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Os mosteiros e a institucionalização do ensino

na Alta Idade: uma análise da história da


educação
The monasteries and the institucionalization of the
teaching in the High-Middle Age: an analysis of the
history of education
Terezinha Oliveira
Dra. em História pela UNESP-Assis. Professora do Depto.
de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UEM
e-mail: teleoliv@gmail.com

Resumo
Este artigo tem como objetivo examinar o papel dos Mosteiros enquanto instituição educativa na Alta Idade
Média ocidental, buscando ressaltar a sua importância. A perspectiva adotada nesse exame percorre os
caminhos apontados pela história, guiando-nos nas interpretações aqui explicitadas. Com efeito, conside-
rar a construção das leis e das instituições humanas do passado são premissas essenciais para se enten-
der os caminhos que as leis, as instituições e a educação percorrem no presente. Assim, por entender a
educação e seus diferentes lugares de realização de saberes, do passado e do presente, como espaços
especiais de civilização e de construção de identidades sociais, é que analisaremos, neste trabalho, uma
das principais, senão a mais importante, instituições educativas da primeira Idade Média: o mosteiro.
Palavras-chave
História da Educação. Mosteiros. Instituições Educativas. Alta Idade Média.

Abstract
This paper aims at investigating the role of the Monasteries, as centers of education of the Western High-
Middle Age, trying to emphasize their relevance to education. The perspective adopted in our analysis
travels all over the ways pointed out by history, thus guiding us in the interpretations reported in the
present study. In fact, considering the form laws were made and ancient human institutions were constructed
enable us to understand laws, institutions and education in the present days. Therefore, based on the
assumption that education, and the different places for working the knowledge, either in the past or in the
present days, as special spaces for being civilized and for constructing social identities, the focus of this
study will be on the analysis of one of the most relevant, or perhaps the most relevant educational
institution of the first Middle Age: The Monastery.
Key words
History of the Education. Monasteries. Educational Institutions. High-Middle Age.

Série-Estudos - Periódico do Mestrado em Educação da UCDB.


Campo Grande-MS, n. 25, p. 207-218, jan./jun. 2008.
Entre um estado histórico novo e o que o fia. Deste documento, valer-nos-emos da
antecedeu, não há um vazio, mas sim um tradução feita por Lauand.
estreito laço de parentesco, pois, num certo
sentido, o primeiro nasceu do segundo
Escolhemos essas duas fontes primá-
(DURKHEIM, 2002, p. 24) rias por julgarmos que elas expressam, com
muita clareza, as duas questões que pre-
Estudar a História e a Filosofia da tendemos examinar neste trabalho: o ensi-
Educação em uma dada época história im- no como elemento essencial à preservação
plica analisar a realidade social, política e do ser intelectivo e a necessidade da exis-
cultural que produziu um dado modelo tência de um lócus que preserve a vida e,
educativo sem omitir o passado que propi- concomitantemente, possibilite a preserva-
ciou seu surgimento. Nesse sentido, consi- ção dos saberes antigos, sua memória e,
derar a construção das leis e instituições por sua vez, enseje a construção de saberes
humanas do passado é fundamental para novos e de novas relações sociais.
se conhecer os caminhos que as leis, as insti- A nosso ver, os mosteiros medievais
tuições e a educação percorrem no presente. proporcionaram aos homens justamente
Assim, partindo do entendimento de essas duas coisas, na medida em que se
que a educação e seus diferentes lugares preocuparam em salvaguardar a vida sob
de realização de saberes, tanto no passado seus dois aspectos essenciais: a sua integri-
como no presente, constituem espaços es- dade física e intelectiva.
peciais de civilização e de construção de Principiemos nossa discussão seguin-
identidades sociais, analisaremos uma das do os passos dados pelos estudiosos dessa
principais, senão a principal, instituições instituição e, com isso, permitiram que a
educativas da primeira Idade Média: o mos- história fosse preservada em nossas me-
teiro. Nesse exame procuraremos salientar mórias.
algumas das suas características educati- Segundo os estudiosos da História e
vas e que o tornou o espaço especial de Filosofia da Educação, (DURKHEIM, 2002;
preservação da vida, da cultura e da escrita GRABAMANN, 1949; LAUAND, 1998;
no Ocidente medievo, após o declínio do PIEPER, 1973; NUNES, 1979), o mosteiro
Império Romano. foi o primeiro espaço de organização e pre-
Para a análise dessa instituição edu- servação dos saberes na Idade Média. Eles
cativa retomaremos, além de estudiosos da Salientam que a concepção que temos de
história e filosofia da educação, dois docu- um local especialmente destinado à siste-
mentos do período que tratam da formação matização do ensino e do conhecimento
do mosteiro como lócus de preservação da nasceu da idéia cristã de evangelização
vida e da cultura/ensino. São as regras de presente no mosteiro e nas escolas cristãs
São Bento, publicadas no Brasil sob o títu- dessa época. Afiançam que a palavra
lo Regra de São Bento e o capítulo 30 das escolare deu origem não só a escola, mas
Instituições, de Cassiodoro, que versa So- que o conceito filosófico que norteou o ensi-
bre os copistas e a recordação da ortogra- no, ao longo do medievo, deriva dessa siste-

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matização do conhecimento. Em razão dis- encontramos uma estreita relação entre as
so recebeu o nome de Escolástica. Desse escolas cristãs e monacais da Primeira Ida-
modo, a instituição escola, os escolares que de Média e as escolas contemporâneas no
freqüentavam essas escolas e o filosofar que diz respeito à sua organização e aos
que emanava e, ao mesmo tempo, dirigia seus fundamentos. Segundo o autor, o sis-
o sistema de ensino do período estavam tema escolar contemporâneo principiou a
imbricados a ponto de só podermos enten- existir na Primeira Idade Média, seja pela
der a existência de um em função dos atuação da Igreja, seja pela presença dos
demais. mosteiros. Em suma, foi engendrado pelas
O estudioso alemão do início do sé- instituições cristãs entre os séculos V e VII.
culo XX, especialista em Filosofia Medieval, O próprio autor estabelece um para-
Martin Grabmann, destaca a estreita vin- lelo importante entre os propósitos das es-
culação existente entre os escolares e o filo- colas daquele período histórico e o seu con-
sofar escolástico. temporâneo. Evidentemente, os propósitos
Por la aparencia y la forma externa, la teóricos das escolas no século XIX não eram
filosofía cristiana de la Edad Media nos os mesmos da primeira Idade Média, es-
aparece, según lo indica ya el nombre de
pecialmente quanto ao caráter religioso.
Escolástica [...]
Contudo, a essência formadora permanece
En la Alta Edad Media scholasticus es el
a mesma, não só até o século XIX, mas
maestro de las artes liberales, de las siete
disciplinas libres del Trivium (Gramática, também até os nossos dias. Continuamos
Lógica o Dialética, Retórica) y el a entender a escola como um lócus de for-
Quadrivium (Geometria, Aritmética, Astro- mação geral, de estímulo e desenvolvimen-
nomia y Música). La palabra scholasticus to de um pensamento universalizante e re-
tiene también a veces hasta el siglo XII la
significación de discípulo o escolar. Más
flexivo, de compreensão das questões so-
tarde se llama escolástico en general a ciais que o medeiam, em última instância,
todo aquel que da enseñanza en las que ensine o filosofar e não somente con-
escuelas, especialmente de Filosofia y teúdo programático.
Teología (GRABMANN, 1949, p. 34-6)
Ora, para inculcar práticas, um simples
No trecho acima, Grabmann explicita adestramento basta ou até é o único efi-
que a natureza do ensino medieval encon- ciente, mas idéias e sentimentos não po-
tra-se diretamente vinculada à sua sistema- dem comunicar-se senão através do ensi-
no, quer esse ensino seja dirigido ao co-
tização na escola, seja ela monástica ou
ração ou à razão, ou a ambos ao mesmo
catedraliça. Além disso, é esta sistematiza- tempo. Por isso é que, logo que foi funda-
ção da escola que enseja o surgimento da do o cristianismo, a prédica, desconhecida
filosofia cristã denominada Escolástica. na Antigüidade, assumiu um lugar impor-
Se em Grabmann verificamos a es- tante; pois predicar, é ensinar. (DURKHEIM,
treita relação entre os escolares e a filoso- 2002, p. 29)
fia cristã, em Durkheim, por seu turno, na As palavras do autor exemplificam
sua consagrada obra Evolução Pedagógica, o sentido da educação que consideramos

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essencial para a formação dos homens em da urgência de sistematizar um novo modo
sua totalidade, ou seja, não se deve ensinar de vida e, com ele, um sistema de ensino
um conteúdo de forma isolada e mecanica- que possibilitasse o desenvolvimento de um
mente, caso pretendamos formar pessoas sentido de pertencimento social. Em suma,
e não indivíduos. Na verdade, existe uma precisavam construir uma comunidade so-
profunda diferença entre essas duas finali- cial que integrasse os homens e lhes des-
dades da educação. Quando procuramos sem um sentido de universalidade.
formar pessoas, estamos, na verdade, bus- Essa proposta de universalidade so-
cando formar seres capazes de estabelecer cial, de integração dos homens, é transpos-
premissas sociais, inquietos com os proble- ta para o sistema de ensino adotado nas
mas que o cercam, que buscam construir escolas cristãs e nos mosteiros. É ele que
identidades coletivas. Pretendemos indiví- procura dar a esses seres uma identidade
duos voltados para um bem comum da e o sentido vital de pertencimento e vínculo
sociedade. Quando nos preocupamos em a uma comunidade, condição sine qua non
formar indivíduos, no sentido de despejar para a existência dos homens em qualquer
conteúdos, estamos também formando período histórico. Eis como isso aparece ní-
homens, mas não estamos construindo tido na análise de Durkheim.
identidades coletivas, princípios universali- Na Antigüidade, o aluno recebia sua ins-
zantes direcionados à sociedade como um trução de professores diferentes uns dos
outros e sem nenhuma ligação entre eles.
todo. Enfim, não estamos integrando este O aluno ia aprender a gramática na cassa
ser em uma comunidade. Insistimos na do gramatista ou do literato, a música na
máxima aristotélica, seguida por Tomás de casa do citarista, a retórica na casa do
Aquino, de que o homem é um animal po- retor, etc. Todos esses diversos ensinamen-
tos juntavam-se nele, mas ignoravam-se
lítico que nasceu para viver socialmente. No mutuamente. Era um mosaico de ensina-
entanto, não damos aos nossos alunos o mentos diferentes cuja ligação era mera-
sentido mais importante do ser humano, o mente externa. Vimos que a situação era
ser coletivo, o ser que só existe mediante a totalmente oposta nas primeiras escolas
existência e convivência com seus pares. Em cristãs. Todos os ensinamentos reunidos
eram dados num mesmo local e, portanto,
última análise, não ensinamos ou, então, o submetidos a uma mesma influência,a
que é ainda mais grave, retiramos de nossas uma mesma direção moral. Era a que ema-
crianças o sentido de pertencimento social. nava da doutrina cristã; era a que fazia as
Reside neste aspecto a característica almas. À dispersão de outrora sucedia-se,
portanto, uma unidade de ensinamento.
essencial das escolas cristãs e monacais da O contato entre os alunos e o professor
primeira Idade Média. Premidos pela neces- dava-se, entretanto, a todos os instantes.
sidade de dar ao que restará do Império [...] Ora, essa concentração do ensinamento
romano (instituições e homens) e aos po- constitui uma inovação fundamental, que
testemunha a profunda mudança ocorri-
vos do norte (migrações nômades) que da na concepção que se tinha da nature-
assolavam esse espaço uma forma de so- za e do papel da cultura intelectual.
ciedade, os teóricos cristãos viram-se diante (DURKHEIM, 2002, p. 34)

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Ao salientar as diferenças existentes nascentes, os escolares aprendiam, num úni-
entre o ensino na Antigüidade e o ensino co local e em conjunto, além dos conteúdos
nas nascentes escolas cristãs, Durkheim evi- das sete artes liberais, as premissas funda-
dencia a preocupação que os teóricos cris- mentais da universalidade cristã. Em última
tãos tiverem em estabelecer uma forma de instância, apresentava-se para a sociedade
ensino que agregasse as crianças, diferen- um projeto de escola e de ensino no qual a
temente do que acontecia no ensino antigo. preocupação primeira era agregar a pessoa
Cumpre ressaltar que essa inquietação não dentro de um princípio geral. Desse modo,
nasceu somente de um preceito religioso e aí nasciam as raízes de uma instituição que
dogmático de converter todos ao cristianis- conserva essas premissas até hoje: a de uma
mo, mas da imperiosa necessidade de se formação integralizadora e universal.
erigir uma sociedade. Os mosteiros são, pois, oriundos des-
Nesse sentido, faz-se necessário con- se espírito de preservação, construção e
siderar as diferenças existentes entre esses integração universalista que permeava os
dois estados sociais. Assim, na Antigüidade ideais cristãos nos séculos V e VI da primeira
(Polis grega, República e Império Romano), Idade Média. Cumpre ressaltar que os mos-
as instituições, as leis e o governo assegura- teiros, então, expressavam, efetivamente,
vam a existência dos homens e, portanto, um momento novo e original na história
havia algo que os unia e definia a identida- do Ocidente, pois expressavam o lócus de
de coletiva, bem como o sentido de perten- preservação da cultura e da vida, como já
cimento social. Na sociedade cristã que emer- foi dito anteriormente.
gia, ao contrário, a única coisa perceptível Segundo Pieper, os mosteiros, antes
era o caos das instituições romanas e a ruína de tudo, especialmente o fundado por
provocada pelos saques e pilhagens das Bento de Núrsia, simbolizaram o início da
migrações nômades que adentravam o es- Idade Média. O autor define o ano de 529
paço geográfico e social do que restara do como um momento de transição entre as
mundo romano. Nesse cenário de crise social, duas formas de filosofar, pois, nesse ano,
a religião cristã assume o papel de governo Justiniano fecha a academia de Platão, ex-
e principia a construção de uma nova co- pressão do filosofar antigo, e Bento de
munidade a partir daquilo que ela tem con- Núrsia funda o mosteiro que construiu o
dições de erigir, ou seja, conta com os res- novo filosofar, prenhe do espírito cristão.
quícios das instituições romanas, com o povo Para ele, a escolha dessa data não é alea-
romano e os povos que emigram do norte. tória, mas uma evidência de que os homens
Exatamente por estarem criando não podem viver sem espaços destinados
uma nova sociedade e novas identidades ao saber. No momento em que a antiga
coletivas, os teóricos cristãos propõem uma forma do saber, expressão do conhecimento
forma original de ensino, bastante distinta, greco-latino se encerra, os homens erigem
como nos mostra a passagem de Durkheim, um novo espaço, que possibilita o desen-
do modelo greco-romano. Nessas escolas volvimento dos novos saberes, portanto, do

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novo filosofar, o cristão. olhos que não vêem, deve levar a palavra
de vida ao que a desconhecem ou não a
Naturalemente es imposible especificar un
ouviram, deve recrutar novos soldados para
momento determinado, una fecha, para
Cristo. Para isso é indispensável que não
el comienzo de la Edad Media. No obstante
se encerre num isolamento egoísta; é pre-
se suele citar un año que posee un signifi-
ciso que, ao mesmo tempo em que foge
cado especial, simbólico por así decir. Es
do mundo, mantenha relações com ele.
el ño 529. [...]. En el año 529 un edicto del
Assim é que os monges não foram sim-
emperador cristiano Justiniano cierra la
ples solitários meditativos, mas sim ativos
Academia platónica en Atenas, [...] San propagadores da fé, pregadores, conver-
Benito funda Montecasino; es decir, entre
sores, missionários. Assim é também que
Roma y Nápoles, sobre un alto y junto a
ao lado da maioria dos mosteiros ergueu-
uno de las rutas estratégicas de la invasión
se uma escola, na qual não só os candi-
de los bárbaros, surge el primer monas- datos à vida monacal como também as
terio benedictino. Com ello se ponde de crianças de todas as condições e de todas
manifiesto en realidad algo así como un as vocações vinham receber instrução ao
límite en el que se tocan mutuamente mesmo tempo religiosa e profana.
dos edades, una pasada y outra que
(DURKHEIM, 2002, p. 30 – Grifo nosso)
comienza. Sin embargo, la contraposición
tiene un múltiple significado que no se Acreditamos que as palavras de
deduce sin más de los acontecimientos Dukheim contradizem determinadas defini-
del año 529, aunque éstos apunten a ções de monges que temos da Idade Média
aquél (PIEPER, 1973, p. 19-20). como seres fechados e isolados em si mes-
A fundação do mosteiro de São mos e que viviam somente para a medita-
Bento é a constatação de que a nova socie- ção. O autor nos descreve uma realidade
dade que então emergia não sobreviveria contrária a essa imagem. Ao mesmo tempo
sem um espaço próprio de preservação da em que os monges se isolam do mundo,
vida e do conhecimento. um mundo em ruína, ressalte-se, eles tam-
Durkheim, no texto já mencionado, bém se aproximam dele para disseminar
também destaca a importância dos mostei- as idéias cristãs, cuidar dos povos, abrigar
ros da primeira Idade Média na preserva- os viajantes, criar escolas para atender não
ção e construção dos saberes cristãos. só aqueles que pretendem seguir a regra,
[...] O mundo parecia estar a ponto de aca- mas também aqueles que buscam uma
bar: orbis ruit, o mundo desaba para todos formação.
os lados, e multidões escapavam para lo- Não podemos nos esquecer igual-
cais desertos. Desde o início, porém, o cris-
tão monacal distinguiu-se do hindu mona-
mente que os mosteiros eram considerados
cal, por exemplo, na medida em que ja- locais sagrados nessa primeira Idade Mé-
mais foi contemplativo. É que o cristão é dia, o que os protegia, em geral, dos saques
obrigado a cuidar não só de sua salvação e pilhagens que assolavam os demais espa-
pessoal como também a da humanida- ços sociais. Em função dessas característi-
de.[...]. A verdade que possui não pode ser
piedosa ou zelosamente conservada só
cas, os monges conservam o sentido do
para ele, mas deve ser difundida ativa- viver em comum, sentimento que é essen-
mente ao seu redor. Deve abrir à luz os cial para a existência da sociedade. Ao

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mesmo tempo em que se isolam da socie- construção de uma dada sociedade e, por
dade, criam para e nela uma possibilidade conseguinte, para o bem comum dos ho-
de integração social por meio da proteção mens.
e do ensino. O primeiro aspecto que considera-
As palavras de Ullmann não nos dei- mos fundamental a essa instituição vincula-
xam dúvidas acerca dessas funções dos se à clareza com que cria e desenvolve um
mosteiros e, especialmente, das escolas projeto político pedagógico de organização
monacais. e direção social. Sob esse aspecto as escolas
A atividade dos fundadores das primeiras monacais não deixam margem para dúvi-
escolas monacais e episcopais [...] estava das, pois, desde o seu nascimento, estiveram
vinculada a uma clara determinação polí- direcionadas para o ensino e para desenvol-
tica e religiosa, isto é, despertar na popu- ver nos homens um sentimento de pertenci-
lação a consciência de pertença ao impé-
rio que estava surgindo. E, embora poucos
mento social. O segundo aspecto, e de não
tivessem acesso ao ensino ministrado, a menor relevância, foi o cuidado com que
eles se deve, contudo, o fato de o cristianis- os monges se dedicaram à preservação
mo não ter permanecido no nível quase dos conhecimentos antigos por meio do
mitológico. Pode-se dizer, também, que a trabalho dos copistas. Essa preocupação foi
formação dos Estados europeus, mais tar-
de, reside na consciência profana de eman-
essencial à conservação das obras greco-
cipação adquirida nas escolas. latinas, mas, fundamentalmente, despertou
o espírito da leitura, da escrita, da preser-
Cada convento beneditino possuía a sua
biblioteca e um scriptorium ou sala de vação da língua latina. Como salienta
copistas, onde os monges reproduziam tex- Ullmann, graças a eles, “sobreviveram as
tos antigos. Harmonizavam sua divisa – humanidades clássicas”. São elementos
ora et labora – com trabalho manual, inte- essenciais para a preservação da cultura e
lectual e oração.
condição básica para o ensino. Um terceiro
[...] aspecto a ser ressaltado diz respeito ao
As escolas monacais e os mosteiros não caráter democrático (usamos esta palavra
viviam isolados. Além da troca epistolar, por ser a que melhor expressa o que pre-
matinham intercâmbio de códices, os quais tendemos destacar aqui, mas não deve ser
eram copiados para enriquecer os tesouros
interpretada no sentido que lhe damos
das bibliotecas. Salvaram-se, assim, muitas
obras, que, sem o labor persistente dos hoje) dos mosteiros. As escolas monacais
monges, para sempre teriam desaparecido. não acolhiam somente aqueles que se des-
Graças a eles, sobreviveram as humanida- tinavam à vida na Regra, mas cuidou de
des clássicas. (ULLMANN, 2000, p. 35-37) criar dois espaços destinados ao ensino: um
Ao descrever os principais papéis de- para os futuros monges e o outro para a
sempenhados pelos monges, este autor nos comunidade em geral.
aponta para características que considera- Os mosteiros tinham um caráter pa-
mos essenciais a qualquer instituição que radoxalmente aberto, pois, ao mesmo tem-
desempenhe atividades voltadas para a po em que seu viver implicava isolamento,

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as suas escolas abertas à comunidade, o desde a que cuida da oração, da proprieda-
seu papel de hospedeiros e a sua proposta de, do trabalho e da submissão até a esco-
políticasde de universalização do cristianis- lha do abade. Em síntese, toda a vida e as
mo os tornavam instituições abertas para escolhas do monge e dos homens devem
o conjunto da sociedade. Mais do que isso, ser feitas a partir da idéia do conhecimento
criadora de princípios agregadores, destina- e do projeto cristão de sociedade.
dos à construção de um bem comum. Es- Desse modo, ao definirmos como
ses aspectos, indubitavelmente, tornam os uma de nossas fontes a proposta de educa-
mosteiros locais de propagação do ensino ção cristã presente nas regras de São Bento,
e do viver social. Eis as razões porque os no século VI, acreditamos que poderemos
consideramos exemplos fundamentais às entender um pouco mais sobre a educação
nossas atuais instituições de ensino. no seu sentido mais geral, pois os 73 pre-
ceitos da Regra tratam diretamente do com-
A regra de São Bento portamento humano.
Evidentemente essa proposta está
Para Ullmann, e seguramente ele não prenhe de conteúdo religioso, pois o homem
é o único, “O movimento monástico atin- que se pretendia formar por meio dos pre-
giu a culminância com São Bento (480- ceitos era um ser, não só cristão, mas tam-
543), verdadeiro fundador das escolas bém um homem que se devotasse integral-
monacais, em sentido estrito” (ULLMANN, mente a Deus e à religião cristã. Ora, se essa
2000, p. 34). As palavras do autor explicitam proposta educativa é tão distinta das atuais,
a importância de Bento de Núrsia para a em que medida então conhecer e analisar
divulgação do modelo monacal em todo o essa proposta nos permitiria conhecer a
Ocidente. Ao longo de toda a Idade Média, educação em um sentido mais geral?
e até os nossos dias, encontramos monges O argumento que podemos oferecer
beneditinos. As suas regras tornaram-se pre- a essa indagação, além dos já menciona-
ceitos educativos para toda a Idade Média, dos anteriormente, quando analisamos a
não só no interior dos mosteiros, mas regu- historiografia da educação e da filosofia,
lou relações humanas na sociedade. só pode ser entendido a partir de nossa
O espírito de São Bento era difundir compreensão dos fundamentos da educa-
uma organização da vida baseada nos pre- ção. Ou seja, de que a educação é um acon-
ceitos religiosos e construir, por meio da edu- tecimento total que acompanha os homens
cação, da submissão e do conhecimento nos seus mais diferentes momentos da vida
intelectual, a comunidade cristã, na qual o e que, insistentemente, procura inserir a
mosteiro era a sua sólida fundação. Já no criança no meio social em que ela vive.
Prólogo da Regra ele destaca a função dela: Não podemos nos esquecer de que
“Devemos, pois, constituir uma escola do A Regra de São Bento apresenta uma pro-
serviço do Senhor” (REGRA, 1993, p. 14). posta de educação para um momento
Esta concepção norteou todas as regras, muito peculiar e particular da história do

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Ocidente. O século VI, século da criação do vel diante dos seus olhos;
mosteiro de São Bento, é marcado pelo pro- 51 Guardar sua boca das palavras más
cesso de desestruturação das instituições ou depravadas;
romanas, pela contínua chegada de migran- 53. Não falar palavras vazias ou que só
tes nômades que assolam o Império Roma- sirvam para o riso;
no do Ocidente, desde fins do século IV; lo- 73. Voltar à paz antes do pôr-do-sol com
go, é um período de grande comoção social. quem se teve uma discórdia;
É, pois, nesse cenário de perturbações 78. A oficina onde trabalharemos com
que assistimos ao nascimento do mosteiro dedicação nisso tudo são os claustros do
de São Bento e de sua regra. Por conse- mosteiro. (REGRA, 1993, p. 23-26)
guinte, tanto o mosteiro como a Regra (que Mencionamos algumas das 78 para
estamos tratando como proposta pedagó- se ter uma idéia de que as máximas propos-
gica) surgem em reposta a um dado mo- tas por Bento tinham por finalidade edu-
mento histórico em que os homens preci- car os homens para um determinado modo
sam buscar caminhos e soluções para os de vida que, em última instância, assegura-
novos problemas que surgem. Essas solu- va a existência da comunidade. Afinal, não
ções passam, de acordo com São Bento, furtar, por exemplo, implica um compor-
pelo bem viver cristão. Já no capítulo 4 da tamento moral que assegura a existência
Regra, intitulado Quais são os instrumentos da propriedade e da liberdade do outro.
das boas obras, São Bento apresenta 78 Não dar falso testemunho é um crime até
máximas que devem fazer parte do viver hoje punido por lei, mas que implica tam-
monástico. Nelas, ressalta atitudes compor- bém não mentir, ser reto. Não falar pala-
tamentais que são importantes para o con- vras vazias implica fazer uso da razão, re-
vívio social. fletir antes de falar, ou seja, fazer uso da
[...] principal qualidade humana, o intelecto.
3. Em seguida, não matar; Aliás, a máxima 78 é um exemplo típico de
4. Não cometer adultério; que Bento entendia os trabalhos no mos-
5. Não furtar; teiro como um elemento importante para
6. Não cobiçar; a estabilidade da comunidade.
7. Não dar falso testemunho;
Ao considerarmos essas máximas
que fazem parte de uma das regras e as
8. Honrar a todos os homens;
demais regras apresentadas por Bento, po-
18. Prestar socorro na tribulação;
demos observar que muitas delas são im-
22. Não satisfazer à ira;
portantes para o convívio de qualquer co-
24. Não guardar a falsidade no coração;
munidade: é-lhes indiferente se viver recluso
34. Não ser orgulhoso;
no mosteiro, se viver na Idade Média ou
36. Não ser guloso; na atualidade. São preceitos educativos
38 Não ser preguiçoso; gerais que devem fazer parte da formação
47. Ter diariamente a morte como possí- do homem desde o seu nascimento. Logo,

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imprescindíveis a qualquer pessoa que pre- pítulo 30 às atividades do copista, chaman-
tenda exercer atividades pedagógicas, pois do a atenção para o fato de que, de todas
nos ensinam, antes de tudo, que o papel as funções existentes no mosteiro, a do
da escola é dedicar-se ao ensino e ao saber copista é a que mais lhe agrada.
para formar pessoas capazes de conviver Quanto a mim, eu vos manifesto minha
em comunidade. predileção: entre as tarefas que podeis rea-
lizar com esforço corporal, a dedicação dos
Se as Regras de São Bento ensinam
copistas, se escrevem sem erros, é – e
máximas que preparam os homens para o talvez não injustamente – o que mais me
convívio social por meio de preceitos que agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas,
devem observar enquanto integrantes de instruem de modo salutar sua mente e
uma comunidade, as Instituições de copiando espalham por toda parte os pre-
ceitos do Senhor. (CASSIODORO, Institui-
Cassiodoro revelam a importância dos
ções, cap. 30)
mosteiros não só como local de proteção
dos homens, os viajantes, mas também Na atividade do copista, três aspec-
como de difusão do saber, valorizando as tos necessários à formação do homem da
atividades do copista (Capítulo 30). primeira Idade Média se destacam. Em pri-
meiro lugar, a valorização do trabalho. Afi-
Cassiodoro (c. 485-580) nal, ao copiar os escritos, os monges traba-
Instituições - Cap. 30. Sobre os lham. Em segundo lugar, a difusão do saber:
copistas e a recordação da ao copiar um escrito sagrado ou profano,
ortografia o monge copista divulga e conserva a me-
mória do conhecimento produzido pelos
De acordo com Lauand, “[...] a grande homens. Em terceiro lugar, o copista contri-
contribuição de Cassiodoro foi perceber que bui para a formação das pessoas, especial-
esse componente fundamental para a edu- mente dentro do espírito cristão, pois disse-
cação, a skholé – as condições (exteriores mina o evangelho.
e interiores) de tranqüilidade e abertura da Ao prosseguir em sua reflexão sobre
alma para o estudo –, só podia dar-se, na a atuação do copista, Cassiodoro salienta
época, no mosteiro” (LAUAND, 2006, p. 1). que ele desempenha um papel fundamen-
Cassiodoro funda, em 555, o mos- tal no processo de construção da identida-
teiro de Vivarium, iniciando um intenso tra- de cristã, pois sua atividade é “[...] o pregar
balho de preservação do conhecimento aos homens com a mão, abrir línguas com
antigo e, fundamentalmente, de ensino os dedos, dar em silêncio salvação aos
desta cultura ao lado do escritos sagrados mortais e – com a cana e a tinta – lutar
do Cristianismo. Exatamente por ter em contra as ilícitas insinuações do diabo.”
mente a preservação da cultura e do ensi- (CASSIODORO, Instituições, cap. 30) Ao
no, ele estimulou neste mosteiro as ativida- mostrar que o copista, mesmo em silêncio,
des do copista. A nosso ver, é por valorizar divulga a palavra cristã e propicia a salva-
esta atividade que Cassiodoro dedica o ca- ção das almas, Cassiodoro nos mostra

216 Terezinha OLIVEIRA. Os mosteiros e a institucionalização do ensino na alta...


quanto esta atividade foi importante para àqueles que julgava que deviam ser con-
a construção do ideal cristão, pois contri- vidados ao banquete celestial em Sua gló-
ria. (CASSIODORO, Instituições, cap. 30)
buiu para a difusão desta idéia tanto quan-
to os demais pregadores do cristianismo. Afinal, as iluminuras que o monge
Mais à frente, em suas reflexões, fazia ao copiar as palavras, especialmente
Cassiodoro explicita algo fundamental no as letras iniciais, serviriam para embelezar
processo educativo, ou seja, a idéia de que a palavra do senhor e, com isso, valorizá-la
o copista dissemina o conhecimento mes- ainda mais. Não podemos nos esquecer
mo estando ausente e distante daquele que que naquele momento da primeira Idade
o recebe. Média, os homens com os quais os teóricos
[...] Ele, permanecendo em seu lugar, per-
cristãos contavam para erigir a sociedade
corre diversas províncias com a dissemina- cristã eram os povos nômades e a plebe
ção de suas obras. Seu trabalho é lido em romana. Daí a importância de destacar o
lugares santos. Os povos ouvem e podem belo, inclusive como uma forma de atrair e
renunciar à sua vontade perversa e servir sensibilizar esses dois povos que viriam
o Senhor com mente pura. Com seu tra-
balho, ele age, mesmo estando ausente.
construir a nova sociedade.
(CASSIODORO, Instituições, cap. 30) As palavras de Cassiodoro sobre os
Destacaremos dois últimos elemen- copistas, do mesmo modo que as regras
tos desse capítulo de Cassiodoro acerca da de São Bento sobre o convívio diário dos
atividade do copista. A primeira é quando monges, nos servem de grandes exemplos.
associa a palavra livreiro à idéia de justiça Neles está presente o sentimento do que
“[...] Muitas coisas podem se dizer desta tão seja uma escola. Ou seja, ela precisa difun-
ilustre arte, mas basta chamá-los de livreiros dir o conhecimento como os copistas o fi-
[librarios], que se consagram à libra [balan- zeram; ela precisa estabelecer regras de
ça] da justiça do Senhor” (CASSIODORO, cap. convívio social como os monges o fizeram;
30). O copista, ao difundir o conhecimento, e, acima de tudo, apresentar aos seres que
estaria também contribuindo para o equilí- a freqüentam ou convivem em suas ime-
brio da justiça, pois os homens, de posse diações caminhos e idéias capazes de con-
do conhecimento das palavras sagradas, servar, construir e consolidar ideais coletivos
agiriam de forma reta, contribuindo, assim, de sociedade/comunidade. Evidentemente
para o convívio social. não estamos nos referindo somente à es-
A segunda é quando valoriza a qua- cola da nossa rua, embora ela também
lidade de artista do copista. deva desempenhar esses papéis, mas, fun-
damentalmente, à Instituição maior que con-
Acrescentamos a esses autores, artistas
doutos na cobertura de livros para que a duz as crianças de um país, de um conti-
beleza das letras sagradas se vestisse por nente. Afinal, os mosteiros medievais, do
cima com ornato: imitando talvez de algum mesmo modo que nossas escolas atuais,
modo aquele exemplo da párabola do se difundiram por todo o Oriente e pelo
Senhor, que cobriu com vestes nupciais
Ocidente, mas foi no Ocidente que eles se

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 25, p. 207-218, jan./jun. 2008. 217


transformam na instituição formadora de bém forma a sociedade.
homens, pois que é a instituição que tam-

Referências

CASSIODORO, Sobre os copistas e a recordação da ortografia – Cap. 30. In: LAUAND (Trad.)
Cassiodoro e as institutiones: o Trabalho dos Copistas. Disponível em: <www.hottopos.com>.
Acesso em: 13 fev. 04.
DURKHEIM, Emile. A evolução pedagógica. São Paulo: Artmed, 2002.
GRABMANN, Martin. Filosofia Medieval. Barcelona: Labor, 1949.
NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979.
OLIVEIRA, Terezinha. Escolástica. São Paulo/Porto: Mandruvá/Instituto Jurídico Interdisciplinar,
2005. Coleção Nontandum – Série Libro 4.
PIEPER, Josef. Filosofía Medieval y Mundo Moderno. Madrid: Rialp, 1973.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A Universidade Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

Recebido em 29 de abril de 2007.


Aprovado para publicação em 26 de maio de 2008.

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