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RESENHA
RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I: SEXUALIDADE
(En)Cena
TRABALHO, DE CHRISTOPHE DEJOURS
PERISSÉ, Nilson
Mestre em Sistemas de Gestão pela Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense - UFF.
Possui graduação em Comunicação Social pelo Centro Universitário da Cidade e especialização em
Gestão de Ouvidoria pela Universidade C ândido Mendes. Sua formaç ão psicanalítica, permanente, se
dá a partir de 2000, na linha freudiana e, desde 2013, na linha lacaniana, pela Escola Brasileira de
Psicanálise - EBP. Atua na Petrobras há 30 anos em processos de gestão de pessoas, abrangendo
áreas como Ouvidoria, Recursos Humanos, Saúde Ocupacional e Comunicação Empresarial. Atua como
instrutor no curso de Psicodinâmica do Trabalho e ministra a disciplina Violência no Trabalho no curso
de Direitos Humanos, ambos na Universidade Corporativa da Petrobras. Foi gerente de
Desenvolvimento de Pessoas e atualmente é coordenador de tratamento de denúncias de violência no
trabalho da Ouvidoria-Geral da Petrobras. Suas áreas de interesse são Psicanálise, Trabalho, C ultura .
INTRODUÇÃO
1 “Há muitos anos estou fazendo pesquisas em duas solidariedade, e de aprender a trazer uma
áreas situadas nas fronteiras da psicanálise: a contribuição para a construção de regras de trabalho,
psicodinâmica e a psicopatologia do trabalho, nos que não se limitam absolutamente a regras técnicas,
limites com as ciências sociais; e a psicossomática, mas são ao mesmo tempo regras sociais. O trabalho
nos limites com as ciências biológicas”, disse pode ser uma situação propícia ao exercício da
Dejours em 2001, numa entrevista a Marta Rezende democracia. Mas nesse terreno, também não há
Cardoso, professora da UFRJ. Disponível em: neutralidade do trabalho. Se na empresa não se
http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v4n2a07.pdf . aprende a democracia, aprender-se-ão os costumes
2 A questão da convivialidade no trabalho como mais destrutivos para o funcionamento da sociedade,
laboratório para a democracia e relações civilizadas o individualismo, os comportamentos desleais, as
é uma preocupação recorrente de Dejours. Em pequenas e grandes traições, a arte de inflig ir
entrevista com Marta Rezende Cardoso, professora sofrimento e injustiça ao outro”. Disponível em:
da UFRJ, nos idos de 2001, ele já falava: “o trabalho http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v4n2a07.pdf .
é oportunidade insubstituível de aprender o respeito
pelo outro, a confiança, a convivência, a
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sensorial no qual “a boca – zona erógena – biológico. Não se trata de uma interação
serve de ponto de saída para a sexualidade simples e, para cada criança, haverá
oral” (p. 90). Reflete Dejours (2012): “A particularidades. Dejours observa que o
criança afirma que utiliza a boca não apenas contato do adulto com a criança desperta
para se alimentar, mas às vezes também nele sentimentos e afetos, remete-o às suas
para a satisfação de seu prazer. Ela descobre experiências do passado, produz a
ao mesmo tempo que não é escrava de seus mobilização de seus fantasmas, de sua
instintos e de suas necessidades, que não sexualidade, de sua história, de sua neurose
está reduzida a um simples organis mo infantil e do seu inconsciente. Essas
animal, mas que ela procura tornar-se o questões irão se fazer presentes na maneira
sujeito de seu desejo” (p. 107). Ela como pais e mães lidarão com o corpo da
identifica a possibilidade de interagir com criança e suas funções – o que responderá
os pais num jogo mais elaborado da ordem diretamente na geração (ou falta de)
do desejo, produzindo demandas que subversões libidinais em determinadas
veiculam objetivos eróticos (no sentido de funções corporais. As funções que não
busca de prazer e satisfação de desejo). Isso passarem pela subversão permanecerão
a liberta parcialmente de suas funções restritas exclusivamente ao funcioname nto
fisiológicas, instintos e comportamentos fisiológico, levando a um empobrecime nto
automáticos e produz um algo além do da economia erótica. Esse empobrecime nto
corpo biológico: um corpo erótico. A essa pode se manifestar através de fenômenos
virada Dejours chamou de subversão mais simples, como a falta de sensibilidade
libidinal, pois envolve um processo de para apreciar afetivamente o perfume de
subversão das funções corporais pela via da uma flor, até questões mais graves como
pulsão3 e resulta de um algo a mais das uma psicopatia que se mostra indiferente à
necessidades do corpo que inicialmente os dor de outro ser humano. “Ali onde o corpo
pais desejavam suprir através de cuidados é impotente, devido aos impasses
puramente corporais. A criança, dessa encontrados pela subversão libidinal, o
forma, passa a reconhecer seu corpo como sujeito nada experimenta : a experiênc ia
algo que não apenas apresenta necessidades pungente da subjetividade que se subtrai a
fisiológicas, mas que também pode ser si mesma e deixa em seu lugar a paralisia e,
fonte de prazer. sobretudo, a frigidez, forma cardeal do
Dejours dirá que as característica s esvaziamento da afetividade e da própria
do corpo erótico dependerão diretamente vida em si” (p. 126).
das possibilidades apresentadas nessa Para Dejours, quando o processo de
subversão, o que envolve não apenas a subversão libidinal torna-se inconsiste nte,
qualidade das interações paternas e a contribui para uma maior vulnerabilidade
expressão dos seus cuidados, como também ao adoecer psicossomático. Nessa linha de
o amadurecimento contínuo da criança e o raciocínio, a doença psicossomática seria
desenvolvimento harmônico do seu corpo um fenômeno que se manifestaria em
5 Laplanche tem uma importante história no fundamento: na sexualidade. Dejours iniciou uma
movimento psicanalítico, marcada por uma teoria produtiva parceria com Laplanche na década de
que lida tanto com Freud como com Lacan: ele é 1990 e, desde então, pôde aprofundar alguns
autor do até hoje célebre “Vocabulário de desdobramentos freudianos propostos por
Psicanálise” em parceria com Jean Bertrand Laplanche. Em 2008, foi criada a Fundação Jean
Pontalis, teve Jacques Lacan como um de seus Laplanche – Novos Fundamentos para a
primeiros analistas, participou intensamente do Psicanálise, na qual Dejours atuou como presidente
movimento psicanalítico francês e é reconhecido, do Conselho Científico. Laplanche faleceu em 2012.
6 Trata-se de um neologismo criado, na linha da
entre outras linhas de pesquisa, por seu
fenomenologia, pelo filósofo Michel Henry,
retorno a Freud no que diz respeito à formado pela fusão das palavras “corpo” e
abandonada (por Freud) teoria da sedução, “apropriação”. Henry será bastante citado nas
que, na visão de Dejours, contribui para discussões de Dejours em “Sexualidade e Trabalho”.
remanejar a teoria psicanalítica sobre seu
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Para Dejours, procurar uma resposta exatamente por conta desse engajamento da
para o que não está prescrito no manual de subjetividade “que podem advir novos
operações implica no desenvolvimento de registros de sensibilidade que não estavam
uma inteligência - inventiva, calcada na presentes no Eu antes da experiência do real
prática, ao mesmo tempo criativa e e da perseverança no esforço frente à
astuciosa, que sugere improvisos, soluções resistência do real e ao sofrimento
e possibilidades não exploradas. Essa decorrente” (p. 84).
operação é viabilizada através da Por tudo isso, da mesma forma que
mobilização do corpo erótico, aquele as primitivas experiências familia res
mesmo que “experimenta afetivamente a possibilitaram o desenvolvimento do corpo
vida” (p. 100). “Esta inteligência situa- se erótico, o contato com a experiência do
efetivamente nas vísceras e não no cérebro. trabalho pode proporcionar experiênc ias
É uma inteligência do corpo, não é uma inéditas e de grande potencial para o
inteligência cerebral7 ” (p. 43). Daí Dejours desenvolvimento. Pensa Dejours: “o
afirmar que “a inteligência no trabalho é ‘trabalhar’ constitui uma segunda
principalmente e antes de tudo uma oportunidade depois da infância, para
inteligência do corpo” (p. 199). ampliar os poderes do corpo de
Ele fala de um sofisticado processo experimentar a si próprio de gozar de si” (p.
implicado num contato contínuo e 200). “Ao ter acesso, graças ao corpo
prolongado do sujeito com o trabalho, uma subjetivo, à familiaridade e à intimidade
obstinação diante dos fracassos e uma com a matéria ou a ferramenta, aquele que
maturação que envolve até uma dinâmica trabalha adquire não apenas novas
fora do trabalho. Quando o real do trabalho habilidades mas ainda descobre em si novos
leva ao fracasso do trabalhador no registros de sensibilidade. Pela experiênc ia
desempenho de sua tarefa, esse fracasso do trabalho, ele aprende a conhecer seus
transforma-se em enigma e em fonte de próprios limites, suas imperícias, mas ele
excitação8 . “As dificuldades que estende também em si o repertório de suas
encontramos em nosso trabalho, nós as impressões afetivas e descobre novas
carregamos para fora do ambiente qualidades de virtuosismo que acaba por
profissional. Ficamos irritadiços, apreciar, da mesma forma como gosta de si
descontentes, cansados e descontamos os mesmo” (p. 179). Amparado nessas
reveses em nossos familiares” (p. 50). A reflexões, Dejours repete um pensamento já
irritação e frustração fazem com que o apresentado em outros textos: “trabalhar
sujeito muitas vezes tenha insônia e, quando não é apenas produzir, é ainda transforma r-
dorme, sonhe ou tenha pesadelos sobre o se a si próprio” (p. 72).
trabalho. “Pois bem, isso também é parte
integrante do trabalho”, diz ele (p. 50). É Por uma metapsicologia do corpo
7 Entendendo o cérebro, aqui, como integrante do para que se encontre um caminho particular para
corpo biológico, não do corpo erótico. procurar, ou mesmo obter, o prazer” (p. 93). Na
8 É possível identificar nessa discussão uma analogia presente discussão, Dejours coloca o real como o
com a ideia de pulsão, na medida em que esta sempre elemento que desperta um enigma, e será esse
supõe a mobilização de uma ação. “A pulsão, por sua enigma o motor que irá gerar uma ação, via de regra
meta, sempre define uma ação, e realiza a mediação responsável pela ampliação da inteligência prática e
do desenvolvimento do sujeito como um todo.
9 Para Dejours, “o termo sexual qualifica toda a intensificar no corpo os efeitos sensuais da
atividade exercida ou sofrida no sentido de excitação” (p. 136).
do inconsciente, que tem sido explorado por continua sendo objeto de grandes debates
autores da chamada esquerda lacaniana 10 com interpretações e comentários
como um dos pontos de partida para a divergentes” (p. 117). Por outro lado,
retomada de uma perspectiva apresenta uma visão contrária à idéia de
revolucionária em relação à realidade uma substituição do Id pelo Eu, acreditando
política vigente, Dejours prefere dar mais num aparelho psíquico
atenção para para os efeitos de um constantemente intimado a reorganizar- se
inconsciente sexual que pode provocar um através da integração da experiênc ia
jogo com vistas ao gozo levado ao extremo, inconsciente, levando a uma transformação
revelar forças até então desconhecidas e do Eu a partir da pressão ou da irrupção do
gerar danos imprevisíveis. Id. Ainda que admita a desestabilização
Dejours mostra-se consciente dos produzida pelas pulsões e pelo gozo,
extremos dessa discussão. Ele cita a entende que o Eu é convocado a um
tradicional frase freudiana do “wo Es war, trabalho de reestruturação que leva à
soll Ich werden”, que tem servido como ampliação da subjetividade.
linha divisória entre as elaborações dos Com o foco voltado nos perigos
autores pós-freudianos e dos lacanianos. Os apresentados pelo inconsciente, o autor
primeiros traduziram o texto original da ampara-se em Laplanche para falar de um
língua alemã para a língua inglesa – e desta inconsciente amencial, que conviveria ao
para outras línguas – como “onde havia Id, lado do inconsciente recalcado, fruto de
o eu deve advir”, propondo uma violências ou reações excessivas
colonização na qual o Eu substituir ia, experimentadas pela criança por adultos e
gradativamente o Id, com a suspensão do que, dada sua falta de recursos para traduzir
recalque através da cura. Lacan, por sua as experiências na forma de um
vez, denunciou o que considerou ser um pensamento, sofre uma sobrecarga de
erro da tradução, apresentando uma versão excitação impossível de ser recalcada ou de
alternativa: “Lá, onde isso (Id) estava, lá, se converter numa formação do
como sujeito, devo [eu] advir”). Para o 11
inconsciente . Dejours fala de um
psicanalista francês, falar de sujeito (o da inconsciente não recalcado, impossível de
singularidade que deve advir) é diferente de retornar à consciência sob a forma de um
fortalecer o Eu, para ele fonte de lapso, ato falho ou sintoma e que, ao invés
identificações e alienação. disso, se manifestará através de passagens
Dejours não estressa a polêmica, ao ato, descompensações. Os sentime ntos
embora a admita: “O exame dessa de autodestruição, ódio contra o próprio
formulação freudiana, sabemos todos, corpo e de angústia associados seriam, para
10 Campo de intervenções políticas e teóricas a partir Com perspectivas diferentes, vários autores
da psicanálise de Jacques Lacan. Sua principal da atualidade têm se utilizado dessa
característica é aplicar conceitos da psicanálise e da
filosofia à crítica da ideologia liberal. Yannis
articulação: Merecem destaque Slavoj
Stavrakakis (2007) observa que a expressão Zizek, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,
“esquerda lacaniana” não está proposta como uma além dos filósofos Cornelius Castoriadis
categorização restritiva ou exclusiva, mas como um (Grécia) e Judith Butler (Estados Unidos).
campo distinto de intervenções teóricas e políticas 11 Formações do inconsciente dão voz ao recalcado
que exploram a relevância do trabalho de Lacan para através de sonhos ou chistes, por exemplo.
compreender os impasses contemporâneos.
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social” da pulsão de morte, “um conluio que e instala uma perigosa dualidade. Esse é um
se estabelece entre o gozo do exercício de ponto chave da adoção de uma teoria de
um poder destruidor sobre o outro no sujeito baseada no sujeito do inconscie nte,
trabalho ou na sociedade, de um lado. E o naquilo que ela implica (a imagem do
pensamento de empréstimo (estereótipos, homem que não manda na própria casa, o
modo, ideologia), de outro” (p. 155). sujeito descentrado e influenciado por
O conceito de pensamento de forças que ignora e que levam-no a adotar
empréstimo articula-se com a ideia de comportamentos contraditórios). Dejours
subversão libidinal. Para Dejours, onde o vale-se dessa dualidade para lembrar: “O
corpo é impotente por conta dos impasses ser humano é duplo. Em nome do trabalho,
encontrados na subversão libidinal, o da produtividade e da rentabilidade ele pode
sujeito nada experimenta. A subjetividade ser levado a imprimir a sua contribuição
se subtrai e deixa em seu lugar a paralisia e para atos que moralmente reprova. E não
a frigidez vazia de afetividade, de pulsões e entra sempre em crise, não obstante as
da própria vida. Nesses locais onde se contradições patentes que resultam de sua
vivencia a experiência do vazio, inexis te implicação em atos, atividades ou ações
pensamento, mas angústia sem profissionais que parecem bem
representação. Para preencher o vazio, o incompatíveis com engajamentos
sujeito apropria-se do pensamento alheio, intelectuais e de ordem moral assumidas na
via de regra pobre ou estereotipado, prolixo esfera privada” (p. 202).
ou estritamente tecnológico e operacional. Como compreender essa clivage m
A ideologia individualista e de exclusão do para evitar que ela seja obstáculo para uma
liberalismo seria, aos olhos de Dejours, um proposta de mudança? Para explicá- la,
pensamento de empréstimo que encobriria Dejours lançará mão de um conceito de
condutas pautadas na destrutividade Spinoza, “akrasia”, que nomeia a fraqueza
amencial voltada contra o outro (p. 126, 127 de vontade que faz o sujeito comportar- se
e 155). Trata-se de uma elaboração de forma oposta ao que lhe orienta a razão.
interessante para compreender fenômenos Dejours identifica esse traço como algo
como a adesão a movimentos sociais constante e que pode atravessar toda a vida
pautados na crueldade ou mesmo como profissional, simplesmente “pela
mais um elemento para pensar a comodidade, por ser mais fácil e mais
banalização do mal. Dejours cita frases vantajoso do que de entrar em um
típicas desse pensamento de empréstimo : movimento de resistência” (p. 202). Aqui
“É assim mesmo; não dá para fazer de outra faz menção à teoria do “Eu-esforço”, que
maneira; são ordens; não tenho escolha; é o compreende todo processo de
sistema; temos de ser realistas” (p. 203). desenvolvimento através de uma luta
Nas últimas páginas de “Trabalho e constante: contra as influências do mundo,
Sexualidade”, interessa a Dejours retomar a contra a inércia muscular, contra a própria
discussão de capítulos anteriores para paralisia confortável implicada em ceder ao
reforçar que os acidentes no processo de movimento de uma multidão. Paga-se um
subversão libidinal marcam o segundo preço por viver alienado, pensa Dejours,
corpo (o corpo erótico) “com verdadeiras mas ganha-se benefícios secundários
mutilações” (p. 201), provocando uma quando não se resiste a algo difícil de
clivagem que atravessa o aparelho psíquico mudar. Na tomada de decisão sobre o
Trabalho (En)Cena, Ja n. /Jun. 2016, Vol . 01 n. 1, pp. 197-210.
RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 209
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