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Curso de Psicologia
Resumo: Embora a luta dos movimentos feministas pela ampliação dos direitos das
mulheres seja de longa data, suas pautas ainda são atuais e necessárias. Dentro de
tal movimento, a questão da interseccionalidade vem ganhando destaque, pois,
busca evidenciar que a categoria “mulheres” não é universal. Nesse estudo, foi
problematizado a relação entre trabalho doméstico remunerado e não remunerado,
sua relação com a maternidade e com a divisão sexual do trabalho. O objetivo geral
deste estudo se refere a verificar os sentidos produzidos por trabalhadoras
domésticas remuneradas acerca da relação entre as atividades realizadas e a
maternidade. Tratou-se de uma pesquisa de cunho qualitativa, exploratória. O
instrumento de coleta de informações foi uma entrevista semiestruturada, gravada
em áudio e posteriormente transcrita. Os sujeitos de pesquisa foram mulheres,
mães, cujo meio de remuneração é o trabalho doméstico. As entrevistas foram
analisadas por meio da produção de sentido, conforme apresenta Rey (2015). Por
meio desse estudo, verificamos que as trajetória dessas mulheres, como
trabalhadoras e como mães, são marcadas por concepções naturalizantes que, em
grande medida, desqualificam as atividades que realizam; as entrevistadas afirmam
desconhecer as leis que regem sua atividade; e, muitas vezes, as mulheres
entrevistadas afirmam que são criticadas pela forma como maternam.
Abstract: Abstract: Although the struggle of feminist movements for the expansion of
women's rights is longstanding, their agendas are still current and necessary. Within
such movement, the issue of intersectionality has been gaining prominence, as it
seeks to show that the category "women" is not universal. In this study, the
relationship between paid and unpaid domestic work, its relationship with maternity
and the sexual division of labor was problematized. The general objective of this
study is to verify the relationship between paid domestic work and maternity. It was a
qualitative, exploratory survey. The instrument for collecting information was a
semi-structured interview, recorded on audio and later transcribed. The research
subjects were women, mothers, whose means of remuneration is domestic work. The
interviews were analyzed through the production of meaning, as presented by Rey
(2015). Through this study, we verified that the trajectories of these women, as
workers and as mothers, are marked by naturalizing conceptions that, to a great
extent, disqualify the activities they carry out; the women interviewed affirm that they
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Acadêmico. E-mail: camilofernanda7@gmail.com
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Orientador. Titulação:Mestre E-mail: biagalvani@hotmail.com
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do not know the laws that govern their activity; and, many times, the women
interviewed affirm that they are criticized for the way they mother.
Introdução
O trabalho doméstico no Brasil é emblemático, pois em suas entrelinhas há
questões raciais, de gênero e classe social, fatores estes que estão ligados
diretamente a excludentes sociais e reprodutores da desigualdade. Segundo os
dados do IBGE (2019,) no Brasil há 6,24 milhões de empregados domésticos, sendo
97% Mulheres e 80% negras. Nesse mesmo ano, o país teve uma grande queda nos
trabalhadores com carteira assinada: apenas 28,4% possuíam os direitos
trabalhistas. Outro fator se refere aos baixos salários, muitas vezes, inferior ao
salário mínimo. A pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) traz um perfil característico das trabalhadoras domésticas no Brasil: mulheres
negras, com baixa escolaridade e com baixa renda.
Em 2013, a aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Emenda
Constitucional 72, popularmente conhecida como PEC das domésticas, possibilitou
importantes mudanças referentes aos direitos dessa categoria profissional. A
emenda estendeu aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que rege as relações de trabalho no
Brasil desde meados do século XX. As principais mudanças para as trabalhadoras
domésticas foram: jornada de trabalho de no máximo 44 horas semanais, o
pagamento de adicional noturno, hora extra, seguro desemprego e Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (BRASIL, 2013). Entretanto, o cumprimento da
legislação não é uma realidade comum. Embora não seja possível negar os avanços
que a PEC das domésticas pode possibilitar para essa categoria de trabalhadores,
no Brasil o trabalho doméstico foi – e ainda é - considerado um dos empregos com a
menor remuneração, fato que, possibilita um acentuado processo de exploração. Por
ser um tipo de atividade realizado dentro dos espaços domésticos e, portanto,
privado, a fiscalização dos órgãos reguladores é dificultada e, consequentemente, o
cumprimento de tais leis.
Em se tratando do trabalho doméstico remunerado, é possível pensar que há
um terreno fértil para a pesquisa. Como a relação entre trabalho remunerado e não
remunerado afeta a saúde física e mental de trabalhadoras que são mães? Quais as
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sua família e para criar riqueza social”. Ainda segundo a autora, é preciso levar em
conta que é no sistema capitalista que, referente a questões relacionadas ao
trabalho, as mulheres enfrentam as condições mais adversas para sua participação
na vida pública. Com base numa ideia de “essência feminina”, o mundo separa
homens e mulheres: aos homens a vida pública e às mulheres a vida privada, o
cuidado da casa e dos filhos.
A divisão sexual do trabalho se refere a comparações realizadas por diversos
institutos e pesquisadores acerca das diferenças entre homens e mulheres no
mercado de trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007). Tais estudos destacam, além das
desigualdades em relação aos homens, uma marca do trabalho doméstico -
relacionado aos cuidados com as crianças e com a casa – nas atividades realizadas
por mulheres no mercado de trabalho remunerado. Há uma “naturalização” de certas
habilidades femininas que são constituídas, de fato, histórica, social e culturalmente
(CAPPELLIN, 2008; SAFFIOTI, 2013).
Alguns estudos relacionados a participação das mulheres no mercado de
trabalho destacam que, ideias naturalizadas acabam por reforçar a participação das
mulheres em determinados setores de trabalho. Cappellin (2008, p. 9), destaca que
“os índices estatísticos nacionais relativos à década 1996-2006 mostram que, na
virada para o século XXI, ocorreu uma consistente ampliação na abertura do
emprego para as mulheres”. Entretanto, a autora afirma que é necessário atentar
para a bipolaridade da participação das mulheres no mercado do trabalho, sendo
que, mesmo mais escolarizadas do que os homens, elas acabam por ocupar cargos
menos remunerados e mais precarizados. Segundo dados RAIS/CAGED sobre
trabalhadores ocupados no Brasil em dezembro 2019, há uma grande massa de
força de trabalho feminina ocupando vagas no setor de Comércio e Serviços, em
detrimento de vagas nos setores de Construção Civil, Indústria e Agropecuária. No
caso do trabalho doméstico – setor de “Serviços” segundo o IBGE – é notório que é
ocupado em sua grande maioria por mulheres e que, as condições de trabalho são,
em muitos casos, precárias. Numa pesquisa publicada pelo IBGE (2006) sobre “O
trabalho da mulher principal responsável pelo domicílio”, mostra que 21% das
pesquisadas eram trabalhadoras domésticas e que,
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Há, a nível mundial, uma discussão frequente acerca do uso da palavra “negro/negra”, sendo que,
alguns autores e/ou militantes de movimentos sociais afirmam que o correto seria “preto/preta”.
Entretanto, por utilizarmos nesse estudo os trabalhos da filósofa Djamila Ribeiro, optamos por utilizar
a palavra “negra”, mesma palavra que a autora utiliza.
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outras questões que contribuem para a sua discriminação (TANAKA, 2017). Por
volta de 1980, após o termo interseccionalidade ser utilizados por Crenshaw, o
mesmo passa a ganhar visibilidade, tornando se um novo conceito a ser estudado.
A desvalorização do trabalho doméstico, mesmo quando remunerado, é,
segundo Ribeiro (2018), uma das heranças de um Brasil escravocrata. Se o cuidado
com a casa e com os filhos recai as mulheres, como se fosse seu “lugar de destino”,
às mulheres negras recai a realização de tais atividades em condições ainda mais
precárias. “Numa sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista, cada
vez mais se torna necessário o aporte teórico e prático que o feminismo negro traz
para pensarmos um novo marco civilizatório” (RIBEIRO, 2018, p. 127).
Em relação ao trabalha remunerado no Brasil, Ribeiro (2018) explica que,
quando imigrantes europeus foram incentivados a vir para o Brasil – após quase
quatro séculos de escravidão dos negros – tiveram incentivos do governo: terras,
ajuda financeira, acesso a trabalho remunerado. Já no caso da população negra,
não se criou mecanismos de inclusão após o período de escravidão. Os negros
saíram das senzalas para as favelas, sem acesso a educação, saúde, renda,
moradia. Os trabalhos com piores condições eram, em grande medida, realizados
por essa população e eram muito mal remunerados. O trabalho doméstico era um
deles.
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Segundo o Desembargador do Trabalho Enoque Ribeiro dos Santos “o que efetivamente está por trás da Lei nº
13.429/2017: regulamentar a terceirização, veladamente dar um cheque em branco ao empresariado ou abrir uma
porteira a uma terceirização desenfreada e sem amarras”.
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De acordo com Pelatieri et. al (2018), num estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), que problematiza efeitos de Lei de terceirização no Brasil, “é provável que as diferenças aqui
identificadas se aprofundem, com aumento da precarização das condições de trabalho e da remuneração. Se isso
ocorrer, poderá haver uma piora na própria distribuição de renda no país, além do aumento da insegurança entre
os trabalhadores, num momento de agravamento da recessão, em que o governo federal propõe reformas
institucionais restritivas de direitos, como a previdenciária e a trabalhista”.
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Procedimentos metodológicos
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destacados nas falas dos entrevistados. Tais indicadores alertam para zonas de
sentidos que, posteriormente, possibilitam a elaboração de categorias de análise.
Esse modelo de análise, segundo Rey (2007), permite que o pesquisador analise as
informações a partir do sentido que as próprias entrevistadas atribuem à realidade
das quais estão inseridas e, permite também, que tais informações sejam articuladas
com autores que se debruçam sobre o tema. Quanto à estrutura da análise,
elaborou-se as seguintes categorias: como se estivesse na minha casa: trajetórias
marcadas pela repetição das atividades realizadas em casa como forma de obter
remuneração; a gente faz o que pode: sobre maternidade e sustento; na minha
época não tinha isso: sobre leis que amparam o trabalho doméstico.
Entre as 10 entrevistadas, 40% delas não tem o registro em CPT e uma delas
afirma que já teve o registro em carteira, mas, a mesma trouxe isso como algo
negativo, pois, devido aos impostos, recebia menos. 50% da amostra não tem
companheiros/as, e são as únicas responsáveis pelo lar. Duas delas afirmam que
não recebem pensão alimentícia do pai das crianças. Apenas uma das entrevistadas
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troca de casa e comida, fato que, segundo a legislação brasileira, configura atividade
análoga à escravidão.
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por falta de formação, ela vende sua força de trabalho por meio daquilo que sabem:
as atividades domésticas.
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projetos, como por exemplo, estudar. A formação é vista por algumas entrevistadas
como uma forma de ter “uma situação” melhor.
Quando meu filho era pequeno, e eu me separei do pai dele, eu
“tava” trabalhando o dia todo fazendo faxina, e a noite eu trabalhava
de garçonete, chegava 1h em casa (Ent. 03).
Eu não via ele (filho) o dia todo. Quando estava em casa, estava
sempre cansada, sem paciência (Ent. 03).
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Na minha época não tinha isso: sobre leis que amparam o trabalho doméstico
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Assim que veio essa lei que a empregada doméstica tinha direito,
mas no fim não tinha direito nenhum, ganhava até menos (Ent.04).
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Quando comecei não tinha essas coisas, eu já ouvi falar, mas nunca
soube direito (sobre leis ). Nunca tive licença maternidade não, como
eu saí do emprego, eu ganhei a saída só. Quando eles iam viajar e
eles (filhos dos empregadores) eram pequenos eu que cuidava, até
trazia para a minha casa (Ent. 05).
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Não tinha creche aqui, ele ficava com os meus pais durante a
semana (Ent. 05).
Eu cuidava das crianças dos meus patrões, eles davam aula à noite,
então eu trabalhava o dia todo, e as 18h ele ia buscar a minha filha
na creche ou com a minha filha em casa, e levava ela no meu
trabalho, era o tempo que eu ficava com ela durante a semana, eu
trabalhava até as 23h (Ent. 02).
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Eu dormia no meu emprego, não tinha como deixar minha filha lá, eu
não tive licença, não recebi nada, precisava trabalhar para sustentar
eu e ela. Então, eu deixava na casa da minha mãe, eu vinha de 8 em
8 dias ver minha filha. Quando eu fiquei grávida de novo as pessoas
me perguntavam o que eu ia fazer, eu só não queria passar por
aquilo de novo (Ent.04).
O sentimento de culpa foi algo visto com frequência nas entrevistas: pela falta
de tempo, exaustão, as críticas recebidas por “deixar” os filhos para trabalhar. Uma
delas, além da longa jornada de trabalho, ouvia constantes críticas de seus patrões.
A dura jornada de quem trabalha para garantir o sustento de sua casa é marcado
pelas falas da sociedade.
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Considerações Finais
Esse estudo buscou analisar os sentidos produzidos por trabalhadoras
domésticas remuneradas acerca da relação entre as atividades que realizam e a
maternidade. Acreditamos que - por meio da articulação entre referencial teórico,
caminho metodológico e as entrevistas - os objetivos traçados neste estudo foram
alcançados.
Dentre as informações que tivemos acesso nas entrevistas, algumas delas
foram destacadas e apresentadas na análise. As entrevistadas destacaram a rotina
repetitiva, realizando, no espaço de trabalho remunerado, atividades similares as
que fazem no espaço doméstico. Tal fato destaca um dos pontos essenciais
utilizados para justificar a divisão sexual do trabalho: por serem atividades
aprendidas nos próprios lares, desde a infância, tais atividades são consideradas
inatas e, portanto, desqualificadas por não necessitarem de uma educação
formalizada. As entrevistadas afirmaram que não puderam estudar e, consideram
que a educação seria um elemento importante para terem condições melhores de
trabalho. Outro ponto destacado é que, mesmo as entrevistadas acreditando que as
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Referências
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COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal.
1987.
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GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas,
2012.
G1. Site Globo. Brasil tem maior número de domésticas do mundo, diz OIT.
Disponível em:
<http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2013/01/brasil-tem-o-maior-numer
o-de-domesticas-do-mundo-diz-oit.html>. Acesso em: Outubro de 2020.
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RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.
TAGUCHI, Mychele Capellini Moris.; PIO, Danielle Abdel Massih. Uma leitura
psicanalítica da vivência da maternidade nos casos de aborto e prematuridade.
Revista Psicologia e Saúde, 6(2), 56-61. 2014. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S2177-093X2014000200008&script=sci_a
bstract&tlng=pt> Acesso em: Junho 2020.
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