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Vol. 01 n. 1, Jan. /Jun. 2016, pp. 197-210 rev ista.uft.edu.br/inndex.

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RESENHA
RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I: SEXUALIDADE

(En)Cena
TRABALHO, DE CHRISTOPHE DEJOURS

Review: Living Work - Volume I: Sexuality and work, by Christophe Dejours

Reseña: Trabajo Vivo - Tomo I: Sexualidad y trabajo, por Christophe Dejours

Commentaire: Travail vivant – 1: Sexualité et travail, Christophe Dejours

PERISSÉ, Nilson

Mestre em Sistemas de Gestão pela Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense - UFF.
Possui graduação em Comunicação Social pelo Centro Universitário da Cidade e especialização em
Gestão de Ouvidoria pela Universidade C ândido Mendes. Sua formaç ão psicanalítica, permanente, se
dá a partir de 2000, na linha freudiana e, desde 2013, na linha lacaniana, pela Escola Brasileira de
Psicanálise - EBP. Atua na Petrobras há 30 anos em processos de gestão de pessoas, abrangendo
áreas como Ouvidoria, Recursos Humanos, Saúde Ocupacional e Comunicação Empresarial. Atua como
instrutor no curso de Psicodinâmica do Trabalho e ministra a disciplina Violência no Trabalho no curso
de Direitos Humanos, ambos na Universidade Corporativa da Petrobras. Foi gerente de
Desenvolvimento de Pessoas e atualmente é coordenador de tratamento de denúncias de violência no
trabalho da Ouvidoria-Geral da Petrobras. Suas áreas de interesse são Psicanálise, Trabalho, C ultura .

INTRODUÇÃO

Publicado originalmente na França soava como uma novidade cuja extensão


em 2009 pela editora francesa Payot, ainda não era tão fácil de captar.
“Sexualidade e Trabalho” compõe a “Sexualidade e Trabalho” é um
primeira parte da coleção em dois tomos texto complexo, no qual o rigor técnico de
“Trabalho Livre”, cujo segundo volume tem Dejours leva-o a buscar conexões que
por subtítulo “Trabalho e Emancipação ”. ajudem a demonstrar a operação corporal e
Os dois tomos foram lançados psíquica que se desencadeia quando se
simultaneamente e chegaram ao Brasil com trabalha, envolvendo um processo de duas
quase quatro anos de atraso (a edição vias no qual tanto o ato de trabalhar
brasileira foi publicada sem alarde em desenvolve o sujeito quanto a inteligê nc ia
outubro de 2012 pela Paralelo 15). do corpo viabiliza o trabalho. Até aí
No II Congresso Brasileiro de nenhuma novidade quanto a alguns artigos
Psicodinâmica e Clínica do Trabalho, ou livros já publicados pelo autor na linha
realizado em Brasília em 2011, algumas da psicodinâmica. O que torna esta obra um
abordagens dessa obra foram objeto de diferencial é a forte articulação que Dejours
discussão por Eric Hamraoui, filósofo do faz com suas investigações em psicanálise e
CNAM (Paris), que, em sua palestra psicossomática, proporcionando maior
“Trabalho vivo, subjetivação e ênfase aos estudos sobre o corpo – mais
cooperação”, deu notícias das articula ções particularmente o corpo erógeno - e ao tanto
dejourianas entre trabalho e sexualidade, que a sexualidade está implicada com as
corpo erógeno e psicodinâmica do trabalho. questões do trabalho. Além disso, a teoria
A publicação de “Sexualidade e Trabalho” de sujeito baseado na psicanálise nunca foi
deixa mais claro o que, no Congresso, ainda tão explorada quanto aqui, trazendo amplas
incursões sobre os impactos do inconscie nte

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nas relações no trabalho e na sociedade em domínios da vida e à derrocada da ação


sentido mais amplo. Escreve Dejours coletiva. Nessa perspectiva, Dejours
(2012): “Propus-me ao exame do que propõe-se, em contrapartida, a refazer o
implicaria, para uma filosofia política, caminho de volta utilizando-se da mesma
reunir a centralidade da sexualidade estratégia, “partindo da subjetividade e do
demonstrada pela psicanálise e a trabalho rumo à política”. No seu
centralidade do trabalho proposta pela entendimento, se a ordem que está posta é
psicodinâmica do trabalho” (p. 24). fruto, em grande parte, de uma perspectiva
“Sexualidade e Trabalho” é, portanto, um reducionista do trabalho, da dissolução do
ensaio de articulação entre os campos de espaço público e do incremento das
pesquisa nos quais milita o autor1 . preocupações individualistas com o ganho e
o sucesso privado, é necessário trazer o
Utopia em Dejours. trabalho para a discussão, refletir sobre em
que condições ele pode tornar-se capaz de
Embora possa ser lido como um reunir novamente os seres humanos e
texto com vida própria, é útil situar este reestruturar os espaços coletivos de
Tomo I no conjunto dos dois volumes e, discussão. “Ao trabalho caberia um papel
nesse sentido, a Introdução escrita por determinante na elaboração das relações de
Dejours (2012, p. 21 a 35) é essencial. Ali civilidade graças às quais os indivíd uos
ele lembra que em uma de suas obras conseguem viver e agir juntos”, arrisca ele
anteriores (“A Banalização da Injustiça (p. 26)2 . E se pergunta: “Se, de fato, o
Social”, produzida em 1998 e traduzida trabalho ocupa um lugar de destaque na
para o português em 1999) havia defendido construção da identidade e das relações
que o processo de dominação vigente na sociais, em que condições uma nova forma
ordem social da atualidade foi testado de pensar o trabalho pode oferecer
experimentalmente no mundo do trabalho. instrumentos para fazer frente à crise da
A lógica de gestão das empresas, aos política e sustentar uma luta coerente contra
poucos, contribuiu para transformar as a decadência da polis?” (p. 27).
relações sociais dentro e fora delas, levando Se durante muito tempo as pesquisas
à desagregação da civilidade, ao buscaram compreender os elementos
esgotamento da solidariedade, à propulsores da dominação e da servidão, é
exacerbação da concorrência em todos os necessário, agora, lançar o desafio de

1 “Há muitos anos estou fazendo pesquisas em duas solidariedade, e de aprender a trazer uma
áreas situadas nas fronteiras da psicanálise: a contribuição para a construção de regras de trabalho,
psicodinâmica e a psicopatologia do trabalho, nos que não se limitam absolutamente a regras técnicas,
limites com as ciências sociais; e a psicossomática, mas são ao mesmo tempo regras sociais. O trabalho
nos limites com as ciências biológicas”, disse pode ser uma situação propícia ao exercício da
Dejours em 2001, numa entrevista a Marta Rezende democracia. Mas nesse terreno, também não há
Cardoso, professora da UFRJ. Disponível em: neutralidade do trabalho. Se na empresa não se
http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v4n2a07.pdf . aprende a democracia, aprender-se-ão os costumes
2 A questão da convivialidade no trabalho como mais destrutivos para o funcionamento da sociedade,
laboratório para a democracia e relações civilizadas o individualismo, os comportamentos desleais, as
é uma preocupação recorrente de Dejours. Em pequenas e grandes traições, a arte de inflig ir
entrevista com Marta Rezende Cardoso, professora sofrimento e injustiça ao outro”. Disponível em:
da UFRJ, nos idos de 2001, ele já falava: “o trabalho http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v4n2a07.pdf .
é oportunidade insubstituível de aprender o respeito
pelo outro, a confiança, a convivência, a
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pesquisar sobre os propulsores psicológicos para as quais Dejours retorna e, ao mesmo


da vontade de agir politicamente e da tempo, posiciona os escritos de 2009 como
emancipação. É para essa direção que um desdobramento das preocupações que o
Dejours aponta a Psicodinâmica do autor já manifestava vinte anos antes. É
Trabalho, especialmente com as discussões nessa obra, por exemplo, que ele debaterá a
do “Trabalho Vivo”. A obra, em seus dois subversão libidinal, processo que descreve
tomos, pretende, portanto, “observar o a formação do corpo erógeno (traduzido na
estado da arte dos conhecimentos clínicos e edição brasileira de “Trabalho Vivo” como
teóricos hoje disponíveis... (...) Uma corpo erótico na maior parte do tempo e
política que não teria tão só a ambição de que, como tal, será citado nesta resenha).
prevenir as doenças mentais do trabalho, Na perspectiva dejouriana, vivemo s
mas que retomaria o domínio sobre a simultaneamente através de dois corpos: o
organização do trabalho para dela obter a primeiro é o corpo biológico, ou somático -
potencialidade de recursos na construção da o corpo das funções orgânicas, das
saúde e na realização de si mesmo, de um regulações biológicas e dos instintos, que
lado, e na aprendizagem do viver junto e da pode ser tratado com antibióticos e estudado
recomposição das ligações de pela Biologia. Desse corpo, que é produto
solidariedade, de outro” (Tomo II, p. 14). da natureza, é gradualmente constituído um
Para materializar essa proposta, o outro corpo, o corpo erótico, que é o corpo
autor divide a obra em dois grandes subjetivo, através do qual experimenta mos
objetivos: 1) No Tomo I, busca a vida e fenômenos subjetivos como o
compreender o lugar ocupado pela sofrimento, o prazer, a excitação e o desejo.
sexualidade e pelo trabalho na condição No processo de formação desse corpo a
humana ordinária, a partir do confronto subversão libidinal ocupa um papel de
entre as ciências do trabalho (entre as quais destaque.
ele destaca a ergonomia) e a psicanálise; 2) Dejours entende que a formação do
No Tomo II, propõe-se a examinar a corpo erótico tem início a partir dos
dimensão política do trabalho vivo. A primeiros contatos dos pais com o corpo da
presente resenha debruça-se sobre as criança, visando o atendimento às suas
discussões estabelecidas no Tomo I. necessidades básicas. Nessa fase, são eles
os responsáveis por responder aos
Contribuições da psicanálise e da principais enigmas que absorvem o infante,
psicossomática. questões como o suprimento da fome, da
sede, da necessidade de calor, higiene, etc.
Boa parte dos desenvolvime nto s Esse provimento ao que é necessário para a
apresentados em “Sexualidade e Trabalho” manutenção do corpo biológico, entretanto,
pode ser localizada na obra “Repressão e atua como força motriz para o
subversão em psicossomática: pesquisas desenvolvimento do que está além da
psicanalíticas sobre o corpo”, publicada necessidade vital e que envolve a libido.
pela Jorge Zahar em 1991, do origina l Pouco a pouco, a criança identifica que a
francês de 1989. Esse livro não é boca serve não apenas à nutrição, mas para
exatamente um pré-requisito para a leitura sugar, morder e beijar, o que proporciona,
deste Tomo I, mas traz noções importantes para-além da necessidade, um prazer

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sensorial no qual “a boca – zona erógena – biológico. Não se trata de uma interação
serve de ponto de saída para a sexualidade simples e, para cada criança, haverá
oral” (p. 90). Reflete Dejours (2012): “A particularidades. Dejours observa que o
criança afirma que utiliza a boca não apenas contato do adulto com a criança desperta
para se alimentar, mas às vezes também nele sentimentos e afetos, remete-o às suas
para a satisfação de seu prazer. Ela descobre experiências do passado, produz a
ao mesmo tempo que não é escrava de seus mobilização de seus fantasmas, de sua
instintos e de suas necessidades, que não sexualidade, de sua história, de sua neurose
está reduzida a um simples organis mo infantil e do seu inconsciente. Essas
animal, mas que ela procura tornar-se o questões irão se fazer presentes na maneira
sujeito de seu desejo” (p. 107). Ela como pais e mães lidarão com o corpo da
identifica a possibilidade de interagir com criança e suas funções – o que responderá
os pais num jogo mais elaborado da ordem diretamente na geração (ou falta de)
do desejo, produzindo demandas que subversões libidinais em determinadas
veiculam objetivos eróticos (no sentido de funções corporais. As funções que não
busca de prazer e satisfação de desejo). Isso passarem pela subversão permanecerão
a liberta parcialmente de suas funções restritas exclusivamente ao funcioname nto
fisiológicas, instintos e comportamentos fisiológico, levando a um empobrecime nto
automáticos e produz um algo além do da economia erótica. Esse empobrecime nto
corpo biológico: um corpo erótico. A essa pode se manifestar através de fenômenos
virada Dejours chamou de subversão mais simples, como a falta de sensibilidade
libidinal, pois envolve um processo de para apreciar afetivamente o perfume de
subversão das funções corporais pela via da uma flor, até questões mais graves como
pulsão3 e resulta de um algo a mais das uma psicopatia que se mostra indiferente à
necessidades do corpo que inicialmente os dor de outro ser humano. “Ali onde o corpo
pais desejavam suprir através de cuidados é impotente, devido aos impasses
puramente corporais. A criança, dessa encontrados pela subversão libidinal, o
forma, passa a reconhecer seu corpo como sujeito nada experimenta : a experiênc ia
algo que não apenas apresenta necessidades pungente da subjetividade que se subtrai a
fisiológicas, mas que também pode ser si mesma e deixa em seu lugar a paralisia e,
fonte de prazer. sobretudo, a frigidez, forma cardeal do
Dejours dirá que as característica s esvaziamento da afetividade e da própria
do corpo erótico dependerão diretamente vida em si” (p. 126).
das possibilidades apresentadas nessa Para Dejours, quando o processo de
subversão, o que envolve não apenas a subversão libidinal torna-se inconsiste nte,
qualidade das interações paternas e a contribui para uma maior vulnerabilidade
expressão dos seus cuidados, como também ao adoecer psicossomático. Nessa linha de
o amadurecimento contínuo da criança e o raciocínio, a doença psicossomática seria
desenvolvimento harmônico do seu corpo um fenômeno que se manifestaria em

3 O conceito de pulsão, em Dejours, acompanha a de trabalho imposta ao anímico em consequência de


definição freudiana: “um conceito-limite entre sua correlação com o corporal” (conforme extraíd o
anímico e somático, como representante psíquico do artigo freudiano de 1915, “A pulsão e os destinos
dos estímulos provenientes do interior do corpo e das pulsões”).
alcançando a alma, como uma medida de exigência
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consequência de uma determinada área do partindo da poiesis alcança o Arbeit, é esse


corpo não ter sua função afetada pela processo mesmo que é designado pelo
subversão libidinal. E mais: no âmbito do termo de trabalho vivo” (p. 200 e 201).
trabalho, o efeito de um corpo erótico Para dar substância a esse projeto,
empobrecido também se faz notar nas Dejours procura, como de hábito, mostrar a
limitações do empregado: as “atrofias do complexidade do trabalhar, que mobiliza o
corpo erógeno (...) tornam-se deficiênc ias corpo, o inconsciente, as relações fora e
em relação à sua habilidade técnica, de dentro do trabalho, os horários dentro e fora
maneira que alguns sujeitos que saíram do expediente. Nesta obra, mais
feridos de sua infância permanecem particularmente, ele ancora-se na discussão
indefinidamente grandes desajeitados, da sexualidade, considerando que “o corpo
desastrados ou mesmo brutos entre as mãos revela-se como passagem obrigatória de
dos quais tudo, de maneira inexorável, é uma teoria do trabalho” (p. 34). Logo,
destruído” (p. 180). corpo, sexualidade, trabalho são eixos
Vinte anos depois das reflexões chave para os instigantes desenvolvime ntos
propostas na obra de 1989, Dejours, em desse Tomo I.
“Sexualidade e Trabalho”, proporá um novo
termo. Num mais-além da subversão Inteligência prática.
libidinal, falará da subversão poiética.
Aqui, o autor faz um jogo de palavras com Para o autor, o trabalho articula- se
a palavra grega Poiesis (produção, com o corpo erótico na medida em que o
trabalho). Para ele, “o trabalho não pode ser desenvolvimento deste não termina nas
apreendido apenas pelas categorias primeiras experiências em família. A vida
clássicas de produção (poiesis); ele implica oferecerá inúmeras outras possibilidades de
também categorias teóricas da ação desenvolvimento – a experiência do
(práxis), onde todos os elos intermediár ios trabalho sendo uma delas. “O trabalho (...)
(visibilidade, confiança, julgame nto, pode contribuir (...) à expansão do
reconhecimento, arbitragem, discussão, repertório erótico do corpo”, dirá ele (p.
racionalidade comunicativa) são as 113). E irá além, compreendendo inclus ive
categorias extraídas da ‘teoria da ação’”4 . A que trabalhar pode agir na superação de
subversão poiética proposta por ele numa experiências infantis limitadas ou mal
clara analogia com a subversão libidina l sucedidas (“a relação com o trabalho pode
sugere que, se esta última promove a ser uma segunda oportunidade para superar
criação do corpo erótico a partir do corpo os limites impostos pelo desenvolvime nto
biológico, a poiética seria capaz de levar o do corpo erógeno pelas inaptidões funestas
trabalho ao status de práxis tendo por ponto do adulto ao brincar com os corpos da
de partida a forma reducionista como ainda criança” p. 180). De que forma o trabalho
é visto (como poiesis). Essa discussão é estaria credenciado para dar essas
central em Dejours. Para ele, “não pode contribuições? Uma pista pode ser
haver poiesis sem que haja Arbeit (trabalho encontrada no tema escolhido para figur ar
psíquico). (...) O conjunto do processo que,

4DEJOURS, C. O Fator Humano. Rio de Janeiro:


FGV, 1997, pág. 61.

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no primeiro capítulo do Tomo I: a desânimo” (p. 39). Ao mesmo tempo, são


inteligência no trabalho. impulsores que levam o sujeito a “continuar
Amparado na perspectiva do indefinidamente a buscar, a recomeçar, e
psicanalista Jean Laplanche5 , Dejours sobretudo, a encontrar uma solução. É
entende que o sujeito não tem acesso direto imperativo descobrir as origens do
ao mundo exterior, o que significa que toda problema, às vezes inventar uma solução
realidade é apenas realidade psíquica, ou possível” (p. 40).
seja, realidade conforme percebida pelo O mesmo acontece no cotidiano do
sujeito. Todo conhecimento que se adquire trabalho, onde “as habilidades profissio na is
sobre a natureza é concebido através de uma modelam-se a partir do esforço para a
operação que poderia ser chamada de superação dos obstáculos que o mundo
“corpopriação”6 do mundo, caracterizada confronta à habilidade técnica” (p. 37).
por uma “apalpação” (p. 44), operação essa Aqui Dejours ampara-se na discussão da
responsável pela apreensão gradativa do ergonomia francesa que apregoa que o
ambiente em que se encontra o sujeito. A trabalho, embora esteja sujeito a
corpopriação implica numa exposição à procedimentos, manuais, ao conhecime nto
experiência do mundo e ao consequente e à experiência humanos acumulados ao
desenvolvimento de habilidades – ou, mais longo de décadas, faz parte do real que é
propriamente, de uma inteligência – para sempre enigma e surpresa. Dia a dia, o
dar conta dos desafios que fazem parte sujeito no trabalho se depara com esse real,
dessa experiência. em situações que fogem ao previsto e
Os fracassos dessa empreitada não apresentam tantas variações que seria
são poucos. O contato com o real será impossível serem açambarcadas numa
sempre prenhe de armadilhas, na medida prescrição. “O real é o que se deixa
em que a natureza e a vida como um todo conhecer por quem trabalha por sua
não se comportam, necessariamente, de resistência ao saber-fazer, aos
acordo com o que o sujeito espera, prevê ou procedimentos, às prescrições, aquilo que
planeja. O conjunto de imprevistos, panes, se revela, geralmente, como forma de
surpresas, são vividos como “experiênc ia resistência à habilidade técnica, ao
desagradável, dolorosa, ou como conhecimento. (...) Quando todo o meu
sentimento de impotência ou angústia, até saber se choca contra a resistência do
mesmo de irritação, raiva ou decepção, de mundo, estou no real” (p. 39).

5 Laplanche tem uma importante história no fundamento: na sexualidade. Dejours iniciou uma
movimento psicanalítico, marcada por uma teoria produtiva parceria com Laplanche na década de
que lida tanto com Freud como com Lacan: ele é 1990 e, desde então, pôde aprofundar alguns
autor do até hoje célebre “Vocabulário de desdobramentos freudianos propostos por
Psicanálise” em parceria com Jean Bertrand Laplanche. Em 2008, foi criada a Fundação Jean
Pontalis, teve Jacques Lacan como um de seus Laplanche – Novos Fundamentos para a
primeiros analistas, participou intensamente do Psicanálise, na qual Dejours atuou como presidente
movimento psicanalítico francês e é reconhecido, do Conselho Científico. Laplanche faleceu em 2012.
6 Trata-se de um neologismo criado, na linha da
entre outras linhas de pesquisa, por seu
fenomenologia, pelo filósofo Michel Henry,
retorno a Freud no que diz respeito à formado pela fusão das palavras “corpo” e
abandonada (por Freud) teoria da sedução, “apropriação”. Henry será bastante citado nas
que, na visão de Dejours, contribui para discussões de Dejours em “Sexualidade e Trabalho”.
remanejar a teoria psicanalítica sobre seu
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Para Dejours, procurar uma resposta exatamente por conta desse engajamento da
para o que não está prescrito no manual de subjetividade “que podem advir novos
operações implica no desenvolvimento de registros de sensibilidade que não estavam
uma inteligência - inventiva, calcada na presentes no Eu antes da experiência do real
prática, ao mesmo tempo criativa e e da perseverança no esforço frente à
astuciosa, que sugere improvisos, soluções resistência do real e ao sofrimento
e possibilidades não exploradas. Essa decorrente” (p. 84).
operação é viabilizada através da Por tudo isso, da mesma forma que
mobilização do corpo erótico, aquele as primitivas experiências familia res
mesmo que “experimenta afetivamente a possibilitaram o desenvolvimento do corpo
vida” (p. 100). “Esta inteligência situa- se erótico, o contato com a experiência do
efetivamente nas vísceras e não no cérebro. trabalho pode proporcionar experiênc ias
É uma inteligência do corpo, não é uma inéditas e de grande potencial para o
inteligência cerebral7 ” (p. 43). Daí Dejours desenvolvimento. Pensa Dejours: “o
afirmar que “a inteligência no trabalho é ‘trabalhar’ constitui uma segunda
principalmente e antes de tudo uma oportunidade depois da infância, para
inteligência do corpo” (p. 199). ampliar os poderes do corpo de
Ele fala de um sofisticado processo experimentar a si próprio de gozar de si” (p.
implicado num contato contínuo e 200). “Ao ter acesso, graças ao corpo
prolongado do sujeito com o trabalho, uma subjetivo, à familiaridade e à intimidade
obstinação diante dos fracassos e uma com a matéria ou a ferramenta, aquele que
maturação que envolve até uma dinâmica trabalha adquire não apenas novas
fora do trabalho. Quando o real do trabalho habilidades mas ainda descobre em si novos
leva ao fracasso do trabalhador no registros de sensibilidade. Pela experiênc ia
desempenho de sua tarefa, esse fracasso do trabalho, ele aprende a conhecer seus
transforma-se em enigma e em fonte de próprios limites, suas imperícias, mas ele
excitação8 . “As dificuldades que estende também em si o repertório de suas
encontramos em nosso trabalho, nós as impressões afetivas e descobre novas
carregamos para fora do ambiente qualidades de virtuosismo que acaba por
profissional. Ficamos irritadiços, apreciar, da mesma forma como gosta de si
descontentes, cansados e descontamos os mesmo” (p. 179). Amparado nessas
reveses em nossos familiares” (p. 50). A reflexões, Dejours repete um pensamento já
irritação e frustração fazem com que o apresentado em outros textos: “trabalhar
sujeito muitas vezes tenha insônia e, quando não é apenas produzir, é ainda transforma r-
dorme, sonhe ou tenha pesadelos sobre o se a si próprio” (p. 72).
trabalho. “Pois bem, isso também é parte
integrante do trabalho”, diz ele (p. 50). É Por uma metapsicologia do corpo

7 Entendendo o cérebro, aqui, como integrante do para que se encontre um caminho particular para
corpo biológico, não do corpo erótico. procurar, ou mesmo obter, o prazer” (p. 93). Na
8 É possível identificar nessa discussão uma analogia presente discussão, Dejours coloca o real como o
com a ideia de pulsão, na medida em que esta sempre elemento que desperta um enigma, e será esse
supõe a mobilização de uma ação. “A pulsão, por sua enigma o motor que irá gerar uma ação, via de regra
meta, sempre define uma ação, e realiza a mediação responsável pela ampliação da inteligência prática e
do desenvolvimento do sujeito como um todo.

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imagem do corpo) e Didier Anzieu (e seu


Para Dejours, a clínica da inteligência no conceito sobre o Eu-pele).
trabalho sugeriria, então, “a exploração Dejours vai além da psicanálise e
teórica de uma metapsicologia do corpo” (p. busca sustentação teórica em discussões do
199). A empreitada é árdua, na medida em filósofo francês Maine de Biran (1766-
que, conforme o próprio autor admite, 1824), cujos escritos ficaram na
“Freud é reticente à idéia de uma teoria do obscuridade por muitos anos até serem
corpo” (p. 58), o que o leva a afirmar que resgatados pelo também filósofo Michel
“não há uma metapsicologia do corpo Henry, a cujos aportes Dejours também se
elaborada por Freud” (p. 75). Para o criador debruça. Interessa a ele, em relação a Biran,
da psicanálise, há apenas o corpo biológico ressaltar a articulação entre o esforço e a
que, como tal, seria da esfera da Biologia, constituição do Eu, chegando a falar num
não da teoria psicanalítica. Apesar disso, “Eu-esforço”, “pois é pelo esforço (...) que
Dejours sugere ser possível compreender a a inteligência do corpo sobrevém” (p. 199 e
questão do corpo subjetivo como uma 200). As reflexões de Biran serão valiosas
discussão, no mínimo, recalcada e, como não apenas para pensar no segundo corpo
tudo o que é recalcado, encontra caminhos que se cria a partir do contato com o mundo
para se manifestar. Como estudioso e externo, como também para fortalecer a
teórico de psicanálise e psicossomática, ele argumentação de Dejours sobre o esforço
não é alheio aos momentos da saga necessário para o progresso em todos os
freudiana nos quais esse enigma se fez sentidos – em primeira instância, do próprio
presente, como a clínica das histéricas - amadurecimento do sujeito; em segunda, da
cujas manifestações corporais já possibilidade de avanços na transformação
sinalizavam a importância de se pensar num da realidade que está posta.
estatuto do corpo via psicanálise -, na
descoberta da sexualidade infantil – que tem Biran, Henry e a apercepção imediata.
início na criança bem antes que os órgãos
biológicos de reprodução tenham alcançado Dejours destaca a reflexão birania na
a maturidade -, alem dos possíveis referente à relação do homem com um
desdobramentos de conceitos freudia nos mundo que lhe é exterior e que se apresenta
como o auto-erotismo e as zonas erógenas. prenhe de obstáculos - como se a realidade
Dejours lembra também que, em 1927, na externa resistisse e fosse indiferente às
versão inglesa de “O Eu e o ID”, Freud necessidades do ser que, desde os primeiros
falará num Eu que “é antes de tudo um Eu dias da infância, vê-se obrigado a lidar com
corporal, que deriva de sensações corporais, essa resistência e a empreender esforços
principalmente aquelas que surgem na para superá-la. Além da resistência do
superfície de corpo”. Desta passagem mundo, há ainda a resistência orgânica - a
poderia ser inferido que, para Freud, o Eu resistência do músculo -, cuja inércia se
seria mais uma subjetivação da citada opõe ao movimento do corpo e que faz com
superfície corporal do que o aparelho que todo movimento voluntário depare-se
mental do corpo. Esse Eu corporal de Freud com uma resistência física, exigindo- lhe a
viria, inclusive, a encontrar paralelos em realização de um esforço. As duas situações
outros teóricos posteriores, como Françoise – tanto a resistência externa, do mundo,
Dolto (com suas reflexões acerca da quanto a resistência orgânica, de um corpo
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RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 205

que se movimenta e age apenas sob o Nesse sentido, “Sexualidade e trabalho” é


comando e o exercício de força de uma também uma boa oportunidade para o autor
vontade – revelam a atuação de uma explorar as questões do inconsciente e do
intencionalidade e propiciam a percepção sexual.
de uma força que deseja, na qual Dejours Dejours observa que considerar a
identifica a origem egoica do querer pelo dimensão sexual implica em pensar em
sujeito. É daí – desse esforço que leva o determinadas forças que não estão sob o
sujeito a se descobrir a si mesmo - que o domínio do Eu e que levam à “descoberta
corpo se revela para si e torna-se presente subjetiva do estrangeiro dentro de si” (p.
para si próprio. O esforço, portanto, “é a 116). O homem não é senhor de sua própria
forma pela qual a ‘apercepção imediata’ de morada, já alertava Freud, e Dejours
si próprio torna-se possível. A apercepção é observa o quanto o inconsciente pode
um ‘sentir-se a si próprio’ pelo qual o Eu perturbar, desafiar, desfazer e desunir.
advém” (p. 78). Essa ênfase que Dejours Indomável, “só se deixa conhecer de forma
procura dar ao esforço e ao querer não é oblíqua, o que a teoria reúne sob o nome de
gratuita, pois serão estes os motores ‘retorno do recalcado’” (p. 114), e pode
determinantes para a luta pela emancipação, representar uma ameaça potencial para a
pelo combate à preguiça mental e à covardia coesão do Eu. Aqui, Dejours parece marcar
ordinária que, a seu ver, favorecem à uma posição mais próxima dos
dominação, sustentam a banalização do mal desenvolvimentos pós-freudianos – que
e comprometem o trabalho vivo. enfatizaram a importância do
fortalecimento do Eu -, posição contrária à
O inconsciente e suas vicissitudes. linha lacaniana que privilegia o
inconsciente como fonte de singularidade
Grande parte do Tomo I objetiva do sujeito e, por outro lado, vê no Eu um
gerar reflexões sobre os porquês da mero conglomerado de identificações com
dominação e da alienação, como base para figuras externas e o resultado de
as propostas de transformação que compromissos com a adaptação e com o
comparecem no Tomo II. Assim, o autor atendimento ao desejo do outro.
chama a atenção para o fato de que não são No que se refere ao inconsciente, a
apenas as resistências do mundo ou a atenção de Dejours está voltada para outra
resistência orgânica que apresentam direção – a dos riscos que representam o
percalços para a liberdade e a autonomia. “Sexual”9 , intrinsicame nte
“O inconsciente e as pulsões sexuais descompromissado com a preservação do
exercem pressões de grande Eu, além de ser “fundamentalme nte
constrangimento sobre o Eu” (p. 201). Não associal, ou mesmo antissocial. Sua força,
há como pensar nos propulsores que não é outra que a força do inconscie nte,
psicológicos da vontade em prol da enfraquece o Eu. Há no constrangime nto
autonomia e de uma ação política sem exercido pela pulsão algo que se opõe à
considerar os mecanismos inconscie ntes liberdade e à autonomia do Eu” (p. 201).
que podem atuar como forças limitantes. Assim, ao identificar o caráter transgressor

9 Para Dejours, “o termo sexual qualifica toda a intensificar no corpo os efeitos sensuais da
atividade exercida ou sofrida no sentido de excitação” (p. 136).

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RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 206

do inconsciente, que tem sido explorado por continua sendo objeto de grandes debates
autores da chamada esquerda lacaniana 10 com interpretações e comentários
como um dos pontos de partida para a divergentes” (p. 117). Por outro lado,
retomada de uma perspectiva apresenta uma visão contrária à idéia de
revolucionária em relação à realidade uma substituição do Id pelo Eu, acreditando
política vigente, Dejours prefere dar mais num aparelho psíquico
atenção para para os efeitos de um constantemente intimado a reorganizar- se
inconsciente sexual que pode provocar um através da integração da experiênc ia
jogo com vistas ao gozo levado ao extremo, inconsciente, levando a uma transformação
revelar forças até então desconhecidas e do Eu a partir da pressão ou da irrupção do
gerar danos imprevisíveis. Id. Ainda que admita a desestabilização
Dejours mostra-se consciente dos produzida pelas pulsões e pelo gozo,
extremos dessa discussão. Ele cita a entende que o Eu é convocado a um
tradicional frase freudiana do “wo Es war, trabalho de reestruturação que leva à
soll Ich werden”, que tem servido como ampliação da subjetividade.
linha divisória entre as elaborações dos Com o foco voltado nos perigos
autores pós-freudianos e dos lacanianos. Os apresentados pelo inconsciente, o autor
primeiros traduziram o texto original da ampara-se em Laplanche para falar de um
língua alemã para a língua inglesa – e desta inconsciente amencial, que conviveria ao
para outras línguas – como “onde havia Id, lado do inconsciente recalcado, fruto de
o eu deve advir”, propondo uma violências ou reações excessivas
colonização na qual o Eu substituir ia, experimentadas pela criança por adultos e
gradativamente o Id, com a suspensão do que, dada sua falta de recursos para traduzir
recalque através da cura. Lacan, por sua as experiências na forma de um
vez, denunciou o que considerou ser um pensamento, sofre uma sobrecarga de
erro da tradução, apresentando uma versão excitação impossível de ser recalcada ou de
alternativa: “Lá, onde isso (Id) estava, lá, se converter numa formação do
como sujeito, devo [eu] advir”). Para o 11
inconsciente . Dejours fala de um
psicanalista francês, falar de sujeito (o da inconsciente não recalcado, impossível de
singularidade que deve advir) é diferente de retornar à consciência sob a forma de um
fortalecer o Eu, para ele fonte de lapso, ato falho ou sintoma e que, ao invés
identificações e alienação. disso, se manifestará através de passagens
Dejours não estressa a polêmica, ao ato, descompensações. Os sentime ntos
embora a admita: “O exame dessa de autodestruição, ódio contra o próprio
formulação freudiana, sabemos todos, corpo e de angústia associados seriam, para

10 Campo de intervenções políticas e teóricas a partir Com perspectivas diferentes, vários autores
da psicanálise de Jacques Lacan. Sua principal da atualidade têm se utilizado dessa
característica é aplicar conceitos da psicanálise e da
filosofia à crítica da ideologia liberal. Yannis
articulação: Merecem destaque Slavoj
Stavrakakis (2007) observa que a expressão Zizek, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,
“esquerda lacaniana” não está proposta como uma além dos filósofos Cornelius Castoriadis
categorização restritiva ou exclusiva, mas como um (Grécia) e Judith Butler (Estados Unidos).
campo distinto de intervenções teóricas e políticas 11 Formações do inconsciente dão voz ao recalcado
que exploram a relevância do trabalho de Lacan para através de sonhos ou chistes, por exemplo.
compreender os impasses contemporâneos.
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RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 207

Dejours, constituintes do conceito compromisso mais ou menos precárias que


freudiano de pulsão de morte. se expressariam através de crises somáticas
A idéia de pulsão de morte integra (infarto do miocárdio, hemorragia cerebral,
algumas formulações freudianas mais crise epilética, por exemplo), sintomas
tardias. Aqui, Dejours põe em destaque psicóticos depressivos, adictivos ou
duas configurações: 1) aquela em que a psicopatológicos; 2) o amor de si pelo Eu,
pulsão de morte se presentifica quando o com investimento libidinal na
sujeito, na busca de uma exaltação da autoconservação e na proteção do corpo. De
sexualidade, busca um mais-além da qualquer forma, ainda que o sujeito
excitação que ultrapassa perigosas encontre formas de manter-se em equilíbr io
fronteiras existentes para a preservação do estável, “o inconsciente amencial não
corpo e acaba encontrando a morte; e 2) permanece mudo, longe disso. O tributo
uma configuração na qual o sujeito, na pago à compulsão de morte é, em certas
busca de cessar uma angústia, um horror situações, uma clivagem imperfeita que se
relacionado ao seu não ser, busca traduz pela angústia” (p. 153 e 154).
voluntariamente a morte; “no primeiro caso, O encaminhamento de toda essa
é para gozar; no segundo para liberar-se” (p. discussão, na qual Dejours lança luzes sobre
136). a parte do inconsciente e do sexual que
Outra questão trazida por Dejours na levam o Eu ao “desapossamento de si” e à
discussão sobre o inconsciente resgata um “perda de domínio” (p. 149) - e nesse
conceito que, a seu ver, não foi devidamente sentido destronam e escravizam o Eu -, será
valorizado na metapsicologia apesar de importante para que o autor reforce o quanto
encontrar-se em elaborações freudia nas a teoria de sujeito da psicanálise dá
iniciais: a coexcitação libidinal. Nos seus complexidade à análise da relação do
“Três Ensaios sobre a Teoria da homem com o trabalho, ao mesmo tempo
Sexualidade” (1905), Freud, ao estudar a mostrando o quanto são ingênuas as
sexualidade infantil, identificava a concepções instrumentais do homo
excitação sexual como efeito marginal de economicus que regem teorias de motivação
um conjunto de processos interiores, todos e outras da psicologia organizacional. Esse
eles contribuindo com a transferência de conjunto de reflexões também será
uma parcela para a excitação da pulsão importante para que o autor lance luzes
sexual. Mesmo a excitação decorrente da sobre outro tema que lhe é caro: o da
dor e do desprazer contribuiria nesse violência.
sentido, e edificaria, no psiquismo, o
masoquismo erógeno. Gestos de violência, pensamentos de
Reflete Dejours que, na esteira da empréstimo, banalização do mal.
conversão do vetor da dor em prazer, a
coexcitação libidinal parece ser uma fonte Dejours não se furta a ressaltar que,
ilimitada para a crueldade, materializando- “na sexualidade humana reside um processo
se em atos masoquistas ou assassinos (p. gerador de violência e de destruição que não
144). O que impede que a maior parte das é outro do que o processo de desagregação”
pessoas não chegue a atos extremos dessa (p. 147 e 148). Deslocando esse conceito
natureza seriam: 1) as soluções de para os grupos sociais, ele fala de uma “via

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social” da pulsão de morte, “um conluio que e instala uma perigosa dualidade. Esse é um
se estabelece entre o gozo do exercício de ponto chave da adoção de uma teoria de
um poder destruidor sobre o outro no sujeito baseada no sujeito do inconscie nte,
trabalho ou na sociedade, de um lado. E o naquilo que ela implica (a imagem do
pensamento de empréstimo (estereótipos, homem que não manda na própria casa, o
modo, ideologia), de outro” (p. 155). sujeito descentrado e influenciado por
O conceito de pensamento de forças que ignora e que levam-no a adotar
empréstimo articula-se com a ideia de comportamentos contraditórios). Dejours
subversão libidinal. Para Dejours, onde o vale-se dessa dualidade para lembrar: “O
corpo é impotente por conta dos impasses ser humano é duplo. Em nome do trabalho,
encontrados na subversão libidinal, o da produtividade e da rentabilidade ele pode
sujeito nada experimenta. A subjetividade ser levado a imprimir a sua contribuição
se subtrai e deixa em seu lugar a paralisia e para atos que moralmente reprova. E não
a frigidez vazia de afetividade, de pulsões e entra sempre em crise, não obstante as
da própria vida. Nesses locais onde se contradições patentes que resultam de sua
vivencia a experiência do vazio, inexis te implicação em atos, atividades ou ações
pensamento, mas angústia sem profissionais que parecem bem
representação. Para preencher o vazio, o incompatíveis com engajamentos
sujeito apropria-se do pensamento alheio, intelectuais e de ordem moral assumidas na
via de regra pobre ou estereotipado, prolixo esfera privada” (p. 202).
ou estritamente tecnológico e operacional. Como compreender essa clivage m
A ideologia individualista e de exclusão do para evitar que ela seja obstáculo para uma
liberalismo seria, aos olhos de Dejours, um proposta de mudança? Para explicá- la,
pensamento de empréstimo que encobriria Dejours lançará mão de um conceito de
condutas pautadas na destrutividade Spinoza, “akrasia”, que nomeia a fraqueza
amencial voltada contra o outro (p. 126, 127 de vontade que faz o sujeito comportar- se
e 155). Trata-se de uma elaboração de forma oposta ao que lhe orienta a razão.
interessante para compreender fenômenos Dejours identifica esse traço como algo
como a adesão a movimentos sociais constante e que pode atravessar toda a vida
pautados na crueldade ou mesmo como profissional, simplesmente “pela
mais um elemento para pensar a comodidade, por ser mais fácil e mais
banalização do mal. Dejours cita frases vantajoso do que de entrar em um
típicas desse pensamento de empréstimo : movimento de resistência” (p. 202). Aqui
“É assim mesmo; não dá para fazer de outra faz menção à teoria do “Eu-esforço”, que
maneira; são ordens; não tenho escolha; é o compreende todo processo de
sistema; temos de ser realistas” (p. 203). desenvolvimento através de uma luta
Nas últimas páginas de “Trabalho e constante: contra as influências do mundo,
Sexualidade”, interessa a Dejours retomar a contra a inércia muscular, contra a própria
discussão de capítulos anteriores para paralisia confortável implicada em ceder ao
reforçar que os acidentes no processo de movimento de uma multidão. Paga-se um
subversão libidinal marcam o segundo preço por viver alienado, pensa Dejours,
corpo (o corpo erótico) “com verdadeiras mas ganha-se benefícios secundários
mutilações” (p. 201), provocando uma quando não se resiste a algo difícil de
clivagem que atravessa o aparelho psíquico mudar. Na tomada de decisão sobre o
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RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 209

partido a tomar estaria o preço da a retomada de um espaço de deliberações


autonomia. maduro e com possibilidades de avanços.
Trazendo a discussão para esses
O preço da autonomia. espaços de deliberação onde relaciona m- se
as pessoas, Dejours faz ponte para a
A forma como Dejours encerra o discussão do Tomo II, onde irá explorar em
Tomo I de “Trabalho Vivo” é desafiadora. detalhes o viver-junto que também
Ele se questiona sobre o porquê da representa o trabalho. Promete explorar, ali,
acomodação humana com suas próprias a questão da cooperação e no tanto que esta
fraquezas. A resposta que encontra é dura: é “pode contribuir para cultivar o que há de
confortável conviver com a preguiça mais admirável no ser humano” (p. 205).
intelectual e a covardia ordinária, pois essa “Sexualidade e Trabalho” é, em
fórmula “permite, de forma econômica, resumo, uma obra densa e repleta das
manter a clivagem, permite viver discussões que Dejours desenvolve em
simultaneamente segundo uma regra moral livros e artigos. Como dizem Laerte
e ser oportunista. E assim de permanecer em Sznelwar, Seiji Uchida e Selma Lancman,
‘boa saúde’” (p. 203). Segundo o autor, o da USP, autores do prefácio da edição
oposto disso implica em pagar o preço de brasileira, “é um livro a ser lido e relido para
conviver com o conflito interior e com a quem quiser, de fato, se apropriar do que
angústia que exige um comportamento Dejours nos propõe como conteúdo. Ler
coerente com os próprios princípios. Por não seria apenas ler, mas sim uma ação para
isso, “a autonomia custa tão caro, leva a incorporar ideias que, com certeza, terão
correr riscos em relação ao equilíbr io ressonância com muitas de nossas
psíquico. É mais cômodo, vis-à-vis a saúde preocupações, enfim uma corpopriação do
mental, deixar-se escorregar para a posição texto, parafraseando Dejours que nos
perversa do que manter-se firme quanto às remete a este conceito proposto por Michel
suas exigências éticas” (p. 203). Henry” (p. 18).
Por conta disso, o grande ato de
coragem não estaria concentrado na
capacidade de lutar contra riscos externos, Referências
mas sim contra a acomodação com a própria
Cardoso, M. R. Entrevista. Ágora, 4 (2),
akrasia. No âmbito do trabalho, a luta
contra a preguiça do pensamento e da jul/dez 2001 89-94. Disponível em:
covardia ordinária estaria presente “na
capacidade de sustentar uma posição http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v
pessoal, diferente das demais, ou mesmo em
oposição a estas, no espaço de deliberação 4n2a07.pdf . Último acesso em
onde são produzidas e inventadas as regras
10/09/2016.
de trabalho e as regras de ofício” (p. 204).
Estar atento para a própria contribuição
numa discussão coletiva, evitando deixar- se Dejours, C. O Fator Humano. Rio de
levar pela preguiça ou pelo próprio conforto
seria, de imediato, o primeiro exercício para Janeiro: FGV, 1997

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RESENHA: TRABALHO VIVO – TOMO I 210

Dejours, C. Trabalho Vivo - Tomo I:

Sexualidade e Trabalho. Tradução de

Frank Soudant. Brasília: Paralelo 15,

2012.

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