casos falam dos privi- familiares e sobre a delegação no homem para que vele por que a mulher
légios de que gozavam as mulheres pr6ximas dos «poderosos», mas' não não transponha os limites da tutela e da submissão. Quanto mais li história
podem dar a medida do que estava a mudar. ~ com a Revolução Francesa, evolui e a mulher se emancipa no plano dos direitos, tanto mais se explicita
na qual as mulheres participam na primeira pessoa, que este igual entre iguais a delegação deste controlo no homem. Perante a ameaça representada por
pode provocar uma atitude diferente, porque parte de uma necessidade mate- uma mulher que começa a lutar pelo reconhecimento da sua própria exis-
rial que une a massa. A «Declaração dos Direitos da Mulher» proposta em tência e das suas necessidades, a fartúlia, núcleo portador da burguesia em
Paris, em 1789 - e que se afundará juntamente com a liberdade, a igual- ascensão, deve fortalecer-se através do reforço do poder do homem que endu-
dade e a fraternidade proclamadas -, é um sinal importante porque faz sen- rece a sua posição e se defende rdtringindo os espaços de autonomia da
tir a mulher presente com as suas exigências de cidadão igual entre os outros. \ mulher. A ética do protestantismo servirá, assim, tanto para reforçar a famí-
Mesmo se onareconhecimento
desembocar constituição do dos direitos
direito civis e que
napole6nico não restabelece
políticos acab~ por
a adtori- I lia, controlando
do capital, a mulher,
a cuja 16gica acomo para sustentar
humanidade e ajudar
deve ficar o desenvolvimento
sujeita.
dade absoluta do marido sobre a comunidade familiar, a proposta de :uma Mas o desenvolvimento do capital comporta a abertura do espaço social
carta dos direitos da mulher, separada da dos direitos do homem, significa à mulher através do seu ingresso na ~rodução, e proletárias e burgliesas têm
que a mulher reconhece por si pr6pria o carácter específico e particulár da maneira de verificar - embora em híveis diferentes - qual é a sUa condi-
ção real...
I' .
sua opressão e é ela própria a propô-Ia como um problema diferente" mas
igualmente inserido na luta pela conquista dos direitos de quem prirlleiro A partir da segunda metade do Stjfulo XIX, a mulher da classe mais baixa
não tinha voz activa. ' entra em massa no mercado do tn!balho. O processo de industÍ'ializaçllo
O nascimento d~ ~l'!1_Í!1dustrial1e
da !10Vl!.Jc5gica
econ6mica, que imprime selvagem abre-lhe as portas da exploração organizada (pondo-a 11 par do
um carácter diferente ao trabalho do homem enquanto produtor de m~rca-
doriasj será depois determinante no desenvolvimento desta consciência: lI1eces- -- hômem); masforça
çllOquer da produz, simultaneam~nte,
da classe a consciência
exploradora que quer desta
começa, também ela, explora-
a dotar-
sária à nova organização do trabalho e totalmente separada desta pela. hatu- -se de uma organização.
reza diferente das suas actividades quoti<.ijanas,a mulher vê passar parll,uma O ingresso no mundo do trabalhp acelera - na mulher - a cohsciência
situaçAo de subalternidade a sua funçAo essencial, subalternidade q~~ nllo da sua condição, privada como está ,qe serviços sociais e de assistência que
pode deixar de comprometer a sua certeza originária. Fazer filhos não' basta possam ajudá-Ia a levar a cabo a su!!:dupla função: os fIlhos e (j trabalho.
para justificar a pr6pria existência: por um lado, toma-se uma parte dela
- inevitabilidade da maternidade -, mas que já não lhe basta per~nte a O
tal,Estado,
começaque se vai estruturando
a organizar cotrto garante
as suas instItuições e a do desenvolvimentd
tomar do capi-
sobre si o ~roblema
necessidade de ser integrada no mercado do trabalho; e, por outro, ficá esva- da protecção e da educação dos fIlhos: a piutir do momento em que é neces-
ziada de todo o valor social, desde o momento em que o único valor !locial- sário que a mulher trabalhe fora dj: casa, dá-se início a um conjunto de
mente reconhecido é o trabalho produtivo. Esta nova realidade prdpõe à medidas institucionais (escolas, infaJ:ttários)que deveriam ajudá-Ia, mas que
mulher um exame concreto da sua situação: expropriada de uma subjectivi- ao mesmo tempo a privam lentamente de parte daquelas funções essenciais,
dade nunca possuída na relação com o homem e com o mundo, cada vez motivo da primitiva anulação. Início lentíssimo, se ainda hoje se continua
mais separada do homem e do mundo pelo evoluir do contexto econ6mico a lutar para obter os serviços requeridos por estas necessidades, mas que
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MULHER

dá a medida de uma deslocação nas relações desta «tutela», não mais enten- Proletárias e burguesas - empurradas por exigências materiais di-
dida como facto individual da mulher e da família, mas de competência
ferent~s - vão adquirindo simultaneamente a mesma consciência, porque
directa de um Estado que precisa de um aparelho de controlo articulado,
se aquilo em que se tornou a sua natureza é o produto da cultura, esta cul-
para organizar, através das diver.sas instituições, o corpo social. De facto,
tura joga a todos os níveis: o social - que impede a mulher de participar
as mulheres proletárias encontram-se espoliadas do aspecto educativo da sua de pleno direito na vida de grupo e no trabalho, de ter os mesmos direitos
função de mães por um Estado que declara tomar sobre si esta incumbên- e os mesmos deveres do homem, de contribuir para construir um Estado
cia, mas simultaneamente - dado que' isso não consegue responder às suas que a proteja e responda às suas exigências - e o pessoal, privado da rela-
necessidades concretas - encontram-se na situação de suportar à sua pró- ção com o homem que, através do controlo da sua sujeição individual _
pria custa e à dos fIlhos o peso da desvalorização desta sua função. acentuada pelo esvaziamento da sua função essencial -, continua a ser
São portanto as exigências da pr04ução a incluir a mulher no mercado garante da sua sujeição social. A mulher proletária sofre esta dupla opres-
do trabalho, abalando a primitiva ceriOta da unicidade da sua função, e são são, cuja natureza económica evidente e dolorosamente sentida a leva mais
facilmente à luta política; a mulher burguesa, dispondo de vantagens eco-
estas
o preconceito,
meSmas exigências
habilmente
a produzir
mantido,as'qa
primeiras
inferioridade
contradições
da mulher:
fundadas
discrimi-
sobre nómicas a proteger e principalmente identificada, como está, com os valo-
nação, para trabalho igual, dos salários entre homens e mulhe~es, .e por- res dominantes, terá mais dificuldade em isolar a natureza política da sua
tanto estímulo à revolta das mulheres subpagas. Uma nova consciência polí- opressão c tenderá a deslocar a sua intervenção para a conquista dos direi.
tica se ~~i formando entre as classes inferiores, mas também entre as tos civis que - primeiro passo indispensável à emancipação - se arriscam
mulheres. a ficar no interior da mesma 16gica que produz a dominação.
A mulher burguesa, que não é empurrada para o trabalho pela necessi- A partir dos fmais do século XIX, os movimentos femininos avançam
dade material, rebela-se por outro lado contra o estado de submissão: pre- simultaneamente em duas direcções que, por vezes, se fundem para volta-
tende o acesso à instrução, o sufrágio e o reconhecimento dos seus direitos rem a separar-se: por um lado, as reivindicações econ6micas das mulheres
enquanto' pessoa. Não tendo outro espaço - físico e psicológico - senão proletárias, unidas às lutas mais gerais do proletariado pelo socialismo; por
os fIlhos, a casá: o amor pelo homem, vê gradualmente esvaziar-se de con- ?utro, as reivindicações de carácter mais claramente «civil» da'S burguesas
teúdos e de sentido a sua função. «O trllbalho doméstico desapareceu quando Instruídas que lutam pelo sufrágio, pela instrução, pela igualdade de direi-
comparado com o trabalho produtivo do homem: este era tudo; aquele, pelo tos da mulher numa sociedade definida pelo homem. As primeiras arriscam-
contrário, um acréscimo insignificantel>(Engels). O refúgio que oferece, no -se a perder, na generalidade da luta do proletariado, na qual a divisão pri-
interior deste invólucro que se torna mais rígido e espesso à medida que mária é a de classe, o carácter específico da opressão da mulher na relação
se vai esvaziando, começa a tornar-se, para todos, uma ratoeira: o guerreiro com o homem e com a realidade em que o homem tem uma posição dife-
nem sempre encontra o repouso evocado por Nietzsche. O homem, media- rente; as segundas, ao focalizarem a luta no carácter específico da opressão
dor entre a realidade e a mulher ainda fechada dentro das paredes da casa, da mulher, arriscam-se a perder o carácter político e o social.
representa para esta a única conquista sobre o mundo, mas trata-se de um Porque, assim como não se pode falar da mulher senão como de qual-
mundo que já não lhe reconhece nenhuma função social porque se move quer coisa de historicamente construído e determinado, quem é concreta-
num registo diferente. Neste sentido, o homem torna-se alvo inevitável do mente o homem na sociedade capitalista que a pouco e pouco se foi estru-
seu ataque, sinal de uma impotência que não encontra um modo de se expri- turando? Um homem, por sua vez, explorado, dividido, amputado, quebrado
mir senão atacando aquilo que, voluntária ou involuntariamente, representa por um corpo social e por uma lógica econ6mica que, de vez em quando
aos seus olhos a realidade e o poder - traço de união concreto com a reali- e em modalidades sempre diferentes, se organizam para o reduzir a um sim-
ples objecto manobrável na direcção pretendida; um homem a quem toda-
dade e o poder. Lágrimas, chantagens, agravos, seduções, violência!!,ver- via, a cultura ligada a este corpo social e a esta 16gica económica deixou
bais, histerismos, instrumentalizações são as armas do fraco que não sabe
como compensação individual - resquício de modalidades medievais de
encontrar outros apoios, outros modos de gravar num bloco de pedra que
relação - a possibilidade de dispor de um objecto de propriedade sua - a
não seja deixar as marcas das unhadas: porque dentro das paredes intrans-
mulher - com a delegação explícita de velar por que ela continue a aceitar
poníveis da família burguesa o homem representa ainda para a mulher o
único confronto, a única medida do que é, do que faz, do que quer. Numa o seu papel de dependência. Numa sociedade assente sobre a exploração
do homem e da mulher, é isto o que torna o discurso sobre a opressão da
sociedade que se vai organizando em função da produção e do lucro como mulher por parte do homem mais difícil e mais ambíguo, mesmo se se trata
único «valor», a maternidade vai cada vez mais perdendo o da reprodução
de uma opressão manifesta e grosseira que, no entanto, não provém de um
de um bem social, e a mulher burguesa encontra-se esvaziada també~ desta sujeito, por muitas que possam ser as vantagens que este daí retire. Este
função, sem ter em troca nenhuma relação com o mundo, que contmua a
entrelaçamento de papéis, delegações, explorações, privilégios, frustrações,
passar através do filtro representado pelo homem. recompensas, chantagens, expropriações, que continuamente deslizam do
MULHER 188 189 MUUIllIl.

plano pessoal-privado para o social-público, ou vice-versa, torna sempre mais


5. A coerência
confuso e indecifrável aquilo que deveria ser a primeira relação natural entre
homem e homem: a relação entre homem e mulher. E é esta sobreposição Pauvre ange, elle chantait, votre note criarde:
gradual de qualquer coisa de estranho à natureza sobre a natureza, para che- -Que rien ici·bas n'est certain, •
Et que toujours, avec quelque soin qu'iJ se farde,
gar a criar um homem e uma mulher naturalmente mais aptos a aceitar o Se trahit I'égorsme humain;
domínio preparado para eles, que impede de ver e de compreender clara-
mente qual possa ser a via de saída desta opressão específica da mulher, Que c'est un dur métier que d'être beIJe femme,
produzida conjuntamente por uma organização social e por uma cultura que Et que c'es! le travail banal
jogam sobre a sua inconsistência social, e pela presumível subjectividade mas- De 'Ia danseuse folle et froide qui se pAme
Dalls un sourire machinal. (Baudelaire).
culina que joga sobre a sua inconsistência individual.
Resta todavia o facto de que esta presumível subjectividade do homem
tem o privilégio de estar ideologicamente menos ligada à natureza do que A partir do século xx, os movimentos femininos têm como objectivo
o está a mulher, e de contribuir - por delegação social - para que se per- alcançar a primeira medida que I't1conheça à mulher uma figura social:
petue esta identificação da mulher com a natureza, como obstáculo à sua o sufrágio. É uma batalha difícil que vê alinharem-se as mulheres de mui-
libertação e à conquista de uma subjectividade que poderia prefigurar uma tos países e. é uma conquista gradual que exigirá anos de luta. As etapas
outra relação com a realidade e com o homem: logo, um outro homem e podem medIr-se no tempo. Algumas, datas essenciais assinalam os seus pas-
uma outra realidade. sos: 18~3 Nova Zelândia, 1906 F~ândia, 1907 Noruega, 1908 Austrália,
É neste sentido que, às graduais conquistas da mulher, apoiadas na sua 1915 Dmamarca, 1917 Rússia, 1915Áustria, Checoslováquia e Alemanha,
evolução por raras e isoladas vozes masculinas (Poulain de Ia Barre, Con- 1919 Estados Unidos da América, 1922 Hungria, 1923 Holanda, 19i8 Ingla-
dorcet, Stuart Mill, Saint-Simon, Fourier, Enfantin), se volta a propor, no terra, 1945 França, 1948 Itália: recohhece-se o direito de voto às tt1ulheres.
início deste século, um novo recurso à «natureza» para remeter a mulher Na Europa, a Primeira Guerra Mundial, na qual as mulheres partici-
ao seu lugar. Desta vez não será a religião (mesmo se esta continua a fazer pam com o seu trabalho, acelera os túmpos deste processo. Mas difll:ilmente
sentir o seu peso) nem também a f1losofia (ainda que fllósofos ilustres não s~ aceita esta nova figura de mulher que luta por infringir a regra napole6-
se tenham calado a este respeito), mas um novo meio que a organização mca que a relega para a cozinha, a igreja e os fllhos. Primeiro passa - pre-
social começa a utilizar como sistema de controlo e de domínio: a ciência. cedido ou contemporâneo do acesso à instrução -, a obtenção do sufrágio
A voz dos médicos positivistas far-se-á sentir ao propor de novo, «cientifi- sanciona juridicamente o direito e o dever da mulher de escolher e deter-
camente», a inferioridade fisiológica da mulher, deduzida de análises e pes- minar o estado e o governo do seu país e de influir nos seus destinos. Mas
quisas sobre a sua inferioridade natural em relação ao homem. Como sem- a luta sustentada pelos movimentosl de vanguarda não reflecte d 'nível de
pre, no decurso dos séculos, mal se abre uma fresta para um maior consciência geral de todas as mulhl!:res. Subordinada por tradição secular
reconhecimento do direito da mulher a existir como pessoa e como figura ao domínio da cultura do homem, d, caminho da sua automomia ~ncontra-
social, o quadro fecha-se remetendo a mulher para a natureza, para a sua -se ainda cheio de obstáculos porque - como sempre - o costume pode
função natural, para a escravidão do corpo de que tenta libertar-se, Mas fazer malograr o que ~e,obtém pela lei. E o costume continua a lrltpor um
esta operação demonstra já explicitamente a sua finalidade - por admissão uso: que se é necessáno que a mulhl:r tenha uma opinião sua, essa opinião
explícita dos mesmos positivistas -, dado que as interpretações naturalistas deve ser a do homem, sobretudo qtràndo ela é garante da ideologia domi-
nante. "
servem para travar e ocultar o significado político-social da luta empreen-
dida pelas mulheres. A primeira metade do século xx é portanto caracterizada por uma con-
Redefinida como «inferior», de novo,convidada a ficar em casa para aco- quista grad~al concreta no plano das reivindicações políticas e sindicais, e por
lher, dócil e sorridente, o marido cansado, a mulher do início deste século uma conqUIsta gradual abstracta no ,plano dos direitos; conquistas que não
continua, porém, a lutar. comportam uma modificação substancial na autonomia geral da Imulher.
Mesmo se as coisas começam a mudllr (o acesso à cultura e ao trabálho pro-
duz os seus frutos e, sobretudo, conttadições novas que exigirão novas medi-
das e novas respostas), a maior parte das suas mulheres identifica"se ainda
- se bem que com cansaço - com o papel que lhe é exigido, ampliando
a gama das suas actividades que comportam um trabalho duplo ou triplo,
constrangendo-a a exercícios de acrobacia para responder às expectativas de
todos: a reprovação por não ser uma boa mãe, se exerce seriamente o seu
trabalho, será um elemento constante.
190 191
MULHER MULHER

Mas nos anos 60 - numa fase de expansão do capital nos países de alto É importante. que ~ste.s temas de fundo sejam bropostos por ela, pela
desenvolvimento - o acesso da mulher à instrução e ao trabalho cada ve.z mul~er, ~or~ue IstO diz amda alguma coisa sobre a sua história: encerrada
mais qualificado começa a produzir contradições diversas. A sua nova POSI- na .1~anencIa do homem, a mulher nunca experimentou o que fosse o
ção no mundo produtivo - já não limitada à de mão-de-obra subpaga, como «~UJCltO»;aprendeu, desde sempre, a não existir senão naquele espaço «objec-
acontecia no princípio do século, mas alargada, embora em funções geral- tlvo» reservado à natureza. Este «Eu», que se manteve adormecido e enco-
mente subalternas a vários sectores técnico-profissionais- leva gradualmente berto, enquanto esteve es~abelecido que não existia, ficou também ao abrigo
a mulher a ser u~ novo sujeito social. Ainda que dentro dos limites produ- do mun~o .e das suas. leIS ferozes. A sua ligação com o aspecto concreto
zidos pela cultura que tarda em mudar, a mulher - pela própria contradi- e a c?QtmUldade da VIda manteve-o vinculado aos sentidos mais profundos
toriedade destes limites em relação à realidade que já vive - começa a pôr daquilq que vale ou não vale nesta vida. Isto significa algo de muito impor-
exigências novas de participação real nos problemas ~olectivos, afi~m~n~o tan~e nest~ mom~nto: a m~lher não foi corrompida pela ideologia. Foi objecto
o emergir de uma subjectividade que começa a questionar a sua eXlst~ncla de IdeologIas, .fOl-se.Identificando com aquilo que o poder fazia dela, mas,
em relação à organização social de qu~ faz agora, formalmente, parte mte- não tendo podido dIspor dele, nunca foi corrompida pela ideologia com que
grante. E portanto a mesma série de ppssibilidades que .se abrem à sua frente o poder se .cobre. E agora começa a arriscar-se a cair nas suas malhas.
Mas ~ amda esta a força extraordinária que a mulher possui: durante
queNo começa a influir
fmal dos na nos
anos 60, qualidade
Estados4~s suas expectativas.
'Unidos - e mais tarde na Europa - séculos VIUo h~mem proclamar o reinado do espírito e da razão, sabendo
grupos ~e mulheres, empenhadas nos Plovimentos políticos de esquerda, dão ser ela a garantia do seu regresso à natureza e à imanência - e deixou-o
conta de'que mesmo com os seus «conp.panheiros»a relação é a mesma: autó- f~àr; durante século~ foi testemunha das suas regressões, deixando-lhe a ilu-
nomas, frequentemente empenhadas seriamente no trabalho e. na luta polí- sa? de que ela não tinha necessidades e de que, pelo contrário, estava satis-
tica, a sua «posição» no mundo' nãq 'sofre alteração substancIal, e. os. pró- feIta com o que o homem não dava; durante séculos assegurou a vida que
prios companheiros as consideram «ij1ulheres»dentro do eterno clu:he que o hom~m, entretanto, tirava. Foi ela que, como compensação das suas fadi-
as quer disponíveis e submetidas. A ruptura é inevitável, nesta procura de gas, alrmen!ou e garantiu o repouso do homem de acção, do revolucionário
ser finalmente alguma coisa que tenha o direito de existir de acordo com ou ~o ~lítlco que lutavam pela igualdade social, esquecendo que entre os
aquilo que deseja ser, para si e para "s outros. O movimento feminist.a que deSIguaIs também ~la se encont.rava. Testemunhaincómoda e importuna,
nasce desta ruptura põe em foco, pela primeira vez, o carácter específico, ~ mulher tr~ em SIuma .c.0rç.aamda não corrompida: é a força de um juizo
particular, da condição da mulher, estabel~cendo a necessid:de de ~a. sepa- lI~ado às COIsas,às expenencIas concretas de vida, que não se deixa contra-
ração total dos outros movimentos po.lítlcos: esta se~ara~ao - mevltavel- dIzer ~elas pala~ras ou. pelas abstracções. A esta inteligência - que con-
mente sectária - tende a criar uma urudade e uma solldanedade que nunca serva amda, fundid.os e mextricavelmente entrelaçados, o juizo sobre as coisas
existiram entre mulheres, até ao momento em que estejam seguras de si, concretas, a emoçao que provocam, a sensualidade de um corpo que está
daquilo ~ue são, do corpo de que foram expropriadas, das neces~i~ades e nelas ~ergulhado. e das quais faz parte, a ternura nos confrontos da vida
desejos de que ainda não conhecem a verdadeira natureza, condlclon~das e a antiga sabedona no~ confrontos da morte -, a esta inteligência foi dado
a responder a necessidades e desejos de outros, enquanto não consegurr~m \ o nome degradado de (<lDtuição»fe111ÍnÍna>" para a recolocar no reino da natu-
descobrir a sua sexualidade mutilada, de que ainda não sabem que cOIsa reza. Mas é esta inteligência que, no momento actual, poderia dizer pala-
poderia ter sido, e não é; enquanto não conseguirem ver qual pode ser o vras n~vas.e fazer novos gestos, porque - não obstante o processo de esqui-
seu lugar no mundo e o seu futuro. ~ofremzaça~ de que somos todos objecto nesta sociedade - ela permanece
O risco desta «separação» que não quer confrontos é de resvalar para l~gadaàs cOls.as,.às experiências, à ~atureza, ao corpo através dos quais con-
a ideologia, para a apropriação de uma gíria, uma linguag~m 'p~ópria que tmua a exprrmIr-se e com os quaIs o homem já perdeu toda a relação
teoricamente rejeite qualquer ligação com o homem, de facto mdivIduapnente Que passo~ s~guir par~ impedir que esta força fique corrompida? Pa~a
vivida. E no entanto, nesta separação, está a proposta dos temas de fundo que e~ta coerenCla e~tre mtellgência e experiência, entre razão e emoção,
que percorrem a nossa cultura actual: o «sujeito» - eliminado e oprimido entre JUizoe sensualidade, entre o que se faz e o que se diz não seja que-
por um sistema social homicida - volta lentamente a aflo~ar, ~través da rcas- brada? Para que a mulher, além de ficar testemunha da ruptura que já ocor-
sociação do grupo, e volta a interrogar-se sobre a sua Identidade, sobre o reu no mun~o, na política, na cultura, no homem, entre o carácter con-
que quer do mundo, porque não o aceita como é, o que quer fazer para creto d~s cOisas e das necessidades e a ideologia, possa contribuir para
o fazer mudar e onde procurar o seu corpo perdido. São temas que põem construIr um ou~ro mundo, uma outra política, uma outra cultura e um
em crise o «político», até agora separado do quotidiano, do privado, como outro homem, .hgados às coisas essenciais, às necessidades, aos desejos,
se o homem estivesse dividido em duas partes que não têm nada a ver uma à vontade de VIver e de morrer depois de ter vivido?
com a outra. E o «político» aproveitar-se-á disso para enriquecer qualitati- ~ mulher cont~nua a dizer que não é como foi criada e que já não aceita
vamente o terreno das suas batalhas sucessivas. o disfarce. Está amda laboriosamente a procurar demonstrá-Io a si própria
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193 MULIII!R
-'. ~
para depois o demonstrar aos outros. Mas ainda nllo sabe o que é e age Esta sensualidade' generalizada - quase desaparecida no homem - deve-
às apalpadelas. O homem olha-a assustado e transmite mensagens e chanta- ria ser um bem a proteger e a transmitir. Se a mulher foi definida, desde
gens; ou voltas a ser como eras ou perdes-me. Mas a mulher já não quer sempre, como «natural», é ela agora quem tenta apropriar-se conscientemente
ser a mãe deste homem e quer que ele cresça também - enquanto ela desta natureza, reivindicando a capacidade que conservou - num mundo
cresce - e não tenha necessidade, para ser forte, de a ter sujeita, porque
de mortos - de sentir e de compreender as coisas também com o corpo
se muda a primeira prepotência, muitas coisas podem mudar: destrói-se a
e de descobrir as mais imediatas necessidades deste. Mas apropriar-se cons-
primeira desigualdade e torna a fundar-se a primeira unidade sobre uma
cientemente desta natureza significa; igualmente transformar a sua cultura
\ relação entre iguais-diferentes.
de sobrevivência num valor proponível ao mundo e que pode transformá-
Mas pode a mulher ser igual num mundo fundado sobre a desigualdade?
-10. Uma vez perdida a sua antiga cel1eza, também a mulher entrou na dúvida
Volta a emergir a chantagem que paralisa toda a acção, toda a tenta~iva de
mudança. É certo que mesmo entre os homens há quem seja mais igual mas, antes de ser destruida pela razão - que é a razão dominante -, pode
ao poder e quem seja diferente porque está demasiado longe dele, e d exac- usar a dúvida para perceber que riqueza lhe resta ainda e que uso quer fazer
tamente por isso que se continua a lutar para conseguir romper o cercb den- dela. ,
tro do qual estamos enclausurados. E até a mulher luta por isto, sabendo Neste ponto, a mulher natural levaria certamente a melhor sobre o
homem artificial. Mas para que serviria esta vit6ria? E a quem?
no que
de entanto que isto
se tudo já nodesaparecesse
paraíso terrestre ela era
as coisas desigual
seriam assime tão
nãodiferentds
tem a çerteza
para
ela, porque já tem alguns exemplos disso. E então por que razão impedir
que lute e que pergunte a si própria - já agora, num mundo de desiguais . 6. A relação (l + 1 = 2)
que não o querem ser - de que modo poderia ser igual e se é verdade que
ela é natureza, escrava do corpo? Toda a mulher, na sua vida, per~orreo ciclo completo da hist6~ia femi-
Isto significa a luta para que o seu corpo seja seu e já não possa ser nina. Nascida diferente do rapaz, até à adolescência, partilha mais du menos
violentado e vítima de estupro por parte do homem, invadido por materni- o destino dele, conforme a diversificação mais ou menos acentuada Pela edu-
dades não desejadas ou - por outro lado - privado do fJ1hoque qu~r. Os cação: prepara-se para uma função diferente da do homem; há limites quan-
problemas políticos que tem de defrontar continuam para ela a passar pelo titativos ou qualitativos que fazem prever um destino diferente, mas existe
corpo, e é este facto que torna concreta a sua luta. Este corpo jamais pos- ainda uma indiferenciação que a cohserva na categoria das «crianças» (que
suído, encontra-o ela no seu peso e quer compreender de que modo 'é pos- longinquamente faz lembrar aquilo que a pré-história poderia ser). Na adoles-
SÍVeltornar-se dona dele e sentir que lhe pertence. Também o homem foi cência, ela pr6pria se descobre possuída pela natureza: pode sentir horror
expropriado do seu corpo, mas não sabe que não o possui. A mulhh tem pelo seu corpo que muda, pode senti·lo estranho, animal, e, para ó aceitar,
sobre ele a vantagem de nunca o corpo lhe ter pertencido, o que llie per- deve apropriar-se dele e dominá-Io, ,estabelecendo uma distânciaerntre si e
mite uma luta mais radical para se poder apropriar dele. essa «coisa»que não reconhece e não,lhe pertence. Se consegue aceitar como
Um passo já tentado é a conquista do corpo através do sexo vivtdo em seu este corpo com uma vida aut6noma que é obrigada a suportar, terá acei-
igualdade com o homem. Mais que das «bruxas» invocadas, pareceria um tado a sua feminilidade, mas existir:1sempre uma distância que o,/~eu«Eu»
regresso da cortesã, dona de si através da «posse» do homem. Mas trata-se quererá manter com esta natureza invasora que se apropria dela, in)prlmindo-
de uma posse simplesmente às avessas, que não propõe uma out~.a:quali- -lhe uma marca: o seu espírito proêurará dominar a natureza hostil e ini-
dade de relação: limita-se a inverter os termos da desigualdade, reduzindo miga mas simultaneamente será dominado por ela (é a operação realizada
pelo homem no momento em que submeteu a natureza e a mulher, cbhservando
o mundoque
lidade, vasto e susceptível
se pode de alargamento
tornar mecânica, da sensualidade
tal como à mera
se tornou para ,sexua-
o homem. para si o reino da transcendência e relegando a mulher para a imanêntia). Mas
A fusão entre sensualidade, emoções, ternura, sentimento e sexualidade, se consegue aceitar como seu este cotpo-natureza, a mulher permanece natu-
como um todo global, é uma força que a mulher ainda conserva e que não reza aos olhos do homem que se apodera· dela: no seu amor por ele, natu-
deveria ser perdida. Está ligada à sua história de opressão e de vio,lência, reza e cultura levam-na a um estado 'de dedicação e de submissãd total no
ao espaço reduzido que lhe estava atribuído, à capacidade desenvolvida na qual se extravia e se perde. Esmaga'da pela maternidade e pela criação dos
escravidão de agarrar mesmo as pequenas coisas e tirar delas um prazer, filhos, não sentirá sempre o peso do limite e da tutela, antes vivê-Ids-ácomo
uma compensação; está ligada à relação com a vida que nasce e qJe cresce
protecção e compensação: uma divi,sâo de trabalho justa em que cada um
e que tem necessidade de mãos afectuosas, de um corpo que ábraça e
tem o seu papel e a mulher se sen~ maternal e responsável por uma vida
envolve, de uma boca que ri e que canta. É esta sensualidade difusa e total
que depende dela (efectivada a sua $ujeição, durante séculos a mulher perma-
que a cultura sempre tentou conter quer na mãe asséptica quer na' fêmea
nece preenchida e aprisionada por esta certeza que a justifica aos seus olhos e aos
devoradora de sexo. Mas a mãe nunca foi asséptica, tal como a fêmea se
olhos dos outros). Mas, se começa a sentir a necessidade de se debruçar e com-
deixou muitas vezes levar pelo amor.
preender as coisas do mundo para 'tomar parte nelas, apercebe-se de que

13
MULHER 194 195 MULHER

acreditou que tinha um lugar, mas que na verdade se tratava de um lugar drama que estamos a viver, o risco de uma nova «grande derrota", dife-
de que podia apenas debruçar-se. Se tenta sair, se procura compreender o rente, mas que assinalaria a falência de uma nova ocasião perdida: desta
que aconteceu enquanto estava «dentro", começará a ser diferente daquilo .~ vez para a mulher e para o homem e para a realidade em que vivem o
que era e a querer alguma coisa (é a mulher que começa a tomar consciência I homem e a mulher.
da sua condição e começa a lutar). O homem dir-Ihe-á que estas suas aspira- i Prisioneiros de uma 16gica arcaica e com raízes profundas, segundo a
ções egoístas - para ele naturais - não fazem parte da sua natureza; que qual há sempre um vencedor e um vencido, conseguir-se-á sair deste jogo
é bom que fique igual a si pr6pria, que a ele lhe agrada assim; e outras que permite, no máximo, que se invertam as partes? Que sentido tem recusar
vezes a reprovarão e a farão sentir-se estranha num mundo que não é seu. a opressão de si mesmo pelo outro, para reivindicar o direito a oprimi-Ia
Mas, se continua a insistir, esta insistência torna-se suspeita: uma ameaça da mesma maneira e com os mesmos instrumentos? Como arrancar o poder
para o homem mas também para o mundo que lhe deve arranjar um lugar das mãos de quem o detém sem exercer o mesmo. poder sobre quem acaba
e começllr a tê-Ia em conta. Estas suM aspirações a existir como pessoa - de ser tornado impotente? Como superar os tempos das reivindicações, da
para além do seu papel de ftIha, de m~lher e de mãe - tornam-se reivindi- inversão dos termos que deixa intacta a natureza da opressão e a qualidade
cações pesadas que o homem não tolera, porque a primeira barreira contra da relação entre quem segura a faca pelo lado do cabo e quem se encontra
a qual a mulher se defronta é o homem, que continua a querê-Ia conforme com a faca apontada? É um problema que não diz respeito apenas à relação
à imagem que corresponde às pr6prijls necessidades (as conquistas graduais entre p homem e a mulher mas também entre opressor e oprimido, entre
da mulhfr no plano social envolvem t'a~bém o seu papel no plano pessoal). forte e fraco, entre quem tem o poder e quem não o tem: são portanto per-
A mulher apercebe-se então de que eSf~s6 - de qualquer maneira - e, se guntas que envolvem toda a estrutura social e todos os valores produzidos
não se dá'por vencida para não perder aquilo que tem, decide dar a cara, por ela e que não podem ter respostas parciais. Mas no caso da relação entre
libertar-se da tutela e medir forças. Perdeu a velha certeza que já não basta o homem e a mulher, existe qualquer coisa de mais complicado e simulta- .
para a jlf~tificar perante si pr6pria e o~ outros e quer experimentar mudar neamente mais simples: a necessidade natural que reciprocamente os une
e mudar as coisas: se deixar de ser tutelada, saberá fmalmente quem é, o que e que a hist6ria separou. A prepotência de um sobre o outro apoia-se sem-
sabe fazer,' o que quer fazer, e torna-se diferente. O esforço que esta trans- pre sobre esta necessidade recíproca que pode ser garantia de uma mudança.
formação lhe custará fará com que frequentemente seja agressiva, pronta Reconhecer o mesmo peso às exigências, às necessidades e aos desejos
para a defesa e para o ataque, de tal modo que o homem lhe dirá que não de ambos - mesmo se a mulher, entre outras coisas, for mãe se assim o
lhe fica bem ser como ela, não condiz com ela essa força masculina, que quiser - não deveria ser uma operação que exigisse um massacre. Se o
perderá as suas prerrogativas pelo caminho, que uma mulher é acima de j homem assimilou sempre a cultura da prepotência, a mulher incorporou sem-
tudo uma mulher. Mas, se ela quiser ser uma mulher-pessoa e não quiser I

pre a da submissão e da inconsciência, e o esforço necessário ao homem


ser um homem, começa a falar uma outra linguagem e a tentar transmitir I para se modificar é necessário à mulher para se conquistar a si pr6pria e
novas palavras. Que são rejeitadas. não recair nos mecanismos usados para se defender da prepotência. Esta
E então pergunta a si mesma o que será esta relação que existe s6 modificação recíproca pode realizar-se unicamente através de um laço recí·
I
enquanto ela não existe. proco que permita um confronto com a realidade das coisas, e é o posicio-
É neste ponto que começa o problema, e é a nossa história actual. I namento aut6nomo de cada um dos pólos da relação com a realidade das
I
É possível uma relação entre dois sujeitos ou deve aceitar-se que a pre- coisas que pode dar um significado diferente a este laço. Duas figuras que
;j
potência de um sobre o outro seja natural, seja quem for aquele que vença? IJ vivam uma relação directa, pessoal, aut6noma com o mundo são duas uni-
Se é natural a necessidade que une um ao outro, não deveria bastar partir fi dades que se fundem e que não precisam da morte do outro para a sua pró-
desta necessidade recíproca para construir alguma coisa que respeite as exi- pria sobrevivência nem de encontrar confirmação para a pr6pria força atra-
gências de ambos? Neste último século, vivendo em condições gradualmente vés da fraqueza de outrem. Quando a mulher afirma o seu direito a existir
diferentes, a mulher demonstrou concretamente que a sua menoridade 'era e a ser reconhecida como pessoa, é uma nova possibilidade de vida que se
o produto de uma inferioridade social, mantida e desejada durante séculos. está a propor - ao homem e ao mundo -, e isto não significa automatica-
Esta inferioridade social condicionou-a a crescer e a desenvolver-se segundo mente atirar as culpas sobre o homem que assimilou uma cultura que não
as medidas e os espaços que lhe foram concedidos: eram precisos esforços admitia este direito. Nem sempre a conquista destes direitos é reivindica-
titãnicos para os ultrapassar, e a mulher teve de lutar para demonstrar, sobre- ção pessoal e vingança: aceitar entrar no jogo da culpa e das reacções em
tudo a si própria, que existia e que era alguma coisa que apenas intuía mas cadeia que esta produz significa somente reduzir a um acto de emancipação
que não quadrava com os espaços e com as medidas que lhe tinham sido individual o que é um movimento de libertação social. E, todavia, é tam-
atribuídas. bém verdade que é difícil acordar uma manhã e sentir-se inocente.
Agora entrou no campo e pode ser amiga ou inimiga: pode propor alguma De que modo conquistar esta nova inocência, como se a hi~t6ria não
coisa de novo ou pode querer vencer depois de tantas derrotas. É este o tivesse existido?
MULHER 196 197 MULlIIlR
.'
o homem, que representou o papel de mediador com a realidade e com entendimento ou de expectativa que produz a imaginação e a fantasia na
o poder, é agora o mediador também da opressão que a realidade e o poder relação. A descoberta recíproca do que o outro é através das expectativas
lhe trazem. Neste sentido, já não está em posição de oferecer à mulher nem recíprocas é o que produz a união - quer ela seja duradoura ou breve -,
sequer a antiga tutela e pede-lhe protecção. A mulher que, pela primeira porque é através desta descoberta recíproca que se vem a ser alguma coisa
vez, se vê na situação de enfrentar directamente a realidade e o poder, que antes não se era, alguma coisa que não existe num ou noutro, mas que
é actualmente mais forte, mais inteira, mais íntegra no seu imediatismo e existe naquele dois que se cria. É a união que produz duas outras pessoas:
mais nova como força social. Pode depender muito dela o modo como anda- a relação er6tica dá então corpo a esta invenção na qual ambas as partes
rão as coisas. É uma vez mais pedir à mulher que pague o preço mais alto se reconhecem, enriquecidas daquilo que o outro é ou daquilo que o outro
da crise que estamos vivendo? Talvez, mas de uma maneira totalmente dife- espera. E se a união abre - e não fecha - esta unidade ao mundo e se
rente, porque é fmalmente pedir-lhe uma participação activa e determinante. deixa atravessar pelo mundo, pode inventar ou projectar algo que se reflecte
Mas isto exige também uma tensão contínua: já não há refúgios para nin- no mundo. Limitar-se a aceitar que se transforme o «sexo reprimido» no
guém, nem repouso, nem cantos onde esconder-se para recuperar o fôlego; seu contrário signifIca que se renuncia a procurar outros valores que podem
exactamente como na vida social, já não há maneira de ocultar a prepotên- existir nas relações entre os homeIts. Sair da fase repressiva na relação ao
cia que se manifesta abertamente através da voz de quem deixou de estar sexo que, na nossa cultura, monopolizou, centrando no "pecado), L temido
disposto a tolerá-Ia. e cometido -, a gama completa das relações humanas, sem conseguir indi-
E é uma luta fundada igualmente sobre uma nova fIrmeza que exi~e da vidualizar que outros modos de relacionamento esta repressão tirlha pouco
mulher que não entre também ela no jogo do pessoal e do político; que a pouco anulado, pode fazer-nos cair numa atitude simplesmentt de sinal
não use palavras que a sua vida na prática desmente; que conserve a sua contrário que, na ilusão de uma liberdade conquistada, continua a ocultar
coerência frente ao poder e que se saiba julgar a si pr6pria como o fez com as possibilidades infInitas da relaç~1)humana. Reduzir estas possibilidades
o homem e com o mundo. '. de afecto, de amizade, de ternura entre mulheres, entre homens, entre
O patrim6nio que provém do conhecimento padecido da sua escravidão mulheres e homens, entre adultos.e crianças, entre velhos e noVos a um
dá à mulher a consciência do facto de que, enquanto existir um escravo, único núcleo obsessivo - o sexo ..••que, assim como antes era reprimido
ninguém pode ser livre. Isto signifIca saber que o conceito mesmo de «liber- agora é saudado como um valor, significa aceitar o empobrecimento total
dade." tal como o conhecemos na nossa cultura e do qual a mulher rlunca da nossa existência. O sexo é demasiado pouco para ser tudo e torna-se uma
"!ÍI"clUproveito, é falso e inquinado, porque implica sempre alguém que pague magra compensação para aquilo de que fomos desapossados. '
pela liberdad<: do outro. Se a mulher conseguir conservar este juizo ainda As mulheres que lutam estão tluhbém a dizer isto: estão à tlrocura de
não corrompido pela ideologia, será ela que poderá dizer uma palavra' dife- uma relação que seja mais completa, mais humana, mais rica, .h1ais terna,
rente, mas isto requer clareza frente à ilusão de ter um poder. Porque se em que a sensualidade não se reduza a um acto mecânico de pura posse,
a. mulher nunca esteve inteiramente condicionada pela 16gica deste poder, mas que envolva todas as capacidades de perceber e de viver' ti mundo.
Visto que esteve durante séculos excluída dele, é de um outro poder que Apropriar-se do corpo deveria entãq ~ignificar também apropriar~se de todas
está em condições de começar a falar: o poder de fazer, de mudar ps coi- estas possibilidades de relacionamento e poderia não ser um slogalt.: 'com estas
sas, de impor um caminho diferente, outras relações, de impor as netessi- possibilidades reconquistadas, talv~;ãnos pudéssemos tornar mais fortes e
dades vitais pr6prias como necessidades do mundo, o qual parece, pelo con- mais capazes de nos apropriarmos ';do mundo e de lutarmos para o tornar
trárioj decidido a suicidar-se; o poder de se opor a este massacre qhe nos diferente. ' J

espera na volta do caminho. Se é verdade que a subordinaç(p' originária da mulher era fisiol6gica no
Não é fácil ver como as coisas possam evoluir, a partir do momerltb em momento em que o corpo social se organizou, a sua insubord'irlação e as
que dte problema se insere, obviamente\ no interior da crise geral que esta- exigências humanas e vitais que coloca não poderão resultar fisiol6gicas no
momento em que se organiza um I)OVO corpo social, se ela tiver força para
mos vivendo.
da farntlia Mas se
burguesa a ética
com do desenvolvimento
vista ao protestantismo esteve na base
do capital, do lleforço
presentemente reivindicar o facto de ser diferente mas igual, numa 16gica que sobrevive à
a impossibilidade ou a insustentabilidade das relações corresponde à fase discriminação de uma diferença qualquer? Mas como?
actual do desenvolvimento, que utiliza também estes conflitos para Perpe- O mundo actual é invadido por sons que cobrem o silêncio mortal que
tuar o domínio. acompanha aquilo que se está a matar.
Isto deveria fazer repensar que coisa signillca criar relações e laços. Do De que modo lutar para que a palavra não se torne ruído e para que
modo como as coisas vão evoluindo, parece perceber-se que o sexo .liber- a acção não seja um gesto aplaudido ou ignorado. É preciso percorrer a
tado» não basta para os criar, se é vivido apenas como uma necessidade pri- estrada até ao fundo, mas continuam a encontrar-se cartazes, r6tulos, papéis,
mária do corpo. É uma componente importante e vital mas que torna com- definições, nomes. [F. O. B.j.
pleto e encerra em si alguma coisa que já existe, ligado a uma forma de
MULHER 198

D O espaço económico e o espaço social que a mulher tem ocupado mostram claramente qual
tem sido a sua função historicamente determinada. Senhora, rainha da casa, foi-lhe frequente-
mente atribuída a administração de um território circunscrito (e alguns campos de interesse
e sectores precisos em que o trabalho é fonte de alienação: por exemplo a cozinha, a moda,
a tutela e a gestão quotidiana da família, etc.) cujo código de valores já estava estabelecido
a priori: a ética da famOia bem organizada reproduz de facto sem nenhuma modificação o
poder/autoridade que se constitui homologando os dois membros do par público/privado de maneira
a fazer interiorizar todo o conflito, exercendo uma censura, por meio do papeVestatuto do homem- CASTA
-marido, que vai da esfera da sexualidade às diversas formas de cerimonial impostas pelo grupo
e pela comunidade, que organiza a repressão, obrigando também a mulher a papéis subalternos,
a funções discriminatórias (cf. discriminação, exclusão/integração).
A história do misoginismo do Ocidente viu a mulher no centro de variadas crenças: sobre-
tudo sede e via do diabo, implicada na bruxaria, mesmo se não faltaram fases (por exemplo
em certas formas de matriarcado de que restam ainda claros vestígios, entre outros nos nomes
de parentesco) em que a mulher esteve no centro do mito (cf. mito/rito), guerreira e/ou deusa
protectora. Na sociologia contemporânea a palavra 'casta' designa duas coisas dife-
Em geral, em relação com o par natureza/cultura, quis-se, por outro lado, que a mulher rente/l: uma forma rígida de «classe»ou a unidade que compõe um «sistema
fosse - veja-se a religião - fêmea do homem (cf. homem), nunca a reconhecendo como ser
de castas» que existe apenas na sociedade indiana.
humano feminino, como pessoa, como sujeito histórico-social independente, e foi consagrada,
com certos tipos de casamento (cf. endogamia/exogamia), unicamente à reprodução da espécie, Para alguns estudiosos, o primeiro sentido abrange todas as formas rígi-
transmissorá passiva das caracterfsticas do cônjuge à prole; por outro lado, pretendeu-se, quase das de desigualdade e de «estratificação» social; para outros, a estratificação
por tradição, que ela tivesse um papel específico (cf. homem/mulher, masculino/feminino), cor- das classes, mesmo sendo rígida, é um fenómeno diferente da hierarquia
respondente a determinadas caracterfsticas e atitudes consideradas específicas, se não mesmo
exclusivas dela.
das castas. Esta última não é redutível apenas à desigualdade e à ausência
Em certos casos negou-se, até, à mulher individualidade biológica, diferenciação no âmbito de mobilidade vertical, mas implica grupos de estatutos cujas funções rituais
do anthropos; qualidades genéticas peculiares (cf. gene, hereditariedade), autonomia física em ;:, e económicas têm uma relação sistemática e conscientemente justificada por
relação ao homem, ao qual se considerava que estava subordinada também, ou sobretudo, a nível '·'JI';,./,uma ideologia que subordina as partes ao todo.
natural (talvez, na nossa cultura, com base na história da criação).
A mulher, estando no centro de um comportamento e condicionamento diferentes dos do homem,
., A escolha de um uso lato ou restrito da noção de casta põe em jogo alguns
suporta, e em certos casos verifica, a sua dependência, tanto nas diversas fases da vida (selec- problemas fundamentais da sociologia.
cionada de maneira diferente no nascimento, na infância, na velhice), como em particular no
exercício da sexualidade (medido pelo lugaNO/num do corpo como símbolo), na formação do
desejo, do prazer (cf. eros, pulsão) e até de neuroses/psicoses específicas, na definição, se se qui·
1. A casta: fen6meno cultural ou estrutural?
ser, de um puro/impuro diferente do do macho (cf. incesto).
Superar tudo isto faz parte do projecto de uma sociedade nova, talvez de uma utopia, requer
uma revolução também exterior a ele, ou não começará antes a ser um problema de toleron- Para alguns estudiosos (Bailey, Berreman, Barth), o uso «lato» da noção
cia/intolerância, igualdade, liberdade, mesmo para e no amor, cuja solução positiva começa por de casta é justificado pelo carácter comparativo da sociologia. Os conceitos
uma educação com o homem para uma cultura (cf. cultura/culturas) se bem que diferente no
seu interior, se quisermos, mas sempre unitária e comum?
desta ciência devem ter uma aplicação universal e não apenas regional. As
noções específicas de uma sociedade ou de uma civilização são consideradas
factos culturais e não de estrutura social. O estudioso de sociologia compa-
rada ocupa-se apenas da estrutura social, e por isso os conceitos de que se
serve devem ser independentes das particularidades culturais [Berreman 1967,
p.45].
Daí o dilema: a casta é um fenómeno da cultura indiana ou um fenó-
meno muito geral de. estrutura social?
Ignorando a ideologia da casta e omitindo arbitrariamente algumas carac-
terísticas da organização social, esses estudiosos não hesitam em inclinar-se
para a segunda parte da alternativa. Tudo aquilo que, no sistema indiano
de castas, é específico da civilização indiana é, segundo eles, «cultural»
(e, portanto, negligenciável) e não «estrutura"'.
A este ponto de vista podemos objectar que a ideologia não é só a racio-
nalização, culturalmente variável, da «estrutura social», mas é, sim, parte
integrante desta última e não pode ser dela arbitrariamente separada. O soció-
CASTA lUl CASTA

.'
logo pretende chegar u um ponto de vista totuimente livre de pressupostos mesmo tipo» [1930, p. 254). Mas não distingue, como Weber, entre posi-
ideológicos. Mas ignorando as ideologias e os valores das sociedades estu- ção de estatuto e classe. Aceite por Warner e pelos seus sucessores, a defi-
dadas arrisca-se a substituir u própria ideologia e os próprios valores dessas nição de Kroeber está na base da corrente para a qual a casta é, definitiva-
sociedades. mente, uma forma rígida de classe.
Como veremos, o método que isola estruturas «económicas» e «sociais» A incapacidade de transmitir aquilo que é característico da noção de casta
e Ihes atribui um poder explicativo privilegiado depende de uma ideologia depende, aliás, de uma definição bastante vaga da noção de classe [cf. Leach
que considera a esfera económica como dominante em qualquer sociedade. 1967, pp. 5-16]. Para Berreman, por exemplo, a classe é a instituição que
Mas afirmar que as estruturas económicas e sociais, artificialmente isoladas «define a posição dos seus membros em função dos seus atributos e com-
do seu contexto ideológico, são «objectivamente» inteligíveis significa atri- portamentos individuais». A casta é, pelo contrário, uma instituição que clas-
buir aos nossos valores «economicistas» uma aplicação universal, e projectar sifica as pessoas em função do grupo a que pertencem pelo nascimento, isto
a nossa sociedade moderna na sociedade das castas significa, além disso, con-
é (como na definição de Kroeber); em grupos hereditários. Mas é difícil
siderar a ideologia, os valores que regem a acção do homem da casta, não
perceber a diferença entre uma sociedade de classes e uma sociedade de cas-
como factos sociais, mas como ilusões da consciência, racionalizações.
Por esta razão consideramos falso o dualismo entre cultural e estrutural. tas, quando Berreman afirma: «O (acto de um sistema de castas constituir
uma hierarquia implica que é um sistema de avaliações diferenciais, de pode-
res e de recompensas diferenciais, em resumo, um sistema de desigualdade
2. A casta como limite da classe institucionalizada» [1968, p. 334]. A hierarquia entre castas não parece assim
muito diferente da desigualdade entre classes. A diferença não estaria, por
As ambiguidades das definições modernas de casta encontram-se já em isso, nas relações entre grupos, que seriam da mesma natureza nos dois tipos
Ma" Weber que, conforme observou Leach [1960, pp. 1-2], a considera, de sociedade, mas no recrutamento dos membros desses grupos. Os mem-
ou como um fenómenocultural, ou como um fenómeno estrutural, e não bros da casta são recrutados por filiação; os da classe, pelos seus atributos
consegue, portanto, transmitir aquilo que é especificamente indiand nesta e méritos individuais.
instituição. Weber [1908-20] reconheceu, no entanto, a,distinção essencial, A oposição entre a casta (classe'sem mobilidade vertical) e atlasse no
na índia, entre «classe» e «grupo de estatuto» (Stand), entre «econotnia» e verdadeiro sentido da palavra, cadcterizada por essa mobilidade! permite
«honra». Mas, para ele, o sistema das castas resulta de uma conjugação entre a vários estudiosos identificarem o sistema rígido das relações raciais no Sul
«grupos de estatuto» e «comunidades étnicas». Os grupos inferiores são tole- dos Estados Unidos com o sistema indiano de castas, porque ambo~ se carac-
rados porque indispensáveis a nível económico. A sociedade das castas terizam pela impossibilidade de os grupos entrarem em contacto dtravés do
parece, portanto, ser fundamentalmente heterogénea: embora afirmando que
a conjugação entre estatuto e etnia constitui uma Gemeinschaft 'comunidade casamento
Mas seráousuficiente
da convivência,
constataretc. ter. Warner
a identidade de eum
Davis pp.caracterís-
1939, de
conjunto 219-45].
política', Weber não nos dá conta da sua organização sistemática e justapõe ticas particulares (endogamia, tabu da convivência, etc.) para afirmar a iden-
o aspecto étnico, o da divisão do trabalho e da hierarquia, sobrepondo um tidade de dois sistemas sociais? O sistema indiano de castas é, precisamente,
ponto de vista europeu e «histórico» (origem étnica diferente das várias cas- um sistema e, como tal, deve ser comparado com outros sistemas [cf.
tas) ao ponto de vista autóctone e sociológico.
Dumont 1966, p. 311). Uma mesm. característica pode ter funções opostas
Além disso, para Weber, a diferença entre Stand e casta depende ape- em dois sistemas diferentes. Além disso, a consciência autóctone di:> sistema
nas de uma racionalizaçãoculturalmente diferente da estrutura social: o grupo
social, a sua legitimação ideológica, 'deve ser considerada como eidnento de
de estatuto é uma casta quando a sua separação de outros grupos de ,esta-
comparação. No sistema racial do 8\.11 dos Estados Unidos, o Negro não
tuto é garantida, não tanto por leis e convenções, quanto por regras tituais
considera legítimo o sistema, mas itlta contra ele. Na índia, a relalj:ãotradi-
que dizem respeito ao contacto e à impureza [cf. Dumont 1966, p.\ ~08).
cional de um inferior com um superior não implica necessariamente uma
O estudioso que formulou de forma mais nítida a definição de castl1como
desigualdade de poder que coincida tom a diferença hierárquica; além disso,
forma especial da classe social foi Kroeber. Para ele, as castas estão ~tesen-
tes em todas as sociedades, «pelo menos tendencialmente. No entanto, as ambos têm em comum determinados valores e uma visão do sistema que
castas diferem das classes sociais pelo facto de estarem a tal ponto atreiga- justifica, a seus olhos, a respectiva posição que nele ocupam. As suas rela-
das na consciência nacional, que o costume e a lei tentam separá-Ias umas ções só mudam de sentido quando, ~om a transformação moderna da casta,
das outras de forma rígida e permanente». Kroeber retoma em parte a defi- o sistema global é posto em questão. A competição de estatutos tende então
nição de Weber quando acrescenta que a casta é «uma subdivisão endógama a transformar-se em conflito de classe, mas só porque o sistema das castas
e hereditária de uma unidade étnica que ocupa uma posição de destaque foi entretanto contestado. Os inferiores combatem, então, não tanto os supe-
ou de estima social superior ou inferior em relação a outras subdivisões do riores, quanto o próprio sistema das castas [cf. Leach 1960, pp. 6-7].
CASTA 202 203 CASTA

Esse sistema seria típico das sociedades tradicionai; não homogéneas e múl-
3. As castas e os sistemas etnicamente pluralistas tiplas (ou pluralistas) do ponto de vista étnico e estaria ligado funcional-
mente a um sistema complicado de divisão do trabalho numa economia essen·
Embora afirmando que o sistema das castas não difere de um sistema cialmente não-monetária. S6 com esta definição seria possível, segundo Barth,
de estratificação social, Berreman associa-lhe o «pluralismo étnico e cultu- comparar as sociedades de castas no subcontinente indiano e em outros
ra),•. A sociedade das castas seria um sistema de integração entre grupos lugares.
étnicos diversos que conservariam a sua diversidade quando, num verda- .Observemos que a omissão da distinção fundamental entre hierarquia e
deiro sistema de classes, a perderiam. Deste modo, Berreman retoma uma poder surge na pr6pria expressão «soma dos estatutos». O estatuto social
das componentes da definição de Weber, desenvolvendo-a com uma teoria ou ritual é colocado no mesmo plano do estamto econ6mico e político. Na
mais sofisticada da comunicação culturlll: as fronteiras entre as castas impe- realidade, para Barth, só o chamado estamto <<social» se poderia definir como
diriam a circulação cultural e, portantp, cada casta ou cada grupo étnico estatuto no sentido estrito da palavra, enquanto os chamados estatutos polí-
teria as suas instituições, a sua cultura, ou o seu modo particular de inter- ticos e econ6micos deveriam ser considerados antes como ~Qéis».
pretar uma mesma cultura. Conforme observou Dumont, a f6rmula de Barth centra-se, em qualquer
Por outro lado, a ausência de valores comuns caracterizaria quer a socie- caso, no aspecto social, uma vez que pressupõe a combinação de funções
dade «pl\lralista» quer a 'sociedade das castas: isso faria com que estas socie- que só são distintas na sociedade moderna, ao passo que o sistema dos Pathan
dades se conseguissem manter unidas Illais pelo poder do que pelo consenso. do Swat - de que fala Barth - se caracteriza mais pela indiferenciação que
Assim, estas sociedades integram, por um lado, grupos distintos sem os pela soma dos estatutos [Dumont 1967, p. 30].
modificarem culturalmente e sem os incorporarem e, para funcionarem, Em conclusão: opondo o sistema de classes ao sistema de castas, como
criam mesmo fronteiras institucionais e culturais que perpetuam as diferen- um sistema aberto (no sentido de Popper) a um sistema fechado, os te6ri-
ças, especialmente as de profissão; por outro, mantêm o sistema por meio cos da estratificação social definem o sistema de castas como uma perversão
de coerçãoexercida por um grupo dotninante. Por isso, mais do que a inter- não igualitária do sistema de classes e apresentam dele uma interpretação
dependência entre as castas, se sublinha a sua independência cultural e ins- centrada no factor social (modelada sobretudo pelo sistema das relações raciais
titucional, bem como a dependência política das castas inferiores em rela- na América), que ignora a ideologia e os valores pr6prios do sistema indiano
ção às castas superiores [Berreman 1968, pp. 333-36]. e a distinção fundamental entre hierarquia dos estatutos e distribuição dife-
Segundo esta teoria, dois princípios são, portanto, essenciais para defi- rencial do poder político e econótnico. Esta interpretação tem, aliás, muito
nir um sistema de castas: 1) todos os sistemas de castas são mantidos pelo em comum com a teoria marxista do «despotismo oriental», segundo a qual
poder relativo de cada casta e pelo facto de as sanções estarem nas mãos um grupo dominante engloba, numa organização despótica do poder polí-
do grupo dotninante. Isso deve-se à heterogeneidade cultural, ideológica e tico, comunidades autónomas e sem relações de complementaridade econ6-
institucional das castas; 2) na sociedade das castas, os papéis são indiferen- mica e social (as «comunidades de aldeia») [cf. Dumont 1975, pp. 41-48].
tes ou «somados».
Os sistemas de classes seriam, pelo. contrário, caracterizados mais pelo
consenso do que pelo poder de uma classe dominante, e os papéis seriam 4. A casta como fenómeno indiano
I, distintos.
No que se refere ao primeiro princípio, se é verdade que as relações de A discussão anterior fez com que surgisse a necessidade de compreen-
poder são importantes num sistema de castas, é igualmente verdade que as der a especificidade do sistema indiano de castas, em vez de partir de uma
relações hierárquicas são conceptualmente (e, em grande parte, também fac- definição em aparência suficientemente lata para pertnitir a comparação, mas
tualmente) distintas das relações de poder. A hierarquia é, no entanto, i~no- na realidade inequivocamente reducionista e etnocêntrica. Não se trata de
rada pela teoria que referimos e é considerada incompreensível ou inexis- exorcizar a diferença mas de compreendê-Ia: este é o único ponto de vista
tente como princípio aut6nomo. O sistema das castas apresenta-se, portanto, possível para uma comparação. .
simplesmente como a perversão do sistema de classes. Para compreender o sistema das castas é preciso, por isso, começar pela
Quanto ao princípio da soma dos estatutos, é precisamente o corolário sua definição «etnográfica».
do princípio anterior e afirma que as relações hierárquicas coincidem com 1) A casta (jl1t, jl1ti) é um grupo a que se pertence por nascimento e
as de poder. Quem possui um estatuto elevado do ponto de vista ritual tem que é caracterizado, em princípio, pela endogamia. Significa isto que o cri-
tendência a ter simultaneamente um estatuto elevado do ponto de vista eco- tério de inclusão é adscritivo e não modificável por um indivíduo. Como
n6mico, político e social. Para Barth, este princípio permite defInir um sis- a casta é endógama, os pais têm a mesma casta e o mesmo estatuto e, por
tema de castas, «estruturalmente», «como um sistema de estratificação isso, a miação não deixa nunca uma possibilidade de escolha entre perten-
socia)", mais do que como um sistema ideol6gico e cultural [1960, p. 145]. cer ao grupo paterno ou pertencer ao grupo materno, como acontece nos
CASTA 204 205
CASTA
p'.,\
sistemas hierárquicos caracterizados pela[ã.i!§gãiIlia \(isto é, pelo casamento entre estatuto religiOSOe poder político encontra-se precisamente onde o
entre gruposde estatuto diverso). As relações de ji-arentesco são, por isso,
budismo deu ao rei prerrogativas religiosas, além de políticas. O rei é, de
-'semprehorizontais e igualitárias em termos de casta, enquanto as relações facto, considerado um «Buda vivo» ou «destinado a ser Buda» (bodhisattva)
que não são de parentesco são sempre hierárquicas [cf. Leach 1960, p. 8). e um «imperador do mundo» (cakkravartin) [cf. Heine-Geldern 1956]. Desta
I ções
O casamento faz-se entre iguais, isto é, entre pessoas que possam. ter rela- maneira, o budismo tenta conciliar a contradição entre a prática da morali-
sociais sem restrições importantes. dade e da religião e as necessidades da política e do uso da força.
Pelo contrário, desde a época das Brãhma1JQ(800-500 a. C.?), o hinduísmo
) ser 2) Cada casta
alterada num tem umainteiro
grupo posição defInida
mas não emna indivíduos
hierarquia. isolados,
Essa posição pode
a menos fez uma distinção radical entre religião e política, dando a esta última uma
que algum deles seja expulso da sua casta e perca assim o seu estatuto. Os esfera de acção própria, mas subordinando-a à religião através dos brâma-
brâmanes (a casta dos sacerdotes) estão no vértice da hierarquia dos estatu- nes. As duas actividades são distintas mas complementares. A teoria hindu
tos e centralizam todo o sistema das castas. da hierarquia defIne, com efeito, uma totalidade social em que se inscre-
vem, cada uma delas no lugar que lhe compete dentro da escala de valores,
) bolos
3) de
A separação e aimpureza.
pureza e de posição hierárquica
Os membros dasdas
castas exprime~-se
castas por maIs
supenores são sí~- as actividades humanas polarizadas efíl categorias hereditárias (e que excluem,
puros que os das castas inferiores e arriscam-se a perder a sua purez~ se por isso, a escolha individual). A hierarquia social corresponde portanto à
se associam aos das castas inferiores em contextos alimentares, sexuaIs e hierarquia dos valores tal como é e:stabelecida por uma ideologia religiosa
rituais (que implicam a exclusão da exogamia e do convívio e uma divisão que justifIca uma totalidade social ârticulada em funções complementares.
precisa dos papéis rituais das castas). . A visão total é religiosa [cf. Dumont 1966, p. 92], mas nãO exclui as
4) As castas estão ligadas à divisão do trabalho: estão associadas a uma visões parciais, correspondentes a actividades específIcas,que não tê!.n, neces-
ocupação tradicional e têm direitos e deveres precisos nos sistemas de pres- sariamente, um carácter religioso. A~ actividades «racionais»(economia, polí-
tações e contra prestações. tica, etc.) encontram assim o seu fugar numa esfera que lhes é atribuída
Os critérios etnográfIcos podem ser modifIcados ou multiplicados con- pelo sistema global, mas têm de fIcat hierarquicamente subordinadas a ele
soante as variantes regionais ou o grau de diferenciação de um sistema de e aos seus representantes na socieqade: os brâmancs.
castas numa unidade territorial, mas os princípios subjacentes contil1uam A separação subordinante ligada à hierarquia permite assim a diferen-
idênticos e podem ser reduzidos a uma defInição mínima, apresentada por ciação de actividades, integrando-as simultaneamente num quadro unitário
Bouglé [1908] e retomada por Dumont [1966, p. 64]: o sistema de castas no sistema de valores da sociedade. beste modo, desenvolveram-sé na índia
dois tipos complementares de reflexào: um, contido na literatura do dharma
é constituído por grupos hereditários distintos e ligados entre si atravé~ de:
, (lei religiosa), outro, na literatura d,o artha (as leis da política e, qa econo-
1) uma gradaçã!u!e_estatut~,-ouhierarquia; 2) regras de separação; 3) a
, iiUa,da «aquisição raciona},». Aliás, com a Arthãsastra (a doutrina do anha),
divisão do trabalho e a interdependência que daí resulta. ,
'3 'índia desenvolveu, antes da Europn, uma teoria «maquiavélica»do Estado.
Para defInir o sistema de castas é portanto necessário explicar o que é
a hierarquia, o que são as regras de separação (ritual, matrimonial tt ali- A i6leologiahierárquica faz com (Iue não exista contradição entre o ponto
mentar) e a ideologia que opõe o puro ao impuro; como se caracteriza a de vista religioso e o racional. Cad~ um deles é perfeitamente le~ítimo na
sua esfera e pode por isso manter-s~ ,distinto, conservando embora, graças
hierarquia e como se articula com o poder político; o que é o sistema da
ao laço hierárquico, uma relação coto o todo. A hierarquia defIne~se assim
divisão de trabalho e das prestações e contraprestações.
como «princípio de gradação dos el~mentos de um todo em relaçAoa esse
todo» (isto é, através do modo de relllçionação de cada elemento com o todo)
4.1. A noção de hierarquia
\
[Dumont
/i ção 1966,
clássica p. 92].e àTrata-se,
europeia pohanto,
Antiguidade de um conceito
em particular familiat
[cf. Finley à tradi-
1973, trad .
. it. pp. 48 segs.], mas o sistema indiano de castas tradu-lo sistemàticamente
Segundo Louis Dumont (1966, p. 269], o princípio fundamental ~ó sis-
tema de castas é aseparação entre estatuto religioso e poder. Esta separa- na actividade social, faz dele um princípio sociológico, além de lógico.
ção não é entre duas categorias colocadas no mesmo plano, mas implica que A moral hierárquica não tem, p(lltanto, como sujeito o indivíduo, mas
uma seja subordinada à outra. Trata-se portanto de uma separação hierár- a própria totalidade social. A articulaÇão e a unidade sociais não sãd o resul-
quica em que o poder é inferior a um princípio mais fundamental que o
tado mecânico dos conflitos ou das, transacções entre indivíduos bu entre
subordina e legitima, dando-lhe um sentido que não possui autonomamente. grupos (classes) que agem com base no princípio individualista da competi-
ção. Para a ideologia hierárquica, a totalidade social é o pressuposto, não
Sem esta separação subordinante, não é possível falar de um sistema de.castas
I propriamente dito. Dumont exclui, por exemplo, que se possa falar de cas-
o resultado, das relações entre grupos diferenciados. A ideologia moderna
implica, pelo contrário, a ideia da llutonomia do indivíduo e dos grupos, /
tas no Ceilão, porque nessa sociedade o representante do princípio do pod~r, • conceptualmente prioritária às suas relações: a sociedade global ê, portanto,
o rei, está no vértice da hierarquia. A ausência de separação hierárqUIca
, o produto da sua interacção (contratual ou conflitual). Para a ideologia hie-
CASTA 206 207
CASTA •
rárquica, pelo contrário, os grupos nascem por diferenciação a partir da tota-
lidade, que é um pressuposto orgânico e não um resultado mecânico. As
ilã'_subjectiva, mas umah moral de estatutos;
.
não existem "deveres universais por-
que n o eXIsteum ornem «unIversal». Existem, sim, sacerdotes, príncipes,
relações precedem, conceptualmente e no plano dos valores, as coisas que lavradores ou servos [Dumont 1975, p. 23]. Por outro lado, parece existir
são relacionadas. A justiça está então no colocar as diversas funções sociais uma certa relação en.tre o sist~ma de castas e a teoria da !r.lII!~I!!.Ígr!ç~pelo
no seu devido lugar, onde possam explicar as suas actividades: os _sacerdo- menos em certas varIantes da Ideologia hindu. Nascer numa casta e não nou-
tes, representantes e garantes dos valores últimos da finalidade de toda a tra, e, portanto, ter funções mais ou menos puras tem então um sentido
, sociedade, estão, por isso, no vértice da hierarquia, mas não podem exercer religioso. A casta em que se nasce numa reencarna~âo depende do compor-
o poder, que contaminaria a sua purella moral. tamentp .nas vidas anteriores. O princípio segundo o qual se pertence à casta
O ideal de justiça da ideologia moderna é totalmente diferente: partindo por nal!CImentoé, portanto, ele próprio, englobado na ordem moral que pre-
do indivíduo e do pressuposto que todos os indivíduos são iguais por natu- side aQ ~istema. [cf. Dumont 1966, pp. 77 e 79; 1975, p. 32].
reza e têrp o mesmo valor, a justiça tem o fim de realizar socialmente essa I • Esta ~deologIaparece-nos escandalosa porque ignoramos a distinção entre
igualdade. Daí a primazia da política, que é concebida como a actividade I hIerarqUla e poder. A hierarquia é uma ordem conceptual e ritual ligada
pela qual indivíduos e grupos entram em competição para obterem o con- some~te a certas esf~ras da existência: na esfera econ6mica e política, as
trolo dos recursos e dos circuitos de prQ,puçãoe de distribuição: numa pala- r~laçoes po~em ser. dIversas e mesmo inversas às rituais, mesmo que a prio-
vra, para o controlo do poder. l'ldade ~a hIerarqUla faça com que, como vimos, se estabeleça uma comple-
Sintomaticamente, a sociedade das castas atribui à actividade política e ment~Idade entre as duas esferas. Uma casta inferior do ponto de vista hie-
aos seus representantes uma posição subordinada. Se o brâmane está no vér- rárqu~co pode deter o poder político e econ6mico, ao passo que uma casta
tice da sociedade, não tem, por isso, e como tal, o controlo do poder, reser- SUpe~I?~pode ser forçada a depender, neste plano, dos seus inferiores. Essa
vado, pelo contrário, ao rei. Mas, por outro lado, o rei está subordinado possIbIlIdade está mesmo ins~rita no pr6prio princípio da hierarquia, que
ao brâmane e aos valores que este representa na sua actividade. Sem a cau- relega par~ uma esfe~a subordmada o controlo do poder e da riqueza. Mas,
ção e a legitimação moral do sacerdote, o poder político não tem relação e~bora .seJa econo~lllcamente dependente de inferiores, o superior hierár-
com o todo social. Daí a necessidade de «mecanismos para transformar o qUlCOve reconhecIda a sua superioridade nas esferas rituais.
poder em estatuto» [Dumont 1975, p. 20]: por exemplo, a dádiva aos brâ- As coisas que são hierarquicamente estruturadas são, portanto, as fun-
manes. Esta dádiva pode parecer uma confirmação de que a superioridade ções, as actividades sociais e os homens associados a essas actividades. As
de estatutos corresponde a privilégios económicos; na realidade, indica que I relações de poder não constituem a ordem global da sociedade. Também
o brâmane não tem acesso directo aos recursos nem qualquer direito sobre elas representam uma ordem, uma forma de organização. Mas essa ordem
eles. Pode apenas ceder os próprios «méritos» em troca de riquezas que lhe é considerada secundária, subordinada à ordem religiosa, que organiza as
permitem viver. Reciprocamente, quem tem riquezas pode cedê-Ias para relações ~ntre ?S homens e os grupos de modo diferente e em função de
adquirir méritos. Mas sem a separação hierárquica entre o estatuto, ligado um «sentIdo»dIferente. Ambas as ordens são legítimas desde que cada uma
a méritos morais, e o poder, ligado ao controlo dos recursos, este intercâm- se limite à esfera que lhe compete. '
bio não teria qualquer sentido. As actividades ritualmente inferiores são por- Em conclusão: na base do sistema de castas está uma ideologia de inter-
tanto complementares, mas distintas das actividades superiores: completam-se dependência e de relatividade: das funções, das esferas de actividade e dos
porque não existem independentemente do intercâmbio, que lhes permite ~rupos que as representam e as põem em prática. O valor essencial é esta
continuarem a ser distintas. I~terdependência, porque não existem unidades privilegiadas que sejam con-
O brâmane só pode permanecer como tal na medida em que é puro: sIde.radas como elementos que constituem o todo, pelos quais e através dos
a sua pureza permite-lhe o contacto com a ordem religiosa, contacto de que quaIs ele é produzido.
toda a sociedade beneficia. Mas a pureza só pode ser realizada socialminte Para n6s, ciosamente fiéis a uma ideologia que faz do «homem indivi-
se as actividades impuras mas necessárias à existência forem assumidas pelos dual.considerado como universal" [Dumont 1975, p. 22] o ponto de refe-
grupos sociais, considerados impuros porque as exercem. A pureza e a impu- rênc~ados valores fundamentais, é impossível admitir a relatividade das pers-
reza não são, portanto, apresentadas separadamente: a hierarquia implica pectIvas e dos valores e que uma relação regida por leis particulares a um
a complementaridade, não só a_~xc:tu~lio.Do nosso ponto de vista indivi- certo nível se modifique na sua estrutura, nas suas leis e no seu «sentido"
dú~li;ta, é revoltante que estejam reservadas a certos indivíduos actividades a u~ outro nível... Mais ainda, é-nos impossível admitir que cada um do~
puras e a outros actividades impuras; mas do ponto de vista indiano não ~ve~s tenha ,o seu lugar, o seu sentido e as suas relações com os outros
são os indivíduos' que contam, mas as relações que representam e cuja con- mveISnum SIstema global que justifica a sociedade inteira, dando uma vali-
tinuidade permitem. Pelo princípio da reciprocidade das funções, o intocá- dade parcial a cada um dos seus aspectos e das suas esferas. E, no entanto,
vel é tão indispensável quanto o brâmane: um e outro obtêm méritos exe- é este o .sentido profundo da hierarquia das castas e da sua ideologia. Quando
cutando as próprias funções hereditárias. Não existe, portanto, uma moral o redUZImosa uma ficção ou a uma racionalização <;10 nível que, para nós,
CASTA 2UM 209 CASTA

subordina todo os outros, isto ~, o das relações de poder, eslamos incons- toriamente por estados de impureza: a menstruação, o parto e a morte são
cientemente a exercer uma censura. Arriscamo-nos assim a ignorar que, em exemplos particularmente importantes. A inscrição destes estados no social
todas as sociedades, os homens agem e pensam segundo valores próprios, justifica a impureza ou a pureza relativas das castas. De facto, aqueles que
que não podemos considerar irrelevantes sem corrermos o risco de os subs- se ocupam dos cadáveres ou de lavar a roupa suja, etc. estão permanente-
tituirmos pelo nossos valores e pela nossa ideologia política. A relação entre mente em contacto com a impureza. Transferida para o sistema social da
a esfera do poder político-económico e a esfera religiosa é, no sistema de divisão do trabalho, a impureza transitória (na medida em que os seus efei-
castas, exactamente inversa à que vigora no nosso sistema de classes sociais. tos não saem da esfera privada) de uns transforma-se assim na impureza
É portanto impossível assimilar directa ou sub-repticiamente um sistema ao permanente de outros. Em quase toda a índia, o sacerdote das cerimónias
outro: a comparação s6 pode opor os dois sistemas e reconhecer que a sua fúnebres (o barbeiro, no Sul) e o homem que lava a roupa são, por isso,
semelhança superficial deriva de se terem isolado arbitrariamente as rela- particularmente impuros. Outras actividades, pelo contrário, implicam a
ções de poder, que são o único aspecto do sistema de castas directamente ausência de impureza ou a purificação imediata: o rei, por exemplo, nunca
acessível à nossa ideologia. Mas, considerado no todo de que faz parte e é impuro porque não pode ser impedido nas suas actividades; o estudante
cujos princípios tentámos sucintamente expor, este aspecto revela-se, na rea- brâmane, ao contrário das outras categorias de pessoas, só fica impuro pela
lidade, completamente diferente do modo como o encaram os te6ricos, que morte de parentes muito chegados, 'porque, intrinsecamente puro, é muito
consideram a casta como limite da classe e a ela reconduzível. .' menos afectado pela impureza da morte [cf. Dumont 1966, p. 7~; Orens-
tein 1968].
4.2. Pureza e impureza como símbolos da hierarquia Se a relação com certos fenómehos orgânicos e naturais traz consigo a
impureza, a relação com outras entidades naturais, como a água, os cinco
A totalidade pressuposta pela ideologia da casta não é política netn eco- produtos da vaca (urina, excrementos, etc.), é purificadora. Esta ideologia
nómica, mas religiosa. Como tal, não subordina a natureza ao homem, mas hierárquica da pureza foi formulada lá no século III a. C. e foi utilizada para
estabelece uma relação entre eles. Os fenómenos fundamentais da vida orgâ- explicar o sistema das castas que mais tarde se desenvolveu gradualmente.
nica têm, em especial, um valor de símbolo na vida social, porque permi- Os outros critérios de separação social remetem teoricamente para o simbo-
tem exprimir as distinções entre as castas. Os três princípios fundamentais lismo do puro e do impuro. A mul\iplicidade dos critérios de segmentação
hierárquica produz, no entanto, uma certa relatividade: cada juizÓ de esta-
que, segundo Bouglé, estão na base do sistema de castas podem redpzir-se tuto formulado segundo um certo 4:ritério «solidariza uma casta cbm todas
a um único princípio, o da oposição entre puro e impuro. Esta oposição
implica, de facto, a hierarquia (superioridade do puro sobre o impuro), aquelas que dividem com ela a mesma característica, opondo-a li todas as
a separação (é preciso manter separados puro e impuro) e a divisão do tra- outras» [Dumont 1966, p. 81). '
balho (as ocupações puras e impuras são distintas mas complementares) [cf. Mas os critérios nem sempre são congruentes. É necessário então valori-
Dumont 1966, p. 65). zar não só a posição de cada segmepto da casta em relação a udi ~erto cri-
Dumont demonstrou que a oposição entre puro e impuro contém' a pró- tério de segmentação, mas também' o valor relativo de cada u111dos crité-
pria essência da hierarquia, porque dela resulta que o todo consiste. na coe- rios, de cuja combinação resulta a 'Posição de uma casta numa sdrie linear
xistência necessária de dois opostos. A oposição máxima é dualista: 'por um única que engloba todas as castas de um determinado território.Pbde então
lado, a categoria mais pura, o brâmane, que utiliza de forma pura, certos constatar-se uma certa indeterminação: cada casta terá tendência à conside-
géneros (os produtos da vaca, por exemplo); por outro, o «intocável», que rar o seu próprio estatuto de modo, diverso daquele com que as outras cas-
os utiliza de forma impura (utiliza, por exemplo, a vaca de tal m,odo que tas o consideram. Por outro lado, a hierarquia não exclui a competição e
implica a sua morte: curte-lhe a pele, çonsome a carne, etc.). Mas dsta opo- a mobilidade [cf. Srinivas 1966, p;~4). A mobilidade vertical implica que
sição implica também que ambos os comportamentos são necessários, que,'ambos os membros de uma casta procurem. que lhes seja reconhecido um estatuto
fazem necessariamente parte do sistema: «Não existiria um brâman,e·se este superior, adoptando as prescrições ',de pureza ligadas a esse estatuto. Quer
não tivesse à sua disposição especialistas da impureza que lha' evitam» a nível local quer a nível pan-indiano, surge-nos, por isso, um processo cons-
[Dumont 1975, p. 29]. A unidade nasce, portanto, de uma oposição. Em tante de «promoção»que explica a difusão da ideologia dos brâmartes e, sem
termos lógicos, a totalidade-hierárquica distingue-se radicalmente' de uma sombra de dúvida, o sistema das castas (<<sanscritização»).Srinivas define
totalidade dialéctica de tipo hegeliano. A oposição que regula a primeira é a sanscrit~l!Ç!o como o processo pelo qual uma casta de baixo estatuto
não-contraditória; a segunda é, pelo contrário, dominada pelo princípio da ou um grupo tribal não-hindu abandona os seus costumes, os seus rituais,
contradiçlio e da superação dos termos contraditórios e da sua distinção. a sua ideologia e o seu modo de vida para assumir formas de comporta-
A oposição conceptual entre estados puros e impuros transfere-se, por- ~' mento superiores do ponto de vis~a hindu. Se é um grupo tribal, passa a
tanto, para o sistema das relações sociais. Todos os homens passam transi- f ser hindu e integra-se como casta numa posição definida no sistema hie-
I
I

14
CASTA 210 211 CASTA

rárquico; se já é hindu, expõe uma pretensão de estatuto expressa em ter- Por sua vez, as castas identificam-se com uma das ~'uatro categorias~T1JfJ I \lJ .D
mos de comportamento que, em geral, não é reconhecida pela comunidade 'cores, espécie') que as relacionam com a enunciação mais geral da hierar-
antes de uma ou duas gerações. quia e com o conjunto pan-indiano. '. .....
A subida de um grupo na escala hierárquica implica a descida de outro, O sistema dos. varn.a é importante, entre outras coisas, porque permite
mas não modifica a hierarquia dos estatutos. Só as suas atribuições se modi- a mobilidade social dos jã!!: Quando um grupo aspira a um estatuto'supe::-
ficam [cf. Srinivas 1966, pp. 6-7; Cohn 1971, pp. 134-41]. rior, não pode, evidentemente, fundir-se com um outro jãti que já tenha
esse estatuto (isso implicaria casamento com os membros daquele jati, con-.
4.3. A segmentação hierárquica e os seus paradoxos: vart}Q e casta flitos, etc.), mas pode pretender ser membro de um vart}Q diferente daquele
que lhe é tradicionalmente atribuído, sem modificar os limites próprios do
Até aqui falámos de casta como unidade de um sistema hierárquico defi- grupo [cf. Lynch 1969].
nido pela sua ideologia. É preciso agora mostrar a relação entre este sis- fi (" Os quatro vart}Q são, por ordem hierárquica: 1) os brâmanes, ou sacer-
tema e os grupos concretos e, em especial, a forma como se verifica a seg- dr,tes: 2) os k~atriya, ou g!l.er.reiros; 3) os vaisya, ou !I1ercadores; 4) os
mentação entre unidades de ordem diferente. südra, ou servos, gente de pouca importância. Os intocáveis não entram nesta
Devem considerar-se quatro níveis. divisão e não têm, aliás, uma etiqueta comum (hoje são chamados Harijan
A unidade mais pequena é o Igrupo exógamo, o birãdarf !'bando dos 'filhos de Deus').
irmãos'. ,Os membros deste grupo constituído por parentes estão geralmente Na literatura védica, a divisão em vartlQ é originada por um princípio
estratificados por geração: os da geração de Ego são «irmãos,,; os da gera- de opOsição dicotómica. A primeira dicotomia opõe Ãrya e não-Ãrya (ou
ção do pai de Ego são "pais", etc. Sobretudo nas castas de condição média seja, Dasyu, identificáveis com os intocáveis), Os Ârya são dicotomizados
ou infer~or, o birãdarf é um grupo solidário: os seus membros reúnem-se, em «nascidos duas vezes" (os três primeiros vartla) e «nascidos uma vez"
por exemplo, por ocasião de ritos de passagem. Os chefes das famílias que (Südra). Os «nascidos duas vezes" dividem-e em brâmanes e k~atriya, por
compõem o o birãdari participam nas reuniões (panchãyat) que arbitram os um lado, e vaisya, por outro. Os brâmanes e os k~atriya, por fim, opõem-
conflitos que surgem entre os seus membros. A extensão territorial do birã- -se entre si. Esta divisão em quatro unidades é justificada pelo mito de
dafi depende da dispersão ou da concentração da sua população e está em (
Puru~a, segundo o qual os brâmanes nasceram da boca do homem originá-
geral associada à ocupação da casta a que pertence. Na índia setentrional, \ .• 'o rio, os k~atriya dos braços, os vaisya das coxas e os südra dos pés. As ~ej!.
./
as castas de agricultores de condição intermédia ou as de Chamar ('gente de Manu [I, 87-91;cf. Bühler 1866] atribuem. a cada vartta os seus devéres:
do couro', intocáveis) tendem a organizar-se em birãdarf cujos membros se aos brâmanes, o estudo e ensino dos Veda, o sacrifício, o dar e receber esmo-
encontram em poucas aldeias ou numa só, ao passo que os birãdarf das cas- Ias; aos k~atriya, a protecção do povo, a oferta do sacrifício, o estudo dos
tas de artesãos ou serventes (oleiros, ferreiros, lavadeiros) estão geralmente Veda; aos vaisya a criação dos animais, o comércio, a agricultura, a oferta
dispersos por um maior número de aldeias. Entre as castas superiores, sobre- do sacrifício e o estudo dos Veda; aos siidra por fim, uma única ocupação:
tudo nos últimos dois séculos, o birãdarf foi progressivamente perdendo a servir os outros três vartlQ.
sua importância. A complementaridade entre os va"!Q é parcialmente análoga à que existe
Os ~biriIq(J.rJfazemparte de um grupo chamado Viiti(subc~~!a), que é a entre castas. Assim os k~atriya ou os vaiSya, por exemplo, podem ordenar
_unidade fundamental do sistema. Trata-se do grupo endógamo que circuns- o sacrifício, mas só o brâmane o pode executar. O rei é assim privado da
creve os limites dentro dos quais os birãdari exógamos·pOdeni contrair matri- função sacerdotal: voltamos aqui a encontrar a divisão fundamental entre
mónio. Enquanto o birãdafl é geralmente um grupo de agnatos, o jãti é um estatuto religioso e poder político.
grupo definido por laços de afinidade e de linhagem. Tem muitas vezes um A homologia entre o sistema dos va'1!a e o das castas (jãt) não deve, no
nome próprio, uma divindade própria, um mito 'de origem específico~uma entanto, ocultar as diferenças e sobretudo o problema levantado pela relação
posição no sistema hierárquico. Pode, além disso, ter regras de comporta- entre eles. Na literatura védica, o brâmane é essencialmente aquele que sacri·
mento próprias, costumes específicos, etc. fica, ao passo que no período hindu e no sistema de castas é caracterizado
Diferentes jãti são, por sua vez, considerados membros de uma casta pela pureza. A teoria dos va'1!a e a das castas implicam sobretuto dois tipos
(jãt), que não é um grupo na verdadeira acepção da palavra, mas uma cate- diversos de classificação e revelam dificuldade na passagem. da hierarquia
goria. geral, com um nome, uma posição hierárquica, uma ocupação tradi- conceptual à hierarquia dos grupos reáIs.AS castas são hereditárias:á classi-
ciOlla1.Esta categoria permite que membros de subcastas diferentes possam ficação dá portanto ênfase ao nascimento. !'Tateoria dosva'1!a, pelo contrá-
reconhecer a sua própria posição hierárquica a nível regional e não só estri· ,i', rio, a ênfase é posta na função, de tal fomia que dinastias de órigê'm não
tamente local (embora os critérios sejam, na realidade, muito mais compli- . k~atriya tiveram frequentemente acesso à dIgnidade de k~atriya assumindo
cados) [Cohn 1971, pp. 115-16, 125-26]. a função real (aliás, segundo alguns, nenhuma dinastia, após o fim dos Nanda
CASTA 111 213 CASTA

- século V a. C. - teve jamais origem k~l\triya). Isto demonstra que os mos obrigados a admitir que A inclui não-A, isto é, o seu oposto. Mas em
_.'l!a~anão devem ser interpretados como grupos hereditários, à maneira das termos de classes l6gicas, puro e não-puro, enquanto opostos, estão ao
castas, mas como categorias funcionais. mesmo nível de generalidade: um não pode ser englobado no outro sem
- A relação entre varl,la e casta foi objecto de interpretações contrastantes, incorrer nos seguintes paradoxos: a) uma classe é membro de si própria (isto
nenhuma das quais satisfat6ria. A comparação dos pontos de vista de Tam- é, o puro é membro da classe «pura», dado que esta é simultaneamente a
biah e Dumont é particularmente interessante e instrutiva, porque põe em «englobante» e a classe dos brâmanes); b) uma classe é considerada como
jogo a própria definição de hierarquia e as dificuldades que temos para captar I· um elemento entre os elementos classificados como seus não-membros, isto
essa noção. r é, a classe do não-puro não é não-pura.
! Encontram-se os mesmos paradoxos quando se passa da fórmula geral
mos de puro e Impuro. A classificação em val"Qa surge então como análoga da hierarquia para a hierarquia dos grupos concretos: se os grupos são dis-
j Dumont
à das castas.pri~ilegia, como v~os, a hierarquia das castas, expressa em ter- tintos ritual e matrimonialmente, como se pode dizer que a relação hierár-
Tambiah, pelo contrário, procura estabelecer uma relação mais directa quica é uma relação de inclusão? É, pelo contrário, verdade que as castas
entre os dois sistemas e deduzir as castas a partir dos va17,la. Segundo Tam- são «hierarquizadas" segundo um processo de sobreposição entre caracterís-
biah, s6 a classificação em va~a é efectivamente hierárquica, porque estas ticas diversas (que não é necessariaIlJenteo contemplado pelas Leis de Manu).
categorias são geradas por um princípio de segmentação onde o nível dico- A hierarquia como «englobamento,j diz apenas respeito às funçõcs associa-
t6mico de ordem superior engloba um nível de ordem inferior [1973, p. 196). das aos grupos: não se pode passar' da função ao grupo sem mud~r radical-
As castas, pelo contrário, são ordenadas por categorias mediante o processo mente a noção de hierarquia. Este tj:rmo parece, portanto, ter sentidos dife-
classificador da sobreposição entre classes diferentes. rentes e nem sempre congruentes: a tentativa de Dumont de reduzi-los todos
O modelo considerado por Tambiah é, de facto, o das Leis de MamJ (capí- à f6rmula mais geral da hierarquia (a inclusão) não deixa de enfrentar gra-
tulos III e x), modelo que explica a hierarquia linear dos grupos de'castas ves dificuldades.
através das uniões mistas (isto é, entre vama diferentes e entre castas dife- A hierarquia entre castas é, portanto, mais uma gradação linear que uma
rentes) que estariam na origem de cada ca~ta. Dado o diferente vaitir atri- hierarquia de <<C1asses".
Tanto no plano de classificaçãocomo no plano ritual,
buído às uniões E.ip~gâDli(:~s e .hipogâmicas. e ao matrim6nio principal e . a categoria inferior não é englobaqa na superior, mas é-lhe simplesmente
secundário, obtém-se um certo número de categorias hierarquicamentJ orde- complementar. A hierarquia linear tem por isso duas características distin-
nadas, que Tambiah identifica com os jãti ou com os seus análogos. As regras tivas: é enunciada numa enumeração; é mais interactiva que atributiva.
de formação desta ordem reflectem-se nas regras de pureza. As enumerações hierárquicas s~o uma característica típica da cultura
Podemos, no entanto, objectar a Tambiah que não é possível estabele- indiana. Uma «sociedade globah, é 'definida integralmente pela eQumeração
cer uma relação directa entre o modelo abstracto das Leis de Manu e li ideo- em série de todos os grupos que a fompõem. A contradição imp!ícita neste
logia que se deduz do estudo sociol6gico da sociedad_~das castas. Mas o processo é sublinhada pelo próprio Dumont: o todo e as partes, o englo-
p_roQle~afundamental diz respl;:Ítoà própria.!1~ão_c!t;:hierarquia. 1'ambiah bante e o englobado são colocados \00 mesmo plano, na série [efl Dumont
parte de uma definição «lógica", universal, da hierarquia como processb clas- \ ' . 1957, pp. 142, 150, 152, para alguns exemplos)., I
O modelo hierárquico por inclusão, para além das dificuldades~ue encon-
sificador:
ses. Com parte, em suma,s6dapodemos
esta definição definiçãoconsiderar
de hierarquia como inclusãoerp
hierárquica clas-
a classi~cação
em va~a. As castas são ordenadas segundo um processo diverso, que não tra quando se
trariamente traduz
num na que
ponto hierarquia',de
se decide grupos concretos,
ser final, ou recuaouaoseinfihito,
dqtém arbi-
por-
se pode considerar verdadeiramente hierárquico. Mas esta definição «lógica" que não é possível pensar sem cOlltradição numa classe final que englobe
da hierarquia corresponderá à definição indiana? , todas as outras e, ao mesmo tempo, se englobe a si própria (cf. acima).
Aparentemente, Dumont utiliza um processo inverso: parte da formula- Mas o sistema de castas deve neceHsnriamenteser pensado como lIma tota-
ção indiana da hierarquia. Esta formulação dá conta da posição da\;lcastas lidade (de outro modo, não pode ser pensado como uma hierarquia) e, por-
em termos de pureza e impureza. Quando, porém, Dumont apresenta uma tanto, como uma ordem finita. AssiJll, é obrigado a partir da aporia da classe
formulação geral do conceito de hierarquia, não pode deixar de utilizar o que engloba todas as outras e siJllultaneamente se engloba a si própria e,
conceito de inclusão em classes: «Uma relação hierárquica é uma relação por isso, de uma representação concreta da hierarquia em que o todo e as
entre mais amplo e mais restrito ou, mais precisamente, entre aqllilo que partes estão no mesmo plano e em que a posição hierárquica de cada ele-
~\o(, inclui e aquilo que é incluído» [1967, p. 33]. É, no entanto, evidertte que, mento depende da sua posição na!.drdem da enumeração. A totalidade é,
''I " se aplicarmos esta definição à hierarquia expressa em termos de puro e de portanto, concebida como linear e toma-se finita devido a uma oposição entre
\ impuro e se afirmarmos que o termo superior (o puro) engloba d termo dois extremos absolutos e ideais: precisamente o puro e o impurd. O crité-

11 inferior
duas (o não-puro),
noções temosdevem
de hierarquia uma contradição do ponto
ser bem distintas; de vista
de outro l6gico.
modo, As
sería- I\ rio
dois desegmentos
hierarquiaqueé representam
então dado oS
pela
extremos
posiçãoconceptuais
de um segmento
e não pelo
entrenível
os
CASTA 214 215 CASTA

de generalidade em que se encontra na representação piramidal da hierar- a divisão do trabalho é dominada pela oposição ent;e puro e impuro' e tem
quia por inclusão. Este último é, no entanto, conservado a nível simbólico uma dimensão hierárquica: não se pode isolar uma dimensão econômica
pelas funções que correspondem a cada segmento. A ideologia da casta é "pura••, o que não tem sentido na sociedade tradicional.
a síntese das duas formas de hierarquia: a casta inferior é o segmento que, A subordinação do aspecto económico ao aspecto ritual está também pre-
embora continuando socialmente distinto em termos de "pureza••, é concep- sente no sistema de prestações e contraprestações da economia fechada e
tualmente englobado e subordinado pelo segmento superior. Os paradoxos natural de uma aldeia com várias castas. A própria etimologia do termo que
lógicos implicados nesta síntese explicélmcomo, concretamente, e a um certo designa frequentemente este sistema /.(jaj~~!!!t\evoca o aspecto religioso.
nível de conceptualização da realidade social, prevalece a definição da hie- Jajmá,. 'patrão', por oposição a prajã 'subordinado', é um termo que deriva
rarquia das castas em função da sua lqter-relação. McKim Marriott demons- do sânscrito vajamãna, que significa 'sacrificante': «aquele que efectua um ~
trou a importância deste aspecto, súblinhando que a interdependência e a sacrifício por si•• [cf. Dumont 1966, p. 129]. O sistema jajmãni é um sis-
especialização ocupacional das castas!e em particular os tributos alimenta- : tema_d~ clientela, baseado numa rede de relações pessoais e centrado naqu~les
res são, critérios fundamentais para 'el'plicar a configuração hierárquica de ! que têfIl a propriedade da terra. Neste sistema, cada indivíduo tem privilé-
um sistema
rárquica, de castas territorialmente
a atribuição limitado.
(característica d/l Paradepende
casta que estabelecer a ordem
do seu modohie-
de gios e ~everes
dependem na repartição
da sua dos recursos, dos produtos e dos serviços, que
posição hierárquica.
vida Pllro ou impuro) é menos imp01'lante que o tipo de relação que existe A divisão do trabalho está portanto articulada a uma rede de relações pes-
entre ali,'castas: é por isso necessário $aber de quem e a quem cada catego- soais hereditárias: cada família dispõe de uma família de especialistas para
ria social aceita ou dá qualidades diferentes de alimentos (frito, cozido, cru) cada tarefa. As prestações e contraprestações não são reguladas pelo mer-
ou a água do poço, com quem se pqde fumar do mesmo cachimbo, quais cado, mas pelo _éostume. A remuneração por cada prestação exc~p~jõ~~(;;U-
os graus de impureza que reproduzew as castas inferiores e através de que ocasional é imediata mas, no caso das prestações contínuas e habituais, é
veículos, etc. Os critérios variam re$ionalmente [cf. Marriott 1959]. distribuída ao longo de todo o ano. O sistema é muito complicado e apre-
senta variantes regionais importantes. Wiser [1936] apresentou uma descri-
ção pormenorizada do seu funcionamento numa aldeia do Norte da índia.
4.4. A divisão do trabalho e o poder económico
Podem distinguir-se as seguintes categorias de "partners ••:
A casta está tradicionalmente ligada a uma profissão, embora não seja 1) subordinados (por exemplo: ferreiro, barbeiro, aguadeiro, lavadeiro)
uma corporação de ofícios. Nem todos os seus membros exercem essa pro- . que fornecem serviços permanentes em troca de retribuições fixas em
fissão nem todos aqueles que a exercem pertencem à casta em questão [cf. cereais, recebidas duas vezes por ano, a seguir à ceifa;
as estatísticas in Blunt 1931]. O que importa é o estatuto de pureza relativa 2) subordinados com funções cerimoniais (por exemplo: em casamentos,
de um ofício: assim, profissões igualmente puras ou quase podem substi- funerais, etc.) que recebem uma remuneração habitual de cada vez
tuir ou completar a profissão tradicional de uma casta. Certas profissões são que prestam os seus serviços;
_neutras do ponto de vista ritual e podem por isso ser exercidas por castas 3) mão-de-obra agrícola permanente e "não livre.. paga ao dia ou ao
mês;
diferentes. A actividade I "neutra):,mais importante é a agricultura e o seu
exercício é respeitável para todas as castas (só as castas mais elevadas não 4) artesãos da indústria transformadora remunerados em produtos natu-
podem usar o arado); de facto, a relação entre profissões agrícolas e castas rais com uma percentagem, estabelecida pelo hábito, dos produtos que
é a mais fluida. É, aliás, evidente que, numa economia predominantemente transformam por conta do patrão;
agrícola, a ocupação da maioria da população não pode deixar de ser agrícola. 5) artesãos e vendedores remunerados em dinheiro a preços estabeleci-
Também na economia indiana moderna existe uma certa co-relação'entre dos pelo hábito e que são diferentes consoante as diferentes catego-
o estatuto hierárquico e as profissões: os intocáveis estão nos graus profis- rias de estatuto (o brâmane, por exemplo, paga a mesma quantidade
sionais inferiores (carregadores, mão-de-obra não qualificada, etc.). Na defi- de leite por um preço mais baixo).
nição do estatuto de uma casta é, de facto, determinante a sua especializa- Esta última categoria de pessoas não é constituída por subordinados.
ção funcional porque a relaciona com actividades ou estados impuros ou O sistemajajmãni foi objecto de importantes discussões. Segundo Wiser,
puros que, para várias castas, são só transitórios. A maior parte dos ofícios é um sistema igualitário porque se baseia na reciprocidade das funções e
é, portanto, ritualmente conotada: a hierarquia das castas é também função das remunerações: pondo de lado as castas mais baixas, para as outras é
da hierarquia dos ofícios que exercem. A associação tradicional, simbólica, com válida a regra de que cada membro de qualquer casta é - conforme as
uma certa profissão restringe as opções profissionais reais de uma casta e ocasiões - patrão e subordinado, fornecedor de um bem e de um serviço
é, no entanto, utilizada para exprimir a sua posição hierárquica. Também e destinatário de outro bem ou serviço.
CASTA 216 217 CASTA

Na realidade, a reciprocidade igualitária é parcialmente válida s6 para é, na sociedade, o' valor relativo da ideologia e das relações políticas e eco-
as castas que se encontram numa posição hierárquica intermédia. O juizo n6micas? Ao fim e ao cabo, a importância dada a uma ou a outra dimensão
de Wiser não tem em conta o controlo da terra, que não é igualitário. A reci- é sempre em função de uma ideologia, de um sistema de valores. O que
procidade é hierárquica [Dumont 1966, pp. 134-35]. O sistema assegura aos nos leva ao problema da comparação: não se podem comparar as estruturas
«proprietários fundiários» os serviços dos especialistas e da mão-de-obra e econ6micas e sociais sem ter em conta os valores em conjunto com os quais
elas existem nas sociedades. A vontade de isolar estruturas político-
1Igarante
mann 1959]
a estes
consideram
últimos direitos
o sistema
sobre os produtos
jajmãni como um
do solo.
sistema
Alguns
de «explora-
[Beidel- -econ6micas em si mesmas inteligíveis, independentemente da consciência
! ção», mas outros [Orenstein 1962] observaram que as famt1ias abastadas e indígena, é, ela mesma, um fenômeno ideol6gico que emana de certos valo-
dominantes têm obrigações imprescritíveis para com os seus subordinados res. Implica que os nossos valoresl econômicos e políticos possam ser uni-
e, por outro lado, dependem dos «pobres» porque têm de recorrer aos ser- versalmente aplicáveis, porque nos permitem perceber qualquer tipo de sis-
viços rituais destes últimos. tema que decidamos isolar numa sociedade concreta. A exemplaridade do
As relações tradicionais de clientela implicam que certos papéis econ6- estudo do. sistema das castas consiste na revelação do absurdo de tal pre-
micos sejam um privilégio inalienável dos grupos inferiores e que li casta tensão. Não existem critérios de valor absolutos e cientificamente fundados
dominante seja obrigada a depender deles sem poder modificar em seu pro- que permitam a compreensão de qualquer sistema social e dos seus corres-
veito (através, por exemplo, dos mecanismos de mercado) as relações tradi- pondentes ideol6gicos. Quando os sociôlogos propõem semelhantes critérios,
cionais: a «exploração••s6 é possível quando o grupo dominante pode deci- pelo menos no que diz respeito à índia, esses critérios revelam-se, na maior
dir a seu bel-prazer os termos da permuta [cf. Leach 1960, p. 5]. parte dos casos, como projecções de um sistema ideol6gico específico que
O sistema de castas parece «injusto» ao observador ocidental, para quem necessita, ele próprio, de uma justi6cação. É certo que a sociologia não pode
o critério de justiça é o indivíduo concebido como universal e não aquilo ser s6 «compreensiva», tem de ser também «explicativa.,. A exemplaridade
que contribui para perpetuar o todo social. No sistema das castas li justiça do problema das castas está, no entanto, também no demonstrar que a «com-
está na hierarquia: está num sistema em que as actividades e remunerações preensão» de um sistema ideol6gico é necessária à sua «explicação». Esta
. de cada um são interdependentes porque orientadas para o todo. Este todo última procura-se sobretudo na ditnensão político-econ6mica. Mas a exten-
é a colectividade hierárquica que é regulamentada intencionalmente (em fun- são à totalidade do sistema dos princípios de explicação desta dimensão é
ção de uma ideologia) e não automaticamente, como na economia indivi- um erro, não s6 porque implica a recusa em considerar os factos de cons-
dualista de mercado. ciência e os valores como parte da realidade, mas também porque é pro-
Constatámos que o princípio fundamental da hierarquia está na divisão duto da ideologia do observador e, não é, portanto, mais que um juízo de
entre estatuto e poder. Isso faz com que o papel política e economicamente valor oposto ao juízo de valor da' consciência indígena. A «compreensão»
dominante (que, na teoria dos vaT1}a, é reservado aos k~atriya) po~sa per- é, por isso, também uma forma de marcar as fronteiras entre a.hossa ciên-
tencer a qualquer casta que detenha efectivamente a força. A distinção entre cia e a nossa ideologia. [v. v.].
castas dominantes (que controlam a terra) e castas que s6 têm acesso li terra
e aos seus produtos pelas relações de dependência com castas dominantes
é, portanto, fundamental, porque permite introduzir a dimensão pO,líticano I'
sistema das castas. O poder político e econ6mico é, porém, independente Barth, F. ,
da hierarquia dos estatutos: a casta dominante não é necessariamente Q casta 1960The Syslem of Social SIralificali6n in Swar, Norllr Pakisran, in Leach 1960.
Beidelmann, T. O.
hierar'luicamente superior. -Na esfera' PolítiCa e econ6mica, as rehl.ções de
1959 A Gomparalive Analysis of rireJajma'li Syslem, Auguslin, Locusl Valley N.Y.
:-pÕder têm as suas ieiS, podem mudar; a hierarquia, baseada no' sistema de Berreman, G. D.
valores, não muda. A autonomia do poder está, no entanto, subordinada, 1967 Slralificalion, Pluralism and Inreraclion: a Gomparalive Analysis of Casle, in Reuck
tem uma esfera de acção limitada. Também ele tem de ser relacionado com e Knight 1967.
a totalidade, os valores últimos e, por isso, submetido ao princípio da hie- 1968 .The Concepl of Casle», in International Encyclopaedia of rire Social Scierrces, Mac-
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rarquia, medindo pela casta que representa, como vimos, a totalidadé. ,Quem
B1unl, E. A. H.
detém a força tem de ser, portanto, legitimado pelas suas relações, mesmo 1931 The Gasle Syslem of Norllrem India: Wirh Special Reference 10 rhe Uniled Provillw
na esfera econ6mica, com as categorias de estatuto - e com o brâmane em of Agra alld Oudh, Oxford Universily Press, London.
particular - cuja cauçllo é necessdria. Bouglé, C.
1908 Essai sur le régime des casles, Alcan, Paris 1935 3.
Podemos, é certo, perguntar em que medida esta relação com a hierar-
Büh1er, G.
quia religiosa modificará as relações reais. Na realidade, acrescenta-Ihes um 1886 The Laws o/ Manu, Clarendon Press, Oxford.
"'l/ido, mas nllo as altera substancialmente. No entanto, o problema·levan- Cohn, B. S.
1I1dopelo estudo dos sistemas de castas está precisamente aqui: qual 1971 India. The Social Anrhropologyo/ a Gi'Vilizalion,Prentice-HaJl, Englewood Cliffs N.J.
CASTA lIH 219 CASTA

Dumonl, L. deste tipo de organização social não pode deixar de ter em conta os seus aspectos culturais
1957 Une sous-caste de I'/nde du sud. Organisalion sociale el religion des Pramalai Kalla,', (cf. cullUra/culIUTOS, nalUreza/cullura), incluindo o aspecto ideológico (ef. ideologia) que funda-
Mouton, Pari5' La Haye. menla o sistema de '/Ialores com base no qual se articulam, precisamente, nas sociedades de
1966 /lomo hierarchicus. Essai sur le sYSl~me des casles, Gollimard, Pori5.
castos, as autoridades religiosa e polltica (cf. religido, poder/auloridade, sagradolprofallo). A oposiçAo
1967 Casle: a phenomenon of social SlruCIUTeor an aspeCl of bulian cu/lUTe?, in Reuek e Knight puro/impuro é simbólica do princípio hierárquico que, a todos os níveis, desde o económico
1967.
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C Elementos da estruturação hierárquica de certas sociedades, as castas, ao cOnlrário das clas-


ses, implicam a existência de grupos de estatuto (cf. papel/estatuto) dotados de funções com·
plexas não imediatamente redutíveis às relações eeonómicas (ef. economia) vigente no âmbito
de uma determinada formarão ecollómico-social. Se, do POnlOde vista da eSlrulura, a casta define
uma cena forma de divisAo do Irabalho, a um dado nível de desenvolvimento das forças d,·
produção (cf. produção/dislribuição e, em sentido mais lato, modo de produçdo), a explicaçao
221 TOTEM

Estas três proposições correspondem ao que se chamou o totemismo de
grupo. Em primeiro lugar, sublinhemos que esta forma de totemismo é indis-
•...
sociável de uma organização social que divide de maqeira exaustiva os mem-
bros da sociedade por clãs (ou grupos) distintos. Foi isto que foi conside-
rado como o aspecto social do totemismo. Quanto à relação, o mais das vezes
ritualizada, que os homens mantêm com o seu totem, corresponde ao que
TOTEM foi considerado como o aspecto religioso do totemismo. A diversidade do
totemismo de grupo pode ser analisada segundo dois aspectos. Por um lado
existe uma diversidade quanto à natureza dos grupos totémicos: podem
tratar-se de clãs unilineares (matri- ou patrilineares) ou não-unilineares, de
classes matrimoniais não redutíveis a clãs, etc. Por outro lado, existe uma
diversidade quanto aos costumes observados em relação aos tótemes. Esco-
O totemismo já não está na moda, apesar de o ter estado durante um lher entre esta multitude de costumes aqueles que podem ser apresentados
tempo. No início do século suscitava um interesse considerável entre os etnó- como típicos foi geralmente o objecto principal das controvérsias dos antro-
logos, os sociólogos, os historiadores da pré-história, os historiadores de reli- pólogos no passado: era em função de tais escolhas que eram dadas as dife-
giões, os historiadores da Antiguidade grega ou egípcia, os psicanalistas, e até rentes definições de totemismo. Pedinte a arbitrariedade de uma escolha feita
entre os filósofos: o número de publicações que lhe eram consagradas era a priori, podemos abster-nos de qUllisquer considerações sobre os costumes
considerável e a soma dos esforços utilizados para reencontrar as sUas ori- relativos ao totem. Somos assim ob!rigadosa chegar a uma definição formal
gens ou vestígios era enorme. Ainda em 1920 se lhe predizia um brilhante' do totemismo concebido como um ~istema de correspondência entre grupos
futuro científico. No entanto, depois desta data, a história da ideia toté- sociais e classes de espécies naturais.
Por extensão, fala-se em totemismo individual quando existe uma asso-
mica só surge como uma longa agonia. Hoje em dia, dificilmente se ousa
pronunciar o seu nome. ciação entre um indivíduo e uma es'pécie animal (mais raramente tlma espé-
cie vegetal ou ainda uma categoria d(~objecto inanimado). O indivfdJo observa
Nestas circunstâncias, tentar dar uma definição do totemismo pode pare-
relativamente ao seu totem um certo número de costumes, análogos aos que
cer um desafio insensato. No início do século, os antropólogos não conse-
se encontram no caso do totemismode grupo. É evidentemente estll analogia
guiam chegar a acordo sobre uma definição e contavam-se quase tantas defi-
que está na origem da denominação comum de ((totemismo»aplicdda simul-
nições quantos os autores: aetualmente, os antropólogos concordam emievitar
taneamente ao clã e ao indivíduo. NÓsentido mais geral do termo,'totemismo'
dar uma. À falta de uma verdadeira definição, contentar-nos-emos em deli-
conota simplesmente a ideia de uma associação entre uma espécie animal (ou
mitar o campo dos factos etnológicos aos quais foi aplicada a etiqueta toté-
mb. ' outra) e uma parte da sociedade, quer se trate de um grupo ou de um (ou
mais) indivíduos(s). A diferença entte totemismo clânico e totemismo indivi-
Fala-se de totemismo, na sua forma mais clássica,' quando: 1) um~ tribo dual não é apenas quantitativa. Um indivíduo adquire automaticamente o seu
(ou sociedade) está subdividida em clãs (ou em outros grupos similares), totem de clã pelo facto de pertence~ a esse clã desde o seu nascimento: mas,
2) cada um destes clãs está associado a uma ou a várias espécies animais para possuir um totem individual, este mesmo indivíduo deverá buscar um
ou vegetais, ou ainda a certas categorias de objectos inanimados (o clã é acontecimento especial - sonho, alucinação, encontro no decurso de uma
dito totérnico; as espécies e/ou as categorias de objectos são os tótemes, caçada, etc. - que interpretará conlo o sinal da sua associação com um ani-
3) cada clã observa relativamente ao seu totem um certo número de costu- mal, que deste modo se torna o seu totem. O totem individual él antes de
mes, como por exemplo: o nome do clã é o mesmo do totem, o cl~ tem mais, o resultado de uma busca individual. Por outro lado, a semelhança entre
um determinado brasão ou certas representações relativas ao seu··totem, a atitude para com os tótemes sociais e a atitude para com os tóterrles indivi-
duais apresentar-se-á muitas vezes óS\1perficia1. É verdade que certos costu-
aclãassociação
nllo podementre o clãcom
casar-se e o uma
totempessoa
é baseada na mitologia,
que tenha o mesmo os memb~os
totem do
ql1~eles, mes se encontram algumas vezes elllambos os casos - por exemplo, a proi-
estilo proibidos de comer ou de utilizar o seu totem, respeitam-no oú obser- bição de matar ou de comer o aninta'! totémico -, mas, de um modo geral,
vam uma atitude ritual a seu respeito, têm o exclusivo de certas cerlmónias o totem individual parece ser obj~cto de um maior respeito. Além disso,
relativas ao seu totem, acreditam ser parentes do totem, etc. Em princípio, o totem individual, muito mais do que o totem social, desempenha o papel
dentro da mesma sociedade, cada clã observa em relação ao seu totem res- de protector - espécie de anjo da gtlarda - do indivíduo: é o que os antropó-
pectivo o mesmo conjunto de costumes; mas, de uma sociedade para butra, logos de língua inglesa chamaram guardianspirit 'espírito guardião'. Pode dizer-
eatea costumes, quanto ao mlmero e quanto à sua natureza, são extrema- -se que o problema da relação entre. totelIlismo' de grupo e totemismo indivi-
mente varidveis. dual nunca foi resolvido nem sequer formulado de maneira adequada.
222 223
TOTEM TOTEM •
O totemismo não constitui de modo algum a única forma de relação ritua- que pertença ao mes~o clã). Finalmente, o totem matrilinear desempenha
lizada entre o homem e o mundo animal ou vegetal. Lembrar uma tal evi- também .em certas tribos o papel de protector. Foi a este tipo de totemismo
dência seria supérfluo se não tivessem sido tantas vezes qualificadas como que Elkm chamou de totemismo social.
totémicas atitudes que relevam de uma outra ordem de ideias: por exem- No totemismo de clã patrilinear, cada indivíduo tem o mesmo totem do
plo, na Austrália, o tabu que pesa sobre certas aves como a águia; no Norte seu. pai. 0. t?tem ~atriIine~r. parece ter nalgumas tribos a função de totem
da Eurásia e da América, os ritos da caça ao urso; em certas regiões da social (prOIbição abmentar, exogamia). Mas, na maior parte do continente
Africa Negra, as crenças e os interditos que envolvem animais como o cro- trata-se de ~m,totemismo a que Elkin chamou cultual: esta denominaçi1~
codilo, a pitão e o leopardo. Nestes casos, as atitudes rituais interessam todos ref~re:se à Idela de que, nesta forma de totemismo, o aspecto ..religioso é
°
os membros do conjunto da sociedade. que caracteriza o totemismo é, pelo
contrário, a existência de atitudes diferenciadas segundo uma segmentação
· ~als Importante que o aspecto sQ.Çial.Qtotem patrilinear cultual está asso:'-
5~ado a mitos que ~xplicam a sua origeme a ritos que são celebrados peéio~'
da sociedade: cada segmento - clã ou indivíduo - está relacionado com um · dlca~lt;:nte:conhecimentos míticos e ritos devem ser rigorosamente secretos
animal diferente. Assim, a propósito dps ritos do urso, só se pode falar de relatIvamen~e.a. outros .clãs. Só .os homens do clã que passaramport~dos
totemismq se esses ritos forem observildos por um segmento da sociedade ~sta~os de tnlcIação(ntos de passagem) têm acesso a esses, segredos. No
enquanto os outros observam ritos semelhantes quanto à sua natureza mas .' mtenor. de cada clã patrilinear forma-se, pois, uma organização secreta. ou
em relação a outras espécies. " um.a .1olacul~ual ~ormada por homens adultos: as mulheres e as crianças
estao, em ~rmcípIo, e~cluídas. ~sta l?ja tem por objectivo a conservação
dos. con~ecImentos rnfucos. A mItologIa australiana refere-se a um passado
I. O totemismo no mundo multo dIstante, o «tempo do sonho», quando a ordem cósmica e social não
esta~a ainda .estabeleci~a ou melhor estabilizada. No «tempo do sonho», os
herÓIStotémICOS- meio-homens, meio-animais nessa época em que ainda
1.1. Austrália não há uma distinção clara entre os homens e os animais - percorrem o
mundo,
. modelam
"
a paisagem,
. '
criam as espécies naturais inventam as téc-
mcas e os rItuaIS ou, amda, estabelecem leis para as gerações futuras. Cada
A importância da Austrália para o estudo do totemismo é dupla. Por
um lado, entre as quase quinhentas tribos aborígenes da Austrália, não existe um dos seus actos - alto feito ou acontecimento quotidiano - deixou mar-
praticamente nenhuma que não apresente uma qualquer forma de totemismo. cas na ~~sagem: rio,. nascente, rochedo, etc. ~~vés~alllitologia,poiscada
Por outro lado, o totemismo australiano é extremamente variado: a maioria ·clã patnhnear totémICOestá associado a um conjunto de sítios ou de cami.
das formas existentes no resto do mundo está igualmente representada no n~os a que chama a sua «pátria», a sua «terra ancestral». Alguns locais'toié='
continente australiano, possuindo ainda certas formas exclusivas. Neste artigo ml~os,sagrados têm um acesso rigorosamente regulamentado. Mencionemos
distinguiremos as diferentes formas de totemismo em função da natureza do .dOls upos de locais totémicos: o primeiro é suposto ser a residência dos
grupo social ao qual ele está associado; em seguida, tentaremos indicar a espír~tos-crianças que o herói mítico depôs no «tempo do' sonho»: estes-
função de cada uma dessas formas. °
.espíntos-crianç.as fecund~rão as esposas dos homens. dodií ... segundõ.tip'o
de local totémICO - multas vezes confundido com o primeiro' -' é aquele
A primeira forma a considerar é o totemismo de clã matrilinear. Por defi-
nição, um indivíduo pertence ao mesmo clã matrilinear que a sua mãe e e~ que é celebrado periodicamente um rito de multiplicação da espécie toté-
tem o mesmo totem matrilinear que ela. É assim entre os Dieri da Austrá- _~Ica. Este ritual - o intichiuma entre os Aranda - é uma das tarefas mais
lia Central onde cada clã está associadó a um totem: a chuva, uma espécie Importantes da loja cultual associada ao clã: se a loja do totem canguru não
cumprisse a cerimónia de multiplicação, não haveria cangurus. A ordem do
de serpente, o pardal, o barro vermelho, uma espécie de rã pequena, um
~lUndoe a ?róp~ia sobrevivência da sociedade são supostas depender deste
género de semente selvagem, um determinado rato, o morcego, uma âspé- upo de cerlmóma.
cie de lagarta, o alcatraz, o emu, a águia, o cão selvagem, etc. O totem
Em resu~o, o totemismo cultual é caracterizado pela tripla associação
matrilinear é geralmente designado por um termo que significa 'carne':
do clã tot~~ICOcom I) um~ parte da mitologia da tribo, parte essa de que
maneira de exprimir que a relação com o totem é uma relação de paren- o ~l.ãé o umco c~nhecedor mtegral; 2) uma «pátria», conjunto de caminhos
tesco, parentesco de carne e de sangue, análogo à relação com a mãe e com mIUCOS e.de locaIS~e que os mais sagrados não poderão ser profanados pelos
todos os outros membros do clã que se considerem parentes. O totem matri- ,outros clas; 3) um ntual de que o clã totémico tem a exclusividade. O carác-
linear é geralmente objecto de uma proibição no que respeita ao seu con- ter secreto do tote~ismo cultual, e a noção de exclusão que ele implica,
sumo por parte dos totemistas. Ele é também exogâmico (proibição de casar não deve .s~r.entendldo como um fenómeno de privilégio: qualquer homem
com alguém que tenha o mesmo totem matrilinear), o que resulta do carác- adulto é mlc18do e pertence de pleno direito à loja do seu clã. Esta forma
ter exogâmico do clã matrilinear australiano (proibição de casar com alguém de totemismo implica aliás ideias de complementaridade, de cooperação e
TOTEM 224 225 TOTEM

de interdepend!ncia entre os clds. Isto é visível a três níveis. Primeiro nível: trito, tótemes das secções, etc.) que estão incluídos em cada metade. Nesta
a mitologia. O caminho mítico percorrido pelo her6i totémico no tempo do segunda acepção do termo, a cada metade está associada uma lista formada
sonho compreende centenas de quil6metros, ultrapassando até as fronteiras por um número considerável de tótemes: o totemismo de metade toma então
da tribo: para obter a narrativa completa dos grandes mitos e ver cumprir o aspecto de uma classificação dualista do mundo. Os próprios aborígenes
todos os ritos que com eles se prendem, seria necessário a deslocação suces- afmnam que todas as coisas podem ser integradas numa ou noutra metade:
siva a cada grupo e a cada tribo. Cada loja é apenas guardiã de um capítulo eles conferem até um lugar, neste sistema, às coisas estrangeiras às suas socie-
da narrativa: os seus conhecimentos são complementares dos das outras e dades, utensílios de ferro, animais importados pelos colonos como a vaca,
inscrevem-se num conjunto que a ultrapassa. Segundo nível: a organização -etc. É sob esta forma que a função classificatória do totemismo é mais evi-
do ritual. É exclusivamente por razões de simplificação que apresentámos dente. Acontece muitas vezes que as duas metades estejam mais especial-
a loja como a guardiã exclusiva dos conhecimentos rituais totémicos. Em mente associadas a duas espécies animais, caso da águia e da gralha em
numerosos casos, a presença dos membros de outros clãs é indispensável numerosas tribos do Sudeste. Os nomes de animais servem, então, para
ao cumprimento dos rituais: estes (parentes por aliança ou parentes mater- designar as metades, como os homens que as compõem: fala-se da metade
nos) devem fornecer certos acess6rios cerimoniais ou devem executar certas «águia», dos homens «águia», etc. Vários mitos narram as peripécias destes
fases do ritual. Algumas vezes, é a pedido expresso dos membros exteriores antepassados-animais no tempo do sonho: à luta permanente travada entre
ao clã que n cerimônia é efectuada. Existe, pois, cooperação ritual entre os a águia e a gralha corresponde a oposição ritual entre as duas metades. Ainda
clãs. Terceiro nível, e o mais importante: as cerimónias de tipo intichiuma. aqui, evocar a divisão do mundo em duas metades, ou falar da sua oposi-
Já dissemos que era suposto estas cerimónias assegurarem a ordemlnatural, ção, não pode fazer esquecer que aS metades só existem enquanto depen-
isto é, a reprodução das espécies animais e vegetais de que depende a ali- dência mútua: cada metade exógamd depende da outra para obter cônjuges
mentação dos homens. Em virtude de uma espécie de divisão social do tra- e assegurar a sua reprodução; a iniciação dos seus membros recai geralmente
balho, cada clã é apenas responsável por uma parte da natureza: a sua ou sobre os membros da outra metade,' tal como os funerais e numerosas ceri-
I ('
as suas espécies totémicas. Ele é responsável para bem de todos: hli coope- mónias que assentam sobre um prtncfpio de complcmentaridadc ritual.
ração mágica e interdependência. Mas quando a consumação da espécie toté- A organização em quatro secções é definível através do esquema seguinte
mica é proibida aos membros do clã, este é responsável por um bem que (o sinal = liga os cônjuges, o sinal - a mãe e os filhos):
todos poderão utilizar excepto ele. O privilégio aparente é, na realidade,
apenas um dever do qual não se espera qualquer benefício material mas que
se explica através da reciprocidade que liga os clãs entre si.
(~~1'. ;' I O totemismo do clã local está ligado a uma forma de clã específico da
'.,{ ) Austrália. º-,t~tem d~ã]o~al éjndependente do totem da mãe oU do pai:
'iS, ,~~!Í'ya de, um laç.o_espirituaL que preteIlde ligar o ind.ivíduo a um I~ar tot~-
~ mico - daí o termo 'local'. Este laço é muitas vezes estabelécido no A esecções
(As D são também duasduas
A e C são subdivisões',
de uma
de metade
SUbdiV,'isões patrilinear
uma metade AO. O tote-
matrili,near AC;
\f~. .'mõme'nto em que a mãe senteas primeiros sintomas da gravidez, o que
o se explica pela introdução de um espírito proveniente do local toténUco mais mismo de secção associa a cada u$a das secções um totem ou' "ma lista
o

o DJ• 00

!t" \j próximo: fala-se então de totemismo local concepcional. Quando o que conta de tótemes. Esta forma de totemismo é muito semelhante ao totethismo de
;-, " é o local totémico mais pr6ximo do lugar de nascimento, fala-Se,de tote- metade quanto ao seu aspecto classipcatório: classificação cósmica em qua-
mismo local de nascimento. É evidente que tais crenças permitem ~rpa mani·
o
tro em vez de ser em duas. Todavia" diferenças importantes surgem do facto
pulação êonsiderável: na realidade, o totem local é muitas vezes' o do pai. de a secção ser um grupo social muho particular. Este não é unilihear: por
No que respeita à sua função, o totemismo local é cultual, e tutib quanto definição, um indivíduo não pode pertencer (salvo funcionamento ,irregular
dissemos a propósito do totem patrilinear aplica-se igualmente ao t~tem local. do sistema) à mesma secção que o ,'seu pai ou a sua mãe. Uma secção, ao
Para além destas três espécies de clã, existem outros grupos sociais asso- contrário de uma metade, não é ullt reagrupamento de clãs. É tIm facto
cllldos a t6temes: metades, secções, subsecções, semimetades. Lihtitar-nos- que existem tribos onde o totemismc:lde secção coexiste com o totemismo
·emos 11 dar cantil dos dois primeiros. As metades podem ser consideradas de clã, mas os dois sistemas não' podem integrar-se harmonidsamente:
como o agrupamento em dois grandes conjuntos dos clãs da tribo. Silo matri- o maior desenvolvimento de um pa~ece acarretar a atrofia do outro. De um
tlU palrilineares tal como os clãs que as compõem. São ex6gamas. Os t6te- lado encontramos tribos com clãs totémicos mas com um totemismo de sec-
me. de metade podem ser entendidos em dois sentidos. Em sentido restrito, ção reduzido a quatro espécies naturais, uma por secção; do outro, um tote-
mismo de secção com carácter classificatório, mas com clãs que não são toté-
11110 os porl
Ultem t6temes pr6prios compõem
os clAsque a cada uma dasmetades.
estas metades, Em
massentido
nenhumlato,
constitui um
são todos micos. Neste último caso, o totemismo classificatório de secção levanta um
oa h1lcmcs dos grupos (t6temes dos clãs, tótemes de metade em sentido res- outro problema que a comparação com o totemismo de metade ajudará a

15
TOTEM 226 TOTUM
227

compreender melhor. Entre os tótemes de cada metade, um indivíduo está certos poderes mágicos: cura os doentes, desempenha o papel de adivinho
mais particularmente associado ao do seu clã, e esta associação faz-se auto- e exerce a magia negra contra os grupos inimigos. A sua função é reconhe-
maticamente: o totem pr6prio de um indivíduo é o do seu pai (caso patrili- cida pelo grupo: o curandeiro, se bem que temido pelos seus poderes ocul·
Ilear) ou o da sua mãc (caso matrilinear). Mas como escolher entre a lista tos, está ao serviço do grupo, e não deve ser confundido com o feiticeiro.
dos tótemes de secção? Três soluções são possíveis. A primeira: não esco- O totem individual do curandeiro é um totem de função: normalmente os
lher: cada um dos membros da secção tem como tótemes todos os da lista. outros homens não têm um tal totem. Este é adquirido aquando da iniCia-
A segunda, muito rara: associar por pares os tótemes de duas secções (por ção do curandeiro (iniciação feita por um outro curandeiro já confirmado,
exemplo: o emu da secção A com a gralha da C) e estabelecer uma regra muitas vezes pai do primeiro); é um amigo, uma ajuda e um duplo.
que determine automaticamente o totem dos filhos em função do totem de Enquanto tal, é estritamente proibido ao curandeiro comer-o'seu totem; qual~
um dos pais (por exemplo: uma mulher A emu tem filhos C gralha). A ter- quer dano causado ao totem atinge o próprio curandeiro; este pode_tomar
ceira: escolher para o fllho, aquandQ do seu nascimento ou da sua inicia- _a forma animal da espécie totémica, etc. A prÍncipal função do totem é à
ção, um totem da lista de secção por meio de um método qualquer de adi- de ajudar o curandeiro. .
vinhaç~o. Mas nenhuma destas soluçõ~sé satisfatória. A primeira, ao associar Para concluir, é necessário lembrar que diversas formas de totemismo
globalrpente um quarto da tribo a U111 quarto do universo, torna pouco pro- se podem encontrar numa única tribo. No exemplo já menCionadodos Dieri,
vável uma atitude ritual privilegiada entre o homem e os seus tótemes: cada indivíduo possui um totem de clã matrilinear (totem soCial: exogamia
a proibição alimentar representaria' um handicap económico demasiado e tabu alimentar), um totem de clã patrilinear (totem cultual para o qual
grande,' e a responsabilidade de rituais de multiplicação seria uma tarefa se realizam cerimónias de multiplicação) e um totem sexual; para além disto,
demasiado pesada. A segunda solução consiste em reconstituir o clã em detri- mantém relações privilegiadas com o totem patrilinear da sua mãe. Os tóte-
mento da secção: é o caso do exemplo proposto, a unidade totémica emu- mes de clãs matrilineares estão agrupados em duas metades, o que nos dá
-gralha-define um clã matrilinear da metade AC. A terceira solução está conta do aspecto classificat6rio do totemismo matrilinear dos Dieri. Quanto
muito próxima do totemismo individual: a secção conserva apenas um aspecto ao totem patrilinear, este também desempenha a função de totem do sonho.
totémico pertinente enquanto limitar a escolha do totem do indivíduo.
Existe uma última forma de totemismo de grupo, o totemismo sexual,
no qual cada sexo está globalmente associado a uma ou mais -espéCies ani-- 1.2. América do Norte
mais. É o caso de certas tribos do Sudeste onde o morcego é o totem
dos homens, o mocho o das mulheres. O totem sexual é o companheiro Depois da Austrália, é sem dúvida a América do Norte a mais impor-
(o "irmão» ou a "irmã») do grupo sexual ao qual está ligado: protege o grupo, tante região no que diz respeito ao estudo do totemismo, quer do ponto
e o grupo protege-o. Cada sexo se abstém de comer, de matar ou de ofen- de vista histórico, porque foi aqui que o fenómeno totémico foi descrito
der o seu totem: a sua morte efectuada por representantes do outro sexo pela primeira vez, quer do ponto de vista teórico, dada a extensão geográ-
é considerada uma provocação. A expressão <<avida de um morcego é a vida fica do totemismo americano e a variedade das suas formas. Quando se com-
de um homem» implica uma identificação entre o sexo o o seu totem. param os factos americanos com os factos australianos, duas observações ocor-
Por último, falámos do totemismo individual na Austrália. Se bem que rem imediatamente. Por um lado, o totemismo individual, sob a forma do
a literatura seja confusa sobre este assunto, podem distinguir-se dois casos. espírito guardião, é muito difundido na América e reveste uma importânCia
O primeiro corresponde a algumas tribos do Sudeste que não possuem clãs. de primeiro plano nas crenças e na vida dos índios. Por outro, o totemismo
Nestas tribos, cada indivíduo, homem ou mulher, está assoCiadoa uma espé- de clã, se bem que largamente difundido, tem Um conteúdo muito pobre:
, Cie natural. É geralmente no momento da puberdade ou da iniCiação que - regra geral, não há na América nem cerimónia de multiplicação da espécie
, o adolescente adquire o seu totem pessoal: este é-lhe muitas vezes dado pelo i totémica nem mesmo proibição de ordem alimentar. A parte estas conside~ -
pai. A associação do indivíduo com a espéCie totémica é, portanto: dife- rações gerais, parece difíCilfazer uma síntese dos fenómenos totémicos ame-
rente da que caracteriza o totemismo clânico, pelo facto de, por um lado, ricanos. Seguindo o exemplo dos próprios americanistas, contentamo-nos em
esta assoCiação não ter sido determinada à nascença e, por outro, por não apresentar uma série de exemplos escolhidos de modo a sublinhar antes de
ser baseada na pertença de um indivíduo a um grupo. O totem individual mais as diferenças de uma região para outra.
é muitas vezes chamado "irmão» (ou "irmã» para uma mulher): é um <<amigo» Na região dos Grandes Lagos, os Ojibwa estão subdivididos numa pro-
a quem não se fará mal e que não se gosta de ver maltratado. Vem em fusão de clãs, cada um associado a um~'espécie animal,. mais raramente vege-
socorro do seu totemista, avisa-o dos perigos em sonhos premonit6rios, etc. I tal (totam). Além disso, cada indivíduo está ele próprio associado a uma outra
O segundo caso de totemismo individual melhor descrito corresponde à asso- espécie que é o seu espírito guardião (manitú). O totem do clã é exogâmico
Ciação do curandeiro com uma ou mais espéCies naturais, geralmente ani- (como o clã); existem mitos relativos à origem destes tótemes que se teriam
mais. O curandeiro (o xamã das regiões árcticas) é um homem que detém posteriormente subdividido em tantos quantos os clãs que se podem obser-
• TOTEM 228 229 TOTEM

var na sociedade real; finalmente, existe uma crença segundo a qual um em quatro subclãs. Os membros do primeiro não devem comer a língua
""
homem se parece com o seu totem (por exemplo: um homem do clã do do bisonte nem tocar na cabeça deste; os do segundo não comem milho
urso passa por guerreiro ou, um outro, do clã do grou, por ter uma voz vermelho; os do terceiro são os pregoeiros da tribo; os do quarto não devem
estridente). Mas são estes os únicos atributos do totem clânico: não há qual- tocar nos chifres negros (do bisonte). O terceiro clã, também associado ao
quer respeito pelo animal que pode ser morto e comido. Vejamos apenas bisonte, está subdividido em dois subclãs. O primeiro é designado por nomes
algumas variações sobre este mesmo tema entre outros povos dos Grandes que podem ser traduzidos «em relação com a casca do salgueiro sagrado••,
Lagos. Os Winnebago classificam os seus clãs e tótemes em duas metades; ou «os que não comem os flancos dó bisonte ••, ou ainda «os que não comem
cada clã pretende descender do seu animal totémico e esculpe, tece ou grava os gansos, os cisnes e os grous ••; para além disto, não devem comer a lín-
representações deste animal: mas nenhum tabu alimentar lhe está ligado. gua do bisonte. O segundo subclã é chamado «em relação com a pele sagrada
Os Iroqueses classificam os seus tótemes em duas metades, mas não têm da fêmea branca do bisonte.. ou «eles não podem comer as línguas de
nenhuma crença nem nenhum ritual relativo aos seus tótemes, de tal maneira bisonte ••; todavia, ao contrário dos membros do subclã precedente, têm
que estes aparecem pura e simplesmente como nomes de clãs. direito a comer os flancos do bisont~. Igualmente, os outros clãs, pelos seus
Inversamente, o animal que desempenha a função de espírito guardião nomes ou pelas proibições que os seus membros observam, estão associa-
é, entre os Ojibwa como noutras zonas da América, objecto de respeito. dos a animais, plantas, objectos ou tenómenos naturais. Por um latlo, trata-
As crenças parecem por vezes contraditórias. Por um lado, o índio abstém- -se de um totemismo público ou c1assificatório: a multiplicidade Idas refe-
-se de matar e de comer o seu animal tutelar: certos iroqueses identificam- rências - referências míticas, denominações, nomes, proibições, etc. - defme
-se com o seu espírito guardião a ponto de temerem a morte de um animal uma classificação a três níveis taxin6inicos: metades, clãs, subclãs. Por outro
daquela espécie como se ela devesse causar a sua própria morte. Mas, por lado, os tótemes são muitas vezes «tótemes parciais••: não é a espécie animal
outro lado, o índio acredita que será particularmente afortunado nu~ caçada na sua totalidade que representa o totem, mas uma parte apenas, seja essa
ao animal que constitui o seu espírito guardião: em virtude do laçb privile- parte anatómica (línguas, costelas, :,etc.), seja uma parte dos an~imais(os
giado entre o homem e o animal, este oferecer-se-á espontaneamente no caça- machos, os que têm a pelagem delumacerta cor, etc.). Entre os Omaha
dor. Para conciliar estes dois aspectos contraditórios, os Iroqueses e oJ Algon- este aspecto explica-se facilmente eni função da proibição alimentar'que pesa
kin dizem que cada espécie animal tem um «irmão mais velho••: é este que sobre o totem. Os Omaha vivem principalmente da cultura do triilho e da
protege o homem de quem é o espírito guardião e que o ajuda ria caça e caça ao bisonte: ter por totem um d"stes dois recursos alimenta~es de base
lhe envia os seus «irmãos mais novos... Mais geralmente, o espírito guar- e proibir o seu consumo represent,ria um inconveniente maior. Por isso,
o milho só constitui o totem de u'nj subclã enquanto variedadb (o milho
dião
sejam: ajuda o indivíduo
exercício da magiana realização dos seuso projectos,
negra, predizer quaisquer
futuro, vencer os seUsqJ1e. estes
inimi- [ vermelho), e o bisonte, se bem qu~ ,diversas vezes totem, nunca é objecto
gos, seduzir uma mulher, etc. Neste sentido, pode dizer-se que ~ finali-
dade do espírito guardião é puramente individual: não serve, comÓ o totem I global
Cadadas
clãproibições que de
omaha dispõe apenas
uma yisam
fista deuma parte
nomes do animal.
pessoais . são pró-
que lhé ,I

cultual australiano, para a realização de um objectivo de interesse tdlectivo. prios e que existem em relação com' o totem. Deste modo, no clã do wapiti,
A llquisiçãOdo espírito guardião resulta também de um esforço que é pura- o primogénito será geralmente chalriado «chifre mole••; o segundo, «chifre
mente individual: o homem, chegado à idade adulta, impõe a si mesmo um amarelo••, etc.: os outros nomes dOldã referem-se quer aos diferentes esta-
jejum austero e retira-se para longe das aldeias, a fim de ter um sonho ou dos dos chifres do wapÍti segundo a' sua idade quer a outras partes do corpo
uma visão, revelação mística da espécie animal à qual ficará associado. Este do animal ou a diferentes aspectos do animal. De igual modo, cáda clã se
esforço nem sempre é coroado de êxito: certos indivíduos nunca chegam distingue dos outros por um pente~do característico que lembrá por vezes
o ter uma vistlo e viverão sem espírito Ruardião. o seu totem. É o caso das crianças do clã Ombro Negro (do bisonte) que
011 011I111111"i"~1II nll Misslluri ~ constituem IImll ~xc~pção nll'Américll usam duas mechas de cabelo a imitar os chifres do bisonte. Os ritos de nas-
l'CII' ~'IIllSIl
1111~'lIl'1k'I~'I'
1'lIl'lkuhH'lll~ntcI'ku lIu scu tlllclllislllOd~' dll'. A trioll cimento e de morte fazem também :referência ao totem do clã. Finalmente,
c"1I1,11,,11111111C'1ll,IIIIIS1II~'tllll~'s:
,'111111
lllC'tllll~' dnl,\l dl\s! li nmiol'
~,\IIllI'I\"\'nd~' certos clãs e subclãs cumprem cenos ritos baseados na ideia de um con-
1'11I'11'1111"clã" suhdi"ide-se POI' SUIl vez num subclil. Deste modo, o pri- trolo mágico da espécie totémica pat parte dos. homens do clã correspon-
meiro cla da primeiro metade é o clã wapiti. Os seus membros nilpdevem dente. Por exemplo, os membros do subclã do pássaro pretendem que afas-
nunca comer ou mesmo tocar num wapiti macho; também estão proibidos tam magicamente os pássaros dos Cfitnposde milho na época da ceifa; os
de comer carne de veado; quando morrem silo enterrados dentro d~ peles membros do clã do vento agitam dobertores para que o vento se levante
de veado; este clll nllo estaf subdividido em subcllls. O segundo clã tem o e afaste os mosquitos quando estes se,tornam muito numerosos, etc. Como
nome de «ombro negro••: segundo a tradiçllo, os seus antepassadds foram nas cerimónias intichiuma, estes ritos assentam na ideia de um controlo
os bisonres e, quando a totalidade da tribo caça este animal, as tendas do mágico privilegiado da espécie totémica por parte do clã correspondente e
cla sao decoradas com representações de bisontes. O clã está subdividido visam um objectivo de interesse colectivo. Mas a semelhança fica por aí.
230 231 TOTEM
TOTEM , .
Particularmente, os ritos omaha não pretendem de modo algum multiplicar É sem dúvida entre os índios Pueblo do Sudoeste ~ue o aspecto classifi-
a espécie tlltémica e têm apenas um objectivo negativo: evitar certos acon- catório do totemismo é mais desenvolvido. Os diferentes clãs dos Zui'li estão
ll'l'imentlls naturais nefastos. Os diferentes aspectos do totemismo c1ânico associados cada um a um totem. Para além disso, estão classificados segundo
tul clImo os acabamos de descrever entre os Omaha encontram-se algumas sete direcções: os quatro pontos cardeais, o zénite, o nadir e o centro. A cada
vezes, mas com menor importância, noutras tribos das planícies centrais da direcção está associada uma cor e uma espécie animal.
América do Norte. Em todas essas tri]:>os,o espírito guardião é importante. No México e na Guatemala, o espírito guardião é conhecido sob o nome
No Noroeste do continente, entre os povos de língua salish que vivem de nagual. A etimologia desta palavra parece evocar a ideia de esconder-se,
de se m~tamorfosear ou de se mascarar: os feiticeiros aztecas, para cumpri-
no interior, não existe org~ni~ação clân~c~~e a crença nos e~~íritos guar-
diães representa o traço pnnclpal da lrehglao. A fim de adqumr um pode- rem os ~eus malefícios, eram considerados como tendo o poder de se trans-
roso allimal protector, os jovens trClinam-seinterminavelmente, impõem a formare," em animais que constituíam os seus nagual. O nagual é também
si próprios longos períodos de jejum:ou duras provas de resistência à dor, o animal que está associado a cada um dos indivíduos em função da sua
submefem-se a ritos de purificação epmo o banho de vapor. O animal que data de nascimento através do calendário divinatório azteca que combina
aparecçu em sonho deve ser morto f\'P decurso de uma caç~da e a su~ pele dez animais com treze números. Este animal é um companheiro com o qual
será gllardada como relíquia. O inqiyíduo é suposto possUIr as quahdades o indivíduo se identifica espiritualmente: existem numerosas histórias que
da espécie animal à qual pertence O íseu espírito guardião e passa por um relatam que, no mesmo instante em que o animal foi morto no decurso de
bom caçador no que respeita à perseguição de animais dessa espécie. Mui- uma caçada, um indivíduo que tinha como nagual um animal da mesma
tas vezes o animal sonhado por um adolescente é o mesmo que o do seu espécie morria na aldeia vizinha. No Yucatán, cada um dos bebés era depo-
pai: o espírito guardião tende a ser herdado do pai. Está também relacio- sitado durante uma noite num templo aberto e no dia seguinte interpretavam-
nado com a especialidade do indivíduo: os que se ocupam mais da caça terão -se as pegadas que indicavam a visita de um animal ao qual o bebé ficava
a partir desse momento associado.
por espírito guardião os animais de peles; os guerreiros terão o sangue ou
diferentes armas; os xamãs (ou curandeiros), estrelas ou animais associados
à magia, etc. 1.3. Melanésia e Polinésia
Os índios da costa oeste do Canaaá são célebres pelos seus «postes toté-
,
micos» imensos troncos de árvores esculpidos, erigidos no momento . dos Na Nova Guiné e nas outras ilhas melanésicas, a associação dos clãs e
funerais dos chefes, das construções das casas ou de outros acontecimentos das metades com seres vivos e inanimados é um fenómeno corrente. Citare-
importantes. No Norte da região, as tribos estão divididas em metades.' clãs mos apenas alguns casos dignos de nota.
e linhagens associados a espécies naturais reais ou miticas, ou a obJectos Em Buin, nas ilhas Salomão, existem oito clãs matrilineares exogâmi-
inanimados. Os mitos explicam geralmente a associaçãodo clã com uma espé- co~, cada um dos quais associado a um pássaro qualquer, coruja ou papa-
cie animal: um homem ajudou um animal, uma mulher casou-se ou foi rap- gaIo, que nenhum membro do clã deve matar ou comer. Estes animais são
tada por um animal, etc. Mas nenhuma proibição existe relativamente à uti- mesmo de tal modo sagrados que qualquer ofensa perpetrada contra eles
lização da espécie associada; nenhum ritual lhe diz respeito. O animal serve por um outro clã deverá ser vingaaa: daqui resulta que ninguém dá caça
apenas de nome e de brasão a uma parte da sociedade, clã ou linhagem. a estes animais. A proibição totémica está, pois, generalizada junto da tota-
A utilização deste brasão e das representações animais que se lhe referem lidade da tribo.
é um privilégio deste grupo. Deste modo, quando ele erige um poste toté-
mico, o grupo esculpe nele as representações do animal que lhe s~rve de
brasão , bem como outros animais aos quais este se encontra associado 'I ou I
de um al11mal ou de uma planta, encontrada ou comida pela mãe no
Em Mo.ta,
momento nas ilhas Édeproibido
da gravidez. Banks, cada criança é,
ao indivíduo considerada
comer a encarnação
a espécie animal ou
vegetal com a qual está desse modo identificado. Trata-se de uma forma
oposto na tradição mítica. .
Em certas regiões da Califórnia, existem clãs e metades. Entre os Mlwok, de totetismo concepcional, fen6meno de ocorrência rara fora da Austrália.
por exemplo, todos os fenómenos naturais são repartidos ente as duas meta- Nas outras ilhas de Banks existe uma outra forma de associação entre
des, uma associada à água, a outra à terra. Os nomes pessoais são igual- indivíduo e animal. Esta associação mítica s6 é criada a pedido do indiví-
mente repartidos entre as duas metades e referem-se aos animais e vegetais duo e graças aos serviços de um mágico. O animal associado é uma espécie
que aí são classificados. O totem é geralmente designado por um termo que de duplo que ajuda magicamente o indivíduo. Estes fen6menos são corren-
significa 'cão', conotando deste modo a ideia de que o totem é o animal tes no mundo no que respeita ao totem pessoal ou espírito guardião mas
doméstico ou favorito do homem. As proibições totc!micassão pouco desen- nas I'Ihas de Banks, parece ser um animal especial e não a espécie toda ' que,
, volvidas na Califórnia. Na época em que estas sociedades foram estudadas, está associada a um indivíduo: este animal é respeitado, e da sua vida
as metades não eram forçosamente exog4micas. depende a do homem de quem ele é o duplo.
TUTliM 232 233 TOTIlM

Na Polinl!sia, o totemismo n40 I! nem muito difundido nem muito desen-
volvido. Em Tikopia, os habitantes est40 repartidos em quatro grupos não 1.6. Arrica
exogâmicos, estando cada um associado a um vegetal e a vários animais.
O consumo destes animais é proibido aos membros do grupo. Inversamente, O totemismo clânico está presente em numerosos povos da Africa Negra.
as plantas totémicas são consumidas livremente por todos: mas cada grupo • O tabu sobre a utilização ou o consumo da espécie totémica é frequente.
é obrigado anualmente a proceder a um rito agrário relacionado com a planta I Encontram-se em Africa quase todas as variedades de totemismo de que já
à qual está associado. Este modelo só vale estritamente para três das quatro falámos a propósito dos outros continentes. Totemismo classificatório: os
plantas: o inhame, o taro e a árvore-de-pão. Quanto à quarta, o coqueiro, I Dog0!1LPor exemplo, associam a cada grupo ex?gam~ u~a parte ~o corpo
não releva de nenhum ritual agrário por parte do seu clã, mas os seus mem- • humano, uma estrela ou uma constelação, e espécies ammals e vegetaIs. Tote-
bros só podem utilizar o seu fruto se obedecerem a «certos tabus». Esta -mismo parcial: os pastores de Leste têm como tótemes a vaca de uma certa
curiosa complementaridade entre ritual e proibição alimentar constitui uma cor, a vaca prenhe de um segundo vitelo, a vaca de chifres rectilíneos, etc.
notável característica do sistema totémico de Tikopia. Totemismo bilinear: os· Ashanti têm um duplo sistema de proibições toté-
micas, uma matrilinear, a outra patrilinear. Atentemos, no entanto, em certas
1.4. Indonésia crenças específicas de Africa. Entre os Edo da Nigéria, a espécie totémica
é tabu, e a esposa não pode nem cozer nem consumir o totem do seu marido;
mas o totem será ritualmente levado aos lábios durante certas cerimónias,
Quando os clãs existem, como em Sumatra, estão geralmente associados
entre as quais as fúnebres. Os Senufo acreditam na transmigração das almas
a tótemes. Em Bornéu, os Iban ou Dayak marítimos têm uma espécie de
entre os homens de um clã e os seus animais totémicos. Entre os Nuer,
espírito guardião a que eles chamam nyarong. É durante um sonho que surge
o nyarong muitas vezes associado a um antepassado do sonhador. Nem toda o homem respeita profundamente o seu animal totémico: evita fazer-lhe qual-
a gente tem um nyarong: para obter o sonho que o revela, os jovens vão quer mal, não consome a sua carne, saúda-o quando o encontra, e faz um
simulacro de enterro quando encontra o seu cadáver. Este respeito é recí-
dormir sobre o túmulo de um homem importante ou na floresta. O que
tiver recebido a sua revelação sai a caçar para matar o animal que reconhe- proco: o animal, mesmo quando se trata de um animal feroz, não faz mal
cerá como seu através de um sinal insólito. Depois abster-se-á de matar qual- ao homem de quem ele é o totem. Estas crenças são correntes, mas, entre
quer outro animal dessa espécie, testemunhando assim o seu respeito pelo os Nuer e noutras populações africanas, o respeito dos humanos vai ao ponto
nyarong que lhe assegurará ajuda e protecção. Os seus descendentes 'respei-
de efectuarem sacrifícios, de dirigirem orações ao espírito do totem e a dedi-
tam muitas vezes as mesmas proibições sem no entanto beneficiarem de uma carem gado. É o caso dos da linhagem do crocodilo, que mungem as vacas
idêntica protecção. consagradas ao espírito-crocodilo e deitam o leite num rio habitado por cro-
codilos: ou ainda os da linhagem da pitão, que sacrificam uma cabra ao
espírito desse animal, atiram um pedaço a um curso de água e deixam um
1.5. índia
\ mismo
outro naé margem.
levado a Aqui,
um extremo
aquilo a raramente atingido
que chamámos noutros
o aspecto luga,res.
religioso do tote-
Na índia o totemismo está difundido, por um lado, na maior parte do Na Africa Ocidental, acredita-se que todas as pessoas tenham o seu duplo
Decão, e por outro, no Assame. O totemismo individual está quase total- num animal selvagem, nunca num animal doméstico ou numa planta. Este
mente ausente e foi apenas registado um único caso. O totemismo ihdiano está aparentado com o homem, e o destino dos dois seres é solidário: a morte
consiste numa associaçãode clãs exogâmicos patri- ou matrilineares com espé- de um tem como consequência fatalII1entea morte do outro. A crença baseia-
'cies animais ou vegetais, bem como com um número incrível de objectos -se na ideia de que uma das almas humanas, a alma da selva ou a alma
I heter6clitos. Muitas vezes os tótemes são objecto de proibições estritas que exterior, vive no animal. Tal como no caso do espírito guardião da Amé-
protbem qualquer utilização. Mas os outros costumes relativos ao totem ocor- , rica, o homem abstém-se de matar ()u de fazer mal aos animais da espécie
rem excepcionalmente: reverência ao totem, saudação, funerais, cerimónias, que lhe está associada. No entanto; o animal não parece desempenhar um
representação, etc. Não existe em parte alguma o ritual de multiplicação papel de protector do homem. .
do totem. Vários autores chamaram a atenção para a fraca importância do
aspecto religioso do totemismo na índia e julgaram ver nesta instituição uma
maneira de reforçar a exogamia do clã. 2. Historial das teorias sobre o totemismo

O termo 'totem' surge pela primeira vez na literatura etnográfica no livro


do intérprete índio Long, publicado em 1791. 'Totam', 'toodaim' ou
'dodaim' é um termo ojibwa pelo qual os Peles-Vermelhas designavam o
TOTEM 234 235 TOTEM

scu lotcm de chl: todavia, sob este termo, Long descrevia na realidade o espí- essencial do toternismo, que consiste na concepção do elo entre sociedade
rito guardil10 ou totem individual. A palavra 'totem' é reutilizada no início humana e espécies naturais, permanece por resolver. Neste sentido, a expli- ••

do sc!culo XIX por diferentes autores que estudam os índios. Em 1841, cação proposta por Haddon permite ir um pouco mais longe: cada um dos
(,corge Grey, antigo governador da Austrália do Sul, publica o seu diário grupos humanos localizados se alimenta de preferência da espécie animal
de viagem onde descreve as instituições dos aborígenes do Sudoeste. Nessa ou vegetal mais abundante no seu território, e ao trocar o seu excedente
c!pocu,u Austrália só era colonizada pelos Europeus há meio século. As obser- alimentar com os grupos vizinhos, teria acabado por ser chamado pelo nome
vaç/'lesetnográficas de Grey estão, pois, entre as primeiras, e a sua pertinên- dessa espécie e por ser identificado segundo a designação de «os comedores
da é notável. O contributo de Grey pode resumir-se em três pontos: 1) os de ... ". O principal defeito da teoria de Haddon reside no seu carácter pura-
aborígenes estão distribuídos em .<famíllas»(a que chamaremos clãs) matrili- mente especulativo: não se pode citar nenhum exemplo etnográfico em seu
neares e exógamasj 2) cada "família» fem como brasão um animal ou uma favor, e os grupos totérnicos reais, ou seja, os clãs, estão geralmente asso-
planta chamada kobongj além disso, "existe um elo misterioso entre a família ciados a territórios demasiado exíguos para que possa existir uma especiali-
e o seu kobong, tal que um membro da família não matará jamais um animal zação alimentar, tal como essa teoria a imagina. Todavia, a ideia de que
da espécie a que pertence o seu kobonlJ,. .. Do mesmo modo, um indígena o toternismo tenha as suas raizes em preocupações alimentares, ou mais gene-
que tenha por kobong uma planta não qeverá colhê-Ia sob nenhum pretexto»j ricamente econ6micas, da sociedade será retomada pelos funcionalistas e pelos
3) os costumes (transmissão, exogamia, interdito alimentar) relativos ao kobong te6ricos alemães partidários dos Kulturkreisen. As teorias nominalistas bem
são idênfÍCos aos dos índios da América relativamente ao totem. Eis, pois, como ade Haddon procuram razões positivas para o estabelecimento do tote-
dados de 'uma só vez os elementos essllnciais que estarão na base das refle- mismo e não podem dar conta de modo imediato daquilo a que se chamou
xões de uma ou de duas gerações de antropólogos. Todavia, lltribui-se geral- o seu carácter religioso: para explicar por que razão existe uma proibição
mente a ••descoberta» do totemismo li. John Ferguson McLennan, autor de sobre o animal que não teria sido inicialmente outra coisa além de um nome
ou de um alimento, as teorias precedentes devem socorrer-se de outras con-
oumtítulo
ensaló
Pn publicado emo/1869.-70,três
the Worship Anlmals and qécadas depoisand
'Plants: Totem do diário ~e Gre~,
TotemlSm. com
A unpor- siderações.
tância histórica do ensaio de McLennap. explica-se por uma série de factores Certos antrop610gos, pelo contrário, dirigiram-se imediatamente ao tote-
convergentes. Antes de mais, ele aparece no momento do desenvolvimento mismo como a um fen6meno religioso. Para Tyl()r ou Wilken, trata-se de
da antropologia social: os anos que se seguem vêem a multiplicação das refle- uma forma de culto dos antepassados cujas almas teriamreincarnado em
xões comparativas e das especulações sobre as origens das instituições sociais animais ou plantas: a crença na IIIletê"xni>si~osi1explicaria simultaneamente
simultaneamente com o desenvolvimento das observações etnográficas. Por o parentesco imaginado entre os homens e os animais, assim como o culto
outro lado, McLennan é considerado como um dos fundadores da antropo- que é prestado a estes últimos. Esta teoria apoia-se sobretudo em factos indo-
logia social, e as suas teorias serão durante muito tempo discutidas no mundo nésios, e contra ela se fez valer que, ~~<ie_a crença na reinc~!laçãº.era
científico. Por último, o seu ensaio sobre o toternismo, como o título indica, _ corrente, particularmente na Indonésia, o totemismo era pouco desenvol-
acentuando o carácter religioso da instituição, encontrava uma recepção favo- vido, enquanto o inverso prevalecia nà América do Norte e na Austrália.
rável numa época assaz interessada nas origens e na evolução da religião no Por último, a reincarnação da alma numa forma animal e a identificação
mundo. Para McLennan, o totemismo constitui um estado da evolução atra- de um homem com o seu totem animal representam duas formas de relação
vés do qual a humanidade passou, e a partir do qual se desenvolvem siste- privilegiada do homem com o animal, e não se vê a priori por que razão
mas religiosos mais aperfeiçoados. se deveria fazer derivar uma da outra e não o inverso.
Depois do ensaio de McLennan, as teorias antropol6gicas sobre a ori- Outras teorias sobre a origem do totemismo apoiam-se directamente em
gem do totemismo multiplicam-se. Entre 1870 e 1920 podem contar-se cerca observações etnográficas da época. Americanistas como Boas ou Hill Tout,
de quarenta: não falaremos senão das principais. Herbert Spencer, John J.ob- ao constatarem a importância entre os índios dos espíritos guardiães que
bock e Andrew Lang propõem ~xplicações de tipo nominalista: os tótemes coexistem com os t6temes clânicos, fazem derivar os segundos dos primei-
teriam sido no início apenas nomes de animais através dos quais eram desig- ros: o totem de clã seria o espírito guardião de um antepassado influente
nados os diferentes grupos ou indivíduos em função da sua semelhança com que o teria legado aos seus descendentes. Frazer, cuja obra em quatro volu-
tal ou tal espécie animal. Só posteriormente, em virtude da indeterminação mes Totemism and Exogamy ficará provavelmente como a mais importante
das línguas primitivas, ou então em virtude do elo místico que se pensa publicação sobre o assunto, defendeu posteriormente três teorias. A primeira
existir na mentalidade primitiva entre nome e coisa nomeada, é que o totem está próxima da teoria da reincarnação. As outras duas seguem de muito
teria sido investido de uma significação religiosa. O problema principallevan- perto a descoberta das instituições totémicas dos Aranda na obra de Spencer
tado por este estilo de explicação é o de saber por que razão os grupos huma- e Gillen (The Native Tribes o/ Central Australia, 1899). A excepcional impor-
nos foram designados por nomes de espécies animais e não por qualquer tância que revestem na época as crenças dos Aranda para a discussão do
outra espécie de nome: por outras palavras, pode objectar-se que o problema totemismo provém de um facto e de um preconceito te6rico. O facto é que,
TOTEM 236 237 TUTHM

em 1900, ao contrário das outras populações conhecidas da Austrália, os mismo. A força da abordagem durkheimiana do fen6meno totémico é dupla.
Aranda quase não foram atingidos pela colonização: podemos, pois, esperar Por um lado, liga indissoluvelmente o totemismo à forma particular da socie-
.' encontrar entre eles instituições imunes à contaminação por parte da civili- dade: a organizaçãOem clãs. Por outro lado, pressupõe que é o pr6prio social
zação. O preconceito te6rico consiste em acreditar que, pelo facto de esta que gera o totemismo sem ter necessidade de fazer apelo a qualquer cos-
população habitar o centro desértico do continente, não pôde evoluir num tume estranho ou ex6tico. O totemismo não provém já das fantasias ou dos
meio tão desfavorável e é por essa razão uma das mais primitivas. A segunda erros de um pensamento primitivo o balbuciante. Através do clã, é a socie-
teoria de Frazer apoia-se directamente na descrição das cerim6nias intichiuma dade que se adora a si pr6pria, mas,: como a origem do sentimento divino
dos Aranda, nas quais cada um dos clãs totémicos tem a tarefa de multipli- que o grupo suscita não pode ser claramente captada pelos seus membros,
car magicamente a sua espécie totémica: o totemismo teria consistido na sua esta adoração é desviada. para a representação do clã, o emblema tt>témico
origem numa espécie de divisão interclânica das tarefas mágicas necessárias e as espécies animais. A despeito do seu engenho, a explicação proposta
à sobrevivência da tribo. A terceira teoria de Frazer apoia-se no facto de por Durkheim tem limites. O caráeter religioso do totemismo parece ser
o totem dos Aranda não ser hereditário, mas de tipo concepcional: na igno- muito exagerado: os documentos austrUJianossobre os quais se baseia a expo-
sição são fortemente solicitados no sentido da religião. Mas a principàl objec-
seus primeiros sinais de gravidez pela introdução de um animal ou de uma ção não reside nisso. Durkheim propÕe uma divisão do totemismo ~m que

I planta do seu ambiente mais pr6ximo.


rância dasinício
Neste causasdereais da muitas
século maternidade, a mulher
outras teorias grávida
foram teria eXPlicàd.
formuladas, o os
mas falta-
é a relação da sociedade consigo prÓpria que é fundamental: o recurso a
espécies animais para representar o clã surge como uma solução puramente
-nos espaço para delas darmos conta. Todas se propõem o mesmo ~bjec- contingente. A relação com a natureza está quase excluída da análise. Para
tivo - encontrar a origem do totemismo. Todas apresentam a mesma estru- Durkheim, a sociedade pensa-se a si pr6pria no totemismo, e se esta rela-
tura e sofrem do mesmo defeito. Tomam como ponto de partida um único ção reflexiva da consciência social consigo pr6pria é mediatizada peia natu-
aspecto do totemismo (o totem como nome, o totem como alimento, etc.) reza, é porque os agentes sociais não podem ter uma consciência clara da
ou ainda uma das suas manifestações particulares (o espírito guardião, o tote- sua sociedade. Mas por que razão artimais e vegetais? A posição durkhei-
mismo concepcional, etc.), e, a partir deste ponto de partida muitas vezes miana sobre o totemismo constitui um pouco um paradoxo na hist6ria das
bastante an6dino, contam-nos de certa maneira uma pequena hist6ria que ideias. Os primeiros te6ricos tinham concebido o totemismo antes de mais
se poderia intitular: Como foi inventado o totemismo. .. Por essa ~zão a como um culto animal: inversament~, no início da sua explicaçãoj Durk-
hist6ria contada toma sempre a forma de uma série de acontecimentos itnpre- heim exclui toda e qualquer referência ao mundo animal, e seguidamente
visíveis e muitas vezes incoerentes, com tantos acrescentos sucessivos ~uan- tem alguma dificuldade em reintegrd-la.
tos os diversos aspectos totémicos que não estão contidos no ponto dê par- Um dos momentos mais curiosos ·,da hist6ria do totemismo él) do seu
tida a fim de reconstituir a imagem completa do totemismo. O pOI\to de encontro com a psicanálise. Na sua libra Totem e Tabu (Totem unJ, Tabu),
. Freud encara essencialmente o totemismo como um duplo sistema de proi-
1 partida da hist6ria
o totemismo é amiúde
nasce da ridículo:
fantasia das paragrávidas.
mulheres Frazer (na sua terceira
A ideia pode ser teoria)
tliver- biçOes':-proibição do incesto (não se t>ode casar com uma pessoa que tem
tida, mas, para Frazer, ela parece mais s6lida do que a de uma divisão ,'social o mesmo totem) e proibição de matAr o totem. A partir desse momento,
das tarefas mágicas, porque, precisamente, ela é mais simples. Esta sImpli- a relação com as ideias essenciais da )sicanálise impõe-se por si mesma. As
cidade passa por um carácter distintivo do pensamento primitivo. Mas é duas proibições totémicas são paraleJ:.\saos dois interditos do complexo de
a· antropologia da época que ainda é primitiva. As pseudo-explicaç~s do Édipo: a proibição de casar com uma ~ulher do mesmo totem (muit~s vezes
totemismo não fazem mais do que contar historietas: nenhuma delailcolis- matrilinear) corresponde à proibição J<!b incesto materno, e a proibição de
titui verdadeiramente uma teoria, nenhuma se preocupa em tirar um~ sig- matar o totem (muitas vezes identific.do com o antepassado do clã)' corres-
niflcàÇão profunda dos fen6menos totqnicos. . ponde à proibição do assassínio do pai. Se os dois interditos funliamen-
Na sua obra Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, purkheilll f sem tais da sociedade primitiva são idênticoS aos dois mandamentos do Supereu,
dúvida o primeiro a fornecer uma verdadeira teoria do totemismo. Segundo é porque os dois desejos reprimidos do complexo de Édipo se encontram na
ele, s6 a sociedade está apta a despertar a sensação do sagrado e do divino. base das instituições primitivas totémicas. No entanto, o paralelismo entre
O deus do clã não é mais do que o pr6prio clã, mas hipostatizado e repre- totemismo e complexo de Édipo não ~ perfeito: as sociedades totémicas típi-
sentado sob as espécies sensíveis do vegetal ou do animal que serve de tOtem. cas estão organizadas em clãs e, neste regime de fIliação unilinear, o pai
O emblema totémico é como o corpo visível do deus, e os animais e os yege- e a mãe não podem pertencer ao mes'mo clã. Se se trata de um clã matrili-
tais da espécie totémica participam do sagrado, o que explica a proibição de near, a proibição de casar com uma pessoa do mesmo totem significa real-
mente que um homem não poderá casar com a sua mãe que pertence ao
_!J!i.cocomo a expressão\religiosa\ da socieda~e primitiva dividida em clãs, for- seu clã e ao seu totem, mas a proibição de matar o totem não pode remeter
Ique
neceeles
umasão objecto.
síntese Na medida
elegante em aspectos
dos dois que Durkheim
- socialconcebe o sistema
e religioso toté-
- do tote- para o desejo de matar o pai que pertence a um outro clã totémico. Se se
T()TEM 238 239
.. TOTEM .'
IruIu de um clã patrilinear, o problema é inverso. Por isso, Freud. não pode australianos. Tanto para um como para outro, o totemismo é a religião mais
upoiur-se completamente na etnografia das .sociedades: ~ nec~ssárlo ~ressu- primitiva: é neste contexto evolucionista que o estudo do totemismo assume
por um estado anterior ~~ sociedad~. É aquI que ele.faz Intervir a teoria dar- toda a sua significação. Trata-se de esclarecer as origens da religião: para
winiana da horda primitiva: nas origens da humamdade, os velhos machos Durkheim é o próprio objecto do seu ensaio, mas também Freud visa expli-
ler-se-iam apoderado de todas as mulheres, deixando os filhos sem compa- car o desenvolvimento ulterior das religiões a partir das suas origens toté-
nheiras. Depois, a explicação freudiana continua sob a forma de um pequen? micas. A convergência de pensamento dos dois autores está patente até nos
conto: «Um dia, os irmãos afastados reuniram-se, ma~aram e comer~ o pai, pormenores, como por exemplo no renovado interesse pela «refeição toté.
o que pôs fim à existência da horda paferna». SegUidamente, o s~ntimento mica» através da teoria de Robertson Smith. Este último tinha formulado
de culpabilidade dos filhos teria gerado 10Sdois tabus funda~entals do tote- em 1899 ,a ideia assaz engenhOSade queo sactificJoconsistia na origem numa
mismo, fundamento da moral humana, mas também da sO~ledade: Porque comensalidade dos homens e dos deuses: oferecendo uma parte do animal
foi apena~ neste momento que se atingirqm as sociedades reais descritas ~e~~s sacrificado ao deus e consutnindo o resto, os homens afirmavam o seu paren.
etnógrafQs. A avaliação de TOlem e Tablf depende evid~ntemente da 0plmao
que se tem da psicanálise. Se excluirmos Géza Rohelm, que consagrará a tesco com o deus e tinham a garantia da sua ajuda. Smith tinha até imagi-
nado que o totem devia ter sido ele próprio objecto de um repasto sacrifi-
sua vida à antropologia psicanalítica e que retoma~á ~s teses de Freud num~
obra enOrme sobre o totemismo australiano, a maIOria dos antropólogos vai cial. A descoberta, uma dezena de anos mais tarde, das cerimónias intichiuma,
de que já falámos, parecia fornecer uma confirmação clamorosa da teoria
ajuizar dernodo muito negativo o ensaio de Freud. ~esm.o <:Iue. s~ reconheça
o valor ciéntífico da psicanálise para o estudo da pSicologiaIndlvl~ual, a sua de Smith: no termo desta cerimónia, os anciãos, que nela presidem, conso-
mem uma parte do seu totem. Durkheim retoma a ideia e vê na inlichiuma
, utilização na abordagem da etnologia levanta pro~lemas .. F~e~d J~ga co.ns-
tantemente sobre a equação contestável que identifica primitiVO, Infantil e todos os princípios essenciais do sacrifício. Freud dá muito crédito à teoria
nevro.'t1'co"E , na história da humanidade que ele nos conta, reconhecemos
_ de Smith e desenvolve a ideia da refeição totémica que se seguiria ao assas-
sem dificuldade as fases da história individual: TOlem e Tabu. par~e n~o pas~ar sínio do pai-totem: a ambivalência dos sentimentos - o luto do animal-totem
de uma projecção sobre a história social dos dados da hlstó~~apSlcoI6.glc~ condenado à morte e a alegria da festa no momento do banquete totétnico _
individual tal como ela é revelada pela psicanálise. Para um SOCIO~O~O, é difícil remete para a ambivalência dos sentimentos relativos ao pai.
conceber ~s sentimentos como origem única das instituições SO~laIS:uma das O período que antecede imediatamente a Primeira Guerra Mundial é
regras de ouro do método sociológico for~ulado.por Durkhelm é o de que aquele em que o totemismo recebe o máximo de atenção. Nunca ele voltará
o social se explica pelo social. Os dados do InconSCientepostos a nu por ~reud a ter tanto prestígio: depois da guerra suscitará um desinteresse crescente
e pela sua escola enraízam-se em práticas sociais da sociedade europela do até ao momento actual, em que o termo já quase se não utiliza. Dois facto-
fim do século passado: o complexo de Édipo interpret~-se melh?r e~ função res principais explicam esta evolução. O primeiro reside na dificuldade em
das características particulares da família, numa socIedade hls~orlcamente dar uma defmição precisa do totetnismo. Os diferentes fenómenos que foram
determinada, do que como um traço psicológico universal. Por IS~Os~ P?de classificados como totémicos apresentam poucas características comuns:
considerar que Freud ultrapassa largamente o campo d.asua com~~encla cien- a crença num parentesco com o totem é pouco divulgada, a proibição de
tífica quando pretende explicar a evolução da família e da relIgião através matar o totem não é de modo algum universal, a lei da exogatnia totémica
de dados tirados da psicologia individual. . tem excepções, etc. Muitas vezes, o totem aparece apenas como um nome.
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, nunca o totemlsmo terá pare-
Se se quiser ver no totemismo outra coisa para além de um sistema de deno-
cido tão importante para o pensamento europeu: .em 1910 surg~ a obra minação derivado do reino animal e vegetal, é necessário dar uma definição
monumental de Frazer que resume todos os conheCimentos etnograficos da
mais restrita que inclua outros costumes mais significativos, como por exem.
época; em 1912 aparece o ensaio de Durkheim, e em 1913 o de Freu~. ~ote- -. pio o tabu alimentar sobre o totem: quando estes costumes não estão em
-se que o totemismo não interessa apenas os antropólogos: os estudiOSOSda
":( ;, vigor, poder-se-á admitir que estamos perante um totemismo degenerado
pré-história discutem sobre o tot~tnismo e tent~~ encontrar ~astos dele ~os e que a denominação totémica é apenas a sobrevivência de um sistema toté-
documentos paleolíticos; os histOriadoresdas reItgloes, os .helemstas.e os eglp-
mico anteriormente mais rico de significações. Uma tal perspectiva não
tólogos tomam conta do problema; mais tar~e, um fIlosofo de ta.o gran.de
levanta problemas para uma abordagem evolucionista. Mas isto leva-nos ao
nomeada como Bergson oferecerá o seu contrlbut? Quanto aos dOISe~salos
mais célebres os de Durkheim e de Freud, surgidos com um ano de Inter- segundo factor que explica o desinteresse crescente pelo totemismo: é o aban-
valo, ambos ~artilham a mesma abordage~ ev~lu~i.onistaque prevalece na dono de toda a abordagem evolucionista. Na sua grande maioria, os sábios
época. As sociedades australianas são as maISprlmltlV~S,e o seu estudo per- do período precedente eram evolucionistas: nem Frazer nem Durkheim nem
mite reconstituir as instituições mais antigas da humamdade: de onde a aten- mesmo Freud duvidavam que o totemismo representasse uma fase univer-
ção privilegiada prestada por Durkheim e por Freud aos factos etnográficos sal da história humana. É em virtude desta ideia que o estudo do tote-
TOTEM 240 241 nlll1M
f
universal: os fen6menos totémicos estão associados aos diferentes Kullur-
mismo apresentava um interesse gemI. A partir do momento em quc esta
instituição, inversamente, parece scr apenas apanágio de algumas popula- kreisen. O carácter fortemente apologético e totalmente especulativo desta
Ól,
escola reduz consideravelmente o seu interesse.
ções, o seu estudo rcvcste cxclusivamente um interesse local, por assim dizer
exótico. Na América, o totemismo nunca gozou de grande fortuna. Vimos que
as únicas teorias americanas sobre o totemismo o faziam derivar dos t6te-
O livro de Van Gennep L' état actuel du probleme totémique (1920) é um
mes individuais, isto é, os espíritos guardiães. Em 1910, Goldenweiser (que
bom ponto de referência. O autor faz justiça de todas as teorias que prc-
tendiam encontrar o totemismo na Pré-hist6ria e na Antiguidade; por outro viria a mudar de opinião pouco tempo depois) contestava a unidade dos fen6-
menos totémicos e negava ao termo 'totem' qualquer validade científica.
lado, dá conta do facto de o totemismo não ser de modo algum universal
Através de antrop610gostão influentes como Boas, Kroeber ou Lowie, o rela-
entre as populações ditas primitivas. Para os antrop61ogos evolucionistas de
tivismo cultural, o historicismo e o empirismo que caracterizavam a antro-
antes da guerra, as sociedades mais primitivas eram as dos Australianos e
pologia americana deviam levar rapidamente à liquidação do problema toté-
de certos índios da América do Norte, caçadores-recolectores que não pra-
i mico. Citemos Lowie que, para evitar o termo 'totem', pergunta se não nos
ticavam qualquer forma de agricultura ou de criação de gado. Estas etnias
podemos contentar em observar que alguns grupos sociais no interior de
eram geralmente organizadas em clãs totémicos. Por isso, se bem que com , uma tribo se diferenciam frequentemente através de nomes muitas vezes tira-
modalidades diversas segundo os autores, o evolucionismo estava geralmente dos dos reinos orgânicos, através de emblemas heráldicos de origem aná-
ligado à ideia do carácter primitivo dos clãs e do totemismo. O aprofunda- loga ou através de tabus distintivos, etc.·
mento dos conhecimentos etnográficos revela que os caçadores-recolectores A escola de pensamento mais influente entre as duas guerras é a do fun-
de outras regiões do mundo não conheciam nem os clãs nem o totemismo: cionalismo, teorizado por Malinowski e Radcliffe-Brown. Malinowski limitou-
basta citar os Pigmeus da Africa e da Asia. Deste modo, tornava-se fácil -se a algumas observações gerais sobre o totemismo: este teria naturalmente
refutar a universalidade das teses que tinham constituído a gl6ria da antro- a sua origem na utilidade alimentar das espécies animais e vegetais; o aspecto
pologia evolucionista. . cultural do totemismo visa antes de mais controlar as espécies llteis ou pre-
Mas o abandono de toda a perspectiva evolucionista não obedece,unica- · judiciais; finalmente, cada ritual de lnultiplicação das espécies deve tornar-
mente a preocupações de ordem científica: está relacionado com um jogo -se, por via de especialização, privilégio de uma família cujo clã não é senão
complexo de factores gerais da evolução do pensamento ocidental. Um dos' uma forma alargada, o que dá conta do aspecto social do totemismo. Nada,
factores é político. No século XIX, na época do capitalismo triu~fante, portanto, de muito inovador nestas bbservações, a não ser uma concepção
o evolucionismo s6 pode aparecer à classe dominante como uma visão satis- bastante linear da organização dos tlãs. Radcliffe-Brown dá uma aborda-
fat6ria da hist6ria da humanidade: progressão linear das sociedades ~rimiti- gem um pouco mais consistente do totemismo, graças.à influência muito
vas ou selvagens para sociedades civilizadas cujo estádio superior é consti- profunda do pensamento de Durkh~im e também dos seus pr6prios traba-
tuído pela sociedade capitalista burguesa. Mas quando o marxismo recupera lhos sobre a Austrália. Radcliffe-Brown retoma o problema onde este tinha
para si as teses de Morgan, um dos mais famosos antrop610gos evohicionis- sido deixado por Durkheim: porquê animais e vegetais? Porque são úteis
tas, e prolonga a evolução social para além do estádio capitalista, o, evolu- ao homem, sobretudo a populações' que vivem da caça, da çolheita e da
cionismo já não é aceitável por parte da burguesia. A ameaça implícita colecta. Radcliffe-Brown estabelece como lei sociol6gica geral que qualquer
contida nas teses evolucionistas concretiza-se em 1917; além disso, o evolu-
cionismo de Morgan, revisto e completado por Marx e Engels, torna-se refe- \ uma população
objecto tende a tornar-se
ou acontecimento que temum lobjecto de atitudesobre
e~~ltosimportantes ritual.o O totemismo
bem1estar de
rência principal do pensamento soviético em matéria de antropologia, Note- · é apenas uma das formas possíveis de~ta relação ritualizada do horrlem com
mos de passagem que o único país onde ainda se fala abundantemente de
totemismo depois da guerra é a URSS: os etn610gos soviéticos procuram · aaspecto
natureza. Aodojuntar
social a segmentaçã<lda
totemismo. ChamaQ-tpsasociedade em clãs,
atenção para dá-se
o facto de tiçonta do
solução
ainda encontrar sobrevivências totémicas nos povos da Sibéria. Mas, no Oci- , proposta por Radcliffe-Brown diferir trluito pouco da de Malinowslti; A prin-
dente, o evolucionismo social é em toda a parte substituído por norás esco- ! cipal diferença reside na ideia do c'1'ácter necessariamente ritualizado das
las, e é em função destas que convém analisar o destino do totemismo. ! espécies naturais economicamente impClrtantes.Mas a ideia apresentada como
uma lei universal é pouco defensável: em muitas sociedades os rituais mais
Nos países
sentante de língua alemã,
mais conhecido a escola
é Wilhelm dominante
Schmidt. é a de
São duas as Viena, cujd repre-
ideias diJettrizes: espectaculares são na verdade relativos aos alimentos de base, mas noutras
por um lado, a dos Kulturkreisen, que impede que se tenha uma vlslio uni- passa-se exactamente o contrário. Pot isso, os animais que surgem mais vezes
forme da evolução cultural; por outro, a ideia de que as instituições mais nas listas totémicas australianas não 'são de modo algum artigos alimentares
primitivas são a monogamia e o monoteísmo que diferentes investigadores importantes, mas animais de valor simbólico, tal como a gralha oU a águia.
tentarão descortinar entre os Pigmeus e entre outros caçadores-recolectores. Abundam os exemplos similares, e' os etn610gos não terão dificuldade em
Daqui se conclui que o totemismo não é para esta escola nem primitivo nem refutar a validade da explicação funcionalista. Um dos outros aspectos da

16
TOTEM 242 243 TOTEM
\'

lrllrlll de Rlldcliffe-Urown é o de colocar o totemismo no quadro mais geral das da análise de Totémísme aujOl4Y'd'hl4i:quando, em ta pensée sauvage, Lévi-
dllNrl'lll<;ôeNritulllizadas do homem com a natureza. ~ curioso ver como -Strauss toma em consideração as proibições alimeni:ares-qiié-díiem-respeito
11 IlllellliNlllonAoplIrece encontrar teoria que lhe sirva: por um lado, o empi-
aos tótemes, é para as reduzir a signos de uma lógica que pode funcionar
riNlllo americano fragmenta-o numa multidão de parcelas heterogéneas de tanto com a ajuda de comportamentos como de imagens. A solução estrutu·
que N6o seu estudo teria sentido; por O\~tro,o funcionalismo inglês dissolve-o ralista do problema totémico só é puramente intelectual porque o totemismo
.na generalidade vazia de leis pretensamC1nteuniversais. As duas atitudes ted- foi inicialmente reduzido a um fenómeno exclusivamente intelectual: homo-
ricas nAo silo aliás de maneira alguma 4ncompatíveis. Radcliffe-Brown que, logia en~re dois sistemas de diferenças, correspondência entre uma série ani-
, no entanto, queria apresentar uma teoria do totemismo, afirmou que este mal e uma série humana, etc. Se o totemismo é deste modo amputado da
não era uma realidade, mas apenas um nome dado a numerosas instituições riqueza de práticas e de atitudes que a elas se ligam, não nos devemos sur-
diferentes que têm ou parecem ter todas um elemento comum. preender que a solução proposta seja tão vazia de conteúdo. O que é que
Na ausência de uma teoria geral u~ficadora, é preciso fazer justiça aos 1\se compreende do totemismo quando dele se diz que apenas exprime corre·
antropólQgos que, como Elk.in, Firth, Evans-Pritchard, etc., oferecem infor- ilações e'oposições? Não é istp válido para todos os sistemas simbólicos e para
mações Illais precisas sobre os diferentes aspectos regionais do totemismo. todos 08 modos de pensamento? A solução apresentada por Lévi-Strauss é,
Mas o fenómeno totémico surge fractlirado noutras tantas variantes regio- com efeito, geral, mas podemos interrogar-nos se, a este nível de generali-
nais: até o excelente estudo de Elk.in sqbre o totemismo australiano desem-
boca na fdeia de que existem diversas wrmas de totemismo, entre as quais odade, el~ continua
caminho a ser ooperativa.
ao dissolver totemismo Vimos como Radcliffe-Brown
em considerações tinha aberto
gerais e vazias: Lévi-
não se peteebe muito bem a relação. " -Strauss prossegue posteriormente nesta direcção. A semelhança entre as duas
No seó' livro Le totémisme aujourd'Jlui (1962), Lévi~Strauss analisa esta abordagens tedricas é clara: a sua diferença provém apenas do nível diferente
longa evolução das ideias para concluir" que o totemism.o-é-uma «ilusão». em que se procura a generalidade, a utilidade ou a inteligibilidade.
Para tanll) basta-lhe retomar os argumep.tos dos empiristas americanos, bem Um ano antes de Totémisme aujourd'hui, surgia uma obra muito diferente
como as óbservações de antropólogos cépticos quanto à unidade dos fenó- na sua orientação, L'origine de l'exogamie et du totémisme de Raoul e Laura
menos tQtémicos. Para acabar com aquilo a que chama o «pretenso problema Makarius. O ponto de partida, que era já o de Robertson Smith, era o de
totémico», Lévi-Strauss propõe colocar-se a um nível de análise suficiente-
mente geral para que todos os casos observados possam figurar nela como na descendêncIa comum(omas tambémdenasangue,)
comurudade de alImellta.çª9. As
modos particulares. O exame de certos exemplos sugere-lhe que a denomi- f que a consan~inidade parentesco ~ão é basea~a u"ru,'cam,
ente
observações etnográficas mostram que a comensalidade (o acto de comer em
nação totémica cobre uma correspondência entre dois sistemas de diferen- conjunto) é concebida como criadora de consanguinidade. Disto decorre que
ças: diferenças entre as espécies naturais, diferenças entre os clãs. Algumas a exogamia deve incluir um aspecto alimentar: não é necessário ser-se comen·
, observações formuladas por Radcliffe-Brown, em 1951, permitem precisar sal para se poder casar. Para respeitar a proibição a que os Makarius cha-
as ideias; na Austrália, os tótemes de metade ou os tótemes sexuais expri- mam «li exogamia alimentar», a solução mais simples é a partilha de ali-
mem uma oposição entre espécies qué têm pelo menos um carácter comum mentos disponíveis entre dois grupos exógamos. A «grande partilha» divide
! que permite compará-Ias. ~ assim que um falcão e uma gralha se opõem
as espécies animais e vegetais em duas classes associadas às duas metades:
como um predador a um abutre: ambos são aves carnívoras. O trepador cada metade come as espécies da sua classe e proíbe a si própria as da outra.
e o morcego opõem-se enquanto são, respectivamente, um animal diurno Os autores passam em revista certos aspectos das classificações primitivas
e um animal nocturno: mas ambos são arborícolas, pois vivem nas cavida- para mostrarem que estas se podem interpretar como sistemas de listas ali·
des das árvores. Lévi-Strauss conclui que o pretenso totemismo apenas mentares. Falta dar conta do totemismo. Na «grande partilha», cada grupo
exprime à sua maneira correlações e oposições que poderiam ser formula- exógamo come as espécies da lista que lhe está associada: são as únicas espé-
das de outro modo; o seu carácter distintivo reside na utilização de uma cies permitidas. No totemismo, pelo contrário, é proibido consumir o totem
nomenclatura formada por termos animais e vegetais. Finalmente, contra· associado ao grupo. Para explicar esta dupla transformação - concentração
pondo a teoria utilitária dos funcionalistas à sua, Lévi-Strauss propôs a céle- e inversão dos tabus - os Makarius imaginam um processo de simboliza-
, bre fórmula: as espécies naturais não são escolhidas por serem «boas para ção que se teria efectuado a partir de uma troca entre as listas: cada grupo
comer» mas por serem «boas para pensar». teria dado aos outros uma espécie natural pertencente à sua própria lista,
Com efeito, é impossível não notar que o que sobressai na explicação e esta espécie (o totem) ter-se-ia tomado tabu para o grupo doador ao mesmo
de Lévi-Strauss é o seu carácter intelectualista. O totemismo é reconduzido
tempo que se lhe mantinha associada. Esta teoria leva a um ponto extremo
a um sistema de pensamento para o qual as espécies naturais não são por a explicação de tipo alimentar do totemismo. Mas este aspecto demasiado
assim dizer senão um pretexto: pretexto que serve para formular relações flagrante não deve esconder o que faz a força essencial desta obra: conce-
';:. de oposição e de complementaridade. Mas as práticas económicas e as ati- ber o totemismo como a síntese de três elementos - exogamia, classificação
/ tudes rituais que estão o mais das vezes associadas ao totemismo são excluí- e aspecto alimentar - que sempre tínhamos visto associados ao totemismo,
TOTEM 244 245 TOTI!M

mas de que nunca tínhamos captado a relaçllo íntima. Poucos investigado- aspecto novo. Os membros do clã pertencem a esse clã, tal como o totem:
res conseguiram conceber de maneira tllo nítida a relaçllo entre exogamia se é assim indispensável afirmar a propriedade sobre uns e outros, é para
e totemismo. Paradoxalmente, numa abordagem que atribui tanta impor- melhor sublinhar que é a eles que se renuncia. Os Arapesh da Nova Guiné
tância ao aspecto alimentar, é finalmente a explicação do interdito alimen- dizem:
tar no que se refere ao totem que permanece o ponto mais fraco. Com efeito, A tua própria mãe
na última fase da exposição, a explicação toma totalmente o aspecto daquilo A tua própria irmã
a que se chamou, a propósito das teorias da viragem do século, uma «histo- Os teus próprios porcos
Os teus próprios inllames que tu amassaste,
rieta», que poderia intitular-se: como os alimentos permitidos se tornaram Não os podes comef.
proibidos. " A despeito dos esforços desenvolvidos pelos autores para pro- A mãe dos outros
varem, através de numerosos materiais etnográficos, a realidade histórica da As irmãs dos outros
troca entre as listas, é evidente que esta visão é puramente especulativa. Os porcos dos outrOs
Os inhames dos outros que eles amassaram,
A necessidade teórica de uma tal troca apenas aparece em função da con- Podes comê-Ios.
cepção que os Makarius têm de uma grande divisão: porque existe uma \

inversão entre lista autorizada e totem proibido. Mas por que não conceber Não se pode mais claramente ex*essar a identidade entre a consumação
que na grande partilha as espécies associadas a cada grupo exógamo não do acto sexual e o consumo alimentar: identidade que fundamenta o tote-
eram permitidas, mas pelo contrário proibidas? Esta mudança de concep- mismo e a exogamia. Mas os aforimos arapesh exprimem também outra
ção não altera de modo algum as ideias essenciais desenvolvidas pelosMaka- coisa: a negação de que aquilo que me pertence seja para mim. Analogamente:
rius. Assim, no caso da grande partilha, de uma divisão dualista da socie- os meus tótemes, não os como. Parli melhor acentuar que se trata dos meus
dade em duas metades A e B, em vez de supor que A devia comer A com
exclusão de B, suponhamos que A não devia comer A, mas podia apenas tótemes,
nar direi: é a minha
uma sequência alimentaç!lo.
histórica Deste
de troc~para modoanão
explicar é necessál'~oimagi-
associação privilegiada
alimentar-se de B: nas duas hipóteses, existem exogamia e partilha alimen- que existe entre o clã e o seu totem, li despeito da proibição que pesa sobre
tar. Mas esta alteração aparentemente insignificante tem pelo menos duas
consequências fundamentais. Por um lado, suprime a necessidade de um a utilização
rior de uma deste
mesmaúltimo. Os doisrenUncia-se,
concepção: tej-tn~s da contradição
e s6 se podecoexistetli
renunciarnoàquI10
in~e-
recurso a uma hipotética troca para dar conta da inversão entre graride par- : que nos pertence. Finalmente, se sd,renuncia, é em favor do outrd, em seu
tilha e totemismo: entre os dois fenómenos já não existe mais do que uma I benefício. Compreende-se assim coIhp o totemismo - paralelamente à exo-
diferença quantitativa, e a «grande partilha» poderia muito bem chamar-se i gamia - poderia ser encarado no qUadro de uma teoria da reciprocidade.
totemismo múltiplo de metade ou classificação dualista. Por outro lado - e A obra dos Makarius não obteve a atenção que merecia. Em contrapar-
isto é o mais importante -, acentua-se ainda a analogia entre exogamia e tida, a Le totémisme aujourd'hui foi :'âtribuída uma importância relacionada
totemismo: tal como não se deve desposar uma pessoa do mesmd grupo, com o prestígio do seu autor, fundáidor do estruturalismo em antropologia.
Este ensaio devia exercer uma influ~ncia duradoura e suscitar urp consenso
também se não deve comer uma espécie alimentar do seu próprio grupo.
Perante a identidade dos dois fenómenos, é preciso concluir que ambcls'expri- entre a maior parte dos antropólogos que evitarão a partir daí ô j emprego
do termo 'totem'. Assinalemos, nó entanto, algumas vozes discordantes,
mem a mesma coisa, um no plano matrimonial, o outro no plano. alimen-
tar. Assim ,se confere o peso exacto ao conceito de exogamia alImentar. umas que por fidelidade ao espírito,'do funcionalismo recusam aüiterpreta-
Uma última observação: uma das dificuldades do totemismo prdvém do
merosas, vêm da Austrália e levant~in-se contra a liquidação dci roblema
facto de o totem, ao mesmo tempo que é interdito ao consumo,assumir ção intelectualista
totémico; Peterson, em
porproveito
exemplo,do, estudo das pelo
interessou-se atitudes; outraSj
totemismo euEais nu-
tual aus-
o carácter de alimento por excelência,'aquele com que se identific~ aquele traliano, insistindo no seu carácter 'Ibcalizado e tentou interpretá-Io como
que é o mais apto a ser caçado ou controlado, etc. E se a explicl'lçlioali- um mecanismo de distanciamento 'territorial.
mentar constitui a maior dificuldade da teoria dos Makarius, istQ~penas Só o futuro dirá se a Fénix remisterá das suas cinzas. Entretanto, pode
em aparência constitui um paradoxo: todas as teorias centradas ptincipal- resumir-se a situação actual do tot~mismo em relação às principais corren-
mente no carácter alimentar do totemismo tropeçaram na mesma dificul- tes de pensamento das últimas déçadas. Por um lado, o estrutura1i!mo, cuja
dade. O facto é que este aspecto é eminentemente contraditório: b totem influência é predominante na Europa, dava o golpe de misericórdia no tote-
representa o alimento do grupo que proíbe a si próprio o seu consumo. Ao mismo. Por outro lado, as escolas lÍntropológicas americanas, mais interes-
polarizar a atenção num dos dois aspectos, não conseguimos compreender sadas no estudo dos factos materiais - ecológicos e económicos -, negli-
o outro. A comparação com a exogamia permite encarar a questão sob um genciavam o estudo de sistemas simbólicos como o totemismo. Duas causas
independentes mas complementares que agiram no mesmo sentido. Por uma
ICIIIIM 246 PLANO DA OBRA

I 1111••_11 lWlIlII 11•• Ilr"1 lU", ~ finalmente a escola estruturalista, a mais indi-
111,111, .Irvlll •• fi" "1I11MoricUUtt;I'K:H, para o estudo dos sistemas simbólicos, quem
Volume 1 Memória·História
IIII1IM lollrlllcUlr Pl'lldlllllOIl n morte do totemismo. [A. T.).
Volume 2 Linguagem-Enunciação
Volume 3 Artes-Tonal/atonal
Volume 4 Local/global
Volume S Anthropos-Homem
I I D.f1nir d. modo pr.ciRo e exauRtivo o totemismo apresenta enormes dificuldades. De
f.uo, 01 .livenoR fenómenoR palentes nas populações .primitivas. (cf. primitivo) que foram c1as-
Volume 6 Orgânico/inorgânico-Evolução
.Ulu,lol como tot~micORapresentam poucas características comuns: a crença (cf. crenças) num Volume 7 Modo de produção - Desenvolvimento/subdesenvolvimento
partnl"co com o IOlem ~ eRCIRRamente difundida, a proibiçAo de matar o totem DAoé de modo Volume 8 Região
alllum univerllll, a lei da exogamia (cf. endogamia/exogamia, incesto) apresenta excepções; a isto Volume 9 Matéria-Universo
acrellCenta-ae a grande fortuna do termo, que hoje decerto nAo encontra a mesma aceitaçAo.
ARpróprias explicações do totemismo, demasiado variadas e contraditórias, reduziram-no até
Volume 10 Dialéctica
agora a um !en6meno nominalístico privado, pelQ menos na generalidade, de um sentido reli. Volume 11 Oral/escrito-Argumentação
gioso (cf. religillo), tal como outros o reduziram a uma pura preocupaçAo alimentar (cf. ali- Volume 12 Mythos/logos-Sagrado/profano
mentaçllo) ou mais correntemente económica (cf. economia, mas também caça/colheita). Sinteti- Volume 13 Lógica-Combinatória
camente, pode dizer-se que o totemismo mostra a ligaçAoentre a estrutura da sociedade humana
Volume 14 Estado-Guerra
e o mundo animal e vegetal, referindo-se também a partes do corpo (ce. soma/psique), orienta-
ções astronó,rncas (cf. astrologia), individualidades pessoais (cf. pessoa) como os espíritos guar' Volume IS Cálculo-Probabilidade
diAes, e fmalmente cores (cf. sentidos), e é síntese - nem sempre completamente verificllvel- Volume 16 Homo· - Domesticação - Cultura material
de trés elementos relacionados com vínculos e proibições: sexualidade, c1assificaçAo(cf. siste- Volume 17 Literatura-Texto
mática e classificação), aspecto alimentar. Por outras palavras, o totemismo constitui uma das
Volume 18 Natureza-Esotérico/exotérico
formas possíveis da relaçAo ritualizada (cf. ri/o) do homem com a naturtlia (ef. natureza/cultura),
e em todos os casos nAo parece poder reduzir-se - como o fez Lévi-Strauss - a uma expres-
Volume 19 Organismo-Hereditariedade
sAo de correlações e oposições que poderiam ser formuladas de outro modo. Volume 20 Parentesco
Volume 21 Método-Teoria/modelo
Volume 22 Política-Tolerância/intolerância
Volume 23 Inconsciente-Normal/anormal
Volume 24 Física
Volume 2S Criatividade- Visão
Volume 26 Sistema
·Volume 27 Cérebro-Máquina
Volume 28 Produção/distribuição-Excedente
Volume 29 Tempo/temporalidade
Volume 30 Religião-Rito
Volume 31 Signo
Volume 32 Soma/psiche-Corpo
VQlume 33 Explicação
Volume 34 Comunicação-Cognição
Volume 3S Estruturas matemáticas - Geometria e topologia
Volume 36 Vida/morte- Tradições·Gerações
Volume 37 Conceito-FilosoflalfJlosoflas
Volume 38 Capital
Volume 39 Sociedade-Civilização
Volume 40 Direito·Classes
Volume 41 Conhecimento
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