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o nascimento da sociologia, no século XIX, os seus


expoentes canónicos – Marx, Durkheim e Weber –
já tinham debatido alguns temas que mais tarde
foram reapropriados pela sociologia do trabalho,
dos quais destacamos: o trabalho enquanto fonte
de emancipação ou alienação, a divisão social do
trabalho e a dicotomia entre profissão e vocação.
Historicamente, é importante para esta disciplina
Sociologia do mencionar a designada “Organização Científica
do Trabalho” preconizada por Frederick Taylor
Trabalho e Henry Ford, bem como as pioneiras pesquisas
lideradas por Elton Mayo, na “Escola de Relações
Humanas”, nomeadamente aquela que é apelidada
João Areosa1
Roberto della Santa2 por “Experiência de Hawthorne”. O debate sobre
1
Instituto Politécnico de Setúbal, Setúbal, Portugal. outros modelos pode ser encontrado nesta obra
2
Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal. [ver verbete Teoria das Organizações].
Atualmente, as pesquisas no campo da socio‑
logia do trabalho ampliaram‑se, desde os seus
primórdios, e encontram‑se dispersas por ques‑
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E PRINCIPAIS tões, problemas e temas tão vastos como: a pre‑
PERSPECTIVAS carização do trabalho (Standing, 2014), o desem‑
A sociologia do trabalho é uma vertente da socio‑ prego (Sennett, 2001), os salários, o sindicalismo,
logia que se dedica ao estudo e à análise dos múl‑ as greves, os conflitos sociais e a organização do
tiplos fenômenos relacionados ao trabalho. O seu trabalho (Dejours, 1999), a flexibilidade, a explo‑
objeto de estudo visa abarcar as diferentes dinâ‑ ração, a flexploração, um neologismo utilizado
micas dos coletivos humanos que se formam e por Bourdieu (1998) que aglutina os dois con‑
desenvolvem em torno do trabalho, enquanto ati‑ ceitos anteriores, a terceirização (Antunes, 2018),
vidade vital. No universo laboral, os factos socioló‑ o empreendedorismo, as condições de trabalho,
gicos têm de ser interpelados aos factos sociais que os riscos ocupacionais, as doenças profissionais
estão na base das ações e estruturas dos sujeitos e os acidentes de trabalho (Areosa, 2012; Areosa
sociais (Touraine, 1982). Paralelamente, a noção de & Sznelwar, 2019), o estatuto socioprofissional
trabalho é polissémica e multifacetada, logo a sua (Bauman, 2000), as atitudes perante o trabalho S
conceptualização acarreta dificuldades acrescidas (Freire, 2002), as técnicas de gestão utilizadas
para os estudiosos deste campo. É relativamente pelas empresas, incluindo a avaliação individual
consensual que a sociologia do trabalho surgiu com de desempenho (Gaulejac, 2007; Areosa, 2022),
maior vigor crítico no período do segundo pós‑guerra as profissões, os poderes profissionais e as identi‑
mundial, sobretudo após os trabalhos pioneiros dades profissionais (Dubar, 1997), a satisfação no
de Friedmann e Naville (1962). Posteriormente, trabalho, a formação profissional, as qualificações
um dos debates mais inflamados na sociologia e competências, os ritmos e a intensificação do tra‑
do trabalho focou‑se na passagem do modelo de balho (Rosso, 2008), ou ainda o recente trabalho
produção “industrial” para o “pós‑fordista”, o qual por plataformas, também designado por uberização
veio acompanhado por diversas metamorfoses no (Antunes, 2020). De forma não exaustiva, estes
trabalho, particularmente a transferência de um são alguns pontos abordados pela sociologia do
número significativo de trabalhadores do sector trabalho, os quais são passíveis de múltiplos des‑
primário e secundário para o sector terciário. Por dobramentos, concepções e articulações, discu‑
outras palavras, o trabalho “material” teria cedido tidas quer do ponto de vista teórico, quer a partir
lugar ao “imaterial” (Gorz, 2005). Todavia, desde de estudos empíricos, quer na sua dialectização.

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2. O SISTEMA METABÓLICO‑SOCIAL DO CAPITAL E culos saudáveis com a empresa onde laboram,


O NEXO PSICOFÍSICO DO TRABALHO pois é difícil estabelecer relações sustentáveis e
É pertinente afirmar que o capitalismo global e as duráveis em contextos de elevada incerteza e des‑
políticas neoliberais têm vindo progressivamente gaste permanentes. O resultado desta conjuntura
a desestruturar os coletivos de trabalho e a isolar/ gizada pelos ideais neoliberais abriu espaço para
desestabilizar os trabalhadores. A procura desen‑ a emergência de um universo de trabalhadores
freada pelo lucro, a crescente pressão para aumentar cada vez mais isolados, desprovidos de segu‑
a produção e a colocação de metas e objetivos cada rança, estabilidade e bem‑estar. O desemprego
vez mais difíceis de atingir são fatores que podem é estrutural e os designados empregos estáveis
degradar a saúde física e mental dos trabalhadores. foram diminuindo e transformados em múltiplas
Muitas mazelas do mundo do trabalho decorrem formas atípicas de emprego, constituindo‑se uma
da tirania das métricas (gestão por indicadores) nova morfologia do trabalho ao nível global. Esta
ou, especificamente no setor público, a designada conjuntura é caracterizada pelo trabalho terceiri‑
nova gestão pública (New Public Management). zado, precarizado, flexibilizado, intensificado, pelas
Porém, as políticas neoliberais preconizam que formas de trabalho em part time, pelo empreen‑
o crescimento económico só se torna sustentável dedorismo, “trabalho voluntário”, teletrabalho,
através do aumento da competitividade e da “livre” estágios profissionais, ou ainda, pelo trabalho por
concorrência dos mercados. É também defendido plataformas (uberizado). A título de exemplo, cál‑
pelos partidários do neoliberalismo que os países culos efetuados nos Estados Unidos preconizam
deveriam estimular a flexibilidade das relações que os jovens com um nível médio de educação
de trabalho e de produção (Gaulejac, 2007). Estas possam mudar de emprego 11 vezes durante a sua
falácias repetidas inúmeras vezes pretendem ate‑ vida de trabalho; isto significa que a sua carreira
nuar eventuais resistências, defendendo que essa está saturada de incertezas (Bauman, 2000). A
conjuntura é uma inevitabilidade económica, fruto tudo isto ainda se pode acrescentar que há uma
do processo de globalização. Todavia, é impor‑ percentagem significativa de trabalhadores que
tante afirmar que estas diretrizes são, em primeiro acredita (secretamente) que o seu emprego não é
lugar, decisões económicas (oriundas do capital útil, nem socialmente necessário (Graeber, 2019).
económico‑financeiro), políticas (por parte dos Isso é absolutamente dramático para o sentido e
Estados) e gestionárias (por parte das empresas). significado atribuídos ao trabalho. Não é estranho
São um subterfúgio concertado para aumentar os que o estresse, o burnout, a ansiedade, o consumo
lucros, através da exploração e da degradação das de antidepressivos ou mesmo os suicídios relacio‑
S condições de trabalho, que naturalmente preju‑ nados ao trabalho estejam em valores alarmantes.
dicam a saúde. Para além disso, ainda existe a separação abissal
As consequências desse tipo de estratagemas entre concepção e execução (Braverman, 1981), ou
implantados à escala global são uma verdadeira seja, a discrepância entre trabalho prescrito (tarefa)
hecatombe social, dado que (entre outros aspetos) e trabalho real (atividade), descoberta feita pela
promove a degradação da autoimagem dos traba‑ ergonomia há várias décadas, e que em diversas
lhadores e da sua identidade, suscita a destruição situações gera inúmeros obstáculos à atividade
das suas resistências e fragiliza o seu coletivo, dos trabalhadores (Guérin et al., 2001). Neste
que, por sua vez, gera obediência, submissão, contexto, a tarefa é aquilo que o trabalhador deve
passividade, anomia, incentiva o servilismo e fazer, o que é prescrito pela organização. A ativi‑
produz uma maior capacidade de aceitação da dade é como o trabalho é efetivamente realizado,
exploração. Isto significa que vivemos, hodierna‑ a partir da mobilização do sujeito para efetuar a
mente, em sociedades-do-lucro-onipotente (Areosa, tarefa (Falzon, 2007). Vale a pena lembrar que a
2022). Perante este cenário, sabemos que os tra‑ designada “Organização Científica do Trabalho”
balhadores têm maior dificuldade em construir foi um meio profundamente castrador para que os
laços de confiança entre si e em estabelecer vín‑ trabalhadores pudessem colocar a sua inteligência

294 Dicionário de Ergonomia e Fatores Humanos: o Contexto Brasileiro em 110 Verbetes


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e sensibilidade a serviço da produção (Wisner, Areosa, J. (2022). Os efeitos iatrogênicos das técnicas de gestão.
2003). Quer a sociologia do trabalho, quer a ergo‑ Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 25, e183302.
nomia procuram compreender cientificamente o Bauman, Z. (2000). Liquid modernity. Polity Press.
trabalho, buscando, por vezes, os aspetos menos Bourdieu, P. (1998). Contrafogos. Celta.
Braverman, H. (1981). Trabalho e capital monopolista: A degradação
visíveis do seu objeto de estudo. Ou seja, ambas
do trabalho no século XX. Zahar Editores.
as disciplinas têm como objetivo compreender a Dejours, C. (1999). A banalização da injustiça social. Editora FGV.
complexidade do trabalho e, deste modo, abrindo Dubar, C. (1997). A socialização: Construção das identidades sociais
a possibilidade de melhorá‑lo. Por fim, conclu‑ e profissionais. Porto Editora.
ímos com dois aspetos éticos que devem ser con‑ Falzon, P. (Ed.). (2007). Ergonomia. Edgard Blucher.
siderados valores histórico‑universais para ambas Freire, J. (2002). Sociologia do trabalho: Uma introdução.
as disciplinas: o compromisso moral destas disci‑ Afrontamento.
plinas com a preservação da saúde e o bem‑estar Friedmann, G., & Naville, P. (1962). Traité de sociologie du
travail. A. Colin.
dos trabalhadores e manter um funcionamento
Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: Ideologia, poder
satisfatório das organizações, quer do ponto de
gerencialista e fragmentação social. Ideias e Letras.
vista da produção, quer da segurança. Gorz, A. (2005). O imaterial: Conhecimento, valor e capital.
Annablume.
Graeber, D. (2019). Bullshit jobs - The rise of pointless work, and
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Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado Guérin, F., Laville, A., Daniellou, F., Duraffourg, J., & Kerguelen,
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da Ergonomia. Edgard Blucher.
Antunes, R. (2020). Trabalho intermitente e uberização do
trabalho no limiar da Indústria 4.0. In R. Antunes (Org.), Rosso, S. (2008). Mais trabalho! A intensificação do labor na
Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (pp. 11‑22). Boitempo. sociedade contemporânea. Boitempo.
Areosa, J. & Sznelwar, L. I. (2019). Acidentes do trabalho: Alguns Sennett, R. (2001). A corrosão do carácter: As consequências pessoais
contributos da ergonomia e das ciências do trabalho. Revista do trabalho no novo capitalismo. Terramar.
do Tribunal Regional do Trabalho - 3ª Região, 100, 55‑82. Standing, G. (2014). O precariado - A nova classe perigosa. Presença.
Areosa, J. (2012). O lado obscuro dos acidentes de trabalho: Um Touraine, A. (1982). Pela sociologia. Publicações Dom Quixote.
estudo de caso no setor ferroviário. Húmus. Wisner, A. (2003). A inteligência no trabalho. Fundacentro.

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