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t' 222 HELENA HIRATA • FRANÇOISE LABORIE • HÉLÉNE LE DOARE· DANIÉLE SENOTIER DICIONÁRIO CRiTICO DO FEMINISMO 223

I do trabalho na construção da invisibilidade social das doenças profissionais. nossos primos primatas, revela uma grande variedade (indo do maior con-
São as mulheres que assumem - por meio do seu trabalho sanitário profano traste até a quase similitude) de "diferenças" - a assirnetria entre fêmeas e
- a responsabilidade social pelo cuidado dos homens e das mulheres que machos - características sexuais secundárias e comportamentos que asse-
sofrem de doenças profissionais, assim como a gestão de suas consequên- guram a reprodução, a criação dos filhotes e a obtenção de alimento (cf., por
cias familiares. Para resistir à transformação das consequências do trabalho exemplo, Hrdy, 1981).
sobre a saúde. em meras deficiências individuais e privadas, o desenvolvi- A humanidade faz parte das espécies de reprodução sexuada, por isso
mento de pesquisas sociológicas sobre a saúde no trabalho que levem em ela tem dois "sexos" a'natomofisiológicos com uma única função de sua per-
conta as relações sociais de sexo pode contribuir para a análise crítica da petuação física: a produção de novos indivíduos. No entanto, sua marca.
organização social do trabalho. distintiva, já detectável nos primatas superiores, é a perda do estro (coinci _'
~ Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo - Flexibilidade - Precarização social dência entre excitação sexual e período fértil, nas fêmeas animais). Donde,
- Técnica e gênero - Trabalho (o conteito de) para as mulheres, há a possibilidade do desejo e de relações sexuais sem
~ Appay, Béatrice; Thébaud-Mony, Annie. Précarisation sociale, travail et santé, Paris, risco de gravidez, mas também de gravidez sem desejo sexual (estupro, um
lRESCO-CNRS,
"Actions scientifiques fédératives de l'IRESCO",1997, 580p. ato social, parece peculiar ao homem) ..
Cottereau, Alain. Usure au travail, Destins masculins et destins férninins dans les cul- As sociedades humanas, com ,uma notável monotonia, sobrevaloTÍzam
tures ouvriêres, en France, au XIX'siecle, Le J'v1ouvement social, ju!.-set. 1983, n.124,
a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes (di-
p.71-112.
vididas' separadas e geralmente hierarquizadas) no corpo social como um
Scavone, Lucila. lnvisibilidad social de dolencias profesionales ligadas a Ia exposición ai
amianto, Cuademos Mujer Salud, 1997, n.2, p.143-7. todo. Elas lhe aplicam uma "gramática": um gênero (um tipo) "feminino"
Thébaud- Mony Annie; Lert, France. Emploi, travail et santé des femmes: Ia législation et é culturalmente imposto à fêmea para que se torne uma mulher social, e
les recherches face aux mouvements sociaux, Droit social, 1982, n.12, p.781-92. um gênero "masculino" ao macho, para que se torne um homem social. O
Vogel, Laurent. L'organisation de Ia prévention sur les lieux de travail. Un premier bilan de
gênero se manifesta materialmente em duas áreas fundamentais: 1) na di-
Ia directive-cadre communautaire de 1989, Bruxelas, Bureau technique syndical euro-
visão sociossexual do trabalho e dos meios de produção, 2) na organização
péen pour Ia santé et Ia sécurité, 1994, 287p.
social do trabalho de procriação, em que as capacidades reprodutivas das
mulheres são transformadas e mais frequentemente exacerbadas por diver-
* Traduzido por NAIRA PINHEIRO.
sas intervenções sociais (Tabet, 1985/1998). Outros aspectos do gênero -
diferenciação da vestimenta, dos comportamentos e atitudes físicas e psico-
lógicas, desigualdade de acesso aos recursos materiais (Tabet, 1979/1998) e
Sexo e gênero*
mentais (Mathieu, 1985b/1991a) etc. - são marcas ou consequências dessa
diferenciação social elementar.
Nicole-Claude Mathieu
Assim, a extensão para a quase totalidade da experiência humana da-
quilo que é apenas uma diferenciação funcional em uma área leva a maioria
Diferenciação biológica, diferenciação social
dos seres humanos a pensar em termos de diferença entre os sexos como
De modo geral, opomos o sexo, que é biológico, ao gênero (gender, em uma divisão ontológica irredutível em que sexo e gênero coincidem e cada
inglês), que é social. Na Biologia, diferenciação é a aquisição de proprieda- um deles é exclusivo em relação ao outro. Mas a gramática do gênero, ideal
desfuncionais diferentes por células semelhantes. A diferença é o resultado e factual, ultrapassa por vezes a "evidência" biológica da bicategorização-
de uma diferenciação. O estudo das sociedades animais, incluindo a dos aliás, ela própria problemática - conforme o demonstram a complexidade
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dos mecanismos de determinação do sexo (Peyre e Wiels, 1997) e os estados Mas uma segunda maneira de conceber a relação entre sexo e gênero é
interssexuais Algumas sociedades, mas não as ocidentais modernas, e al- admitir a sua divergência eventual dando prioridade ao gênero, ou seja; à
guns fenômenos marginais das nossas sociedades modernas mostraram que bipartição social de funções e atitudes. O gênero pode ser um símbolo do
definições de sexo e gênero, assim como as fronteiras entre sexos e/ ou entre sexo e vice-versa. É uma lógica pragmática, mais "heterossocial" do que
gêneros, não são tão claras. heterossexual, que permite uma relativa flexibilidade de comportamentos,
incluindo-se o sexual. Assim, os travestis modernos (desprezados) ou os
Outros sexos e outros gêneros berdaches ameríndios (indivíduos passando oficialmente ao gênero oposto').
não querem mudar de sexo, mas sim marcar sua preferência pelo outro gê--
o conceito de sexo parece ser universal. Héritier (1996, 19ss) vê na pró- nero. O caso africano de casamentos institucionais entre homens ou entre
pria diferença anatômica entre os sexos uma barreira última do pensamen- mulheres, emque as normas de gênero (prerrogativas do "marido" e ser-
to, ins.erindo a oposição entre r idêntico e o diferente naorigem dos si~temas viços da "esposa") eram respeitadas, atestam que o casamento não se defi-
conceituais binários. No entanto, as teonas sobre a ongem da sua biparti- ne principalmente pela função reprodutiva - como bem o havia observado
ção, sobre sua função na procriação, ou sobre o sexo "real" de um bebê são Lévi-Strauss (1956) - mas garante um conjunto de direitos do sexo/ gênero
muito diferentes, desde antes de Aristóteles até os biólogos modernos, de "homem" sobre o sexo/gênero "mulher".
um lado a outro do planeta. Conforme a sociedade, ou sempre houve dois
sexos (ordem divina ou ordem natural), ou primeiro um só (sugestivamen-
As diversas análises da relação entre sexo e gênero
te, porém, já sexuado ou andrógino, o que dá no mesmo), ou dois seres do
mesmo sexo. Para a procriação, ou só o homem ou só a mulher, ou a mulher Não obstante algumas obras de autores importantes como Friedrich En-
com a ajuda de um espírito, é que contribui para a concepção da criança; gels(1884), MargaretMead(1935; 1948),VirginiaWoolf(1929; 1938) ou
às vezes o pai é tão necessário quanto a mãe para continuar a produzir bio-

Simone de Beauvoir (1949), a questão da construção social das diferenças
logicamente a criança após o nascimento etc. E às vezes a criança muda de entre os sexos permaneceu e ainda é marginal nas Ciências Humanas, como
sexo no momento do nascimento ou não pertence ao seu sexo aparente. No o demonstra a invisibilidade ou o desprezo que ainda atingem os estudos
entanto, apesar da diversidade das representações de sexo e da sexualidade, feministas no mundo acadêmico, na França mais do que em outros países
as sociedades instauram concretamente (por meio de ritos, regras de casa- ocidentais. Antes do ressurgimento dos movimentos feministas no final dos
mento e prescrições diversas) uma diferença entre os sexos e sua "cornple- anos 60, a História se interessava eventualmente por algumas mulheres de
mentaridade", geralmente hierárquica (Mathieu, 1991 b). poder e/ou célebres; a Psicologia e a Psicanálise, pelas" diferenças entre
Na maioria das sociedades, a bipartição do gênero deve estar calcada na os sexos" na fronteira entre biologia e socialização (controvérsia natureza
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bipartição do sexo, realizada sob forma normal e normatizada na heteros- x educação); a Psicologia e a Sociologia, pelos "papéis sexuais" esperados
t
11:
sexualidade. O gênero "traduz" o sexo. Deve haver uma adequação entre ou prescritos (o que representava um progresso). A Etnologia constatava a
gênero e sexo, com uma ênfase neste último. Daí a necessidade, para os "complernentaridade dos sexos" e se questionava, às vezes, acerca de seus
~ transexuais modernos, de mudar de sexo para estar em conformidade com fundamentos (controvérsia natureza x cultura).
e gênero vivido: o do sexo oposto. Ou, como entre os inuit, a necessidade de Note-se que no início dos estudos feministas, nos Estados Unidos como
vestir e criar um bebê-menina como menino (travestismo), se a pessoa que noutros países, não se falava de "gênero", mas de mulheres e sua invisibili-
reencarnou nela era do sexo masculino (e vice-versa), o que cria uma espé- zação pela sociedade e por uma ciência androcêntrica, de sua opressão/ex-
cie de "terceiro sexo", pelo menos até o casamento heterossexual, quando a ploração pelos homens e das condições de sua libertação. "Como mulheres",
criança retorna ao seu sexo/gênero "biológico". nós pensávamos e reivindicávamos. Mas o que é uma mulher? Os debates
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entre tendências dentro do movimento "de mulheres" revelam diversas ocasionalmente utilizado em estudos psicológicos sobre a identidade pes-
concepções subjacentes da relação entre sexo e gênero, algumas das quais soal (por exemplo, o trabalho de [ohn Money e Stoller, 1968), ganha uma
não diferem muito das duas concepções mencionadas anteriormente. Uma acepção sociológica (por exemplo, Oakley, 1972';). E a antropóloga Gayle
tendência francesa, inspirada numa dada corrente da Psicanálise, está as- Rubin (1975/1999) propôs a expressão sex/ gender systems para destacara
sociada ao primeiro modo de pensamento, baseado no sexo: homens e mu: interdependência sistêmica entre os regimes matrimoniais que oprimem as
lheres são diferentes; o problema é que a nossa sociedade não permitiu que mulheres (nos quais elas não têm sobre si mesmas, sobre as outras mulheres
a mulher "chegasse" psicológica e socialmente à sua especificidade. Mas as e sobre os homens, os "direitos" - privilégio de gênero - que estes têm sobre
opções mais comuns estão no segundo modo de pensamento, que abre es- elas e sobre a sua sexualidade) e os processos econômicos e políticos globais.
paço para a ambiguidade entre sexo e gênero: elas abordam as modalidades
de construção do gênero, concebido como elaboração cultural da diferen-
Desvios da noção de gênero
ça sexual, analisando e denuncian~o as desigualdades entre os sexos a fim
de rearranjar equitativarnente os conteúdos dos dois gêneros. Finalmente, Desde os anos 80, nota-se uma tendência nos escritos em inglês, femi-
uma terceira corrente conceitual da relação entre sexo e gênero (apresentada nistas ou não (e, mais recentemente, em francês) de um uso exclusivo do
na França pelo coletivo da revista Questões feministas, 1977 ~ 1980) con- termo" gênero". Isso acarreta vários problemas:
sidera que os sexos não são simples categorias bissociais, mas classes (no 1) O termo "gênero" isolado tende a ocultar que o "sexo" (a definição
sentido marxista) constituídas por e na relação de poder dos homens sobre ideológica e prática que lhe é dada) funciona efetivamente como pa-
as mulheres, que é o próprio eixo da definição de gênero (e de sua primazia râmetro na variabilidade das relações sociais concretas e das elabora-
sobre o sexo, cf. Delphy, 1991 b/2001): o gênero constrói o sexo. As tendên- ções simbólicas. Quaisquer que sejam os modos de articulação entre
cias lésbicas políticas próximas desta corrente encaram a heterossexualida- sexo e gênero , detecta -se constantemente um funcionamento
, assimé-
de não como um comportamento sexual entre outros, mas como o sistema trico do gênero (e de suas transgressões) em função do sexo. Sem dú-
fundador da definição de "mulheres" por uma relação obrigatória de de- vida há os gêneros "homem-mulher", mas na base inferior da escala
pendência dos homens. Quando Simone de Beauvoir disse: "Não se nasce do gênero há fêmeas: sexo social "mulher" (Mathieu, 1989/1991 a).
mulher, torna-se mulher", Monique Wittig (19801200lj acrescentou: "[ ... ] Como no caso da substituição do termo "raç-a" por "etnia", deixar o
'mulher' não tem sentido senão nos sistemas de pensamento e nos sistemas sexo fora do campo do gênero implica o risco de manter incontorná-
econômicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres". vel o seu estatuto de realidade. (E de realidade imutável, esquecendo-
As críticas feministas das ciências-focararn, entre outras, a naturalização -se de que a "biologia" e, em especial a fisiologia da fecundidade, é
da categoria "mulher". Dado o amálgama biofisiopsicológico que a definia amplamente dependente do ambiente social.)
e a ocultação de relações de poder que a constituem, fazia-se necessário in- 2) Evidentemente, as análises feministas mostram que o funciona-
troduzir análises e, portanto, os termos, mostrando claramente o funciona- mento do gênero, incluindo as estruturas sociocognitivas (Hurtig
mento social da categorização por sexo. Daí o advento, na França, das no- e Pichevin, 1991), é hierárquico. Mas o termo continua a ser usado
ções de "sexo social" (Mathieu, 1971/1991a), de "sexagern" (Guillaumin, pela maioria das pessoas como uma bicategorização inofensiva. Falar
1978/1992) para descrever, em relação a certas formas de escravidão e ser- de gender studies é então bem menos comum {ou "particularista"), _
vidão, um sistema de apropriação das mulheres ("sexismo", mais restrito, se do que women's studies ou gay and lesbian studies, e parece mais tran-
referia mais a atitudes), e da expressão, rapidamente generalizada aos países quilo (ou "objetivo") do quefeminist studies. Isso permite estudar os
francófonos, "relações sociais de sexo", correspondente à inglesa gender re- aspectos simbólicos e ideológicos do masculino e do feminino, sem
lations (relações de gênero). Nos Estados Unidos, o termo gender, até então referência à opressão do sexo feminino.
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3) Pode-se constatar que muitos escritos em inglês, inclusive feminis- 1) A "ferninização" da linguagem, Na maioria das línguas europeias,
tas, utilizam gender em diversos sentidos, e principalmente como um em graus diferentes, o gênero gramatical é hierárquico: o masculino
eufemismo para sex.o (o que aumenta a confusão frequente entre sexo representa o geral e, no plural, engloba o feminino. O protesto fe-
e sexualidade) Segundo Brigitte Lhomond (1997), o abandono de minista contra o ocultamento do sexo/gênero "mulher" deu lugar,
toda distinção entre sexo e gênero conduz ao risco de naturalizar o muito precocemente, a várias criações em romances, ensaios, carta-
gênero -zes e, hoje, em fanzines: colocar todas as palavras no feminino (raro,
4) A partir dos anos 90 surge nos Estados Unidos um novo desvio do mas chocantel), ou usar a forma feminina plural acentuada tipogra-
gênero, representado em alguns espetáculos da cantora Madonna e ficamente para designar um conjunto misto (as alunAs, as uruuer-
promovido por ativistas e alguns universitários com o nome de mo- sitáriAs), ou evitar ao máximo termos que identifiquem o sexo, ou
vimento e teoria queer (queer: bizarro, ambíguo, insulto usado para encontrar uma palavra "neutra' e universalizante - por exemplo, o on
designar homossexuais, reivindicado aqui ~ara afirmar e reunir to- (Wittig, 1985/1992 e 2001) em francês, "as pessoas" em português
dos os comportamentos diferentes daquele da heterossexualidade - ou substituir chairman por chairperson no inglês etc. No Quebec,
normativa: homossexuais. lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais o Instituto de Língua Francesa editou, há vinte anos, recomenda-
etc.). Inspirados por uma forma de pós-modernismo e reprovando os ções para a feminizaç~o ou bissexualização dos termos: por exemplo,
movimentos feministas, lésbicos e gays anteriores por terem centra- um-a professor-a, os(as) alunos( as) (ou, em francês, une professeure, les
do o seu foco sobre questões relativas às identidades coletivas cons- étudiant-e-s - sob os auspícios da feminização dos nomes das profis-
tituídas, os queer consideram que as categorias de oposição binária sões na França, cf. Houdebine-Gravaud, 1999). Mas o que subjaz
(homens/mulheres, homo/heterossexual) são ultrapassadas ou mes- à "ferninização"? Claire Michard (1999) revela que, os significantes
mo "essencialistas" (enquanto nós havíamos demonstrado que elas masculino/feminino não possuem significados simétricos - humano
são construídas pela opressão'). Trata-se então de ultrapassar o gêne- masculino/humano feminino (como pretende a linguística clássica
ro (transgendering), embaralhando, desordenando, "perturbando" ao falar de "gênero natural" ou gênero "verdadeiro") -, mas sim de
(Butler, 1990) as categorias de sexo e sexualidade. Eles se interessam humano/fêmea. A questão então é saber se uma sobressexua(liza)ção
pelo(s) gênero(s) como uma "representação" quase teatral (perfor- da linguagem não bloqueará toda possibilidade de se avançar em di-
mance), que cada indivíduo poderia desempenhar à sua maneira (ver reção à abolição do gênero.
os artigos críticos de F Collin, 1994; Charest, 1994; Mathieu, 1994). 2) A "paridade" entre homens e mulheres na representação política está
Os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênero são pri- na ordem do dia na Europa, e alguns países têm quase chegado lá.
vilegiados em detrimento da realidade material histórica das opres- As possibilidades e especialmente as modalidades dessa paridade são
sõe~ sofridas pelas mulheres, e essa tendência encontra forte oposição fortemente dependentes das tradições políticas. Na França, um vivo
entre algumas lésbicas e feministas, especialmente as feministas "de debate opõe as feministas. Para todas, é o sexo/gênero "mulheres"
cor" americanas e as do Terceiro Mundo, que é inferiorizado, mas para algumas é preciso, por isso mesmo,
constituir o "sexo" como uma categoria jurídica da representação
política, enquanto outras receiam que isso ratifique a ideia, já muito
Três debates em torno das categorias de gênero e de sexo
enraizada, de uma natureza diferente entre mulheres e homens, de
A atualidade social, tanto conceitual como jurídica, das categorias de uma especificidade sexuada dos valores, do pensamento e da ação,
sexo e gênero é evidenciada, nos países ricos, por meio de três debates: enquanto a inferiorização das mulheres é uma questão" de gênero".
"
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3) Mais recentemente, os movimentos sociais têm procurado contestar Herdt, Gilbert (Ed.). Third sex, third gender. Beyond sexual dimorphism in cultu1·e and his-
a preeminência da diferença dos sexos num domínio que parecia no tory, Nova York, Zone Books, 1994, 614p.

entanto ser o seu reduto: a família, e principalmente a questão central Héritier, Françoise. Masculinlféminin. La pensée de Ia différence, Paris, Odile Jacob,
1996, 332p. [Textos de 1978 a 1993].
da fiLiação e do "parentesco". Constata -se que a família atual já não é
Hurtig, Marie-Claude; Pichevin, Marie-France (Ed.). La differenee des sexes. Questions de
mais (supondo-se que o tenha sido alguma vez) constituída pela tría-:
psyehologie, Paris, Tierce "Sciences", 1986, 356p.
de mãe-pai-filho(s): testemunho disso são as ditas famílias monopa- Mathieu, Nicole-Claude. Identité sexuelle/sexuée/de sexe? Trois modes de conceptuali-
rentais (na realidade estatística, a mãe como única presença parental sation du rapport entre sexe et geme, in Anne-Marie Daune-Richard, Marie-Claudé
após abandono, divórcio ou estupro), as recomposições familiares, as Hurtig, Marie-France Pichevin (Ed.). Catégorisation de sexe et construetiom seienti-·

famílias adotivas, as mulheres que recorrem a métodos artificiais de fiques, Aix-en- Provence, Université de Provence "Petite collection CEFUP", 1989. [Re-
publicado in Mathieu, Nicole-Claude, L'Anatomie poli tique. Catégorisations et idéolo-
procriação, as lésbicas e os homens gays que são também pais bio-
gies du sexe, 1991a).
lógicos e/ou desejam adotar. Estes exigem atualmente ~ integração
Rubin, Gayle. L'économie poli tique du sexe: Transactions sur les femmes et systemes de
oficial das "hornoparentalidades" entre essas situações plurais em
sexe/genre, Cahiers du CEDREF, 1999, n.7, 82p. [Ed. orig. nos Estados Unidos, 1975).
que nada impediria as crianças de ter mais de dois pais, biológicos ou Tabet, Paola. La construetion soeiale de l'inégalité des sexes. Des outils et des eorps, Paris,
sociais - o que não faria mais do que reencontrar as múltiplas formas L'Harmattan "Bibliotheque du férninisme", 1998, 206p. [Textos de 1979 e 1985).
de "família" já conhecidas pela Etnologia.
"Traduzido por NAIRA PINHEIRO.
Em relação direta com essas reivindicações verificam-se demandas de
legalização da união de vida entre pessoas do mesmo sexo, sob a forma de
legítimo casamento civil ou religioso em alguns países, ou sob outras for-
mas, como o PACS (Pacto Civil de Solidariedade) na França. A parcela dos
movimentos homossexuais que reivindica essa legalização considera que Sexualidade*
sua luta é contra uma discriminação que atribuiapenas aos heterossexuais
(casados ou em regime de concubinato) o reconhecimento social da sua Brigitte Lhomond
união com as vantagens de segurança s~cial que ela representa. Outra parte
dos movimentos homossexuais, lésbicos e feministas lembra que a família A sexualidade humana diz respeito aos usos do corpo e, em particular-
é a expressão do "heterossexisrno" que eles haviam denunciado, que ela ra- mas não exclusivamente - dos órgãos genitais, a fim de obter prazer físico e
tifica, além disso, a dependência dos socialmente mais fracos, e que outra mental, e cujo ponto mais alto é chamado por alguns de orgasmo. Fala-se de
solução seriao estabelecimento de direitos vinculados não ao casal, mas à conduta, comportamento, relações, práticas e atos sexuais.
pessoa individual. De uma maneira mais ampla, a sexualidade pode ser definida como a
construção social desses usos, a formatação e ordenação dessas atividades,
-+ Diferença sexual (teorias da) - Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo -
Dominação - Educação e socialização - Feminilidade, masculinidade, virilidade - Família
que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de acordo com as
- Linguagem científica (sexuação da) - Sexualidade épocas e as sociedades. Essas regras e normas proíbem uma série de atos se-
xuais e prescrevem outros, e determinam as pessoas com as quais tais atos
~ Delphy, Christine. Pense r fe genre: quels problérnesi', in Marie-Claude Hurtig, Michele
Kail, Hélene Rouch (Ed.), Sexe et geme. De Ia hiérarehie entre les sexes, Paris, Éditions
podem ou não e devem ou não ser praticados. Não podemos abordar a se-
du CNRS, 1991b, p.89-101. [Republicado in C. Delphy, 2001, p.243-260.) xualidade sem nos referirmos, num primeiro momento, à "fábrica do sexo"
Guillaumin, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. L'idée de Nature, Paris, Côté- (Laqueur, 1990-1992), ou seja, às diversas concepções do sexo antomofisio-
femmes "Recherches", 1992, 241p. [Textos de 1977 a 1992). lógico e suas respectivas funções, bem como às intervenções físicas sobre os

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