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TEATRO: ENTRE A ARTE E O CUIDADO
Thiago Lusvardi
Bruno Mariani de Souza Azevedo
Ricardo Sparapan Pena
Nicole Guimarães Cordone
Ângela Slongo Benetti
1 Portarias e resoluções, de Dez de 2017 a Jan de 2018, vêm acarretando mudanças significativas na
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e na lógica de cuidado, propondo uma nova relação entre os
espaços/ práticas de cuidado e os usuários dos serviços preconizados por esta rede. São determi-
nações e projetos de lei que preconizam um retorno a lógica hospitalocêntrica, manicomial, e no
caso de usuários de drogas, um modelo de atenção centrado na abstinência. (Resoluções CIT n.
32/2017, 35/ 2018, 36/2018; Portarias GM/MS n. 3588/2017, n. 2663/2017, n. 1315/2018, n.
2434/ 2018; Resolução CONAD n. 1/2018)
‘Eu posso até morrer, mas eu não vou fugir. Quando você chegou, eu já
estava aqui’. Esta fala diz respeito a um trecho de cena apresentada no Fórum
Arte e Clínica, organizado pela parceria entre o Grupo de Pesquisa Conexões
e a Oficina de Teatro apresentada aqui. Este Fórum público foi realizado no
primeiro semestre de 2018. Teve o objetivo de aproximar a Universidade e os
serviços de saúde de Campinas, em especial pelo trabalho voltado, embora não
exclusivamente, à população em situação de rua.
Implicados neste Fórum, aos usuários da oficina é proposto a construção
de uma cena a ser apresentada naquela noite sobre Arte e Clínica. Proposta acei-
ta, inicia-se a construção da cena a partir de uma performance já pronta, criada
por um dos usuários da oficina em um jogo teatral aplicado anteriormente. Este
fato já evidencia que uma apresentação apenas superficialmente fala sobre o
processo de construção que ela envolve. Relatar este resultado alcançado pelos
participantes da oficina será trazer o que esteve imbricado neste processo e que
muito se relaciona com o argumento deste trabalho, ao mencionar transforma-
ções e adaptações necessárias para a efetivação desta apresentação.
A cena dizia respeito a exploração de índios, expropriação de suas terras,
e preconceitos que levam a necessidade de lutas por parte do povo indígena até
os dias de hoje.
O trecho de cena citado acima é cantado em dois momentos da apre-
sentação. Em ambos, o grupo, devidamente caracterizados, está em roda, cami-
nha-se em círculos, cantando e batendo os bastões que cada um carrega na mão
no centro da roda que formam. É um momento muito vívido que retrata a
se vê logo ali, em cada esquina, em cada praça, em cada ponto do centro da ci-
dade. De uma existência que está tão próxima de cada um de nós, e que muitos
fazem questão de não ver.
Sustentar a ordem e o bem estar da sociedade é, de alguma forma, contar
com modos de existências colonizados a partir de um padrão universal de vida.
Modos de vidas atravessados pela considerada loucura, ou uso de drogas, são
considerados problemáticos, devendo sofrer intervenções de práticas que objeti-
vam sua transformação e revisão de condutas. E é uma resistência a isso que foi
possível ouvir na construção da cena proposta neste dia.
Eram gritos de resistência de uma população marginalizada que se or-
ganizaram e se afirmarem ao pronunciarem “mortes de índio nunca é assunto
da mesa do jantar”, lembrando que não é sobre índios apenas que falamos, mas
de modos de vida outros que não se enquadram e tem suas mortes permitidas
diariamente. Falam sobre a invisibilidade da violência sofrida por essas pessoas; os
assassinatos extrajudiciais cometidos na periferia pela chamada guerra às drogas.
Ou gritos como ‘‘Eu posso até morrer, mas eu não vou fugir. Quando
você chegou, eu já estava aqui.’ Que fala de uma vida que resiste. Uma vida ex-
posta, não blindada, que tem no corpo as marcas por não aceitarem se docilizar,
se domesticar, mas que resistem (PELBART, 2003).
Este relato é apenas um recorte do que a oficina produz, utilizado como
dispositivo para dar visibilidade aos agenciamentos que seus usuários vão reali-
zando a partir dela. A cena, e o Fórum em si, é um dos produtos daquilo que a
oficina possibilita enquanto espaço de transformação, criação e reinvenção. De-
mandou organização, compromisso, dedicação, de uma população cujos estigmas
vão na contramão destas mesmas características, mas que são possíveis verificar
quando nos permitirmos chegar mais próximos, disponíveis e abertos para que
outras verdades e saberes universais sejam rompidos em detrimento de saberes
sujeitados, normalmente sufocados pela ordem social estabelecida.
Falamos de usuários que conseguiram organizar sua rotina para se apre-
sentarem no espaço da oficina no dia e hora marcados; que conseguiram se
organizar para cumprir com o compromisso assumido perante o grupo, cada
um em seu papel. Falamos dos demais usuários do serviço que, embora não
participassem da cena em si, se organizaram para assistir ao Fórum na Unicamp.
Falamos por exemplo de um outro usuário, que também participou da
cena no Fórum, o qual certa vez, questiona a sua técnica de referência sobre o
fato de que a redução de seus surtos psicóticos, após iniciar o uso de remédios
controlados, estava acompanhado pela redução de sua função criativa e men-
ciona sentir falta disso. A possibilidade de explorar essa sua função na oficina de
teatro, apontada pela técnica, se concretiza, e para além de sua contribuição e
participação nesta e outras cenas e atividades propostas pela oficina, mudanças
corporais, no semblante e na força da voz ao se colocar passam a ser observadas
na oficina e demais espaços do CAPS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS: