Você está na página 1de 11

39

Sentidos atribuídos ao trabalho na sociedade contemporânea


e as repercussões na subjetividade do trabalhador
CARLA VAZ DOS SANTOS RIBEIRO*
DENISE BESSA LEDA**

Resumo: O presente ensaio teórico tem por objetivo levantar reflexões sobre os sentidos atribuídos ao
trabalho na sociedade contemporânea e as repercussões na subjetividade do trabalhador. Aborda mudanças
no mundo do trabalho na virada do século XX para o século XXI, dando destaque aos novos modos de
controle a que estão expostos os trabalhadores. Problematiza a centralidade do trabalho em tempos de
desemprego, flexibilização e precarização das atividades laborais. Aponta o trabalho como fator
estruturante e desestruturante, analisando, ainda, as repercussões do não trabalho na constituição do sujeito.
Questiona sobre os riscos do processo de desumanização do trabalhador submetido às situações de trabalho
adversas e sinaliza a urgente necessidade de ampliação de pesquisas na área de saúde do trabalhador que
possam fomentar políticas públicas.
Palavras-chave: Mundo do trabalho; Sentidos do trabalho; Subjetividade.
Senses assigned to work in contemporary society and repercussions at subjectivity of the worker
Abstract: This theoretical essay aims to reflect on the meanings attributed to work in contemporary society
and the repercussions at subjectivity of worker. Changes in the world of work from the turn of the 20th
century to the 21st century, highlighting the new forms of control to which workers are exposed are
approached. Such essay problematizes the centrality of work in times of unemployment, flexibilization and
precarization of labor activities, points out the work as a structuring and de-structuring factor, also
analyzing the repercussions of nonwork on the constitution of the subject. Risks of the process of
dehumanization of the worker submitted to adverse work situations is questioned and the urgent need to
expand researches in the area of worker health that can promote public policies is indicated.
Key words: World of work; Sense of work; Subjectivity.

*
CARLA VAZ DOS SANTOS RIBEIRO é Doutora em Psicologia Social pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Associada do Departamento de Psicologia e Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

**
DENISE BESSA LEDA é Doutorado em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Docente da Universidade Federal do Maranhão, nível Associado III (DE). Professora
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão
(PPGPSI).
40

“Lunch atop skycraper”. Fotos: © Bettmann Corbis. New York, 1932.

Introdução subjetividade dos trabalhadores? Como


Partindo do entendimento do trabalho lidar com o afastamento do mundo
como categoria sociológica-chave que laboral e o não lugar em uma sociedade
configura-se como elemento central para que gira em torno do trabalho?
a compreensão da constituição do ser Buscando atender o objetivo proposto, a
social, propõe-se no presente ensaio discussão realizada neste texto será
teórico levantar reflexões sobre os dividida em dois eixos: o primeiro
distintos sentidos atribuídos ao labor na aborda as mudanças do mundo do
sociedade contemporânea e suas trabalho na virada do século XX para o
repercussões na subjetividade da classe século XXI, dando destaque aos novos
trabalhadora. modos de controle a que estão expostos
Para aprofundamento das reflexões deste os trabalhadores. O segundo
estudo, algumas questões norteadoras problematiza a centralidade do trabalho
foram delineadas, tais como: Quais são em tempos de desemprego,
as principais repercussões das flexibilização e precarização das
transformações do mundo do trabalho na atividades laborais. Aponta o trabalho
subjetividade dos trabalhadores? De que como fator estruturante e
modo os trabalhadores têm enfrentado o desestruturante, analisando, ainda, as
processo de intensificação e precarização repercussões do não trabalho na
da sua atividade laboral? Como os constituição do sujeito.
distintos sentidos atribuídos ao trabalho
têm impactado na constituição da
O mundo do trabalho, seus modos de rendimento do trabalhador, evitando
41
gestão e de controle da subjetividade. desperdício de tempo e de materiais
durante o processo produtivo.
Analisar a categoria trabalho na
atualidade é uma tarefa de muita Mas, para evitar possíveis resistências
complexidade. Autores de vertentes era necessário uma eficiente seleção do
teóricas críticas têm procurado operário ideal. Segundo Zanella (2003,
compreender e desvelar os meandros do p. 69), o trabalhador deveria ter as
sistema capitalista, os diferentes seguintes características em seu perfil:
percursos históricos que ele veio “[...] quieto, econômico, ambicioso,
tomando e as configurações que trouxe à ignorante, seguro, obediente,
vida dos seres humanos. individualista e forte”. A submissão
frente às ordens dos superiores
Recorremos, para início, ao pensamento hierárquicos, normalmente as pessoas
de Jost, Fernandes e Soboll (2014, p. 48): que concebiam e planejavam as
“O capitalismo compreende diversos atividades da produção, tornou-se
ciclos de crescimento e de crise, que são central, assim o trabalhador cooperava
acompanhados de transformações na com a execução eficiente do seu
forma de gestão e organização do trabalho.
trabalho, assim como nas exigências de
qualificação e nas formas de controle Inevitavelmente, a atividade espontânea
sobre os trabalhadores”. Desse modo, do trabalhador de pensar sobre a
podemos entender que os diferentes atividade laboral, entra em conflito com
modos de organização do trabalho foram a exigência taylorista de prescrição das
concebendo diversas conformações à tarefas. Dejours (1996) compreende que
subjetividade do trabalhador, ou seja, em tal conflito pode gerar erros, falhas ou
sua concepção de mundo e, por atrasos no processo produtivo. Conforme
consequência, em suas formas de agir e esse mesmo autor em sua discussão
interagir. sobre “Inteligência prática e sabedoria
prática: duas dimensões desconhecidas
No fim do século XIX e início do século
do trabalho” (2011b, p.403): “Flanação,
XX, Frederick Winslow Taylor,
preguiça, falha e desinvestimento são
engenheiro norte-americano, difundiu
antes o resultado de um processo de
em sua “Teoria da Administração
desorganização vinculado aos efeitos
Científica”, o aumento da produtividade
deletérios da utopia taylorista quando ela
“[...] através da decomposição de cada
se impõe nas relações sociais de
processo de trabalho em movimentos
trabalho”. Concorda-se que o uso da
componentes e da organização de tarefas
inteligência, é inerente ao sujeito, e ele a
de trabalho fragmentadas segundo utiliza para criar e transgredir nas
padrões rigorosos de tempo e estudo do
atividades laborais, movimento
movimento.” (HARVEY, 1996, p. 121).
importante para a saúde no trabalho.
A sua intenção era privar os
Contudo, tal movimento, na gestão
trabalhadores de qualquer margem de
taylorista, era sinal de desobediência ao
autonomia sobre os processos de
prescrito, motivo de demissão do
trabalho, desconectando concepção da
trabalhador.
atividade de execução propriamente dita,
limitando os trabalhadores à Passada a primeira década do século XX,
operacionalização das tarefas. O foco de por volta de 1914, o taylorismo associa-
Taylor era a eficiência operacional no se aos princípios e métodos
setor industrial, otimizando o desenvolvidos por Henry Ford, surgindo
daí o fordismo. Esse sistema manteve investimentos públicos, gerando um
42
algumas características do taylorismo caráter apaziguador na relação de forças
como por exemplo: acentuada separação entre burguesia e proletariado, com o
entre concepção e execução (divisão do objetivo de recompor o consumo de
trabalho), mas apresentou novos massa. Gentili (1998, p. 107) lembra,
elementos essenciais: processo de assim, o duplo papel atribuído ao Estado,
produção centrado nas linhas de “[...] como agente de investimento e
montagem, que na esteira rolante tinha como mecanismo de regulação do
um fluxo contínuo de peças de um conflito social [...]”.
produto, parceladamente montado (na
época uma inovação tecnológica Todavia, segundo Antunes (2005b) nos
revolucionária); velocidade e ritmo de primeiros anos da década de 1970, o
trabalho imposto pelas máquinas e ideário fordista entrou em crise frente a
produção voltada para o consumo de fatores como: queda da taxa de lucro,
massa. com o encarecimento da força de
trabalho; falência do modelo de
Além desses novos elementos, o acumulação taylorista/fordista de
fordismo se preocupou com o produção, visto que tal modelo não
trabalhador em sua vida fora do ambiente conseguia mais reagir frente à retração
laboral, com o intuito de controlar do consumo que se acentuava,
elementos que poderiam afetar sua consequência inevitável do desemprego
produtividade. Como lembra Gramsci estrutural que se iniciava; crescimento da
(1991, p. 398) exacerbou-se a esfera financeira frente ao setor
preocupação dos capitalistas em produtivo; fusões de empresas,
combater os “agentes destruidores da garantindo maior concentração de
força de trabalho”: o álcool e o instinto capitais; crise do “Estado de bem-estar
sexual. A exigência de um novo perfil de social” e aumento significativo das
trabalhador, em conformidade ao novo privatizações.
tipo de produção capitalista, tornou-se Esse contexto gerou um terreno propício
um elemento estratégico para a a um novo modelo produtivo,
consolidação de um modo de demandando reestruturações de ordem
subjetivação hegemônico, tal como econômica, social e política, entra em
ocorreu no próprio taylorismo. cena a “acumulação flexível”, definida,
apropriadamente, por Harvey (1996, p.
Mas, o mercado de trabalho e o consumo
140) com as seguintes características:
de massa não foram estendidos
democraticamente a toda a população e Ela se apoia na flexibilidade dos
isso gerou intensos conflitos sociais, o processos de trabalho, dos mercados
que demandou a instalação do chamado de trabalho, dos produtos e padrões
“Estado de bem-estar social” ou, em sua de consumo [...] envolve rápidas
denominação americana, Welfare State, mudanças dos padrões do
caracterizado por um Estado desenvolvimento desigual, tanto
previdenciário e arbitral na relação entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo,
capital e trabalho, com a concessão de
um vasto movimento no emprego no
“[...] direitos sociais de educação, saúde, chamado “setor de serviços” [...] Ela
transporte, moradia, garantias de também envolve um novo
emprego e seguro desemprego.” movimento que chamarei de
(FRIGOTTO, 1995, p. 82). Tais “compressão do espaço-tempo” [...]
concessões passaram a demandar mais a comunicação via satélite e a queda
dos custos de transporte até os dias atuais produz, a cada
possibilitaram cada vez mais a 43
momento, novas formas de fetichização,
difusão imediata dessas decisões produz o “envolvimento manipulatório”
num espaço cada vez mais amplo (ANTUNES, 2005b) em seu limite
[...]. máximo.
Esse sistema também ficou conhecido
Importante destacar que todos esses
com o nome de toyotismo, visto que
modos de organização e gestão do
muitos dos seus princípios foram
trabalho (taylorismo, fordismo e
concebidos no âmbito da fábrica
toyotismo) convivem lado a lado e
japonesa Toyota. Ele tem entre suas
trouxeram, ao longo da história,
particularidades: estoques reduzidos;
diferentes impactos sobre a categoria
produção just in time (na hora);
trabalho e seus sentidos para o
implantação de novas tecnologias;
trabalhador.
desregulamentação dos contratos de
trabalho; empresas transnacionais, entre Distintos sentidos e lugares do
outras. trabalho na sociedade contemporânea
Além disso, são características desse
Diante do cenário delineado, constata-se
modo de organização, a defesa
intensas mudanças no contexto laboral e
intransigente de princípios como:
consequentemente importantes
privatização da máquina estatal;
repercussões na classe trabalhadora.
supressão dos direitos sociais, redução
Identifica-se o predomínio de culturas
de salários e flexibilização destes
organizacionais configuradas por laços
conforme o alcance de metas; aceleração
frouxos, relações fluidas e vínculos
do binômio produção/consumo; intenso
empregatícios cada vez mais frágeis.
crescimento do setor de serviços e da
Frente às turbulências de um mercado
economia informal; gestão
globalizado, a precarização estrutural é
organizacional orientada pelo modelo da
inerente ao cotidiano do trabalhador e,
competência. Hoje, sob o paradigma da
para sobreviver, ele busca no seu labor as
competência há uma mudança
mais distintas alternativas de sustento.
significativa da concepção de trabalho:
“[...] desviando o foco dos empregos, das Dessa forma, é crescente o número de
ocupações e das tarefas, para o pessoas que não reconhecem a esfera
trabalhador em suas implicações profissional como um espaço de
subjetivas com o trabalho.” (RAMOS, realização. Há apenas uma minoria
2002, p. 39). atuando em funções que permitem maior
Frente a tais particularidades, o envolvimento e identificação. Existe, na
trabalhador é chamado a estar “[...] mais realidade, um grande grupo que se
qualificado, participativo, mantém em determinadas organizações
multifuncional, polivalente [...]” apenas por necessidade financeira e
(ANTUNES, 2005b, p.48). Esse perfil de medo de não conseguir outro emprego,
trabalhador no toyotismo, por sua vez, que, diante de uma oferta melhor,
tem o objetivo final de intensificar a trocaria facilmente de atividade
exploração da força de trabalho e de profissional. Para esse grupo, o trabalho
alterar hábitos e padrões de consumo, não é um fim em si mesmo, é,
mas para isso reveste tais exigências de principalmente, um meio para alcançar
finos recursos ideológicos de sedução. outros objetivos. (RIBEIRO; LÉDA,
Esse processo que vem se reafirmando 2004).
Identifica-se nesse contexto um global do trabalho imigrante em
44
movimento crescente de intensificação condições cada vez mais degradantes.
da atividade laboral, a qual está sempre Surge um novo segmento de proletariado
cercada da palavra “mais”, que é usada não-industrial, sobretudo, no setor de
tanto para o trabalhador desempenhar serviços, que apresenta excepcional
diversas atividades, quanto para impor crescimento desde que o capitalismo
maior engajamento. Os empresários impulsionou a chamada era das
lançam mão de novos modos de mutações tecnológico-informacional-
organização do trabalho e de formas de digitais. Destaca-se, neste nicho, os
controle sofisticadas intermediadas pelo teleoperadores que representam uma das
uso das tecnologias da informação – na maiores categorias de assalariados, em
incansável busca da eliminação dos notável expansão em escala global
tempos mortos e da porosidade – (ANTUNES, 2013).
tornando o processo de trabalho mais
denso e concentrado mediante a Constata-se, portanto, significativas
microrregulação do exercício mudanças na constituição da classe
profissional. Exigem dos trabalhadores trabalhadora, sinalizadoras de um
um empenho mais firme e um processo de metamorfose e não de
envolvimento superior, associados a um dissipação e eliminação da mesma.
aumento de dispêndio de energia física e Antunes (2005a) defende, que as
psíquica para dar conta do “plus”, em transformações atuais implicam, na
termos de carga adicional ou da tarefa verdade, uma nova morfologia e
mais multifacetada. (ROSSO, 2008). polissemia do trabalho, opondo-se às tão
propagadas teses da corrente
O trabalho assalariado complexifica-se eurocêntrica, que advogam a perda da
podendo ou não assumir a forma de centralidade do trabalho, a sua
contrato clássica juridicamente desconstrução como categoria
determinada como emprego. É um sociológica-chave e o seu fim
terreno fértil para “o surgimento da nova determinado, pelo declínio do emprego
precariedade salarial, com a ‘implosão’ assalariado, pelo aumento do
da jornada de trabalho, a vigência da desemprego, pela alienação e pelos
remuneração flexível e a disseminação avanços tecnológicos e científicos dos
dos contratos precários.” (ALVES, 2016, meios de produção.
p 691). As relações estáveis,
identificadas como emprego, Nessa mesma perspectiva, Castel (2001,
caracterizadas por vínculo estabelecido p.578) apresenta um forte argumento em
em contrato de trabalho, jornada definida defesa da tese da centralidade do
e salário fixado tendem a ser substituídas trabalho ao afirmar que “o trabalho
por relações de trabalho nas quais os continua sendo uma referência não só
empregados cedem lugar aos economicamente, mas também
trabalhadores prestadores de serviços, psicologicamente, culturalmente e
autônomos ou empreendedores. simbolicamente, como provam as
reações dos que não o têm”. Partindo
Destaca-se a erosão do trabalho deste entendimento, complementa-se –
contratado e regulamentado; a criação de nas situações de afastamento do trabalho,
“falsas” cooperativas; o seja por desemprego, adoecimento ou
“empreendedorismo” representado nas aposentadoria, é que a relevância da
mais distintas formas de flexibilização, atividade laboral se evidencia de forma
assim como, a ampliação em escala contundente. Sendo, justamente, na sua
ausência que o trabalho comparece como captura subjetiva dos significados
45
um dos grandes alicerces da constituição coletivos do trabalho. (TOLFO, 2015). O
do sujeito. sofrimento decorrente dessa ruptura se
aprofunda quando a atividade laboral,
Concorda-se com Navarro e Padilha anteriormente exercida, não carrega
(2007) quando afirmam que as pessoas apenas o sentido de meio de
continuam ancorando a sua existência na sobrevivência, mas também
atividade laboral e que a centralidade do possibilidade de manter contato com
trabalho se confirma não só na esfera outras pessoas, de ter uma ocupação, de
econômica, mas também na esfera se reconhecer como parte integrante de
psíquica. um grupo ou da sociedade, ou ainda,
Na sociedade contemporânea, as pessoas representa uma significativa
somente são merecedoras de respeito se oportunidade de desenvolvimento das
desempenham atividades necessárias à potencialidades humanas, atuando como
manutenção do fluxo do capitalismo. A uma importante fonte de autorrealização
inserção social pela via da atividade e de experiências psicossociais.
laboral, do assalariamento, é o caminho A vivência de exclusão e segregação no
tradicionalmente aceito. A conquista de não lugar, diante do afastamento do
reconhecimento e de um lugar social está cotidiano laboral, é desafiadora
atrelada à capacidade produtiva. Os (RAMOS; TITTONI; NARDI, 2008).
indivíduos sem trabalho, sob a lógica do Consiste em destituição de um
capital, não são dignos, não têm valor. sentimento de pertencimento e de uma
Dessa forma, terminam por engrossar o vida social, oportunidades antes
contingente populacional dos incluídos à favorecidas pelo vínculo laboral. Não é
margem, dos relegados, dos apenas um emprego que se perde, há uma
desenraizados, ou como bem aponta interrupção de todo um percurso
Castel (2001), dos desfiliados. construído. Nessa perspectiva a exclusão
Posicionam-se, assim, na periferia da do mundo do trabalho continua a ser
sociedade, vulneráveis a um doloroso fonte de grande sofrimento e de vazio
processo de discriminação, que existencial, agravando os quadros de
inevitavelmente desestrutura laços adoecimento já existentes ou criando
sociais e afetivos. outros.
As repercussões propiciadas pelo Não restam dúvidas, sobre o quanto é
afastamento do cotidiano laboral penosa a ruptura do vínculo laboral em
assumem distintos contornos conforme o uma sociedade que gira em torno do
sentido que a pessoa atribui ao seu trabalho, que valoriza prioritariamente o
trabalho. Entende-se, sentido do que é produtivo. Qualquer afastamento
trabalho1 como representativo de uma do mundo do trabalho - desprovido de
dimensão mais restrita, singular, fruto de planejamento e de desejo de
uma produção pessoal decorrente da desvencilhamento - é doloroso e
1
Diferencia-se o termo sentido de significado, individual e à categoria significado, ao
compreendendo o último como “[...] reflexo da construído e compartilhado socialmente, o
realidade independentemente da relação sentido que o trabalhador atribui à sua atividade
individual ou pessoal do homem a esta. O homem é criado na vida pelas relações objetivas que se
encontra um sistema de significações pronto, estabelecem entre os indivíduos e está
elaborado historicamente e apropria-se dele [...]”. estritamente imbricado ao processo coletivo de
(LEONTIEV, 1978, p. 96). Contudo, assinala-se significação do trabalho, determinado pelo
que, apesar da categoria sentido remeter ao contexto histórico, econômico, cultural e social.
angustiante. Contudo, na situação de inutilidade e superfluidade, diante do
46
desemprego há uma agudização desse desafio de dar sentido a uma vida sem
sofrimento, devido a uma maior trabalho.
discriminação e responsabilização do
sujeito que é demitido. Não é por acaso, que muitos
trabalhadores com direito adquirido para
Batista e Codo (2002) apontam que “ser” aposentadoria, postergam, adiam a
desempregado não remete à fatalidade, à decisão de afastamento do ambiente
má sorte, mas representa incompetência, laboral. Os envolvidos nesta empreitada
condição não tolerada pela nova ordem de ruptura do percurso profissional
social. Em uma sociedade atravessada podem vivenciar ganhos e perdas. Para
pela ideologia da meritocracia, os alguns, o corte do vínculo com a
desempregados têm a sua identidade organização simboliza a liberação das
ferida e tendem a se culpabilizar pela sua obrigações com uma rotina de trabalho,
condição de excluídos e, não raramente, um recomeço, uma espécie de alforria,
veem-se como os únicos responsáveis do com mais independência e tempo
sucedido. Acreditam que se tivessem disponível para vida familiar e social.
realizado uma qualificação adequada, se
fossem mais dedicados e competentes, Contudo, em uma sociedade que cultua e
teriam evitado a saída do mercado de exalta o trabalho como categoria central,
trabalho. Terminam por vivenciar a aposentadoria é quase sempre
sentimentos de vergonha, fracasso e associada ao ócio, a inutilidade, ao nada
baixo autoestima. fazer. Há um receio de desprendimento,
especialmente, para os trabalhadores que
O ressentimento, a sensação de priorizaram a dimensão profissional em
abandono, a depressão, o alcoolismo, a detrimento de outras dimensões como
dependência de outros tipos de drogas, a pessoal e social. Para parte significativa,
desestruturação de laços familiares e a aposentadoria expressa uma passagem
sociais, entre outros sérios problemas, para a solidão e para o tédio,
têm sido identificados como simbolizando até a perda do próprio
manifestações preocupantes de sentido da vida.
sofrimento provocado pelo desemprego.
Os trabalhadores, diante da decisão de
Dejours (2011a, p.165) sinaliza que o permanecer ou se afastar do ambiente
desemprego tende a “excluir o sujeito de laboral, avaliam o desafio de
toda uma série de mediações com o preenchimento de um tempo livre, que
coletivo, relegando-o a uma quase sempre foi colocado em segundo
marginalidade e a um isolamento plano quando em confronto com o tempo
deletérios”. de produção. É um momento atravessado
por incertezas sobre o que fazer com o
Em um mundo regido em termos de tempo disponível, após tantos anos
tempo de produção, em que o trabalho é delineados e orientados pelo tempo
reconhecido como um dos principais dedicado ao trabalho.
instauradores da temporalidade, a
inexistência do tempo alocado, de um O tempo de não trabalho retrata o refugo,
ritmo, de horários e de obrigações que não tem utilidade técnica, social e
estabelecidos, deixa um vazio. O caráter econômica. Com a possibilidade de
organizador da rotina, não comparece, vivenciar tanto tempo livre de
gerando desordem. Expressa-se, desta obrigações e de incorporar a identidade
forma, um profundo sentimento, de do inativo, ineficaz, inerte, obsoleto e
velho, o trabalhador retarda o seu Segundo Martins (2001, p. 22) o papel
47
desligamento. contemporâneo do trabalho na vida
humana evidencia paradoxos:
Receia com a possibilidade da
aposentadoria, ser estigmatizado e torna- Ele [o trabalho] estrutura o tempo,
se um peso social. Sobretudo, em função enquanto o consome cada vez mais
intensamente. Provê a rede central
da aposentadoria estar, quase sempre,
de relações, da mesma forma que
atrelada à velhice – fase da vida retira o indivíduo do convívio de
atravessada pelo preconceito etário, seus familiares e de outros círculos
atitude nociva que se sustenta em sociais. Dá significado e um papel a
concepções como invalidez e desempenhar, enquanto reduz a
incapacidade do idoso para acompanhar dignidade humana a sua utilidade
as demandas de um mundo produtivo. nas engrenagens econômicas. É um
direito disputado por muitos, ao
Enfim, o tempo da aposentadoria é mesmo tempo, que um dever
caracterizado pela inatividade do não indesejado por outros tantos.
trabalho, algo tão desvalorizado em Frente a complexidade dos sentidos que
nossa sociedade. Neste contexto de o trabalho abarca na sociedade
tantas perdas, frente a tantos contemporânea, considera-se o mesmo
preconceitos e estereótipos negativos, como uma categoria-chave que “[...] ou
muitos que optam por usufruir de um joga a favor da saúde ou, pelo contrário,
direito duramente e merecidamente contribui para sua desestabilização e
conquistado, não raro, adoecem por não empurra o sujeito para a
conseguirem lidar com tamanha ruptura. descompensação.” (DEJOURS, 2011,
Cabe ressaltar, que não está se p.164). Constata-se, dessa forma, que o
defendendo que o não trabalho, oriundo trabalho permanece como elemento
do desemprego ou da aposentadoria, seja central, configurando-se como fonte de
sempre fonte de sofrimento e pesquisa essencial para a compreensão
adoecimento, como também, que a da constituição do ser social. Jamais
atividade produtiva seja a solução para podendo ser considerado como neutro ou
todas angústias e garantia do prazer. pouco significativo.
Seria uma visão simplista e reducionista Considerações finais
das repercussões da atividade laboral na
saúde e subjetividade dos trabalhadores. Estudar a categoria trabalho na
sociedade contemporânea é um grande
Compreende-se que o labor não atua desafio, frente à complexidade da
somente como uma oportunidade de conjuntura. A gravidade das
referência, de crescimento e consequências humanas, materiais e
desenvolvimento psicossocial do adulto, ambientais que o capitalismo vem
mas também como gerador de produzindo, gera a necessidade de um
sofrimento e adoecimento. O trabalho desvelamento de suas múltiplas
“[...] ainda parece ser uma importante determinações. Tem-se a compreensão
fonte de saúde psíquica [...] ao mesmo de que não se modifica os rumos de uma
tempo em que se registram cada vez mais realidade, sem compreendê-la em
pesquisas que evidenciam o trabalho profundidade.
como causa de doenças físicas, mentais e É preciso fortalecer o debate sobre as
de mortes.” (NAVARRO; PADILHA, questões relacionadas à categoria
2007, p. 15). trabalho, dada a sua centralidade,
conforme foi indicado no texto, visto e extrapola a função de meio de
48
que, todos os sujeitos sentem as suas sobrevivência. Embora, tal raciocínio
reverberações. evite o determinismo de que será sempre
assim, visto que alguns sujeitos
Diante dessa urgência e importância, o
conseguem aproveitar o afastamento da
presente ensaio buscou ser uma
atividade laboral para ressignificar a sua
contribuição no processo de
trajetória, atribuindo novos sentidos para
desnaturalização das condições sociais
a sua vida, para além do sentido
dadas. Para isso, em um primeiro
demarcado pelo cotidiano de trabalho.
momento procurou resgatar
historicamente os modos de gestão do Para finalizar, acredita-se ser
trabalho e suas distintas formas de imprescindível análises críticas que
controle da subjetividade do trabalhador, revelem a retórica de estudos e de
inicialmente apresentadas com documentos oficiais, pois assim há
características de mando e punição mais alguma chance de desconstrução dessa
explícitas, para, em períodos mais realidade que pretende-se hegemônica.
recentes, camuflar tais características Entende-se que é necessário descontruir
para atitudes mais sedutoras de adesão às atitudes de indiferença, passividade e
diversas formas de exploração, gerando naturalização diante do vertiginoso
internamente em cada trabalhador a processo de mercantilização da vida.
responsabilização e culpabilização pela
situação em que se encontra.
Referências
Em seguida, analisou-se algumas
implicações trazidas pela fragilidade dos ALVES, G. Crise do capitalismo global,
vínculos no mundo laboral, desde os que desmedida do valor e as mutações orgânicas da
totalidade viva do trabalho - notas críticas sobre
dizem respeito à escassez de o capitalismo do século XXI. Cadernos do
formalidades como carteira de trabalho CEAS, Salvador, n. 239, p. 681-697, 2016.
ou contrato e os direitos daí advindos, até
ANTUNES, R. O caracol e sua concha: ensaios
a vulnerabilidade nas relações
sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo,
interpessoais, corroídas por aspectos Boitempo, 2005a.
como competitividade e individualismo.
Pode-se constatar a partir dos estudos e ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio
sobre a afirmação e negação do trabalho. 7.
análises realizadas, que qualquer tipo de reimp. São Paulo: Boitempo, 2005b.
efemeridade, contratual ou relacional,
pode conduzir os sujeitos a viverem ANTUNES, R.(Org.). Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil II. São Paulo, Boitempo,
processos de sofrimentos e 2013.
adoecimentos em níveis desumanos.
BATISTA A. S. e CODO W. O trabalho e o
Defende-se que apesar de todo o tempo. In: JACQUES, M.G.; CODO, W. (Orgs.)
contexto adverso, o trabalho ainda Saúde mental e trabalho: leituras. Petrópolis:
permanece como categoria central, Vozes, 2002, p. 401-420.
podendo implicar de modo estruturante CASTEL, R. As metamorfoses da questão
ou desestruturante para a saúde psíquica social: uma crônica do salário. Petrópolis, R.J:
do trabalhador. Ressalta-se vivências Vozes, 2001
mais acentuadas de sofrimento e DEJOURS, C. O trabalho como enigma. In:
angústia trazidas por situações de não LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. (Org.).
trabalho, como desemprego e Christophe Dejours: da psicopatologia à
aposentadoria, sinalizadoras do quanto a psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro:
Paralelo 15; Fiocruz, 2011a. p. 151-166.
atividade laboral é carregada de sentido
DEJOURS, C. Inteligência prática e sabedoria LEONTIEV, A. O desenvolvimento do
prática: duas dimensões desconhecidas do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário, 49
trabalho. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. 1978.
(Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à
MARTINS, H. T. Gestão de carreiras na era do
psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro:
conhecimento. São Paulo: Qualitymark, 2001.
Paralelo 15; Fiocruz, 2011b. p. 381- 407.
NAVARRO, V.; PADILHA, V. Dilemas do
DEJOURS, C. Uma nova visão do sofrimento
trabalho no capitalismo contemporâneo.
humano nas organizações. In: CHANLAT, J. O
Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 19, n.
indivíduo na organização: dimensões
spe, p. 14-20, 2007.
esquecidas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1996. v. 1.
p.149-174. RAMOS, M. A pedagogia das competências:
autonomia ou adaptação? 2.ed. São Paulo:
FRIGOTTO, G. Os delírios da razão: crise do
Cortez, 2002.
capital e metamorfose conceitual no campo
educacional. In: GENTILI, P. (Org.). Pedagogia RIBEIRO, C.; LEDA, D. O significado do
da exclusão: crítica ao neoliberalismo em trabalho em tempos de reestruturação produtiva.
educação. Petrópolis, RJ, 1995. p.77-108. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de
Janeiro, v. 4, n. 2, dez. 2004.
GENTILI, P. A falsificação do consenso:
simulacro e imposição na reforma educacional ROSSO, S. D. Mais trabalho: a intensificação
do neoliberalismo. Petrópolis: Vozes, 1998. do labor na sociedade contemporânea. São Paulo:
Boitempo, 2008.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da
história. 9.ed.Rio de Janeiro: Civilização TOLFO, S. Significados e sentidos do trabalho.
Brasileira, 1991. In: BENDASSOLI, P.F.; BORGES-ANDRADE,
J, (Orgs.) Dicionário de Psicologia do Trabalho
HARVEY, David. Condição pós-moderna.
e das Organizações. São Paulo: Casa do
6.ed. São Paulo: Loyola, 1996.
Psicólogo, 2015. p.617-625.
JOST, R; FERNANDES, B.; SOBOLL, L. A
ZANELLA, J. O trabalho como princípio
subjetividade do trabalhador nos diversos
educativo do ensino. 2003. 311 f. Tese.
modelos de gestão. In: SOBOLL, L; FERRAZ,
(Doutorado em Educação) - Universidade
D. (Orgs). Gestão de Pessoas: armadilhas da
Estadual de Campinas, Campinas, 2003.
organização do trabalho. São Paulo: Atlas, 2014,
p.48-66.
Recebido em 2018-10-22
Publicado em 2018-12-06

Você também pode gostar