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CASTRO, Eduardo Viveiros de. (2002), A incons- A propósito de emancipação


tância da alma selvagem e outros ensaios de an- em Christophe Dejours
tropologia. São Paulo, Cosac Naify.
CRAPANZANO, Vincent. (1988), “Diálogo”. Christophe Dejours. Trabalho vivo: trabalho e
Anuário antropológico, n. 88. Brasília, Editora emancipação. Brasília, Paralelo 15, 2012, 2 vols.
UnB/Tempo Brasileiro. 436 páginas.
ECO, Umberto. (1970), Apocalípticos e integrados. Sadi Dal Rosso
São Paulo, Perspectiva, 1970.
GADAMER, Hans-Georg. (1986), The relevance Christophe Dejours é amplamente conhecido
of the beautiful and other essays. Cambridge, por suas críticas às teses neoliberais que defendem
Cambridge University Press. princípios e práticas de organização do trabalho,
HALL, Stuart. (2003), Da diáspora: identidades e cujas consequências para os trabalhadores são co-
mediações culturais. Belo Horizonte, Editora nhecidas na sociologia, antropologia, psicologia,
UFMG. gestão do trabalho e economia. É significativa sua
HARAWAY, Donna. (2000), “Manifesto Ciborgue: contribuição para o estudo das relações entre subje-
ciência, tecnologia e feminismo-socialista no tividade e trabalho e grande estimulador da psico-
final do século XX”, in H. Kunzru e T. T. Silva dinâmica do trabalho. Em 2012, a editora Paralelo
(orgs.), Antropologia do ciborgue: as vertigens do 15, de Brasília, publicou Trabalho vivo: trabalho e
pós-humano, Belo Horizonte, Autêntica. emancipação, livro organizado em dois volumes: o
HEIDEGGER, Martin. (1994), “La pregunta por primeiro, sobre sexualidade e trabalho; o segundo,
la técnica”, in ______, Conferencias y artículos, a respeito de trabalho e emancipação.
Barcelona, Ediciones del Serbal. Disponível em As 436 páginas da obra atestam a grandiosi-
www.monografias.com/trabajos-pdf/pregunta- dade do empreendimento intelectual do autor,
-tecnica/pregunta-tecnica.pdf, consultado em que visa não só relacionar sexualidade e trabalho,
23/2/2014. mas também desenvolver uma ousada proposta de
MARTÍN-BARBERO, Jesús. (2001), Dos meios às emancipação. Do ponto de vista metodológico,
mediações: comunicação, cultura e hegemonia. seus fundamentos ancoram-se em debates teóricos
Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2001. sobre o sentido do trabalho para a realização ou
SANTAELLA, Lucia (2003), Culturas e artes do desgraça humanas, disponíveis na ampla literatura
pós-humano: da cultura das mídias à cibercultu- das ciências sociais e da psicanálise e em conheci-
ra. São Paulo, Paulus. mentos práticos decorrentes da longa experiência
adquirida em práticas clínicas.
Denise Machado Cardoso O livro investiga que relações existem e podem
é antropóloga, doutora em desenvolvimento ser desenvolvidas entre a centralidade da sexuali-
socioambiental e docente de ciências sociais dade e a centralidade do trabalho. A centralidade
da Universidade Federal do Pará. da sexualidade para o ser humano é desenvolvida
E-mail: denise@ufba.br.
com base em conceitos e teses de Freud e de outros
autores. Já a centralidade do trabalho, como é tra-
tada no livro, resulta de uma elaboração própria do
autor, que combina, de maneira muito particular,
as relações entre afeto e trabalho. Os pesquisadores
das ciências sociais sabem que essa questão come-
çou a colocar-se para os conhecimentos do traba-
lho a partir do advento da modernidade, quando
questões magnas – tais como construir teoricamen-
te uma explicação para os fundamentos do valor
no trabalho – tornaram-se necessárias e o trabalho
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passou a desempenhar papel insubstituível para a origem da excitação e das curiosidades da criança
acumulação de capital. que, por seu turno, estão na origem de seu corpo
A empreitada de Dejours inicia-se pelos funda- erótico e de sua sexualidade. E é bem este mesmo
mentos do trabalho para o sujeito. O sentido onto- corpo da experiência a mais íntima e da relação
lógico da questão ultrapassa o âmbito da propos- com o outro, que é convocado no trabalhar” (vol.
ta – amplamente acatada pelo autor, aliás – de que I, p. 30).
o trabalho transforma o ser social. Dejours defende Nesse campo do pré-reflexo encontram-se no
que o corpo também produz conhecimentos, o que sujeito trabalho e sexualidade.
implica a distinção entre trabalho prescrito e traba- A proposta, que chamei de ontológica, sobre a
lho real. O conhecimento para a realização do tra- compreensão da natureza do sujeito é uma questão
balho real é produzido pela inteligência do corpo, maior para a filosofia, para a psicologia e para as de-
não pela inteligência reflexa. O autor separa, pois, mais esferas do conhecimento que têm na comple-
as inteligências aplicadas ao trabalho em inteligên- xidade do ser humano seus temas de investigação.
cia reflexa e inteligência do corpo. A inteligência do Não admira, pois, que o autor recorra aos gregos
corpo tem fundamentos tão profundos no âmago para resgatar argumentos em favor de sua interpre-
do ser humano quanto a sexualidade. O trabalho é tação, passando por autores modernos, como Freud,
uma dimensão importante para o sujeito não ape- da psicanálise e a da psicodinâmica do trabalho.
nas na vida adulta, quando sai à procura de empre- A proposta de Dejours é impecável analítica e
go, mas desde as fases iniciais da infância. Por meio teoricamente: sexualidade e trabalho encontram-se
da inteligência do corpo, o sujeito, aqui represen- nos espaços da inteligência astuciosa do corpo, no
tado pela criança, ainda não dispondo do respaldo espaço do pré-reflexo, espaço real que move o tra-
do aparato inteiramente desenvolvido da inteligên- balho e que é responsável por partes significativas
cia reflexiva, enfrenta as provas que o mundo real do trabalho. Sexualidade e trabalho não são anta-
apresenta e, a seu modo, propõe diálogos e desa- gônicos. A inteligência reflexa deve uma grande
fios aos adultos, assimila respostas, introjeta com- quantidade de elementos à experiência do corpo,
portamentos, hábitos e práticas. Essa inteligência por meio do qual se desenvolvem conhecimentos
do corpo, que pode ser detectada por mecanismos e experiências que ficam anexados ao pensamento
semelhantes aos que movem a sexualidade, conti- reflexo. A teoria freudiana não desenvolveu uma
nua com o sujeito em todas as fases de sua vida, construção para o lugar do corpo no sujeito, como
sendo responsável pela geração dos conhecimentos fez em relação à sexualidade. Esse empreendimen-
aplicados à resolução de problemas suscitados pelo to é reflexivamente assumido pelo autor, valendo
trabalho real no dia a dia. Ela mobiliza toda a parte acrescentar que se trata de um projeto com caráter
afetiva do sujeito, inclusive os sonhos, que são uma emancipatório para o sujeito mediante o trabalho,
peça importante na explicitação de problemas e na “um projeto fundador de uma antropologia do tra-
procura de soluções. balho” (vol. I, p. 87).
Esse modo de apropriação do real pelo corpo é Como seria a relação do corpo com a produ-
chamado de corpropriação. “Este corpo se apropria ção do pensamento imaterial? Como nasce uma
do mundo [...] [e é a] corpropriação do mundo”. ideia a partir da experiência do corpo? Como
Este é o segundo corpo; não é o corpo dos biólo- o pensamento e o Eu se engendram a partir do
gos. “Ao segundo corpo, a este corpo subjetivo [...] corpo biológico? A tese construída segue Freud,
dá-se na psicanálise o nome de corpo erógeno. Pois para quem a parte mais importante não estaria no
possuímos dois corpos” – o corpo biológico e o consciente, no reflexivo, nos atos controlados pela
corpo erógeno. O corpo erógeno é construído aos inteligência formal do sujeito, mas no arcano, no
poucos “na relação corpo a corpo entre a criança e escondido, reprimido no subconsciente. O pen-
o adulto em torno dos cuidados e asseios corporais samento nasce com a cooperação do corpo, é de-
[...] os cuidados com o corpo estão contaminados senvolvido pelo corpo, passa pelo corpo, implica
pelo sexual e é essa contaminação sexual que está na o corpo, não se restringe apenas à mente reflexiva
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e estruturante. Daí que o “Eu é um Eu-corpo. O balha não é só uma cabeça pensante, uma mão ope-
Eu é um corpo pensante” (vol. I, p. 81). Dejours rante ou um sentimento ambulante. A pessoa que
trata as instâncias como duas inteligências, ou trabalha é una, integral, cabeça, mão e sentimento. É
como dois corpos e não como uma inteligência impossível ao trabalhador deixar de fora de seu local
e um corpo que se desdobram em mais de uma de trabalho uma paixão reprimida, um problema fi-
forma de manifestação, uma exterior e interior. O nanceiro mal resolvido, a dor na mão arranhada, no
exemplo da criança recém-nascida e sua expressão joelho ou no pé torcido.
da vontade por meio do choro e de outras ma- O segundo volume da obra retém a mesma
nifestações corporais ilustra aquilo que o autor estrutura do primeiro. São oito capítulos – o que
estabelece como a percepção imediata. A criança atesta a impossibilidade de um balanço das princi-
expressa pelo choro sua vontade, e suas reações pais ideias – nos quais o autor desenvolve a tese da
respondem ao meio ambiente. É como se o corpo emancipação pelo trabalho. Se emancipação não
falasse de uma forma diversa que os demais apre- é um conceito novo nos estudos do trabalho, são
endem intuitivamente. A inteligência do corpo é novas a forma de tratamento e a proposta política
uma inteligência astuciosa. O terreno da apreen- de implementação do projeto emancipatório que
são por meio da reflexividade seria algo distinto, ele formula.
pois a inteligência da mente supõe a mobilização Dejours se defende da crítica de que sua teo-
de faculdades e operações distintas. ria do trabalho seria individualizante, introduzin-
No caminho de construir uma teoria do traba- do a dimensão de sexo e gênero, pela qual capta
lho que incorpore a subjetividade, o autor de algu- o vigoroso movimento das mulheres, e incluindo
ma maneira segue a trajetória de Freud, de acordo noções tais quais cooperação e democracia como
com a qual forças importantes encontram-se sitia- parte do projeto emancipatório do trabalho. “O
das no inconsciente e sua explicitação pode incidir trabalhar envolve a relação subjetiva com a tarefa,
na construção do bem ou do mal para o sujeito em que pertence ao campo individual, e a cooperação,
si e para as demais pessoas envolvidas. Assim opera- que pertence ao campo coletivo” (vol. II, p. 189).
ria também a subjetividade em relação ao trabalho, “É possível reunir a subjetividade singular e a ação
ao desencadear forças que podem ser construtivas coletiva na pólis” (vol. II, p. 42) numa proposta po-
ou destrutivas, portadoras de prazer ou sofrimento, lítica maior, que incorpora também a dimensão de
de realização ou recalque, que cooperam para o de- autonomia no trabalho. Desse aspecto surge a críti-
senvolvimento ou escravização e que fariam parte ca ao neoliberalismo e a suas práticas de individua-
do ser humano. lização e de concorrência, de avaliações quantitativa
Os comentários feitos até aqui são insuficientes e objetiva do trabalho e de remuneração segundo
para dar conta da discussão extremamente elaborada essas avaliações. Esse conjunto produziria impactos
do autor nos oito capítulos que compõem o primei- negativos sobre a saúde física e mental dos traba-
ro volume. Dejours trata da questão da inteligência lhadores, entre os quais são mencionados o agra-
do corpo, desenvolve os fundamentos filosóficos da vamento das patologias mentais, novas patologias,
teoria do corpo pensante, avança no sentido de uma suicídios, patologias de intensificação do trabalho,
teoria da centralidade da sexualidade, compatível patologias de assédio e outros componentes negati-
com uma teoria da centralidade do trabalho, abre vos do trabalho contemporâneo.
espaço para a questão da gênese da violência, inter- A que condições deveria atender uma políti-
preta a violência ordinária no trabalho doméstico e ca do trabalho e como ela poderia ser organizada
retoma, por fim, a tese da “corpropriação do mun- para modificar uma sociedade calcada em circuitos
do”. Ele realiza uma façanha ao articular o sujeito que produzem negatividades? A base para tal pro-
que trabalha com a sexualidade que lhe é inerente, a posta consiste na “compreensão da força colossal
qual é impossível deixar fora do contexto. Essa ma- do trabalho em relação a solidariedades, civilida-
neira de conceber o indivíduo que trabalha em seus de, cultura, direito e instituições” (vol. II, p. 204),
aspectos integrais tem um sentido holista. Quem tra- para o bem ou para o mal. Do reconhecimento
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dessa força imensa podem derivar princípios para possível. A gestão do trabalho não é a mesma atra-
uma política transformadora do trabalho. Seria vés do tempo. São notórias as diferenças entre as
necessário: a) desenvolver uma “doutrina do tra- formas taylorista, fordista e toyotista, que vêm se
balho com base na reavaliação das relações entre sucedendo e que representam esforços concentra-
trabalho e pólis, trabalho e violência, trabalho e dos de pesquisadores e consultores a fim de incre-
escola, trabalho e cultura, trabalho e democracia” mentar a produtividade do trabalho a benefício das
(Idem); b) fazer evoluir os métodos de direção e empresas. Vale mencionar que, em sua concepção
gerenciamento de empresas e órgãos púbicos; c) de organização, trabalhadores e empregadores não
formar pesquisadores e professores “de forma a são relacionados de forma contraditória, contrá-
remanejar os conteúdos do ensino em grandes es- ria, divergente; têm interesses e práticas diversos,
colas destinadas à formação de engenheiros, admi- mas não opostos – cada trabalhador tem que sa-
nistradores, economistas” (Idem); d) “introduzir o ber como os outros trabalham, e é necessário que
ensino dos princípios de uma política do trabalho confiem tanto nos “colegas como nos chefes” (vol.
nas universidades e demais instituições de ensino II, p. 80). É possível assim desenvolver ações con-
superior” (Idem); e) “operar uma verdadeira muta- juntas de transformação estrutural entre emprega-
ção, apoiada por um debate de dimensões nacio- dores e trabalhadores, uma vez que os móveis das
nais” (vol. II, p. 205). ações encontram-se nas bases de constituição do ser
Como avaliar uma proposta dessa natureza? humano e podem ser modificados, acompanhando
O próprio autor registra um realismo cético. “Um a transformação dos indivíduos em clínicas de tra-
remanejamento tão considerável parece hoje bem balho, bem como a massificação e a generalização
pouco provável. Mas então a decadência de nossa dessa “doutrina do trabalho” em universidades e
cultura e de nossa sociedade não poderá ser con- instituições de ensino superior e em debates nacio-
trolada” (Idem). Ante a força do neoliberalismo na nais. Porém, se existir uma relação conflitiva entre
sociedade mundial, não poderia ser outra a avalia- empregadores e trabalhadores, a mutação dos in-
ção de que a “conjuntura não está propícia para a divíduos também releva uma transformação social
plena recuperação das políticas de trabalho. É antes maior, que põe em xeque os princípios estrutura-
tempo para controvérsia [...] meditação” (Idem). dores da acumulação. Talvez o fundamento real da
Como poderia ser explicitada uma crítica a esse – crítica alçada a Marx (vol. II, p. 75) pela alienação
de outra maneira imponente – projeto intelectual? do trabalho seja de outra natureza, correspondendo
Por indigitação de ausências, de vazios e respectivas à compreensão do social-real como cooperativo e
implicações, que apontariam para a incompletude não conflitivo.
da proposta teórica e de intervenção. Como conseguir autonomia e emancipação
Não encontram guarida no esquema conceitual no trabalho quando a propriedade dos meios e dos
do autor movimentos sociais, associações, sindi- instrumentos é privada? A propriedade privada
catos, partidos e classes. Exceto o movimento das conduz à concentração da riqueza e ao emprego de
mulheres, outras dimensões da “ação coletiva” estão estratégias de gestão que continuamente elevem a
ausentes do livro. Elas não têm um papel significa- produtividade e intensidade do trabalho. A autono-
tivo a desempenhar e podem ser substituídas por mia e a emancipação requerem que o controle sobre
um “debate nacional”. Na proposta de transforma- as condições de exercício do trabalho estejam nas
ção há espaço somente para representantes institu- mãos dos trabalhadores. Para que o trabalho exerça
cionais, como pesquisadores e professores, e não um papel virtuoso que contribua com o desenvolvi-
para organizações de luta social, como sindicatos, mento dos seres humanos, estes devem manter em
associações, movimentos, classes e partidos. suas mãos o controle das condições sociais. Como
Outra ausência notória na concepção geral do dominar novas formas de intensificação do traba-
mundo do trabalho tem a ver com a organização lho se o controle do emprego está subordinado aos
capitalista contemporânea do trabalho, que visa a donos dos negócios, que com eles visam aumentar
acumulação de capital pela maneira mais racional seus ganhos?
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O leitor atento poderá enunciar outros pon-


tos críticos, ausentes da obra de Christophe De-
jours. Entretanto, as ciências sociais têm diversas
razões para justificar uma leitura cuidadosa do
texto: porque ele constrói uma proposta sobre tra-
balho com objetivo emancipatório; porque critica
o neoliberalismo em sua forma política de flexibi-
lização de direitos; porque defende a tese da cen-
tralidade do trabalho perante aqueles que acham
que o trabalho acabou ou está por acabar, quando,
diariamente, quase 3 bilhões de pessoas trabalham
oito horas ao dia.

Sadi Dal Rosso


é professor titular do Departamento de
Sociologia da Universidade de Brasília e
pesquisador do CNPq. E-mail: sadi@unb.br.

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