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Trabalho e gênero
Karen Messing,Céline Chatigny

Introdução
Antes de mais nada, convém distinguir sexo e gênero. A palavra sexo se refere a uma con-
dição cromossômica, portanto puramente biológica.Cada célula humana contém 46 cro-
mossomos, em 23 pares. As mulheres possuem normalmente 23 pares de cromossomos
homólogos, entre os quais um é composto de dois cromossomos "X". Nos homens, um
dos X desse par é substituído por um cromossomodito "Y'. Para simplificar,poder-se-ia
dizer que a condição XX é associada à expressão de genes que codificam características
primárias e secundárias específicas das mulheres (útero, trompas de Falópio, altura rela-
tivamente baixa etc.) e a condição XYdetermina as características dos homens. Essas
determinações passam sobretudo pela produção de conjuntos de hormônios (mensageiros
biológicos secretados por glândulas que produzem efeitos em tecidos específicos) que são
característicos de um ou outro sexo (Graves, 1998). O sexo biológico é com freqüência
concebido como uma entidade dicotômica (salvo em algumas situações de exceção): ou
definição social,
se é macho ou fêmea. A palavra género, por sua vez, se refere a uma
continuum de características
que varia conforme a cultura e que representa um certo
representa e é
(Mathieu,2000), Apesar dessa diversidade,uma pessoa se identifica, se
masculino ou feminino. Os
representada pelos outros como pertencendo a um só gênero,
a de relações sociais de sexo, que ressalta a
sociólogosrecorrem a uma terceira noção,
interações (Kergoat, 1984). Gonik et at. (1998)
inserção da identidade numa dinâmica de
relações entre o masculino e o
falamdo género que se compreende na "dinâmicadas
feminino",
a um gênero são deter-
Não sabemos em qual medida as características associadas a
minadas pelo sexo cromossómico ou hormonal, Certos comportamentos, entre os quais
como sendo masculinos ou femininos:
Prática de um ofício, são considerados por alguns
supermercado é uma mulher, Molinier (1999)
0 caminhoneiro é um homem, a caixa de
assim a contribuição do gênero na
eSPecialistaem psicodinâmica do trabalho descreve
mulheres: "Os oficios que recorrem à violência
definiçãodos ofícios dos homens e das
que recorrem à 'função maternal' são femininos".
legal [•..lsão masculinos, Os ofícios
e por extensão para os ergonomistas,
Portanto, para os trabalhadores e trabalhadoras,
genética/social na origem da divisão sexual do
Pouco importa circunscrever a proporção
Fundamentos teóricos e conceitos
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homens/mulheres, Aquelas que decorrem diretamente do sexo


trabalho ou das diferenças serão normalmente levadas em conta
cromossômico, como as medidas antropométricas,
da diversidade humana, a qual é preciso ter ern
pelo ergonomistacomo fazendo parte
trabalho ou a concepção das ferramentas
mente quando se faz a adequação dos postos de
do gênero é menos comum entre os ergonomistas.0
(Pheasant, 1996). A consideração
é que o gênero pode determinar, ao menos em parte.
importante, para a análise do trabalho,
de formação recebida e a relação com
representações das capacidades humanas; o tipo
divisão sexual da atribuição das tarefas
a f01maçàodos trabalhadorese trabalhadoras;a
a interação entre o trabalho e a vida
e exigências, dos modos operatórios e estratégias; para a saúde, da atividade
fora do trabalho, e a representação social das conseqüências,
a maioria desses fatores, mas
de trabalho. Poucas informaçõesestão disponíveis sobre
apresentamos aqui alguns resultados de pesquisas.
do trabalho das mulheres
Todavia, é importante fazer uma distinção entre a análise
atividade dos er_
e o exame do gênero em relação com o trabalho. A primeira faz parte da
na linha de
gonomistas desde o começo da disciplina. Análises do trabalho das operárias
montagem (Wisneret al., 1967) , das costureiras (Teiger e Plaisantin, 1984) , das telefonistas
(Dessors et al., 1978), e mesmo do trabalho doméstico das mulheres (Doniol-Shaw, 1983)
estiveram entre as primeiras publicaçõesdo laboratório do Conservatoire national
des arts et métiers. O trabalhode escritóriofoi o objeto de um número considerável
de trabalhos em biomecânica e em ergonomia cognitiva (Punnett e Bergqvist, 1997). Os
ergonomistas se debruçam atualmente sobre o trabalho em serviços, majoritariamente
executado por mulheres (Falzon e Lapeyriêre, 1998; David et al., 1999; Seifert et (11.,
1997). A análise ergonômica do trabalho das mulheres se mostrou particularmente útil,
pois as suas atividades e os constrangimentos reais são com freqüência pouco conhecidos
(Teiger e Bernier, 1992; David et ai., 1999;Balka, 1998; Messing, 1999, 2000).
A consideração da questão de gênero, em ergonomia como em outras áreas, diz res-
peito também aos homens. Kjellberg(1998) observa que, embora a vasta maioriadas
pesquisas em saúde no trabalhotrate de ocupações em que os homens são maioria,elas
não foram feitas a partir de uma perspectiva de gênero. Ele sustenta que, ao contrário, os
homens são considerados comorepresentantes da humanidade e que sua especificidade
não foi considerada na interpretação dos resultados. Por exemplo, os homens são sobre-
representados entre os acidentados no trabalho, mas a análise dos acidentes não explora
as raízes dessa preponderância, do ponto de vista do gênero.

Divisáo sexual do trabalho e do emprego


Vários pesquisadores e pesquisadoras, sobretudo
sociólogos, se debruçaram sobrea
divisão sexual do trabalho (Kergoat, 1982; Armstrong e
Armstrong, 1993; Hirata e Senotier'
1996; Gonjk et 01., 1998; Vogel, 1999). Observa-se
que as mulheres estão concentradas
no setor de serviços, e que também são encontradas,
escritório e em serviços pessoais, enquanto os muitas vezes, em empregosde
homens são encontrados nos setoreS
primário e secundário, Estes são também majoritários
entre os executivos e as profissÕeS
de nível superior de escolaridade (Asselin et
al., 1994; Armstrong e Armstrong, 1993'
Saurel-Cubizolleset al., 1996), As mulheres fazem
muito mais trabalhos não remunerados
(doméstico ou voluntário), a diferença é menos
et al., 1987) do que na França (Curie e Haijar, pronunciada no Québec (Le Bourdais
1987; Derrienic et al., 1996, P. '380)•Em
resposta a um questionáriofrancês, metade
dos operários informou que faz trabalho
Capítulo 18 - Trabalhoe
ênero
251
doméstico (incluindo
bricolagem,jardinagem
comparação às operárias e os cuidados corn o lar e a família) em
(Saurel-Cubizzolles
trabalho total (remunerada et ala, 1991);etn compensação, a semana de
para os dois sexos, tanto e não remunerada) tem urna duração
no Canadá quanto aproximadamente igual
mais elevada de mulheres na França. Isso decorre de proporção muito
que trabalham em
Na França, as mulheres tempo parcial, e isso nos dois países.
são mais freqiientemente
os homens, como operários classificadas corno empregadas e
fissões principais das (Saurel-Cubizzolles et 01., 1996). Uma
mulheres e dos homens lista das quinze pro-
três empregos em comum no Canadá mostra que eles têm apenas
balham sobretudo em
(Statistiques Canada, 2000).Nota-setambém que ambostra-
companhia de uma
considerável maioria de colegas de seu próprio
Alguns autores acreditaram
trabalho entre os sexos devido ter encontrado princípios organizadores da divisão do
às
trabalhos pesados, as mulheres exigência físicas; por exemplo, os homens fazem os
os trabalhos leves (Gaucher, 1983). Mas confrontados
a contra-exemplos (mulheres
auxiliares de enfermagem que levantam cargas pesadas,
preponderância dos homens em
tarefas de supervisão) e à variação geográfica e temporal
da divisão das mesmas tarefas, os
historiadores não encontram princípios desse tipo (à
parte a divisão hierárquica). Alguns
concluíram que a divisãose dá caso a caso, tendo
como base uma conjuntura econômica,
política e social (Bradley, 1989;Goniket al., 1998,
cap. 2). Na França, é uma mulher que fatia
o peixe antes de mandá-loà linha para o
empacotamento, no Québec é um homem (Messinge Reveret,
1983).Na indústria do
vestuário, os homens cortam, as mulheres costuram, mas tanto homens quanto mulheres
passam. Gonik et al. (1998, 59) concluem assim sua análise ergonômica das atividades
segundo o gênero em três empresas: "Deve-seconstatar então que as qualidades iden-
tificadas como masculinas, a resistência física por exemplo, ou como femininas, a minúcia
ou a capacidade de suportar um trabalho monótono, não são fixadas de uma vez por to-
das, mas diferem de um contexto profissionala outro —essas representações podem até
se contradizer."
Assim, como constata Chatigny (2001, p. 40) , essas "qualidades não são apenas indivi-
duais e sexuadas, elas são requeridas e desenvolvidas pelo trabalho, em uma ou mais de
suas dimensões e numa direção que depende do contexto (p. ex., no sentido da autonomia
ou da dependência)". Ora, essas competências profissionaisnão são necessariamente
reconhecidas pelas empresas. Por exemplo, Teiger (1995) relata o caso de mulheres con-
tratadas pela indústria da eletrônica por serem hábeis, minuciosas e rápidas, em virtude
de sua experiência anterior como costureiras, embora a empresa não considerasse que
possuíssem qualquer qualificação específica associada a essas competências,

Divisão sexual das atioidades e de sua representação. —Váriosautores


(Messing
et al., 1998) descreveram
e Reveret, 1983; Mergler et ale, 1987; Dumais et al„ 1993;Gonik
implica não só a designação dos
a divisão sexual das atividades na empresa, Essa divisão
por sexo das tarefas e das condições
cargos numa base sexuada, mas também a atribuição
de trabalho.

a um gênero. —Para ver


Exigênciasfísicas das tarefas habitualmente atribuídas
exigências físicas variam em relação ao gênero, examinemos a linha de produ-
como as
1993). No começo da linha, encontram-
numa fábrica de biscoitos (Dumais et al.,
Fundamentos teóricos e conceitos
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despejam-na em formas que colocam no forno. Eles
massa,
se homens que misturam a jogam numa esteira rolante. As mulheres assumem a
os
tiram os biscoitosdo forno e em fileiras, colocam-nos
em bandejas de papelão
os biscoitos
continuação. Elas alinham Em seguida, arrumam os biscoitos em
de embalagem,
que introduzem nas máquinas essas caixas em caixas
maiores, que entregam aos
pequenas caixas com rótulo, colocam
entrega, A divisão sexual do
Estes carregam as caixas aos caminhões e fazem a
homens.
absoluta. As poucas mulheres que ocupam funções de homens não se
trabalho é quase
sentirem desconfortáveis.
sentem confortáveis ou são levadas a se
Québec, o trabalho nos abatedouros de aves é distribuído de maneira
Na França e no
et al., 1991; Courville et al., 1994): os
análoga(Mergleret al., 1987;Saurel-Cubizzolles
grandes, passando-os então às mulheres
homens matam os perus e os cortam em pedaços
e etiquetam, para enfim devol_
que os cortam em pedaços menores, os ajeitam, embalam
entregá-los.
vê-los aos homens, que os carregam aos caminhões e vão
Nesses casos, a divisãodo trabalho corresponde a diferentes exigência físicas. Os
constrangimentos podem ser muito intensos nas funções ditas manuais, tradicionalmente
femininas, e ocupadas por mulheres jovens (Molinié e Volkoff, 1981; Teiger, 1987). Exige-
se com freqüência das mulheres movimentos rápidos das mãos, uma boa acuidade visual
ou uma posição estática. Os movimentos rápidos e repetitivos são exigidos na maioria das
linhasde montageme no setor de serviços (como a aquisição de dados e a entrevista). A
acuidade visual é necessária em vários tipos de trabalho exigindo um trabalho minucioso:
costura, microeletrônica, trabalho em monitor. A resistência, em particular a necessidade
de manter uma posição estática, é exigidafreqüentemente nos empregos femininos, em
particular na América do Norte, onde a imagem do serviço é invocada para justificá-la.
Assim, as vendedoras de supermercados, as caixas de bancos e as balconistas nas lojas de
departamentos permanecem de pé o dia inteiro sem poder se sentar, mesmo nos períodos
de vale (Vézinaet al., 1994).
Segundo a pesquisa ESTEVna França (Derriennic et al., 1996), os homens são com
mais freqüência expostos a um leque de situações visivelmente perigosas: porte de cargas,
perigos fisicos, ambiente desconfortável, horários prolongados, vibrações etc. Em com-
pensação, por causa da probabilidade maior de que os homens sejam promovidos, a carga
fisica de trabalho das mulheres permanece constante com o tempo no emprego, enquanto
a dos homens diminui (Torgén e Kilbom, 2000),

Erioêncios psicológicas e cognitivas. —A relação entre o contexto de trabalho, a di-


nârrúcadas competências e a identidade é um fator de saúde
mental (Dubar et ale, 1989).
Os trabalhadores podem conviver bem com expectativas
elevadas se têm a possibilidade
de decidír como enfrentá-las, mas sentem-se
angustiados e desenvolvem doenças se eles
perdem esse poder discricionário; a solicitação
cognitiva pode ser também muito elevada
(Clot, 1993),Karasek e seus colegas
constataram que um trabalho é "árduo" quando as
expectativas são elevadas, mas a latitude
decisional dos empregados é restrita (Karasek
e Theorell, 1990).
Em geral, os empregos das mulheres
exigem mais esforços que os dos homens (Hall,
1989). O esforço provém sobretudo
de uma falta de latitude decisional: as mulheres têm
menos autonornia do que os homens
(Bourbonnais et ale 2000). Segundo a pesquisa francesa
ESTEV,as mulheres têm com mais
freqüência um trabalho monótono e possibilidades
Capítulo 18 —Trabalho e ênero 253

menores de aprendizagem no trabalho (Derriennic et al., 1996, 387). Marsick e Watkins


(1990)tinham também assinalado lacunas importantes entre as necessidades das mulheres
e os recursos formadores.
Em setores tradicionalmente masculinos, exemplo urna empresa montadora de
automóveis, tendo menos tempo de casa que seus colegas masculinos,
mulheres precisam
substituir estes nos postos de trabalho mais exigentes, corn pouco ternpo de preparação
(Chatigruy,1999). Numa empresa do setor da metalurgia, as mulheres,
distribuídas em vários
departamentos, têm pouco apoio para desenvolver estratégias de prudência
e combinam para
tomar banho na mesma hora, pois é o único lugar em que podem compartilhar
estratégias
de regulação das situações e ambientes que foram pensados e organizados por e
para ho-
mens. estratégia não foi suficiente, essas mulheres procuram atualrnente
se encontrar
uma vez por mês fora da fábrica (Chatignyl). Esse tipo de
concertamento, que transborda
para os momentos privados, foi também constatado em setores
tradicionalmente femininos:
entre as domésticas (Cloutier et al., 1999), entre digitadoras
(Teiger e Bernier, 1992) e
entre ftmcionárias de escritório que precisam se formar
por seus próprios meios, enquanto
os empregadores consideram essa atividade "pessoal" necessária
para a manutenção do
emprego (Boivin, 1994). Num meio misto como na limpeza
hospitalar, contrariamente a
seus colegas masculinos, as mulheres não são ensinadas a utilizar
os aparelhos de limpeza,
o que limita seu sucesso em certos postos de trabalho (Messinget al., 1998a).

Diferençahomem-mulher no interior
de um mesmo cargo.— Mesmo que homem
e uma mulher ocupem a mesma função, eles não estão imunes contra a divisão sexual do
trabalho. A eles podem ser atribuídas tarefas bastante diferentes. A metade das equipes de
jardinagem estudadas num município do Québec relatou uma associação entre gênero e
tarefa: os jardineiros utilizavam máquinas, às quais o acesso era proibido para as mulheres;
os homens se entendiam para cortar as árvores, enquanto as mulheres se ocupavam dos
pequenos arbustos; os homens se apoiavam em pesados cortadores de grama para fazê-los
subirpor encostas íngremes enquanto as mulheres se mantinhamem postura inclinada
para arrancar as ervas daninhas (Boucher, 1995).
Essa diferença de exigências das tarefas conforme o gênero não se aplica apenas aos
cargos com forte componente físico. No prestigioso Masachusetts Institute of Technologv,
mediu-se o espaço de laboratório concedido aos professores e professoras de tuna mesma
faculdade, para constatar que as mulheres desfrutavam da metade do que era concedido
aoshomens (The MIT Faculty Newsletter, 1999).
Pode-se também refletir sobre as diferenças na vivência dos horários difíceis, variáveis
ou imprevisíveis, das dificuldades de acesso ao telefone, das exigências de trabalho em casa
ou de transporte conforme o tipo de responsabilidade familiar (Prévost e Messing,2001),

Deve o ergonomista necessariamente se opor à divisão seaual das tarefas? —A


demanda apresentada ao ergonomista só raramente trata da divisão de tarefas entre as
categoriasde empregados, No entanto, a tendência moderna à polivalêncialeva o ergo-
nomistaa questionar qualquer rigidez na atribuição de tarefas por categoria de empregados

1 "Fórumnord-côtier sur Ia situation des femmes en emploinon traditionnel"(16-18outubro de


1998). Não publicado.
Fundamentos teóricos
e
conceitos

(Vézina et al., 1999). A polivalência é com freqüência invocada como solução


monotonia e os gestos repetitivos. Ora, os empregados podem gostar da o Paraa
de ampliar suas responsabilidadesou então podem ter certa dificuldadefísica
Portunidade
01., 1998). Dificuldades
psicológica para se adaptar a outras tarefas (Vézina et podemser
empregados, aos quais se impõe urna ruptura da divisão
experimentadas por sexualdas
sexuais, os empregados dos dois sexos
tarefas. Por causa dos estereótipos podemse sentir
pela obrigação de fazer operações
ofendidos, constrangidos ou humilhados habitualm
sexo. ente
realizadas por pessoas do outro
recusaram-se a limpar os
Os homens num sewiço de faxina, por exemplo, banheiros
de uma tarefa "naturalmente" atribuída
sob o pretexto de que se tratava às mulheres
questionar um
(Messing et al, 1993). O ergonomista pode e deve estereótipo cornoesse
certas tarefas. Por exemplo,podes
que pode impedir uma consideração das dificuldades de
se considerar que a monotonia é bem tolerada pelas mulheres, sem se colocara questão
elas. As exigênciasemotivas
do leque bastante limitado de tarefas que são oferecidas a
intensas de certos cargos podem ser subestimadas por essa razão (Soares, 1997;Davidet
al., 1999;Seifert et 01., 1999). Pode-se mais facilmente forçar homens a enfrentar ameaças
de morte ou ferimentos, na medida em que é relativamente difícil para eles demonstrar
seu medo (Cru e Dejours, 1983; Loukil, 1997).
Portanto, abolir a divisão sexual do trabalho pode parecer uma boa maneira de abrir
o caminho para uma consideração do trabalho e de sua representação, atravésde uma
análise fina da atividade e de seus determinantes. Mas é preciso considerar CUidadosamente
o lugar dessa representação em toda a dinâmica do meio. As faxineiras de um hospital
quebequense se opuseram firmemente as mudanças no seu trabalho que visavamigualar
suas tarefas às dos homens, como meio de tornar o trabalho mais eficaz e menos repetitivo.
As mulheres temiam, apoiando-se em exemplos, que apenas homens fossem contratados
para os novos cargos.
Esse temor poderia ser justificado. Numa fábrica têxtil, após uma fusão entre cargos
"masculinos" e "femininos", várias mulheres se sentiram incapazes de fazer certas tarefas
efetuadas anteriormente por uma população masculina (manobrar um carrinho comma-
rolos de tecido). Na ausência de investimentos em equipamentos de
nipulação de grandes

de auxílio,as mulheres se viram sem emprego.

Interaçóes entre o trabalhador, a trabalhadora e o cargo


Génrro e modos operatórios. As mulheres fazem as coisas de maneira diferente?
mulherestêm
As diferenças biológicas, psicológicas e de formação entre os homens e as
consequências nos modos operatórios?
conhecimen-
No que diz respeito aos aspectos biológicos, existe um certo número de
da literatura emKil-
tos sobre as diferenças homens-mulheres (Mital, 1984; recapitulação 0
variável conforme
bom e Messing, 1998), A diferença média entre os dois sexos é muito
mesmo
parâmetro estudado e, em geral, inferior à diferença entre os extremos de um sexoea
conforme 0
A evolução das capacidades para o trabalho mostra relações diferentes
antropométricas
capacidade estudada (Ilmarinen et al., 1997), A amplidão das diferenças é muito
entre os homens e as mulheres depende do segmento corporal: sua importância
maior para a largura da mão do que para o tamanho da bacia, por exemplo•
capítulo 18 —Trabalho e ênero 255

A possibilidade de ajustar os postos de


trabalho é muito irnportante para as mulheres,
pois é comum que se concebam postos de trabalho segundo urn gabarito masculino. Nos
abatedOUrosfranceses, mais mulheres que homens informavam
que seu posto estava mal
adaptado às suas características (Saurel-Cubizolleset alo
1991). DOmesmo rnodo, as
caixas de banco mencionam que os balcões são largos demais para elas, e as menores
são as que reclamam de maiores dificuldades (Seifert et al., 1997). A adaptação do posto
de trabalho na triagem dos pacotes postais obrigou as pessoas baixas de urna empresa
a adot,aruma postura com risco para os ombros (Courvilleet al., 1992). Karlqvist et (JI.
(1998) demonstraram que as pessoas com os ombros mais estreitos e estatura mais baixa
trabalhavamem posturas menos favoráveis quando eram designadas para o posto de
operador com tela de visualização.
Em situações de laboratório, o homem médio levanta um peso 50% maior do que a
mulher média (Laubach, 1976). A diferença de força física depende também das caracte-
rísticas específicas da operação estudada (Fothergill et 01., 1991). Stevenson estudou os
testes utilizados na contratação para medir a força física e demonstrou que a diferença
homem-mulher nos desempenhos varia conforme o teste. Os testes padrão tendo sido ela-
borad0Ssobretudo em função das características masculinas,as mulheres se saem melhor
neles quando o teste permite uma certa liberdade de adaptação (Stevenson et al., 1996);
as mulheres desenvolvem maneiras de fazer originais.Não sabemos em que medida essas
adaptações são atribuíveis unicamente às diferenças de tamanho e força.
Lortie (1987) demonstrou a existência de uma diferença nos modos operatórios dos
auxiliares de enfermagem homens e mulheres, que precisam deslocar pacientes durante
seu trabalho. As mulheres efetuavam o trabalho em equipe, conseguindo executar o mes-
mo número de transferências que seus colegas masculinosatravés de um aumento do
ritmo de trabalho. Os homens levantam o peso sozinhos, exercendo a força na direção ver-
tical, enquanto as mulheres trabalhavam em equipe e transformavam com mais freqüência
estudo
os movimentos verticais em força horizontal com a ajuda de puxadores. Um outro
da mesma população confirmou que as mulheres efetuavam proporção maior de opera-
Elabidi, 2002).
ções em equipe, e conseguiam fazer mais operações por hora (Messing e
psicológicas entre
Lindelõw e Bildt Thorbjornsson (1998) examinaram as diferenças
Não havia diferença
homens e mulheres. Poucas generalizações resistiram aos estudos.
moral ou nos inte-
reprodutível nas capacidades verbais ou matemáticas, no raciocínio
para os homens com relação a
resses sociais. Parecia haver diferenças, com vantagem
auto-estima.
sem se chegar a tuna conclusão definitiva
A sensibilidade à dor foi muito estudada,
têm mais tendência a se
(Hall,1995). Alguns pesquisadores concluem que as mulheres
(Macintyreet al., 1999;Stenberg
queixarde dores, enquanto outros acham o contrário
diferença no desempenho das
e Wall,1995), Um estudo sueco sugere que uma parte da
maior resistência à dor (ou
provasde força física poderia ser atribuída em parte a uma
aceitação da dor) por parte dos homens (Torgén, 1999),
entre os homens e as mulhe-
Os dados relativos às diferenças de modos operatórios
dos aspectos relativos a força
res são mais anedóticos do que científicos, com exceçáo
que só as mulheres são suficientemente
física. Assim, um supervisor de limpeza acredita
diretores (Messing, 1998): "Elas
meticulosaspara hmpar os escritórios dos grandes
esse tipo de crença se justifica através de
pam até detrás dos livros!"Resta descobrir se
um estudo sistemático de modos operatórios.
256 Fundamentos teóricos
e
conceitos

Quanto ao aspecto da formação, alguns estudos (Belenky et 01., 1986) parecem diz
que as mulheres e os homens aprendem melhor em Situações diferentes, mas nenh
generalização é ainda possível.

Situação familiar e cargo. - Algumascaracterísticas dos cargos podemgerarin


teraçôes diferentes conforme as pessoas devido à suas responsabilidades
conflito corn a vida
familiares, Os horários imprevisíveis, estendidos, ou ern social
um problema particular (Gadbois, 1993; Tissot et al., 1997), Ramaciotti et (JI. (1994)
sugeriram que se leve em conta a constelação familiar na elaboração dos horáriosde
população masculina. urna
Uma análise ergonômica foi feita junto a telefonistas, em grande maioriamulheres
tendo horários de trabalho irregulares e imprevisíveis, quanto as alternativas para cuidar
das crianças. As telefonistas desenvolvem várias estratégias para conciliar seus
de trabalho com a exigênciade uma presença contínua junto a seus filhospequenos.
Essas estratégias levaram a uma série de ajustes nas práticas da empresa, o que criouum
sistema complexo de estratégias de gestão dos horários (Prévost e Messing,2001).

Relações entre sexos no trabalho coletioo.— Os ergonomistas reconhecem cada


vez mais a necessidade de analisar o trabalho do ponto de vista dos aspectos coletivos
(Weill-Fassina e Benchekroun, 2000; Evraere, 1999). O impacto da idade e da experiência
sobre as regulações coletivas foi evidenciado em diversos setores de empregos masculinos
(Pueyo e Gaudart, 2000). O sexo pode constituir um terceiro fator na distribuiçãodo
trabalho coletivo. Soares (1997) discute as trocas entre a caixa de supermercadoe seu
gerente ou seus clientes nesses termos. Certos ergonomistas estudaram dificuldadesde
colaboração entre homens e mulheres no trabalho (Dumais e Courville, 1995;Messing e
Elabidi, 2002). No Brasil, pesquisas num restaurante universitário mostraram queuma
divisão informal das tarefas se operava entre homens e mulheres em função da natureza
das exigências das tarefas e das características individuais (estado de saúde, nívelde
experiência), o que resultou em particular, nesse caso, numa diminuição do trabalhofisico
das mulheres (Assunção e Laville, 1996).

Gênero e técnicas de análise quantitativa


Convém considerar o gênero no exame dos traços da atividade na empresa (Messing,
1999, 2000), Niedhammer et (JI, (2000) concluíram que a grande maioria dos trabalhosem
as
epidemiologia não considera o gênero de maneira apropriada. Em particular, diferenç
de exposição a perigos podem ser confundidos com efeitos específicos sobre sexo0110
outro. Assim, as mulheres com freqüência apresentam taxas e tipos de acidentes diferentes
daqueles dos homens (Laurin, 1991;Messing et al. 1994; Cloutier e Duguay,1996).Essas
diferenças podem provir de designações diferentes às tarefas ou de tempos no emprego
diferentes. Uma pesquisa interessante mostrou que os homens sofrem acidentesquando
mais jovens, enquanto nas mulheres os efeitos do trabalho sobre a saúde aparecemmó
tarde (Andersson et ale, 1990), O Instituto nacional da saúde e da segurança do trabalho
dos Estados Unidos (NIOSH) recentemente mudou sua maneira de calcular as taxasde
acidentes de trabalho. Para eliminar a subestimação dos acidentes das mulheres, utiliza-se
como denominador o número de horas trabalhadas, em vez do número de indivíd110S. Caso
capítulo 18 —Trabalho e ênero 257

contrário,como as mulheres trabalhamem


média menos horas por ano, seu nível mais
baixode acidentes poderia ser atribuído,
erronearnente, a empregos rnenos perigosos.
De muitas maneiras,a raça e a idade
exercem efeit,ossirnilaresao do género num
ambiente de trabalho. Como as mulheres e
os hotnens, os velhos, os jovens e as minorias
étnicas são com freqüência encontrados em
empregos específicos, expostos a perigos
diferentes (Derriennic et 01., 1996; Rrieger e Sidney,
1996; Punnett e Herbert, 2000;
Messinget al., 19981)).Estas três últimas categorias
têm em cornurn:corolários biológicos;
um potencial de discriminação;Ilma associaçãoàs
tarefas que lhes são designadas e às
relaçÔesde trabalho; uma associação com
características bastante diferentes na vida fora
do trabalho. A idade se distingue da etnia e do sexo, porque a
mesma pessoa passa por
todas as idades, e porque o assunto não é
habitualmente tabu num ambiente de trabalho.
Alémdisso, a idade existe num continuum,
e a relação entre idade e designação das
tarefas ou doenças do trabalho pode seguir uma
curva ou mostrar um progressão direta.
para a análise quantitativa, a consideração
das três características pode apresentar
dificuldades,na medida em que o sexo, a idade
e a etnia correspondem a um potencial
de exposição diferente. Para lidar com
essas interações complexas, Krieger (1995, p.
254) propõe uma abordagem dita "ecossocial",
permitindo uma compreensão muito
rica da interação dos componentes fisiológicos e sociais
com o meio ambiente: "Avaliar
essas diferenças implica em mais do que simplesmente acrescentar termos unidimensio-
nais como raça/etnia ou classe social a uma longa lista de outras variáveis (...). Requer,
em vez disso, que se coloquem questões sobre o empobrecimento, os privilégios, a discri-
minação e as aspirações "2
Colocar a questão do gênero na análise ergonômica abre, portanto, a porta a uma con-
sideração mais ampla da diversidade humana, e sobretudo onde essa diversidade encontra
discriminação e estereótipos.

Referências
ANDERSSON, R.; KEMMLERT,R.; KILBOM,A. Etiological differences between accidental
and non-accidental occupational overexertion injuries. Journal of Occupational
Accidcnts, n 12, p.177-186, 1990.
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BALKA,E, Technology as a factor in women's occupational health, In: TISSOT,France;
MESSING,K., (Ed.). Improving the health of women in the work force: a meeting of

2 "Evaluatingthese differences means more than simply adding one-dimensional terms like race/
ethnicity or social class to a long list of other variables. [„.l. It instead requires asking questions
about deprivation, privilege, discrimination and aspirations."

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