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Resumo
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Texto originalmente publicado na Revista Travailler n. 8, p. 13-26. Tradução Ana Montóia.
* Socióloga, pesquisadora do Genre et Rapports Sociaux (GERS/Gênero e Relações Sociais) do Centre National de la
Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica).
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INSEE, Instituto nacional de estatística e estudos econômicos, organismo público responsável por pesquisas
econômicas na França. [N.T.]
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pelas mulheres (Brousse, 1999, p. 135; cf. também, com dados no mesmo sentido, Barrère-
Maurisson, Rivier, 2001). A importância econômica dessa produção já foi ressaltada tanto
no nível da análise (Chadeau, Fouquet, 1981; Delphy, Leonard, 1999; Delphy, 1998) quanto
no nível de avaliações monetárias precisas que conduzem a uma contabilidade nacional
alternativa em um país como a Noruega (Sangolt, 1999).3
A servidão doméstica parece assim refratária às grandes mutações da atividade feminina.
Sua perduração interroga grandemente o campo da pesquisa e continua a ser questionada
pelos movimentos feministas, dos anos setenta (cf. a publicação feminista da época, Le torchon
brûle, literalmente em português O pano de prato está queimando) às reivindicações atuais
(cf. as palavras de ordem da organização feminista “Mix-cités” sobre a repartição das tarefas
domésticas entre homens e mulheres no desfile do primeiro de maio de 2000 em Paris).
Se a problemática da dominação é crucial para a reflexão feminista, a questão da repro-
dução no tempo da relação dominantes-dominado-a-s é nela central. O que move à servidão
doméstica? O lugar do “modo de produção doméstico” (Delphy, 1998), fundado sobre a
opressão das mulheres, parece central nessa reiteração da dominação, nessa permanência da
divisão sexual do trabalho no espaço e no tempo.
Por que o trabalho doméstico é e continua a ser realizado, no interior da família e do
casal, gratuita e “voluntariamente” pelas mulheres? Por que mesmo aquelas que possuem
uma “consciência de gênero” “consentem” em reproduzir essa relação assimétrica?
A realização desse trabalho gratuito “ao longo da vida inteira” como se diz da formação
hoje, fora do contexto coercitivo (escravidão, servidão etc.), coloca um problema ao soció-
logo, notadamente quando:
1) admite-se que se trata efetivamente de trabalho (pois pode-se dizer que não se trata de
trabalho, mas de serviços prestados em troca de compensações afetivas, materiais, simbóli-
cas; ou que se trata do resultado de negociações no interior do casal, o que pressupõe neces-
sariamente interação e reciprocidade etc.);
2) postula-se que se trata de amor (pois pode-se dizer que não se trata de sentimento
amoroso mas de uma lógica interiorizada, de normas e papéis socialmente impostos, de
alienação etc.; ou, do ponto de vista do sujeito, de escolhas estratégicas etc.).
Das respostas possíveis à questão: por que o trabalho doméstico é realizado gratuita-
mente e voluntariamente pelas mulheres no interior do casal ou da família? – aquela vincu-
lada aos motores psico-afetivos da dominação raramente está no centro da reflexão socioló-
gica. A questão beneficia-se da contribuição da psicodinâmica do trabalho, especialmente
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Segundo L. Sangolt, a Noruega foi o único país industrializado a ter incorporado por um curto período depois da
Segunda Guerra Mundial o valor do trabalho doméstico na contabilidade nacional e que continua a desenvolver
projetos nesse sentido.
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quando se considera a dimensão dos afetos uma dimensão essencial no encargo assumido,
por parte das mulheres, do trabalho doméstico.
Essa nota de pesquisa – pois ela apresenta algumas reflexões provisórias de uma etapa
de programa de trabalho mais abrangente, referido a problemáticas em curso de elaboração
– tem por finalidade revisitar as noções de “servidão voluntária” (La Boétie), de “consenti-
mento” à dominação (Mathieu), e interrogar a literatura sociológica a respeito de um ponto
apontado há vinte anos por Sonia Dayan (1982) e pouco retomado posteriormente: aquele
da relação entre “sentimento amoroso e trabalho das mulheres”. “Sentimento amoroso”,
aliás, não definido neste texto, embora constitua um seu postulado de princípio. Remeto aos
desenvolvimentos de Christophe Dejours (2002) a respeito dos três elementos constitutivos
do amor (o identitário, o sexual e o elo4 ).
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Em francês attachement: conceito do psicólogo anglo-saxão Bowlby no seu livro Attachement de 1969, definido
como comportamento instintivo e inato, de procura de contato direto com o corpo, com o calor da pele de um outro
ser vivo, e que suscita – na relação criança-adulto, por ele estudada, a reação (envolvente, de cuidado, de proteção,
etc.) do outro, designada como retrieval.
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A respeito da mudança da denominação, em 1992, de psicopatologia à psicodinâmica do trabalho, no intuito de
indicar a ampliação do campo de análise – à dinâmica, mais amplamente, das questões relativas à saúde mental, além
das doenças do trabalho – cf. Dejours, 1993, p. 8-10.
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Remeto à elaboração desse conceito por Danièle Kergoat e aos intercâmbios a respeito do ódio durante o 3º.
Colóquio Internacional de Psicodinâmica e de Psicopatologia do trabalho de 1-2-3 de fevereiro de 2001.
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Esta idéia de “assombro” na origem do “Discurso sobre a servidão voluntária” foi desenvolvida por E. Enriquez, 2000.
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“Pois a força mais enérgica dos homens não está no exercício da violência, mas no consentimento das mulheres à sua
dominação, e este consentimento não pode existir sem que os dois sexos compartilhem das mesmas representações
que legitimam a dominação masculina” (M. Godelier, 1982, p. 232).
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Trata-se aqui de revisitar a literatura sociológica desenvolvida nos anos oitenta sobre o
trabalho doméstico e o amor e, em primeiro lugar, o texto pioneiro de Sonia Dayan-Herzbrun
sobre “produção do sentimento amoroso e trabalho das mulheres” (1982). Primeiro, ela rela-
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ciona trabalho e afetividade, considerando que a dissimetria das posições ocupadas pelos ho-
mens e pelas mulheres na relação amorosa e nos sentimentos (1982, p. 119) está no cerne da
divisão social do trabalho. Se o trabalho (assalariado) das mulheres coloca problemas é justa-
mente porque, segundo Sonia Dayan-Herzbrun (1982, p. 114), elas são consideradas
“provedora(s) de trabalho doméstico e... de amor”. Seu procedimento consiste assim em
analisar de um ponto de vista sociológico o sentimento amoroso, considerado um fenômeno
social, produzido em certas condições e situado culturalmente (1982, p. 123 e seguintes).
Danielle Chabaud-Rychter, Dominique Fougeyrollas-Schewebel, Françoise Sonthnnax
(1985), e Christine Delphy e Diane Leonard (1992) reconhecem a afetividade nas relações no
interior da família, mas ela não ocupa posição central em suas análises. O que está no centro
da análise, para as primeiras, são as práticas sociais das mulheres e dos homens no espaço (e
no tempo) do trabalho doméstico. Para as segundas, trata-se do trabalho das mulheres para os
homens no bojo das relações familiares, trabalho prático, emocional, sexual, de procriação e
simbólico, o que inclui o trabalho doméstico; o trabalho de ajuda profissional aos homens; o
serviço “emocional” aos membros da família, o cuidado com as crianças e os enfermos; o
serviço sexual aos cônjuges; a educação das crianças (Delphy, Leonard, 1992, p.23).
Para Louise Vandelac et al., amor e trabalho são indissociáveis e tratados como duas
dimensões essenciais da ordem doméstica. A análise do trabalho doméstico não negligencia
“o que esta por baixo da produção doméstica” (sub-título de sua obra Do trabalho e do
amor, 1985, 1988). Estas autoras levam em consideração a questão dos fundamentos de sua
renovação através dos tempos. A palavra “amor”, conceito que é um saco-de-gatos onde
tudo cabe, conjuga-se também no masculino e no feminino (p. 368): essa constatação res-
ponde de antemão àqueles (àquelas) que se interrogam sobre o (ou sobre a ausência de)
amor de seus cônjuges e amantes que se esquivam à divisão das tarefas domésticas e à
relação de serviço com suas esposas e filhos...
Pierre Bourdieu, ao contrário, dissocia voluntariamente amor e trabalho: o conceito de
trabalho e de divisão sexual do trabalho, presente em sua obra, está ausente do post-scriptum
sobre a dominação e o amor (Bourdieu, 1998, p. 116-119). O amor aparece como um
parêntesis nas relações de dominação, como uma exceção à lei da dominação masculina,
uma suspensão da violência simbólica. A questão, retórica talvez – “forma suprema, porque
a mais sutil, a mais invisível desta violência?” – continua sem resposta, salvo pela afirma-
ção de que “o amor é dominação à qual se aquiesce” (p. 116), fórmula muito próxima
daquela da “servidão voluntária”.
Mas em seu caso, ao contrário de Aristóteles e de La Boétie, não há oposição entre amor
e amizade (p. 117): para Bourdieu trata-se, nos dois casos, da suspensão da força e das
relações de força, “trégua milagrosa” (p. 117) onde as hierarquias deixam de se afirmar.
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Conclusão
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRERE-MAURISSON, Marie-Agnès, RIVIER, Sabine. Le partage des temps pour les hommes et les
femmes: ou comment conjuguer travail rémunéré, non rémunéré et non-travail. Premières informations
et premières synthèses, n. 11.1 Paris: DARES/Ministère de l’emploi et de la solidarité. Mars, 2001.
BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998, 142 p.
BROUSSE, Cécile. La répartition du travail domestique entre conjoints reste très largement spécialisée
et inégale. In: France, portrait social, INSEE, 1999 p. 135-151.
CHABAUD-RYCHTER, Danielle, FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique, SONTHONNAX, Françoise, Espace
et Temps du Travail Domestique. Paris: Méridiens, Klincksieck, 1985, 156 p.
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