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Um Diálogo entre a Psicodinâmica do Trabalho e a Sociologia Clínica no Universo da Modernidade Líquida 106

Um diálogo entre a psicodinâmica do trabalho e a


sociologia clínica no universo da modernidade líquida

A dialogue between the psychodynamics of work and clinical sociology in


the world of liquid modernity

Antônio Roziano Linhares1 & Marcus Vinícius Soares Siqueira


Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo
Os trabalhadores se defrontam com transformações férteis à racionalidade instrumental, que fragmentam as relações
sociais e convertem os homens em utensílios organizacionais, assediados pela ditadura do medo e da insegurança,
sofrimento e adoecimento psíquico, razão por que elegemos como objetivo deste artigo estabelecer um diálogo
entre a Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do trabalho, de forma a identificar alternativas para o fomento do
prazer no trabalho, num ambiente dominado pela modernidade líquida. O estudo revelou que para combater o
individualismo; a cultura da urgência e da eficácia, bem como o seqüestro da autonomia, inteligência e desejo dos
trabalhadores se faz necessário o resgate da fala, humildade, alteridade, solidariedade e confiança, elementos capazes
de alijar a soberba narcísica que impede a dinâmica do reconhecimento, presença necessária para que o olhar do
outro reconheça as qualidades de seus pares, bem como para o encontro com o universo do prazer e saúde laboral.
Palavras-chave: Gestão, Trabalho, Saúde, Reconhecimento

Abstract
Workers face a set of transformations fertile for instrumental rationality, which fragments social relations and
converts men into organizational tools, harassed by the dictatorship of fear and insecurity, suffering and mental
illness. This is the reason why we have chosen as the aim of this paper to establish a dialogue between Clinical
Sociology and Psychodynamics of Work, in order to identify alternatives to promote pleasure at work in an
environment dominated by liquid modernity. The study reveals that to combat individualism; the culture of urgency
and effectiveness, as well as the kidnapping of autonomy, intelligence and the desire of the workers, it is necessary
to rescue speech, humility, otherness, solidarity and trust, elements capable of jettisoning the narcissistic arrogance
that prevents the free flow of the dynamics of recognition, a presence required to allow for the recognition of peers,
as well as a condition for the encounter of workers with the universe of pleasure and occupational health.
Keywords: Management, Work, Health, Recognition

Introdução revolução industrial contribuiu para a fecundação


O conjunto de transformações que marcaram a de um novo mundo, um mundo líquido,
história da humanidade, principalmente pós- caracterizado por contínuas transformações do

1 Contato: linnhares@ig.com.br

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mundo do trabalho, que à luz da metáfora reforça, segundo Bauman (2001) e Dejours et al.
baumaniana, revelou-se líquido, já que (1994), o quadro de precarização das condições de
caracterizado pela incerteza, fluidez e demanda por trabalho, tendo em vista que contribui para : a
agilidade, elementos que contribuíram para a reificação dos homens, convertidos em meros
precarização das condições laborais impostas aos recursos organizacionais; a fragmentação e
trabalhadores (Bauman, 2001; Cugini, 2008; desumanização das relações sociais; a migração da
Basílio, 2010). socialização para a individualização; a competição e
O cenário de liquidez do trabalho é ratificado fortalecimento do egoísmo, além da propagação do
por Antunes (2011) quando aponta um conjunto medo, ansiedade e insegurança, o que coloca em
de significativas transformações no mundo do xeque a capacidade dos trabalhadores atuarem
trabalho, entre as quais se destacam: redução do como sujeitos autônomos e detentores de
proletariado fabril, industrial e manual; inteligência crítica.
desemprego estrutural; surgimento da sociedade de Referido fenômeno se dá porque a inteligência
serviços (setor terciário) e da era da informatização e criatividade dos indivíduos são preteridas em prol
do trabalho; enorme ampliação do assalariamento das prescrições defendidas pelas organizações,
no setor de serviços; flexibilização da jornada e do sequestrando-se assim, dos trabalhadores, o livre
local de trabalho; fim da estabilidade no emprego; exercício da fala, do benefício da dúvida e do
maior demanda por profissionais mais qualificados contraditório, o que faz surgir entre eles um
(administradores, especialistas, técnicos, conjunto de patologias sociais relacionadas ao
funcionários administrativos e de vendas); trabalho, com destaque para a aceleração
significativa heterogeneização do trabalho; (engajamento frenético que ocupa todo o campo
crescente incorporação do contingente feminino de consciência dos trabalhadores e gera sobrecarga
no mundo operário; expansão do trabalho parcial, no trabalho (lesões de hipersolicitação, tais como a
temporário, precário, subcontratado e terceirizado, Lesão por Esforço Repetitivo – LER, e o
além da complexificação da classe trabalhadora. Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho
Referido cenário, fruto da desintegração do – Dort); a servidão voluntária (conformismo,
tradicional (Kuhn, 2011) e do derretimento de alienação e rendição do trabalhador ao ideário
sólidos, demanda, segundo Bauman (2001), a organizacional); e a violência organizacional
revisão de costumes, estilos de vida, hábitos e (assédio moral), patologias essas que colocam em
tradições, frente a uma sociedade global e em xeque o equilíbrio, a saúde física e mental dos
redes, mobilizada pela Revolução da Informação trabalhadores.
(Castells, 1999), onde a produção, o consumo e a Diante deste cenário, deparamo-nos com a
circulação de mercadorias ocorrem num universo necessidade de um debate crítico e comprometido
desprovido de fronteiras e assediado pela ética do sobre a realidade do mundo laboral, de forma a
utilitarismo, movimentos estes que desafiam a descortinar-se o quadro de desamparo, sofrimento
capacidade humana de acompanhar o ritmo das e adoecimento imposto aos trabalhadores,
transformações impostas aos trabalhadores; a condição necessária para a emersão de sua
manutenção do equilíbrio entre as demandas do consciência, bem como sua maior intervenção no
trabalho e o respeito a saúde e a individualidade mundo laboral, razão por que não podemos
(Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994), além de prescindir do conhecimento e das contribuições
também deixaram toda a complexa rede de trazidas por teóricos que pensam o trabalho. Em
relações sociais no ar – nua, desprotegida, função do exposto, elegemos como objetivo geral
desarmada e exposta, impotente para resistir às deste artigo estabelecer um diálogo entre aparatos
regras de ação e aos critérios inspirados pelos teóricos da Sociologia Clínica e da Psicodinâmica
negócios, viabilizando-se, assim, o desvio fatal: a do Trabalho, de forma a se identificar alternativas
assunção da racionalidade instrumental (Bauman, para o fomento do prazer e do bem estar no
2001). trabalho, num ambiente dominado pela
A demasiada preocupação da racionalidade modernidade líquida.
instrumental com a consecução da mais-valia A escolha das referidas correntes teóricas,

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como áreas de conhecimento propulsoras da nas organizações e no mundo do trabalho. Desta


melhor compreensão da realidade laboral, deu-se forma, a partir de suas intervenções a clínica tem
porque referidas correntes se ancoram numa papel central “para appréhender os fenômenos
perspectiva mais humanista, que reconhece o sociais, estes que constituem uma modalidade
homem como sujeito de sua história, marcado pelo particular de fazer pesquisa e de intervenção.
poder de resistência, de engajamento e de mudança Significa trabalhar o mais próximo do que é
diante da realidade de dominação simbólica, social, vivenciado pelos atores...” (Gaulejac, Hanique &
política e econômica inerente aos contextos de Roche 2007, p. 27).
trabalho (Enriquez, 2006). Uma das principais preocupações de autores
filiados à Sociologia Clínica (Gaulejac, Pagès e
Identidade e parentesco teórico entre a Enriquez) é o de sistematizar um conhecimento da
Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do realidade atual do mundo do trabalho,
Trabalho evidenciando o mal-estar vivenciado pelos
Tanto a Sociologia Clínica, quanto a trabalhadores em um mundo cada vez mais sobre
Psicodinâmica do Trabalho, movidas pela pressão, fortemente influenciado pelas
sensibilidade da ciência, que auscultando os transformações impostas ao mundo do trabalho:
movimentos da realidade detectou um conjunto de contínuas reestruturações; flexibilidade
mudanças que impactam sensivelmente o mundo organizacional; culto da urgência; intensificação do
do trabalho e, por conseguinte, as relações de trabalho, além da imposição de cargas psíquicas
equilíbrio entre trabalho, individualidade e saúde que mobilizam o psiquismo dos trabalhadores, que
dos trabalhadores, desenvolveram estudos e reféns do tabu do fracasso: medo do não
percursos teóricos que se complementam e reconhecimento da organização e da perda do
contribuem para a melhor compreensão da emprego diante do não cumprimento dos objetivos
realidade laboral, do sofrimento infligido aos organizacionais (Sennet, 2006), entregam-se
trabalhadores, bem como dos caminhos e incondicionalmente à consecução das metas
alternativas disponíveis para melhoria desta organizacionais, mesmo que para isso tenham que
realidade. ignorar seus desejos, inteligência, autonomia e até a
A defesa impetrada pela Sociologia Clínica no própria identidade (Gaulejac, 2011; Dejours &
sentido de garantir-se aos homens uma maior Molinier, 2004).
capacidade de intervenção no mundo do trabalho Referida realidade intensifica o quadro de
advém do espaço por ela reservado aos fatos sofrimento e adoecimento imposto aos indivíduos,
sociais totais, que coloca o sujeito no centro da que pode chegar a limites extremos, conforme
problemática analisada, o que segundo Gaulejac verificado nos casos de suicídio vinculados ao
(citado por Araújo & Carreteiro, 2001, p.37) se trabalho ocorridos na Renault e na France Telecom,
daria porque a Sociologia Clínica tem como situações que tem contribuído para elevar o nível
elementos constituintes: “a análise das articulações de preocupação em relação ao tema,
entre os determinismos sociais e os determinismos principalmente quando presentes práticas de
psíquicos, a questão do sujeito nas ciências gestão ancoradas na ditadura do medo e da
humanas e sociais e a démarche clínica como insegurança (Braverman, 1987), fatores esses que
condição necessária ao desenvolvimento de uma influenciaram sobremaneira os casos de suicídio
Sociologia Clínica”. vinculados ao trabalho (Merlo, 2009)
A Sociologia Clínica constitui-se, portanto, uma As transformações ocorridas no mundo do
disciplina indisciplinada, constrói-se a partir de trabalho, associadas aos danos trazidos à saúde dos
Durkheim, Freud, Mauss, Reich e da Escola de trabalhadores fizeram surgir outra corrente teórica,
Frankfurt, sempre com a preocupação em a Psicodinâmica do Trabalho, abordagem científica
compreender a relação indivíduo-empresa, o desenvolvida na França durante a década de 90 do
poder, o controle, o desejo e a autonomia século passado, por Christophe Dejours.
necessária para o indivíduo se fazer sujeito. Faz-se, Inicialmente ancorada nos referenciais teóricos da
portanto, a partir da prática, dos fatos vivenciados psicopatologia, seu objetivo se concentra, segundo

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Mendes (2007) no estudo das relações dinâmicas bloqueada em virtude das dificuldades de
entre organizações do trabalho e processos de negociação das diferentes forças que envolvem o
subjetivação, que se manifestam nas vivências de desejo da produção e o desejo do trabalhador, bem
prazer-sofrimento; nas estratégias para mediar como quando não é mais possível a negociação
contradições da organização do trabalho; nas entre o sujeito e a realidade imposta pela
patologias sociais; na saúde e no adoecimento dos organização do trabalho, o que não permite a
trabalhadores, em especial o mental. subversão do trabalho prescrito em um trabalho
A Psicodinâmica do Trabalho pressupõe o no qual o trabalhador use sua inteligência prática,
investimento da inteligência prática (criatividade), inviabilizando-se, portanto, a absorção da
da personalidade e da cooperação, como elementos criatividade dos trabalhadores pela organização
que articulados podem dar conta da loucura e (Dejours et al., 1994).
manter a saúde, à medida que são postos em Assim, quando o rearranjo da organização do
confronto com as tentativas de dominação da trabalho não é mais possível e a relação do
organização do trabalho. Para o sucesso do trabalhador com a organização do trabalho é
referido investimento apresenta-se, também, como bloqueada:
condição sine qua non o deslocamento do indivíduo a energia pulsional que não acha descarga no
para o coletivo do trabalho, já que sua ausência exercício do trabalho se acumula no aparelho
inviabiliza a mobilização da subjetividade dos psíquico, ocasionando um sentimento de
sujeitos e, por conseguinte, sua intervenção na desprazer e tensão....e quando as capacidades de
realidade (Mendes, 2007). contenção são transbordadas, a energia recua para
Desta forma, ainda segundo Mendes (2007) a o corpo, nele desencadeando certas perturbações,
Psicodinâmica do Trabalho considera fundamental podendo desencadear inclusive processos de
a oferta pela organização do trabalho, de espaços somatização (Dejours et al., 1994, p.29).
que permitam aos trabalhadores o exercício da Desta forma, à luz da Psicodinâmica do
liberdade de expressão pela fala, além da exposição Trabalho, o sofrimento seria inevitável, condição
da dúvida e do contraditório, o que facilita a natural do ser, além de elemento contraditório na
leitura, inserção e ação dos indivíduos sobre a constituição da psicologia dos trabalhadores, já que
realidade, bem como a viabilização da emancipação enquanto parte da condição humana, constitui-se
dos sujeitos, além do prazer no trabalho. O mobilizador de investimento para a criação de
caminho contrário inviabilizaria a leitura crítica da novas realidades e engrandecimento dos
realidade pelos sujeitos, fazendo com que a indivíduos, além de revelar-se também fonte de
subjetivação dos trabalhadores se torne ferramenta adoecimento, daí por que Dejours et al. (1994)
útil, aliada inconteste da ideologia produtivista, da enfatiza a importância de sua ressignificação
busca do desempenho e da excelência a qualquer enquanto condição para vivência do prazer, o que
custo, o que, conforme já afirmado anteriormente, para o mesmo autor se daria por meio da
pode levar ao sofrimento e, por conseguinte, ao mobilização subjetiva dos trabalhadores e não da
adoecimento dos trabalhadores, que vítimas da negação ou minimização do sofrimento.
banalização do mal (Arendt, 2008), passam a Referido processo, contudo, é desafiador, já
considerar normal e até desejável o próprio que o caminho a ser percorrido para
sofrimento, principalmente diante da não ressignificação do sofrimento contempla a
consecução dos objetivos e metas definidas pelas concessão do direito à reflexão e à fala aos
organizações, situação em que se utilizam trabalhadores, o que segundo Dejours et al. (1994)
inconscientemente do sentimento de culpa e se constitui condição para transformação do
vergonha como moedas expiatórias, garantidoras sofrimento patogênico, refém da produção e
do perdão e da sua manutenção no corpo responsável pelo adoecimento, em sofrimento
funcional da organização (Gaulejac, 2007) criativo, mobilizador de processos subjetivos e
Na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, reflexivos que permitem aos trabalhadores resgatar
o sofrimento surge quando a relação do sua capacidade de pensar e gerir o trabalho.
trabalhador com a organização do trabalho é Abre-se, desta forma, uma janela de

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oportunidade para a desalienação dos que segundo Dejours et al. (2004, p.152)
trabalhadores, além da possibilidade de sua “diferentemente das outras defesas, assegura, em
apropriação e dominação do trabalho (Mendes, relação ao sofrimento uma saída pulsional que não
2007), o que não acontece quando o processo de faz desmoronar o funcionamento psíquico e
ressignificação do sofrimento não é exitoso na somático”, revelando-se, assim, uma negociação
conversão do sofrimento patogênico em criativo, bem-sucedida entre o desejo e a realidade (Mendes,
fazendo-se necessário nesta situação a utilização, 2008). Para consecução deste movimento, o
pelos trabalhadores, de estratégias de defesa trabalho atua como mediador e locus de gratificação
(proteção, adaptação e exploração) garantidoras de das pulsões, por isso, faz-se necessário que as
sua saúde mental. condições laborais disponibilizadas aos
As estratégias de proteção são modos de trabalhadores tornem este processo possível, o que
pensar, sentir e agir compensatórios para suportar nem sempre ocorre (Dejours et al., 2004).
o sofrimento. Nesta situação o trabalhador A sublimação constitui-se, portanto, um
consegue evitar o sofrimento alienando-se e processo que mobiliza o sujeito a reagir aos
convivendo com uma realidade indesejada. Já as investimentos pulsionais de forma mais saudável e
estratégias de adaptação e exploração têm nas suas socialmente útil, buscando a manutenção da sua
bases a negação do sofrimento e a submissão ao integridade psíquica, por isso se constitui um dos
desejo da produção. São normalmente caminhos mais promissores para a relação com o
inconscientes e levam os trabalhadores a manter a mundo externo, diferentemente do recalque que se
produção exigida pela organização do trabalho constitui numa defesa neurótica e traz dificuldades
(Mendes, 2007) para os sujeitos se relacionarem consigo mesmos e
A aplicação pelos trabalhadores das referidas com os outros (Mendes, 2011)
estratégias, no combate ao sofrimento, explica a Diante do exposto, observamos que tanto a
instituição da normalidade enigmática, aparente Sociologia Clínica quanto a Psicodinâmica do
normalidade do estado de saúde dos trabalhadores, Trabalho reconhecem que os trabalhadores se
mesmo quando estes são confrontados com defrontam com uma realidade laboral que ameaça
situações que hostilizam à sua salubridade física e o prazer no trabalho, além da integridade da
psicológica. A fuga desta armadilha dar-se-ia pela identidade, autonomia e saúde dos trabalhadores.
reapropriação da consciência, da propriedade da Deparam-se, portanto, com desafios,
fala, do desejo, do benefício da dúvida e do problemáticas, angústias, esperanças, objetivos e
contraditório pelos trabalhadores, que assim pressupostos epistemológicos comuns (trabalho
resgatariam sua autonomia, capacidade de pensar e como dimensão fundante do ser; racionalidade
agir criticamente sobre a organização do trabalho. subjetiva; homem consciente e sujeito da história;
Desta forma, viabilizar-se-ia a construção de homem psíquico e não utensílio das organizações),
soluções via utilização da inteligência prática dos que determinam um forte parentesco entre
trabalhadores, que beneficiários do direito de referidas correntes, as quais percorrem caminhos
questionar, usuários maiores de seus próprios complementares em busca da transformação da
desejos e de sua própria criatividade, encontram realidade laboral hostil aos trabalhadores. Contudo,
elementos para transgredir o prescrito e contribuir não obstante os esforços empreendidos,
para o atendimento dos objetivos de produção defrontam-se referidas linhas de pensamento com
com procedimentos mais eficazes do que os um dos principais aliados da racionalidade
impostos pela própria organização do trabalho. instrumental: o gerencialismo.
Assim, a simples permissão do fluxo normal da
inteligência prática dos trabalhadores contribuiria Gerencialismo: lenimento das angústias
não só para o atendimento dos objetivos organizacionais.
organizacionais, como para minimizar o Segundo Gaulejac (2007), o gerencialismo se
sofrimento e transformá-lo em prazer. revela uma ideologia aliada da racionalidade
A transformação do sofrimento em prazer dar- instrumental que se põe a serviço do capital e
se-ia também por meio da sublimação, processo traduz as atividades humanas em resultados e

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indicadores, efeitos colaterais do culto da eficácia, corredores” (Bauman, 2001, p. 86), onde são
que, por sua vez, revela-se refém da quantofrenia exigidos dos funcionários sacrifícios ilimitados, já
(idolatria dos números), dos critérios econômicos e que nos seus ombros é depositada a
da supremacia do lucro, elementos que cicatrizam responsabilidade pela sobrevivência da
uma visão reificada dos homens e que converte o organização. O cenário de guerra, competição e
resultado num fim em si mesmo e não em meio incertezas líquidas fragiliza os laços que unem os
para produção de valor para a sociedade. Legitima- homens, institui a queda dos fundamentos da
se, assim, um pensamento objetivista, utilitarista, solidariedade e a ascensão da ética do
funcionalista e positivista, voltado para acalentar as individualismo, onde o indivíduo torna-se a
angústias organizacionais: busca da eficácia e mais- unidade de reprodução do social no mundo da
valia (Gaulejac, 2007). vida, com a consequente corrosão e lenta
Ainda segundo Gaulejac (2007) a paixão pela desintegração da cidadania, da preocupação com o
quantofrenia e pela medição seria fruto da comum (Bauman, 2001; Grisci, Bittencourt &
preocupação com a objetividade e da ilusão que o Fleck, 2012).
cálculo nos dá de domínio sobre o mundo, Este movimento viabilizou o surgimento de
elementos estes intimamente vinculados à outro mecanismo gestionário: a individualização e
abordagem funcionalista, para quem os conflitos dissolução dos coletivos, que segundo Gaulejac
são considerados como disfunções, o que (2007), se caracteriza pela ascensão de um modelo
pressupõe a existência de uma norma de de personalidade narcísica, agressivo, pragmático,
funcionamento apresentada como ideal. Nega-se, sem estados de alma, centrado sobre a ação e não
assim, a possibilidade de negociação do trabalho tanto sobre a reflexão, pronto para o sucesso a
prescrito com o real, condição apontada por qualquer custo, o que culmina com a ruína da
Dejours et al. (1994) como necessária ao exercício solidariedade; a celebração do mérito individual; a
do prazer no trabalho. negação da alteridade; o desinteresse pelo comum
Outro pressuposto que fundamenta o e; a naturalização da luta por lugares.
gerencialismo é a rendição da reflexão à eficácia, o Para Bauman (2001) é neste cenário que se dá o
que se dá porque para o gerencialismo o embate entre o indivíduo, morno, cético ou
pensamento é considerado como inútil se não prudente em relação à causa comum e o cidadão,
permitir contribuir para a eficácia do sistema. pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar
Pode-se exercer a liberdade do pensamento e de através do bem-estar da cidade. Assim, num
palavra, se esta servir para melhorar os contexto de modernidade líquida, a sociedade
desempenhos. Propugna-se, assim, o conformismo parece viver um momento de ebulição e incessante
como contrapartida do utilitarismo (Gaulejac, atividade de individualização, onde não existem
2007) e a rendição ao discurso fechado de Marcuse mais valores coletivos, os vínculos sociais se
(1967), ou seja, negação de qualquer outro discurso desfazem cada vez mais rapidamente, os homens
que não empregue seus termos. se deparam com a competição por cargos e a
Para a consecução dos fundamentos solidão como companheira, tornando-se, assim, o
gerencialistas, as organizações recorrem, segundo indivíduo o pior inimigo do cidadão.
Gaulejac (2007), a um conjunto de mecanismos A ascensão do individualismo, mergulho dos
gestionários. O álibi da guerra econômica seria um trabalhadores nos seus desejos mais particulares
destes mecanismos, o qual contribuiria para em detrimento do coletivo, também contribuiu
disseminar a idéia da vulnerabilidade das empresas para a instituição da gestão do imaginário e do
diante de um cenário bélico, onde a busca da afetivo (Gaulejac, 2007), tendo em vista que as
rentabilidade e do ideal de perfeição (programas de organizações apoderam-se dos desejos narcísicos
excelência, zero defeito) seria condição para sua dos indivíduos, mergulham na sua psicologia e
sobrevivência. com isso sequestram sua subjetividade, o que
Desta forma, institui-se um cenário de favorece a identificação, a mobilização psíquica e a
competição sem fim, onde “a linha de chegada adesão dos funcionários ao ideário organizacional.
sempre se move mais veloz que o mais veloz dos Desta forma, segundo Motta (1986), migra-se

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de um sistema fundado sobre a solicitação do “entre o homem e a organização prescrita para a


superego (autoridade, obediência e culpabilidade) realização do trabalho, existe, às vezes, um espaço
para um sistema fundado sobre a solicitação do de liberdade que autoriza a negociação, invenções
e ações de modulação do modo operatório, isto é,
ideal de ego (exigência da excelência, ideal de
uma invenção do operador sobre a própria
onipotência), que teme lesões narcísicas (medo do
organização do trabalho, para adaptá-la às suas
fracasso e, por conseguinte, da perda do amor e necessidades, e mesmo para torná-la mais
reconhecimento da organização, a quem os congruente com o seu desejo” (Dejours et al.,
trabalhadores enxergam como mãe protetora) e 1994, p. 14).
institui o seqüestro da subjetividade, mesmo que o
Não obstante, a relevância do livre fluxo da
imaginário dos indivíduos seja habitado pela ilusão
cooperação, da fala e da inteligência no universo
da liberdade, que segundo Bauman (2001, p.24) se
laboral, referidos elementos não se constituem
caracteriza pela:
isoladamente os únicos responsáveis pela saúde
possibilidade de que o que se sente como mental dos trabalhadores, já que o livre exercício
liberdade não seja de fato liberdade; que as da fala e da inteligência demanda a presença de
pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes
outro elemento, parente comum da Sociologia
cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de
Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho: o
ser objetivamente satisfatório; que, vivendo na
escravidão, se sintam livres e, portanto, não reconhecimento do trabalhador pela organização e
experimentem a necessidade de se libertar, e assim seus próprios pares, o que segundo Dejours et al.
percam a chance de se tornar genuinamente livres. (2004), constitui-se condição determinante da
integridade psíquica e equilíbrio dos trabalhadores,
O corolário dessa possibilidade é o de que “as
tendo em vista que representa elo vital entre
pessoas podem ser juízes incompetentes de sua
trabalho e saúde, semente que se bem regada e
própria situação” (Bauman, 2001, p.25), o que
repatriada para a identidade dos indivíduos, revela-
viabilizaria a ascensão de outro mecanismo
se um dos caminhos para reconstituição da
gestionário, as injunções paradoxais, filhas da
solidariedade, do vínculo social, saúde e prazer no
enunciação de grandes princípios, os quais “inibem
trabalho.
a razão, favorecem a adesão e a aceitação da
racionalidade instrumental” (Gaulejac, 2007,
A dinâmica do reconhecimento: elo vital e
p.140). Não obstante o fato de que referidas
integrador da identidade humana.
enunciações nunca sejam respeitadas, os agentes se
Diante do cenário de metamorfose contínua do
deixam levar por elas, recorrendo assim a
mundo do trabalho e das práticas gerencialistas que
mecanismos de defesa dejourianos, para suportar o
sequestram dos trabalhadores sua autoestima,
universo com menor custo psíquico e sofrimento.
autonomia, criatividade e capacidade de tornar-se
Os mecanismos gestionários contribuem, assim,
sujeito da história, os trabalhadores se deparam
para o extermínio da solidariedade, além da
com a necessidade de um elo que viabilize a
expatriação da subjetividade, autonomia e
transposição de uma visão mesquinha de mundo e
criatividade dos indivíduos. Diante deste contexto,
de homem para uma visão não alienadora da ação
faz-se necessário o desenvolvimento de ações
humana sobre a realidade, onde os homens sejam
minimizadoras dos danos causados aos
reconhecidos por sua essencialidade na terra, sua
trabalhadores, de forma a tornar possível a
potencialidade de transformação da realidade e por
vivência do prazer no trabalho, mesmo em
suas ações transformadoras do ambiente de
contextos precarizados, o que segundo Dejours et
trabalho.
al. (2004, p.51) seria possível via mobilização da
Neste contexto assume relevância a dinâmica
inteligência prática, cooperação e pela
do reconhecimento que, segundo Dejours et al.
institucionalização de espaços que viabilizem a
(2004), seria o resultado do processo de
negociação com a realidade imposta aos
valorização do esforço e do sofrimento investido
trabalhadores pela organização, situação esta
para realização do trabalho, por isto constitui-se
considerada exequível por que:
elo vital do trabalho com a saúde, integridade

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psíquica e identidade do trabalhador, sendo princípios da racionalidade instrumental seria o


também responsável pela conversão do sofrimento meio de ser reconhecido, admitido e aceito pela
em prazer, o que a constitui força minimizadora do empresa, tendo em vista que “no mundo da
mal-estar nas organizações. fantasia e no imaginário dos funcionários, seria o
Dejours et al. (2004, p. 32) reforça a meio de ser amado pela organização” (Pagès et al.,
importância do reconhecimento ao afirmar que “é 2006, p.134).
a partir do olhar dos outros que nos constituímos Outra forma de malversação do
como sujeitos”, fato esse também reconhecido por reconhecimento dá-se quando a organização o
Gaulejac (2007, p.198), para quem o olhar alheio utiliza como ferramenta manipuladora, modo de
ocupa relevância significativa no imaginário dos captura dos trabalhadores nas armadilhas de seus
indivíduos, afinal “ao perder o reconhecimento da desejos de reconhecimento (carreira e manutenção
empresa muitos trabalhadores perdem sua base no emprego), o que seria possível, segundo
narcísica”, sua autoestima, seu sentido do trabalho, Gaulejac (2007, p.120) porque “a exigência do
quebrando-se, portanto, o contrato narcísico, sucesso encontra seu fundamento no desejo
segundo o qual o “indivíduo espera da empresa inconsciente de onipotência, no temor de não estar
que ela favoreça sua realização, enquanto ela espera à altura e na humilhação de não ser reconhecido
dele sua adesão incondicional” (Gaulejac, 2007, como um bom elemento” dentro da organização.
p.229). Desta forma, a manipulação do
Assim sendo, o reconhecimento consagra-se reconhecimento se revela uma grande aliada do
como o centro de gravidade da saúde mental, gerencialismo, pressuposto teórico que se distancia
processo dinâmico, mediador e constituinte da significativamente da dinâmica do reconhecimento,
identidade do trabalhador, elo entre trabalho e principalmente no que refere às visões que adota
identidade, prazer e sofrimento (Dejours et al, acerca dos conceitos de racionalidade; homem;
2004), elemento de unificação do vínculo social, já trabalho; ética; cultura e liberdade, conforme nos
que se concretiza pelo coletivo do trabalho, pela revelam os esforços teóricos empreendidos pela
interação dialética do eu indivíduo com o outro Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do Trabalho.
(Mendes, 2007). Desta forma, dada a relevância da No que se refere à racionalidade observou-se
dinâmica do reconhecimento para a saúde dos que enquanto o gerencialismo se mostra adepto da
trabalhadores, ignorar esta dimensão subjetiva e lógica financeira, dominada pelos critérios
identitária do sentido do trabalho repercute econômicos, quantitativos e pela desvalorização
diretamente na saúde dos sujeitos, notadamente da das finalidades sociais em prol da sociedade do ter
saúde mental, tendo em vista que diante de sua (racionalidade instrumental), a dinâmica do
paralisia, o sofrimento não pode mais ser reconhecimento se mostra filiada à racionalidade
transformado em prazer, não pode mais encontrar subjetiva, que defende à lógica do inconsciente e
sentido para o trabalho: só pode “gerar acúmulos enxerga este tipo de reconhecimento como elo
que levarão o indivíduo a uma dinâmica patogênica entre sofrimento e prazer, trabalho e identidade,
de descompensação psíquica ou somática” trabalho e saúde, além de defender o resgate da
(Dejours et al., 2004, p.77). sociedade do ser.
O reconhecimento depara-se, contudo, com O retorno da sociedade do ser constitui êxito
elementos que contribuem para sua malversação, a da dinâmica do reconhecimento no combate à
exemplo de sua rendição inconteste ao ideário que visão propugnada pelo gerencialismo, que defende
subordina homens e organizações às regras o uso dos trabalhadores como utensílios, recursos
definidas pelo capitalismo (eficácia, desempenho e a serviço da empresa, marcados pelo conformismo,
resultados), fazendo com que o reconhecimento passividade, docilidade e resignação diante do
“não resulte das qualidades das pessoas, mas de sua sequestro de seu direito a dúvida, à reflexão e ao
capacidade de interiorizar as regras organizacionais, contraditório, elementos estes que viabilizaram a
de adaptar-se às exigências e de reproduzir a unção do homem homogeneizado e servidor, que
ideologia” (Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, abatido em sua autoestima e receoso do direito ao
2006, p.111). Assim sendo, vencer escudado nos livre arbítrio, conformou-se com a ilusão de

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liberdade, por isso não experimenta a necessidade do amor organizacional (Enriquez, 1997b; Pagès et
de libertação, perdendo, assim, a chance da al., 2006).
verdadeira liberdade (Bauman, 2001), que somente Referidos movimentos se dão em função do
é conquistada pelo homem consciente e império da competição sem limites, fruto da
heterogêneo, ou seja, um homem autônomo, cultura da superação e do alto desempenho,
consciente, cônscio da importância do coletivo, modelo de eficiência que põe o mundo sob a
bem como da manutenção de sua singularidade em pressão da idolatria dos números, que impõe à
meio às diferenças, condição está necessária para sociedade sua rendição ao projeto perpétuo de
exercitar toda a sua inteligência prática e superação, fazendo com que os trabalhadores
criatividade (Gaulejac, 2007; Dejours et al., 1994). acreditem na vulnerabilidade da empresa, que
O trabalho também ocupa posições ameaçada, precisa dos sacríficios de seus
diferenciadas no imaginário dos trabalhadores, que funcionários para garantir sua salvação (Gaulejac,
ao optarem pelo contato com a consciência e pelo 2007). Perpetra-se, assim, a ruína do espírito de
exercício da autonomia se depararam com o cooperação e da capacidade dos trabalhadores
trabalho vivo e equilibrante, condição para que este doarem reconhecimento aos seus pares, o que
se apresente como fonte de saúde, responsável pela inviabiliza a sobrevivência dos vínculos que os
transformação do sofrimento em prazer, marcado indivíduos constroem entre si para alcançar
pela presença da inteligência prática e criatividade, voluntariamente uma obra comum (Dejours et al.,
além da possibilidade de negociação com o real e 2004)
transformação do prescrito no cotidiano laboral A realidade apresentada acima deve ser
(Dejours et al., 1994). arduamente combatida, de forma a viabilizar-se o
Do contrário os trabalhadores se defrontarão resgate da alma, singularidade, subjetividade e
com o trabalho eunuco, solitário e desequilibrante, inteligência dos trabalhadores na resolução de
que impõe aos indivíduos a ausência de sentido do conflitos, fato que só ocorrerá perante a presença
trabalho, diante da obrigatoriedade de executar do reconhecimento do trabalhador pela
desempenhos sem permitir ao trabalhador à organização e seus pares, o que se revela
negociação do trabalho prescrito com a realidade, imprescindível para a saúde laboral, já que o
o que contribui para que os trabalhadores reconhecimento é fruto do trabalho e este,
mergulhem num quadro de sofrimento patogênico segundo Dejours et al. (1994), constitui-se
que os deixem vulneráveis ao adoecimento, às dimensão fundante do ser, produtor da condição
perturbações psicossomáticas e depressões humana, central na formação da identidade dos
nervosas. trabalhadores, mediador da relação entre
Referido quadro também decorre da pressão sofrimento e prazer, mediação esta também
aplicada pela cultura da urgência para o desempenhada pela dinâmica do reconhecimento,
cumprimento das metas organizacionais que, arauto do bem-estar no trabalho.
diante de um cenário de precariedade, incerteza e O empoderamento do individualismo e do
fluidez, impõe aos trabalhadores a ética do espírito de competição entre os trabalhadores se
individualismo; o enfraquecimento dos laços revela fruto da ética do resultado, álibi do projeto
coletivos e a luta por lugares e visibilidade, além do capitalista que voltada exclusivamente para si
sentimento de culpa diante da não consecução do própria, substitui a moral pela busca do resultado a
ideário organizacional (desejo de lucro), o que se qualquer custo, impondo ainda aos trabalhadores a
dá porque os funcionários, seduzidos pelos ética da solidão, onde os medos, ansiedades e
modelos de gestão aplicados pelas organizações de angústias contemporâneas devem ser vividos
trabalho, não se permitem fracassar, por isso, solitariamente, já que os desafios não coletivizados,
precisariam expiar a culpa pela não concretização não se somam e nem se acumulam numa causa
dos objetivos organizacionais, evitando assim, a comum, facilitando-se, assim, o
perda do reconhecimento da organização, que se desempoderamento da força do coletivo e, por
constitui base narcísica dos trabalhadores e conseguinte, da ascensão da dimensão política
manifestação convicta da certeza da manutenção entre os trabalhadores (Arendt, 2008), tão temida

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pelas organizações. em detrimento do ser, o que se dá, segundo


O exercício da dimensão política pelos Gaulejac (2007), em função da submissão dos
trabalhadores demanda, contudo, a libertação de homens a um processo de alienação que os faz
seu espírito crítico, sob pena de tornarem-se juízes refém de seus próprios desejos, que apropriados
incompetentes de sua própria história, incapazes de pelas organizações, viabilizam o sequestro de sua
fazer uma leitura adequada da conjuntura histórica subjetividade, bem como de sua capacidade de
em que se encontram inseridos. Desta forma, questionar e aplicar sua inteligência prática, o que
segundo Bauman (2001), para combater a cegueira ocorre porque rendidos ao sentimento ilusório de
e chegar ao nível da consciência e projeção do liberdade, rendem-se também à homogeneização
futuro é preciso que os trabalhadores estejam (definição e aplicação de modelos e práticas de
firmemente plantados no presente, ou seja, comportamentos tidos como ideais pela
firmemente ancorados numa leitura adequada da organização), ao conformismo e ao papel de
realidade, para o que se faz necessário que lhes seja homem utensílio na busca da consecução dos
provido o direito à fala, veículo de exposição dos objetivos organizacionais (Enriquez, 1997a e 2006).
medos, anseios e angústias contemporâneas, que Referidas situações ocorrem em função do
na modernidade líquida são feitos para serem receio da perda do amor das organizações pelos
sofridos em solidão, dado o esvaziamento do trabalhadores, que projetando sobre a empresa seu
espaço público (ágora: espaço para vivência da próprio ideal de onipotência e excelência,
política), antes provido aos habitantes da cidade. introjetam o seu ideal de expansão e de conquista,
Diante deste cenário, a disponibilização de além de renunciarem a si mesmos (Gaulejac, 2007),
espaço para o livre exercício da fala e da interiorizando a necessidade de vencer e despender
inteligência crítica se constitui ferramenta o máximo de energia em prol da organização, de
emancipatória que permite a desalienação, o forma a assegurar-lhe comprometimento,
confronto com o contraditório, o desvelamento do progresso, excelência e alto desempenho (Pagès et
sofrimento, o resgate da capacidade de pensar e al., 2006; Motta, 1992).
negociar com o trabalho prescrito, além do resgate Ignoram, contudo, as organizações, que a
da autoestima, já que o espaço de palavra não é simplificação do trabalho e da pessoa humana,
necessário apenas para as arbitragens, constitui-se oriunda da visão utilitarista da eficácia, deprecia a
também o lugar onde se desenrola o processo de inteligência dos trabalhadores e compromete o
reconhecimento e filiação, movimento que sentido do trabalho (Antunes, 2009), além do
amortece o drama da individualização do coletivo desejo do trabalhador investir raciocínio e energia
(Dejours et al., 2004). moral na sua atividade laboral, fragilizando-se,
assim, sua saúde psíquica (Dejours et al., 1994), o
Considerações finais que se dá porque o culto ao desempenho agride as
Diante da modernidade líquida, da contínua relações de trabalho quando os trabalhadores
metamorfose do trabalho e do quadro de temendo o tabu do fracasso (Sennet, 2006),
precarização das condições laborais, que conduz os avocam o sequestro da fala, do direito ao
trabalhadores ao adoecimento, mostra-se relevante contraditório e do exercício de sua inteligência
o diálogo instituído entre aparatos teóricos da prática como moeda expiatória para livrarem-se do
Sociologia Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho, fantasma da perda do amor da organização,
tendo em vista que referido diálogo contribui para representado no seu imaginário pelo
desvelar fatores que atuam no campo do trabalho e reconhecimento (Enriquez, 2004/2005; Freitas,
que, permanecendo ocultos à consciência dos 2008 & Bouyer, 2010).
trabalhadores, inviabilizam sua inserção autônoma Assim, imersos numa realidade que lhes impõe
no universo laboral. a incerteza da manutenção do emprego, a cultura
Entre referidos elementos, destaca-se o fato de do desempenho, da urgência e da eficácia, os
que a racionalidade instrumental grassa livremente trabalhadores sucumbem a um processo de
no ambiente circunscrito pela lógica financeira, que competição e individualismo autofágicos, onde o
desvaloriza as finalidades sociais e enaltece o ter ideal de perfeição institui a exacerbação da

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competição sem fim; a linha de chegada sempre se (inteligência prática), elementos que exigem como
move mais veloz que o mais veloz dos corredores; condição sine qua non a presença da dinâmica do
o trabalho não reserva espaço para o descanso, já reconhecimento, itinerário viabilizador da empatia
que toda celebração de sucesso não passa de um e alteridade necessária à oferta pelos pares e pela
intervalo antes de outra rodada de trabalho duro; e organização do espaço devido ao outro, outro que
as regras relativas ao jogo das promoções e a ética do individualismo teima em apresentar aos
demissões foram esgotadas ou tendem a ser pares como o grande inimigo do desejo individual,
alteradas antes que o jogo termine (Bauman, 2001). negando a possibilidade da consecução dos desejos
Referidos movimentos mergulham os no espaço coletivo e, por conseguinte, dificultando
trabalhadores num processo de seleção darwinista, a instituição do trabalho vivo e equilibrante,
responsável pela fundação do tempo dos laços gerador de bem-estar e saúde.
fracos e da queda dos fundamentos da O reconhecimento constitui-se, assim, o grande
solidariedade, o que também lhes impõe custos mediador; centro de gravidade da saúde dos
físicos e psíquicos que transformam o trabalho em trabalhadores; elo entre sofrimento, trabalho e
material patogênico e desequilibrante. prazer; condição fundamental para construção do
Deparamo-nos, assim, com a ética do sentido do trabalho; e passagem obrigatória para a
individualismo, que rechaçando o espírito da reconstrução de vínculos, do tecido social, da
cooperação e da solidariedade inviabiliza o olhar solidariedade, da amizade, da alegria, do prazer de
caridoso com o outro e, por conseguinte, o trabalhar e viver junto (Dejours et al., 1994), bem
reconhecimento e valorização de suas qualidades. como para a vitória do cidadão sobre o indivíduo
Negligencia-se, desta forma, a dinâmica do (Bauman, 2001).
reconhecimento na constituição da identidade e Deve-se atentar, contudo, que a força benéfica
saúde dos trabalhadores, cuja relevância se dá, do reconhecimento se encontra ameaçada, tendo
segundo Dejours et al. (2004), porque esta se em vista que ao mesmo tempo em que é um dos
constitui sua base narcísica, elo vital do trabalho modos de fortalecimento da estruturação psíquica
com a autoestima, saúde, integridade psíquica e e da saúde dos indivíduos, pode ser um modo de
identidade dos indivíduos, além de também captura dos trabalhadores, quando estes diante de
responsável pela conversão do sofrimento em seus desejos de reconhecimento (carreira) se
prazer, constituindo-se, assim, força minimizadora deixam seduzir pelos aparelhos gestionários (gestão
do mal-estar nas organizações. do imaginário e do afetivo), atentos observadores
Assim, diante do cenário de modernidade do desejo dos trabalhadores (Gaulejac,
líquida e das práticas de gestão propugnadas pelo 2004/2005).
gerencialismo (racionalidade instrumental; negação Para viabilizarmos a ação do reconhecimento
do conflito; homem utensílio, alienado e faz-se necessário que migremos da cultura da
homogeneizado; trabalho patogênico e competição, da luta por lugares, da busca da
desequilibrante; ética do individualismo e da perfeição e do individualismo (Gaulejac, 2011) para
competição; fala e reflexão reféns da solidão e da a cultura da cooperação e do coletivo do trabalho
eficácia) deparamo-nos com a necessidade de um (Dejours et al., 1994), onde o individualismo é
salto epistemológico e pragmático que reverta as visto como uma derrota e não um ideal e os
relações instituídas entre o trabalho, trabalhadores são apresentados ao espaço público
individualidade e saúde dos trabalhadores. da fala e do debate; à humildade, alteridade,
À luz dos pressupostos da Sociologia Clínica e solidariedade e confiança, únicos elementos
da Psicodinâmica do Trabalho, seria de ser instituir capazes de alijar a soberba narcísica que impede
no universo laboral o resgate da racionalidade que o olhar do outro reconheça as qualidades de
subjetiva; das relações de cooperação e seus pares e, por conseguinte, o advento do prazer
solidariedade; da autonomia e consciência crítica no trabalho. O resgate destes elementos
dos indivíduos, além do advento de práticas de contribuirá para a repatriação e registro do
gestão que concedam aos trabalhadores o espaço reconhecimento na identidade dos indivíduos,
para o fluxo livre da fala e da criatividade dando-se assim, a conquista da identidade no

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