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A Reforma Protestante

e a educação pública:
uma reflexão a partir do
pensamento de Martinho
Lutero
ELIZÂNIA SOUSA DO NASCIMENTO*
Resumo
A educação pública e de responsabilidade do Estado tem sua origem em reivin-
dicações propostas pela Reforma Protestante. Apresenta-se, neste artigo, este
movimento religioso do século XVI inserido em um longo contexto histórico, político
e cultural. A partir de cartas e sermões, analisa-se o pensamento educacional de
Martinho Lutero, reformador alemão. Assim, destaca-se que, para Lutero, a escola
deveria ser de responsabilidade das cidades alemães com o objetivo de atender,
principalmente, as crianças cujos pais não podiam custear um professor particular.
O conteúdo dessa escola seria primeiramente bíblico, mas não restrito a este.
O espaço deveria preparar meninos e meninas para o desempenho de papéis
sociais específicos. Assim, as meninas seriam preparadas para o desempenho
de funções do espaço privado do lar, enquanto os meninos receberiam uma
educação para o exercício de atividades no espaço público e político. Apresenta-
-se, ainda, traços do pensamento de Lutero sobre a docência e a valorização do
professor, seu ideal para as bibliotecas reformadas e o recuo desse reformador
quanto ao princípio da livre interpretação do texto bíblico, proposta inicial da
Reforma Protestante. No diálogo com a historiografia do campo educacional, são
propostas questões acerca das interpretações dadas ao pensamento de Lutero
por Lorenzo Luzuriaga (2001) e Aníbal Ponce (1991). Por fim, são destacadas

* Professora Assistente I da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão - UEMASUL.

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Paidéia: r. do cur. de ped. da Fac. de Ci. Hum., Soc. e da Saú, Univ. Fumec Belo Horizonte Ano 14 n. 21 p. 153-173 jan./jun. 2019
Elizânia Sousa do Nascimento

possibilidades de diálogos entre o pensamento luterano e


a contemporaneidade educacional brasileira.

Palavras-chave: Educação Pública. Reforma Protestante.


Martinho Lutero.

Introdução
O conhecido termo “Reforma Protestante” foi consagrado pelo
tempo para designar o movimento de caráter contestador que
surgiu no interior da Igreja Católica. Seu principal expoente, o
monge agostiniano Martinho Lutero, condenou, através de 95 teses
fixadas nas portas da igreja de Wittenberg, em 1517, o comércio
de indulgências praticado com a autorização papal. Excomungado
pela igreja e protegido pelo príncipe Frederico, da Saxônia, Lutero
tem uma assegurada liberdade para tratar sobre vários assuntos
propondo uma reforma em várias áreas da vida na Alemanha, entre
elas, a educação. Reconhecendo o poder desta na divulgação
e consolidação do movimento reformador e diante da pergunta
que os alemães agora faziam – “para que nos serve a escola se
não mais precisamos formar padres? –, Lutero passou a defender,
através de cartas e sermões, o seu ideal educacional.
Através da escrita epistolar e pregação de sermões publicados
na Alemanha da época, Lutero desafiou as autoridades políticas
a se responsabilizarem pela educação. Também, a partir dessas
publicações, discutiu sobre várias áreas, como modelos edu-
cacionais, docência, conteúdos, inclusão educacional feminina,
bibliotecas, entre outras. As variadas interpretações dadas ao seu
projeto educacional, em contraposição à leitura que se faz da sua
obra, propõem diálogos, suscitando novas perguntas para a escrita
historiográfica no que se refere ao tema.

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A Reforma Protestante e a educação pública: uma reflexão a partir do pensamento de Martinho Lutero

Considerações sobre o
contexto histórico da
Reforma Protestante
O humanismo provocado pela volta às fontes da cultura grega,
a revitalização cultural, as novas invenções, o ressurgimento da
cidade e do comércio, o prazer pela vida terrena e as contestações
à Igreja Romana são consequências de uma longa construção
e reconstrução que encontram no século XVI o seu apogeu. O
Renascimento e a Reforma Protestante não são acontecimentos
abruptos, repentinos, nem méritos de personagens circunscritos
apenas a uma época. Antes, progressivamente, as bases neces-
sárias ao seu surgimento foram lançadas em períodos que lhes
antecedem.
O antropocentrismo da Idade Moderna é consequência de
uma longa discussão instalada desde o século XIII. Ariès e Duby
(1990) destacam que o indivíduo, a emergência do “eu”, surge
na escrita por volta de 1202, em uma sociedade teocêntrica de
perífrases impessoais que começava a defender a autonomia e a
primeira pessoa do singular. O surgimento da autobiografia e do
diário pessoal também revelavam uma crescente individuação. O
ser humano universal defendido pelos realistas, que afirmavam a
pouca importância das diferenças individuais, foi questionado a
partir do século XI pelos nominalistas, defensores da razão humana
e do indivíduo, o que “[...] faz vislumbrar o racionalismo burguês,
marca fundamental da idade moderna.” (ARANHA, 1996, p. 74).
Já no século XII, o Ocidente experimentou um crescimento
na economia impulsionado pela agricultura, o que ocasionou o
ressurgimento da estrada, da moeda e, consequentemente, da
cidade. A partir daí, se transportaram

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[...] pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de con-


trole e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a
desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em
que por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar (ARIÈS;
DUBY, 1990, p. 506).

Nos arquivos deste período se encontram numerosas menções


a arcas e bolsas, revelando um crescente desejo de acúmulo que
resultará no surgimento da classe burguesa no século XVI.
Ainda no século XII, a escola conhece o “debate”, que se coloca
no lugar da aula magistral, onde “[...] duas pessoas em confronto
rivalizam entre si como no torneio” (ARIÈS; DUBY, 1990, p. 506). É
também nesse período que nasce a universidade, procurando-se
ampliar o estudo não só das artes liberais, “[...] mas da filosofia,
teologia, leis e medicina, a fim de atender às solicitações de uma
sociedade cada vez mais complexa” (ARANHA, 1996, p. 79). A
universidade torna-se um centro de efervescência intelectual e a
Igreja vê muitos dogmas sendo contestados.
Na arte, a partir de 1125, há um desejo pela perfeição humana;
lábios, olhares, tornam-se cada vez mais vivos, antecipando traços
do que Michelangelo ofereceria à capela Sistina no século XVI
(ARIÈS; DUBY, 1990).
No campo religioso, surgiu na Inglaterra do século XIV o refor-
mador João Wycliffe (1328-1384) que, condenando a imoralidade
de clérigos, defendia o despojamento dos seus bens, que segundo
ele, era a fonte da corrupção (CAIRNS, 1988). Além disso, a partir
de 1378, passou a se opor aos dogmas da Igreja Romana e, em
1382, atacou a autoridade papal. Aqui, como futuramente na Ale-
manha de Lutero, esse reformador foi protegido por reis e nobres
que, movidos por interesses nacionalistas, se interessavam pela
possibilidade de poder sobre os bens que a Igreja detinha em seu
território, bem como pelo fortalecimento monárquico.

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Politicamente, o conceito de um Estado universal dirigido pela


Igreja dava lugar ao conceito de Estado nacional. Foi Wycliffe
quem primeiro traduziu o Novo Testamento para o vernáculo in-
glês, tornando a Bíblia acessível ao povo em sua própria língua.
Tal fato indica que a substituição do latim por uma língua nacional
antecede à iniciativa da Reforma do século XVI.
Influenciado por Wycliffe, destacou-se na Boêmia João Huss
(1373-1415), cuja pregação coincidiu com “o surgimento de um
sentimento nacionalista boêmio contra o controle da Boêmia
pelo Santo Império Romano” (CAIRNS, 1988, p. 206). Sua recusa
diante da exigência de retratação o levou à fogueira por ordem do
Concílio de Constança (1414-1418).
Na Florença, Savonarola, um monge dominicano (1452-1498),
tentou reformar o governo público e o da Igreja, mas, ao condenar
através de sua pregação a vida desregrada do papa, foi enforcado.
Para Wortmann (1997, p.68)

[...] a crise religiosa foi parte, ao mesmo tempo constituinte


e constituída, de um complexo contexto; um contexto geral
de dúvidas e de inovações, entre certezas evanescentes do
medievo e as novas certezas que iriam configurar um mundo
moderno.

Na geografia, o conhecimento humano passava por consi-


deráveis mudanças entre 1492 e 1600. Os mares tornaram-se
as estradas do mundo e as rotas marítimas que conduziam às
riquezas do oriente antigo já eram realidade. Uma nova classe,
formada pela pequena nobreza da cidade, por proprietários livres
e pela classe mercantil, ascendia socialmente, pondo em xeque
a organização social horizontal da Idade Média. Foi essa classe
que, no noroeste da Europa, garantiu as mudanças introduzidas
pela Reforma Protestante do século XVI (ARIÈS; DUBY, 1990).

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Como se percebe, a Reforma Protestante está situada dentro de


um longo e complexo contexto histórico no qual a Igreja Católica
Romana determinava o modelo de homem a ser formado, garantin-
do sua estadia no poder por vários séculos no Ocidente. Por vezes,
essa Igreja lançou mão de conteúdos estranhos à sua dogmática,
submetendo-os à doutrina cristã, sustentáculo do conhecimento
medieval. No entanto, as lacunas não preenchidas por esse árduo
trabalho propiciaram o surgimento e o redescobrimento da crítica
humana que, ainda que lentamente, foi conquistando o espaço
outrora perdido, transformando-o.
Nesse contexto, as ideias luteranas, preconizadas no campo
religioso por Wycliffe, Huss e Savonarola, encontraram o ambiente
e a força política e cultural que precisavam para sua consolidação,
não no interior da Igreja Católica, como propusera Lutero, mas fora
dela, em igrejas nacionais dirigidas pelo Estado.

Considerações sobre a
iniciativa educacional de
Lutero
As 95 teses fixadas por Lutero na porta da igreja do Castelo de
Wittenberg em 1517 são consideradas marco da eclosão da Refor-
ma Protestante. Nelas, o monge agostiniano propôs mudanças em
diversos pontos da doutrina católica e a venda de indulgências é
destacada como denúncia central em seu protesto. De movimento
religioso, a Reforma passou a ser um movimento político, resultando
em profundas mudanças que extrapolaram o território germânico.
Excomungado pelo Papa Leão X, em 1521, Lutero continuou sis-
tematizando e divulgando suas propostas. Assim como o século XVI
conheceu o pensamento renascentista através da imprensa inven-
tada no século XV, por Gutenberg, a impressão do escrito também

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favoreceu o movimento da Reforma Protestante. Sua repercussão,


através do acesso a impressos cada vez mais baratos, possibilitou
a popularização de reivindicações políticas que contribuíram para
a alfabetização de amplos setores da sociedade alemã.
A partir de 1524, Lutero passou a tratar de um problema que
assolava a Alemanha: as escolas estavam em abandono, as uni-
versidades pouco frequentadas e os conventos em declínio. O
pensamento vigente era: “Já que o estado clerical não tem mais
chance, também não nos interessa mais o ensino e nada mais fa-
remos nesse sentido” (LUTERO, 1995, v. 5, p. 304). Lutero, então,
usou a imprensa e o púlpito das igrejas para criticá-lo, apresentan-
do às autoridades uma proposta de reforma na educação alemã
e incentivando os pais a enviarem seus filhos à escola.
As autoridades públicas alemãs, destinatárias da carta “Aos
Conselhos de todas as Cidades da Alemanha para que se criem
e mantenham escolas cristãs”, de 1524, são, para Lutero, os
principais responsáveis pela criação e manutenção de escolas.
Assim, ele deu início a um processo histórico na educação: a
responsabilização desta pelo Estado. No sermão de 1530, “Uma
Prédica para que se Mandem os Filhos à Escola”, Lutero dizia que
as autoridades devem até mesmo obrigar os súditos a mandarem
seus filhos à escola (LUTERO, 1995, v. 5, p. 374).
As cidades, segundo o reformador, deveriam ser responsáveis
financeiras pelas escolas e sustento de professores. Sobre a
docência, Lutero asseverou que esta função era tão desgastante
que seu exercício não deveria ultrapassar doze anos. Dizia ele na
referida carta de 1524:

Anualmente é preciso levantar grandes somas para armas,


estradas, pontes, diques e inúmeras outras obras semelhantes,
para que uma cidade possa viver em paz e segurança temporal.
Por que não levantar igual soma para a pobre juventude neces-
sitada, sustentando um ou dois homens competentes como
professores? (LUTERO, 1995, v. 5, p. 305).

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Ainda sobre o trabalho docente, em um trecho do sermão an-


teriormente citado, Lutero o exaltou e criticou o pouco valor que
se dava a esta função, à época:

[...] a um professor ou mestre dedicado e piedoso ou a quem


quer que seja que eduque e instrua fielmente os meninos, ja-
mais se pode recompensar o suficiente e não há dinheiro que o
pague. No entanto, entre nós essa tarefa continua desprezada
tão escandalosamente, como se não valesse nada” (LUTERO,
1995, v. 5, p. 379).

O conteúdo da escola preconizada por Lutero era primeiramen-


te bíblico, mas não deveria ficar restrito somente a este. As artes
liberais, o grego e o latim deveriam ser incluídos. Em uma crítica
aos alemães que queriam ficar apenas com a Bíblia na língua ale-
mã, dizia: “As ciências e as línguas, que não nos prejudicam, mas
que, pelo contrário, nos servem de ornamento, proveito, honra e
promoção (tanto para o entendimento da Sagrada Escritura como
também para dirigir o governo secular), a estas queremos despre-
zar [...]” (LUTERO, 1995, v. 5, p. 310). Ainda sobre o aprendizado
de outras línguas, Lutero enfatizou que as mudanças então expe-
rimentadas exigiam conhecimento linguístico que extrapolassem
o da língua alemã.
Na carta de 1524, o reformador também estimulou a criação de
bibliotecas, porém, nestas não entraria “toda sorte de livros indis-
criminadamente” (LUTERO, 1995, v. 5, p. 324). Síntese de uma
proposta educacional tanto religiosa quanto secular, a proposta
representava o alcance de um movimento que logo percebeu os
efeitos da proliferação heterodoxa do escrito. O acervo das bi-
bliotecas reformadas deveria abranger livros de teologia, línguas,
gramática, artes liberais, jurisdição, medicina e história. No entanto,
suas orientações também eram claras sobre o que não deveria
entrar nestes espaços ou no programa de leitura reformado: “Nada
de leitura popular” (GILMONT, 1999, p. 54).

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Tratando da reforma no ensino universitário, em sua carta “À


Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da melhoria do Estamento
Cristão”, de 1520, Lutero também apresentou, a exemplo da con-
trarreforma católica, uma espécie de “índex”, no qual condenou
Física, Metafísica, Tratado da Alma e Ética, obras de Aristóteles
que contradiziam a doutrina reformada. Do mesmo autor, sugeriu
que fossem mantidos os livros Lógica, Retórica e Poética. Por fim,
enfatizou que a lição mais importante e comum tanto nas escolas
superiores, quanto nas inferiores, deveria ser a Bíblia. Gilmont
(1999) destaca que, se por um lado, o escrito tornou-se meio de
comunicação direta, por outro, o temor da heresia logo foi ins-
taurado também no seio protestante. Assim, paulatinamente, a
pregação e a elaboração de catecismos no movimento reformado
assumiram o papel de controle e a promoção da leitura individual
foi refreada. Perguntas e respostas elaboradas de antemão con-
trolariam o que deveria ser aprendido, como se vê na 1ª Pergunta
do Catecismo Menor (LUTERO, 1980):

−E u sou o Senhor, seu Deus. Você não deve ter outros
deuses além de mim.
− Que significa isto?
− Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de tudo.

Para Boto (2017), o uso desses catecismos no cotidiano das


escolas reformadas, possibilitou um controle exegético de inter-
pretação do texto. Assim, a autora sugere que,

[...] talvez assim tenha surgido a crença no questionário como


estratégia de verificação do aprendizado escolar, compreenden-
do-se que o formato das questões e das respostas reconstitui
os significados, apreendendo a essência do próprio texto.
Mais do que isso, cristalizou-se uma dada perspectiva segundo a
qual, do ponto de vista estritamente escolar, para cada pergunta
que a vida nos coloca, existirá sempre apenas uma resposta
certa e todas as outras serão consideradas erradas. Paradoxal-
mente há um árbitro para a leitura do texto: é o professor quem

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decide, na avaliação das respostas do catecismo, quais são,


dentre elas, aquelas que correspondem às intenções do texto
(BOTO, 2017, p. 114).

Quanto à educação à base de açoites, Lutero falou sobre a criação


de uma escola alegre onde as crianças aprenderiam brincando:

Ora, a juventude tem que dançar e pular e está à procura de


algo que cause prazer. Nisto não se pode impedi-la e nem seria
bom proibir tudo. Por que então não criar para ela escolas deste
tipo e oferecer-lhe estas disciplinas? [...] tudo está preparado
para que as crianças possam estudar línguas, outras disciplinas
e História com prazer e brincando. Pois as escolas de hoje já
não são mais o inferno e purgatório de nossas escolas, nos
quais éramos torturados com declinações e conjugações, e
de tantos açoites, tremor, pavor e sofrimento não aprendemos
simplesmente nada. (LUTERO, 1995, v. 5, p. 319).

Em oposição ao discurso do reformador, Luzuriaga (2001, p.


111) afirma que, na escola proposta por Lutero, “[...] a disciplina
continuou tão rigorosa como nos tempos anteriores, predominan-
do os castigos corporais”. Torna-se importante confrontar esta
afirmação com o ideal luterano, pois, se houve uma permanência
dos castigos físicos na escola reformada, não é no pensamento
educacional do reformador que esta encontra sustentação.
Para Lutero, existia uma clara ligação entre o saber intelectual
e o trabalho. O reformador tentou “[...] conciliar o respeito pelo
trabalho manual produtivo com o tradicional prestígio intelectual”
(MANACORDA, 2004, p. 197). No que se refere à ligação entre a
educação que preconizava e o seu entendimento sobre a forma-
ção econômica da época, faz-se necessário ouvir suas palavras:

[...] o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando


possui muitos homens bem instruídos, muitos cidadãos ajuiza-
dos, honestos e bem educados. Estes então podem acumular,
preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens.
(LUTERO, 1995, v .5, p. 309).

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Evocando os romanos, Lutero exaltou a boa formação que estes


davam aos filhos para o desempenho de suas funções no mundo.
Assim, enfatizou a necessidade de um sistema educacional que
preparasse não somente clérigos para a nova igreja, mas também
pessoas qualificadas para a atuação no regime secular. Aqui, ao
defender o envolvimento responsável do cristão com o mundo, a
partir do trabalho, Lutero, suspeitando da tendência da autodisciplina
ascética1, deixou claro que o objetivo não era a salvação pelo traba- 1
Tendência que
compreendia a
lho e sim a glorificação de Deus através do exercício da vocação. salvação pelo trabalho.

Para Weber (2004), o conceito de vocação em Lutero permane-


ceu tradicional, ou seja, a vocação era tarefa confiada por Deus,
algo que o homem deveria aceitar e, principalmente, se adaptar
como a uma ordem divina.
Sobre o acúmulo e o correto uso de bens, é necessário conhe-
cer o posicionamento de Lutero sobre as leis de comércio que
ora se instalara na Alemanha. Sobre isso, o reformador publicou
dois sermões: Pequeno sermão sobre a usura (1519), (LUTERO,
1995, v .5, p. 205), e o Grande sermão sobre a usura (1520), (LU-
TERO, 1995, v. 5, p. 219), onde declarava que o comércio estava
cheio de “diversos expedientes malignos” e “truques financeiros
perniciosos”. Sobre os comerciantes, ele disse:

Os comerciantes têm uma regra comum entre si, que é seu lema
principal e fundamento de todo negócio. Eles dizem: ‘Posso
vender minha mercadoria tão caro quanto puder’ [...] Aí se dá
espaço à ganância e se abrem todas as portas e janelas para o
inferno. Desta maneira o comércio não pode fazer outra coisa,
senão pilhar e furtar as posses dos outros. (LUTERO, 1995, v.
5, p. 207).

A análise desses sermões, como de outras publicações do


reformador contra a ética da nova classe que surgia, propõe
questionamentos sobre o entendimento de Lutero como um
representante da burguesia em ascensão ou defensor de uma

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educação direcionada apenas ao segmento social mais abastado


daquele contexto.
Para Aníbal Ponce, em sua obra Educação e Luta de Classes,
(1991), Lutero é, no campo educacional, um intérprete dos inte-
resses da classe burguesa alemã em ascensão. Diz o autor:

Mas, se Lutero foi um dos primeiros a afirmar que a instrução


constituía uma fonte de riqueza e de poder para a burguesia,
também não é menos certo que ele nem de longe pensou em
estender esses benefícios às massas populares. As multidões
miseráveis inspiravam-lhe ao mesmo tempo desprezo e temor.
Empregava para designá-las uma expressão pitoresca – Herr
Omnes – isto é, ‘o senhor todo mundo’. Não se pode brincar
muito com o senhor todo mundo, escreveu ele. Deus instituiu
as autoridades porque deseja que haja ordem aqui na terra.
(PONCE, 1991, p. 120).

Ponce destaca que a intenção do reformador era, portanto,


educar a abonada burguesia e não desprezar as classes desfa-
vorecidas, proporcionando-lhes apenas o catecismo luterano. No
entanto, sua interpretação necessita de uma clara contextualização
das palavras de Lutero, suscitando perguntas como: Que situação
a Alemanha estava vivenciando? Contra quem Lutero falava? Existe
a possibilidade de situá-lo em uma luta de classes?
A abertura ideológica que a Reforma Protestante proporcionara
trouxe uma nova compreensão aos camponeses alemães sobre a
liberdade cristã que, com esse entendimento, passaram a levantar
exigências de caráter socioeconômico. A partir de então, a Alema-
nha experimentou o auge de uma série de rebeliões ocorridas na
Europa desde o final da Idade Média.
Nos anos anteriores, a pregação de Lutero havia se dirigido
contra a Igreja, a nobreza e os príncipes. Em 1520, publicou uma
carta, À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca de Melhoria do
Estamento Cristão, onde tratou de “[...] questões políticas, jurídicas,
econômicas e financeiras, chegando ao ponto de conclamar a uma

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ampla secularização de bens eclesiásticos.” (LUTERO, 1995, v. 2,


p. 277). Além disso, a livre interpretação do texto bíblico, princípio
inicial da Reforma, guiou os camponeses a uma nova compreen-
são da exploração a que estavam submetidos.
Diante da acusação de incitar as rebeliões e, na intenção de
dissociar sua pregação do que vinha acontecendo, Lutero, em prin-
cípio, admoesta os dois lados à paz, dando a entender à nobreza
que a agitação era obra de Deus para castigar um regime soberbo,
explorador e opressivo. Porém, quando a guerra civil chegou a
chacinas de famílias inteiras por parte dos camponeses e à devas-
tação de castelos, aldeias e igrejas, Lutero posicionou-se contra os
camponeses, escrevendo em 1521 uma carta intitulada Contra as
Hordas Salteadoras e Assassinas (1995, v. 6, p. 330), legitimando a
morte dos revoltosos. Quando pediu clemência para os vencidos,
não mais foi ouvido e a caçada aos camponeses foi impiedosa.
As palavras de Lutero, citadas por Ponce, estão situadas em
meio a esse contexto social, no qual o reformador atribuiu às au-
toridades o poder de reorganizá-lo. Para o reformador, a ordem
divina precisava ser estabelecida, aqui na terra, através das au-
toridades constituídas. Seu pensamento era religioso e a ética a
ser estabelecida obedecia a uma “vontade divina”.

A inclusão das massas no


projeto educacional de Lutero
Ao traduzir o Novo Testamento do grego para o alemão, Lutero
deu início ao projeto de leitura da Bíblia pelo povo em sua própria
língua. Mas como este fato se concretizaria se a maioria das pesso-
as não sabiam ler? Como já foi dito, o reformador responsabilizou
as autoridades públicas pela criação de escolas. Diz ele sobre a
necessidade da manutenção de professores na carta de 1524:

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[...] a necessidade obriga mantermos educadores comunitários


para as crianças, a não ser que cada qual queira manter um em
particular. Isso, porém, seria oneroso demais para um simples
cidadão, e uma vez mais muitos excelentes meninos seriam
prejudicados por serem pobres (LUTERO, 1995, v. 5, p. 308).

Percebe-se que, ao responsabilizar os governantes pela educação


que deveria ser comunitária, Lutero tem em mente as crianças pobres
cujos pais não podiam manter um professor particular. É a partir do
seu projeto que a educação passou a ser popularizada na Alemanha.
Em 1549, na Dieta de Augusta, decretada pelo imperador Carlos
V, encontramos nas palavras daquele governante as consequ-
ências do projeto iniciado por Lutero, ou seja, a consciência da
educação como fundamento do próprio Estado:

As escolas são viveiros não somente de prelados e de ministros


da Igreja, mas também de magistrados e de quantos com seus
conselhos governam a cidade; e se elas são negligenciadas ou
se corrompem, inevitavelmente, as Igrejas e os Estados estarão
em perigo: portanto, é preciso ter muito zelo em instruí-las.
(MANACORDA, 2004, p. 199).

No pensamento educacional de Lutero, encontrava-se a presen-


ça de uma nova consciência que começava a florescer: todos agora
podem ser, não apenas governados, mas também governantes.
Ainda que justificando teologicamente seu posicionamento, Lutero
coloca a educação como um instrumento para a ascensão social:

Encontrarás advogados, doutores, conselheiros, escrivães, prega-


dores que, em geral, eram pobres e que, seguramente, todos foram
estudantes que subiram e cresceram a tal ponto de agora serem
senhores, como diz o salmo e que, como príncipes, ajudam a
governar as nações e os povos. Deus não quer que reis, príncipes,
senhores e nobreza por nascimento governem e sejam donos
sozinhos. Quer que também seus mendigos participem. Do con-
trário, irão pensar que somente o nascimento nobre faz senhores
e governantes, e não Deus somente (LUTERO, 1995, v. 5, p. 317).

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A Reforma Protestante e a educação pública: uma reflexão a partir do pensamento de Martinho Lutero

Lutero, como também outros colaboradores da Reforma, usa os


termos de Platão, que falava do privilégio enquanto direito dos que
já nascem privilegiados, não para reforçá-lo, mas para desmenti-lo,
contribuindo com o declínio que já experimentava a compreensão
medieval da sociedade enquanto organização estática.
Representando bem o espírito inovador do renascimento no
campo religioso, Lutero desafia seus contemporâneos para uma
educação de responsabilidade do Estado, desatrelando-a da igreja
católica e popularizando-a, de forma que esta fosse acessível a to-
das as crianças. Em seu projeto, meninos e meninas deveriam ser
educados, ainda que a partir de modelos e propósitos diferentes.

Gênero e educação em Lutero


Se para os homens o período medieval foi marcado pelo difícil
acesso à educação, para as mulheres as possibilidades educacio-
nais foram mais escassas ainda. No entanto, a educação feminina
não ficou completamente esquecida nesse período. A partir do
século VI, alguns mosteiros passaram a recebê-las, e é de lá que
são ouvidas, através da escrita religiosa que lhes era permitida,
as místicas, santas e abadessas de renome.
Se no campo as mulheres permaneceram analfabetas, no caste-
lo as meninas nobres receberam alguns rudimentos de gramática,
latim, aritmética, o que lhes permitiram a escrita epistolar e é de lá
que temos “[...] os primeiros textos de mulheres e suas obras lite-
rárias.” (DUBY; PERROT, 1990, p. 8). Seus rostos individualizados
começaram a surgir nas obras de Shakespeare, Racine, Balzac e
Henry James. Suas palavras proferidas em motins, manifestações
e alvoroços passaram a ser registradas cada vez mais, ainda que
pelos “guardiões da ordem”, no dizer de Duby e Perrot (1990).

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Em meio a esse contexto que já experimentava sucessivas trans-


formações no que se refere à projeção social feminina, Lutero, no
século XVI, propõe uma educação pública também para meninas.
Porém, se por um lado a sua proposta é inovadora, por outro, ela
é reflexo de uma sociedade marcada pela divisão de papéis entre
homens e mulheres. Dizia ele:

Mesmo que não existisse alma e não se precisasse das esco-


las e línguas por causa de Deus, somente isso já seria motivo
suficiente para instituir as melhores escolas tanto para meninos
como para meninas em toda parte, visto também que o mundo
precisa de homens e mulheres excelentes e aptos para manter
seu estado secular exteriormente, para que então os homens
governem o povo e o país, e as mulheres possam governar
bem a casa e educar bem os filhos e a criadagem. (LUTERO,
1995, v. 5, p. 318, grifo nosso).

A proposta luterana reflete o quadro social de uma época que


atribuía distintos papéis a serem cumpridos por homens e mu-
lheres. Os campos onde podiam operar a mulher e o homem já
estavam precisamente determinados: a mulher era dirigente do lar,
o homem da sociedade, e ambos seriam educados a partir desses
modelos. Se o objetivo da educação de meninas era torná-las
boas dirigentes do lar, então não era preciso que elas passassem
na escola mais do que uma hora diária.
A partir dessa compreensão, enquanto Lutero sugere que os
meninos passassem duas horas por dia no espaço escolar, quando
se trata do tempo das meninas, ele o reduz pela metade: uma hora
seria suficiente: “Os meninos devem ser enviados a estas escolas
diariamente por uma ou duas horas [...] Também uma menina pode
dispender diariamente uma hora para ir à escola...” (LUTERO, 1995,
v. 5, p. 320). As palavras “devem” quando se trata da educação dos
meninos e “podem”, quando se trata da educação das meninas,
parece sugerir que, enquanto a primeira constituía-se um dever, a
segunda parecia mais uma sugestão que poderia ser acatada ou não.

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Quanto ao conteúdo da educação feminina, Lutero dizia: “Queira


Deus que cada cidade tivesse também uma escola de meninas,
na qual elas ouvissem o evangelho uma hora por dia, seja em
alemão ou latim”. No seu entendimento, o simples aprendizado
do evangelho seria o suficiente para que uma mulher dirigisse
bem o lar, educasse os filhos e a criadagem.
Na primeira parte do já citado sermão Uma prédica para que
se mandem os filhos à escola, de 1530, Lutero trata da formação
de pessoas para o exercício dos cargos clericais da nova igreja:
pastores, professores, pregadores, leitores, sacerdotes, sacristãos
e mestres escolas; porém, todos estão explicitamente colocados
no gênero masculino, permanecendo o púlpito da igreja luterana
como o da católica, ou seja, universo de domínio masculino.
Martinho Lutero faleceu em 1546, no dia 18 de fevereiro, aos 62
anos. Em 1555, o Imperador alemão reconheceu a existência de
duas confissões na Alemanha: a Católica e a Luterana. Sua influ-
ência foi decisiva não apenas no campo religioso, mas também
no estabelecimento de um sistema escolar protestante no século
XVI na Alemanha, que se tornou o início da educação pública en-
quanto responsabilidade do Estado. À consolidação de suas ideias
dedicaram-se amigos seus, também reformadores e humanistas,
como Filipe Melanchton, responsável pela criação de numerosos
colégios secundários não só nos estados alemães, mas também
em várias partes da Europa, e Johannes Bugenhagen, que traba-
lhou no estabelecimento da escola primária na Alemanha. Ambos
contribuíram, também, de forma significativa, para a composição
curricular da escola reformada.

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Considerações finais
De um movimento de caráter religioso, a Reforma Protestante
alcançou várias áreas da vida na Alemanha, inclusive a educação. A
contribuição de Lutero, a partir da tradução da Bíblia para a língua
alemã, objetivando a leitura da mesma por todos, foi concretizada
a partir do estabelecimento de um sistema educacional de respon-
sabilidade do Estado. Para o reformador, todos deveriam saber ler
a Bíblia em seu próprio idioma e, ao lado de cada igreja, deveria
ser construída uma escola.
No pensamento luterano, a escola deveria ser alegre, onde as
crianças aprenderiam também a partir de brincadeiras. O conte-
údo principal era a Bíblia e os princípios cristãos. Constatou-se
que a inclusão escolar também significava para o reformador o
suprimento de pessoas qualificadas para a atuação nas diversas
áreas da sociedade, bem como o preparo destas para o correto
acúmulo de bens. Nesse ponto, concluímos que o pensamento
de Lutero, apesar de tratar do acúmulo de riquezas, não pode ser
situado no interior de uma luta de classes e que, colocá-lo como
defensor da emergente burguesia alemã do século XVI é negar o
contexto histórico-social e religioso de suas intenções.
Constatou-se que a responsabilização da educação pelo Estado
no projeto luterano visava especialmente a inclusão de crianças
cujos pais não podiam manter financeiramente um professor par-
ticular. Percebeu-se, ainda, que, na argumentação de Lutero, ao
lado da intervenção estatal, foi reclamada a responsabilização dos
pais, que, segundo ele, deveriam cooperar, enviando seus filhos
à escola. Em relação à inclusão da mulher na educação escolar,
observou-se que o incentivo a educação de meninas, ainda que
desigual em número de horas, quando comparado a dos meninos,
e contrastante nos objetivos para esses dois grupos, constitui-se
um importante passo na escolarização das mulheres.

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No diálogo com a contemporaneidade, pode-se dizer que, para


além de anacronismos, as propostas educacionais de Lutero para
a Alemanha da sua época continuam suscitando reflexões. No
contexto brasileiro, por exemplo, em meio a um Estado que se
retira cada vez mais das políticas públicas sociais, sendo a educa-
ção um dos campos mais atingidos por este esvaziamento, a luta
pela escola pública e de responsabilidade do Estado permanece
atual. Também a denúncia de Lutero sobre a desvalorização do
trabalho docente no seu tempo poderia muito bem ser aplicada à
contemporaneidade brasileira. Ainda se constituem parte do coti-
diano de professores e professoras as lutas contra cargas horárias
excessivas de trabalho, baixos salários e a constante ameaça de
uma aposentadoria cada vez mais tardia.
Também as interdições impostas pela Reforma Protestante à
livre interpretação do escrito, bem como os filtros utilizados na
formação da biblioteca reformada, sinalizam para a historicidade
da não neutralidade do currículo. Transpondo o pensamento de
Lutero sobre as diferenças no programa educacional direcionado a
meninos e meninas, podemos ainda pensar na constante proposta
de formação identitária pela escola a partir de uma rígida com-
preensão de gênero. Enfim, essas são apenas sucintas reflexões
que mostram traços do pensamento educacional de Lutero e sua
contribuição para uma análise crítica do presente e a superação
de permanências.

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A Reforma Protestante e a educação pública: uma reflexão a partir do pensamento de Martinho Lutero

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Data de submissão: 18/10/2019


Data de aprovação: 10/11/2019

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