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do trabalho.

Ele argumenta que cada face se refere a um conjunto de


objetivos, teorias, métodos e campos de atuação que os profissionais da
área utilizam para suas análises e intervenções. Enquanto a face industrial
da psicologia do trabalho se atém ao conjunto de teorias e métodos de
Psicologia e Trabalho entre as demandas da organização e a saúde do intervenção em torno dos problemas das funções e dos cargos nas
trabalhador organizações, a face organizacional se dedica aos aspectos mais sociais,
Thiago Drumond Moraes1 políticos e estratégicos da organização.
Leonardo Pinto de Almeida2 Nessa última, o objetivo de estudo e intervenção é menos focado
Publicado com pequenas alterações em BUENO, M.; VASCONCELOS-SILVA, no desempenho individual dos trabalhadores e mais na maneira como esse
A. Concepções contemporâneas sobre organizações e trabalho. Goiânia: desempenho se articula às dinâmicas organizacionais. O foco se dá entre as
DEPECAC-UFG/FUNAPE, 2013. p. 16-38. dimensões individuais e as outras dinâmicas em jogo na organização:
questões culturais, políticas, éticas, entre outras. Para Sampaio, a
emergência dessa face organizacional se dá em função de transformações
profundas que ocorreram na organização da produção, do trabalho e das
Introdução relações ao longo dos anos 1970 e 1980, solicitando a ampliação da
abrangência dos profissionais e dos saberes da psicologia em direção ao
O presente artigo visa viabilizar a articulação entre dois pólos, centro mais estratégico da gestão. O autor deixa claro, porém, que a
encontrados comumente nos estudos relativos à psicologia do trabalho, por emergência dessa outra face da psicologia não significa uma superação em
um lado, o pólo da saúde e subjetividade dos trabalhadores e, por outro, o relação à face industrial, mas uma espécie de ampliação da atuação do
da psicologia organizacional. Ressalta-se aqui, a pertinência do diálogo psicólogo nas organizações.
entre eles, sobretudo ao tormarmos como questão de análise e de Vale aqui uma ressalva importante: Zanelli (2002) chama a atenção
intervenção a experiência concreta dos trabalhadores. para o fato de que a psicologia organizacional no Brasil está muito aquém
Para tanto, faremos uma breve apresentação de cada um dos pólos, do que a própria teoria lhe permite. Faz essas alegações considerando a
tentando demonstrar em que medida eles se antagonizam e quais os realidade de atuação dos profissionais, sobretudo quando compara essa
limites encontrados em cada um deles. A partir dessa apresentação, atuação aqui com a de psicólogos organizacionais em outros países. Zanelli
faremos uma breve discussão em torno do conceito de atividade, sugere a necessidade de uma revisão curricular dos cursos de psicologia,
sinalizando os caminhos que podem advir da apreensão desse conceito a antevendo com isso a atuação dos psicólogos à altura das potencialidades
partir de cada um dos pólos. da teoria para o auxílio no desenvolvimento das organizações.
No entanto, ao menos no tocante à produção científica brasileira, a
A polarização reflexiva da psicologia do trabalho situação apresentada por Zanelli parece estar se modificando. Numa
revisão da literatura entre os anos de 2001 a 2005, Tonetto e colaboradores
Sampaio (1998) sugere que a psicologia do trabalho se divide em (2008) verificaram o aumento de publicações interessadas nas questões
três faces: a psicologia industrial, a psicologia organizacional e a psicologia mais organizacionais da psicologia. Com isso, mostram que pelo menos no
campo das pesquisas acadêmicas, a psicologia organizacional vem se
1
alinhando às transformações na área observada alhures.
Professor Adjunto do departamento de Psicologia da UFF. Feita essa ressalva, pretendemos argumentar aqui dois pontos
2
Professor Adjunto do departamento de Fundamentos e Ciências da Sociedade da
importantes que merecem consideração. Em primeiro lugar, o
UFF.
desenvolvimento teórico da psicologia organizacional oferece um conjunto Porém, no momento em que o capital industrial enfrenta nos EUA e na
de saberes que vem sendo apropriados por profissionais da administração Europa Ocidental uma nova onda de embates com os movimentos de
na produção de outros instrumentos de gestão organizacional. Alguns trabalhadores (sobretudo durante a primeira década do séc. XX), a saída
manuais sobre organização e gestão de pessoas, muito utilizados na encontrada se deu tanto em nova onda de globalização da indústria,
formação de profissionais voltados à administração de empresas no Brasil exportando seus parques produtivos tayloristas,, ao mesmo tempo em que
(CHIAVENATO, 1999) e nos Estados Unidos (ROBBINS, 2002), comprovam se dá uma revolução dos processos produtivos nos países centrais,
esse fato, além de ser comum o interesse pelas relações entre as ultrapassando o taylorismo. Aqui, então, o papel da psicologia se
dimensões mais humanas do trabalho. Contudo, concordando com Zanelli transforma, pois se no taylorismo essa disciplina fornecia instrumentos
(ibid.), o campo de atuação dos psicólogos em organizações ainda está técnicos de seleção e treinamento, visando adequar o trabalhador ao perfil
aquém de suas potencialidades. exigido pelo cargo, com esses novos modelos de produção, o que se torna
Acreditamos que parte dessa distância teoria-prática se refere fundamental não é mais a simples adequação do trabalhador ao perfil do
também ao processo histórico da formação da disciplina e do campo de cargo, mas sobretudo a produção de um novo trabalhador adaptável às
atuação no país. Como aponta Motta (2004), a história da psicologia no constantes transformações do mundo do trabalho.
Brasil é atravessada pela questão do trabalho. Com a participação mais Pagés e colaboradores (1987) realizaram uma importante pesquisa
ativa dos empresários brasileiros no processo de modernização da no fim dos anos 1970 na IBM francesa, onde observaram que uma nova
produção, a psicologia se torna a principal candidata para auxiliar na gestão do trabalho estava sendo produzido por empresas multinacionais
seleção das pessoas mais adequadas para as tarefas, conforme análise de como a IBM. Nessas empresas, não se tratava de simplesmente adequar o
suas capacidades e da compatibilidade entre a determinação do seu perfil trabalhador ao cargo, mas da produção de uma nova subjetividade dos
profissional e as exigências da tarefa e do cargo. Decorre desse período trabalhadores, gerindo seu tempo, seu esforço, seu psiquismo, enfim, sua
inicial de instalação da psicologia no Brasil, a representação dessa ciência alma. Os autores perceberam que a gestão da subjetividade requeria uma
articulada ao recrutamento, seleção e treinamento de trabalhadores. política de recursos humanos para além do papel técnico. Os recursos
Ora, lembremos que a psicologia no Brasil emerge no momento em humanos se tornavam cada vez mais importante para a manutenção da alta
que há um aumento gradual da modernização brasileira pelo capitalismo produtividade da organização. A tendência de produção de uma nova
industrial, exatamente no período da primeira onda de globalização do subjetividade no mundo do trabalho, indicado por esse estudo, foi
capital industrial – virada do séc. XIX para séc. XX. Percebemos, porém, que confirmada posteriormente por vários outros estudos, como o de Aubert e
essa globalização se dá numa tentativa de ultrapassar os limites Gaulejac (1982), Enriquez (2000), Hardt e Negri (2001) entre outros,
enfrentados pelo capitalismo diante da crescente mobilização operária que inclusive no Brasil (MORAES, 2002; GRISCI, 2000). Ora, o papel da psicologia
articula a tradição operária artesanal à crescente expansão da classe nesse cenário remetia a uma complexificação de sua atuação, compondo
operária desqualificada (SILVER, 2005). Porém, no país, o aumento desse essa nova face da psicologia do trabalho, sua face organizacional, mesmo
primeiro impulso para a industrialização é seguida da intensificação da que reconheçamos que os primeiros passos dessa face organizacional
mobilização operária (MOTTA, 2004). A saída foi buscar os processos remetem já à Escola das Relações Humanas e às experiências de Mayo em
produtivos que conseguem romper essa mobilização operária, ainda Hawthorne,
fortemente marcada pelos movimentos operários qualificados. O Entretanto, no Brasil essa face demora a se manifestar exatamente
taylorismo, em ampla expansão nos EUA se mostrou como a saída mais porque, entre os anos 1950-1970, o país foi invadido pela segunda onda de
promissora. globalização do capital, sobretudo com o ingresso do capital internacional
A psicologia, no Brasil, assumiu assim uma face extremamente de produção em massa, representado pela grande expansão das indústrias
industrial, como vimos com Sampaio (1998), que se perpetua por anos a fio. automobilísticas e pela intensa urbanização brasileira. Nesse processo, o
Brasil foi conduzido a expandir a grande indústria em movimentos Essa “saúde psicológica” é amplamente influenciada pelo humanismo que
capitalistas estruturados ainda no mesmo taylorismo que se iniciara há mais se expande nesse período. Como Motta (2004), Braverman (1981) e
de 30 anos, mas que se intensificam somente nesse período (ver MOTTA, Sampaio (1996, 1998) sugerem, esse humanismo que se desenvolve a partir
2004). Assim, embora a psicologia tenha ampliado seu escopo de ação em da Escola das Relações Humanas, ainda no taylorismo, não visam superar
outros países, aqui a demanda desse profissional era ainda restrita aos esse modelo produtivo, mas reduzir os malefícios dele decorrente. Temos,
mesmos padrões de atuação de décadas atrás, fortalecendo ainda mais então, o fortalecimento de uma preocupação legítima de profissionais da
esse viés industrial da psicologia do trabalho. psicologia, ao mesmo tempo em que se espera deles a satisfação dos
Soma-se a isso o fato de que é nesse momento que se dá a trabalhadores, a manutenção de suas produtividades, aliadas à saúde e à
constituição dos primeiros cursos de psicologia no país (BOCK, 1999), o que suas realizações pessoais. Enfim, os psicólogos são confrontados, mesmo
reforça a relação entre a psicologia do trabalho e sua face industrial. Além que intimamente, com o seguinte dilema: agir do lado das organizações
disso, como essa mesma autora e Coimbra (1995) salientam, durante os sem deixar de pensar nos trabalhadores.
anos da ditadura militar, há uma profunda inflexão da psicologia em direção Eis aqui o ponto que se torna crucial analisar: a que serve o
a sua intimização. Não é à toa que as práticas clínicas individuais ganham psicólogo nas organizações? Embora o senso comum possa supor que sua
relevo nesse momento, em que o humanismo intensifica a busca pelo auto- função se refira à manutenção da satisfação e da saúde dos trabalhadores,
desenvolvimento e autoconhecimento é reconhecido o fato de que seu objetivo esteja focado na produtividade e
À psicologia do trabalho, em sua face industrial, é atrelado um no desempenho do trabalhador. Embora seja verdade que as questões de
discurso da clínica de ajudar os trabalhadores, seus conflitos no trabalho, saúde e bem-estar dos trabalhadores no ambiente de trabalho estejam sob
visando à harmonia que conduz a produtividade das organizações. Esse a atenção dos teóricos da psicologia organizacional (ZANELLI; BASTOS,
discurso, que socialmente se produz em relação à psicologia, é calcada em 2004), por outro lado eles deixam claro que dentre os objetos principais
práticas profissionais ainda marcadas por essa tradição. A face dessa Psicologia está a produtividade, associada aos resultados e
organizacional da psicologia perde terreno no Brasil, sendo requisitada desempenhos humanos no trabalho. Não se trata, pois, de crer que o
somente quando há a terceira globalização do capital, durante os anos de psicólogo pode mobilizar os recursos pessoais visando a saúde dos
1990, agora por meio da superação do taylorismo como modelo ideal de trabalhadores em meio às exigências das organizações. Isso até pode
produção acarretando em uma profunda crise econômica na América acontecer e é o desejo de parte dos profissionais em atividade. A questão é
Latina, somente em parte superada após os anos 2000. Enfim, se há o que o fundamento de sua atividade está encravado no uso de seus
reconhecimento do aumento da importância de uma face organizacional da conhecimentos para intensificar o controle sobre os trabalhadores,
psicologia do trabalho, esse aumento se deve às reformas dos processos mantendo ou aumentando a produtividade deles. Nesse sentido, qualquer
produtivos que tem na subjetividade dos trabalhadores seu elemento atividade além é considerada de menor importância.
central de gestão. Gerir e produzir subjetividades é deveras mais complexo Há, contudo, um discurso cada vez mais consensual, ao menos no
que selecionar e treinar pessoas. Os psicólogos carecem, em parte, de tocante ao reconhecimento de sua importância e pertinência, de que a
formação que os propiciem a atuar nesse novo cenário. Eis o desafio a que produtividade é efeito direto da satisfação dos funcionários e de sua
se refere Zanelli (2002). qualidade de vida no trabalho (CHIAVENATO, 1999). Esse discurso até pode
Há, entretanto, um segundo ponto importante: como assinalamos servir como um instrumento de diálogo que o psicólogo usa para tentar
acima, durante os anos da ditadura militar, a psicologia se intimiza. Com convencer os gestores na busca de melhores condições de trabalho para os
isso, há uma preocupação social em direção a algo que poderíamos chamar trabalhadores, mas ainda está distante a sua generalização como
de uma “saúde psicológica”, que seria esse estado de harmonia entre a vida instrumento importante de gestão. Para confirmar isso, basta ver os índices
das pessoas, suas relações com o trabalho, com os outros e com si mesmo. de acidentes de trabalho (SANTANA; NOBRE; WALDVOGEL, 2005).
Diante desses dois pontos que aqui trazemos à baila – a fato, em resgatar parte do controle dos trabalhadores em relação à gestão
importância dos conhecimentos de psicologia, mesmo que não atrelados a de seu processo produtivo.
uma prática semelhante no país; e o valor do humanismo no trabalho –, Podemos assim afirmar que a manutenção das práticas e teorias da
podemos sinalizar que o escopo profissional do psicólogo nas organizações psicologia da indústria ou organizacional não permite valorizar, por si só, o
está em se apropriar dos espaços de atuação assumidos pelos papel dos trabalhadores no controle sobre sua produção. Nesse sentido, o
administradores de empresa, fortalecendo sua face industrial e em primeiro caminho apontado acima – a das políticas de recursos humanos
intensificar a estratégia de convencimento dos diretores e empresários como práticas ideológicas –, parece ser o mais provável. E isso por uma
visando a qualificação das condições de trabalho nas organizações, sendo razão que se mostrará evidente. Entretanto, não se trata de falta de
aqui fundamental o papel da saúde mental. Há, porém, um problema nesse sensibilidade dos trabalhadores da gestão de pessoas em relação aos
caminho: a naturalização do papel que se produz nesse espaço. Eis o dilema demais trabalhadores da organização. Muito pelo contrário.
central que deve ser sempre pensado por parte dos psicólogos. Isso porque, Como nos mostra Braverman (1981), esse modo evidencia o
como vimos, se trata de um espaço de intervenção que visa, de princípio, a desenvolvimento do capital industrial em direção ao aumento de controle
intensificação do controle, da produtividade e do desempenho dos da gerência sobre o processo produtivo. Cabe aos trabalhadores que
trabalhadores. realizam o planejamento da organização do trabalho o controle da
Além disso, o profissional da psicologia possui uma habilidade performance dos trabalhadores da linha de produção. Entre esses se
importantíssima e que é muito valorizada no cotidiano gerencial: a encontra o psicólogo e seu saber. O trabalho dos profissionais de recursos
capacidade de escuta aprimorada e analítica e a capacidade de análise humanos visa, em última instância, controlar, gerir o trabalho de outrem.
multifacetada, complexa. Essas duas habilidades, frutos de teorias e Enfim, numa leitura ergonômica, a tarefa do profissional de recursos
práticas que não permitem entender as coisas apenas a partir de conceitos humanos é atuar na produção de prescrições do trabalho dos demais
explicativos únicos e que requerem a contínua problematização da trabalhadores.
situação, garantem ao psicólogo habilidades que permitem compreender Talvez a grande novidade da administração científica de Taylor
de maneira complexa as relações entre trabalho, comportamento e tenha sido a intensificação, sem igual, de prescrições no trabalho,
desempenho. Talvez o que falte a esse profissional é a aquisição de acarretando em aumento de controle sobre a força de trabalho, bem como
ferramentas que permitam dialogar melhor com os conhecimentos de viabiliza um cálculo bastante preciso em torno da produtividade possível
outras disciplinas, tais como os da administração. dessa força de trabalho. Sabemos dos efeitos perniciosos dela (DEJOURS,
Feito essas considerações, nos deparamos com um duplo caminho 1987) bem como o mundo do trabalho atual construiu caminhos para sua
inevitável: reconhecer que as faces industrial e organizacional da psicologia superação parcial, pelo menos no tocante a alguns setores da economia,
do trabalho estão em parte confinadas aos princípios gerenciais que como a indústria automobilística ou de produção de informação e
enfocam o desempenho e a produtividade dos trabalhadores; porém, há conhecimento. Sabemos, também, que o taylorismo está em pleno
que se compreender como legítimo a preocupação humanista que se funcionamento em parte das organizações, ou em determinados setores ou
produz em torno da saúde dos trabalhadores. O que se torna questionável, em alguns países. O que importa disso é que independente da convivência
entretanto, é em que medida esse humanismo visa intensificar a de modelos tayloristas ou não, o rigor em torno da prescrição do trabalho
produtividade, tornando as políticas de recursos humanos como “práticas ainda se mantém como uma condição indelével. E mesmo que
ideológicas”3, como sugeriam Pagès et. alli. (1987, p. 98) ou se trata, de reconheçamos que as prescrições da atividade de trabalho não são tão
rigorosas como outrora no tocante ao modo de se produzir no trabalho,
3 dando certa margem de autonomia para os trabalhadores no tocante a
Essas políticas são práticas ideológicas na medida em que produzem verdade,
parte do processo produtivo – uma autonomia sempre controlada (TOLFO;
discursos, realidades.
PICCININI, 2001) –, não podemos deixar de considerar que as prescrições preceitos da administração. Quando pensam nas questões da saúde, em
atuais são ainda excessivamente rigorosas no tocante aos prazos, metas e geral esta se dá pelo viés dos conceitos de “satisfação”, “qualidade de vida
qualidade do trabalho. A tão citada “gestão por competências” é uma no trabalho” ou “saúde ocupacional”, sendo o foco, uma vez mais, nas
comprovação de que mais que o desempenho e o perfil, trata-se de políticas de RH e nas aplicações de “boas” técnicas, cientificamente
sublinhar as competências, “prescrevendo” a “humanidade” do trabalhador comprovadas. Tanto a pesquisa, que é em grande medida quantitativa,
que se espera que cada trabalhador desenvolva. (ENRIQUEZ, 2000; quanto a prática cotidiana, profundamente enquadrada em modelos,
GUATTARI, ROLNIK, 1999). programas, métodos muitas das vezes informatizados e atrelados a
Afirmamos, portanto, que não é por meio do humanismo que se números, escalas de avaliação ou valores financeiros, ilustram uma
pode superar os limites que os constrangimentos a que o trabalhador está tendência a objetivar as experiências, retirando a força de produção do
submetido nas organizações – e que podem, ao longo do tempo, acarretar cotidiano, das pessoas com suas singularidades nas maneiras de ser, viver,
em sérios problemas de saúde, de satisfação em relação ao trabalho, ou falar, fazer no trabalho. Essa concepção reificadora da organização sinaliza,
ainda de produtividade. O elemento central que queremos evidenciar é que uma vez mais, a aproximação da prática dos psicólogos e demais
os profissionais de recursos humanos atuam na prescrição do trabalho, na profissionais da área de recursos humanos com o pólo antecipador,
sua gestão, na adequação da atividade dos trabalhadores ao que se lhes prescritivo das organizações, o que os conduzem ao inevitável papel de
espera deles. Veremos, abaixo, que se atentar para esse fato talvez seja o prescritor.
ponto de partida para superarmos um pouco a ambigüidade da atividade Numa leitura foucaultiana das relações entre prescrição e os modos
de trabalho desses profissionais. reais de se trabalho, poderíamos analisar a prescrição como criação de
Ao discutirmos as dimensões organizacionais da psicologia do valores, referências e normas. Prescrição seria, portanto, poder.
trabalho, e mesmo ao citarmos as organizações de trabalho, vale considerar Determinar que os demais trabalhadores obedeçam, acompanhem ou
as reflexões trazidas por Spink (1996) e Sato (2003), que nos alertam para o utilizem referências sobre os modos de executar e desempenhar seu papel
fato de que as concepções de organização como uma entidade que existe na organização. Alertar para os efeitos desse pólo prescritor não se trata
para além das relações humanas no trabalho conduzem a reificação de uma de uma dimensão moral: trata-se de uma ética, uma vez que se se enfoca
categoria que não existe em si mesma. Esses autores sugerem que tal por demais nesse pólo, se conforma a potência vida por demais nele.
compreensão conduz à idéia de que atuar na e sobre a organização é Superar tais dimensões, como diria Sato (ibid.) não se refere a implementar
sempre atuar a partir do núcleo que produzem as regras e normas de programas de qualidade de vida no trabalho apenas, mas ultrapassar os
funcionamento e os valores das organizações. Não é no cotidiano que ela se fundamentos prescritivos que localizam tais profissionais no pólo das
produz-reproduz, mas em seus princípios fundamentais de constituição. relações de trabalho nas organizações que procuram conformar o trabalho
Sua história é sempre a história de sua invenção, do patrão, do empresário vivo aos padrões mensuráveis da produtividade, para extrair-lhes o
que organiza um modo de fazer que se perpetua nos valores e cultura da máximo de uso de sua força de trabalho (MARX, 1985).
organização. Pensar assim pressupõe que a organização é um todo que está
para além das pessoas, que não as atinge, que é maior e que está fora do Psicologia do trabalho: uma terceira face de pesquisa e atuação
alcance delas. Lidar com a organização na perspectiva reificadora supõe que A terceira face a que se refere Sampaio (1998) está ligada a um
possamos lidar com ela de uma maneira objetiva. Aliás, uma das imenso esforço teórico-profissional de psicólogos que buscam apreender as
características mais comuns da prática dos profissionais de recursos dimensões do trabalho para além de um espaço de intervenção técnica,
humanos é que empreendem sua prática por meio de estratégias mas como um elemento central na vida das pessoas. O trabalho seria o
metodológicas e instrumentos de intervenção bastante objetivos. Em elemento central na organização da vida na sociedade contemporânea;
função disso atuam de maneira enviesada pelo tecnicismo e aliados aos como produtor e polarizador de sentidos sobre si, sobre o mundo; como
determinante na produção de valores e, sobretudo, na mobilização dos científica nas organizações no mundo inteiro. A resolução do conflito
debates e atualizações dos valores humanos, onde se enfrentam, se trabalhista por meio do pacto fordista (AGLIETTA, 1997) foi o terreno
articulam e se distanciam os valores de mercado e os valores do bem propício para a consolidação dessas práticas profissionais antenadas ao
comum (SCHWARTZ, 1996). Enfim, embora não necessariamente marxista, pólo dos trabalhadores.
mas profundamente atravessada pelas considerações marxianas sobre o Emergem nesse meio, como dito acima, experiências singulares da
trabalho humano como produtor de si e do mundo (MARX, 1985), essa face psicologia em relação ao trabalho nos países europeus, como os estudos de
da psicologia do trabalho se preocupa menos com a produtividade e o Le Guillant (ZAMBRONI-DE-SOUZA, ATHAYDE, 2006) e de Oddone e
desempenho e mais com as relações e os efeitos do trabalho com a saúde e colaboradores (ODDONE et alli., 1986). Desses se desdobram inúmeras
a subjetividade dos trabalhadores. Ela se alia a uma longa história de contribuições que chegam ao Brasil, fornecendo teorias importantes para o
mobilização dos trabalhadores diante das exigências do capital. estudo e a prática de psicólogos na área do trabalho: a Psicodinâmica do
Enfim, essa face da psicologia do trabalho se desenvolve para além Trabalho (DEJOURS, 2004), a Clínica da Atividade (CLOT, 2006), os
dos espaços da organização privada de trabalho e procura compreender desdobramentos das experiências de Oddone na Reforma Sanitária Italiana,
como se pode produzir saúde por meio do trabalho. Trata-se, pois, de tão importante para a implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil,
intervenções que se desdobram tanto na recuperação de trabalhadores entre outros.
afetados pelos constrangimentos do trabalho, quanto na produção de A influência da Psicodinâmica do Trabalho de Dejours é evidente,
estudos que conduzem a leis, regulamentações e normatizações que marcando uma geração de teóricos preocupados com as relações entre
reduzam os efeitos negativos desses mesmos constrangimentos. trabalho e saúde mental. No Brasil, os textos da Edith Selligman-Silva são o
Entender esse outro pólo da psicologia do trabalho requer uma principal carro-chefe dessa empreitada (SELLIGMAN-SILVA, 1994). Há ainda,
breve consideração acerca de sua história. Na verdade, ela emerge conforme Sampaio (1998), as influências de outra linhagem de estudos em
somente com o recrudescimento dos movimentos sociais em fins de 1970, relação à saúde dos trabalhadores, cuja influência é menos latina do que
sobretudo a partir dos movimentos trabalhistas do ABC. Esboçava-se em anglo-saxã. São estudos que se desdobram a partir da discussão da
meio a esse movimento (e também em meio às lutas pela reforma da síndrome do estresse. Essa síndrome, identificada por Hans Seyle no início
saúde), outra possível forma de intervir nas relações trabalho e psicologia, do século XX, fornece um arcabouço teórico que propicia compreender as
em que o foco era o trabalhador, seus saberes e sua saúde (a influência do relações entre trabalho e saúde de uma maneira bastante objetiva. Esses
Movimento Operário Italiano de luta pela saúde, representado estudos também viabilizam uma importante contribuição na organização
sobremaneira pela figura de Oddone é notória – (ODDONE et alli.; 1986)). política e técnica da luta dos trabalhadores em relação à sua saúde.
Entretanto, essa tradição de luta operária remonta aos primeiros Em suma, essa psicologia se apresenta como mais crítica em relação
movimentos de trabalhadores que se organizam já desde a Revolução ao mundo do trabalho, estando mais antenada aos efeitos sociais das
Francesa (NEGRI, 2002) ou até antes (THOMPSON, 1987). Esses transformações nos processos e tecnologias produtivas, consolidando um
movimentos se consolidam em um moderno movimento sindical na virada conjunto de saberes teóricos e metodológicos que a torna capaz de propor
do século XIX para o século XX, quando os trabalhadores qualificados das intervenções em torno dessas problemáticas. Ressalta-se, porém, que suas
práticas de trabalho fortemente artesanais começam a se filiar aos contribuições são ainda muito tímidas em termos de instrumentos de ação
trabalhadores desqualificados que explodem em volume com a crescente dentro das organizações, já que atualmente seu campo de atuação se
mecanização das fábricas (SILVER, 2005). Esse novo sindicalismo, que encontra nos setores públicos, nas organizações não lucrativas de trabalho,
encontra nos movimentos do ABC sua referência mais próxima no Brasil, nas associações comunitárias e nas Universidades Públicas.
passa por vários períodos de mobilização, tendo seu auge as oportunidades No país, mesmo após a abertura política, os movimentos de
históricas mobilizadas por meio da implantação massiva da administração esquerda, da qual parte expressiva dos psicólogos e teóricos da psicologia
do trabalho faziam parte, não conseguem ser aceitos dentro das trabalhadores. De fato, metade da produção está na tradicional POT e a
organizações. Há uma intensa luta para o desmantelamento do recém- outra metade procura relacionar questões subjetivas ao trabalho
fortalecimento do movimento trabalhista e qualquer discurso que se (identidade, saúde, gênero, violência, enfim, o trabalho como formador da
aproxime às reivindicações desse movimento se torna perigoso. O cenário subjetividade humana). Os autores revelam um imenso esforço – por meio
se compõe, então, como uma transformação radical nos modos de de uma significativa produção acadêmica – de incluir o tema trabalho no
organização do trabalho dentro das indústrias de modo a intensificar a âmbito teórico da psicologia, para além de uma subárea específica (como
gestão das subjetividades, mas com a redução drástica de trabalhadores parte da psicologia organizacional), afirmando que a dimensão do trabalho
dentro das fábricas, onde o papel da psicologia organizacional é cada vez seja reconhecida como central na formação da subjetividade. Enfim, há
mais o de fornecer instrumentos teóricos que tornem possível gerir tais uma tendência de crescimento em volume e importância dessas produções,
contingentes “subjetivamente” atrelados à organização. Não há espaço aí sinalizando uma mobilização da sociedade e dos pesquisadores em busca
para uma psicologia por demais crítica. Em contraponto a isso, os de compreender as condições, transformações e efeitos do trabalho
psicólogos do trabalho dessa face mais crítica se mantêm atônitos e contemporâneo na vida das pessoas.
despotencializados com a percepção de um intenso desemprego, que se Devemos nos ater aqui que a importância, aqui dada, à valorização
torna agora estrutural, e não mais conjuntural, bem como o aumento das do trabalho a partir dessa face crítica da psicologia do trabalho, não tem o
relações entre trabalho e transtornos mentais, aumento da precarização do intuito de apontar para um primado dessa posição frente às outras ao que
trabalho, sobretudo porque parte do trabalho é realizado em pequenas se refere em pensar o mundo do trabalho atual. Até porque, essa face é
empresas, sem qualquer forma de controle, frutos da tercerização dos profundamente diversificada, sofrendo influência desde a Psicanálise e a
serviços “braçais”, intensificação da violência, etc. Psicossociologia francesa (PAGÉS et. alli., 1987), passando pelas
Em meio a isso tudo, se radicaliza a necessidade de atenção ao contribuições dos Estudos da Subjetividade de Guattari, Foucault e Deleuze
trabalhador, ao mesmo tempo em que, na Saúde Pública, o tema trabalho (GRISCI, 2000), chegando às contribuições da Ergonomia da Atividade
deixa cada vez mais de fazer parte do discurso dos gestores, políticos e francofônica, sem deixar de mencionar as relações entre a Psicologia Social
profissionais da saúde. A clivagem se intensifica: o trabalho dos psicólogos e o trabalho (SATO, 2002; 2003; 2009; SPINK, 1996) e os estudos de
organizacionais é compreendido como um instrumento que intensifica o estresse (FILGUEIRAS; HIPPERT, 2002). O que podemos perceber nessas
panorama de exploração, mas não conseguem propor nenhuma forma diversas linhagens sobre o trabalho é que algumas se aproximam de alguns
ampliada de intervenção que, além de romper com o nexo causal trabalho- elementos da psicologia organizacional, sobretudo no tocante aos
saúde mental4, não conseguem se fazer ouvir dentro das organizações. procedimentos de investigação – uso de inventários, tais como a
Vale ressaltar que mesmo que a força política ou a influência no psicopatologia sugerida por Codo (1999; JACQUES; 2003) ou o estudo do
mercado de trabalho dessa face crítica da psicologia do trabalho seja estresse (FILGUEIRAS; HIPPERT, ibid.) –, ou no objetivo de análise, em que
inferior às demais, no estudo de Tonetto e colaboradores (2008) acima algumas se destacam como estudos marcadamente epidemiológicos. É por
citado, os autores identificam uma substancial produção de pesquisas e essa razão que alguns autores vêm apontando o fato de que mesmo esses
publicações em torno das questões da saúde e da subjetividade dos estudos de saúde do trabalhador poderiam ser mais bem desenvolvidos se
as contribuições do cotidiano de trabalho viessem sendo mobilizadas
(BRITO, 2005; SILVA, 2007; SATO, 2002). Isso porque essas faces mais
4
Apesar de algumas conquistas, como a recente Instrução Normativa nº 16, do críticas do trabalho tendem, em alguma medida, em se debruçarem sobre
INSS, de 2007, que de modo geral atribui às organizações a responsabilidade de os fatores perniciosos do trabalho – turno, pressão e exigências das metas,
comprovar que uma determinada doença “não” é fruto das condições de trabalho sistemas de hierarquia, etc. –, sem considerar de maneira exaustiva as
no setor, quando estudos epidemiológicos anteriores provam nexos-causais entre
relações entre elas e os modos em que o trabalhador se organiza para lidar
trabalho e determinadas patologias; esse avanço inverte o ônus da prova
com esses fatores. Nessa linha, evidencia-se aqui o mesmo problema intervenção mais preocupadas com o desempenho do trabalhador e, de
apontado quando analisávamos as faces industrial e organizacional da outro, as abordagens teórico-práticas da área de Saúde do Trabalhador e da
psicologia: o foco maior nas prescrições, nos elementos constituídos do Psicologia do Trabalho que focam no problema dos efeitos do trabalho na
trabalho, nas antecipações realizadas previamente ao agir do trabalhador. saúde e subjetividade dos trabalhadores5.
Enfim, trata-se de elencar os elementos que constrangem, comprometem, Um dos problemas dessa visão dicotômica da psicologia do trabalho
exigem exacerbadamente dos trabalhadores para apontar caminhos que é que essa compreensão intensifica o grande preconceito entre os pólos,
reduzam tais exigências. A subjetividade é, em última instância, mais não permitindo um diálogo que viabilize atividades de trabalho mais
“reativa” às prescrições do trabalho e aos modelos produtivos. sintonizadas com os interesses dos trabalhadores nas situações reais de
Não se deve ignorar a importância de tal estratégia, pois ela aponta trabalho. E o pior é que essa desatenção à experiência real do trabalho se
caminhos e saídas importantes para a transformação dos meios de dá por ambos os pólos, visto que a atuação do psicólogo da Saúde do
trabalho. Aliás, podemos adiantar que os avanços obtidos na área de saúde Trabalhador se dá fora dos ambientes de trabalho e a atuação dos
e segurança no trabalho são fortemente oriundos de concepções teóricas e psicólogos organizacionais se fundamenta, em geral, na aplicação de
estudos empíricos e epidemiológicos dos quais tais faces partilham certa modelos produzidos pelos princípios cientificistas da Psicologia
responsabilidade. Contudo, nessa concepção, o peso mais importante é Organizacional que se caracterizam pela recusa da singularidade no
dado à organização, ao meio e não ao vivente. Não é o trabalhador em sua modelo tido como ideal. Assim, os pólos se materializam na atividade
singularidade que importa, mas as condições que o constrange. Com isso, concreta dos trabalhadores da área, preocupados em responder
esses profissionais desenvolvem conhecimentos críticos em relação às satisfatoriamente às demandas do pólo em que atuam, mesmo que
condições de trabalho, às próprias relações trabalho-capital e o papel encontremos vários desses profissionais ansiando por uma maior
contraditório do Estado. Assim, a prática cotidiana dos trabalhadores é articulação entre as áreas. A despeito do discurso de autores da
sempre deixada um pouco de lado nessas atividades de pesquisa e administração, como Chiavenato (1999), que afirmam, peremptoriamente,
intervenção. que é possível conciliar produtividade com uma gestão de pessoas que lhes
As autoras, acima citadas, sugerem, a partir dessas constatações, garanta satisfação, saúde e segurança no trabalho, na prática, os psicólogos
que inúmeros avanços poderiam ser obtidos se as atividades reais dos não encontram tão facilmente instrumentos e saberes suficientes que lhes
trabalhadores viessem a ser analisadas em conjunto com eles, pois permitam comprovar essas relações, nem propiciar intervenções que
revelariam não apenas as condições de trabalho, mas os saberes respeitem ou se debrucem propriamente sobre a experiência dos
desenvolvidos em torno delas e seus efeitos nas constituições de sempre trabalhadores.
muito singulares de se produzir o mundo tal qual ele é: diverso e sempre
singular. Veremos, logo abaixo, que tais contribuições podem inaugurar um
campo de diálogo entre as faces da psicologia que talvez sinalizem para 5
É importante mencionar que essa distinção em pólos não é tão completamente
outros caminhos de pesquisa, antes porém, vamos retomar brevemente a reconhecida. Vários autores sustentam que os estudos da relação entre Psicologia e
dualidade em cena. Trabalho denominam-se Psicologia Organizacional e do Trabalho. Entretanto, se de
fato se reconhece a pertinência teórica dessas ponderações, ao menos, até o
Dualidade em cena? Aproximações possíveis? momento, parece que essa distinção é bastante real na atividade cotidiana de
Vimos, até o momento, que a dualidade do campo profissional da trabalho dos psicólogos que atuam no setor de trabalho, tendo as organizações
psicologia e das relações trabalho-homem é fruto de um longo processo com fins lucrativos, a principal contratante de psicólogos que atuam nesse setor, o
histórico, teórico, ético, político e metodológico, mas que pode ser objetivo último de aumento de produtividade e as organizações do poder público,
outro grande contratante do setor, estando mais preocupadas em compreender e
resumido no seguinte aspecto: de um lado as faces de pesquisa e
intervir nas relações trabalho, saúde e subjetividade.
Enfim, em função desses interesses, objetivos, princípios políticos e Trabalhador conduz inevitavelmente para o caminho de transformação das
metodológicos distintos, tais pólos do campo de intervenção do psicólogo condições de vida do trabalhador. Tudo depende, na verdade, de quê
no trabalho tendem a não se encontrarem ou raramente dialogarem. A concepções teóricas e, sobretudo, práticas o profissional psicólogo
reflexão adequada em torno dessas questões é de fundamental consegue colocar em movimento em seu cotidiano de trabalho.
importância na formação e atuação profissional, até porque um diálogo Há, porém, um fato importante a ser observado: se é possível
entre os pólos opostos possibilitaria a qualificação de ambos atrelar produtividade e eficiência à saúde, se deve sugerir, conforme
Contudo, para que esse diálogo se intensifique, há a necessidade de Durrafourg (in SCHWARTZ; DURRIVE, 2007), que o que mais importa aos
que ambos os pólos se atentem para um fato muito concreto do cotidiano trabalhadores é a concepção de eficácia e não produtividade. Isso porque é
de trabalho das pessoas: a maneira, sempre singular, em se resolver as pelo fruto do trabalho que o trabalhador se reconhece como sujeito do
exigências da tarefa com o menor custo possível à saúde, garantindo a mundo e é visando a melhor produção possível, num movimento
produtividade da empresa, a qualidade dos produtos de seu trabalho e a amplamente artesanal, por mais industrial que seja sua atividade, é que ele
satisfação dos usuários desse produto ou serviço. Enfim, o que os estudos consegue se reconhecer como senhor do seu trabalho, produzindo uma
da atividade de trabalho parecem revelar é que essa dicotomia do campo identificação de si que lhe confere uma saúde mental digna da
de atuação pode ser, na verdade, um recorte de uma realidade que ocorre, potencialidade do trabalho (SENNETT, 2009). Ora, se lhe é fornecido
no cotidiano da atividade de trabalho, a um só tempo. Isso porque os condições para o trabalhador se aperfeiçoar, dar o melhor de si, contribuir
trabalhadores tentam, com todos os seus esforços, aliar a produtividade a para a melhoria da atividade, é provável que ele encontrará na atividade de
sua saúde física e mental. Nessa lógica, essa dualidade de campos é trabalho uma atividade significativa do qual se dedicará para o melhor. Há,
parcialmente ilusória, sendo compreensível pensar em outra dualidade porém, incompatibilidades freqüentes entre o aprimoramento de si e da
ainda menos explorada: de um lado as teorias que se preocupam com os atividade e as exigências das metas, dos prazos e dos processos de
aspectos, condições, elementos dados, prescritos, antecipados da atividade trabalho. Em meio a essa ambigüidade, o trabalhador tende a abrir mão de
de trabalho e, de outro, aquelas que se interessam pela atividade, pela si, de seu sentido, para adequar-se às exigências que lhe são impostas. Em
criação, pela singularização do fazer-saber dos trabalhadores. Essa conseqüência, é a própria qualidade do trabalho que pode estar em jogo,
dualidade, porém, é sempre superável na medida em que na atividade real junto com a saúde do trabalhador.
é por meio de uma “síntese” entre o prescrito e as condições reais que se Esse ponto revela, portanto, um elemento que produz efeitos
apresenta ao trabalhador que se consegue realizar o trabalho. cruciais no trabalho e na própria organização social da vida: para Schwartz
Sendo assim, se numa leitura por meio da atividade podemos (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007), os embates cotidianos entre as exigências
aproximar os pólos da saúde e da organizacional, ao menos no tocante a que os trabalhadores são submetidos e tudo aquilo que eles mobilizam ou
algumas perspectivas teóricas, como integrantes de um mesmo pólo que se tentam mobilizar revelam, em última instância, embates entre valores.
contrapõe ao pólo da experiência dos trabalhadores, parece inevitável que Valores esses produzidos em prol dos interesses do mercado, da mais-valia,
uma aproximação entre esses campos requeira uma investigação da exploração, ou interesses produzidos em prol do bem-comum, da
exatamente por meio das atividades concretas de trabalho. Aliás, pode-se satisfação de si, dos valores de uso. Esse embate manifesta-se no cotidiano
afirmar que tal preocupação com a atividade concreta do trabalho pode de trabalho, mas termina por sedimentar modos de ser, de viver, de sentir,
contribuir tanto para se repensar as práticas da Psicologia Organizacional, de pensar que ultrapassam os espaços de trabalho e se sedimentam em
quanto as ações na área de Saúde do Trabalhador. O conceito de atividade movimentos políticos que auxiliam na formação-formatação política do
de trabalho sinaliza a opção de que atuar dentro do campo da Psicologia mundo. Enfim, esse autor sugere que tais debates de valores são vivências
Organizacional não significa, necessariamente, em se fazer um pacto muito singulares de movimentos amplos que se dão no cotidiano das forças
ideológico com o capitalismo, nem, por outro lado, que atuar na Saúde do de produção desse mundo. O trabalho é, portanto, um palco privilegiado da
observação desse movimento. Atentar, então, para esses aspectos permite BOCK, Ana Mercês Bahia. A Psicologia a caminho do novo século:
à psicologia do trabalho estar atenta ao espaço de produção do mundo identidade profissional e compromisso social. Estud. psicol. (Natal), Natal,
para além de sua produção material, mas também para os modos de sua v. 4, n. 2, Dec. 1999. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista:
produção política. E nesse esforço de articulação de uma polarizada A Degradação do Trabalho no Século XX. 3ª Edição. Jorge Zahar Editores.
psicologia do trabalho, o que se obtém é um exercício de superação Rio de Janeiro, 1981.
democrática, base da qual a ciência se sustenta. BRITO, J. Trabalho e Saúde Coletiva: o ponto de vista da atividade e das
relações de gênero. Ciências & Saude Coletiva. 10 (4), 879-890, 2005.
Conclusões CHIAVENATO, I. Gestão de Pessoas: o novo papel dos recursos humanos
A história da psicologia do trabalho e suas relações com as nas organizações. Rio de Janeiro, Elsevier, 1999.
organizações são atravessadas por um movimento que aponta, de um lado, CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006.
para a produtividade dos trabalhadores e, de outro para a sua saúde. CODO, W. (coordenador). Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ:
Observamos que os espaços de intervenção profissional não são Vozes, 1999.
necessariamente abertos em sua potencialidade para cada um dos pólos, COIMBRA, C.. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil
sendo ainda possível ampliar o escopo de atuação dos psicólogos em do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
relação ao trabalho no país. Indicamos, entretanto, que parte dessa DEJOURS. C.A. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do
polarização é, em última instância, a afirmação de um mesmo modo de trabalho. 2ª ed., São Paulo, Cortez-OBORÉ, 1987
pensar o trabalho a partir dos elementos já dados no trabalho. DEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho.
Mostramos que é necessário pensarmos de outra forma com o In: LANCMAN, Selam; SZNELWAR, Laerte Idal (org.). Christophe Dejours: da
intuito de superar essa polarização, e para indicar o fato de que a psicologia psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora
do trabalho pode contribuir, para o exercício da democracia. Fiocruz, Brasília: Paralelo 15, 2004.
Concluímos esse texto afirmando que ele se trata de uma aposta ENRIQUEZ, Eugène. O indivíduo preso na armadilha da estrutura
que requer a humildade dos pesquisadores em reconhecer seus próprios estratégica. In MOTTA, F. P.; FREITAS, M. E. (orgs.). Vida psíquica e
limites em relação ao saber dos trabalhadores. Mas com isso, não se trata organização. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
de diminuir o valor do conhecimento científico, mas apontar a imprecisão FILGUEIRAS, J.C.; HIPPERT, M.I.. Estresse: possibilidades e limites. In:
de seus limites, sugerindo uma articulação necessária entre o conceito e a JACQES, M. G.; CODO, W. (orgs.). Saúde mental & trabalho: leituras.
prática visando, assim, ultrapassar os embates teóricos que terminam, Petrópolis: Vozes, 2002.
muitas vezes, em importantes querelas acadêmicas sem efeitos GRISCI, C.. Tempo e Subjetividade: a reestruturação do trabalho bancário.
perceptíveis na vida das pessoas em suas condições concretas. É a essa vida Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
concreta que esse texto se refere e a ele que esperamos atingir por meio Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2000.
das questões que aqui levantamos. GUATTARI, F. ; ROLNIK, S.. Micropolítica – Cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes, 1999.
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