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Clínicas do Trabalho e Paradigma Estético

Fernanda Spanier Amador1

Maria Elizabeth Barros de Barros2

Tania Mara Galli Fonseca3

Recentemente, no âmbito de discussões relativas ao trabalho humano, temos


encontrado a expressão Clínicas do Trabalho para designar uma série de aportes teóricos e
metodológicos no que se refere às relações entre trabalho, subjetividade e saúde.

Tal designação, no plural, convoca à operação de um plano de polivocidade. Trata-se


de abarcar referenciais que, com diferenciadas nuances, mantém uma certa direção ético-
política que as aglutinam, fazendo proliferar idéias e conceitos oriundos do diálogo e/ou da
intercessão entre elas. Seja pela discordância, seja por íntima sintonia, as diversas abordagens
encontrando-se pela intercessão da palavra “clínica”, põem questões ao nosso pensamento.
Lançam-nos a um exercício de crítica e clínica, como sugere Deleuze (1997), que nos força,
estudiosos e pesquisadores no âmbito do trabalho, a uma espécie de pensamento estilístico
pelo qual apostamos em disjunções inclusivas. Por elas, travamos uma luta contra as
possibilidades de desembocarmos em uma espécie de entropia intelectual que nos forçaria a
aderir a determinadas filiações teórico-metodológicas em relação de subalternização e,
conseqüentemente, de parca criação.

Interessa-nos os modos como os trabalhadores fazem vida e obra emergirem a um só


golpe. Isso é o que entendemos por crítica e clínica, tanto em relação ao trabalho dos outros
como em relação a nossa própria atividade de pesquisadores e pesquisadoras tratando da
temática trabalho. Clínica-processo, clínica-afirmação do movimento, clínica-processo
inventivo que expande vida, que aumenta o poder de afetar, de pensar e de agir, de outrar
permanentemente em um processo incessante de criação e recriação.

Clínica que inseparável de uma estética, leva-nos a interrogar a respeito de arte e vida
nos processos de trabalho. Clínica que como crítica nada tem a ver com o pensamento crítico e
sim com uma crítica estética e/ou artística como sugere Saidon (2008), a qual procede por uma
lógica das afecções. Lógica essa efetivada por sensações, pela matéria de que é feita a obra de
arte, o que nos instiga a um exercício do pensamento acerca de Clínicas do Trabalho e
Paradigma Estético.

Guattari (1992) convoca a pensarmos nesses termos: como reconciliar com a estética,
diferentes esferas da vida social tais como a econômica e a política? Como refazer o giro pelo
qual se apartou, na história do Ocidente, a estética da vida, fazendo corresponder estética e
esfera artística?

1
Psicóloga, Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e Institucional/UFRGS.
2
Psicóloga, Professora Doutora do Departamento de Psicologia/UFES e dos Programas de Pós-graduação
em Psicologia Institucional/UFES e de Educação/UFES.
3
Psicóloga, Professora Doutora dos Programas de Pós-graduação em Psicologia Social e
Institucional/UFRGS) e de Informática na Educação/UFRGS.
No rastro dessas indagações, sugere falarmos em paradigma proto-estético de modo a
escapar da perspectiva da obra de arte institucionalizada. É para uma dimensão de criação em
estado nascente, potência de emergência que dá passagem a ser dos universos materiais, que
ele propõe, voltemos nosso olhar.

Assim, pensamos: como lançar o trabalho à suas referências virtuais para recusar
pensá-lo em termos de relações objetais e de funções? Como, pelas análises dos processos de
trabalho, encontrar seu suporte para a produção de afectos e de perceptos que tendem ao
excentramento? Que estratégias criar para voltarmo-nos à passagem a ser de modos de
trabalhar e de existir como trabalhadores e trabalhadoras incrementando focos criacionistas e
de consistência autopoiética?

Eis a clínica do trabalho estética, que ao mesmo tempo ética, afirma os processos de
singularização em uma relação de responsabilidade que reafirma a existência coletiva como
dimensão política.

Esta é a direção sinalizada por diferentes abordagens Clínicas do Trabalho,


especialmente aquelas que o tomam como atividade, isto, como “um élan de vida e de saúde,
sem limite predefinido, que sintetiza, atravessa e liga tudo o que as disciplinas têm
representado separadamente: o corpo e o espírito; o individual e o coletivo; o fazer e os
valores; o privado e o profissional, o imposto e o desejado” (Durrive, 2007; p.19).

Colocando ênfase no inédito do trabalho, abrem veredas para pensarmos em


subjetividades que emergem arrimadas às matérias de expressão que, por sua vez,
autoafirmam os processos de criação como fonte de processos existenciais. Invertem, ainda, o
movimento que vai do ser ao processo, para apostar no processo que leva ao ser.

É do coletivo, este um plano de comunalidade, um plano comum caracterizado como


esfera de multiplicidade e de impessoalidade - essa aqui tomada como zona de onde as vidas
podem emergir, onde singularizações podem ganhar vias de expansão -, que se vai aos corpos
trabalhadores-individuados. Coletivo que se fortalece como potência de passagem a ser de
modos de existir e de trabalhar em uma flagrante sinergia como o que entendemos como zona
proto-estética.

Assim, não é exatamente de quadros de referência operatórios definidos e


compartilhados que partimos, para em empreendimento clínico, apostarmos na criação de
modos de trabalhar. Antes que isso, são os modos como cada trabalhador e trabalhadora deles
se valem para estilizá-los que nos interessam, sendo nessa espécie de disparidade que o
coletivo se afirma e se sustenta.

Por isso, investimos com a concepção de crítica e clínica (Deleuze, 1997) a concepção
de Clínicas do Trabalho, especialmente aquela sustentada por Clot (2008) ao defini-la como
prática voltada para a expansão do poder de agir acionado pelo afrontamento com os dilemas
do trabalho e cujo traçado se faz pelos deslocamentos na ação individual e coletiva realizada,
bem como, pensamos, sobre os rastros daquilo que vai para além de suas realizações. Neste
sentido, tomamos o empreendimento clínico como afirmação do que está em vias de diferir,
como ativação de possibilidades de vida no trabalho, como dispositivo para operações de
criação frente aos poderes subjetivantes que atravessam a atividade, como exercício de
afirmação dos devires do trabalho no curso de sua transformação.

Apostando em autoconsistência do ser ao invés de em sua autoconsciência, é na


produção de um inconsciente que as Clínicas do Trabalho de inspiração paradigmática estética,
se fazem. Produzindo trabalho real pelo real do trabalho, esse último esfera que ultrapassa o
anterior em seu caráter concretizável, homens e mulheres em atividade encontram
possibilidades de, incessantemente, advirem outros em um processo que, se por um lado,
guarda uma dimensão de possibilidade de antecipação, por outro, sempre surpreende pelo
l’avenir, esse uma espécie de futuro que os arrasta para o que virá.

Este é o espírito que se encontra na materialidade dos textos produzidos para este
livro. Ativar modos inventivos de trabalhar, ativando-nos por nosso próprio trabalho de
pesquisadores na temática do trabalho humano em uma viagem cujo porto, nada mais é do
que um ponto no indiscernível, lugar esse pelo qual pensamos poder permanente revitalizar o
debate acerca das Clínicas do Trabalho. Não buscamos consenso, muito menos fomentar
disputas ou antagonismos. Afirmamos um ethos que busca tensionamentos/controvérsias que
afirmem a construção de um plano comum. Perseguimos a estilização dos modos de fazer
pesquisa dos processos de trabalho como variantes do gênero pesquisador, às quais se recorre
alternativamente. Um gênero profissional como uma dimensão que dá relevo ao cuidado com
o trabalho. O que buscamos, então? A construção de um plano comum da experiência - como
surgimento singular da experiência -, do que o trabalho tem de transformador da experiência
de realidade.

Para tanto, apresentamos o problema que o livro coloca: face à insuficiência das
abordagens nas análises do trabalho, vir agregar uma outra, em que o problema da ATIVIDADE
entra em ação, uma vez que se trata de relacionar TRABALHO E VIDA, focando as potências
dos múltiplos modos de trabalhar naquilo que virá subjetivar o agente do trabalho do ponto de
vista do aumento de suas próprias potências e reinvenção de si. Não se trata, exclusivamente,
de analisar modos de trabalhar, modos de subjetivar em contexto institucionalizados. Aqui,
damos voz a todo o tipo de trabalho – produtivo e reprodutivo - dando ênfase à implicação dos
sujeitos. Reunimos textos que fornecem os elementos conceituais indispensáveis para a
problematização e crítica da atividade no trabalho.

Pensa-se em fazer dançar a própria palavra trabalho, deslocando-a dos sentidos usuais
tão brilhantemente ofertados pela perspectiva do materialismo histórico, para aproximá-la da
experiência do trabalhar ressaltando sua dimensão ético-político-estética. Isso quer dizer que,
nessa abordagem, estamos interessados em ressaltar o trabalhar como atividade de
trabalhadores e trabalhadoras, permeado de agenciamentos humanos e inumanos, que,
portanto, ultrapassam o plano pessoal, e nos podem fazer ver sua complexidade. Colocando o
“trabalho em atividade”, abordamos os dispositivos com função clínica de que dispomos, para
tratar aquilo que estamos chamando de Clínica do Trabalho. Esta se dá pela problemática-eixo
desse livro: pensar o trabalho em inseparabilidade da noção de atividade, sendo esta ligada ao
inconsciente maquínico e à produção de desejos, subsidiária, em última instância, da palavra
VIDA.
Referências Bibliográficas:

CLOT, Yves. Travail et pouvoir d’agir. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

DURRIVE, Louis. Introdução I. Trabalho & Ergologia. Conversas sobre a atividade humana.
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007.

GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992.

SAIDON, Osvaldo. Devires da Clínica. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

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