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FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E CURRICULARES DO ENSINO


RELIGIOSO – Módulo 1
Ir. Clóvis Trezzi, fsc

O Ensino Religioso, enquanto componente curricular, é relativamente novo nas


escolas brasileiras. Ele surge na legislação a partir da década de 1930. Antes disso há,
em primeiro lugar uma confusão entre os papeis da religião e da escola, bem como em
um determinado momento um silêncio completo sobre o assunto.
Neste texto, que faz parte do curso de extensão “Ensino Religioso”, preparado
pela Rede La Salle em parceria com a Universidade La Salle, veremos como isso
aconteceu e quais os fundamentos que embasam cada etapa da história do Ensino
Religioso. Este módulo dedica-se ainda a olhar para o Ensino Religioso na legislação
brasileira, bem como a atualizar algumas ideias e conceitos referentes presentes nos
nossos dias.
O curso está dividido em três módulos, sendo este o primeiro. No segundo
módulo, será estudado o Ensino Religioso na BNCC e na Matriz Curricular da Rede La
Salle. No terceiro, pensaremos no Ensino Religioso aplicado no século XXI. Iniciamos
este texto com um estudo histórico que tem o objetivo de situar o ensino religioso na
história da educação, o que ajudará a compreender os seus fundamentos, ou a sua razão
de existir enquanto área do conhecimento.

1. “O Cristianismo dá origem à escola”

Iniciamos este tópico com a ideia apresentada por Gauthier (2014, p. 57) de que
“o cristianismo dá origem à escola”, porque “para ser cristão é preciso ser instruído”.
Sendo o cristianismo uma religião cuja doutrina remete às grandes escolas filosóficas, a
formação escolar é fundamental para compreender as verdades da fé. Portanto, a relação
desta religião com a educação é muito estreita, desde os primórdios fundacionais do
Cristianismo.
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É verdade que religião e educação estão muito ligadas no mundo ocidental. É


também claro que antes do cristianismo já existiam escolas, tanto no Oriente quanto no
Ocidente. É igualmente certo que na Idade Média por muito tempo o próprio
Cristianismo se opunha à escolarização dos fiéis. Apesar disso, é o Cristianismo,
detentor do poder intelectual no Ocidente, que mantém, protege e assegura a
permanência da cultura. As bibliotecas eram guardadas nos mosteiros, e nestas
bibliotecas os monges “transcrevem os manuscritos, escrevem crônicas, traduzem
obras” (GAUTHIER, 2014, p. 59).
Foi também no começo da Idade Média que surgiram as primeiras escolas
cristãs: as monacais, as episcopais e as presbiterais. Estas escolas – que não eram
destinadas ao público em geral, mas à formação do clero – tinham como objetivo
garantir que os ensinamentos das Sagradas Escrituras chegassem aos fiéis, uma vez que
estes não tinham acesso às mesmas. Gauthier (2014, p. 60) destaca que os cristãos
leigos não se associavam às escolas cristãs, pois estas não eram para eles, mas
frequentavam as poucas escolas laicas, chamadas de pagãs. Por isso a importância ainda
maior da formação do clero, para evitar que os fiéis se perdessem.
Cambi (1999, p. 146) diz que na Idade Média a educação
“se desenvolve em estreita simbiose com a Igreja, com a fé cristã e com as
instituições eclesiásticas. [...] Da Igreja partem os modelos educativos e as
práticas de formação, organizam-se as instituições ad hoc e programam-se as
intervenções, como também nela se discutem tanto as práticas como os
modelos.”

Embora a escola tenha surgido na Idade Média, como definem Durkheim (2002)
e Cambi (1999), não é desse período o modelo escolar que conhecemos na atualidade,
mas da Idade Moderna, mais especificamente do século XVII. A escola moderna surgiu
como uma evolução do pensamento do humanismo quinhentista. E, mais uma vez,
nasceu motivada pelo Cristianismo. A defesa da necessidade da educação como forma
de compreender a Sagrada Escritura, que deveria estar acessível a todos, foi retomada
por Martinho Lutero, ao fixar suas 95 teses na Catedral de Wittenberg em 15171.

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As 95 teses de Lutero podem ser encontradas em: https://www.luteranos.com.br/lutero/95_teses.html.
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Nestas teses, Lutero repete várias vezes: “Deve-se ensinar aos cristãos...”.
Deixava claro que a ignorância é nociva para os cristãos, pois quando eles não
conhecem aquilo em que creem podem ser enganados por seus líderes. Também
demonstrava que a religião não pode ser algo puramente devocional, mas precisa ser
compreendida à luz da razão.
Essas teses iam contra aquilo que a Igreja defendia até então, e por isso Lutero,
monge agostiniano e renomado professor de Teologia, foi considerado herege e
excomungado. Contudo, elas abriram as portas para que a Igreja Católica, com o
Concílio de Trento (1545-1563), passasse a considerar a educação como um meio para
chegar à salvação. A Companhia de Jesus (Jesuítas), ainda no século XVI, teve uma
grande importância nesse processo ao inventar o Colégio como uma forma de propagar
a fé. Os Jesuítas assumiram a tarefa da evangelização, tanto que poucos anos depois da
fundação (1534), a jovem Ordem Religiosa chegava ao Brasil em 1549 e dava início ao
processo de evangelização dos indígenas e à fundação de colégios. Não se pode
esquecer o legado dos Frades Franciscanos que aqui estavam desde a chegada dos
portugueses e também tiveram um papel importante na cristianização do Brasil.
No século XVII nasceu a Pedagogia, considerada por Gauthier (2014, p. 102)
como “uma reflexão consciente e ordenada sobre a maneira de fazer e de organizar a
classe”. No início do século XX, Durkheim (2013, p. 75) já concebia a pedagogia como
teorias que “explicitam as maneiras de conceber a educação, não de praticá-las”. De
todos os modos, considera-se pedagogia uma reflexão intencional sobre o fazer
educativo. A Pedagogia nasceu junto com a educação moderna e, como afirmado em
página anterior, movida pelo pensamento cristão.
Os diversos historiadores que descrevem as escolas existentes no começo do
século XVII o fazem demonstrando que não havia educação escolar sistematizada até
então. Os professores não tinham preparação efetiva para isso, limitando-se a ensinar
aquilo que sabiam; não existia um método pedagógico – cada professor ensinava a uma
criança de cada vez e o fazia do seu jeito; não havia um espaço escolar adequado – cada
professor ensinava onde bem lhe aprouvesse, seja na própria casa, seja em outro lugar.
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Na primeira metade do século XVII começaram a surgir as primeiras escolas


organizadas, que eram as escolas paroquiais. O Cônego Jacques de Batencour escreveu,
em 1654, o manual L’école paroissiale (A escola paroquial) no qual descrevia como
deveria ser organizada a escola, inclusive com detalhes sobre o mobiliário. Gauthier
(2014, p. 103) coloca nas mãos de quatro pedagogos cristãos os pilares da pedagogia
moderna: Jan Amos Comenius (1592-1670), Charles Démia (1637-1689), João Batista
de La Salle (1651-1719) e Jacques de Batencour.
A escola moderna nasce de uma nova realidade: o surgimento da modernidade,
que trouxe consigo a visão de que o ser humano pode ser protagonista de sua própria
história. Junto com a modernidade surgiu a ciência, que trouxe consigo o método. Não à
toa, o século XVII é chamado de século do método, alcunha devida, principalmente, ao
fato de René Descartes (1596-1650), autor do Discurso sobre o método, ter vivido nesse
século. A escola que nasceu nesse período uniu vários elementos, dentre os quais
destacamos: a visão cristã de salvação pelo conhecimento; a consolidação do ideal
humanista de que o ser humano está no centro das ideias, e não mais Deus; o
surgimento do método científico.
São João Batista de La Salle é um legítimo representante desse tempo. A partir
da iniciativa de Adrien Nyel, educador popular de Rouen, na França, La Salle iniciou,
em 1680, a Sociedade das Escolas Cristãs, uma rede de escolas destinadas a atender, de
forma gratuita, os filhos dos artesãos e dos pobres. Associou-se a um grupo de
professores, aos quais qualificou para o trabalho educativo, e passou a atender aos
meninos, unindo o novo paradigma cristão ao novo paradigma científico.
Associado a esses fatores estava o inchaço urbano que levava crianças e
adolescentes às ruas e, consequentemente, a cometer crimes e delitos, além da alta
mortalidade infantil, que ultrapassava os 70% nas camadas mais pobres e tornava essas
crianças necessitadas de salvação, expressão usada muitas vezes por La Salle nas suas
Meditações. A salvação, assim expressa, significava tanto a salvação da alma quanto a
salvação dos perigos do mundo, dentre eles a fome, a miséria, o desemprego, a violência
e a morte.
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O resultado foi uma escola que conseguia associar ciência e conteúdos religiosos
– dentro do modelo de pensamento da época. Nas Escolas Cristãs de La Salle, bem
como nas demais escolas iniciadas nesse período, o conhecimento científico servia
como base tanto para a organização da própria escola quanto para as atividades
curriculares. A partir da religião se ensinava ciência.
Assim, segundo Gauthier (2014), Cambi (1999) e Manacorda (2010) a escola
moderna surgiu na Europa, um modelo de escola que perdurou até a Revolução
Francesa, no final do século XVIII. Com a Revolução Francesa institui-se o Estado
laico, e as congregações religiosas foram expulsas da França, bem como as escolas
cristãs fechadas. Contudo, e para não alongar demais essa parte, pode-se afirmar que a
escola moderna nasceu cristã e manteve essa identidade, apesar de a moderna
compreensão de mundo exigir – e com razão – uma educação laica.

2. E no Brasil?
No Brasil, a educação seguiu uma trajetória parecida, e não podia deixar de ser,
uma vez que o Brasil foi dependente de Portugal por três séculos. Por aqui, contudo, a
defesa da educação para todos, que já existia na Europa desde o final do século XVI,
chegou tardiamente.
A partir deste tópico, nos voltaremos mais ao Ensino Religioso, uma vez que é
este o objeto do curso. Os dados históricos até aqui apresentados servem para mostrar
que a trajetória do Ensino Religioso passou por dois momentos antes de aparecer na
legislação educacional brasileira: o primeiro quando não era necessário, uma vez que a
educação em si mesma era cristã e trabalhava-se religião e ciência em conjunto, sem
conflitos; e o segundo, quando não era permitido, já que o ensino deveria ser laico.
Voltando o olhar para a educação brasileira, encontramos estes dois momentos
bastante definidos mas, ao mesmo tempo, um tanto confusos, como se verá nos
parágrafos que seguem. Alguns dados aqui apresentados foram destacados por Schütz
(2020) em sua dissertação de Mestrado, mas podem ser encontrados em bons livros de
História da Educação no Brasil.
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Assim como aconteceu na Europa, mormente na França, que é berço da


educação moderna, a educação no Brasil nasceu cristã, principalmente católica. Já na
chegada dos portugueses, os Franciscanos foram os primeiros catequizadores dos
nativos que aqui viviam, mas sem intenção de constituir escolas (lembremos de que no
século XVI nem mesmo na Europa se pode falar em um sistema escolar organizado).
Menos de meio século depois, chegaram os Jesuítas, estes sim especialistas em
educação que fundaram colégios, primeiro na Bahia e depois em São Paulo.
Segundo Albuquerque (1993, p.18),

o projeto educacional jesuítico obteve resultados significativos, tais como: “a


transmissão de uma educação homogênea — mesma língua, mesma religião,
mesma visão de mundo, mesmo ideal de ‘homem culto’, ou seja, letrado e
erudito — plasmando, de norte a sul, uma identidade cultural; a catequese
como processo de aculturação, embora destrutiva, de filhos de colonos e
órfãos, trazidos de Portugal, com meninos índios e mestiços, elidindo a
distinção de raças e dissolvendo costumes não europeus; a contraposição da
escola e da Igreja à autoridade patriarcal da casa-grande.

Expulsos os jesuítas do Brasil em 1759 pela Reforma Pombalina, antes mesmo


da Revolução Francesa estabelecer os ideais de laicidade do Estado, o Brasil passou
cerca de dez anos não apenas sem educação religiosa, mas sem um projeto de educação.
Só na década de 1770 foram implantadas as “aulas régias”, consideradas a primeira
experiência de educação pública no Brasil. Apesar de a expulsão dos Jesuítas ter sido
motivada em parte pelos ideais iluministas de Pombal, e educação laica durou pouco
mais de meio século no país.
Com a proclamação da Independência, o Brasil assumiu o status de Império e,
portanto, não dependia mais nem econômica nem politicamente de Portugal, pelo menos
em teoria. Podia, assim, ter suas próprias leis e ideologias. Logo, a religião oficial do
Império era também a que predominava em todos os setores, incluindo a educação. A
Constituição de 1824 afirmava: “Art. 6º – Os professores ensinarão a ler, escrever, as
quatro operações de aritmética […] e os princípios de moral cristã e da doutrina católica
e apostólica romana […]”.
Até a proclamação da República, em 1899, a educação era, efetivamente,
católica no Império, tanto nos ensinamentos doutrinários quanto morais.
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A República trouxe um novo modo de conceber a educação no Brasil, nos


moldes europeus. A Constituição de 1891, primeira da República, simplesmente
anunciava no Art. 72, § 6º: “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos
públicos.” Nada mais. Ruedell (2005) diz que havia um silêncio legal, mas não uma
proibição ao Ensino Religioso. Logo, não havendo sanções muitas escolas, inclusive as
públicas, continuaram com o modelo educacional do Império, replicando a doutrina
católica. Além disso, as inúmeras congregações religiosas que se instalavam no Brasil –
entre eles os Irmãos Lassalistas, que chegaram ao Brasil em 1907 - adotavam a
educação confessional católica.
A Constituição de 1891 tinha definido a laicidade do Estado e, ao mesmo tempo,
a liberdade de culto:
Art. 1º E' prohibido à autoridade federal, assim como á dos Estados
federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos,
estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear diferenças entre os
habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por
motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de
exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas
nos actos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.

Com a definição de liberdade de culto, e sem previsão legal, o ensino


confessional continuou existindo; no começo do século XX os protestantes, com quem
D. Pedro II tinha uma boa aproximação, já tinham estabelecido escolas também no
Brasil, de modo que o monopólio católico não mais existia. Isso levou os intelectuais da
Educação Nova a reclamarem, no famoso Manifesto, o direito à educação gratuita e
laica, pois o Estado tinha se descuidado disso.

3. O Ensino Religioso presente na legislação brasileira


Foi somente em 1931 que, pela primeira vez, o Ensino Religioso apareceu em
uma lei brasileira. Foi essa lei que deu mais força aos intelectuais para elaborarem o
manifesto em 1932. Se até então, sem previsão legal, o Estado não tinha conseguido
instituir a educação laica, agora com a presença em lei havia um receio de que toda a
educação brasileira se tornasse religiosa.
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Dizia o Decreto 19.941, de 1931:


Art. 1º Fica facultado, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária
e normal, o ensino da religião.
Art. 2º Da assistência às aulas de religião haverá dispensa para os alunos
cujos pais ou tutores, no ato da matrícula, a requererem.
Art. 3º Para que o ensino religioso seja ministrado nos estabelecimentos
oficiais de ensino é necessário que um grupo de, pelo menos, vinte alunos se
proponha a recebê-lo.
Art. 4º A organização dos programas do ensino religioso e a escolha dos
livros de texto ficam a cargo dos ministros do respectivo culto, cujas
comunicações, a este respeito, serão transmitidas às autoridades escolares
interessadas.
Art. 5º A inspeção e vigilância do ensino religioso pertencem ao Estado, no
que respeita à disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere
à doutrina e à moral dos professores.
Art. 6º Os professores de instrução religiosa serão designados pelas
autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado.
Art. 7º Os horários escolares deverão ser organizados de modo que permitam
os alunos o cumprimento exato de seus deveres religiosos.
Art. 8º A instrução religiosa deverá ser ministrada de maneira a não
prejudicar o horário das aulas das demais matérias do curso.
Art. 9º Não é permitido aos professores de outras disciplinas impugnar os
ensinamentos religiosos ou, de qualquer outro modo, ofender os direitos de
consciência dos alunos que lhes são confiados.
Art. 10. Qualquer dúvida que possa surgir a respeito da interpretação deste
decreto deverá ser resolvida de comum acordo entre as autoridades civis e
religiosas, a fim de dar à consciência da família todas as garantias de
autenticidade e segurança do ensino religioso ministrado nas escolas oficiais.
Art. 11. O Governo poderá, por simples aviso do Ministério da Educação e
Saúde Pública, suspender o ensino religioso nos estabelecimentos oficiais de
instrução quando assim o exigirem os interesses da ordem pública e a
disciplina escolar.

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando de


Azevedo e assinado por diversos intelectuais e divulgado em 1932 deixou o novo
governo com um problema: por um lado atender o Manifesto, que foi repudiado pela
Câmara dos Deputados, mas que exigia o cumprimento da lei republicana, e por outro a
Igreja Católica, que demonstrava a necessidade de regulamentar o Ensino Religioso.
Buscando um equilíbrio, a Constituição de 1934 trouxe:

Art. 153: O ensino religioso será de frequência facultativa e ministrado de


acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos
pais ou responsáveis, e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas
primárias, secundárias, profissionais e normais.

Três anos depois, a nova Constituição de Vargas mudou a redação para melhor
atender aos escolanovistas:
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Art. 133 - O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso
ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém,
constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência
compulsória por parte dos alunos.

Começava, assim, a era do Ensino Religioso como componente curricular, mas


de matrícula não obrigatória e sem ônus para o Estado, o que se manteve desde então
até a promulgação da LDB 9394/96. Com poucas mudanças, este princípio foi
referendado pela primeira Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Esta LDB acrescentou um
ponto importante: O Ensino Religioso passou a ser de oferta obrigatória, diferente do
que rezava a Constituição de 1937.
Um olhar crítico pode verificar um duplo movimento de valorização, mas ao
mesmo tempo de desvalorização desta área do conhecimento. Se, por um lado, ela era
valorizada por ser colocada ao lado das demais áreas como sendo de oferta obrigatória e
respeitava a liberdade de crenças ao não exigir a matrícula, o fato de o Estado não se
comprometer economicamente com o Ensino Religioso mostra que não dava a ele
exatamente o mesmo valor que às demais matérias.
Pela Lei 5692/71, o Estado volta a assumir o ônus econômico do Ensino
Religioso, definindo, simplesmente: “Art. 7º: O ensino religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de
1º e 2º graus”, sem qualquer menção à laicidade do mesmo ou outro regulamento. Como
resultado, a confusão entre Ensino Religioso e Catequese continuou existindo.

4. O Ensino Religioso na LDB 9394/96 – Fundamentos legais


A Constituição de 1998, chamada de Constituição Democrática, assim rege:
“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de
maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais
e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.

Manteve praticamente a mesma redação das anteriores, mas deu origem a uma
reflexão mais extensa sobre o Ensino Religioso nos quase dez anos nas quais se
elaborou a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996,
especialmente por definir a necessidade de uma formação básica comum.
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A partir do legislado pela nova Constituição, o Congresso Nacional aprovou a


nova LDB, de número 9394/96. Sobre o Ensino Religioso, esta lei assim se pronuncia:
Art: 33: O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo
oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências
manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:
I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu
responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados
e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou
II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades
religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.

Esta redação, a primeira aprovada, procurou resgatar a ideia de que o Ensino


Religioso não teria ônus para os cofres públicos; um ano depois ela foi alterada pela Lei
9475/97:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade
cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição
dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a
habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes
denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

A nova redação permitiu aos sistemas de ensino a regulamentação do Ensino


Religioso, ao mesmo tempo em que se ouvia uma entidade civil para a definição dos
conteúdos. Na prática, a entidade ouvida foi o FONAPER (Fórum Nacional Permanente
de Ensino Religioso), entidade instituída em 1995 em Florianópolis e que reúne os
principais representantes, estudiosos e pesquisadores da área. A entidade é
interconfessional que, ainda em 1997, elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais
do Ensino Religioso.
A redação dada pela Lei 9475/97 foi mais adequada do que a original de 1996,
pois conseguiu ouvir a sociedade e definir com mais clareza como aconteceriam os
processos para trabalhar o Ensino Religioso nas escolas. A redação original não era
clara, pois ao tentar ser democrática, ou seja, ao definir o respeito irrestrito às opções
religiosas dos estudantes permitiu diferentes interpretações e não previu os problemas
práticos:
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como proceder se em uma escola vinte pais de diferentes denominações religiosas


exigissem o direito de receber educação de acordo com a sua denominação? Como a
escola poderia se organizar e como encontrar professores disponíveis para trabalhar de
forma gratuita, sem ônus para os cofres públicos?
Porém, a redação de 1997 deixou muitas lacunas. Uma delas foi a retirada da
possiblidade do Ensino Religioso confessional, mas ao mesmo tempo a possibilidade de
ouvir a sociedade para a definição dos conteúdos. Outra lacuna foi a formação dos
professores, que ficou a cargo dos sistemas de ensino. Assim, ao mesmo tempo em que
se eximia de se manifestar sobre os conteúdos, o poder público também se recusava a
formar professores nos conteúdos específicos do Ensino Religioso.
Isso não impediu que Universidades de várias cidades do Brasil mantivessem na
sua lista de cursos uma licenciatura em Ciências da Religião que, embora não fosse
exigida como critério para o professor trabalhar esta disciplina, pelo menos servia para
oferecer aos professores as bases teóricas. Sendo da área das Ciências Humanas, o
Ensino Religioso pode ser trabalhado por professores das diversas áreas de Humanas,
desde que portadores de diploma de licenciatura.
Em 1998 foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental, que definiram as seguintes áreas do conhecimento: 1. Língua Portuguesa;
2. Língua Materna (para populações indígenas e migrantes); 3. Matemática; 4. Ciências;
5. Geografia; 6. História; 7. Língua Estrangeira; 8. Educação Artística; 9. Educação
Física; 10. Educação Religiosa. Mesmo situando-se como área do conhecimento, o
Ensino Religioso continuou sem uma base nacional curricular ou uma formação
específica para os professores.
O parecer CNE-CEB 97/99 delegou definitivamente essa função aos sistemas de
ensino:
Não cabendo a União determinar, direta ou indiretamente, conteúdos
curriculares que orientam a formação religiosa dos professores, o que
interferiria tanto na liberdade de crença como nas decisões de Estados e
municípios referentes à organização dos cursos em seus sistemas de ensino,
não lhe compete autorizar, nem reconhecer, nem avaliar cursos de
licenciatura em ensino religioso, cujos diplomas tenham validade nacional.
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Apesar de todo o reconhecimento que agora o Ensino Religioso passou a ter e


das discussões realizadas, o status de área do conhecimento só foi devidamente
reconhecido a partir da aprovação da BNCC, em 2017. Este será assunto em outro
módulo. De 2008, quando aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental até 2017 há uma espécie de vácuo que dificultou para o Ensino Religioso
o fortalecimento de sua identidade.

5. Ensino Religioso – Fundamentos Epistemológicos

Partindo da Constituição de 1988 e da LDB 9394/96, o ponto de partida que


fundamenta o Ensino Religioso é o preceito legal do respeito à pluralidade religiosa. O
fato de ser vedado o proselitismo exige que os sistemas de ensino pensem seus
conteúdos a partir da realidade dos seus educandos.
É verdade que o Ensino Religioso é, talvez, a área do conhecimento que mais
interferência externa sofre, pois as crianças e adolescentes chegam à escola, em geral,
influenciados pela maneira como pensam as suas famílias e o seu entorno. Além disso, é
comum que as famílias e o entorno do educando se manifestem sobre o que a escola ou
o sistema de ensino estão trabalhando, num grau muito maior do que acontece em
outros componentes curriculares. Por isso a atenção deve ser redobrada tanto na escolha
dos conteúdos quanto da abordagem a ser feita.
O tratamento dado à pluralidade religiosa não deve se limitar apenas ao
conhecimento teórico-científico acerca das grandes religiões da humanidade. O Ensino
Religioso trabalha esse conhecimento na perspectiva do significado que a pluralidade de
religiões tem na vida das pessoas, dos grupos e das culturas, além de trabalhar a
reciprocidade dessa relação, ou seja, como as pessoas, grupos e culturas influenciam na
transformação das religiões. Anísia de Figueiredo define que o ensino,
Ao ser qualificado como ‘religioso’ submete-se a uma área específica de
atuação que tem como destinatário o sujeito, religioso ou não, que indaga
sobre as razões de ser religioso dentro ou fora da religião, a partir de dentro
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ou de fora do grupo religioso, ou em não se ter religião alguma.


(FIGUEIREDO, 1995, p. 41).

O Ensino Religioso deve, portanto, dedicar-se ao estudo do fenômeno religioso


enquanto elemento constituinte da sociedade humana. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Religioso, elaborados pelo FONAPER, assim explicam:
O fenômeno religioso é a busca do Ser frente a ameaça do Não-Ser.
Basicamente a humanidade ensaiou quatro respostas possíveis como
norteadoras do sentido da vida além da morte: a Ressurreição, a
Reencarnação, o Ancestral, o Nada. Cada uma dessas respostas organiza-se
num sistema de pensamento próprio, obedecendo uma estrutura comum. E
que é dessa estrutura comum que são retirados os critérios para a organização
e seleção dos conteúdos e objetivos do Ensino Religioso. (FONAPER, 1997,
p. 32)

Considera-se, porém, que o Ensino Religioso não pode ser confundido com Ciências da
Religião, muito embora a formação do professor passe, atualmente, pela Licenciatura em
Ciências da Religião. O fenômeno religioso é estudado a partir da realidade dos educandos e da
sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que se estudam os símbolos, os mitos e os ritos
ligados à relação humana com o Sagrado, há a necessidade de voltar o olhar para o mundo que
rodeia o educando, como em qualquer área do conhecimento.
Esses temas serão aprofundados no próximo módulo; contudo, o Ensino Religioso leva
em consideração que o ser humano é essencialmente um ser em relação: relaciona-se consigo
mesmo, com o mundo, com os outros e com o Sagrado. Essas relações acontecem de modo
distinto, pois elas variam de acordo com a pessoa, a cultura, a compreensão de mundo, etc. Elas
são também permeadas por diferentes linguagens.
Na relação com o Sagrado, estão presentes três grandes linguagens, apresentadas por
Croatto (2004): os símbolos, os mitos e os ritos. Elas também variam de acordo com a cultura
da sociedade na qual o indivíduo está inserido, ou mesmo podem sofrer variações de acordo
com o modo pelo qual o indivíduo concebe o Sagrado. A linguagem simbólica é uma linguagem
primordial, pois transmite aquilo que o ser humano não consegue comunicar em palavras. Por
exemplo, o símbolo da cruz, pelo qual os cristãos compreendem a morte e ressurreição de Jesus.
Já a linguagem dos mitos transmite por meio de palavras aquilo que a razão humana não
consegue entender, como a criação do mundo. E a linguagem dos ritos é a tradução gestual dos
símbolos e dos mitos.
Todas as tradições religiosas, sejam as mais tradicionais ou as mais contemporâneas,
possuem linguagens de comunicação com o Sagrado, e elas sempre são diferentes para cada
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grupo. Conhecer e compreender isso é a base para a tolerância do diferente que, por sua vez, é
elemento básico para os conteúdos do Ensino Religioso. A compreensão e aceitação do
diferente passa pelo conhecimento.

Também é importante a compreensão do que é religião, tendo presente que uma religião
não é apenas a sua doutrina, e que conhecer a doutrina de uma determinada religião não é
proselitismo, a não ser que se excluam as demais. O ser humano é considerado por Eliade
(1992) como o Homo Religiosus, ou seja, faz parte da identidade do ser humano a busca pelo
Sagrado.
Não há consenso sobre a etimologia da palavra “Religião”, que pode ser compreendida,
no contexto das ciências da Religião como Re-legere, ou seja, fazer outras leituras do mundo;
ou então, no contexto teológico, Re-ligare, ou restabelecer a ligação com o Sagrado.
Independentemente do caminho escolhido, ter presente o lugar de fala ajuda a situar tanto o
professor quanto o educando. Os dois conceitos são importantes, mas devem ser conhecidos e
compreendidos.
A partir dessas ideias, que têm como ponto de partida o ser humano como um ser em
relação, os conteúdos são escolhidos. Nas escolas de gestão pública, obrigatoriamente esses
conteúdos devem ter um enfoque laico, ou seja, não devem ter a pretensão de converter
ninguém a uma determinada religião e precisam ser mais abrangentes, no sentido de evitar o
enfoque em uma determinada doutrina. Em 2017 o STF deliberou, por seis votos a cinco, que
nas escolas públicas pode-se trabalhar a partir de uma religião sem quebrar o princípio
constitucional da laicidade do ensino. O STF considerou que este princípio deve ser regido por
outro, que é o do respeito e valorização de todas as religiões.
Já nas escolas de gestão privada, dentre as quais estão as confessionais, a legislação
permite que o ensino religioso seja ministrado de acordo com a confissão religiosa à qual
pertence a escola, sem qualquer prejuízo à sociedade, uma vez que essas escolas possuem um
regimento interno, que deve ser do conhecimento dos pais, e que tem valor legal. Porém, mesmo
nas escolas confessionais o princípio legal do respeito às religiões e ao ser humano precisa
necessariamente ser seguido. As matrizes curriculares e o regimento das escolas confessionais
devem estar de acordo com a LDB e a BNCC.
Nos próximos módulos, serão discutidos outros e novos conteúdos.
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Referências

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GAUTHIER, Clermont. O século XVII e o nascimento da Pedagogia. In: GAUTHIER,


Clérmont; TARDIF, Maurice (orgs.). A Pedagogia: teorias e práticas da Antiguidade
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LA SALLE, João Batista. Obras completas de São João Batista de La Salle. Canoas:
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dias. 13. ed., São Paulo, SP: Cortez, 2010.

RUEDELL, Pedro. Trajetória do Ensino Religioso no Brasil e no Rio Grande do Sul:


Legislação e prática. Canoas: Unilasalle; Porto Alegre: Sulina, 2005.

SCHÜTZ, Irineu. As políticas públicas de formação de professores para o ensino


religioso na educação básica. Canoas: Unilasalle, 2020. Dissertação (Mestrado em
Educação).

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