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SEGREDOS E MENTIRAS DO CURRÍCULO.

sEXUALIDADE E GÊNERO NAS PRÁTICAS ESCOLARES

Cuacira Lopes Louro

o que será que será


Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
. Porque todos os sinos irão repicar
(.)
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tern juízo
(Chico Buarque, O que será, 1976).

Uma pergunta é provocativamente repetida nUI~1adas musicas mais


bonitas e conhecidas de Chico Buarque: "o que será?': Para incitar sua
resposta, pistas se multiplicam nos vários versos, mexendo com represen-
tações de desejo e de prazer, falando de uma força que "bole por dentro" e
"brota à flor da pele"; de algo que faz "confessar" e "corar", de alguma
coisa que "desacata". A resposta mais imediata (ainda que talvez. não a
única) parece ser a sexualidade, representada aqui como uma energia, um
turbilhão de emoções e sensações que move todos indivíduos, independen-
te de sua vontade; uma força incontrolável e nunca saciada.
Se essa força, que "está na natureza", mas que \ambém "anda nas
cabeças" e "anda nas bocas", como diz Chico, se essa força "não tem gover-
no", "vergonha", nem "juizo", ela também foi, por outro lado, aquilo que,
historicamente, mais se buscou controlar e dirigir. A sexualidade foi o foco
para onde se voltaram os olhares mais vigilantes. Para ela e por ela foram
inventadas as mais diversas formas de controle e de governo. Não é à-toa
que os versos de Chico trazem tantas referências religiosas (ele diz que:
"nem dez mandamentos vão conciliar" e "mesmo o Padre Eterno que nun-
ca foi lá", "olhando aquele inferno, vai abençoar"). Sejam suas palavras
otimistas ou não, o fato é que seria impossível escapar da lembrança da
igreja como uma das fontes mais preocupadas em controlar esta sexualida-
de dita incontrolável. Mas a igreja não está sozinha nessa tarefa. O governo
não emana de um único ponto, ele é exercido por múltiplas forças e grupos
que regulam nossa existência. Outras instãncias e autoridades também se
consideram capazes de vigiar, julgar e marcar a sexualidade e o gênero.
Instâncias que, através de distintos processos, detêm legitimidade social
para proclamarem a "verdade" sobre os sujeitos, p,na demarcarem o certo

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e o errado, o normal e o patológico; para decidir quem é decente ou inde- ternura nunca são expressadas "espontaneamente". As formas de viver
cente, legal ou ilegal. Discursos científicos, médicos, morais e rellglOsoS: noSSOSprazeres e desejos não estão dadas, prontas, pela natureza; há toda
r educacionais e jurídicos produzem esses limites e estabelecem quem esta uma complexa combinação de sentidos, de representações, de atribuições
no centro e quem ocupará as margens. Tais discursos não são sempre con- que efetivamente vão constituir aquilo que chamamos sexualidade. E, mais
vergentes. Podem ter sido historicamente concorrentes ou, algumas vezes, uma vez, esses sentidos, representações ou atribuições nunca são fixos e
complementares. Podem se combinar de formas sutis e intrincadas ou po- estáveis. Aquilo que se constitui, hoje, em formas "normais" de gênero ou
dem se contrapor, interpelando distintamente os sujeitos, fazendo-os osci- de sexualidade, nem sempre foi assim concebido; é um arranjo circunstan-
lar e escolher. O que parece ser consenso é que a sexualidade e gênero cial e passível de ser alterado.
estão, mais do que nunca, no centro dos discursos; estão deixando o silên- Distintas sociedades e grupos traçam limites e fronteiras diferentes
cio e o segredo, e, por bem ou por mal, estão provocando ruído, fazendo para determinar a adequação ou a marginalidade dos sujeitos. Evidente-
barulho, fazendo falar. mente nesse traçado estão inscritas relações de poder. Não é a mesma
coisa ocupar o centro ou estar às margens da normalidade. Os efeitos desse
Sexualidade e gênero posicionamento são absolutamente distintos e desiguais. A aprendizagem e
o reconhecimento desses lugares sociais pelos indivíduos é feita desde muito
Porque não remeter tudo isso a um terreno aparentemente estável e cedo, em múltiplas instâncias e, por vezes, através de estratégias tão sutis
confiável? Afinal, como diz a música, isso "está na natureza" ... Mas as que se toma extremamente difícil percebê-Ias. Nesse processo, a formação
coisas não são tão simples: a sexualidade e o gênero, ainda que estejam das identidades sexuais e de gênero tem uma centralidade que é,
ligados à natureza, não podem ser a ela reduzidos. É preciso admitir que a freqüentemente, dissimulada ou negada.
própria natureza é, também, uma construção histórica e ~ocial. ossa f?r- A história, ou melhor, as histórias da sexualidade geralmente não são
ma de "chegar" a ela, de nos referirmos ao que é ou não e natural também conhecidas. Tomada como uma força natural, ela pode, eventualmente, ser
se dá pela linguagem, também se faz por meio de símbolos e de representa- percebida como inerente a um povo. Ríchard Parker, um pesquisador ame-
ções, também se modifica historicamente. Na afirmação das identidades ricano que viveu vários anos no Brasil, diz que essa é uma sociedade marcada
sexuais e de gênero, importam, sim, as características biológicas m:s, mais pela sensualidade. Segundo Parker (1991, p. 23), a sexualidade está presen-
do que isso, importa o que se sente e o que se diz sobre essas marcas te, de um modo muito forte, na noção que o povo brasileiro faz de si mes-
naturais" ("o que anda nas cabeças e anda nas bocas"). mo, não apenas "em sua individualidade, mas também.num nível social e
Já se disse que não é possível indicar um momento de afirmação categóri- cultural". Certamente essa representação de "brasílidade" resulta de uma
ca final e definitiva da constituição dos gêneros, um momento fundador da produção histórica, que o estudioso identifica nos relatos dos primeiros
masculinidade ou da feminilidade. Nascimento? Adolescência? Maturidade? viajantes europeus, nas teorias que apontam os trópicos e seus habitantes
Como muitas/os outras/os estudiosas/os, entendo que os gêneros se fazem e se como marcados pelo calor e por um exuberante erotismo natural, nos dis-
refazem continuamente ao longo da existência, que são socialrriénte produzi- cursos científicos do século 19 (nos quais a miscigenação tem uma posição
dos, portanto são dependentes da história e das circunstâncias (Louro, 1997). vital) e nas recentes análises do carnaval. Há, portanto, aqui - como em
Mulheres e homens produzem-se de di tintas formas, num processo carr~ga- qualquer outra sociedade - uma história que organiza os discursos sobre a
do de possibilidades e também de instabilidades. Elas e eles são ao mesmo sexualidade e também sobre os gêneros. Lançando mão de argumentações
tempo sujeitos de distintas classes, raças, sexualidades, etnias, nacionalidades as mais diversas, os diferentes discursos vão também produzir distintas
ou religiões. Portanto, pode haver - e há - muitas [01111asde ser feminina ou de interpretações, vendo, nessa "marca", motivos para entusiasmo ou para
ser masculino e, reduzi-Ias todas a um conjunto de características biológicas escândalo, para orgulho ou para vergonha. A mistura das raças, colocada
resulta, seguramente, numa simplificação. . no centro dessa história, pode ser responsável pelo ritmo e pela beleza
Também a sexualidade precisa ser compreendida como produzJda brasileiras, ou culpada pelo atraso e pela sífilis.
cultural e socialmente. [effrey Weeks (1993, p. 20) disse que "a sexualidade Uma história da sexualidade e das relações de gênero resultará, por-
tem tanto a ver com as palavras, as imagens, os rituais e as fantasias como tanto, da articulação desses distintos discursos, os quais, como sabemos,
com o corpo" Ele argumenta que nossas possibilidades eróticas ou nossa diferem em seu poder de argumentação, de abrangência ou de permanên-

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cia. o contexto de nossa sociedade, a norma é, então, constituída a partir mente, as várias posições do sujeito: gênero, sexualidade, raça, etnia, clas-
do homem branco heterossexual de classe média urbana e cristão. Todos os se, podem estar - e estão - comprometidas com relações de poder, consti-
outros sujeitos são apresentados (ou representados), tomando-o como refe- tuindo-se em motivo de disputas políticas.
rência e como centro. Na expressão popular, a mulher é o "segundo sexo'~:
o gênero feminino é descrito por sua diferença em relação ao masculino. E Uma questão política
freqüente ouvir-se dizer que as mulheres são mais fracas do que o h~men;,
ou menos racionais e mais sentimentais, mais intuitivas e menos lógicas, Trazer a sexualidade e as relações de gênero para o terreno da política
têm quatro bilhões de neurônios a menos ou têm mais desenvolvido o lado ainda é, para algumas pessoas, um erro, ou um desvio da "verdadeira" política.
direito do cérebro. De distintas matrizes, de antigos ditos populares a mo- No entanto, algumas décadas já se passaram desde aquela em que o movimen-
dernas e sofisticadas teorias sócio-biológicas, "constata-se" que nós, as to feminista provocativamente afirmou: "o pessoal é político". Militantes femi-
mulheres, somos diferentes deles, os homens. Neste momento, não impor- nistas e também militantes negros, "minorias" étnicas e nacionais, gays e lésbi-
ta de onde vêm as argumentações (embora evidentemente elas tenham for- cas vêm progressivamente redeEinindo o político, transformando seu sentido,
ças argumentativas e efeitos sociais diversos), mas interessa acentuar que ampliando seus limites. Históricas fronteiras traçadas entre o público e o pri-
a norma, o referente, a regra, face a qual se estabelece uma relação para vado são abaladas; as relações entre os sujeitos e as instituições sociais são
"mais" ou para "menos", é o gênero masculino. redimensionadas e percebidas de um modo novo. As múltiplas identidades não
A sexualidade "normal" é a heterossexual; mais do que isso, ela é con- podem ser compreendidas separadas da história e da política. É aí, precisa-
cebida como a única forma "natural" de sexualidade. Homens e mulheres mente, que se inscrevem as condições que permitem a determinaçâo de posi-
homossexuais ou bissexuais estão [ora da norma, são desviantes, doentes, ções centrais, "normais" e de posições desviantes e marginalizadas. Stuart HalJ
ou pervertidos. A referência heterossexual também marginaliza aquelas e (1997, p. 18) lembra-nos que, mais do que qualquer outra época, esta em que
aqueles que vivem sua sexualidade sozinhos, sem parceiros, ou que transi- vivemos é caracterizada pela "diferença"; as sociedades atuais "são atravessa-
tam de uma forma de sexualidade à outra. Uma infinidade de teorias médi- das por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma varieda-
cas, psicológicas, religiosas é acionada para reconduzir essas mulheres e de de diferentes posições de sujeito", diferentes identidades. Somente uma
esses homens à posição "correta" e "sadia" - a heterossexualidade. abordagem histórica nos permitirá perceber como se engendraram as forças
Também é fácil notar, observando-se a mídia, as falas dos políticos ou os que produziram o que consideramos, hoje, as "verdades" spbre a sexualidade e
livros escolares, que é o sujeito branco e cristão que é tomado como referência. os gêneros. Uma abordagem histórica é também fundamental para que possa-
Em nosso país, ao mesmo tempo em que se exalta uma pretensa "democracia mos questionar e ousar transformar arranjos sociais perversos e desiguais.
racial", as fotos publicitárias que vendem planos de casa própria, leite ou cos- Muitos afirmam que vivemos um momento de crise e de desordem.
méticos, estampam homens e mulheres brancos com hábitos e roupas De modo especial, a partir da década de 60, o debate sobre as identidades
marcadamente urbanos. A moça negra talvez seja chamada para lançar uma e as práticas sexuais e as relações entre os gêneros passou a ser,
nova marca de café (desde que corresponda aos padrões consagrados de bele- crescentemente, mais aberto e também mais intenso. Tal movimento pode
za), acompanhada da legenda que afirma: "chegou o café à altura de nosso ser remetido ao surgimento da pílula anticoncepcional, ao advento de no-
leite"! Ao se falar em raça, imediatamente está suposto que se está falando de vas tecnologias reprodutivas, às manifestações feministas, gays e lésbicas,
negros ou negras ou, talvez, de Índios; o branco, por ser a norma, não é perce- às novas formas de união, à maior visibilidade de homens e mulheres ho-
bido como uma raça. Um raciocínio semelhante também pode explicar porque mossexuais. A época pode ser compreendida como uma era de
se fala em religiões alternativas - altemativas a quê? "permissividade" ou de "revolução sexual", de "mercantilização do sexo"
Esses sujeitos são "os outros", aqueles e aquelas que são considerados ou de transformações nas formas de "regulação da sexualidade" (Weeks,
diferentes. Contudo, se as posições fossem alteradas ou trocadas, se quem 1993). A linguagem através da qual vários grupos ou setores sociais se refe-
é assim represen tado tivesse o direito de falar de si mesmo, pudesse se rem ao período, expressa e constitui a denominada crise. A linguagem no-
autodescrever, então deixaria de ser "o outro". Ninguém é essencialmente meia as identidades sexuais e de gênero, remetendo-as a distintas posições
diferente, ninguém é essencialmente o outro; a diferença é sempre consti- políticas. Vivemos uma clara disputa em relação ao modo como os sujeitos
tuída a partir de um dado lugar que se toma como centro. Conseqüente- e as práticas sexuais são descritos e compreendidos. Essa disputa assenta-

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se fortemente na discussão de quem detém a autoridade para "dizer" dos Há uma dimensão política em tudo isso. Formas novas de união e
sujeitos, para representá-Ios. Nesse embate, como sabemos, determinados relacionamento entre os gêneros ou o reconhecimento público da homosse-
gl·UpOSsociais têm sido continuamente privados da possibilidade de falar xualidade não podem ser sumariamente remetidos ao âmbito do privado, à
de si mesmos, ficando reduzidos a guetos, secundarizados ou escondidos simples questão de "opção" pessoal que não interessa a ninguém, além dos
dos espaços públicos prestigiados. indivíduos direta ou imediatamente envolvidos. Essa visão individualista
A sexualidade e as relações de gênero não podem mais ser compreen- às vezes, até pode estar conectada a uma posição de tolerância em relação
didas como questões que se resolvem "entre quatro paredes", símplesmen- àqueles e àquelas que vivem uma forma não hegemônica de sexualidade ou
te porque o que acontece entre quatro paredes tem a ver com o que está de relacionamento, desde que esses se mantenham discretos, escondidos,
acontecendo lá fora, está atado ao que está lá fora. "na deles". Esse entendimento de que "cada um sabe de sua própria vida"
Há alguns meses atrás, a mídia brasileira mobilizou-se com o anúncio carrega a pretensão de que é possível isolar os sujeitos sociais que pertur-
da gravidez da Xuxa. Cercada de grande aparato e acompanhada por mi- bam ou que desafiam as convenções estabelecidas. No entanto, tal posição
lhares de telespectadores, a "rainha dos baixinhos" comunicou sua deseja- deixa de considerar que as identidades de gênero e sexuais são
da maternidade, atribuindo a seu público a qualidade de "tios e tias" do interdependentes, que elas afetam umas as outra. A constituição de uma
novo nenê. Foram realizadas pesquisas para conhecer a reação popular; o masculinidade ou feminilidade hegemônica faz-se em relação e junto com
assunto virou capa de revista e manchete de jornal e os comentários foram outras formas de masculinidade e feminilidade. A heterossexual idade afir-
os mais variados: satisfação com a realização de um sonho, estranhamento ma-se em contraposição à homossexualidade e à bisse~ualidade. A visibil i-
pela secundarização do pai, desaprovação da gravidez sem casamento, re- dade e o reconhecimen to social de novas formas de sexualidade ou de no-
ceio do exemplo de "independência" feminina, promovido por alguém com vas formas de relação entre os gêneros certamente têm efeitos sobre as
tamanha popularidade entre as crianças ... Um assunto debatido calorosa- formas tradicionais. Não há como fugir disso. Não é possível construir uma
mente e mantido em evidência peja mídia. O episódio precisa ser compre- redoma protetora que mantenha essas "perturbações" à distância. O que
endido como algo que mobiliza muito mais do que um olhar curioso sobre a precisamos é indagar quem se sente ameaçado com tudo isso e quais as
vida privada de um ícone da TV razões dessa ameaça. Ríchard J ohnson (1996, p. 184), ao se referir à preo-
Aqui estão em jogo comportamentos, identidades e práticas que inte- cupação dos conservadores com a "celebração" dos/as homossexuais, ques-
ressam e fazem parte do cotidiano de todos, crianças, jovens e adultos. tiona se "devemos estar sempre policiando nossas fronteiras sexuais e con-
Para muitos, Xuxa aparece como a representação mais perfeita e acabada gelando nossos modos de viver", e desafia-nos a "ver a' diversidade sexual
da feminil idade: seu corpo, seus gestos, suas roupas carregam as marcas como recurso para construir algumas novas possibilidades".
de uma juventude perene e de uma beleza padrão (afinal ela é branca, A evidência que a sexualidade e as relações entre os gêneros vêm
loura e de olhos azuis). O parceiro, por seu lado, é alto, atlético, moreno, ganhando nas revistas, nos filmes, nos outdoors, na televisão ou na pu-
sorridente e solícito. O bebê anunciado completa o quadro, que seria per- blicidade é notável. Sua central idade na cultura infan to-juve n i] tam-
feito se estivesse emoldurado pelo casamen to convencional. Aí, sim, estaria bém não pode ser negada. Mas, certamente, os discursos que estão sen-
formada a família "normal". Do modo como as coisas foram apresentadas, do feitos em torno dessas questões estão carregados de múltiplos senti-
houve, em parte, alguns desvios dessa normalidade. Talvez algum dos, distintas possibilidades. As personagens femininas dos desenhos
estranhamento tenha ocorrido exatamente porque Xuxa reafirma, em seus animados e dos programas da televisão, os heróis e guerreiros dos mili-
programas, filmes e brinquedos a forma de feminilidade hegemônica e por- onáriãs filmes de ação constituem-se, indiscutivelmente, em "autorida-
que ela detém uma "autoridade" sedutora para grande parte da população des" para suas platéias, e são, ao mesmo tempo,. claros exemplos da
infante-juvenil. A situação em que a gravidez é anunciada, poderia estar reafirmação de uma masculinidade e uma feminilidade hegemônicas.
sugerindo não apenas uma transgressão na ordem familiar, mas também, o Os pretensos debates do rádio e da T\~ as consultas de opinão pú blica e
que é talvez mais grave, uma subversão na forma consagrada de materni- os programas de auditório também produzem e reproduzem as repre-
dade e de paternidade O debate, para além da mera simpatia ou da crítica sentações mais tradicionais das relações sociais. Educadoras e educa-
à apresentadora, mobiliza distintas formas de representação das práticas dores que se pretendam críticas/os não podem se permitir uma posição
sexuais e das relações entre os gêneros em nossa sociedade. de ignorância ou de desatenção face a tudo isso.

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I
Segredos e mentiras escolares sentada em estreita articulação com a família e a reprodução. O casamento
constitui a moldura social adequada para seu "pleno exercício" e os filhos,
Como no filme de Mike Leigh, Segredos e mentiras (1996), nossas es-
a conseqüência ou a benção desse ato. Dentro desse quadro, as práticas
colas também parecem propor um acordo tácito de silêncio, dissimulação e
sexuais não reprodutivas ou não são consideradas, deixando de ser obser-
negação a respeito da sexualidade. Os sujeitos envolvidos nessa arena, es-
vadas, ou são cercadas de receios e medos. A associação da sexualidade ao
tudantes e professoras/es, deixam de fazer perguntas, disfarçam curiosida-
prazer e ao desejo é deslocada em favor da prevenção dos perigos e das
des e inquietações, "fazem de conta" que vivem, todos/as, de acordo com os
doenças. Nesse contexto que centraliza a reprodução, os/as homossexuais
padrões estabelecidos. Mas a aparente harmonia é tão frágil como a do
ficam fora da discussão. Não se contempla a possibilidade de uniões afetivas
filme de Leigh. Ela pode ser rompida por situações banais e cotidianas, por
e sexuais entre indivíduos do mesmo sexo e, muito menos, a existência de
uma pergunta incômoda, por indivíduos e práticas que desafiam as regras.
famílias constituídas por gays ou lésbicas. A homossexualidade é virtual-
Apesar dos esforços ou da pretensão de alguns, a sexualidade de meninos e
mente negada, mas é, ao mesmo tempo, profundamente vigiada.
de meninas, de jovens e de adultos não consegue ser mantida fora da esco-
No discurso educacional, existe a família. Os livros e as atividades escola-
la, destinada apenas ao uso externo.
res operam com uma representação única que corresponde à representação
Preocupada em disciplinar e normalizar os indivíduos, a escola, ao
acionada pela mídia, consagrada pela igreja e pela lei. ão por acaso essa
longo da história, ao mesmo tempo que negou seu interesse na sexualidade,
representação hegemônica carrega os traços da classe média branca urbana e,
dela se ocupou. As instituições escolares constituíram-se, nas sociedades
nela, pai e mãe, 'bem como seus filhos e filhas reafirmam as formas tradicionais
urbanas, em instâncias privilegiadas de formação das identidades de gêne-
de masculinidade e feminilidade. Quando alguém diz que é preciso resgatar ou
ro e sexuais, com padrões claramente estabelecidos, regulamentos e legis- preservar os "valores tradicionais da família", é dessa família "normal", com
lação capazes de separar, ordenar e normalizar cada um/a e todos/as. Por
esses traços de raça, classe e gênero, que está [alando. Contudo, ao contrário
muitos anos, mesmo afirmando que essa "dimensão" da educação dos sujei-
do que esses discursos fazem supor, atualmente, é cada vez mais visível o nú-
tos cabia prioritariamente à família, as escolas preocuparam-se, cotidiana-
mero de lares mantidos apenas por mulheres que se revezam no cuidado dos
mente, com a vigilância da sexualidade de seus meninos e de suas meninas.
menores e nos quais os homens adultos têm uma presença transitória ou espo-
Não resta dúvida de que houve muitas transfomações nas formas de exer-
rádica; são freqüentes os arranjos familiares que incluem: outras pessoas, pa-
cício dessa vigilância e regulação, mas a escola continua sendo, hoje, um
rentes e vizinhos; muitos casais jovens e velhos compartilham a mesma mora-
espaço importante de produção dessas identidades.
dia; cada vez mais parceiros do mesmo sexo estabelecem upiôes estáveis; cres-
Talvez uma das "mentiras" mais antigas e recorrentes da escola é a de
ce o número de pais que assumem sozinhos a educação de seus filhos e,
que as crianças nada sabem sobre a sexualidade. Apesar das já centenárias
frequentemente, crianças dividem seu tempo entre a casa do pai e a casa da
afirmações de Freud, ainda se anuncia e se celebra uma "inocência" infan-
mãe (os quais, por sua parte, têm, muitas vezes, outros companheiros ou com-
til que, na prática, supõe que a sexualidade "surge" mais tarde na vida dos
panheiras e filhos)... Múltiplas formas de constituir e viver a família são expe-
indivíduos e nega que as crianças e os/as jovens vivam-na ao longo de toda
rimentadas. Formas que se diversificam mais ainda, se pensarmos nas diferen-
sua existência. No entanto, elas e eles experimentam formas de prazer e de
tes determinaçôes culturais que advêrn de distintas etnias, religiões, classes
desejo, com seus corpos e com os de seus parceiros e parceiras, na escola e sociais, nacionalidades. Tornadas invisíveis, essas "outras famílias" parecem
fora dela; convivem com muitas e diversas pessoas as quais, por sua vez,
menos "legítimas"; elas ficam, de algum modo, marginalizadas. Prestamos pouca
podem viver suas identidades de gênero e sexuais de muitas formas. A
atenção às dificuldades que esse discurso homogeneizador pode provocar. De-
sexualidade é um terreno sobre o qual crianças e jovens têm especial curi- veríamos nos questionar sobre os sentimentos e as compreensões que podem
osidade e interesse, um assunto que ocupa suas conversas e que integra, de
estar sendo desenvolvidos por aquelas crianças e aqueles/as jovens que não
muitos modos, a cultura juvenil e infantil. reconhecem nesta representação a sua família.
Quando se permite entrar nesse terreno, a escola fala da sexualidade
Nesse discurso homogeneizador, ganha um realce extraordinário a
como uma dimensão da vida adulta. Também, aqui, os adultos que entram
normalização das identidades sexuais e de gênero. A escola está absoluta-
em cena são pais e mães, ou são jovens que estão se preparando para casar
mente empenhada em garantir que seus meninos e meninas se tornem
e ter filhos, tornando-se pais e mães. A sexualidade, usualmente, é apre-
i homens e mulheres "verdadeiros", o que significa dizer homens e mulheres
"
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que correspondam às formas hegemônicas de masculinidade e feminilida- ocorre com as identidades de classe, étnicas ou de gênero) não são fixas, imutá-
veis; elas nunca estão finalizadas.
de. Muito provavelmente essa normalização das identidades ganhou, nos
dias de hoje, novos contornos. Um discurso renovado, que aproveita, em Jeffrey Weeks comenta a atenção que, mais recentemente, vem sendo
parte, as reivindicações da "nova" mulher estampada em revistas e jornais, dada às identidades sexuais, principalmente no âmbito acadêmico. Uma
parece acolher indistintamente meninas e meninos para o exercício de tendência desses estudos é examinar a regulação social da sexualidade e os
atividades antes categorizadas por sexo. As ofertas curriculares são discursos que organizam seu sentido, particularmente o discursada
unificadas; professoras e professores atuam junto a turmas mistas, desen- sexologia. essa perspectiva, o argumento histórico parece ganhar rele-
volvendo programas e avaliações formalmente idênticos para todos/as. Tal- vância, o que não significa dizer que a biologia ou o corpo deixem de ter
vez também não se pratique mais, abertamente, um discurso de condena- importância, mas sim que a ênfase se dirige para compreender os sentidos
ção à homossexualidade como um pecado que precisaria ser expurgado. culturais e as relações de poder que constituíram e que estão constituindo,
hoje, a sexualidade. Diz ele:
No entanto, um olhar crítico sobre o cotidiano escolar nos revelará que
práticas reformadas e mais sutis de discriminação estão sendo constante- O problema real não está em saber se a homossexualidade é inata ou
mente exercidas. Expectativas distintas são projetadas para o desempenho aprendida. Está, em vez disso, na questão: quais são os sentidos que essa
intelectual e físico; critérios implícitos de avaliação insinuam-se na apreci- cultura particular dá ao comportamento homossexual, seja o que for que o
ação de comportamentos' e resu Itados escolares; aptidões ou tendências tenha causado, e quais são os efeitos desses sentidos sobre formas pelas
são "ídentificadas" e sugerem orientações profissionais diferentes ... As fron- quais os, indivíduos organizam suas vidas sexuais. Esta é uma questão his-
teiras de gênero continuam sendo vigiadas, ainda que possam ser, aqui ou tórica. E também uma questão altamente política, que nos obriga a anali-
ali, afrouxadas. Tudo se torna ainda mais grave e complexo quando se trata sar as relações de poder que determinam por que este conjunto de senti-
diretamente da sexualidade. Deborah Britzman (1996, p. 79) utiliza o ter- dos, e não aquele outro, é hegemônico. Há ainda a questão de saber como
mo "heteronormatividade", definindo-o como "a obsessão com a sexualida- esses sentidos podem ser mudados (Weeks, 1995, p. 7).
de normalizante, através de discursos 'que descrevem a situação homosse- Direcionando essas questões para a educação escolar, caberia per-
xual como desviante". A escola, juntamente com a família, organiza-se de guntar: de que modos a normalização da sexualidade é exerci da na escola?
forma a "garantir" a formação de indivíduos heterossexuais. Também aqui Quando ela começa? Quais os efeitos do processo ele heteronormatividade
é possível identificar algumas reformas no discurso normalizador: o discur- sobre as crianças e os/as jovens? Que represen tações d~ identidades sexu-
so religioso do pecado pode ter sido substituído pelo discurso médico ou ais a escola produz e veicula? Que sentimentos se ap'rende a associar a
essas várias iden tidades?
psicológico da doença ou da desordem; de qualquer modo, permanece a
convicção de que é preciso reconduzir, curar ou reorientar esses sujeitos. No seu livro Pr atic cmente normal. Uma discuss ão sobre o
A escola lida com "verdades" que são discutíveis e contraditórias: em liomossexualismo (1996), Audrew Sullivan conta algumas das experiên-
primeiro lugar; a idéia de que a heterossexual idade é a única r011l1a normal e cias que viveu na escola, afirmando que seu "segredo" começou quando
natural de sexualidade; a seguir, a preocupação em controlar o indivíduos criança. Andrew acentua como aprendeu, desde muito cedo, que não
para que dela não se desviem. Subjacente a tudo isso está o pressuposto de podia demonstrar qualquer tipo de interesse ou desejo que fosse consi-
que, em algum momento da vida, os sujeitos se "definem" e fixam uma determi- derado inadequado para um menino, e, também, como aprendeu a fazer
nada identidade sexual que irá acompanhá-los daí em diante. Contrariando piadas sobre homossexuais. Diz ele: "nós já tínhamos aprendido a mo-
essas proposições, é possível compreender todas as identidades como sendo ver as alavancas sociais da hostilidade contra o homossexualismo antes
socialmente construídas e negociadas. A heterossexualielade não é natural, "au- mesl11? ele ter a mais vaga noção quanto ao que elas se referiam" (p. 15).
tomática", ou "facilmente assumida", como lembra Britzmann (p. 74), como Sua narrativa avança para a adolescência e ele descreve os contraditó-
também não são a homossexualidade ou a bissexualidade. Essas diversas foi·- rios sentimentos que vivia quando, nas práticas esportivas escolares,
mas de sexualidade jazem-se no contexto das relações sociais. Para vivê-Ias, compartilhava o vestiário com os outros rapazes: "Você é invisível no
podem se combinar marcas biológicas, psicológicas e sociais do sujeito, mas vestiário dos meninos e ali seu desejo é tão inevitável como a presença
essas ganham sentido social e culturalmente, ganham sentido através das his- de seu objeto. Nesse momento você aprende a primeira lição homosse-
tórias vividas por esse sujeito. Por isso mesmo, as identidades sexuais (como xual: que sua sobrevivência depende da auto-ocultação" (p. 18).

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Experiências de humilhação e de escamoteamento pontuam alguns conh'olada e disciplinada"; já a masculinidade seria compreendida como "algo
relatos corajosamente feitos por adultos a respeito de sua infância. O medo menoS certo", por isso ela precisaria ser "cultivada através de um complexo
de ser "descoberto/a", as gozações permitidas, a censura .insinuada ou ex- processo de masculinização, começando na primeira infância". Usualmente,
plícita levam a um verdadeiro "aportheid sexual", na oportuna expressão também se observa que as formas de manifestação de afeto e de companheirisrno
de Peter McLaren (1995). Promove-se a segregação desses meninos/as e enb'e meninas e mulheres envolvem uma proximidade física e uma intimidade
jovens, muitas vezes também produzida pelos próprios sujeitos, os quais que não é tolerada para com os meninos e isso poderia ajudar a "afrouxar" a
vêem no isolamento uma forma de sobreviver. Há uma espécie de medo do rigidez das fronteiras do comportamento permitido para o relacionamento en-
"contágio"; a manifestação de simpatia ou a proximidade em relação às/aos tre elas. A vigilância para garantir a masculinidade dos garotos é, então, exercída
homossexuais acaba por se constituir num perigo. Paradoxalmente, a mais intensamente desde os primeiros anos de vida, pela família e pela escola.
heterossexual idade, embora percebida como uma inclinação natural, vê-se Diante de qualquer comportamento ou sinal que possa representar um
ameaçada e precisa ser assegurada por todos os meios. atravessamento das fronteiras sexuais ou das li'onteiras de gênero (construídas
Evidentemente há muitas histórias diferentes. A construção da iden- dentro dos moldes hegemônícos), providenciam-se "encaminhamentos" de or-
tidade sexual não se dá do mesmo modo para todos/as. As experiências e as dem médica ou psicológica.
histórias são díversíficadas e não podem ser sintetizadas num processo sin- Dentro dessa construção discursiva que articula, de forma mais direta,
gular, marcado por etapas ou fases comuns a todos os indivíduos. Cada a masculinidade à sexualidade, também se constitui uma representação da
sujeito é, ao mesmo tempo, muitas "coisas", tem muitas identidades: de mulher como sendo "naturalmente" menos interessada na vida sexual, com
classe, de etnia, de religião, de nacionalidade, de geração, de gênero, etc, e menor necessidade de viver ativamente seus desejos e prazeres. Em con-
os modos como se articulam essas identidades também são múltiplos. No seqüência, espera-se que ela seja mais "contida", menos "atirada", em ou-
entanto, apesar dessa multiplicidade de posições, não há como negar que tras palavras, que ela seja o sujeito passivo que espera a iniciativa sexual
nossas escolas são muito pouco acolhedoras para todos aqueles e todas masculina. Não é possível negar que aqui também há um processo
aquelas que não se ajustam aos padrões ditos normais. disciplinado r e normalizador dirigido às meninas. Um complexo investi-
A preocupação com a heteronormativídade é extensiva a todos, mas pa- mento é feito para produzir a mulher "de verdade", o que contraria a idéia
rece se manifestar mais cedo e talvez mais intensamente em relação aos meni- de que a feminilidade seja "uma força natural". As identidades de gênero e
nos. Historicamente, construiu-se, através de vários discursos (incluindo o da sexuais "adequadas" (sejam das meninas, sejam dos meninos) não aconte-
sexología), uma articulação muito forte entre masculinidade e sexualidade; isto cem, pois, gratuitamente. Para que sejam alcançada], várias instâncias,
é, a representação do gênero masculino é articulada à sexualidade de um modo entre elas a escola, mobilizam seus esforços e, nesse processo, têm de man-
mais central do que a do gênero feminino. Pouco importa sob quais bases foi ter um delicado equilíbrio entre a promoção do desejo heterossexual e, ao
Fundada essa representação; o que importa é que ela teve, e ainda tem, efeitos mesmo tempo, sua contenção.
na produção de sujeitos masculinos e femininos. Essa representação exerce Nos últimos anos, as discussões sobre sexualidade e gênero vêm se
um "efeito de verdade" e, portanto, pode interferir nas formas' de ser homem ampliando, tendo conseguido ocupar espaço em muitas escolas e até mes-
ou de ser mulher. Weeks (1993, p. 301) afirma que "para os homens modernos, mo integrar parâmetros curriculares nacionais. Esse movimento não pode
a masculinidade se expressa, pelo menos em parte, através de sua sexualida- ser dissociado das transformações sociais já referidas e da crescente visibi-
de". Segundo ele, isso poderia explicar, por exemplo, porque um homem impo- lidade de novas práticas e de novos sujeitos sexuais. Mas também é forçoso
tente vê nessa situação uma ameaça tanto à sua identidade masculina quanto à reconhecer que faz parte desse quadro a descoberta da Aids e, com ela, a
sua identidade sexual. Ao deixar de viver ativa e intensamente sua retomada da prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. A identifi-
heterossexualidade, ele perderia também a sua identidade de homem. Geral- cação e a proliferação exponencial da doença têm levado a um esforço pre-
mente, em nossa cultura, essa articulação não se dá do mesmo modo em rela- ventivo que envolve as instituições educacionais. De uma ameaça inicial-
ção ao gênero feminino. mente concebida como restrita aos denominados "grupos de risco", a Aids
Parker (1991, p. 95-96) comenta algumas distinções tradicionais na socia- se converteu uma ameaça universal. Não é possível ignorá-Ia e se torna
lização de meninos e meninas no Brasil. Na concepção mais tradicional, a cada vez mais sem sentido mantê-Ia como um problema limitado àqueles
feminilidade seda percebida como "uma força natural que precisa apenas ser ou àquelas que "abusam", que se "excedem" ou que transgridem sexual-

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mente (o que havia permitido atribuir a culpa pela doença às próprias víti- já detêm a autoridade e a legitimidade. Quando se está numa guerra, a
mas). Instadas pela urgência dessas questões, as escolas vêm-se obrigadas omissão sempre favorece o dominante.
a abandonar o silêncio e 9 segredo. É a voz socialmente autorizada que inclui e exclui sujeitos e conheci-
Mas há, em tudo isso, um clima de medo. A sexualidade que "entra" mentos, determinando não apenas quais as identidades ou os saberes que
na escola parece estar sitiada pela doença, pela violência e pela morte. São podem integrar o currículo, mas também como essas identidades e saberes
evidentes as dificuldades de educadoras e educadores, mães e pais, em deverão ser aí representados. Em todo esse processo de exclusão e indu-
associar a sexualidade ao prazer e à vida. Parece mais fácil exercer urna são, de valorização ou de negação, estão inscritas, evidentemente, relações
função de sentinela, sempre atentos/as à ameaça dos perigos, dos abusos de poder (Silva, 1996). As intensas e sofridas lutas empreendidas por gru-
ou dos problemas. São os possíveis riscos e danos que fornecem a pauta pos feministas, gays e lésbicas, bem como por grupos negros e étnicos são a
para as aulas de educação sexual. Os adultos resguardam-se da discussão face visível dessas relações de poder. Essas lutas, que expressam uma polí-
sobre os afetos, os desejos, os rituais e as fantasias e procuram manter a tica de identidade, referem-se, fundamentalmente, ao direito à representa-
sexualidade, sempre que possível, sob um enfoque estritamente inlormati- ção, ou melhor, ao direito de representar a si mesmo, dizer de si, afirmar
vo e "científico", isto é, biológico. Barradas por esses limites, muitas das sua cultura, sua linguagem, sua estética. No interior das instituições edu-
inquietações e dúvidas que mobilizam crianças e jovens deixam de ser ex- cacionais, acontece uma parte importante dessa disputa e, por isso, somos
pressadas e só podem ser contempladas no interior de seus próprios gru- obrigatoriamente convocadas/os. Afinal, qual é nosso. lado?
pos. As dificuldades dos adultos em lidar com sua própria sexualidade aca-
bam produzindo uma muralha de constrangimento e de omissão. Referências bibliográficas

Uma política de identidade inscrita no currículo BRITZlvlANN, Deborah. ° que é essa coisa chamada amor. Identidade homossexual,
educação e currículo. In: Educação e Realidade, vol. 21(1), jan.vjul. de 1996.
As situações analisadas confirmam que estamos em meio a uma dis- HALL, Stuart. Identidades culturais na pos-moderntdade. Trad. Tornaz T da Silva e
Guacira L. Louro. Rio de Janeiro, DP&A, 1997.
puta política em tomo das identidades sexuais e de gênero. Essa disputa é JOHNSON, Richard. Sexual c1issonances: or the "ímpossíbilíty" of sexuality education.
travada, cotidianamente, em múltiplas instâncias sociais e, no que nos in- Jn: Cuniculum: Studies, vol, 4 (2),1996.
teressa em particular, é travada na escola e no currículo. De um lado, o LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pás-estruturalis-
discurso hegemônico remete à norma branca, masculina, heterossexual e ta. Petrópolis, Vozes, 1997. i
McLARE ,Peter. Moral Panic, Schooling, and Cay identity. Critical Pedagogy and the
cristã; de outro lado, discursos plurais, provenientes dos grupos sociais não politics of resistance. In: Gerald Unks (ed.), The Gay teen. Educotional practice
hegemônicos lutam para se fazer ouvir, rompendo o silenciamento a que and theorij for lesbian, gau and bisexual adolescents. Nova York e Londres,
foram historicamente submetidos. A escola e o currículo estão imersos em Routledge, 1995.
PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões. A cultura sexual no Brasil contemporâ-
tudo isso, fazem parte desse jogo, portanto têm possibilidade de alterar a
neo. Trad. j faria Therezinha Cavallari. São Paulo, Editora Best Seller, 1991.
configuração da luta. Tomaz Tadeu da Silva (inédito) afirma: SILVA, Tomaz Tadeu. A poética e a política do currículo como representação (inédito).
Os questionamentos lançados às epistemologias canônicas, às estéticas SILVA, Tomaz Tadeu. identidades terminais. As transformações na política da pedagogia
dominantes, aos códigos culturais oficiais partem precisamente dos grupos so- e na pedagogia da política. Petrópolis, Vozes, 1996.
SULLIVAN, Andrew. Praticamente normal. Uma discussão sobre o liomossexualismo,
ciais que não se vêem aí representados. Há uma revolta das identidades cultu-
Trad. Isa Laudo. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
rais e sociais subjugadas contra os regimes dominantes de representação. É WEEKS, Jeffrey. El malesiar de Ia sexuolidad. Significados, mitos 1f sexualidades moder-
essa revolta que caracteriza a chamada "política de identidade". nas. Trad, Alberto Magnet. Madri, Talasa Ed., 1993.
i As práticas escolares e os currículos não são meros transmissores de WEEKS, J elfrey lncented nioralities. Sexual calues in aI! age oj uncertainu]. Nova York,
I representações sociais que estão circulando em algum lugar, "lá fora"; elas
Columbia University Press, 1995.

I são instâncias que carregam e produzem representações. O silenciamento


Guacira Lopes Louro é professora do Curso de Pós-Graduação em Educa-
em torno das "novas" identidades sexuais e de gênero constitui-se numa
ção da Universidade Federal elo Rio Grande do Sul.
forma de representá-Ias, na medida em que as marginaliza e as deslegitima.
O silêncio e o segredo significam uma tomada de posição ao lado de quem

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