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A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DOS CONCEITOS DE


SOCIALIZAÇÃO E IDENTIDADE

Quando o homem se de- MARíUA SALLES FALei MEDEIRO* deste texto, será o de pro-
fronta consigo mesmo também se
curar nos microprocessos
está se defrontando com outros RESUMO
homens. O que é verdadeiro de relações sociais as dis-
quanto à relação do homem com o artigo discute os conceitos de socialização e identida- posições subjetivas das
o seu trabalho, com o produto de, observando suas origens e tendências polissêmicas ações sociais.
desse trabalho e consigo mesmo, com base em autores clássicos e contemporâneos. Con-
também o é quanto à sua rela-
Neste estudo preten-
sidera que a identidade é produto de socializações su-
ção com os outros homens, com demos analisar duas ques-
cessivas que implicam a existência de uma articulação
o trabalho deles e com os objetos tões centrais:
entre espaços externos e internos aos indivíduos. Emer-
desse trabalho (Marx. Os Ma- gem, nesse sentido, estratégias para obtenção de equi- - Como a sociologia
nuscritos: 101) líbrio, capazes de superar as divisões e negociação entre encontrou e cunhou o con-
as diferentes identidades reais ou virtuais.
ceito de identidade?
* Doutora em Sociologia. Universidade de Picardie, - Quais são os proces-
INTRODUÇÃO Amiens, França. Professora do Departamento de So- sos criadores da socialização
ciologia Universidade Federal Fluminense - UFF/ RJ. e de uma identidade social?

o s conceitos de socialização e identid~de sã.o


empregados freqüentemente em sociologia
e, muitas vezes, são apresentados sem ri-
gor em suas construções. Por serem fortemente
COMO A SOCIOLOGIA ENCONTRA A QUESTÃO DA
IDENTIDADE?

polissêmicos, é necessário definí-los antecipa- As grandes mudanças do capitalismo na


damente, sobretudo o conceito de identidade, Europa, que se iniciaram nos meados dos anos
tendo em vista que sua origem vem da psicolo- 1970, não só trariam novos paradigmas produti-
gia e seu emprego é muito recente na sociologia. vos (com a robotização e aplicação de máqui-
Ambos os conceitos passam por rede- nas de controle numérico), mas também o
finições e nos remetem à relação entre indiví- surgimento da aplicação de políticas neoliberais,
duo e coletivo, questão antiga e tão cara à o que mais tarde se denominaria de mun-
sociologia. É importante enfatizar que são con- dialização do capital. Esse processo de mudan-
ceitos diferentes e, embora em suas construções ças não só refletiria no processo produtivo,
estejam próximos, nos remetem a situações dis- desenhando um novo ser para o capital, com a
tintas. Para muitos autores, o processo de socia- criação de novas políticas do Estado, mas tam-
lização delimita as condições de formação da bém provocaria uma forte influência para se
identidade. Os processos a que se referem estão pensar em novos paradigmas de reflexão socio-
constituídos por sentimentos, consciência e re- lógica. A alegação corrente é que estavam sur-
presentações sociais. É o componente subjetivo gindo fenômenos novos e que as categorias
da ação social que deve ser levado em conside- sociológicas estabelecidas não davam mais con-
ração, para que seja possível compreender e atin- ta de como explicar a realidade tal como se apre-
gir os sujeitos da ação social. Portanto, o desafio sentavam na contemporaneidade. Do lado do

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capital, houve um processo de retomada do de- gurança constante na vida dos trabalhadores e
semprego e, como conseqüência, reaparecem na de toda a sociedade que vive do trabalho. Na
Europa amplas parcelas da população excluídas França, no final dos anos 80, uma década de
do trabalho, redesenhando um novo tipo de grandes saltos tecnológicos, surge, portanto, uma
exclusão social. profunda crise em nível das identidades sociais.
Não se pode esquecer que foi então a A sociedade deixa de ser regida pela centraliza-
França que cunhou o novo conceito de exclu- ção do trabalho e passa a conviver com uma
são social, que mais tarde se referiria ao novo série de novos conceitos de classificação. São
pobre que começava a surgir. O que era novo teorias que procuram entender as mudanças e,
eram as amplas parcelas de desempregados que como diz Pereira, adotam o prefixo "pós", pare-
não são mais pertencentes apenas à população cendo indicar uma imprecisão de ordem teóri-
de imigrantes sobrantes, mas também ao desem- ca, como se os dois paradigmas da modernidade,
prego que começava a atingir a todos os france- que fundamentam a interpretação da sociedade -
ses e também a vários países europeus o paradigma do capitalismo e o paradigma da
É importante enfatizar que a origem do sociedade industrial não fossem mais suficien-
termo Exclusão estava no livro Les Exclus: un tes para explicar as mudanças (Mellucci,1996;
français sur dix, de René Lenoir, publicado em citado por Pereira, 1998). Assim, sob os rótulos
1974. A pobreza no país começava a reaparecer de pós-moderno, pós-industrial, pós-capitalista,
e, somente no final da década, ela seria diferen- pós-fordista, etc. todas elas procuram entender
ciada dos tradicionalmente marginalizados, que as mudanças produtivas em curso.
eram os imigrantes e os moradores de banlieus. Hoje, ficou mais claro que, naquela época,
Por esse motivo, o fenômeno da exclusão era a crise que começava a viver o capitalismo de-
tratado mais em sua dimensão subjetiva e não senvolvido na Europa era conseqüência do de-
na sua dimensão econômica e significado semprego que foi retomado como uma estratégia
ocupa cio na I (Escorei, 1999: 51). do capitalismo neoliberal em desmontar a estru-
Ricardo Antunes enfatiza que, na déca- tura sindical e questionar o "Etat de Providence"
da de 80, os países de capitalismo avançado, e impor uma nova lógica capitalista mas sob ou-
presenciariam profundas transformações no tros paradigmas não só produtivos mas também
mundo do trabalho, nas suas formas de inser- culturais e políticos, com a mundialização do ca-
ção na estrutura produtiva, nas formas de re- pital e globalização dos mercados.
presentação sindical e política. Para o autor, A partir de então, a sociologia volta a se
foram tão intensas as modificações nestes paí- preocupar não só com a dimensão macro, mas
ses, que se pode dizer que a classe que vive do também com o tipo de inserção daqueles que
trabalho sofreu a mais aguda crise do século, estão dentro e os que estão fora (in-out) do
atingindo não só sua materialidade, pois tam- novo processo produtivo. As bases deste pro-
bém teve repercussões profundas na sua sub- cesso, que se denominou de neoliberalismo,
jetividade, afetando a sua forma de ser. Vive-se, acabavam de ser instaurados não só na França,
no mundo da produção, um conjunto de expe- mas também na Inglaterra, local de sua primei-
rimentos mais ou menos intensos, mais ou ra experiência com M. Tacther, e se propagaria
menos consolidados, mais ou menos presen- rapidamente por outros países, inclusive na
tes, mais tendenciais, mais ou menos embrio- América Latina.
nários (Antunes, 1995: 15). Olhando por este prisma histórico, a ex-
Vivem-se formas transitórias de produção, clusão social passa a ser a categoria chave em
cujos desdobramentos são profundos na estru- praticamente todas as Ciências Sociais, influen-
tura do Estado de bem-estar trazendo uma inse- ciando não só uma redefinição de paradigmas

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da sociologia como a inclusão de novos concei- realidade sócio-política em movimento, a carto-
tos e categorias que pudessem dar conta dos grafia dos grupos e os modos de vida de uma
novos fenômenos do capitalismo contemporâ- sociedade CSainsaulieu,1986: 275).
neo. Este é o caso do conceito de identidade, A noção de identidade aparece, então,
pois envolvia compreender a situação dos imi- como um conceito fortemente polissêmico, sem-
grantes agora em situação de mão-de-obra pre impregnado de acepções diferentes. Como
sobrante nos países de capitalismo avançado da afirma Terreol, a análise do conceito de identi-
Europa. Com a chamada globalização, era im- dade é acompanhada por várias dificuldades,
portante refletir sobre as identidades nacionais, pois todo avanço neste domínio necessita de
dominantes e periféricas. uma aproximação pluridisciplinar (Terreol, 1991:
Era muito grande a necessidade de se com- 9). Isto significa procurar as raízes do conceito
preender o que é identidade. Em 1979, foi reali- na fenomenologia e na psicologia social e re-
zado em Toulouse um seminário internacional, construí-Ias na sociologia. Para o psicólogo, ao
no qual vários pensadores de diversas regiões abordar as questões da identidade, o que conta
do mundo e diversas áreas de conhecimento - é a saúde mental do indivíduo. Por sua vez, para
psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, lin- o sociólogo, é fundamental entender o papel
güistas, antropólogos - buscavam refletir não só que tem o indivíduo no grupo e qual será sua
sobre as dificuldades do conceito, mas sobre as eficácia para o funcionamento do grupo. Para a
implicações ideológicas e intelectuais, individu- sociologia, não se pode falar de identidade sem
ais e coletivas a que o conceito se refere. O relacioná-Ia ao conceito de socialização.
seminário que foi intitulado "Identidades Coleti-
vas e Mudanças Sociais" foi um esforço não só
intelectual, mas também ideológico e político A Relação do Conceito de Socialização
para se compreenderem os problemas da dife- com o Conceito de Identidade
renciação, da situação de pertencimento dos in-
divíduos a um grupo social, da diferenciação Os conceitos de socialização e identidade
social, da afirmação e da singularização num são termos pronunciados na linguagen: corren-
momento de grandes mudanças sociais. te e mesmo dentro das Ciências Sociais, com
No seminário de Toulouse ainda não se significados e conotações diversas. Muitas ve-
falava de globalização, mundialização e zes, esses significados são ultrapassados. É o caso
neoliberalismo. No entanto, os estudos expres- do conceito de socialização que quase sempre
savam a necessidade de se compreender a iden- se refere ao processo de inculcação de normas,
tidade social dos indivíduos, e o esforço da imposição de valores. Por um lado, este concei-
sociologia em captar a construção deste proces- to está passando por novas concepções, que vi-
so dentro da confrontação entre culturas e gru- sam sobretudo suprimir a dimensão passiva que
pos, na busca do idêntico e da alteridade, da classicamente a socialização assinalava aos indi-
similitude e da diferença. O conceito de identi- víduos. Por outro, a sociologia incorporou re-
dade é, pois, o resultado de um esforço da soci- centemente, em seu debate teórico, o conceito:
ologia em procurar compreender as semelhanças o de identidade. Este conceito veio influenciar e
e as diferenças entre os indivíduos. redefinir a dimensão subordinada do indivíduo
Como observa Renaud Sainsaulieu, o con- frente aos problemas da socialização vista como
ceito foi lançado bruscamente dentro do debate aculturação.
teórico, como se a análise das práticas, dos sis- O termo identidade torna-se mais proble-
temas, das estruturas, das ideologias e dos con- mático ainda, chegando alguns sociólogos a afir-
flitos, não fosse mais suficiente para explicar uma mar que essa designação não faz parte das

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Ciências Sociais. Para eles, a questão subjetiva, SOÇlALlZAÇÃO COMO EDUCAÇÃO: AS CONTRIBUiÇÕES
a que o conceito se refere, não se coloca no DE EMILE DURKHEIM
terreno da sociologia. Modernamente, torna-se
impossível falar de socialização sem entrar na Durkheim distingue, pelo menos por abs-
problemática da identidade, pois são processos tração, a identidade individual da identidade
estreitamente ligados, como observam os auto- coletiva. Para ele, o ser social é um produto da
res Pierre Tap e K. Kerbel: A construção da iden- educação. Em sua teoria, a educação ocupa um
tidade pessoal não pode ser entendida se não lugar fundamental e é definida como "um siste-
recolocamos dentro do jogo do processo de soci- ma de idéias, de sentimentos, de hábitos que
alização (Tap, 1979: 90). exprimem em nós, não nossa personalidade, mas
Neste sentido, não parece paradoxal ligar o grupo ou os grupos de que nós fazemos par-
os problemas da socialização aos processos de te" (Durkheim, 1963: 263).
formação da identidade. Isto nos permite articu- A educação é examinada como algo emi-
lar o individual e o social, sem separar as estru- nentemente social e tem como função básica a
turas internas da subjetividade das estruturas tarefa de reforçar a homogeneidade do social. A
sociais externas. O que significa pensar que es- socialização é, antes de tudo, o desenvolvimen-
sas duas dimensões - a individual e a social - to de uma consciência coletiva. A sociedade é
antes de se excluírem reciprocamente, são, ao uma consciência coletiva que precisa ser
contrário, partes da mesma realidade e da mes- introduzida dentro da alma da criança
ma história coletiva. (Durkheim, 1963: 236). A consciência coletiva é
Esta é a perspectiva deste texto. Para que se exprime em nós e não a nossa persona-
realizá-Ia recolocaremos algumas abordagens lidade individual. Portanto, somos produto do
teóricas clássicas que procuram analisar o pro- coletivo, produto de grupo ou grupos diferentes
cesso de socialização e, a seguir, refletiremos dos quais deles fazemos parte. Dito de outra
sobre o processo de construção das identidades maneira, a identidade social resulta de sua con-
sociais. O uso dessas noções remete-nos a cepção de educação, que se faz através da "trans-
paradigmas subjacentes à explicação científica e missão metódica de uma geração à outra"
que dizem respeito à relação indivíduo x socie- (Durkheim, 1963: 235).
dade, espaço x tempo. Nesta trajetória, a identidade social se faz
Agruparemos resumidamente quatro abor- pela transmissão de crenças religiosas, práticas
dagens sobre o conceito de socialização. A pri- morais, tradições nacionais, tradições profissio-
meira pode ser vista no âmbito de uma tradição nais, opiniões coletivas que se transmitem de uma
teórica que vem dos escritos de Émile Durkheim e geração a outra. Esta transmissão metódica, como
privilegia o eixo temporal em suas análises. A se- enfatiza Durkheim, diz respeito à infância e aca-
gunda é mais fecunda que a precedente no que se ba com a iniciação considerada como um segun-
refere aos problemas da identidade, visto que pri- do nascimento, aquele do ser social. É nesse
vilegia nas suas análises o eixo espacial, o que nos momento que o ser adquire um novo nome, que
reconduz aos escritos de Max Weber e aos pensa- constituirá o elemento essencial da pessoa. O
dores posteriores que foram influenciados pela sua processo de construção da identidade coletiva em
teoria. Na terceira abordagem, retomam-se os es- Durkheim é, então, "uma forma definida e parti-
critos de Durkheim através das formulações de cular que caracteriza as ações dos homens den-
Bourdieu. Por fim, descreveremos a abordagem tro da sociedade" (Durkheim, 1966: 96).
mais recente, que procura centrar suas discussões O ser social é constituído precocemente (e
sobre a influência das duas primeiras teorias, nos torna-se "o melhor de nós mesmos"). Este ser so-
trabalhos de Erving Goffman. cial se impõe ao ser individual, fixando-Ihes obje-

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tivos e princípios para toda a duração de sua vida. víduos. Aqueles que transgredirem abertamente
Podemos concluir dizendo que, em Durkheim, a as normas devem ser punidos.
causalidade está sempre na ação da sociedade sobre Ao contrário de Durkheim, Piaget dá mai-
ela mesma. Jamais esta sociedade vai influenciar or destaque à autonomia da vontade, deixando
outra sociedade, mas os indivíduos. para um plano secundário, o sentimento de medo
Para apurar os conceitos de educação de à repressão. A proposição teórica de Piaget se
Durkheim, seguiremos o caminho trilhado por fundamenta sobre a correlação fundamental en-
Claude Dubar em contrapor as posições do re- tre as estruturas sociais (objetivas) e as estrutu-
ferido autor com as propostas de Piaget (cf Dubar, ras mentais (subjetivas). Esta é a sua maior
1991). Piaget, em sua obra Julgamento Moral, contribuição para os estudos sobre a socializa-
abre um debate com a teoria de Durkheim ção nos domínios da sociologia.
(Piaget, 1932: 414). Esse debate insere-se dentro Existe uma correlação entre a socializa-
de uma confrontação de teses essenciais da so- ção concebida como formas de organização de
ciologia e da psicologia genética, tentando ul- atividades e a socialização concebida como
trapassar as oposições entre os pontos de vista modos de desenvolvimento dos indivíduos. O
psicológicos e sociológicos, no que se refere a social é analisado a partir de proposições objeti-
socialização. Para o autor, a socialização é uma vas, que são formas de organização coletiva. O
educação moral. Mas, a educação não é uma desenvolvimento dos indivíduos é observado a
transmissão coercitiva do "espírito de discipli- partir de abordagens subjetivas, destacando-se
na" completada por uma ligação aos grupos so- os conteúdos das representações mentais, o pro-
ciais e interiorizada livremente graças à cesso de interiorização e exteriorização das es-
autonomia da vontade". truturas sociais.
Para Piaget, a educação é, antes de tudo, Piaget jamais separou, nem por abstração,
uma construção sempre ativa e mesmo interativa, as formas sociais de cooperação das formas lógi-
de novas regras do jogo, inf1uenciando o desen- cas de construção mental nas análises do desen-
volvimento autônomo da "noção de justiça" e a volvimento da criança. Opondo-se aqui também a
substituição de "regras de cooperação às regras Durkheim, assinalou de maneira enfática a corre-
de coerção" (Piaget, 1932: 414). Como Durkheim, lação entre os processos subjetivos e objetivos que
Piaget também reconhece que a socialização tem determinam a socialização dos indivíduos. Procu-
se fundamentado primeiro pela coerção exter- rou as correspondências entre a organização obje-
na. O autor aceita a teoria do crime de Durkheim, tiva e subjetiva da socialização fundada sobre o
elaborada em 1893, segundo a qual, "é somente paralelismo psicológico das representações men-
através da existência de sanções que a condição tais (a interiorização das estruturas sociais), e os
da moralidade fica assegurada". São as sanções processos de cooperação social (expressões de
que reforçam o sentimento moral e o crime é exteriorização das estruturas mentais).
definido como toda ofensa que atinge os esta-
dos fortes da consciência coletiva.
Piaget e Durkheim estão também de acor- BOURDIEU: A SOCIALIZAÇÃO COMO INCORPORAÇÃO
do em reconhecer a individualização crescente DE HABITUS
da vida social. Na medida em que se desenvol-
vem as sociedades, as relações sociais tornam- De maneira mais ampla, Bourdieu faz uma
se mais complexas e diferenciadas, permitindo releitura da teoria da educação de Durkheim com
a emergência do indivíduo em oposição a soci- a noção de babitus, palavra latina, utilizada por
edade. Nestas sociedades a consciência coletiva numerosos autores clássicos. Durkheim a utili-
é mais rígida, coagindo mais fortemente os indi- zou em seu curso publicado sob o título Evolution

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Pedagogique en France 0904-1905). Nesse cur-
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ciais e predisposições individuais. Aqui, a noção
so, afirmava que há, em cada um de nós, um de babitus não é somente o produto de condi-
estado profundo de onde os outros derivam e se ções sociais de sua transmissão, mas sobretudo
encontram unidos. A educação é definida como um princípio gerador de práticas individuais li-
a constituição de um estado interior e profundo vremente escolhidas.
que orienta o indivíduo dentro de um sentido Podemos afirmar que Bourdieu faz do
definido por toda a vida (Durkheim, 1969: 38). habitus uma noção que se interpõe como medi-
Bourdieu, ao retomar essa noção filosófica ação entre as relações objetivas e os comporta-
clássica, lhe dá uma definição muito mais com- mentos individuais. O habitus é, ao mesmo tempo,
plexa, mais dialética e principalmente torna o produto de interiorização de condições objetivas
conceito operatório. Define o babitus como "um e condicionador de práticas individuais. O babitus
sistema de disposições duráveis e transmitidas, torna possível um conjunto de comportamentos
sendo os comportamentos estruturados predis- e de atitudes, conforme as inculcações e as regu-
postos a funcionar como estruturas estruturantes laridades objetivas, possibilitando uma
de conduta. São princípios geradores e exteriorização. Trata-se de uma exteriorização de
organizadores de práticas e representações" esquemas inconscientes, de percepção e de ação,
(Bourdieu, 1987: 24). O sistema impõe mecani- permitindo que os agentes engendrem, através
camente as normas do comportamento aos indi- da livre espontaneidade e da criação, todos os
víduos, impondo um conjunto de disposições pensamentos, percepções e ações conforme as
adquiridas de esquemas de percepções, de apre- experiências objetivas e as relações de classe.
ciações e de ações, inculcadas pelo contexto so- Dito de outra maneira, o habitus de classe
cial em um momento e um lugar particular, Visto é responsável, portanto, pela perpetuação das
como um sistema de disposições de comporta- relações de classes. Trata-se de um conceito que
mentos e valores adquiridos, o habitus é também vem assim trazer um elemento essencial de res-
produtor de práticas e matriz de percepção, de postas ao problema da reprodução social. Atra-
apreciação e de ações. Trata-se, portanto, de "uma vés da análise das funções do sistema escolar,
gramática geradora de práticas". Nesta definição, Bourdieu acentua a inculcação sobre a transmis-
deve-se acrescentar ainda que o babitus se reali- são do habitus de classe. É na obra A Distinção
za através de um sistema educativo complexo, (979) que são analisadas as estratégias que os
incluindo a família, a escola e o contexto social. agentes utilizam para assegurar as distinções so-
De que maneira podemos situar o proble- ciais e os modos de reconhecimento distintivos.
ma da liberdade dos sujeitos nessa teoria? Concluindo, podemos dizer que, para
Bourdieu recusa-se a considerar os agentes Bourdieu, a distinção entre identidade individual
como simples reflexos de estruturas objetivas. Essa e identidade social não é mais necessária. A iden-
questão fica mais clara quando analisa a gênese tidade construída pelos indivíduos pode ser analisa-
da socialização. As aprendizagens sociais (formais da ao mesmo tempo como produto interiorizado
e informais, ditas ou não ditas) são incu1cadas, de condições sociais anteriores (as mais objetivas)
tornando-se modos de percepção e de compor- e como expressão de suas esperanças individuais
tamento dos agentes sociais. Há uma preferência (as mais subjetivas). Ambos os movimentos
pelo agente social que age do interior para exte- resultam do reencontro de trajetórias socialmente
rior. A transmissão do babitus é passiva, mas sua condicionadas, com os campos socialmente estru-
incorporação é um mecanismo ativo. A grande turados. Esses dois elementos não são necessaria-
contribuição teórica do habitus é, principalmen- mente homogêneos e as categorias significativas
te, o sentido de interiorização ativa, permitindo de trajetórias não são, necessariamente, as mes-
uma redefinição das relações entre as formas so- mas que estruturam os campos da prática social.

MEDEIROS, MARILlA SALLES FALCI. A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DOS CONCEITOS DE SOCIALIZAÇÃO E IDENTIDADE. P. 78 A 86 83
WEBER: A SOCIALIZAÇÃO
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COMUNITÁRIA E A essas duas maneiras fundamentais de mencio-
SOCIALIZAÇÃO SOCIETÁRIA nar o comportamento do outro é que a ação
societária repousa sobre regras, que foram
Entre os teóricos clássicos, fundadores da estabelecidas de maneira puramente racional, por
sociologia, Max Weber abre uma segunda matriz finalidade. Neste sentido, a conformidade às re-
teórica e seus escritos são mais fecundos que a gras repousa sobre ações subjetivas e voluntárias
tradição durkheiminiana para se pensar o con- consideradas "como expressão de interesses
ceito de identidade social. Considerando as comuns mais limitados. A ação comunitária, ao
interações dentro da definição mesma do social, contrário da primeira, repousa sobre expectativas
o autor recusa-se a pensar a sociedade como uma de comportamentos fundados no costume ou
totalidade unificada e funcional, como a conce- nos valores compartilhados. A socialização co-
beu Durkheim. Tudo se passa como se a identi- munitária pressupõe uma coletividade de
dade dos atores sociais tivesse mais efeitos "pertencimento" e particularmente uma "comuni-
emergentes do sistema de ações que produtos de dade lingüística". A socialização societária, ao
trajetórias biográficas. Weber não faz a oposição contrário da comunitária, é expressão não de
entre o individual e social. Em sua análise privile- um único, mas de uma constelação de Interesses."
gia a relação entre os atores de um mesmo siste-
ma e as formas de construção social ou mental
de um mesmo campo de práticas e coerções so- Goffman: a identidade marcada pela dualidade
ciais. A esse propósito, C. Dubar salienta que no
pensamento de Weber, "a identidade dos atores A terceira abordagem sobre identidade, mais
sociais é o resultado provisório e contingente das atual que as anteriores, articula as duas tradições
dinâmicas diversificadas de engajamentos, den- teóricas clássicas: durkheimiana e weberiana. Pro-
tro de espaços de jogo estruturado pelas regras cura-se, moderna mente, não tratar as identidades
em perpétua evolução" (Dubar, 1991: 64). individuais em oposição às identidades coletivas,
Weber define o social como toda ação es- mas examinar os processos de suas
pecífica determinada pela presença de um subje- complementaridades. Através das dialéticas argu-
tivo vivido e pensado pelo ator ou como atividade mentadas entre identidade "para si" e identidade
humana dotada de um sentido subjetivo (isto é, "para o outro". Esse autor analisa a identidade so-
não mecânico) que o ator em relação ao com- cial através do encontro de dois processos hetero-
portamento do outro e que torna possível deci- gêneos, procurando não reduzi-Ios a um
frar a significação da ação (Weber, 1971). As mecanismo único. Indica-nos o processo de atribui-
características da sociologia compreensiva estão ção da identidade, através das instituições e dos
centradas principalmente nas interações do ator agentes diretamente em interação com o indivíduo.
social com o outro. Nelas, são acentuadas as sig- O segundo nos aponta para um processo mais
nificações subjetivas pensadas pelo ator para rea- subjetivo, interno ao indivíduo. Essa análise não
lizar uma ação social (Weber, 1965: 327-398). pode ser desenvolvida fora do sistema de ação
E como se estrutura, no pensamento de dentro do qual o indivíduo está implicado. Ao
Weber, o processo de entrada do indivíduo na desenvolver uma abordagem interacionista dos fe-
sociedade, ou seja, o processo de socialização? nômenos sociais, Goffman estabelece uma dife-
No referido processo, distinguem-se duas rença entre identidade social e identidade pessoal:
formas de ações sociais: A primeira definida
como ação comunitária ou socialização comu- As identidades social e pessoal são parte, antes
nitária, e a segunda como ação societária ou de mais nada dos interesses e definições de ou-
traspessoas em relação ao indivíduo cuja iden-
socialização societária. A diferença essencial entre
tidade está em questão CGoffrnan, 1975: 116).

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A sociedade estabelece
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os meios de víduos e os significados sociais que visam acomo-
categorizar as pessoas. Esse processo de rotulação dar as identidades rotuladas passa pelos desejos
e o caráter que os grupos imputam aos indivíduos dos indivíduos em construir novas identidades vi-
representam uma "caracterização efetiva" ou uma sadas. A construção de identidades reais ou virtu-
"identidade social virtual". (Goffrnan, 1975: 11). Há, ais só terá sentido se levarmos em consideração as
porém, um outro processo, mais subjetivo e refle- trajetórias vividas pelos atores sociais. A proposta
xivo, experimentado pelo indivíduo cuja identida- fundamental de Goffman é pensar simultaneamente
de está em jogo. O movimento de incorporação a multiplicidade da realidade social, a qual será
da identidade do eu realiza-se através das catego- incorporada pelo indivíduo.
rias e dos atributos que os indivíduos na realidade
provam possuir. Trata-se do processo de "identi-
dade social real" (Goffrnan, 1975: 12). CONCLUSÃO
Estes dois processos não são necessaria-
mente coincidentes. Quando estão em desacor- Para concluir, será necessário inventariar pon-
do, a forma como a sociedade rotula o indivíduo tos centrais da discussão proposta, procurando de-
e o que ele sente e o que é introjetado, depende finir o que é identidade através de três componentes
do seu eu. Resulta, assim, uma ambivalência en- centrais que circulam entre os autores citados.
tre a "identidade virtual", interiorizada ou proje- Primeiro, a identidade é qualquer coisa de
tada pelo indivíduo. simbólico que vem de fora da consciência dos
Uma das características da teoria de Goffman indivíduos. É uma representação simbólica da
é apresentar a identidade do sujeito em uma osci- pessoa que é elaborada por um grupo social,
lação permanente, entre uma unidade ou uma di- que pode ser a família, a escola, a sociedade, o
visão do "eu". Por um lado, o "eu" é um substrato grupo de pertencimento, etc. É o início da cons-
indiscutível atestando a permanência do ser. Por trução de sua imagem social, que não é elabora-
outro, este ser está dentro das relações sociais e da sozinha, mas vem das relações que
pertence a uma constelação de outros grupos. Esta desenvolve com os outros, formando o babitus.
divisão do sujeito fica claramente demarcada na Se é uma representação simbólica que vem do
obra A Representação do Eu na Vida Cotidiana, outro, pode-se afirmar que ela é coercitiva, pois
onde Goffman descreve o indivíduo, o ator social, está no desejo do outro em classificar, rotular,
entre um personagem e um intérprete durante as normatizar, definir e atribuir ao indivíduo um
interações. A este respeito, Albert Ogien enfatiza lugar dentro do social. Este primeiro componente
que Goffman procura pensar as identidades do é, portanto, uma representação durkheiminiano,
sujeito abandonando a psicologia e trazendo para que é realizada através da educação e comuni-
a sociologia as análises do personagem e suas re- cação com os outros. É o momento que o indi-
presentações. (Ogien, 1989: 101). víduo toma conhecimento de como ele é
A divisão do eu como expressão subjetiva percebido pelo outro. É o início da construção
da dualidade social aparece claramente através dos de sua imagem social, pela qual o indivíduo toma
mecanismos de identificação. Tudo se passa como conhecimento de sua imagem elaborada pelo
se o indivíduo fosse identificado por outra pessoa, grupo, exterior à sua consciência.
podendo, no entanto, essa mesma identificação O segundo componente, para que haja a
ser recusada. O indivíduo utilizará outras categori- representação, pressupõe que seja necessário o
as, socialmente disponíveis ou mais ou menos le- processo de interiorização da classificação sim-
gítimas, com as quais se identifica. Essas categorias bólica que veio de fora. Portanto, é necessário
podem ser de diversas origens ou valores, étnicos, que haja identificação do sujeito com os valo-
regionais ou profissionais. A relação entre os indi- res com os quais se vai identificar. Este segundo

MEDEIROS, MARfLlA SALLES FALCI. A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DOS CONCEITOS DE SOCIALIZAÇÃO E IDENTIDADE. P. 78 A 86 85
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componente é piajetiano e destaca a necessida- siva, da discriminação e da assimilação, da in-
de de existir uma correlação entre as represen- serção e da marginalização. Para que esses dois
tações mentais e o processo de interiorização movimentos se processem acreditamos ser ne-
das estruturas sociais. Há, pois, na construção cessário que o ator social adquira a dimensão
da identidade o que Claude Dubar chama de de si, para que ele possa se impor ao outro.
uma transação objetiva (a socialização) e uma
transação subjetiva (a interiorização) dos ele-
NOTA
mentos com os quais o sujeito vai se identificar.
O terceiro componente pressupõe que os
1 Esta distinção foi retomada por Weber na obra de
indivíduos em sua identidade são divididos. Isto
Ferdinand Tôrinies Comunidade. Sociedade,
quer dizer, que nem sempre os valores que vêm publicada pela primeira vez em 1887. Neste texto,
de fora, com os quais ele tem que se identificar, Tonnies analisa esses dois agrupamentos, colocan-
estão de acordo com os seus desejos. Há, portan- do-os em oposição. A comunidade é definida como
to, uma divisão do sujeito. Este componente é uma "vida orgânica e real", associada a tudo o que
goffmaniano, pois para o autor, existe sempre uma é confiante, vivendo exclusivamente em conjunto.
defasagem importante entre a identificação social
dominante e a identidade real da pessoa. Os indi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
víduos têm uma identidade marcada pela
ANTU ES, Ricardo. Adeus ao Trabalho. Cortez, 1995.
dualidade. A forma como a sociedade rotula o que
o indivíduo sente e o que é introjetado, vai depen- BOURDIEU, Pierre. La Distinction. Paris: Minuit, 1979.

der das negociações ou estratégias do sujeito para BOURDIEU, Pierre. "Field Work in Philosofy", in
Choses Distes; Paris: Minuit, 1987
conseguir um certo equilíbrio nas relações sociais.
É necessário que o sujeito procure estratégias para DUBAR, Claude. I.a Socialization-Construction des identies
sociales et professionales. Paris: Armand Colin, 1991.
gerir esta divisão e torná-Ia suportável. Assim, será
DURKHEIM, Émile. Education Morale. Paris: PUF, 1%3.
necessária uma negociação constante do sujeito
para equilibrar sua "identidade real", a "identidade DURKHEIM, Émile. Education et Sociologie. Paris:
PUF, 1966.
virtual" e a "identidade social".
Claude Dubar, apoiado no pensamento de DURKHEIM, Émile. L'Evolution Pedagogique en
France, 2a edição. Paris: PUF, 1969.
Piaget, afirma que existe uma transação subjetiva e
ESCOREL, Sarah. Trajetórias de Exclusão Social. Rio
outra objetiva como produtoras das identidades
de Janeiro: Fiocruz, 1999
sociais. É dessa relação que se produz o equilíbrio
GOFFMAN, Erving. O estigma. Rio de laneiro: Zahar, 1975.
do sujeito. A proposição sociológica de Dubar, na
OGIEM, Albert. Le parler frais d'Erving Goffman. Paris:
construção das identidades, enfatiza a articulação
minuit, 1989.
entre os sistemas de ação propondo as "identidades
PEREIRA, Vera. "Trabalho e Trabalhadores numa So-
virtuais" e as "trajetórias vividas", responsáveis pe-
ciedade sem empregos". Contemporaneidade e Edu-
las "identidades reais" dos indivíduos (Dubar, 1991: cação - IEC - Rio de Janeiro, nO 4, 1998.
116, 118). A identidade é, pois, uma representação
PERCHERO ,Annick. L'Univers Politique des Enfants.
simbólica da pessoa, elaborada através do outro, Paris: Armand Colin, 1974.
sendo externa ao sujeito e pode vir da família da
PIAGET, jean. Le jugement Moral Chez L'enfant. Pa-
escola, do trabalho. A identidade é um produto de ris: PUF, 1932.
socializações sucessivas (Dubar, 1991). TAP, Pierre. Identités Colletives et Changements
A identidade é construída entre dois espa- Sociaux. Colloque International de Toulouse, 1979.
ços: entre o singular e o plural, entre o espaço WEBER, Max. Essais Sur Ia Theorie de La Science.
interno e o espaço externo, entre o espaço do Paris: Plon, 1965.
ser e o espaço da ação, da defensiva e da ofen- WEEBER, Max. Economie et Societé. Paris: Plon, 1971.

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