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REFLEXÕES FISTÓRICO-FILOSÓFICAS SOBRE O CURRÍCULO1

Lúcia Ap. Valadares Sartório2

O esforço dedicado por nós no decorrer desse trabalho consistiu em


realizar a reconstituição histórica das práticas educativas e tentar nos aproximar com um
grau maior de precisão sobre o modo como o ensino foi sendo efetivado no decorrer do
século XX. Através desta atividade nos deparamos com um emaranhado de proposituras
contraditórias para a educação convergidas basicamente em duas grandes linhas de
pensamento: o pragmatismo e o humanismo.
Uma das contradições daquele processo consistiu no fato de o humanismo
ter sido representado, em grande medida, por setores progressistas da igreja católica – que
simultaneamente defendiam os interesses do ensino privado –, e o pragmatismo ter sido
representado pelos liberais – naquele momento, defensores da expansão da escola
pública. Posteriormente, a maioria dos setores liberais também se empenharam pelo
aumento dos privilégios das instituições privadas junto ao estado em detrimento da defesa
do ensino público, o que provocou uma dupla subtração: o esvaziamento do humanismo
e fortalecimento das redes privadas de ensino. O ideário
humanista continuou a ser combatido e o ideário escolanovista alcançou
plena difusão. O fato de alguns setores liberais terem defendido a expansão da escola
pública até meados da década de 1960, impediu que fosse realizada uma análise mais
profunda sobre a concepção de homem e as perspectivas sociais colocadas no movimento
escolanovista.
Por isso, a análise sobre o debate travado em torno dessas duas
perspectivas possui extrema relevância para a formação dos indivíduos, pois a partir do
caminho escolhido também é dado um direcionamento social. Diante desta encruzilhada
em que coloca a humanidade, cabe perguntar: que sociedade desejamos construir? Que
homem desejamos formar?
O currículo é a espinha dorsal que dá sustentação à formação e ao
desenvolvimento da individualidade e é a partir dele que direcionamos e delineamos a
formação humana construída através da escola. Assim, retomamos aqui as reflexões

1
Capítulo da tese de doutorado “A Trajetória do Anti-Humanismo Pragmatista na Educação Brasileira –
os programas de ensino do estado de São Paulo e dos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema
(1940-2008). Universidade Federal de São Carlos. 2010.
2
Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Educação.
acerca dos conteúdos formativos da individualidade lançadas no início deste texto e o
modo como são disponibilizados no currículo. Os conteúdos se referem à vida dos
homens, ao seu modo de ser e agir, e a vasta gama a qual eles se referem acabaram sendo
organizados e disponibilizados gradualmente no decorrer das séries partindo dos
elementos mais simples na educação infantil até alcançar os elementos mais complexos
na educação secundária, um conjunto complexo de conhecimento nas diversas áreas das
ciências, que daria condições para o estreitamento e aprofundamento em alguma área
específica no ensino superior. Ou seja, os conteúdos concentram o conjunto de
conhecimentos das diversas áreas da ciência, filosofia literatura selecionados e
organizados previamente e distribuídos ao longo da formação humana. Assim, a análise
do currículo tornou-se uma tarefa imprescindível.
Para Tomaz Tadeu da Silva (2005), provavelmente, os primeiros
entendimentos produzidos acerca do currículo deve ter sido concebido por Comenius,
sem nomeá-lo, entretanto, foi no início do século XX que essa denominação ganhou
destaque impulsionado pelos escolanovistas. Dermeval Saviani (1996) atribui ao Marquês
de Condorcet as primeiras iniciativas em torno da organização de um programa de ensino.
Independentemente das análises que passaram a ser realizadas em torno do currículo, o
conhecimento sistematizado se fez presente na formação dos indivíduos ate meados da
década de 80, como já assinalamos na Introdução deste texto, quando passou a despontar
com mais intensidade as diferentes posições sobre as suas características e funções.
Diante dessas transformações afirmamos que a educação possui na
atualidade uma finalidade completamente distinta do que foi realizado pela humanidade
no decorrer da sua história. Nossa afirmação é corroborada por Tomaz Tadeu da Silva3
(2005), mesmo explicitando sua adesão ao relativismo, campo de análise diametralmente
oposto ao nosso. Em seu livro Documentos de identidade – uma introdução às teorias do
currículo Tomaz Tadeu da Silva traz a dimensão do processo de transformação da
educação com foco no currículo levantando questões primordiais à reflexão sobre a
formação dos indivíduos: o que os estudantes devem saber? Para este autor, as diferentes
teorias veiculadas na atualidade discutem a seleção de conhecimentos considerados
importante a ser oferecidos aos estudantes e, por isso, necessariamente se remetem ao
currículo. Entretanto, a pergunta “‘o que’ ensinar aos estudantes não está separada de
outra extremamente importante: ‘o que eles devem ser?’ Ou, melhor, ‘o que eles ou elas

3
Tomaz Tadeu Silva é professor colaborador do Programa em Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
devem se tornar?’ Afinal, o currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão
seguir aquele currículo” (SILVA, 2005, p. 15).
O questionamento de Tomaz Tadeu Silva ressalva a importância do
currículo, pela sua dimensão formadora, pelas finalidades que através dele são
estabelecidas à sociedade. Por isso, diante de toda a amplitude e dimensão das políticas
educacionais, o currículo, ocupa um papel central, pois está voltado para a formação dos
indivíduos em sua totalidade: em sua subjetividade e sua conexão com a sociabilidade,
ou seja, através da sua práxis (atividade sensível transformadora mediada pela teoria), ou
seja, pela sua relação afetiva com o mundo, que passa pela formação da sensibilidade –
da capacidade de sentir e pensar o mundo.
É essa dimensão da formação humana que é solapada na atual proposição
do currículo no ensino básico, lançando os indivíduos a um grau de superficialidade que
intensifica a fragmentação social. O desenvolvimento da capacidade de abstração que
poderia ser iniciado na infância é prorrogado para as séries finais da educação básica, o
que promove um retardamento do desenvolvimento da capacidade intelectiva dos
indivíduos. A propositura curricular associada à pedagogia do aprender a aprender
complementam com sucesso o movimento filosófico que tem como alvo o desmonte do
pensamento: a capacidade de compreender e sentir o mundo em sua dimensão mais
ampla, histórica, geográfica, filosófica.
Se os movimentos científicos, filosóficos e artísticos que ocorreram no
Renascimento e no Iluminismo, com seus reflexos até o século XX, impulsionaram os
homens à expansão de suas individualidades – da interioridade e da intelecção –,
contrariamente, os movimentos filosóficos que alcançaram irradiação a partir da segunda
metade de 1970 pretendem retornar ao primitivismo dos impulsos instintivos e biológicos.
Desse modo, é possível afirmar que, o modelo de educação instaurado
revela uma ruptura com os princípios humanistas que nortearam a formação dos
indivíduos desde a Antiguidade, problema que também é apresentado por Tomaz Tadeu
da Silva ao tratar das diferentes tendências filosóficas que norteiam o currículo. Segundo
Silva,

É interessante observar que tanto os modelos mais tecnocráticos, como os de


Bobbitt4 e Tyler5, quanto os modelos mais progressistas de currículo, como o

4
John Franklin Bobbitt (1876-1956) nasceu em Indiana, na Inglaterra, tornou-se especialista em Currículo
e atuou como professor na Philippine Normal School, em Manila.
5
Ralph Tyler (1902-1994) nasceu em Chicago (EUA) foi educador e atuou como diretor emérito do Centro
de Estudos Avançados de Ciências Comportamentais na Universidade de Chicago - EUA.
de Dewey, que emergiram no início do século XX, nos Estados Unidos,
constituíam, de certa forma, uma reação ao currículo clássico, humanista, que
havia dominado a educação secundária desde sua institucionalização. Como
se sabe, esse currículo era herdeiro do currículo das chamadas “artes liberais’
que vindo da Antiguidade Clássica, se estabelecera na educação universitária
da Idade Média e do Renascimento, na forma dos chamados trivium
(gramática, retórica, dialética) e quadrivium (astronomia, geometria, música,
aritmética). Obviamente, o currículo clássico humanista tinha implicitamente
uma “teoria” do currículo. Basicamente, nesse modelo, o objetivo era
introduzir os estudantes ao repertório das grandes obras literárias e artísticas
das heranças clássicas grega e latina, incluindo o domínio das respectivas
línguas (SILVA, 2005, p. 26).
Dessa forma, Silva reitera a análise de que os conteúdos que compuseram
o currículo até o século XX traziam os princípios educativos originados na Grécia Antiga,
e tinham como foco a formação integral do ser humano, envolvia a formação teórica e da
sua interioridade, pela educação da sensibilidade e dos sentimentos. A música estava
inserida no currículo, composto por disciplinas científicas, filosóficas e literárias desde a
tenra infância. Mas, como ressalta Tomaz Tadeu da Silva, os defensores do currículo
contemporâneo criticaram com veemência o modelo humanista: os tecnocráticos o
combateram por considerá-lo inútil para a vida moderna e para o trabalho. Consideravam
que o grego e o latim, e as literaturas não serviam para a formação profissional dos
indivíduos, nem aceitavam o argumento de que o latim auxiliava no exercício dos
músculos mentais. Os progressistas criticam o modelo clássico porque não estavam
adequados às necessidades e interesses das crianças, pois seu foco estava concentrado na
difusão das disciplinas clássicas e não na psicologia infantil. Tomaz Tadeu Silva ressalta:
“O currículo clássico só pôde sobreviver no contexto de uma escolarização secundária de
acesso restrito à classe dominante. A democratização da escolarização secundária
significou o fim do currículo humanista clássico” (SILVA, 2005: 27). No momento em
que passa a ocorrer a expansão da escola pública, as classes dominantes modificam o
currículo a ser oferecido às classes trabalhadoras e populares.
As diversas tendências teóricas entrelaçadas no atual modelo de educação
– diametralmente oposto ao modelo clássico humanista – convergem toda a formação do
indivíduo ao âmbito cognitivo e do trabalho, tendência que foi sendo fortalecida ao longo
do século XX até se tornar predominante nesta primeira década do século XXI.
Ralph W. Tyler foi um especialista em currículo que muito influenciou as
reformas educacionais nos Estados Unidos e, por conseguinte, também influenciou na
configuração do modelo educacional vigente. Tyler (1978), em defesa das reformas
realizadas nos Estados Unidos, distinguiu duas tendências na organização do currículo:
os progressistas, que se posicionaram pela compreensão dos interesses da criança e os
essencialistas6, que viam no currículo um veículo de preservação e defesa da herança
cultural. Para os progressistas, os objetivos devem atender os interesses das crianças, para
os essencialistas, nas aprendizagens básicas devem conter o tesouro cultural do passado.
Para Tyler, o currículo deveria estar voltado para o trabalho e, por isso, os objetivos da
escola primária deveriam estar direcionados ao desenvolvimento de “aptidões
ocupacionais, de modo que esses meninos e meninas pudessem obter imediatamente um
emprego” (TYLER, 1977, p. 13). E para lidar com a resistência de professores, que
defendiam a educação como formação geral do indivíduo, afirmava que era preciso
modificar a formação de professores, ajustando-a aos novos tempos. Tyler afirmava que
o currículo deveria atender as necessidades das crianças, mas não poderia descuidar de
ajustá-lo às condições de sobrevivência dos mais necessitados para saberem lidar com
suas dificuldades (não exatamente superá-las).
Para firmar sua posição no enfrentamento às diferentes posições sobre o
currículo, Tyler ressalva ainda que, antes da Revolução Industrial era possível manter os
conteúdos que eram pertinentes à herança cultural na escola, entretanto, “com o tremendo
acréscimo do conhecimento que se acelerava a cada geração depois do advento da ciência,
as escolas compreenderam que já não era mais possível incluir nos seus programas tudo
que era aceito pelos sábios” (1978, p. 15). E para se contrapor aos essencialistas, Tyler
buscou referências no positivista Herbert Spencer7 para justificar as suas propostas em
torno do currículo, pois desponta com força cada vez mais intensa a ideia de uma
formação centrada em determinados conhecimentos, habilidades e aptidões. Segundo
Tyler, os essencialistas fizeram árdua crítica ao currículo norte-americano atual por ele
lançar os estudantes ao “presentismo”, para manter a reflexão da vida apenas no presente.
Para rebater as críticas, afirma que o novo currículo norte-americano dava vazão à
compreensão de princípios básicos, pois os estudantes esqueciam as matérias de um ano

6
Esta tendência denominada essencialista constituiu-se num movimento em defesa da formação humanista
e enciclopédica. O conteúdo de suas reivindicações também apareceu na Europa e no Brasil. Em resposta
a essas duas correntes o escritor polaco Bogdan Suchodolski (1902-1992) escreveu A pedagogia e as
grandes correntes filosóficas – a pedagogia da essência e a pedagogia da existência, publicada pela Livros
Horizonte, Lisboa, 1977.
7
Herbert Spencer (1820-1903) foi um renomado sociólogo inglês, admirador dos estudos de Charles
Darwin. A ele foi atribuído a origem da concepção do darwinismo social, entretanto, esta expressão não
consta em suas obras.
para outro e, portanto, era mais conveniente concentrar os estudos nos conteúdos da
língua portuguesa, ciências, aritmética e utilizar tais conhecimentos na vida cotidiana.
Em seus argumentos, Tyler não evidenciou apenas o debate travado nos
Estados Unidos em torno das mudanças ocorridas na composição do currículo, como
também trouxe à tona a filiação do seu pensamento ao escolanovismo e a sua contribuição
ao fortalecimento desta tendência na reformulação dos currículos em âmbito
internacional. Mas em sua crítica à posição dos essencialistas evidenciou uma categoria
que merece a nossa atenção: o fenômeno do presentismo ressaltado pelos essencialistas
vem se tornando cada vez mais efetivo e abrangente na sociedade. A formação dos
indivíduos está sendo direcionada quase que exclusivamente à resolução de problemas no
âmbito do cotidiano.
O português João M. Paraskeva8 (2004), da Universidade do Minho,
também reitera o confronto de duas tendências na educação na virada do século XIX para
o XX, período em que se deu a consolidação do desenvolvimento industrial e das
instituições econômicas nos Estados Unidos. Esse fato resultou num movimento em prol
de uma nova identidade americana e a formulação de uma nova concepção de ensino,
mais adequado à formação para o trabalho e para o conhecimento prático das ferramentas
e outros mecanismos, promovida por Washington e W. Du Bois, projeto que contou com
a oposição da corrente humanista encabeçada por W. Harris e C. Eliot. João M. Paraskeva,
no livro Um Século de Estudos Curriculares (2005) também chama a atenção para
aspectos relevantes sobre as características do modelo de ensino consolidado na
atualidade. Ele destaca o projeto neoliberal na composição do currículo adequando-o aos
interesses do mercado, pois a questão não é nova, mas adquiriu relevância pela força desse
movimento na atualidade. Por longos anos foi mantido na Europa a visão de que a
educação teria uma tarefa prática de eugenia e eficiência social. Essa tendência
conservadora tem a sua estratégia modificada: se no passado reivindicavam o
solapamento da verdade, hoje alardeiam que as tradições e os valores morais foram
solapados e lançam sobre os ombros das escolas e da categoria docente a responsabilidade
pelos males que atingem a educação, afirmando que existe a igualdade de oportunidades,
mas que falta empenho para este objetivo ser atingido. O que evidencia que as críticas
realizadas aos professores são as mesmas em diferentes países.

8
João M. Paraskeva é professor do Instituto de Educação e Psicologia na Universidade do Minho, Portugal,
e editor da Revista Currículo Sem Fronteira – revista para uma educação crítica e emancipatória.
Em relação à construção do currículo no Brasil, Rosa Fátima de Souza9
(1993) destaca a forte influência do pensamento norte-americano desde meados dos anos
de 1920, o que gerou o longo debate entre os pensadores que defenderam os conteúdos
como referência central na formação escolar e os pensadores que colocaram em primeiro
plano a realização de experiências e a psicologia infantil. Mas é precisamente a partir da
década de 1960 que ocorreu um estreitamento desse acirramento, quando eclode a
ditadura militar no Brasil juntamente com os movimentos de contracultura, e produções
teóricas questionadoras da estrutura de ensino.
Antônio Flavio Barbosa Moreira10 (1995) destaca outros aspectos sobre o
currículo, particularmente sobre as discussões realizadas no Brasil a partir da década de
60, período em que ocorreu com intensidade o embate entre dois segmentos acerca do
desenvolvimento econômico brasileiro. Sob a ditadura militar ocorreu o aprofundamento
dos elos com o mercado internacional, e o interesse pela busca de modelos estrangeiros
para a educação, e pela introdução da racionalidade técnica no planejamento escolar. Em
busca de reflexões que lancem alternativas aos redirecionamentos realizados no perfil
formativo dos indivíduos nos últimos anos pelas políticas educacionais, Antônio Flavio
B. Moreira reconstitui as posições de dois intelectuais dedicados ao estudo do currículo
por não perderem de vista no campo de suas análises os fatores econômicos, ideológicos,
culturais e sociais que norteiam e interferem na composição da grade curricular. Diante
do atual cenário mundial, Michael Apple11 ressalta a necessidade de se levar em
consideração os aspectos da reprodução social presentes no currículo, mas também de
pode conter elementos de resistência e conflito e é exatamente aí que educadores devem
confluir o seu trabalho. Henry Giroux12 também ressalta a presença no currículo de
concepções que primam pelo controle social, e como alternativa evoca o compromisso
pela emancipação humana. (MOREIRA, 1995, p. 75).
E de fato, a única alternativa que se põe aos indivíduos diante do
embrutecimento engendrado cotidianamente no espaço que deveria realizar a produção

9
Rosa Fátima de Souza é professora adjunta da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no
Departamento de Ciências da Educação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar
da Faculdade de Ciências e Letras/UNESP/Campus de Araraquara.
10
Professor Titular da Universidade Católica de Petrópolis, Vice-Presidente da Associação Nacional de Pó-
Graduação e Pesquisa em Educação
11
Michael Apple, professor da University of Wisconsin-Madison, EUA, e autor de algumas das obras mais
relevantes da educação nos últimos anos, como “Ideologia e Currículo”, “Educação e Poder”, “Professores
e Textos”, “A Escola Democrática”, “Educando à Direita”, “Política Cultural e Educação”.
12
Professor norte-americano, estudioso do pensamento de Paulo Freire, representante da teoria crítica
educacional, vem questionando a redução da prática educativa a uma atividade instrumentalizada.
do humano através do pleno desenvolvimento da individualidade, é a luta pela
emancipação humana. Como percebemos neste capítulo, muitas análises importantes vêm
ocorrendo em torno do currículo, principalmente pela reconstituição histórica que os
intelectuais realizaram acerca das mudanças efetivadas na educação. Contudo, a
atualidade é marcada por diferentes perspectivas direcionadas à emancipação humana, e
muitas delas aceitam com tranquilidade o pacto social incorporado nas políticas
educacionais, e por isso, algumas correntes filosóficas pós-modernas, ditas
emancipatórias, acabam por confundir e emperrar as possibilidades de transição para o
futuro. Nesse sentido, torna-se imprescindível uma avaliação mais precisa sobre os
princípios teóricos engendrados nas políticas educacionais e seus entrelaçamentos na
formação dos indivíduos e nos processos de ensino e aprendizagem.
Como afirmamos na primeira parte deste texto, até meados da década de
80 os processos de aprendizagem eram pautados por conteúdos pertinentes à Educação
Física, Educação Musical, Artes, História, Geografia, Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, desenvolvidos na educação infantil, ensino fundamental e secundário, e os fins
da educação estavam direcionados à formação integral da personalidade dos indivíduos.
Entretanto, é exatamente essa gama de conhecimento que foi solapado, fragmentado e
pulverizado nos processos formativos em todas as esferas da educação básica até o ensino
superior.
Não por acaso, paulatinamente a escola foi sendo levada a um processo de
reestruturação, cujos resultados revelam excessiva burocratização, aproximação da
orgânica escolar à linha de montagem, instalação de uma gestão escolar extremamente
controladora da prática educativa: a atual estrutura de educação aprofundou o controle do
Estado sobre a educação13. O aprofundamento teórico que poderia fornecer ao indivíduo
as condições para compreender o mundo, desenvolver a sensibilidade, o conhecimento da
pintura e da música, da arte em geral, e estabelecer uma relação mais estreita entre
indivíduo e a sociedade, todas essas possibilidades foram solapadas. Como ressaltaram
Sartório, Dolnikoff, Schuck e Nascimento,

os gestores do capital, sob a liderança estadunidense, no processo de


acirramento da guerra fria e das transformações estruturais na lógica de
produção capitalista, precisavam consolidar novas perspectivas de ensino e
encontrar amparo na lei para romper com as perspectivas de homem que

13
Até a primeira metade do século XX era muito comum encontrar escolas conduzidas apenas pelo trabalho
do professor ou, quando muito, contava apenas com a presença de um diretor e um escrevente. A partir da
década de 1960 ocorreu um processo paulatino e ascendente de uma estrutura gigantesca coordenada pela
divisão do trabalho, burocratização e fiscalização.
estavam estabelecidas anteriormente. Por isso, também, foi necessário mais
uma vez adequar a educação às novas necessidades capitalistas (2008, p. 8).
Situado o contexto em que se deu o processo de transformação das
finalidades, objetivos e conteúdos estabelecidos à formação dos indivíduos, interessa-nos
retomar às reflexões desenvolvidas por Tomaz Tadeu Silva: “Qual será o tipo de ser
humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e
ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizada e competitiva dos
atuais modelos neoliberais de educação? Ou será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania
do moderno estado-nação?” (SILVA, 2005, p. 15). Não reconhecemos nos ideais de
cidadania do estado-nação moderno alguma possibilidade de emancipação e realização
do indivíduo, mas julgamos pertinentes as perguntas lançadas por Tomaz Tadeu Silva por
provocar a reflexão sobre os conteúdos e objetivos selecionados para tecer a formação
dos indivíduos. Como ele salienta, o currículo é uma palavra originada do Latim:
curriculum faz alusão à pista de corrida, pois através do percurso realizado é que nos
tornamos o que somos. Assim, currículo é geralmente tomado como conhecimento, mas
antes está ligado à formação do que somos efetivamente, à formação da nossa identidade
e da nossa subjetividade, questão fundamental para compreendermos os norteamentos
dados à composição do currículo nesses últimos vinte anos.
O atual modelo de educação possui um currículo resultado de um intenso
movimento de ideias de pensadores que se colocaram no campo da filosofia experimental,
contrariamente à filosofia e à história. O movimento escolanovista foi iniciado por
Dewey, mas contou com o apoio e difusão de Jean Piaget, intelectual que muito contribuiu
nos assuntos sobre educação na Unesco. Edgar Faure14 e mais recentemente15 Jacques
Delors, também exerceram papel determinante na definição de princípios para orientar a
prática educativa de milhões de pessoas de diferentes países. E no momento atual,
Philippe Perrenoud16 e Donaldo Schön17 são os intelectuais que mais condensam o
movimento de ideias travado no século XX e contribuem intensamente para o ajustamento
e arremate dos princípios pragmatistas na educação no momento atual.

14
Edgar Faure (1908-1988) foi um político francês que atuou como primeiro ministro entre os anos de 1952
e 1956. Na década de 60a atuou na Comissão Internacional sobre Educação, na Unesco, através da qual
produziu o livro Aprender a Ser.
15
O Francês Jacques Delors (1925- ) atuou como presidente na Comissão Europeia entre 1985 e 1995,
escreveu e organizou o relatório Educação, um tesouro a descobrir (1996) para a Comissão Internacional
sobre Educação para o século XXI, da Unesco.
16
O suíço Philippe Perrenoud é professor da Faculdade de Psicologia e Educação da Universidade de
Genebra, e atualmente é um dos sociólogos mais influentes na educação em âmbito mundial.
17
Donald Schön (1930-1997) foi um pedagogo norte-americano que atuou como professor no Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, e desenvolveu estudos sobre a formação do profissional reflexivo.
As propostas de Perrenoud estão articuladas aos quatro pilares da educação
de Jacques Delors, à epistemologia de Jean Piaget, à prática reflexiva de Donald Schön.
Em consonância com o pragmatismo de John Dewey18, Philippe Perrenoud defende que
a apreensão dos conteúdos são menos necessários que a formação de habilidades e
competências, pois estas se remetem diretamente à formação de atitudes que os indivíduos
devem tomar para cada situação posta no cotidiano. Perrenoud consagra a destituição do
conhecimento alegando que é muito mais necessário aos indivíduos obterem algumas
noções de praticidade relacionadas à sua sobrevivência.
As produções teóricas de Perrenoud exercem influência sobre o atual
modelo educacional orientado para o desenvolvimento de competências e habilidades, e
corrobora com a metodologia de ensino pautada pela psicolinguística. Mas seu
pensamento aprofunda os conceitos pertinentes ao pragmatismo – que na área da
educação foi difundido por John Dewey – grande responsável pela consagração deste
movimento iniciado no final do século XIX por Charles Peirce19, movimento que no
decorrer do século XX realizou intenso combate aos defensores da educação
propedêutica, enciclopédica e humanista.
Pelo fato de Perrenoud dar continuidade aos princípios do pragmatismo de
Dewey e do construtivismo de Piaget – bases das políticas educacionais e das mudanças
no processo de ensino-aprendizagem – olharemos com mais atenção alguns dos conceitos
que sustentam este ideário no capítulo a seguir

18
John Dewey (1859-1952) foi filósofo e pedagogo norte-americano.
19
Charles S. Peirce (1839-1914), filósofo, cientista e matemático norte-americano, foi fundador do
pragmatismo e da semiótica.

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