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Temas em Psicologia

ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil

Nunes Lopes, Manuela; Lovato Dellazzana-Zanon, Letícia; Gonçalves Boeckel, Mariana


A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia
Temas em Psicologia, vol. 22, núm. 4, diciembre, 2014, pp. 917-928
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513751530018

Como citar este artigo


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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – 2014, Vol. 22, nº 4, 917-928
DOI: 10.9788/TP2014.4-18

A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea


e a Maternidade Tardia

Manuela Nunes Lopes


Faculdades Integradas de Taquara, Taquara, Rio Grande do Sul, Brasil
Letícia Lovato Dellazzana-Zanon
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Mariana Gonçalves Boeckel1
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo
A mulher atual assumiu muitos papéis antes desempenhados pelos homens, o que trouxe mudanças não
apenas para sua rotina, mas também para seus projetos de vida. A maternidade tem sofrido o impacto
dessas mudanças. Investigaram-se os múltiplos papéis exercidos pela mulher contemporânea e a relação
dessa multiplicidade de papéis com a maternidade tardia. Utilizaram-se dois instrumentos: ficha de
dados sociodemográficos e entrevista semiestruturada sobre a multiplicidade de papéis da mulher e sobre
maternidade. Construíram-se três categorias a partir da análise de conteúdo: multiplicidade de papéis da
mulher contemporânea, reflexões sobre maternidade e maternidade tardia versus rotina atual. Se por um
lado, as mulheres sofrem prejuízos em função do excesso de tarefas, por outro, elas se sentem felizes
por ocuparem seus postos de trabalho. A maternidade tardia é uma opção para mulheres que trabalham
e que mantém relações estáveis com seus companheiros. Entretanto, observaram-se sentimentos como
medo, insegurança e ambivalência em relação à maternidade tardia.
Palavras-chave: Mulher, maternidade tardia, família.

The Multiple Roles of Contemporary Women and Late Motherhood

Abstract
Women currently have taken on many roles, previously filled by men, which not only changed their
everyday lives but also impacted their life projects. Motherhood has been impacted in important ways by
this change. We investigated the multiple roles played by contemporary woman and the relation between
this multiplicity of roles and late motherhood. Two instruments were used: a socio-demographic profile
and a semi-structured interview about the multiple roles of women and motherhood. We constructed
three categories based on content analysis of the interviews: the multiple roles of contemporary women;
reflections on motherhood; and late motherhood’s impact on current routine. If, on one hand, women
are negatively affected due to the additional workload, on the other they feel happy to have developed a
career. Late motherhood is an option for women who intend to develop their careers and maintain stable
relationships with their partners. However, the women also reported feelings such as fear, insecurity and
ambivalence related to late motherhood.
Keywords: Woman, late motherhood, family.

1
Endereço para correspondência: Rua Sarmento Leite, 245/sala 207, prédio Central - Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, Brasil - CEP 90050-170. E-mail: manuelanuneslopes@gmail.com, leticiadellazzana@gmail.com e
marianagb@ufcspa.edu.br
918 Lopes, M. N., Dellazzana-Zanon, L. L., Boeckel, M. G.

Las Múltiples Funciones de la Mujer Contemporánea


y la Maternidad Tardía

Resumen
La mujer actual adoptó muchos papeles que antes eran realizados por los hombres; esto produjo
cambios no solamente en su rutina, sino proporcionó cambios en sus proyectos de vida. La maternidad
ha sufrido el impacto de esos cambios. Fueron investigados los múltiples papeles que ejercen la mujer
contemporánea y la relación de esa multiplicidad de papeles con la maternidad tardía. Se utilizaron
dos instrumentos: una ficha de datos sociodemográficos y una entrevista semiestructurada sobre la
multiplicidad de los papeles de la mujer y sobre la maternidad. Fueron construidas tres categorías a
partir del análisis de contenido: multiplicidad de papeles de la mujer contemporánea, reflexiones sobre
la maternidad y maternidad tardía versus rutina actual. Si, de un lado, las mujeres sufren pérdidas en
función del exceso de tareas, de otro, ellas se sienten felices por ocupar sus puestos de trabajo. La
maternidad tardía es una opción para mujeres que trabajan y que mantienen relaciones estables con sus
compañeros. Sin embargo, se observaron sentimientos como miedo, inseguridad y ambivalencia en
relación a la maternidad tardía.
Palabras clave: Mujeres, maternidad tardía, familia.

A mulher atual tem assumido uma serie de como consequência dos papéis exercidos como
papéis que antes se referiam prioritariamente aos mãe e esposa. Vistas como cuidadoras, primeiro
homens. Tal fato trouxe mudanças não apenas dos homens, depois das crianças e, por fim, dos
para a rotina da mulher contemporânea, mas idosos, exerciam papéis de esposa, filha e mãe.
também para seus projetos de vida e suas conse- Dependendo do status social do grupo, bem
quentes escolhas. Uma das áreas que sofreu um como do provento do homem, ocupavam mais
impacto importante em função da multiplicidade ou menos espaços como servidoras dele (Carter
de papéis assumidos pela mulher da atualidade & McGoldrick, 2008).
é a maternidade. Em função de todas as deman- Havia uma divisão clara de papéis: o ho-
das relacionadas à carreira e ao estudo, o projeto mem era o provedor do lar, com autonomia para
de ter filhos tem sido sistematicamente adiado. estabelecer regras e delegar funções e a mulher
Conhecer o que as mulheres que desempenham era a cuidadora doméstica, reclusa às atividades
múltiplos papéis pensam sobre esta questão e desenvolvidas unicamente dentro de casa (Fleck
sobre a maternidade tardia pode contribuir para & Wagner, 2003). Atualmente, não se observa
o entendimento deste fenômeno tão presente em mais esta divisão, uma vez que a realidade da
nossa sociedade, bem como servir de base para o família de classe média dos séculos XIX e XX
atendimento clínico de mulheres que sofrem em sofreu mudanças em relação aos papéis desem-
decorrência destas questões. penhados por cada um de seus membros. Ao
Os papéis parecem designar quem o ser longo das últimas décadas, a mulher contempo-
humano será ao longo de sua trajetória de vida. rânea vem acrescentando novas funções ao seu
Desde crianças, meninos e meninas ouvem o estilo de vida, assumindo, por exemplo, posições
que devem ou não fazer. Desde a mais tenra ida- no mercado de trabalho, antes só ocupadas por
de, recebe-se da família um conjunto de regras homens. Supõe-se que essas transformações na
e normas que comportam papéis pré-estabele- dinâmica familiar possam ter sido influencia-
cidos e que narram uma história já construída das por fatores como economia e tecnologia, as
para mulheres e homens por grupos sociais de quais se movimentam continuamente ao longo
épocas anteriores (Fleck, Falcke, & Hackner, do tempo (Fleck & Wagner, 2003).
2005). Quanto às mulheres, pode-se dizer que No que se refere à dinâmica familiar, po-
sempre foram consideradas o centro da família dem ser observados dois momentos distintos:
A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia. 919

o modelo antigo e o atual (Negreiros & Féres- em função de atividades de ordem profissional
-Carneiro, 2004). No primeiro, o sexo feminino (Souza, Teixeira, Loreto, & Bartolomeu, 2011).
e o masculino eram distintamente separados pe- Este é o contexto da maternidade tardia.
las atribuições diferenciadas dos papéis. Cabia Considera-se maternidade tardia quando a
ao homem o trabalho e a virilidade como formas concepção ocorre após os 35 anos de idade. De
de sustentar e manter a família. À mulher, era acordo com a literatura médica, a mulher que
atribuído o papel de esposa cuidadora e fiel, a decide engravidar na fase final da terceira déca-
qual se preocupava em preservar sua sexualida- da de vida é considerada uma mãe idosa, uma
de, mantendo-se virgem antes do casamento e vez que, a partir dos vinte e sete anos, há uma
dedicando-se à maternidade e ao lar. No modelo baixa hormonal significativa (Barbosa & Rocha-
atual de família, as fronteiras parecem ser mais -Coutinho, 2007; Gomes, Donelli, Piccinini, &
flexíveis entre ambos os sexos, havendo outras Lopes, 2008). Existe, portanto, uma preocupa-
possibilidades de papéis tanto para os homens ção de alguns profissionais da saúde sobre essa
como para as mulheres. Sabe-se, inclusive, que questão devido aos riscos de má formação fetal
tem ocorrido troca nesses papéis: em alguns la- e possíveis prejuízos para a gestante (Barbosa &
res a mulher é o chefe da família, enquanto o Rocha-Coutinho, 2007; Gomes et al., 2008).
homem fica em casa para cuidar dos filhos (Ne- De fato, a partir dos 35 anos há um maior
greiros & Féres-Carneiro, 2004). risco de adversidades para a gestação, o qual
Assim, a mulher contemporânea saiu da se- aumenta consideravelmente após os 40 anos de
gurança do lar e tem enfrentado o mercado de idade e assim sucessivamente (Zavaschi, Costa,
trabalho em busca de novas possibilidades, no- Brunstein, Kruter, & Estrella, 1999). A idade
vas conquistas e novos modelos de vida. Esta ideal para a gestação se compara com a idade
mudança do status da mulher pode ser resultante atlética, pois o corpo envelhece e perde capa-
da autonomia conquistada através de sua atua- cidades essenciais para um adequado desenvol-
ção fora do lar. A mulher passou a se estruturar vimento gestacional. Estende-se a esse pressu-
como um indivíduo mais valorado, criando um posto a realidade de que uma mulher com idade
novo olhar para si, diferente daquele concebido superior a 35 anos, possivelmente não apresente
até metade do século XX (Maux & Dutra, 2009). mais a mesma disposição física e o vigor exigi-
Esta mudança quanto aos papéis demonstra que dos pela maternagem (Moreira & Rasera, 2010).
houve uma quebra de velhos paradigmas impos- Há uma probabilidade, nesse sentido, de que
tos pela sociedade, bem como um distanciamen- uma mulher mais velha tenha maiores dificulda-
to significativo daqueles de tempos passados des para lidar com crianças na primeira infância,
(Badalotti & Petracco, 1997). Consequentemen- uma vez que isto demanda prontidão, energia,
te, a família também mudou sua configuração, cuidados incessantes e agilidade para o exercí-
uma vez que os valores familiares deixaram de cio da maioria das atividades (Cecatti, Aquino,
se fundamentar apenas no homem, passando, & Faúndes, 2000). Em função da associação en-
então, a serem divididos com a mulher (Hintz, tre maternidade tardia e possíveis riscos ineren-
2001). Portanto, pode-se pensar que a postura tes à idade da mãe, observa-se que a gestação,
adotada pela mulher contemporânea – de sair neste contexto, está mais vinculada ao serviço
do lar para provê-lo – acarretou mudanças sig- especializado de médicos, psicólogos e outros
nificativas na estrutura familiar e no modo como profissionais da saúde (Moreira & Rasera, 2010;
seus integrantes lidam com esta situação (Grzy- Schupp, 2006).
bowski, 2002). Em contrapartida, estudos indicam que há
Um dos âmbitos no qual é possível obser- benefícios na maternidade em idade avançada
var mudanças em função da multiplicidade de (Lima, 2010; Souza et al., 2011; Zavaschi et al.,
papéis da mulher na atualidade é a maternida- 1999). Apesar dos riscos explicitados pela me-
de. Nesse sentido, projetos de vida em relação à dicina e da multiplicidade de tarefas da mulher,
maternidade têm sido preteridos e postergados observa-se que as gestantes tardias têm maiores
920 Lopes, M. N., Dellazzana-Zanon, L. L., Boeckel, M. G.

condições econômicas, sociais e emocionais Método


para se tornarem mães. Elas usufruem de uma
rede de apoio importante, conquistada por meio Participantes
do exercício de diversas atividades desempe- Participaram deste estudo quatro mulheres
nhadas anteriormente e parecem conciliar com de nível socioeconômico médio, residentes na
maior equilíbrio suas tarefas domésticas e la- cidade de Porto Alegre/RS. Utilizou-se o crité-
borais (Souza et al., 2011). Mulheres com mais rio de saturação (Bauer & Gaskell, 2002) para
de 35 anos podem usufruir de um nível socio- definir o número de participantes. Quando a
econômico mais elevado, bem como dispor de quarta entrevista foi realizada, observou-se que
condições comportamentais e emocionais mais as informações estavam se repetindo e que não
estáveis, características essenciais para uma surgiam conteúdos novos, razão pela qual o pro-
boa gestação (Lima, 2010). Desta forma, faz-se cesso de seleção de novas participantes foi inter-
necessário entender o cotidiano da mulher que rompido. Utilizaram-se os seguintes critérios de
exerce múltiplos papéis e que opta pela mater- inclusão: (a) idade entre 35 e 40 anos, (b) escola-
nidade tardia, uma vez que esta é uma situação ridade mínima ser nível superior em andamento,
recorrente vivenciada por muitas mulheres na (c) exercício laboral remunerado (c) vida marital
contemporaneidade. Partindo disso, este artigo compartilhada há pelo menos dois anos e (d) au-
teve como objetivos investigar qualitativamen- sência de filhos. A caracterização das participan-
te: (a) os múltiplos papéis exercidos pela mulher tes pode ser vista na Tabela 1. Considerando-se
contemporânea e (b) qual a relação da multipli- os cuidados éticos, o nome e todas as informa-
cidade de papéis exercidos pela mulher com a ções que pudessem caracterizar as participantes
maternidade tardia. foram trocados.
Tabela 1
Caracterização das Participantes
Tempo Tempo
Idade Tempo
Nome Escolaridade Curso estudo trabalho
(anos) de relação
semanal semanal

Ana 38 Superior incompleto Gestão de RH 8hs 44hs 8 anos


Diana 35 Superior incompleto Relações públicas 12hs 70hs 8 anos
Laura 35 Pós-doutorado incompleto Pós-doutorado 56hs 84hs 5 anos
Superior completo/pós-
Psicologia e curso 2 anos
Paula 35 graduação completo/curso 10hs 44hs
de pilotagem e 2 meses
de pilotagem incompleto

Instrumentos ças? (b) Discorra sobre sua rotina semanal (c)


Utilizaram-se os seguintes instrumentos: (a) Quais as atividades mais desempenhadas, por
ficha de dados sociodemográficos e (b) entre- você, nos últimos dois anos? (d) Você percebe
vista semiestruturada sobre a multiplicidade de alguma delas como mais importante? (e) Qual
papéis da mulher e sobre maternidade. Inicial- o impacto dessa atividade em outras áreas de
mente, leu-se o seguinte rapport: “A mulher do sua vida – conjugal, familiar, com o grupo de
século XXI é um indivíduo diferenciado dentre amigos/colegas e nas horas de lazer? (f) Algu-
as gerações que a antecederam. Exerce ativida- ma delas já acarretou algum prejuízo pra você?
de laboral fora do lar, tem compromisso marital Em caso afirmativo, quais? (g) Você pensa em
e continua atuando nos afazeres domésticos”. ser mãe? Em caso negativo, por quê? Em caso
Então, iniciou-se a entrevista com as seguintes afirmativo, em que momento de sua vida? Por
perguntas: (a) Como você percebe essas mudan- quê? (h) Como sua família e amigos veem o fato
A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia. 921

de você não ser mãe até o momento? (i) Você trabalhadas pelas mulheres durante a semana
já ouviu falar sobre maternidade tardia? (j) Com variou entre 44 e 80 horas, concomitantes a ho-
quais fatores você pode relacionar o fato de não ras de estudos, que variaram de 12 a 56 horas.
ter sido mãe ainda? (k) Considerando a hipóte- A renda salarial das participantes foi de três a
se de ser mãe, como você se imaginaria quanto quinze salários mínimos. Os resultados mostra-
às atividades desempenhadas hoje, relacionadas ram também que as participantes dedicam gran-
com a maternagem? de parte de seu tempo ao trabalho e ao estudo.
Elas também contribuem, de forma significativa,
Procedimentos para renda da família e, em alguns casos, são o
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Co- principal provedor de seu núcleo familiar. Esses
mitê de Ética em Pesquisa das Faculdades Inte- resultados corroboram dados da Pesquisa Nacio-
gradas de Taquara (FACCAT/protocolo nº 708), nal por Amostra de Domicílios de 2006 (PNAD),
conforme as normas e diretrizes da Resolução segundo a qual a mulher contemporânea é o sím-
196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Minis- bolo de referência de seu núcleo familiar: 79%
tério da Saúde. As mulheres foram convidadas a são referenciadas como chefe da família enquan-
participar do estudo e agendou-se um encontro to 25% dos homens são vistos como tal. Dados
para a realização da coleta de dados. Assegurou- dessa mesma pesquisa (IBGE, 2006) mostraram
-se às participantes o direito de participar ou que o número de tarefas laborais com vínculo
não, bem como de desistir da pesquisa a qual- empregatício da mulher cresceu aproximada-
quer momento. Todas as participantes assinaram mente 5% em relação à ocupação de trabalho do
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido homem, a qual decaiu para 1% entre os anos de
(TCLE). As entrevistadas foram realizadas indi- 1996 e 2006. O fato das participantes dedicarem
vidualmente nas residências das participantes ou tanto tempo ao estudo pode estar relacionado à
em seu local de trabalho, as quais foram grava- necessidade de especialização e de qualificação
das em áudio para posteriormente serem trans- constantes para que se mantenham no mercado
critas. A ficha de dados sociodemográficos foi de trabalho.
utilizada para a caracterização das participantes. Após a análise de conteúdo das entrevistas,
Utilizou-se o método qualitativo explora- foram construídas três categorias: (a) multiplici-
tório de pesquisa, o qual proporciona um vasto dade de papéis da mulher contemporânea, a qual
entendimento por meio da investigação expe- apresenta conteúdos relacionados ao trabalho, à
riencial sobre fenômenos múltiplos e suas repre- formação profissional e ao impacto da multipli-
sentatividades (Denzin & Lincoln, 2007). Para cidade de papéis na vida da mulher, (b) reflexões
analisar os dados coletados na entrevista, foi sobre maternidade, a qual narra conteúdos rela-
utilizada análise de conteúdo (Laville & Dionne, cionados às justificativas sobre o fato de ainda
1999). Após a leitura das entrevistas utilizou-se não ser mãe, aos sentimentos acerca da materni-
a sistemática proposta por Laville e Dionne para dade tardia e aos aspectos positivos e negativos
a preparação dos dados, a qual incluiu a descri- da maternidade tardia, e (c) maternidade tardia
ção, a ordenação e a codificação dos dados a fim versus rotina atual, que descreve a relação entre
de gerar categorias de análise. Utilizou-se, para a maternidade tardia e a rotina da mulher con-
tanto, o modelo aberto de categorização, o qual temporânea. A seguir, apresentam-se os resulta-
permite a criação e a modificação das categorias dos referentes a cada uma destas categorias.
ao longo do processo de exploração dos dados.
Multiplicidade de Papéis da Mulher
Resultados e Discussão Contemporânea
A primeira subcategoria desta categoria foi
As quatro mulheres apresentaram escolari- Trabalho, na qual se incluíram as seguintes te-
dade de nível superior e vida marital comparti- máticas: (a) inserção no mercado de trabalho,
lhada entre dois e oito anos. A média de horas (b) alto número de horas trabalhadas e (c) tra-
922 Lopes, M. N., Dellazzana-Zanon, L. L., Boeckel, M. G.

balho em primeiro lugar. As participantes men- estudando está relacionado à necessidade de per-
cionaram o trabalho como a principal atividade manecerem se especializando para se manterem
desempenhada, conforme relatou Diana: “A ati- atualizadas e garantirem sua posição no mercado
vidade mais desempenhada?... O trabalho. Mais de trabalho. Pode-se pensar, ainda, que a forma-
do que lazer, mais do que cuidar de mim, acade- ção profissional – através de infinitas especiali-
mia, médico, é o trabalho mesmo”. Outro dado zações – está relacionada à busca por um lugar
que chamou atenção para o fato de que a mulher no meio profissional e à conquista de um status
dedica grande parte de seu tempo ao trabalho foi social considerado adequado pelas participantes,
o alto número de horas dispensadas nesta ativi- conforme explicou Laura: “A mulher vem assu-
dade. Além disso, o trabalho é visto pelas parti- mindo posições de destaques... e aí, cada vez
cipantes como sua principal fonte de satisfação, mais, a mulher precisa buscar se especializar,
tanto do ponto vista profissional como do finan- pois as exigências são maiores e aí a gente vê
ceiro. Observou-se que o trabalho ocupa um lu- essa mulher que exerce múltiplas funções”.
gar central na vida das participantes, conforme Tais resultados indicam que a dedicação da
relataram Diana: “Hoje, se eu for fazer, incons- mulher para garantir sua inserção no mercado de
cientemente, uma lista de prioridades, é o meu trabalho é bastante intensa, ou seja, parece que
trabalho que vem em primeiro lugar” e Ana: para conquistar um espaço laboral, a sua dedica-
“O meu trabalho pra mim é superimportante, ção e investimento em trabalho e estudo deve ser
eu gosto e quero me especializar mais nisso, é o o centro de sua rotina cotidiana. Ainda que, nos
que eu faço e quero continuar fazendo e me sen- últimos anos, dados do Instituto Brasileiro de
tindo bem por isso”. Elas se sentem recompensa- Geografia e Estatística (IBGE) destaquem maior
das por realizarem atividades que ajudam outras distribuição de renda entre homens e mulheres,
pessoas, que lhes oportunizam aprender coisas a desigualdade permanece, sendo as mulheres
novas e por sentirem que são capazes de tomar mais desfavorecidas (IBGE, 2010). Neste senti-
decisões por conta própria. No entanto, relatam do, uma investigação realizada com 45 mulheres
uma preocupação com o mercado de trabalho, executivas brasileiras evidenciou que a busca
uma vez que o mesmo fornece poucas chances pela realização profissional é um desejo vital e
de crescimento e reconhecimento profissional um meio para o alcance de relações mais igua-
(Possatti & Dias, 2002). litárias nas instâncias profissionais e pessoais
Neste sentido, uma pesquisa realizada com (Maluf & Kahhale, 2010).
mulheres trabalhadoras brasileiras destacou que A terceira subcategoria, Impacto da multi-
as suas expectativas transcendem o “formar uma plicidade de papéis na vida da mulher, incluiu
família”, ou seja, a satisfação pessoal e financei- os seguintes aspectos: (a) falta de tempo para o
ra também é considerada como um anseio im- lazer, (b) falta de tempo para a família, (c) falta
portante (Losada & Rocha-Coutinho, 2007). As- de tempo para cuidar da saúde e (d) problemas
sociados à autonomia feminina, existem alguns emocionais e de saúde. Os resultados desta cate-
fatores que contribuem para a saída da mulher goria indicaram que tanto empenho com o traba-
de casa, corroborando a diversidade de papéis, lho e com a formação profissional trazem alguns
entre eles, as exigências impostas pela sociedade prejuízos à vida da mulher contemporânea. A
que valoriza e qualifica a atividade laboral fora falta de tempo para o lazer foi mencionada por
do lar (Losada & Rocha-Coutinho, 2007). todas as participantes como a principal conse-
A segunda subcategoria foi Formação pro- quência de sua rotina de trabalho e de estudo,
fissional, na qual se agruparam as percepções das conforme relatou Laura: “As minhas horas de
participantes sobre a importância de realizarem lazer são reduzidas ao domingo, quando eu não
especializações. Observou-se que, além de se venho pra empresa trabalhar, então a gente tem
dedicarem ao trabalho, as participantes também um lazer muito reduzido que causa um desgaste
se dedicam aos estudos. O fato de continuarem bastante grande”. Como consequência da falta
A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia. 923

de tempo para o lazer, as participantes relataram sobre a interface família/trabalho para mães jo-
que os momentos com a família também são re- vens e mães tardias, observaram que as ativida-
duzidos: des de cuidados pessoais e de lazer são relegadas
“Há um problema sério: meu marido eu com frequência a um segundo plano – mesmo
encontro no domingo, por que ele também quando a estabilidade financeira permite a con-
trabalha até umas 23h, no sábado até 21 tratação de profissionais para as auxiliarem.
horas, e eu não o encontro muito duran- Moreira e Nardi (2009) discutem os enun-
te a semana. Eu trabalho à noite também, ciados socialmente construídos sobre a mater-
portanto quando ele chega do trabalho eu nidade, os quais passam a configurar as normas
não estou, quando eu saio de manhã ele está reguladoras das práticas maternas. O tempo de
dormindo” (Laura). dedicação aos filhos é um dos importantes ali-
As participantes mencionaram, ainda, que cerces desses marcos regulatórios. Os autores
têm muito pouco tempo para cuidar de sua pró- refletem acerca dos limites individuais, dos de-
pria saúde, o que, em muitas situações, gera pro- sejos subjetivos de cada mãe, das necessidades
blemas relacionados à sua saúde física e emocio- e particularidades de cada filho, de cada família
nal, conforme relatou Diana: e de cada contexto, pois esses enunciados, por
“Prejuízo? Talvez na saúde né, me sinto sua vez, produzem práticas restritas que causam
mais ansiosa quando eu tenho muitas res- sofrimento às mulheres. Os limites entre o so-
ponsabilidades, realmente reduz minhas cialmente esperado e o respeito às demandas de
horas de lazer, distancia um pouco mais dos cada mulher/mãe parecem invisíveis em um mo-
amigos, também dificulta a questão das ati- mento social no qual a mulher coloca-se em pla-
vidades físicas, então, ou eu acordo às 6 da no de igualdade com o homem. Talvez por isso,
manhã pra caminhar, ou eu chego de noite aparece nas falas das participantes deste estudo
muito cansada e vou dormir.” o “desejo de voltar no tempo”, evidenciando os
Além disso, os resultados mostraram que as impactos da multiplicidade de papéis na vida da
participantes têm dificuldade de se distanciarem mulher e a necessidade de reflexões acerca dessa
das questões do trabalho mesmo quando não es- temática.
tão trabalhando, conforme relatou Ana:
“É muito impactante... até em casa eu pen- Reflexões sobre a Maternidade
so no trabalho, eu penso nas demandas que A primeira subcategoria desta categoria foi
vão ocorrer, eu converso com o meu mari- denominada Justificativas sobre o fato de ain-
do sobre trabalho, com meus amigos sobre da não ser mãe. Observou-se que as principais
trabalho... eu também penso que tenho que justificativas sobre o fato de ainda não serem
viver a minha vida.” mães estão relacionadas: (a) à busca de satis-
Tais resultados demonstraram que o tempo fação profissional como prioridade, (b) à busca
da mulher contemporânea está muito mais vol- pela independência financeira, (c) à busca pela
tado para atividades de trabalho e de estudo do constituição de uma relação estável, (d) ao fato
que atividades de lazer e autocuidado. Isso pode de terem uma rotina exacerbada, e (e) à materni-
ser observado na fala de Diana a qual manifestou dade tardia como opção.
“desejo de voltar no tempo”, tempo no qual a Quando questionadas sobre o fato de ainda
mulher tinha menos obrigações de trabalho e no não serem mães, as participantes têm muito cla-
qual podia se dedicar mais ao lazer e ao convívio ro quais as razões para isso, conforme explicou
com a família. Diante deste relato, pode-se infe- Paula: “Por que eu não tenho filhos hoje? Pri-
rir que a mulher contemporânea está preocupada meiro por causa do trabalho”. A conquista da
com as perdas e/ou prejuízos por ela sofridos em realização profissional aparece como a principal
função do desempenho de tantos papéis. A so- justificativa, a qual está intimamente ligada à
brecarga dessas múltiplas tarefas foi observada busca pela independência financeira. Estes resul-
por Souza et al. (2011), as quais, em um estudo tados ressaltam que a identidade da mulher con-
924 Lopes, M. N., Dellazzana-Zanon, L. L., Boeckel, M. G.

temporânea está diretamente relacionada ao seu medicina como das mudanças sociais e não mais
papel de trabalhadora e, consequentemente, à ser caracterizada como algo não natural.
aquisição de sua independência financeira. Tais Pode-se perceber que as mulheres têm se
resultados corroboram os do estudo de Patias e reconhecido de maneira distinta dos modelos
Buaes (2012), o qual mostrou que mulheres que antigos, a exemplo de suas mães em tempos pas-
optam por não ter filhos valorizam a realização sados. As mulheres das últimas décadas reivin-
profissional e financeira e contestam representa- dicam direitos e desejos antes não concebidos às
ções sobre maternidade associadas a renúncias e mesmas (Solomon, 2008). Ainda, pode-se infe-
sacrifícios em função de outra pessoa. rir que a mulher que decide se dedicar à família
Após conquistarem um trabalho e seu sus- após alcançar seu sucesso profissional, reconhe-
tento, as participantes revelaram que, para ser ce os benefícios de uma maternidade tardia. Esta
mãe, é preciso estabelecer uma relação estável, ideia vai ao encontro do estudo de Zavaschi et al.
conforme relatou Paula: “tô há dois anos com (1999), segundo o qual a mulher que tem filhos
meu companheiro, acho que preciso curtir mais com uma idade mais avançada pode recorrer a
algumas coisas, precisamos ter uma maior cum- um ambiente familiar adequado e a melhores
plicidade pra agregar, pra entrar um filho na condições financeiras.
nossa vida”. Observou-se, ainda, que a constru- A segunda subcategoria, Sentimentos acer-
ção de uma família com filhos está intensamente ca da maternidade tardia, revelou que as par-
ligada às condições socioeconômicas da família, ticipantes apresentam sentimentos diferentes e
conforme mencionou Laura: “Atualmente é pre- até divergentes sobre o fato de ainda não serem
ciso ter para ser”. Pode-se pensar que a vinda mães: (a) desejo de ser mãe e opção pela ma-
dos filhos é deixada para um futuro mais distan- ternidade tardia, (b) desejo de não ser mãe, (c)
te, onde seja possível mantê-los dentro das possi- medo de ser mãe, e (d) sentimentos relacionados
bilidades socioeconômicas de cada participante. à cobrança de familiares e de amigos.
Outra justificativa recorrente sobre o fato Algumas participantes de fato optam pela
das participantes ainda não serem mães foi a maternidade tardia e têm um desejo claro de se-
rotina exacerbada de trabalho e de estudo, con- rem mães, conforme explicou Ana:
forme relatou Diana: “Hoje, por exemplo, o ob- Eu penso em ser mãe. É assim, quando eu
jetivo era eu ser mãe com 35, mas isso se tornou tinha 20 anos, eu pensava em ter com 28
inviável por que conciliou com as atividades do anos, quando eu fiz 30 eu passei pros 32,
trabalho”. Por fim, três participantes menciona- agora que eu tenho 35 agora eu tenho até
ram que a maternidade tardia é uma opção cons- os 36 ou 37 anos. Então esse é meu prazo.
ciente, ou seja, elas planejam ter filhos em um Por outro lado, outras participantes afirmam
momento futuro, considerando que antes seria não desejarem ter filhos e justificaram essa es-
impossível em função de todas as suas atribui- colha em função dos medos que sentem frente à
ções, conforme mencionou Laura: maternidade, conforme mencionou Diana:
Acho até que pela evolução tecnológica, Uma criança, ela requer muitos, muitos
enfim, eu acho que a maternidade tardia é anos, ela requer muito de ti, e como eu sou
uma possibilidade que se tem, hoje é um re- uma pessoa muito independente, tanto emo-
curso que se tem, até pra assumir com tudo cionalmente como financeiramente, sei lá
isso que nós conversamos, com esse contex- eu tenho certo pânico de ter um ser vivo
to da mulher na contemporaneidade, então dependendo de mim o tempo inteiro, pra
eu acho que é uma possibilidade. comer, ou seja, pra viver.
Esse resultado está em consonância com o Os resultados de uma pesquisa com mulhe-
estudo realizado por Gomes et al. (2008), o qual res que optaram por não ter filhos mostraram
sugere que a gravidez tardia deveria ser conside- que a decisão de não ser mãe parece indicar uma
rada como um resultado tanto dos progressos da preferência por constituição de vínculos que
A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia. 925

não exijam tantos sacrifícios e que possibilitem para o nascimento de um filho (estabilidade pro-
maior liberdade (Patias & Buaes, 2012). fissional, financeira e conjugal) e tempo biológi-
Outro aspecto que merece destaque está re- co (período de fertilidade e disposição atribuída
lacionado ao que as participantes sentem com à juventude), aspecto que pode propiciar certo
relação à cobrança de familiares e de amigos descompasso na realização de ambos os proje-
sobre o fato de não serem mães. Observou-se tos.
que, ora as famílias e os amigos demonstram ter Na terceira subcategoria, Aspectos positivos
um entendimento sobre a opção pela materni- e negativos da maternidade tardia, observaram-
dade tardia, tratando-a com normalidade e sem -se os prós e contras da maternidade tardia. Entre
cobrança, ora cobram à mulher que decide ter os aspectos positivos, as participantes mencio-
filhos mais tarde, questionando sua decisão. A naram a maturidade da mulher e suas melhores
fala de Diana ilustra a primeira situação: “Eles condições financeiras, conforme relatou Ana:
até admiram o fato do meu trabalho, das mi- “Já ouvi falar sobre maternidade tardia, nos
nhas urgências, então pra eles isso parece ser benefícios da maturidade da mãe, do pai, da re-
mais importante do que o fato de ser mãe”. Já a lação, de ter uma estrutura psicológica melhor,
cobrança aparece de forma explícita no relato de emocional e financeira também”. Entre os as-
Ana: “. . . Todo mundo me cobra. Hoje menos, pectos negativos, foram mencionados os riscos
por que eu já tive muitas brigas com muitas pes- para mãe e para o bebê devido à idade avança-
soas, meus amigos sempre me cobram, as mi- da da mãe e a perda da independência, tanto fi-
nhas irmãs sempre me cobraram e já brigamos nanceira como emocional, conforme disse Ana:
várias vezes”. Tais resultados indicam a preocu- “Também tem o outro lado, as complicações...
pação das mulheres em serem discriminadas por após os 35 anos existem complicações para as
suas famílias quando, em função de reconheci- mulheres e para as crianças... e esse foi um dos
mento profissional, postergam a construção de motivos que eu to me dando um limite de 38 anos
suas famílias. pra engravidar”.
Percebe-se certa ambivalência na fala das A mulher se vê dividida dentre as diversas
participantes no que tange a percepção que elas opções que lhe são impostas. Essas escolhas a le-
têm sobre suas capacidades. Elas desempenham vam por trajetórias nem sempre fáceis de serem
múltiplos papéis, uma diversidade grande de ta- trilhadas, algumas vezes, até, entrecruzadas. A
refas e, mesmo assim, sentem-se amedrontadas sociedade, ao mesmo tempo em que a cobra para
frente à demanda de ser mãe. Interessantemente, que seja uma profissional competente, parece
toda a segurança conquistada no universo profis- exigir que a mulher somente se sinta completa ao
sional parece não ser suficiente para que se sin- ser mãe. Entretanto, com a diversidade de papéis
tam seguras em relação à maternidade. A idade exercidos por ela, há a dúvida da maternidade e
pode ser um fator que colabora para a noção da a questão de ter uma idade ideal para tornar-se
responsabilidade perante a maternidade, o que mãe, uma vez que, para a biomedicina, a mater-
pode gerar maiores níveis de exigência e, conse- nidade tardia está associada a riscos (Zavaschi et
quentemente, de insegurança. al., 1999).
De fato, as mulheres de hoje vivem em um
período histórico complexo, divididas entre o Maternidade Tardia versus Rotina Atual
anseio de se afirmar como protagonistas no con- Esta categoria abrange as percepções das
texto profissional, econômico, político e social participantes sobre como seria exercer a mater-
junto aos homens, e o desejo de se tornarem nidade e dar conta da sua rotina atual ao mes-
mães (Maluf & Kahhale, 2010). Tal complexida- mo tempo. As subcategorias elencadas foram:
de de demandas pode gerar essas ambivalências. (a) necessidade de reorganização da rotina e (b)
Moreira e Nardi (2009) ressaltam que existe um sentimento de preguiça frente à maternidade. Ao
contraste entre o tempo de conquista das condi- se imaginarem sendo mães, as participantes pu-
ções que são compreendidas como necessárias deram pensar de forma prospectiva sobre como
926 Lopes, M. N., Dellazzana-Zanon, L. L., Boeckel, M. G.

seria suas vidas caso tivessem um filho. Os re- mente e seja sua própria mantenedora. Essa so-
sultados da primeira subcategoria mostraram brecarga de trabalho, não acontece sem que haja
que o principal aspecto mencionado pelas parti- perdas. A falta de tempo e de cuidados em rela-
cipantes foi a preocupação em readequar a rotina ção à saúde são alguns dos prejuízos que ocorrem
de trabalho e de estudo para a chegada de um em função da excessiva dedicação ao trabalho.
filho. Para Laura, abrir espaço para um bebê foi Mesmo assim, as mulheres sentem-se felizes por
visto como tão complicado, que ela mencionou a poderem ocupar seu posto de trabalho, o que in-
necessidade de “procurar ajuda de um psicólogo dica certa contradição. Pode-se observar ainda,
para lidar com a maternidade tardia”. que o trabalho está relacionado com a fonte de
Por sua vez, os resultados da segunda sub- satisfação pessoal e financeira, diferentemente do
categoria referem-se especificamente ao senti- que era esperado e/ou desejado pela mulher nos
mento de preguiça relatado pelas participantes séculos XIX e XX, quando seu papel restringia-
frente à maternidade, conforme mencionou Dia- -se ao de ser uma boa esposa e mãe.
na: “Me dá preguiça em pensar em ser mãe”. A temática da multiplicidade de papéis e da
Considerando-se que já realiza uma série de ta- maternidade tardia parece estar envolta em con-
refas cotidianamente, o sentimento de preguiça tradições: se, por um lado, a mulher se vê como
expresso por Diana parece estar mais associado uma profissional muito competente, por outro,
à falta de ânimo para desempenhar mais um pa- ela teme em assumir a maternidade. Dentre as
pel em sua vida – o qual certamente irá lhe exigir diversas causas explicativas, a idade mais avan-
muito – do que a uma possível desvalorização da çada pode ser um fator propulsor dessa noção
maternidade. Além disso, sabe-se que mulheres de responsabilidade da mulher perante a vinda
que se tornam mães após os 35 anos de idade de um filho e, ainda, como salientam Moreira e
podem não ter mais a disposição física e a ener- Nardi (2009), a ideologia vigente que preconiza
gia necessárias para os cuidados com crianças na o individualismo. Ter um filho em uma socieda-
primeira infância (Cecatti et al., 2000; Moreira de em que cada um é responsável por si próprio
& Rasera, 2010). e na qual se almeja uma estabilidade inatingível
O modo de ser mulher na atualidade pare- é um contexto propício para a produção de inse-
ce marcado pela necessidade de independência, guranças, medos e ambivalências.
o qual, por sua vez, faz alusão ao discurso in- Além disso, há o fator tempo. Para realizar
dividualista. Quando extremado, esse discurso todas essas tarefas quanto ao trabalho e ao estu-
produz uma necessidade do sujeito provar sua do a mulher precisa de tempo. O mesmo tempo
independência, a qual só pode ser vislumbrada que ela precisaria para se dedicar à maternidade.
na lógica individual. Nessa lógica, só pode ter Nesse contexto, pode-se dizer que: (a) o adia-
filhos quem tiver alcançado esse ideal (Moreira mento da maternidade é uma consequência de
& Nardi, 2009). O perigo é quando esse ideal todas as demandas que a mulher do século XXI
torna-se inatingível, pois vivemos em um mundo tem vivenciado e (b) a maternidade continua
instável e imprevisível. Esse contexto ideológico sendo um projeto de vida das mulheres, indepen-
pode ser o propulsor para tais inseguranças e re- dentemente do momento histórico vivenciado. O
ceios perante a maternidade. que se observa, é que tanto o projeto profissional
quanto o projeto de construção de uma família
Considerações Finais são importantes. Entretanto, o projeto relativo
ao trabalho deve ser alcançado antes do projeto
Neste estudo, buscou-se investigar a multi- familiar. Por isso a maternidade se torna tardia.
plicidade de papéis exercidos pela mulher con- Assim, ao contrário de ser considerada como
temporânea e sua relação com a maternidade uma exceção à regra, a maternidade tardia é
tardia. Os resultados mostraram que há uma exi- uma opção válida para as mulheres que desejam
gência – tanto interna quanto externa – de que ter filhos e que já ultrapassaram os 35 anos. Os
a mulher estude, trabalhe, progrida profissional- avanços da medicina e as mudanças sociais são
A Multiplicidade de Papéis da Mulher Contemporânea e a Maternidade Tardia. 927

indicativos de que cada vez mais a maternidade Grzybowski, L. S. (2002). Famílias monoparentais:
tardia deve ser vista como algo possível e natu- Mulheres divorciadas chefes de família. In A.
ral e que pode trazer benefícios tanto para a mãe Wagner (Ed.), Família em cena: Tramas, dra-
mas e transformações (pp. 39-53). Petrópolis,
como para o bebê.
RJ: Vozes.
Nesta pesquisa, optou-se por entrevistar
apenas mulheres do mesmo nível socioeconômi- Fleck, A. C., Falcke, D., & Hackner, I. T. (2005).
Crescendo menino ou menina: A transmissão
co, o que consideramos uma limitação. Espera-
dos papéis de gênero na família. In A. Wagner,
-se, no entanto, que os resultados deste estudo A transmissão dos modelos familiares (pp. 107-
possam ajudar profissionais da área da saúde 121). Porto Alegre, RS: Editora da Pontifícia
que trabalham com mulheres, casais e famílias Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
que vivenciam questões relativas à maternidade
Fleck, A. C., & Wagner, A. (2003). A mulher como
tardia. Sugere-se que estudos futuros sejam re- a principal provedora do sustento econômico
alizados com participantes de diferentes níveis familiar. Psicologia em Estudo, 8, 31-38. Recu-
socioeconômicos. Além disso, sugere-se que perado em http://www.scielo.br/pdf/pe/v8nspe/
outras pesquisas incluam não apenas mulheres, v8nesa05.pdf
mas também homens e casais, a fim de investi- Gomes, A. G., Donelli, T. M. S., Piccinini, C. A., &
gar quais são suas impressões sobre a materni- Lopes, R. C. S. (2008). Maternidade em idade
dade tardia. Por fim, recomenda-se, ainda, que avançada: Aspectos teóricos e empíricos. Intera-
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