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e a educação pública:
uma reflexão a partir do
pensamento de Martinho
Lutero
ELIZÂNIA SOUSA DO NASCIMENTO*
Resumo
A educação pública e de responsabilidade do Estado tem sua origem em reivin-
dicações propostas pela Reforma Protestante. Apresenta-se, neste artigo, este
movimento religioso do século XVI inserido em um longo contexto histórico, político
e cultural. A partir de cartas e sermões, analisa-se o pensamento educacional de
Martinho Lutero, reformador alemão. Assim, destaca-se que, para Lutero, a escola
deveria ser de responsabilidade das cidades alemães com o objetivo de atender,
principalmente, as crianças cujos pais não podiam custear um professor particular.
O conteúdo dessa escola seria primeiramente bíblico, mas não restrito a este.
O espaço deveria preparar meninos e meninas para o desempenho de papéis
sociais específicos. Assim, as meninas seriam preparadas para o desempenho
de funções do espaço privado do lar, enquanto os meninos receberiam uma
educação para o exercício de atividades no espaço público e político. Apresenta-
-se, ainda, traços do pensamento de Lutero sobre a docência e a valorização do
professor, seu ideal para as bibliotecas reformadas e o recuo desse reformador
quanto ao princípio da livre interpretação do texto bíblico, proposta inicial da
Reforma Protestante. No diálogo com a historiografia do campo educacional, são
propostas questões acerca das interpretações dadas ao pensamento de Lutero
por Lorenzo Luzuriaga (2001) e Aníbal Ponce (1991). Por fim, são destacadas
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Elizânia Sousa do Nascimento
Introdução
O conhecido termo “Reforma Protestante” foi consagrado pelo
tempo para designar o movimento de caráter contestador que
surgiu no interior da Igreja Católica. Seu principal expoente, o
monge agostiniano Martinho Lutero, condenou, através de 95 teses
fixadas nas portas da igreja de Wittenberg, em 1517, o comércio
de indulgências praticado com a autorização papal. Excomungado
pela igreja e protegido pelo príncipe Frederico, da Saxônia, Lutero
tem uma assegurada liberdade para tratar sobre vários assuntos
propondo uma reforma em várias áreas da vida na Alemanha, entre
elas, a educação. Reconhecendo o poder desta na divulgação
e consolidação do movimento reformador e diante da pergunta
que os alemães agora faziam – “para que nos serve a escola se
não mais precisamos formar padres? –, Lutero passou a defender,
através de cartas e sermões, o seu ideal educacional.
Através da escrita epistolar e pregação de sermões publicados
na Alemanha da época, Lutero desafiou as autoridades políticas
a se responsabilizarem pela educação. Também, a partir dessas
publicações, discutiu sobre várias áreas, como modelos edu-
cacionais, docência, conteúdos, inclusão educacional feminina,
bibliotecas, entre outras. As variadas interpretações dadas ao seu
projeto educacional, em contraposição à leitura que se faz da sua
obra, propõem diálogos, suscitando novas perguntas para a escrita
historiográfica no que se refere ao tema.
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A Reforma Protestante e a educação pública: uma reflexão a partir do pensamento de Martinho Lutero
Considerações sobre o
contexto histórico da
Reforma Protestante
O humanismo provocado pela volta às fontes da cultura grega,
a revitalização cultural, as novas invenções, o ressurgimento da
cidade e do comércio, o prazer pela vida terrena e as contestações
à Igreja Romana são consequências de uma longa construção
e reconstrução que encontram no século XVI o seu apogeu. O
Renascimento e a Reforma Protestante não são acontecimentos
abruptos, repentinos, nem méritos de personagens circunscritos
apenas a uma época. Antes, progressivamente, as bases neces-
sárias ao seu surgimento foram lançadas em períodos que lhes
antecedem.
O antropocentrismo da Idade Moderna é consequência de
uma longa discussão instalada desde o século XIII. Ariès e Duby
(1990) destacam que o indivíduo, a emergência do “eu”, surge
na escrita por volta de 1202, em uma sociedade teocêntrica de
perífrases impessoais que começava a defender a autonomia e a
primeira pessoa do singular. O surgimento da autobiografia e do
diário pessoal também revelavam uma crescente individuação. O
ser humano universal defendido pelos realistas, que afirmavam a
pouca importância das diferenças individuais, foi questionado a
partir do século XI pelos nominalistas, defensores da razão humana
e do indivíduo, o que “[...] faz vislumbrar o racionalismo burguês,
marca fundamental da idade moderna.” (ARANHA, 1996, p. 74).
Já no século XII, o Ocidente experimentou um crescimento
na economia impulsionado pela agricultura, o que ocasionou o
ressurgimento da estrada, da moeda e, consequentemente, da
cidade. A partir daí, se transportaram
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Considerações sobre a
iniciativa educacional de
Lutero
As 95 teses fixadas por Lutero na porta da igreja do Castelo de
Wittenberg em 1517 são consideradas marco da eclosão da Refor-
ma Protestante. Nelas, o monge agostiniano propôs mudanças em
diversos pontos da doutrina católica e a venda de indulgências é
destacada como denúncia central em seu protesto. De movimento
religioso, a Reforma passou a ser um movimento político, resultando
em profundas mudanças que extrapolaram o território germânico.
Excomungado pelo Papa Leão X, em 1521, Lutero continuou sis-
tematizando e divulgando suas propostas. Assim como o século XVI
conheceu o pensamento renascentista através da imprensa inven-
tada no século XV, por Gutenberg, a impressão do escrito também
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−E u sou o Senhor, seu Deus. Você não deve ter outros
deuses além de mim.
− Que significa isto?
− Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de tudo.
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Os comerciantes têm uma regra comum entre si, que é seu lema
principal e fundamento de todo negócio. Eles dizem: ‘Posso
vender minha mercadoria tão caro quanto puder’ [...] Aí se dá
espaço à ganância e se abrem todas as portas e janelas para o
inferno. Desta maneira o comércio não pode fazer outra coisa,
senão pilhar e furtar as posses dos outros. (LUTERO, 1995, v.
5, p. 207).
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Considerações finais
De um movimento de caráter religioso, a Reforma Protestante
alcançou várias áreas da vida na Alemanha, inclusive a educação. A
contribuição de Lutero, a partir da tradução da Bíblia para a língua
alemã, objetivando a leitura da mesma por todos, foi concretizada
a partir do estabelecimento de um sistema educacional de respon-
sabilidade do Estado. Para o reformador, todos deveriam saber ler
a Bíblia em seu próprio idioma e, ao lado de cada igreja, deveria
ser construída uma escola.
No pensamento luterano, a escola deveria ser alegre, onde as
crianças aprenderiam também a partir de brincadeiras. O conte-
údo principal era a Bíblia e os princípios cristãos. Constatou-se
que a inclusão escolar também significava para o reformador o
suprimento de pessoas qualificadas para a atuação nas diversas
áreas da sociedade, bem como o preparo destas para o correto
acúmulo de bens. Nesse ponto, concluímos que o pensamento
de Lutero, apesar de tratar do acúmulo de riquezas, não pode ser
situado no interior de uma luta de classes e que, colocá-lo como
defensor da emergente burguesia alemã do século XVI é negar o
contexto histórico-social e religioso de suas intenções.
Constatou-se que a responsabilização da educação pelo Estado
no projeto luterano visava especialmente a inclusão de crianças
cujos pais não podiam manter financeiramente um professor par-
ticular. Percebeu-se, ainda, que, na argumentação de Lutero, ao
lado da intervenção estatal, foi reclamada a responsabilização dos
pais, que, segundo ele, deveriam cooperar, enviando seus filhos
à escola. Em relação à inclusão da mulher na educação escolar,
observou-se que o incentivo a educação de meninas, ainda que
desigual em número de horas, quando comparado a dos meninos,
e contrastante nos objetivos para esses dois grupos, constitui-se
um importante passo na escolarização das mulheres.
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Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 1995. v. 5. p. 302-325.
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