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Cândida Proença, Didáctica da História, Lisboa, Universidade Aberta,

1989, p. 26-31.

“1.2 Historiografia e ensino da História


O discurso historiográfico, tal como hoje em dia se manifesta, com as suas
exigências de inteligibilidade e as suas preocupações metodológicas, não é
uma categoria constante e imutável. Constituiu-se, ao longo de séculos, como
produto de diversas condicionantes políticas, religiosas, culturais ou
científicas. Como se sabe, essa evolução não foi linear, e, em dado
momento, podemos assistir à coexistência de vários discursos simultâneos,
como uma observação atenta da historiografia actual o pode demonstrar.
Ora, o professor de História deve estar atento à evolução do pensamento
histórico e da produção historiográfica sob pena de empobrecer, ou mesmo
falsear, o seu ensino. Nesta perspectiva procederemos a uma breve evocação
das diversas fases do conhecimento histórico, para, em seguida, nos
debruçarmos sobre algumas das questões que hoje se colocam aos
representantes da «Nova História».

1.2.1. As etapas da História como forma de conhecimento


A herança da Grécia Clássica — a interpretação do passado tem antecedentes
muito remotos sendo, contudo, comum acentuar-se o papel da Grécia Clássica
na formação do espírito historiador e na construção do pensamento racional.
Até ao século V, a interpretação do passado fazia-se pela projecção no presente
de mitos que tinham como função explicar a formação da realidade pela
intervenção de seres sobrenaturais.
As transformações económicas, sociais e políticas que ocorreram na Grécia
entre os séculos VIII e IV e a formação da cidade democrática (onde as regras
do jogo político — o debate, a argumentação contraditória — comandavam as
regras do jogo intelectual) contribuíram para modificar o universo mental dos
gregos. Aos factores internos vieram juntar-se os factores externos. Com a
vitória sobre os persas a Grécia tomou consciência do seu destino político.
Como afirma F. Chatelet

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o mais fundo alicerce sobre o qual podem desenvolver-se essa compreensão mesmo
que fragmentária, da historicidade e a decisão de «fazer história» é a apreensão pelo
homem da dimensão política do seu destino, a consciência que ele tem de ser um
sujeito actuante neste mundo sensível, profano, no seio de uma comunidade da qual
ele depende, isto é, o conhecimento daquilo em que consiste a liberdade real1.
Na Grécia Clássica, Heródoto e Tucídedes são considerados como os
fundadores da História. No seu esforço de interpretação dos factos
que narra Heródoto ainda faz intervir as intenções ou conflitos dos
deuses. Tucídedes, porém, ao relatar-nos a guerra do Peloponeso foge
das interpretações maravilhosas procurando uma inteligibilidade
assente na informação objectiva. Esboça, à sua maneira um sistema
explicativo esforçando-se por relacionar os acontecimentos e por
confrontar as decisões com as possibilidades.
A sua orientação será seguida, três séculos depois, por Políbio que
ensaia análises quase sociológicas das instituições.
Os contributos cristão e árabe — segundo H. I. Marrou2 o cristianismo
contribuiu de dois modos para o desenvolvimento do pensamento
histórico. Em primeiro lugar, porque assenta numa concepção de
tempo contínua e irreversível (como religião histórica os acontecimentos
da vida de Jesus são datados e localizados). Em segundo lugar, porque
nos transmitiu uma Filosofia da História ao considerar o papel da
Providência como motor da evolução.
0 mundo árabe também nos legou um importante contributo para a
formação da história científica com Ibn Khaldum e as suas tentativas
de analisar as estruturas dos grupos sociais e de relacionar diversas
domínios da realidade (demografia, economia, geografia ...)3.
Durante a Idade Média, a multiplicidade de documentos escritos
(testamentos, diplomas, tratados, legados ...) veio conferir à História
uma função prática: verificação da autenticidade e veracidade dos
documentos. Não é demais realçar o desenvolvimento das crónicas
neste período. Como testemunhos escritos do passado, as crónicas são os
primeiros documentos de História propriamente dita. O caso de Fernão
Lopes é um excelente exemplo.
0 aparecimento de exigências na definição e na prática da
História - o desenvolvimento do espírito crítico do Renascimento teve
reflexos a nível da História que passou a ser um meio de
fundamentação das críticas à sociedade do tempo. Erasmo e Montaigne,
por exemplo, utilizam textos de Antiguidade para denunciar os
excessos da pedagogia medieval.
A reforma religiosa contribuiu, por seu turno, para desenvolver a
preocupação da crítica de textos. Para fundamentarem a sua doutrina e
se autoproclamarem como legítimos herdeiros das primeiras
comunidades cristãs, os movimentos religiosos foram incitados a
proceder a uma análise dos textos sagrados no sentido de verificar a
sua autenticidade.

1
Citado por Antoine Léon, Introdução à História da Educação, p. 26.
2
H. I. Marrou, -Les créaterurs de 1'hisloire» in L'Histoire et ses méihodes.
3
Cf. A. Casanova, Aujourd’hui 1'histoire
27
Nota-se também o interesse pela aplicação dos resultados da investigação
erudita na resolução dos problemas. A Réponse à M. de Malestroit, de Jean
Bodin, é um bom exemplo, ao aplicar a um problema concreto — a causa do
enorme aumento do custo de vida no século XVI — uma série de observações
eruditas e críticas sobre moedas e preços. Convém não esquecer que os
descobrimentos marítimos e as suas consequências representavam um
problema prático que afectava a vida quotidiana. Ora, o facto de se terem
ensaiado tentativas de explicação destas questões, no próprio momento,
segundo uma perspectiva histórica, faz-nos situar no século XVI, uma etapa
importante do aparecimento do conhecimento científico em História.
O século XVII. Avanços e retrocessos — as acusações dos protestantes contra as
crenças católicas motivaram alguns meios católicos a uma hipercrítica das
suas tradições, tendo os jesuítas de Ambers chegado a negar toda a validade a
qualquer documento da época merovíngia ou carolíngia. Esta afirmação
punha em dúvida o direito das comunidades mais antigas, entre elas os
beneditinos que contribuíram, decisivamente, para o desenvolvimento das
técnicas de crítica erudita dos documentos através da diplomática.
Contemporaneamente, porém, verificava-se, nas concepções históricas
oficiais, um evidente retrocesso: Luís XIV rodeava-se de «historiógrafos»
oficiais e Bossuet, no Discurso sobre a história universal, procura apenas
desvendar «os pensamentos secretos de Deus».
Ao mesmo tempo, em Inglaterra davam-se importantes passos para o futuro
do pensamento histórico. Surgiram os primeiros ensaios de demografia
histórica; as primeiras tentativas de avaliação do produto nacional; e, com
William Petty, os primeiros trabalhos do que ele próprio denominou de
«aritmética política» — induções e deduções a partir das estatísticas
políticas.
O século XVIII. A caminho da análise e síntese históricas — Neste século,
e sob o impulso da «Filosofia das Luzes», a História desenvolveu-se a vários
níveis. 0 seu conteúdo deixou, decididamente, de se limitar às narrações de
guerras ou das vidas dos monarcas. O campo da investigação histórica é
substancialmente alargado. Voltaire, no Essai sur les moeurs et Vesprit des
nations, é um bom exemplo desta tendência:
Eu desejo descobrir como era então (nos séculos XII e XIV) a sociedade dos homens,
como se vivia no interior das famílias, que artes eram cultivadas, em vez de repetir
tantas desgraças e tantos combates, funestos objectos da história, e lugares
comuns da maldade humana.4
Tratava-se de mudar a matéria habitual e a problemática da História.
Os iluministas propunham-se mostrar, pela razão e pelos factos, que não existe
limite ao aperfeiçoamento do homem. Esta crença no progresso contínuo da
humanidade derivado do desenvolvimento da ciência e da instrução é visível
em Condorcet que pretende

4
Voltaire, Essai sur les moeurs et l’esprit des nations (1740-1769), citado por Antoine
Léon, Introdução à História da Educação, p. 29.

28
mostrar, pelo raciocínio e pelos factos, que não foi indicado nenhum limite ao
aperfeiçoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é
realmente indefinida; que os progressos dessa perfectibilidade, doravante
independente de todo e qualquer poder que a pretenda sustar, não têm outro limite
senão a duração do globo em que a natureza nos pôs5.
Com outros iluministas, Condorcet partilhava a crença no progresso e
aperfeiçoamento da humanidade pelo efeito da ciência e da instrução.
Os progressos das ciências garantem os progressos da arte de instruir, e estes vão
depois acelerar os das ciências; e esta influência recíproca, cuja acção se renova
incessantemente, deve ser incluída no número das mais activas e mais poderosas
causas do aperfeiçoamento da espécie humana6.
O incremento do interesse pela História manifesta-se também pela sua
inclusão nos programas de ensino de determinadas escolas, entre elas,
os colégios oratorianos e as escolas militares.
Com o advento da Revolução, a História adquire uma função política.
A recuperação do passado tem, então, intuitos de exaltação das glórias
pátrias. esta posição limita os progressos da objectividade histórica, e
assume-se como uma resposta à necessidade de legitimação de uma
situação de conflito. Ainda nos nossos dias, é comum assistirmos a
tentativas de ultrapassar situações de isolamento ou de conflito pela
busca de uma legitimação assente em exemplos do passado.
0 século XIX e a especialização da História — A fase revolucionária
que marcou, em França, os finais do século XVIII, alastrou por toda a
Europa, originando a desagregação das antigas instituições e o
surgimento e aplicação de novas ideias nos vários campos: político,
económico, social, cultural e mental. Esta situação que se prolongou
pela primeira metade do século XIX, explica em grande parte o triunfo
da história filosófica e das posições hegelianas. Com Hegel a História
Universal é a contínua realização da Ideia.
Os historiadores franceses punham em relevo a luta entre a nobreza
e o terceiro estado (Guizot, Thierrry) ou o papel do povo (Michelet) os
historiadores alemães realçavam as originalidades germânicas. Isto
é, apesar do grande desenvolvimento das técnicas históricas e
arqueológicas, então verificado, a História continuava a ser umas vezes
literatura, outras vezes ideologia. Na segunda metade do século,
ocorreu um poderoso movimento de contestação da Filosofia da
História, sob a influência do positivismo, no sentido da criação de
uma História científica de carácter erudito e técnico liberta dos
vínculos que a ligavam à Filosofia. Ao mesmo tempo,
desenvolveram-se diversas disciplinas especializadas: História
Económica, História Política, História das Civilizações, etc. No campo
da História Económica foi notória a influência de Marx que, segundo
Pierre Vilar, se caracterizou: pela substituição dos mecanismos da
sucessão dos acontecimentos pela dinâmica das estruturas; pela recusa
de todo e qualquer compartimen-

5
A. N. Condorcet, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l’esprit humain,
citado por Antoine Léon, op. cit.,p. 29.
6
Idem, ibidem
29
tacão, entre os vários sectores da História; pela importância atribuída ao
factor económico como determinante — essencial mas não exclusivo — do
curso da História7.
A produção histórica dos finais do século XIX e princípios do século XX pouco
beneficiou do contributo de Marx e a História positivista triunfava por todo o
lado impedindo, com a sua excessiva especialização, a elaboração de sínteses
globais sobre o passado da humanidade.

1.2.2 A Nova História e a relativização da actividade histórica


No século XX, em torno da revista Annales, um grupo de historiadores de que
faziam parte Lucien Fevbre e Marc Bloch, empreendeu uma forte renovação
no conhecimento histórico. As linhas mestras dessa renovação podem
sistematizar-se nas seguintes tendências que, desde então, se têm
manifestado8:
. Ampliação dos centros de interesse do historiador: a história total,
preconizada por L. Fevbre, engloba diversas séries evolutivas
(económica, social, psicológica, ...) e interessa-se simultaneamente pelo
mais remoto passado e pelo presente.
. Substituição da história narrativa pela história-problemas.
. Alargamento do campo dos documentos. Aos testemunhos escritos,
iconográficos ou arqueológicos juntam-se os testemunhos orais
(colhidos nas duas últimas testemunhas de costumes desaparecidos) ou
gravados (história recente). Além disso, o historiador de hoje está
atento aos «documentos imaginários» (representações que os homens
do passado tinham da realidade concreta) e aos «silêncios da história».
. Preocupação de ultrapassar a aparente unilinearidade da evolução e de
colocar o acento tónico nos conflitos e nos fenómenos de antecipação ou
de persistência que pontuam ou estruturam essa evolução.
. Consideração pelas relações de interdisciplinaridade que ligam a História
às disciplinas suas vizinhas (Geografia, Sociologia, Antropologia,
Etnologia, Psicologia, Linguística, Informática).
. Tendência para dar tanto peso à personalidade da testemunha ou às
condições de produção do testemunho como ao próprio conteúdo deste.
Esta última tendência alerta-nos para um processo de relativização do
conhecimento histórico que, para certos autores, se estende à própria
actividade do historiador. Para M. de Certeau9, o desenvolvimento ou
valorização de um sector da História depende da época. Neste sentido, a crise
do início dos anos trinta deste século, teria imposto a História Económica, do
mesmo modo que o aumento dos tempos livres e os meios de comunicação
de massa teriam realçado a importância da cultura.

________________
7
Cf. Pierre Vilar, «L’histoire après Marx» in Révue de l’Enseignement supérieur, 1969,
nº 44-45, pp. 15-26.
8
Antoine Léon, op. cit., p. 34.
9
Cf. Michel de Certeau, «A operação histórica» in Fazer História I.

30
Para Georges Duby essa relativização estende-se ao produto do trabalho
histórico, considerado como uma espécie de compromisso entre ciência e
ficção. O historiador só podendo atingir uma parte da realidade terá forçosa-
mente de preencher os vazios que se lhe apresentam.”

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