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ARTIGO

MULHERES, CASAMENTO E CARREIRA: UM OLHAR


SOB A PERSPECTIVA SISTÊMICA FEMINISTA

WOMEN, MARRIAGE AND CAREER: A SYSTEMIC FEMINIST PERSPECTIVE

RESUMO: O artigo apresenta uma discussão te- ABSTRACT: This paper aims to present a discus-
órica sobre a vivência de mulheres no casamento sion about the experience of women in marriage
e na carreira a partir da perspectiva de gênero e and in career by using a feminist systemic per-
MARIANA GRASEL DE sistêmica feminista. Apresentamos inicialmente spective combined with gender concepts. Ini-
FIGUEIREDO uma discussão sobre o feminismo, o trabalho das tially we propose a discussion about feminism,
Universidade de Brasília — mulheres e a possibilidade de investir na carreira women`s work and the possibility of having a
UnB, Brasília, Brasil profissional. Perpassamos aspectos históricos professional career. We discuss historical and
e conceituais que visam à contribuição para a conceptual aspects in order to contribute to the
GLÁUCIA RIBEIRO compreensão da experiência das mulheres com understanding of women`s experience with com-
a carreira na sociedade contemporânea. Articu- bining a career and a marriage and family life
STARLING DINIZ
lamos, em seguida, questões de gênero com re- in contemporary society. Then, it articulate the
Instituto de Psicologia – flexões acerca das mulheres no casamento. Por concepts of gender with the marriage of women.
Universidade de Brasília
fim, discorremos a respeito da terapia com base Finally, we describe the feminist systemic therapy
– UnB, Brasília, Brasil
na perspectiva sistêmica feminista na interação in interaction and with a gender and a systemic
casamento, carreira e gênero. A discussão res- feminist approach to marriage and family life. The
salta o quanto a perspectiva sistêmica feminista é discussion highlights how much the importance
importante e útil para dar visibilidade às questões of adopting a systemic feminist perspective is im-
de gênero enfrentadas pelas mulheres no contex- portant and useful to give light to gender issues
to do casamento e da carreira. dealt by women in their marriage and career.

PALAVRAS-CHAVE: terapia sistêmica feminista; KEYWORDS: systemic feminist therapy; gender;


gênero; casamento; carreira. marriage; career.

INTRODUÇÃO

A questão da vivência das mulheres no casamento e na carreira é um fenô-


meno multideterminado que perpassa o social, o privado, a história e a cultura.
Essa discussão torna-se relevante na medida em que nos ajuda a compreender
aspectos importantes da vida das mulheres contemporâneas. As mulheres casadas
que desenvolvem uma carreira podem enfrentar desafios significativos no que
diz respeito à vivência e à conciliação dessas diferentes dimensões da vida. Pen-
sar e problematizar criticamente a inserção de mulheres no mercado de trabalho
é fundamental, principalmente, se levarmos em conta os estereótipos de gênero
atribuídos a cada sexo presentes em nossa sociedade e as desigualdades deles de-
correntes. O fato incontestável é que as mulheres são as principais vítimas dessas
Recebido em: 23/10/2017 desigualdades, sobretudo no que diz respeito ao exercício profissional e salários
Aprovado em: 18/01/2018 (Yannoulas, 2013).
Nossa compreensão conceitual so- profissionais, de outro existe um nú- Mulheres, casamento e
bre carreira segue a junção de defini- mero significativo de mulheres que carreira: um olhar sob a 101
perspectiva sistêmica
ções clássicas encontradas nos estudos permaneceu em campos de atividade feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
de Rhona Rapoport e Robert Rapo- tais como o setor da indústria têxtil,
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
port (1976) e de Douglas Hall (2002). comércio (como empregadas), lavou-
De acordo com os primeiros autores, ra, serviços (empregadas domésticas),
carreira é entendida como uma sequ- educação (professoras), formando um
ência de trabalhos que exige um alto contingente de mão de obra que exerce
grau de compromisso e um caráter suas profissões muitas vezes receben-
contínuo de desenvolvimento. Dou- do baixos salários e em condições de
glas Hall (2002) construiu seu con- precarização.
ceito ao mesclar diferentes definições Diante desse contexto cabe apontar
de carreira encontradas na literatura. a divisão do mundo em duas esferas
Para o autor, seu significado refere-se à – uma privada, destinada ao mundo
sequência individualmente percebida feminino, e outra pública, destinada
de atitudes e comportamentos associa- ao mundo masculino (Amâncio &
dos com as experiências de trabalho e Oliveira, 2012; Scott, 1995; Yannou-
atividades durante a vida de uma pes- las, 2013). Esse processo resultou em
soa. O conceito clássico da literatura uma lógica dualista que produziu uma
nacional sobre carreira foi consolida- formação sexista tanto da vida privada
do pelo pesquisador Joel Dutra na dé- quanto da vida pública, além de um
cada de 1990. Ele define carreira como processo de socialização diferenciado
“as sequências de posições ocupadas e para os dois sexos. Silvia Yannoulas e
de trabalhos realizados durante a vida colaboradoras (2013) ressaltam que
de uma pessoa” (Dutra, 1996, p. 17). O esse processo de socialização contri-
alto investimento de tempo e energia buiu para exacerbar hierarquias e fo-
no desenvolvimento da carreira é um mentar processos de dominação/su-
aspecto importante do mundo con- bordinação. Decorre daí a importância
temporâneo presente na vida tanto de de problematizar a dimensão de gêne-
homens quanto de mulheres. ro, uma vez que as construções sociais
A participação de mulheres no mer- acerca das atividades que cabem a um
cado de trabalho, desde os seus pri- e outro sexo foram produzidas social-
mórdios, foi marcada por controvér- mente e demarcam lugares de experi-
sias. Silvia Yannoulas e colaboradoras ência distintos para homens e mulhe-
(2013) apontam que “a organização res, tanto da esfera pública quanto na
patriarcal da família e da esfera do tra- vida privada, ou seja, no casamento,
balho” sempre privilegiou os homens, na família, no mundo do trabalho.
dando-lhes preferência e outorgando- Este artigo, nesse sentido, tem por
-lhes privilégios. A participação de objetivo apresentar uma discussão te-
mulheres no mundo do trabalho foi órica a respeito da vivência das mulhe-
marcada por dissimetrias que susten- res no casamento e na carreira. Arti-
tam a divisão sexual do trabalho. As culamos nessa reflexão conceitos das
autoras ressaltam que se por um lado teorias de gênero e pressupostos da
ocorreu um fenômeno da feminização terapia sistêmica feminista. Buscamos,
do trabalho, uma vez que mulheres dessa forma, como pesquisadoras e te-
começaram a ingressar em diversos rapeutas sistêmicas na área de casais e
campos profissionais, desenvolven- famílias, colaborar para uma reflexão
do carreiras em diversos contextos crítica e uma prática clínica que torne

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visíveis aspectos da vida das mulheres pensamento sistêmico, as conexões e
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profissionais casadas de nossa socie- relações ganham mais atenção do que
dade. Certos desafios pessoais das mu- as características individuais.
lheres, bem como conflitos conjugais Esse entendimento perpassa a base
presenciados na clínica, por exemplo, de atuação das diferentes escolas de te-
podem ter relação com as desigualda- rapias sistêmicas familiares na medida
des de gênero implícitas nos contextos em que tais escolas percebem os siste-
do casamento, da família e do traba- mas familiares como uma unidade em
lho-carreira dos cônjuges. constante transformação e que man-
tém uma interdependência entre seus
membros e com o meio. Os eventos
O PENSAMENTO SISTÊMICO E A ou partes não causam outros eventos,
TERAPIA FAMILIAR mas estão ligados de forma circular a
muitos outros eventos e partes. Assim,
O surgimento da terapia familiar os diferentes elementos que compõem
sistêmica foi influenciado pelo pensa- um sistema influenciam e são influen-
mento sistêmico (Vasconcellos, 2004). ciados uns pelos outros de forma con-
Essa forma de pensar propôs um novo tínua e recíproca.
paradigma em oposição ao pensamen- Gênero, por sua vez, pode ser defi-
to positivista que dominava a ciência nido como o código de conduta que
e estava vinculado a princípios de ob- rege a organização social das relações
jetividade, neutralidade do/a cientista, entre homens e mulheres (Diniz &
simplificação e controle dos fenôme- Féres-Carneiro, 2012). Segundo Scott
nos – que eram percebidos dentro de (1995), gênero fundamenta-se nas
uma estrutura de pensamento linear atribuições culturais feitas ao sexo
–, pautado por uma lógica de causa masculino e feminino que estabelecem
e efeito. Era dessa forma que as leis e padrões e expectativas para mulheres e
regras que regem tanto o mundo pri- homens em cada cultura. É, conforme
vado quanto a vida social eram com- a autora, um elemento constitutivo de
preendidas e previstas. Tal modelo, relações sociais baseadas em diferenças
entretanto, começou a mostrar-se in- percebidas entre os sexos. O gênero é a
suficiente diante de um mundo que se principal forma de significar as rela-
tornava cada vez mais complexo. ções de poder. As mudanças ocorridas
A terapia familiar sistêmica com- nas relações sociais correspondem às
preende a família como um sistema de transformações nessas representações
interação aberto, composto de subsis- de poder. A teoria de gênero aponta
temas que se interligam e estabelecem a importância do estabelecimento de
padrões de interação que governam o condições igualitárias entre homens
funcionamento da família e influen- e mulheres nos diferentes contextos e
ciam o comportamento de seus mem- destaca que ambos são sujeitos ativos
bros (Carter & McGoldrick, 2001; na sociedade, independente dos este-
Minuchin, 2008; Nichols & Schwartz, reótipos atribuídos aos sexos (Diniz,
2007). Nessa perspectiva, a família 2003; Diniz & Féres-Carneiro, 2012;
é considerada como um sistema, ou Macedo, 2009; Scott, 1995).
seja, ela está em interconexão com Nesse contexto e dentro do posi-
outros sistemas diferentes, tais como cionamento novo paradigmático sis-
os sistemas sociais, políticos, econô- têmico surge o “The Women Project”
micos, culturais. Sob influência do liderado pelas pioneiras da Terapia Fa-

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miliar, Marianne Walters, Peggy Papp, rem o mundo do trabalho remunerado Mulheres, casamento e
Olga Silverstein e Betty Carter. O mo- e, assim, dedicarem-se a uma carreira carreira: um olhar sob a 103
perspectiva sistêmica
vimento tinha como objetivo intro- profissional. feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
duzir reflexões de gênero nas práticas A partir das considerações apre-
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
psicoterápicas sistêmicas com famílias sentadas, optamos por discutir neste
e casais. Essas autoras argumentavam artigo sobre a vivência das mulhe-
e defendiam que nenhuma interven- res na interação com o casamento e
ção está livre de valores associados a carreira através de uma perspectiva
ao sistema sexo/gênero (Diniz, 2003; sistêmica feminista e de gênero. Dessa
Walters, 1994). O projeto alertava para forma, pretendemos contribuir para a
a necessidade de os/as terapeutas sis- ampliação das reflexões sobre essa te-
têmicos/as estarem conscientes dos mática tão atual e presente nos meios
valores, crenças, preconceitos e jul- sociais assim como em nossos consul-
gamentos imbricados nas perguntas, tórios psicológicos.
na construção de hipóteses e nas in-
tervenções feitas nas sessões com ho-
mens e mulheres atendidos/as. As dis- TRABALHO DAS MULHERES,
cussões de gênero na terapia familiar, POSSIBILIDADES DE CARREIRAS E
inspiradas pelos feminismos, deram FEMINISMOS
origem ao que chamamos de terapia
sistêmica feminista ou terapia femi- Michele Perrot (2012), em sua obra
nista da família (Goodrich, Rampage, intitulada Minha história das mulheres,
Ellman, & Hasltea, 1990; Narvaz & faz uma análise sobre o trabalho das
Koller, 2007; Penso & Sant’Anna, 2015; mulheres ao longo da história. Perrot
Walters, 1994). A terapia sistêmica fe- (2012) afirma que as mulheres sempre
minista incorpora, portanto, a crítica trabalharam. A maior parte delas, an-
feminista às terapias familiares. tes da segunda guerra mundial, eram
Nas últimas décadas, os papéis das camponesas ligadas ao trabalho rural.
mulheres no casamento e no trabalho A vida das camponesas era regrada
sofreram profundas modificações (Di- pela da família e pelo ritmo das pro-
niz & Feres-Carneiro, 2012; Jablonski, duções dos campos.
2010; Rocha-Coutinho, 2007, 2012; As sociedades eram patriarcais e
Zordan, Falcke, & Wagner, 2014). O as hierarquias rígidas, o que refletia
casamento passou por diversas trans- na divisão de funções, de tarefas e de
formações. O fato é que, durante mui- espaços sociais. Ao homem cabia o
to tempo, a vida conjugal e familiar era trabalho da terra e das transações do
construída em torno de uma divisão mercado e à mulher cabia o cuidado
clara de papéis pautada na diferença com a casa, os filhos, a criação de ani-
de poder entre os sexos. Os papéis de mais, a horta. A mulher camponesa
esposa, mãe e de responsável exclusiva também era responsável por cuidar
pelos afazeres domésticos perderam das vestimentas da família as quais,
a rigidez com que eram definidos na muitas vezes, ela mesma as tecia. Nes-
família tradicional e foram questiona- se contexto, além do trabalho rural,
dos. Embora na história as mulheres exerciam simultaneamente o trabalho
tenham sempre trabalhado, os movi- doméstico.
mentos sociais que surgiram nas últi- A mulher camponesa dos séculos
mas décadas do século XX ampliaram passados, segundo Perrot (2012), era
a possibilidade das mulheres adentra- uma mulher ocupada. Assim, pode-

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mos constatar o quanto, já nessa época, dirigir automóveis, ter acesso à admi-
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a mulher vivenciava a multiplicidade nistração do dinheiro e usar talões de
de funções na rotina diária da vida fa- cheque (Perrot, 2012). Elas passaram
miliar e doméstica. Os diversos traba- a buscar trabalhos em lugares que co-
lhos realizados, no entanto, não eram meçavam a empregar mulheres, como,
remunerados. Foi a partir do século por exemplo, os correios.
XVII que, na Europa, e em seguida nas O fato é que o trabalho doméstico
outras partes do mundo, elas começa- na história ocupou lugar central na
ram a fazer parte do circuito monetá- vida das mulheres. Perrot (2012) abor-
rio, tendo em vista o crescimento do da três tipos de trabalho doméstico re-
mercado têxtil e de luxo nas cidades. alizado pelas mulheres europeias entre
O dinheiro que ganhavam, entretanto, os séculos XVIII e XIX: o trabalho da
era entregue aos seus cônjuges. dona de casa dos meios operários, da
Por volta do século XVIII, por in- dona de casa burguesa e das emprega-
fluência da industrialização e do das domésticas. As ocupações da pri-
consequente êxodo rural, a situação meira eram: o serviço de limpeza da
das camponesas começou a mudar. casa, a lavagem da roupa, as compras,
A partir desse momento elas apren- a preparação das refeições. Essas mu-
deram a mexer na terra e a gerenciar lheres eram encarregadas de tornar o
negócios. As guerras também foram custo de vida mais barato. O trabalho
responsáveis por diminuir a presença das operárias foi influenciado pela in-
de homens no campo e possibilitar às dustrialização. Segundo a autora, esse
mulheres assumirem os trabalhos que tipo de trabalho era, no entanto, pouco
antes eram exclusivos deles. Com a in- qualificado, monótono, desconfortá-
dustrialização, as mulheres, ainda me- vel, sujeito a riscos de acidentes, com
ninas, iam trabalhar nas fábricas, di- jornadas diárias em torno de quatorze
recionadas pelos seus pais. As fábricas horas, sem garantias e sem possibilida-
ficavam nas cidades e eram também de de carreira.
internatos onde as meninas moravam. O trabalho das mulheres, de acordo
No final do mês, o que recebiam pelo com essa breve análise histórica, ficou
pagamento de seu trabalho era envia- predominantemente circunscrito ao
do para os pais (Perrot, 2012). Nessa espaço privado, era exercido de forma
época, as mulheres possuíam pouca não remunerada e não valorizada. As
autonomia em relação às suas escolhas atividades domésticas eram atribuídas
profissionais ou mesmo em relação ao e vistas como atribuições da mulher,
uso do dinheiro. independentemente de ela possuir ou-
O casamento, naquele contexto, tras atividades dentro ou fora de casa.
ainda era o destino natural da gran- O estereótipo social da mulher foi
de maioria das mulheres. Não acon- apoiado em sua condição biológica e
tecia por amor, mas era arranjado de justificou seu confinamento ao espaço
acordo com os interesses das famílias. doméstico (Zanello, 2016). A sua capa-
Desde cedo as meninas eram edu- cidade reprodutiva levou a uma ideali-
cadas para exercer as atribuições de zação e naturalização das responsabili-
dona de casa, esposa e mãe. Foi so- dades femininas quanto ao cuidado da
mente quando a família começou a se casa e da família. A capacidade de gerar
tornar menos patriarcal, na segunda não era tida como produtiva e, nesse
metade do século XX, que as mulhe- contexto, a mulher representava o sexo
res se modernizaram e começaram a desqualificado para a vida pública.

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Após o século XIX, com a industria- da década de 1970 (Fontenele-Mou- Mulheres, casamento e
lização, a mulher iniciou uma jornada rão, 2006). O empobrecimento das carreira: um olhar sob a 105
perspectiva sistêmica
de novas significações e conquistas no camadas médias, aliado ao aumen- feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
mundo do trabalho. A segunda guer- to das despesas com educação dos
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
ra mundial trouxe às mulheres maior filhos, saúde e outras necessidades
oportunidade de atuar e reivindicar consideradas básicas, impulsionou,
seus direitos. A partir da moderni- especialmente nos anos de 1980, as
dade, a mulher adentrou principal- mulheres casadas a buscar um traba-
mente o setor terciário de serviços lho fora de casa (Rocha-Coutinho &
e passou a ocupar cargos como o de Losada, 2007).
vendedora, secretária, enfermeira e o No início da década de 1990, a mu-
de professora. Essas profissões foram, lher consolidou sua participação no
durante muito tempo, associadas prin- mercado de trabalho e hoje a mão de
cipalmente às mulheres, uma vez que obra feminina já é superior a dos ho-
reforçavam a ideia da mulher como mens (Bruschini & Lombardi, 2001;
cuidadora. Cabe ressaltar que, apesar Coelho, 2006; Fontenele-Mourão,
de todas as mudanças que ocorreram 2006). Todo este movimento contri-
tanto na vida social quanto no mundo buiu significativamente para a redefi-
privado, atualmente, em todo o mun- nição das atribuições sociais de gênero
do, ainda cerca de 75% das mulheres da mulher na contemporaneidade.
que trabalham o fazem neste setor Os movimentos feministas das dé-
(Perrot, 2012). cadas de 1960 e 1970 foram protago-
A partir da industrialização e das nistas no processo de reconhecimento
mudanças trazidas pelas duas grandes da mulher e de legitimação do espa-
guerras, as mulheres intensificaram as ço público como um espaço também
vivências profissionais, conquistaram seu (Fontenele-Mourão, 2006; Vianna
maior espaço no mundo do trabalho & Diniz, 2014; Zanello, 2016). Esses
e começaram, inclusive, a aparecer em movimentos contribuíram para a des-
cargos de chefia. Os estereótipos de construção da naturalização das dife-
gênero e suas atribuições foram mu- renças entre os sexos e evidenciaram
dando na medida em que processos as múltiplas relações de poder que
macrossociais, econômicos e culturais perpassam o ser homem e o ser mu-
também mudaram. lher no mundo (Diniz & Féres-Car-
Pensar o trabalho das mulheres his- neiro, 2012).
toricamente, desde as camponesas dos Foi também o feminismo, compre-
séculos passados, até as mulheres pro- endido em três ondas, que problemati-
fissionais do mundo contemporâneo, zou o conceito de gênero. Inicialmen-
contribui para o entendimento da car- te, em sua primeira onda, marcada
reira das mulheres de hoje. Compre- pela luta pelo sufrágio universal, o
ender suas origens leva-nos a reforçar, feminismo problematizou e tratou da
inclusive, o mérito das conquistas da- construção social do feminino e do
quelas que optaram, na sociedade atu- masculino. Em seguida, na segunda
al, por se dedicar a uma carreira. onda, o conceito de “gênero” foi intro-
No Brasil, a participação da mulher duzido para complementar o de “sexo”
no mercado de trabalho da forma e não para substituí-lo (Zanello, 2016).
como vemos hoje, remunerada e com Nesse momento em que os movimen-
possibilidade de dedicação a uma car- tos feministas buscavam construir te-
reira, tornou-se mais efetiva a partir orias que expressassem a opressão da

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mulher, dois pilares epistemológicos organizacionais (Rocha-Coutinho,
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se fizeram importantes: “a diferença 2012; Tanure, Carvalho-Neto, & An-
sexual como um ‘fato’ sendo o gênero drade, 2010).
a construção social a partir destas di- Mulheres ganhando menos do que
ferenças e a noção de identidade como homens é uma realidade recorrente
algo substancial, marcado pela cons- não apenas no Brasil, mas em todo
tância” (Zanello, 2016, p. 227). mundo (Bruschini & Lombardi, 2001).
A terceira onda do feminismo, que Ainda que ao longo dos anos seja per-
surge a partir dos anos 1980, criti- cebida uma diminuição na diferença
cou esses dois pilares. O foco agora salarial entre os sexos, as mulheres
era problematizar, dentro da catego- continuam com rendimentos que cor-
ria “gênero”, a dimensão cultural dos respondem a uma média de 68% do
corpos biológicos. O sexo passa a ser que o recebido pelos homens e, em
visto como uma construção de gêne- cargos de chefia, elas recebem 77%
ro (Vianna & Diniz, 2014; Zanello, do salário dos homens (IPEA, 2016);
2016). O antigo pilar da identidade de independente do setor de atividade
gênero é contestado e sua caracterís- econômica em que trabalham, do ta-
tica substancial é substituída pela no- manho da sua jornada de trabalho, do
ção do fluido. número de anos de estudo ou da sua
O feminismo teve um papel fun- posição na carreira.
damental na luta pela igualdade de Esse cenário mostra-se desafia-
gênero e influenciou a mudança da fa- dor para as mulheres. Pesquisas so-
mília hierárquica, fundamentada sob bre mulheres profissionais, executi-
o poder patriarcal (Bruschini & Lom- vas, no exercício de carreira no Brasil
bardi, 2009). O enfraquecimento da (Fontenele-Mourão, 2006; Lima, 2009;
hierarquia nas relações de gênero, no Rocha-Coutinho, 2007, 2012; Tanure,
final do século XX, ocasionou o sur- Carvalho-Neto, & Andrade, 2010),
gimento de interações homem-mulher identificam a presença de desafios
mais horizontais (Diniz, 2009; Rocha- como: preconceitos e discriminações;
-Coutinho, 2012). As mulheres foram dificuldades de serem indicadas e de
se dedicando cada vez mais às carrei- assumirem cargo de liderança; vivên-
ras profissionais, fato que exigia delas cia de conflitos e de dificuldades de
maior investimento de tempo e ener- conciliação entre as demandas do tra-
gia no âmbito do trabalho. balho e da família, como os cuidados
As desigualdades de gênero, entre- com a casa e a questão da maternida-
tanto, ainda estão presentes no mundo de. Estes desafios constituem-se numa
contemporâneo. As realidades profis- questão de gênero e seus enfrentamen-
sional e doméstica-familiar deman- tos podem trazer um estado de sobre-
dam exigências pautadas no sistema carga para as mulheres.
sexo-gênero. O mundo do trabalho Ingressar em uma carreira engloba
continua sendo definido por padrões a motivação pelo crescimento, pelo
masculinos. O preconceito e a discri- desenvolvimento profissional e por
minação decorrentes dessa construção salários/rendimentos cada vez melho-
histórica e social dificultam a ascensão res. Para aqueles que a trilham, a car-
das mulheres na carreira. Seus salários reira possui uma importância vital e
são inferiores aos dos homens e, ainda pode ser uma das principais fontes de
que ocupem a mesma função, elas são, realização pessoal, status e reconheci-
de modo geral, excluídas das decisões mento social. As demandas da carreira

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muitas vezes envolvem viagens, horas delas é avaliada, principalmente, Mulheres, casamento e
extras, trabalhos de final de semana, como sendo baseada em sentimentos. carreira: um olhar sob a 107
perspectiva sistêmica
fatores que acabam aumentando a so- Essa atribuição é fruto de estereóti- feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
brecarga da mulher. pos que associam o sexo feminino às
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
O fato é que, se levarmos em conta questões emocionais e o sexo mas-
o ambiente das grandes empresas, de culino às racionais. Pesquisas com
modo geral extremamente competiti- homens e mulheres em posição de li-
vo e mutante, exige-se dedicação cada derança não confirmam, no entanto,
vez maior à carreira e, se tivermos em essa visão, e demonstram que ambos
vista as demais funções exercidas no os sexos se caracterizam pela predo-
âmbito privado, é a carreira da mulher minância do atributo “pensamento”
e não a do homem a que sofre maior em relação ao “sentimento” (Lima,
pressão (Tanure, Carvalho-Neto, & 2009; Tanure, Carvalho-Neto, & An-
Andrade, 2010). Segundo destaca drade, 2010).
Fontenele-Mourão (2006), as mu- O exercício da maternidade é ou-
lheres precisam trabalhar com muito tro grande desafio encontrado pelas
mais afinco e apresentar resultados mulheres que trabalham. São mui-
superiores aos de seus colegas homens tas as pesquisas que abordam o tema
para garantirem sua posição na orga- (Beltrame & Donelli, 2012; D’Elia,
nização. As desigualdades de gênero 2009; Maluf & Kahhale, 2010; Rocha-
são, portanto, uma realidade presente -Coutinho & Barbosa, 2007; Tanure,
no mundo profissional. Carvalho-Neto, & Andrade, 2010). A
Na última década, a partir do ano conciliação da maternidade com a re-
2000, algumas empresas demonstra- alização profissional é pregada muitas
ram movimentos no sentido de faci- vezes como um ideal do mundo con-
litar o desenvolvimento da carreira temporâneo. Diante desse contexto a
da mulher. Jornadas de trabalho mais mulher tende a se perceber precisando
flexíveis, a possibilidade do exercício do papel de mãe para se sentir com-
do trabalho via home office, a presença pleta. Cabe ressaltar, porém, que é jus-
de creches no ambiente de trabalho, tamente essa sobreposição de deman-
dentre outros fatores, contribuíram das, tidas como de responsabilidade
para facilitar e manter a presença de prioritária da mulher, somadas aos
mulheres no mundo do trabalho. Es- cuidados com a casa, que pode lhes
ses movimentos são, entretanto, inci- trazer estresse e sobrecarga (Tanure,
pientes, principalmente diante de um Carvalho-Neto, & Andrade, 2010).
mercado de trabalho que ainda man- Algumas pesquisas (Beltrame &
tém uma estrutura tradicional que Donelli, 2012; Borges, 2013; Maluf &
exige atuação em tempo integral e de- Kahhale, 2012; Rocha-Coutinho &
dicação total aos objetivos da empre- Barbosa, 2007) começam a identificar
sa (Rocha-Coutinho, 2012), ou seja, é que a realização da mulher não passa
marcado por padrões androcêntricos obrigatoriamente pela função de mãe.
de funcionamento. Os estudos demonstram que, no mun-
As mulheres são também questio- do contemporâneo, as mulheres estão
nadas sobre a capacidade de liderança fazendo escolhas norteadas mais pela
e estão debaixo de um teto de vidro carreira do que necessariamente pela
que, muitas vezes, as impede de atin- maternidade. Neste sentido, podemos
girem posições mais altas (Fontenele- pensar que um movimento, ainda que
-Mourão, 2006). A forma de gestão incipiente, começa a surgir na direção

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da desconstrução dos antigos discur- A partir das evoluções advindas
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sos. Rocha-Coutinho e Losada (2007) dos avanços na produção agrícola e da
entrevistaram mulheres empresárias noção emergente de propriedade pri-
na cidade do Rio de Janeiro e identi- vada, por volta do século XVI, as rela-
ficaram que o significado da atividade ções sociais se modificaram e um novo
profissional está marcado por expecta- modelo passou a operar. A adoção de
tivas e desejos que vão além daqueles uma forma patriarcal de funcionar
relacionados à ideia de constituir uma concedeu ao homem, na condição de
família. Além disso, “assumir uma pro- pai, o lugar de poder sobre sua prole
fissão configura-se, para elas, não ape- e na condição de marido autoridade
nas como fonte de sustento, mas, prin- sobre sua esposa, seus empregados,
cipalmente, como fonte de satisfação, da mesma forma que possuía com
algo que deveria ser assumido não só suas propriedades territoriais. É nesse
pelo retorno material, mas principal- momento que a noção de monogamia
mente pelo prazer que proporciona” ganha força na relação conjugal (Ariès,
(Rocha-Coutinho et al., 2007, p. 497). 1986; Pinsky, 1988; Rocha-Coutinho
Escolher desenvolver-se em uma & Losada, 2007). A monogamia era
carreira, seja ela qual for, torna-se uma exigida principalmente por parte da
realidade para as mulheres da socie- mulher e tinha a função de preservar a
dade atual e pode, ao mesmo tempo, herança particular da família.
ser fonte de estresse e de realização. As A família e o casamento possuíam a
mulheres casadas somam aos desafios função de dividir a sociedade, que era
encontrados no mundo do trabalho organizada pelo Estado, em classes.
os desafios do casamento, dentre os Nesse percurso, a importância atribuí-
quais as questões de gênero estão dire- da ao casamento está relacionada com
tamente relacionadas. A este respeito, a procriação e a geração de descen-
levantamos a discussão que se segue. dentes, reforçada pela lógica religiosa.
Na Idade Média, a noção de família
e casamento ainda era desconhecida.
O CASAMENTO E AS MULHERES: Ela tem início no final do século XV,
QUESTÕES DE GÊNERO ganha destaque no século XVII e se
consolida no século XVIII. Até esse
As relações conjugais passaram por momento da História, o matrimônio
transformações significativas nos últi- era motivado, principalmente, por
mos séculos. No início das civilizações interesses econômicos (Ariès, 1986;
humanas as pessoas viviam de acordo Giddens, 2000). A função afetiva da fa-
com uma rígida divisão sexual dos pa- mília somente começou a ser uma rea-
péis. As atividades e funções dos indi- lidade no século XVIII. Nessa época, a
víduos nos grupos eram determinadas família volta-se mais para si mesma e
pelas questões sexuais e biológicas. As inicia um processo de investimento na
mulheres cuidavam do ambiente “do- intimidade das relações, que passam a
méstico”, dos filhos, da coleta de fru- ser movidas cada vez menos por con-
tas, e os homens cuidavam da caça, da veniência e cada vez mais por amor.
pesca e da conquista de novas terras. O casamento, até o século XIX, era
Esse fato não implicava uma divisão centrado no poder patriarcal. A divi-
desigual de poder ou uma valorização são tradicional do trabalho doméstico
diferente do trabalho de homens e de era pautada no sexo biológico. Assim,
mulheres (Pinsky, 1988). os homens eram responsabilizados

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


pela manutenção financeira da família pelos interesses familiares ganhou for- Mulheres, casamento e
e as mulheres pela manutenção da or- ça na década de 1860. carreira: um olhar sob a 109
perspectiva sistêmica
dem familiar em termos de produção O casamento no século XX é in- feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
doméstica e cuidados com os outros fluenciado pelos valores emergentes.
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
membros da família – marido e filhos/ O surgimento e a consequente valo-
as. Esse determinismo baseado nos rização das ideologias individualistas
sexos criou estereótipos para os dois. em detrimento das ideologias do pa-
Nesse contexto, a mulher bem-suce- triarcado representam uma mudança
dida era a que fosse escolhida por um bastante significativa nesse novo con-
homem. A mulher ficou restrita ao texto. Gomes (1998) destaca, como
espaço do privado, do “sem valor” e o marcadores da época, os movimentos
homem ao público, espaço valorizado sociais ocorridos da liberação sexual,
pelo investimento em sua capacidade dos feminismos, da entrada maciça
produtiva. No que tange ao mundo das mulheres no mercado de trabalho.
do trabalho, a mulher apoiava o de- Esse movimento de modernização
senvolvimento da carreira do marido dos valores e de maior abertura para
e, mesmo quando saiu para trabalhar se pensar a relação conjugal convi-
fora de casa, seu trabalho, durante via, entretanto, com fortes resquícios
muito tempo, foi visto como coadju- do passado. A mulher, por exemplo,
vante ao dele, como um complemento continuou submetida juridicamen-
à renda da família (Rocha-Coutinho te ao marido até a década de 1970. A
& Losada, 2007). partir de então foi permitida maior li-
A urbanização e a Revolução Indus- berdade para elas adentrarem os espa-
trial enfraqueceram a ordem patriarcal ços públicos. Além disso, as mulheres
e as mulheres passaram a reivindicar continuaram – durante muito tempo
um lugar de maior autonomia tanto – confinadas ao espaço doméstico e à
na esfera familiar quanto pública. O sua atribuição de cuidadora do lar, do
conceito hegemônico de família, do marido e dos filhos. Todas essas fun-
pai provedor e da mãe restrita ao do- ções ganhavam primazia sob sua pos-
méstico ampliou-se para acolher no- sibilidade de inserção no mercado de
vas configurações como, por exemplo, trabalho e seu valor era superestimado
famílias em que ambos os cônjuges em relação a qualquer outra possibili-
trabalham fora em tempo integral. dade que ela quisesse trilhar.
Nesse momento da História, outra No século XX, no final da década
mudança significativa ocorrida no ca- de 50, o surgimento da pílula anticon-
samento entra em cena. Ela diz respei- cepcional foi o grande acontecimento
to à escolha do cônjuge. Nas diversas que marcou as relações entre homens
civilizações do passado, o casamento e mulheres. No Brasil, ela chegou sob
não era uma escolha a ser feita pelos grande repressão da Igreja Católica. A
cônjuges, uma vez que ela já estava possibilidade de separação entre re-
determinada desde o dia do seu nas- produção e sexualidade permitiu uma
cimento. A escolha era feita pela fa- revolução sexual na qual as mulheres
mília, de acordo com os interesses de começaram a se tornar protagonistas e
alianças, e tinha como base as relações donas do próprio corpo. Para a mulher
de parentesco (MacFarlane, 1990). A dos séculos anteriores, o casamento
reivindicação por um casamento pau- significava a única forma de ter rela-
tado exclusivamente pela liberdade da ção sexual. O controle da gravidez e o
escolha amorosa e não mais arranjado consequente adiamento da materni-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


dade abriram espaço para as mulheres começaram a ajudar suas esposas nos
110 NPS 60 | Abril 2018
adentrarem o universo dos estudos, do afazeres domésticos. Quando consi-
trabalho e, enfim, escolher por investir deramos a relação entre gênero e di-
em uma carreira. visão de atividades domésticas no ca-
O sistema sexo-gênero estabelece samento, entretanto, foram poucos os
padrões de expectativas tanto para os avanços. Ainda que possuam um tra-
homens quanto para as mulheres e or- balho fora de casa, o espaço privado
dena os processos sociais cotidianos. da família e da casa continua sendo
No casamento, o gênero é o princípio responsabilidade das mulheres. Wag-
organizador mais importante (Diniz, ner (2005) coloca, a este respeito, que
2003). O ‘ser esposa e ser esposo’ exige pesquisadores do Brasil e dos Estados
de homens e mulheres o cumprimento Unidos têm constatado que a divisão
de atribuições de gênero definidas pre- das tarefas domésticas ainda tende a
viamente pela sociedade e gera expec- seguir padrões relativamente tradi-
tativas que recaem sob a forma como cionais. Segundo a autora, mesmo
os cônjuges estabelecem sua dinâmica nas casas onde as mulheres possuem
relacional. O fato de as mulheres de- um ganho financeiro maior do que os
dicarem-se cada vez mais ao desenvol- maridos, ou naquelas em que os ma-
vimento de suas carreiras profissionais ridos estão desempregados, elas reali-
exige delas maior investimento de zam uma quantidade muito maior de
tempo no âmbito do trabalho. Surge atividades do trabalho doméstico do
assim na sociedade contemporânea o que eles.
casamento de dupla-carreira, ou seja, Estudos realizados por Jablonski
aquele em que ambos os cônjuges en- (2010) e Madalozzo, Martins, e Shira-
contram-se dedicados ao desenvolvi- tori (2010) com o objetivo de analisar
mento e crescimento da carreira. as diferentes participações dos sexos
O modelo conjugal de dupla-carrei- no trabalho doméstico identificaram
ra exige dos cônjuges uma dedicação que a presença de esposo, para as mu-
intensa à carreira e, ao mesmo tempo, lheres, aumenta o número de horas
mantém o desejo de investir na vida a trabalhadas em casa. Já para os ho-
dois. Uma vez que ambos estão envol- mens, a presença de esposa diminui
vidos com o desenvolvimento de suas essa participação. Outras pesquisas
carreiras, as atribuições sociais tradi- corroboram esses dados e apontam
cionais de gênero necessitam de revi- que a responsabilidade pelo espaço
são e reorganização de modo a permi- doméstico ainda segue a divisão tra-
tir o funcionamento da vida conjugal dicional de gênero (Bruschini, 2007;
e doméstica. Os homens precisam as- Rocha-Coutinho, 2007, 2012; Santos,
sumir maior espaço no cuidado com a 2014). Esse resultado é a tradução da
casa e os filhos e responsabilizarem-se divisão sexual do trabalho e dos este-
por esse lugar. Da mesma forma, no reótipos de gênero que se perpetuam
cenário da dupla-carreira, outros cui- até os dias de hoje.
dadores, como, por exemplo, os avós, O trabalho doméstico, quando
possuem grande importância. exercido pelo homem, é visto como
A forma de gestão das tarefas do- uma “ajuda” à mulher e não como
mésticas no casamento em que ambos responsabilidade compartilhada no
os cônjuges trabalham fora também cuidado com a casa. Jablonski (2010)
torna-se uma questão central na pau- entrevistou vinte membros de casais
ta do casal. Aos poucos, os homens heterossexuais de classe média, com

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idades entre 30 e 45 anos (com pelo forma mais positiva que as esposas Mulheres, casamento e
menos 5 anos de união), nos quais am- (Falcke, Mosmann, & Wagner, 2005; carreira: um olhar sob a 111
perspectiva sistêmica
bos trabalhavam fora de casa, e com a Perlim, 2006). Esses estudos concluem feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
condição de terem ao menos um fi- que parte dessa satisfação é devida ao
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
lho. O pesquisador identificou a falta fato de conseguirem conciliar sua ex-
de sintonia na percepção de homens pectativa pessoal e de carreira com
e mulheres sobre a divisão de tarefas. as expectativas dentro do casamento.
As mulheres tenderam a percebê-la As mulheres, por sua vez, vivenciam
como mais assimétrica e os homens a conjugalidade de forma mais tensa
como mais equitativa. Esses dados re- (Diniz, 1999; Diniz & Perlin, 2005),
velam, mais uma vez, a operação dos uma vez que encontram mais difi-
modelos tradicionais de divisão do culdade de conciliar as expectativas
trabalho doméstico que acabam pri- pessoais e profissionais com o exercí-
vilegiando os homens em detrimento cio de funções tradicionais. Essa desi-
das mulheres. Essa é uma questão de gualdade de gênero no meio familiar e
gênero que envolve a reorganização conjugal é tida como fator de estresse
dos estereótipos sociais masculinos e para mulheres (Carter & McGoldrick,
femininos na família. 2001; Papp, 2002).
É fato que têm sido constatadas As demandas decorrentes da vida
mudanças nesses estereótipos tradi- doméstica e profissional limitam o
cionais, do homem voltado ao tra- tempo do casal em investir na pró-
balho e sustento do lar e da mulher pria conjugalidade e tornam-se outro
voltada às atividades domésticas, para desafio para os casais que trabalham,
uma divisão de tarefas mais igualitá- sobremaneira para os de dupla-carrei-
ria entre homens e mulheres, princi- ra. A escassez de tempo é uma questão
palmente com a entrada da mulher significativa nos dias de hoje (Heckler
no mercado de trabalho. No entanto, & Mosmann, 2016). No contexto da
o que se observa é que o casamen- vida do casal, a falta de rotinas que
to contemporâneo ainda se encontra permitam que eles se encontrem pode
sob forte influência de papéis sexuais ser geradora de conflitos na relação e
socialmente predeterminados. O pa- afetar a qualidade da mesma (Fraenkel
pel sexual, segundo Amâncio e Oli- & Wilson, 2002). Além disso, o cansa-
veira (2002), “constitui-se como uma ço decorrente das vivências de múlti-
norma que prescreve determinados plas demandas do mundo do trabalho,
comportamentos” (p. 46). Os papéis da conjugalidade e da família interfere
sexuais correspondem a um conjun- na disponibilidade dos cônjuges para
to de comportamentos, expectativas a relação. Assim, a quantidade de
e deveres aplicados à pertença de um tempo que o casal disponibiliza para
indivíduo a um determinado grupo si transforma-se em um outro desafio
de sexo (Amâncio & Oliveira, 2002). dos casamentos contemporâneos.
Assim, desde o início de sua vida, a As pesquisadoras americanas Sarah
mulher seria socializada para exercer Flood e Katie Genadek (2016) indicam
uma atribuição social de gênero re- o quanto o tempo despendido com o
lacionada à família e o homem para cônjuge é escasso nos casais em que
uma função de provedor. ambos trabalham fora em tempo inte-
Interessante observar a presença gral. As autoras ressaltam ainda o fato
de estudos que apontam que os mari- de que os maridos gostariam de pos-
dos tendem a avaliar o casamento de suir mais tempo com as esposas, mas

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que as esposas, por sua vez, gostariam A TERAPIA SISTÊMICA FEMINISTA NA
112 NPS 60 | Abril 2018
de um maior tempo “de qualidade” INTERAÇÃO CASAMENTO-CARREIRA
com seus maridos, ao invés de somen- E GÊNERO
te terem mais tempo.
Esse ponto levanta outra interes- A terapia familiar sistêmica percebe
sante questão de gênero também ob- o grupo familiar como funcionando
servada por nós no trabalho na clínica baseado na complementaridade dos
psicológica. Os homens, muitas vezes, papéis e na circularidade. Ao incor-
sentem-se satisfeitos em ter a esposa porar reflexões das teorias feminis-
por perto, mas, para as mulheres, “es- tas, a perspectiva sistêmica amplia
tar perto” não é suficiente. As queixas sua forma de ver e atuar, pois passa a
delas, de modo generalizado, dizem considerar as influências de gênero e
respeito à falta de interação do marido as diferenças de poder presentes tanto
em um nível mais íntimo ou à falta de no casamento e na família quanto no
iniciativa em convidá-las para progra- mundo do trabalho (Diniz, 2003; Wal-
mas que denotem o investimento na ters, 1994).
relação conjugal. A falta de tempo é, A perspectiva familiar sistêmica,
na grande maioria das vezes, utilizada de modo geral, introduz a percepção
como justificativa para esse impedi- do casal, que é composta de três par-
mento (Flood & Genadek, 2016). tes: dois indivíduos e uma relação: eu,
Para que o casamento seja viven- você, nós. Dito de outra forma, assu-
ciado pelas mulheres de forma mais me-se que o vínculo conjugal é consti-
igualitária, é essencial que os casais tuído por duas individualidades e uma
revejam os estereótipos de gênero aos conjugalidade. Nessa ótica, a dinâmi-
quais estão submetidos e as posições ca relacional do casal passa a ter mais
de poder que ocupam na relação. Os destaque do que a individual. As ques-
casais precisam, além disso, fazer uso tões de gênero, por sua vez, são essen-
da flexibilidade e da negociação. No ciais no entendimento dessa dinâmica.
contexto em que ambos os cônjuges Virginia Satir (1995) destaca que o
estão inseridos no mundo profissio- pensamento sistêmico aplicado ao ca-
nal, essas competências se tornam ain- sal entende que qualquer coisa que um
da mais necessárias. integrante faz requer que o outro res-
Caso o investimento na vida pro- ponda. Paralelamente, a resposta do
fissional transcenda o trabalho em si outro molda seu próprio eu e impacta
e ganhe proporções nas quais a es- a dinâmica relacional. Essa sequência
posa ou ambos os cônjuges almejem repetida dá origem a um modelo de
desenvolver-se e crescer na carreira, o funcionar que se traduz em normas
desafio torna-se ainda mais expressi- para a relação.
vo. Tal investimento demanda tempo A terapia sistêmica feminista busca
e energia despendidos tanto em rela- uma compreensão das relações conju-
ção ao aprimoramento e crescimento gais e familiares de forma mais igua-
da carreira quanto ao investimento no litária e justa que permita olhar para
casamento. Cabe apontar também os as diferenças de percepções e vivên-
desafios de gênero enfrentados pelas cias entre os cônjuges. Assim, busca
mulheres nesses contextos, fator que perceber as especificidades de cada
pode gerar estresse e comprometer homem e de cada mulher no que diz
tanto o ambiente de trabalho quanto respeito, por exemplo, à experiência
a relação. no casamento e na carreira. As críti-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


cas feministas às terapias familiares soas que não têm o mesmo direito e Mulheres, casamento e
tradicionais são anteriores aos movi- acesso ao poder dentro de um siste- carreira: um olhar sob a 113
perspectiva sistêmica
mentos sistêmicos pós-modernos do ma. O terceiro ponto da crítica femi- feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
construtivismo e construcionismo so- nista à terapia de família tradicional
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
cial e questionam as desigualdades de afirma que, ao negligenciar os aspec-
gênero até então não consideradas nas tos de gênero presentes na dinâmica
práticas sistêmicas (Penso & Sant’An- da vida conjugal e da família, as tera-
na, 2015; Walters, 1994). pias sistêmicas não problematizam as
Foi no final da década de 1970, atribuições sociais de gênero e fun-
sob influência do movimento femi- ções familiares. Assim, foram manti-
nista, que esse enfoque surge dentro das as definições estáticas, binárias e
das terapias familiares (Goodrich et rígidas sobre estes papéis, o que con-
al., 1990; Nichols & Schwartz, 2007). tribui para a manutenção da ordem
Apesar de passar a ser reconhecida patriarcal (Narvaz & Koller, 2007).
como Terapia Sistêmica Feminista ou O quarto ponto relevante da crítica
Terapia Feminista da Família, ela não aponta que, ao valorizarem o poder,
se propôs a criar um novo modelo de as hierarquias e a busca de autonomia
terapia familiar, mas sim a incluir as dos indivíduos dentro da família, os
questões de gênero e das diferenças de modelos e estratégias iniciais das tera-
poder nas teorias e práticas sistêmicas pias sistêmicas pautaram-se em valo-
(Diniz, 2003). O seu surgimento está res androcêntricos.
relacionado com os questionamentos Nesse contexto, ficaram desvalo-
das terapeutas familiares pioneiras rizadas outras formas de conexão re-
sobre a negligência em relação aos as- lacional predominantemente desen-
pectos de gênero e também acerca do volvidas pelas mulheres, tais como a
androcentrismo presente nos modelos busca da intimidade e a valorização
e práticas da terapia familiar original. do cuidado para com a família. Além
Narvaz e Koller (2007) levantam disso, foram idealizados valores tais
as principais críticas feministas à te- como a autonomia e independência,
rapia de família tradicional. Segundo em detrimento do pertencimento e da
as autoras, na medida em que as abor- intimidade (Narvaz & Koller, 2007). O
dagens sistêmicas tradicionais conce- quinto aspecto destaca que as terapias
bem a família como um todo orgânico tradicionais idealizam a função pater-
em busca de homeostase, não consi- na, colocam o homem como figura de
deram as diferenças de poder dentro poder e autoridade no sistema familiar
da família. Os pressupostos da circu- e culpabilizam as mães, sem problema-
laridade e complementaridade a par- tizar as posições de gênero tal qual são
tir dos quais funciona a família des- construídas na sociedade e na família.
consideram as diferenças de poder no O penúltimo ponto da crítica feminis-
sistema familiar em função das cons- ta aponta que as terapias sistêmicas
truções sociais em torno do sistema tradicionais não questionaram a insti-
sexo-gênero que demarca posições e tuição familiar tal como está construí-
lugares de exercício de poder distintos da em nossa sociedade e, assim, elas
para ambos os sexos. contribuíram para a manutenção das
A terapia sistêmica feminista en- desigualdades de gênero e da opressão
tende que a opressão ocorre de forma feminina. Por fim, ao desconsiderar
linearmente causal e que não se pode as questões de gênero na formação e
atribuir igual responsabilidade a pes- na supervisão, as terapias de família

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


tradicionais deixam de considerar as as mulheres. É comum, por exemplo,
114 NPS 60 | Abril 2018
especificidades vivenciadas pelos/as elas experimentarem o sentimento de
terapeutas, como se terapeutas tam- culpa – ou por não conseguirem dedi-
bém não tivessem uma inscrição e car mais tempo à carreira ou à família
experiências tanto identitárias quan- (Lima, 2009; Rocha-Coutinho, 2012;
to relacionais em relação ao sistema Spindola & Santos, 2004).
sexo-gênero (Narvaz & Koller, 2007). No que diz respeito à sobrecarga da
As críticas feministas à terapia fa- mulher casada que opta por investir
miliar buscaram contribuir para um em sua carreira, Lima (2009) atesta,
novo posicionamento generificado inclusive, que é frequente o levar ta-
dos/as terapeutas de casais e famílias. refas do trabalho para casa. Esse fato
Ao mesmo tempo, buscaram dar vi- impede as mulheres, muitas vezes, de
sibilidade para as mulheres e homens se fazerem efetivamente presentes na
que procuram atendimento. Nesse ce- vida familiar. Este quadro é ainda po-
nário torna-se fundamental a proble- tencializado pelo uso das tecnologias
matização dos estereótipos de gênero (tais como celulares, tablets, compu-
a que estão submetidas em seus pró- tadores) fora do ambiente de trabalho.
prios contextos relacionais e sociais. Na prática clínica ouvimos relatos de
Desse modo, os/as terapeutas poderão mulheres que se escondem no banhei-
também se empoderar e lutar por prá- ro de casa para continuar uma tarefa
ticas mais igualitárias. não finalizada no ambiente de traba-
A interação trabalho/carreira com lho. Elas fazem isso para evitar um
casamento/família é um desafio de conflito com o esposo que cobra sua
gênero e diz respeito às múltiplas fun- presença em casa e, ao mesmo tempo,
ções exercidas pelas mulheres nas re- suprir sua necessidade de dar conta de
lações conjugais, familiares, profissio- todo o trabalho, tendo em vista a co-
nais e sociais. Antes da entrada maciça brança profissional.
de mulheres no mercado de trabalho, Nesse contexto, alguns autores, tais
elas dedicavam-se aos cuidados da fa- como Maria Lúcia Rocha-Coutinho
mília e da casa para, depois, somar o (2007), falam da “dupla jornada da
papel profissional. A necessidade de mulher”, referindo-se ao trabalho e
conciliação carreira-casamento pode a casa. Peggy Papp (2002) propõe a
vir a ser um conflito enfrentado por ideia da tripla jornada da família, ao
elas e é comum os desafios desse pro- ressaltar as três esferas iguais de ativi-
cesso serem levados como pedido de dades: a jornada da mulher, a jornada
ajuda à clínica psicológica. do homem e a da vida familiar. Dessa
O/a terapeuta familiar que se depa- forma, a autora pretende ir além da
ra com esses tipos de demandas, quan- discussão sobre as negociações das
do informado/a por uma perspectiva tarefas domésticas entre o casal e bus-
sistêmica feminista, pode identificar ca estabelecer um diálogo no qual se
as questões de gênero relacionadas que confere igual importância ao trabalho
pesam sobre a cliente a fim de traba- e à família tanto na vida dos homens
lhá-las de forma adequada. Isso por- quanto das mulheres.
que esses conflitos podem prejudicar Peggy Papp (2002) identifica em
o desenvolvimento tanto da conjugali- sua prática clínica o quanto os casais
dade quanto da vida profissional e ge- continuam vivendo seus relaciona-
rar um quadro de desequilíbrio capaz mentos em termos da divisão tradicio-
de trazer sofrimento e angústia para nal de papéis. O estereótipo de gênero

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


se mistura ao estereótipo das tarefas, preendê-lo de forma mais ampla, sob Mulheres, casamento e
em que algumas são consideradas pre- a perspectiva sistêmica feminista e de carreira: um olhar sob a 115
perspectiva sistêmica
dominantemente femininas e outras gênero. Ao refletirmos sobre a experi- feminista
Mariana Grasel de Figueiredo
masculinas. Neste sentido, a autora ência das mulheres no âmbito profis-
Gláucia Ribeiro Starling Diniz
ainda coloca que os casais ficam pre- sional e do casamento a partir de uma
sos a esta crença de que ele não tem ca- breve visão histórica até o período
pacidade emocional suficiente para se contemporâneo, percebemos as mu-
responsabilizar pelo relacionamento danças ocorridas nos estereótipos de
e pela vida familiar, enquanto ela não gênero. Houve conquistas no mundo
apenas tem a capacidade, mas também do trabalho que possibilitaram às mu-
a responsabilidade de dar seguimento lheres experimentar o que antes era
e administrar o relacionamento, além exclusivo ao mundo dos homens, por
de encorajar o vínculo afetivo na famí- exemplo, a possibilidade de dedicar-
lia (Papp, 2002). -se a uma carreira e à realização pro-
Conforme já apontamos, mesmo fissional.
após as conquistas das mulheres no O discurso social instaurado pelo
mundo profissional, elas continuam patriarcado, entretanto, parece con-
estando associadas ao lugar de cuida- tinuar sendo reproduzido no mundo
dora da família e de responsável pelo contemporâneo, ainda que em menor
cuidado com a casa. A imagem da velocidade e força do que no passado.
mulher na contemporaneidade, dife- Esse discurso torna invisível para as
rente da visão tradicional de esposa e mulheres o lugar que ocupam e faz
mãe, integra a inserção no mercado de com que busquem estratégias para
trabalho à sua função já existente de dar conta da multiplicidade de fun-
cuidadora. Ao adentrarem uma car- ções demandadas, como se o cuidado
reira, as mulheres podem impor para com a casa e os filhos fosse responsa-
si, com base nos estereótipos invisíveis bilidade exclusiva ou prioritária delas.
de gênero ainda presentes em nossa A vida profissional das mulheres que
sociedade, a tarefa e/ou mesmo a obri- investem em uma carreira por si só já
gação de conciliar os papéis de admi- possui muitos desafios. A interação
nistradora da vida familiar e da casa, desta com as demais atribuições de-
passando a administrá-los em paralelo sempenhadas no âmbito privado in-
à carreira. O fato é que as mulheres, ao tensifica suas experiências, podendo
ocuparem esse lugar de responsáveis trazer prejuízos às mulheres.
e cuidadoras, se sobrecarregam e esse É nosso entendimento que as in-
processo pode gerar muito estresse e, fluências do patriarcado e a divisão
consequentemente, comprometer sua tradicional das atribuições de gênero
saúde física e mental. pautadas no sexo biológico não fazem
sentido na sociedade contemporânea.
Tal fato fica evidente principalmente
CONSIDERAÇÕES FINAIS quando analisamos e colocamos em
perspectiva a vivência de mulheres na
A discussão teórica presente nes- interação carreira-casamento. Perce-
te artigo convida a refletir acerca bemos o quanto a perspectiva sistêmi-
do lugar das mulheres no contexto ca feminista torna-se útil e extrema-
contemporâneo em função de seu mente relevante para dar visibilidade
envolvimento com a carreira e o ca- às questões de gênero presentes nessa
samento. Torna-se fundamental com- interação, a fim de que homens e mu-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 60, p. 100-119, abril 2018.


lheres construam relações mais justas relacionadas aos estereótipos sociais
116 NPS 60 | Abril 2018
e igualitárias no âmbito do casamento de gênero presentes na sociedade con-
e da carreira. Assim, poderão posi- temporânea.
cionar-se de modo mais consciente e
protagonista. Da mesma forma, é ne-
cessário que as empresas e ambientes REFERÊNCIAS
de trabalho revejam as condições im-
postas às mulheres e busquem formas Amâncio, J. M. & Oliveira, L. (2002). Li-
alternativas de oferecer maior igual- berdades condicionais: o conceito
dade no meio profissional, bem como de papel sexual revisitado. Sociolo-
melhor qualidade de vida. gia, Problemas e Práticas, 40, 45-61.
A reflexão promovida amplia a atu- Ariès, P. (1986). História social da crian-
ação da Psicologia Sistêmica ao inte- ça e da família (D. Flaksman, Trad.,
grar a perspectiva sistêmica feminista 2ª ed.). Rio de Janeiro: Guanabara.
no contexto da carreira e do casamen- Beltrame, G. R. & Donelli, T. M. S.
to. Nesse sentido, o pensar e o atuar da (2012). Maternidade e carreira: de-
clínica sistêmica, ao considerar a críti- safios frente à conciliação de papéis.
ca feminista, ajudam a promover uma Aletheia, 38/39, 206-217.
vivência menos desigual entre homens Borges, C. C. (2013). Mudanças nas
e mulheres e, assim, são capazes de mi- trajetórias de vida e identidades de
nimizar sofrimentos e estresses viven- mulheres na contemporaneidade.
ciados por mulheres, casais e famílias Psicologia em Estudo, 18(1), 71-81.
na sociedade atual. Bruschini, C. (2007). Trabalho e gêne-
Essa reflexão também é relevante ro no Brasil nos últimos dez anos.
para o contexto social. Ao disseminar Cadernos de Pesquisa. 37(132),
um conhecimento científico a respei- 537-572.
to de mulheres na sua interação com Bruschini, C. & Lombardi, M. R. (2001).
a carreira e o casamento, oferece sub- Instruídas e trabalhadeiras: trabalho
sídios para que mulheres e homens feminino no final do século XX. Ca-
ressignifiquem os antigos estereótipos dernos Pagu, 17/18, 157-196.
de gênero. Ao trazer novos significa- Carter, B. & McGoldrick, M. (2001). As
dos, pode contribuir para uma vivên- mudanças no ciclo de vida familiar.
cia mais leve dentro do casamento e da Porto Alegre: Artes Médicas.
vida social como um todo. Ao mesmo Coelho, S. V. (2006). Abordagens psi-
tempo, colabora com a academia e cossociais da família. In J. G. Aun.,
para os achados científicos acerca da M. J. Vasconcellos, & S. V. Coelho
temática do gênero e da sua atuação (Orgs.), Atendimento sistêmico de
dentro da família. famílias e redes sociais: fundamentos
Acreditamos que o debate contido teóricos e epistemológicos (pp. 143-
neste artigo pode abrir portas para no- 233). Belo Horizonte: Ophicina de
vas formas de pensar aspectos impor- Arte e Prosa.
tantes do mundo do trabalho e da ex- D’Elia, T. C. P. (2009). Mulher, mater-
periência das famílias de hoje. O artigo nidade e trabalho: dilemas contem-
não tem a intenção de esgotar o tema, porâneos. Dissertação de Mestrado,
pelo contrário, buscamos incentivar Programa de Pós-graduação em Psi-
novas reflexões, questionamentos e cologia Clínica, Pontifícia Universi-
pesquisas que articulem a perspecti- dade Católica do Rio de Janeiro.
va sistêmica feminista com questões

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