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Quando o homem se de- MARíUA SALLES FALei MEDEIRO* deste texto, será o de pro-
fronta consigo mesmo também se
curar nos microprocessos
está se defrontando com outros RESUMO
homens. O que é verdadeiro de relações sociais as dis-
quanto à relação do homem com o artigo discute os conceitos de socialização e identida- posições subjetivas das
o seu trabalho, com o produto de, observando suas origens e tendências polissêmicas ações sociais.
desse trabalho e consigo mesmo, com base em autores clássicos e contemporâneos. Con-
também o é quanto à sua rela-
Neste estudo preten-
sidera que a identidade é produto de socializações su-
ção com os outros homens, com demos analisar duas ques-
cessivas que implicam a existência de uma articulação
o trabalho deles e com os objetos tões centrais:
entre espaços externos e internos aos indivíduos. Emer-
desse trabalho (Marx. Os Ma- gem, nesse sentido, estratégias para obtenção de equi- - Como a sociologia
nuscritos: 101) líbrio, capazes de superar as divisões e negociação entre encontrou e cunhou o con-
as diferentes identidades reais ou virtuais.
ceito de identidade?
* Doutora em Sociologia. Universidade de Picardie, - Quais são os proces-
INTRODUÇÃO Amiens, França. Professora do Departamento de So- sos criadores da socialização
ciologia Universidade Federal Fluminense - UFF/ RJ. e de uma identidade social?
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da sociologia como a inclusão de novos concei- realidade sócio-política em movimento, a carto-
tos e categorias que pudessem dar conta dos grafia dos grupos e os modos de vida de uma
novos fenômenos do capitalismo contemporâ- sociedade CSainsaulieu,1986: 275).
neo. Este é o caso do conceito de identidade, A noção de identidade aparece, então,
pois envolvia compreender a situação dos imi- como um conceito fortemente polissêmico, sem-
grantes agora em situação de mão-de-obra pre impregnado de acepções diferentes. Como
sobrante nos países de capitalismo avançado da afirma Terreol, a análise do conceito de identi-
Europa. Com a chamada globalização, era im- dade é acompanhada por várias dificuldades,
portante refletir sobre as identidades nacionais, pois todo avanço neste domínio necessita de
dominantes e periféricas. uma aproximação pluridisciplinar (Terreol, 1991:
Era muito grande a necessidade de se com- 9). Isto significa procurar as raízes do conceito
preender o que é identidade. Em 1979, foi reali- na fenomenologia e na psicologia social e re-
zado em Toulouse um seminário internacional, construí-Ias na sociologia. Para o psicólogo, ao
no qual vários pensadores de diversas regiões abordar as questões da identidade, o que conta
do mundo e diversas áreas de conhecimento - é a saúde mental do indivíduo. Por sua vez, para
psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, lin- o sociólogo, é fundamental entender o papel
güistas, antropólogos - buscavam refletir não só que tem o indivíduo no grupo e qual será sua
sobre as dificuldades do conceito, mas sobre as eficácia para o funcionamento do grupo. Para a
implicações ideológicas e intelectuais, individu- sociologia, não se pode falar de identidade sem
ais e coletivas a que o conceito se refere. O relacioná-Ia ao conceito de socialização.
seminário que foi intitulado "Identidades Coleti-
vas e Mudanças Sociais" foi um esforço não só
intelectual, mas também ideológico e político A Relação do Conceito de Socialização
para se compreenderem os problemas da dife- com o Conceito de Identidade
renciação, da situação de pertencimento dos in-
divíduos a um grupo social, da diferenciação Os conceitos de socialização e identidade
social, da afirmação e da singularização num são termos pronunciados na linguagen: corren-
momento de grandes mudanças sociais. te e mesmo dentro das Ciências Sociais, com
No seminário de Toulouse ainda não se significados e conotações diversas. Muitas ve-
falava de globalização, mundialização e zes, esses significados são ultrapassados. É o caso
neoliberalismo. No entanto, os estudos expres- do conceito de socialização que quase sempre
savam a necessidade de se compreender a iden- se refere ao processo de inculcação de normas,
tidade social dos indivíduos, e o esforço da imposição de valores. Por um lado, este concei-
sociologia em captar a construção deste proces- to está passando por novas concepções, que vi-
so dentro da confrontação entre culturas e gru- sam sobretudo suprimir a dimensão passiva que
pos, na busca do idêntico e da alteridade, da classicamente a socialização assinalava aos indi-
similitude e da diferença. O conceito de identi- víduos. Por outro, a sociologia incorporou re-
dade é, pois, o resultado de um esforço da soci- centemente, em seu debate teórico, o conceito:
ologia em procurar compreender as semelhanças o de identidade. Este conceito veio influenciar e
e as diferenças entre os indivíduos. redefinir a dimensão subordinada do indivíduo
Como observa Renaud Sainsaulieu, o con- frente aos problemas da socialização vista como
ceito foi lançado bruscamente dentro do debate aculturação.
teórico, como se a análise das práticas, dos sis- O termo identidade torna-se mais proble-
temas, das estruturas, das ideologias e dos con- mático ainda, chegando alguns sociólogos a afir-
flitos, não fosse mais suficiente para explicar uma mar que essa designação não faz parte das
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tivos e princípios para toda a duração de sua vida. víduos. Aqueles que transgredirem abertamente
Podemos concluir dizendo que, em Durkheim, a as normas devem ser punidos.
causalidade está sempre na ação da sociedade sobre Ao contrário de Durkheim, Piaget dá mai-
ela mesma. Jamais esta sociedade vai influenciar or destaque à autonomia da vontade, deixando
outra sociedade, mas os indivíduos. para um plano secundário, o sentimento de medo
Para apurar os conceitos de educação de à repressão. A proposição teórica de Piaget se
Durkheim, seguiremos o caminho trilhado por fundamenta sobre a correlação fundamental en-
Claude Dubar em contrapor as posições do re- tre as estruturas sociais (objetivas) e as estrutu-
ferido autor com as propostas de Piaget (cf Dubar, ras mentais (subjetivas). Esta é a sua maior
1991). Piaget, em sua obra Julgamento Moral, contribuição para os estudos sobre a socializa-
abre um debate com a teoria de Durkheim ção nos domínios da sociologia.
(Piaget, 1932: 414). Esse debate insere-se dentro Existe uma correlação entre a socializa-
de uma confrontação de teses essenciais da so- ção concebida como formas de organização de
ciologia e da psicologia genética, tentando ul- atividades e a socialização concebida como
trapassar as oposições entre os pontos de vista modos de desenvolvimento dos indivíduos. O
psicológicos e sociológicos, no que se refere a social é analisado a partir de proposições objeti-
socialização. Para o autor, a socialização é uma vas, que são formas de organização coletiva. O
educação moral. Mas, a educação não é uma desenvolvimento dos indivíduos é observado a
transmissão coercitiva do "espírito de discipli- partir de abordagens subjetivas, destacando-se
na" completada por uma ligação aos grupos so- os conteúdos das representações mentais, o pro-
ciais e interiorizada livremente graças à cesso de interiorização e exteriorização das es-
autonomia da vontade". truturas sociais.
Para Piaget, a educação é, antes de tudo, Piaget jamais separou, nem por abstração,
uma construção sempre ativa e mesmo interativa, as formas sociais de cooperação das formas lógi-
de novas regras do jogo, inf1uenciando o desen- cas de construção mental nas análises do desen-
volvimento autônomo da "noção de justiça" e a volvimento da criança. Opondo-se aqui também a
substituição de "regras de cooperação às regras Durkheim, assinalou de maneira enfática a corre-
de coerção" (Piaget, 1932: 414). Como Durkheim, lação entre os processos subjetivos e objetivos que
Piaget também reconhece que a socialização tem determinam a socialização dos indivíduos. Procu-
se fundamentado primeiro pela coerção exter- rou as correspondências entre a organização obje-
na. O autor aceita a teoria do crime de Durkheim, tiva e subjetiva da socialização fundada sobre o
elaborada em 1893, segundo a qual, "é somente paralelismo psicológico das representações men-
através da existência de sanções que a condição tais (a interiorização das estruturas sociais), e os
da moralidade fica assegurada". São as sanções processos de cooperação social (expressões de
que reforçam o sentimento moral e o crime é exteriorização das estruturas mentais).
definido como toda ofensa que atinge os esta-
dos fortes da consciência coletiva.
Piaget e Durkheim estão também de acor- BOURDIEU: A SOCIALIZAÇÃO COMO INCORPORAÇÃO
do em reconhecer a individualização crescente DE HABITUS
da vida social. Na medida em que se desenvol-
vem as sociedades, as relações sociais tornam- De maneira mais ampla, Bourdieu faz uma
se mais complexas e diferenciadas, permitindo releitura da teoria da educação de Durkheim com
a emergência do indivíduo em oposição a soci- a noção de babitus, palavra latina, utilizada por
edade. Nestas sociedades a consciência coletiva numerosos autores clássicos. Durkheim a utili-
é mais rígida, coagindo mais fortemente os indi- zou em seu curso publicado sob o título Evolution
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WEBER: A SOCIALIZAÇÃO
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COMUNITÁRIA E A essas duas maneiras fundamentais de mencio-
SOCIALIZAÇÃO SOCIETÁRIA nar o comportamento do outro é que a ação
societária repousa sobre regras, que foram
Entre os teóricos clássicos, fundadores da estabelecidas de maneira puramente racional, por
sociologia, Max Weber abre uma segunda matriz finalidade. Neste sentido, a conformidade às re-
teórica e seus escritos são mais fecundos que a gras repousa sobre ações subjetivas e voluntárias
tradição durkheiminiana para se pensar o con- consideradas "como expressão de interesses
ceito de identidade social. Considerando as comuns mais limitados. A ação comunitária, ao
interações dentro da definição mesma do social, contrário da primeira, repousa sobre expectativas
o autor recusa-se a pensar a sociedade como uma de comportamentos fundados no costume ou
totalidade unificada e funcional, como a conce- nos valores compartilhados. A socialização co-
beu Durkheim. Tudo se passa como se a identi- munitária pressupõe uma coletividade de
dade dos atores sociais tivesse mais efeitos "pertencimento" e particularmente uma "comuni-
emergentes do sistema de ações que produtos de dade lingüística". A socialização societária, ao
trajetórias biográficas. Weber não faz a oposição contrário da comunitária, é expressão não de
entre o individual e social. Em sua análise privile- um único, mas de uma constelação de Interesses."
gia a relação entre os atores de um mesmo siste-
ma e as formas de construção social ou mental
de um mesmo campo de práticas e coerções so- Goffman: a identidade marcada pela dualidade
ciais. A esse propósito, C. Dubar salienta que no
pensamento de Weber, "a identidade dos atores A terceira abordagem sobre identidade, mais
sociais é o resultado provisório e contingente das atual que as anteriores, articula as duas tradições
dinâmicas diversificadas de engajamentos, den- teóricas clássicas: durkheimiana e weberiana. Pro-
tro de espaços de jogo estruturado pelas regras cura-se, moderna mente, não tratar as identidades
em perpétua evolução" (Dubar, 1991: 64). individuais em oposição às identidades coletivas,
Weber define o social como toda ação es- mas examinar os processos de suas
pecífica determinada pela presença de um subje- complementaridades. Através das dialéticas argu-
tivo vivido e pensado pelo ator ou como atividade mentadas entre identidade "para si" e identidade
humana dotada de um sentido subjetivo (isto é, "para o outro". Esse autor analisa a identidade so-
não mecânico) que o ator em relação ao com- cial através do encontro de dois processos hetero-
portamento do outro e que torna possível deci- gêneos, procurando não reduzi-Ios a um
frar a significação da ação (Weber, 1971). As mecanismo único. Indica-nos o processo de atribui-
características da sociologia compreensiva estão ção da identidade, através das instituições e dos
centradas principalmente nas interações do ator agentes diretamente em interação com o indivíduo.
social com o outro. Nelas, são acentuadas as sig- O segundo nos aponta para um processo mais
nificações subjetivas pensadas pelo ator para rea- subjetivo, interno ao indivíduo. Essa análise não
lizar uma ação social (Weber, 1965: 327-398). pode ser desenvolvida fora do sistema de ação
E como se estrutura, no pensamento de dentro do qual o indivíduo está implicado. Ao
Weber, o processo de entrada do indivíduo na desenvolver uma abordagem interacionista dos fe-
sociedade, ou seja, o processo de socialização? nômenos sociais, Goffman estabelece uma dife-
No referido processo, distinguem-se duas rença entre identidade social e identidade pessoal:
formas de ações sociais: A primeira definida
como ação comunitária ou socialização comu- As identidades social e pessoal são parte, antes
nitária, e a segunda como ação societária ou de mais nada dos interesses e definições de ou-
traspessoas em relação ao indivíduo cuja iden-
socialização societária. A diferença essencial entre
tidade está em questão CGoffrnan, 1975: 116).
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componente é piajetiano e destaca a necessida- siva, da discriminação e da assimilação, da in-
de de existir uma correlação entre as represen- serção e da marginalização. Para que esses dois
tações mentais e o processo de interiorização movimentos se processem acreditamos ser ne-
das estruturas sociais. Há, pois, na construção cessário que o ator social adquira a dimensão
da identidade o que Claude Dubar chama de de si, para que ele possa se impor ao outro.
uma transação objetiva (a socialização) e uma
transação subjetiva (a interiorização) dos ele-
NOTA
mentos com os quais o sujeito vai se identificar.
O terceiro componente pressupõe que os
1 Esta distinção foi retomada por Weber na obra de
indivíduos em sua identidade são divididos. Isto
Ferdinand Tôrinies Comunidade. Sociedade,
quer dizer, que nem sempre os valores que vêm publicada pela primeira vez em 1887. Neste texto,
de fora, com os quais ele tem que se identificar, Tonnies analisa esses dois agrupamentos, colocan-
estão de acordo com os seus desejos. Há, portan- do-os em oposição. A comunidade é definida como
to, uma divisão do sujeito. Este componente é uma "vida orgânica e real", associada a tudo o que
goffmaniano, pois para o autor, existe sempre uma é confiante, vivendo exclusivamente em conjunto.
defasagem importante entre a identificação social
dominante e a identidade real da pessoa. Os indi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
víduos têm uma identidade marcada pela
ANTU ES, Ricardo. Adeus ao Trabalho. Cortez, 1995.
dualidade. A forma como a sociedade rotula o que
o indivíduo sente e o que é introjetado, vai depen- BOURDIEU, Pierre. La Distinction. Paris: Minuit, 1979.
der das negociações ou estratégias do sujeito para BOURDIEU, Pierre. "Field Work in Philosofy", in
Choses Distes; Paris: Minuit, 1987
conseguir um certo equilíbrio nas relações sociais.
É necessário que o sujeito procure estratégias para DUBAR, Claude. I.a Socialization-Construction des identies
sociales et professionales. Paris: Armand Colin, 1991.
gerir esta divisão e torná-Ia suportável. Assim, será
DURKHEIM, Émile. Education Morale. Paris: PUF, 1%3.
necessária uma negociação constante do sujeito
para equilibrar sua "identidade real", a "identidade DURKHEIM, Émile. Education et Sociologie. Paris:
PUF, 1966.
virtual" e a "identidade social".
Claude Dubar, apoiado no pensamento de DURKHEIM, Émile. L'Evolution Pedagogique en
France, 2a edição. Paris: PUF, 1969.
Piaget, afirma que existe uma transação subjetiva e
ESCOREL, Sarah. Trajetórias de Exclusão Social. Rio
outra objetiva como produtoras das identidades
de Janeiro: Fiocruz, 1999
sociais. É dessa relação que se produz o equilíbrio
GOFFMAN, Erving. O estigma. Rio de laneiro: Zahar, 1975.
do sujeito. A proposição sociológica de Dubar, na
OGIEM, Albert. Le parler frais d'Erving Goffman. Paris:
construção das identidades, enfatiza a articulação
minuit, 1989.
entre os sistemas de ação propondo as "identidades
PEREIRA, Vera. "Trabalho e Trabalhadores numa So-
virtuais" e as "trajetórias vividas", responsáveis pe-
ciedade sem empregos". Contemporaneidade e Edu-
las "identidades reais" dos indivíduos (Dubar, 1991: cação - IEC - Rio de Janeiro, nO 4, 1998.
116, 118). A identidade é, pois, uma representação
PERCHERO ,Annick. L'Univers Politique des Enfants.
simbólica da pessoa, elaborada através do outro, Paris: Armand Colin, 1974.
sendo externa ao sujeito e pode vir da família da
PIAGET, jean. Le jugement Moral Chez L'enfant. Pa-
escola, do trabalho. A identidade é um produto de ris: PUF, 1932.
socializações sucessivas (Dubar, 1991). TAP, Pierre. Identités Colletives et Changements
A identidade é construída entre dois espa- Sociaux. Colloque International de Toulouse, 1979.
ços: entre o singular e o plural, entre o espaço WEBER, Max. Essais Sur Ia Theorie de La Science.
interno e o espaço externo, entre o espaço do Paris: Plon, 1965.
ser e o espaço da ação, da defensiva e da ofen- WEEBER, Max. Economie et Societé. Paris: Plon, 1971.