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a dinâmica das primeiras obras. Fica-se nele sa- Em Surveiller et punir, por outro lado, o filósofo
bendo que Foucault, oriundo de uma família de discutiria o processo de internalização da própria
médicos de província, dedicou-se inicialmente noção de doença ou crime, o qual, a partir do sé-
ao estudo da psicopatologia. A trajetória escolar culo XIX, impõe-se a todos os indivíduos, estando
e universitária privilegiada, marcada pela entrada eles confinados ou não. O leitor também ganha
na École Normale Supérieure e pelo sucesso no ao ver os trabalhos de Foucault contrastados com
concurso de agrégation de philosophie, também é os de Erving Goffman, Robert Castel e Luc Bol-
evocada. Pena, nesses dois casos, que Bert não te- tanski. Por fim, nota-se a existência de um bom
nha discutido com mais detalhes as implicações apanhado, embora não exaustivo, de críticas aos
desses estribos sociais, os quais estão longe de ser referidos trabalhos (visita-se, entre outras, a aco-
evidentes mesmo a um universitário francês. Por lhida positiva da Histoire de la folie pelo grupo dos
outro lado, as discussões acerca da unidade/di- Annales, ou então a crítica dirigida por psicólogos
versidade que caracteriza a obra de Foucault (p. à mesma obra quanto ao estado lacunar das fontes
12-16) e sobre a influência do estruturalismo em e à romantização do medievo ocidental).
sua formação (p. 16-21) são muito benfeitas. O O terceiro capítulo, Vers une analythique des
autor insere, ainda, algumas páginas interessantes pouvoirs, concentra-se na reflexão foucaultiana
sobre a militância foucaultiana no seio do Groupe acerca dos vínculos sociais. Atendo-se aos cur-
d’Information sur les Prisons (GIP), a qual ajuda sos proferidos no Collège de France na segunda
a entender melhor sua produção na primeira me- metade da década de 1970 — Il faut défendre la
tade dos anos 1970 (p. 22-25). société, Sécurité, territoire, population e La naissan-
A dinâmica do livro muda nos três capítu- ce de la biopolitique —, Bert mostra como, graças
los seguintes. Bert isola então temas de interesse à noção de “genealogia”, o filósofo se diferenciou
para os cientistas sociais na produção de Foucault, das concepções de sociedade à época sustentadas
discutindo-os a partir de uma análise vertical de por marxistas e estruturalistas. Com efeito, por
seus livros, cursos e artigos. A abordagem segue meio da crítica à concepção hobbesiana de poder,
uma sequência cronológica, o que permite visua a qual supõe um pacto e um lugar do poder, Fou-
lizar com maior clareza as transformações e as cault avançou na análise relacional dos mecanis-
continuidades das preocupações do filósofo. Não mos de dominação, entendendo a sociedade como
se trata, porém, de um mero expediente de leitura um arquipélago de poderes que se interpenetram.
interna: o autor tem o cuidado de problematizar Não por acaso, o autor estabelece paralelos entre
igualmente a recepção crítica dessas obras e de es- a produção foucaultiana e a de outros expoentes
tabelecer paralelos entre elas e trabalhos constituí- das ciências sociais: Norbert Elias (p. 62-64), Max
dos a partir de outros matizes analíticos. Weber (p. 68) e mesmo Karl Marx (p. 71). E há
Nessa direção, Réguler par la norme, o segun- mais: são também discutidas aqui as investigações
do capítulo, investe nas instituições disciplinares. de Foucault sobre as formas de poder dominantes
Bert discute aí as três grandes obras de Foucault no Ocidente desde o Antigo Regime (a “soberania
dedicadas ao tema: Histoire de la folie (p. 28-36), real”, o “regime disciplinar” e a “era da biopolíti-
La naissance de la clinique (p. 36-44) e Surveiller ca”), bem como se apresenta ao leitor o conceito
et punir (p. 44-56). Em todos esses casos, trata- de “governamentalidade”, forjado em meio a es-
-se de compreender como um saber (a medicina sas investigações. O único senão maior quanto a
ou o direito) se apodera e molda corpos a partir essa parte do livro diz respeito à ausência de uma
de instituições específicas. As referidas obras não comparação com outros expoentes da universi-
trabalham, porém, com a mesma ênfase. Segundo dade francesa que, percorrendo caminhos outros,
Bert, em Histoire de la folie e em La naissance de pensaram as mesmas questões. Vale dizer: a opção
la clinique, discute-se um movimento de interna- por reatualizar o método genealógico prescrito por
mento de indivíduos, de sua separação do mundo. Nietzsche não foi a única alternativa para a crí-
tica de uma apreensão monolítica do poder e da zar mais discussões acerca da relação entre saberes
sociedade. Entre tantos outros, Pierre Bourdieu e e poderes (p. 102-103). Por fim, um último lega-
Maurice Godelier, operando dentro dos quadros do de Foucault diz respeito à sua postura crítico-
das próprias tradições marxistas e estruturalistas, -filosófica não normativa, mais preocupada em
lograram realizar algo similar3. provocar perplexidade e estranheza que em apon-
Pratiques de soi et rapport à l’autre, o capítu- tar caminhos a serem seguidos (p. 103-105). Essa
lo seguinte, encerra a discussão sobre a produção parte do livro apresenta, no entanto, alguns pro-
foucaultiana tratando de seus três trabalhos volta- blemas. Um deles é o silêncio ao qual são relega-
dos à história da sexualidade, as últimas publica- das as apropriações acima mencionadas. Bert não
ções feitas enquanto Foucault vivia. Sobre o pri- identifica com precisão quem são os pesquisadores
meiro volume dessa série, Volonté de savoir, Bert que se engajaram por tais vias e como o fizeram.
chama a atenção tanto para a continuidade em Outro problema reside na própria construção do
relação ao que já foi visto (a relação entre poder argumento, que tende a transformar tais apropria-
e saber, bem como o impacto e a interiorização ções em “lições”. Tratar-se-ia de uma concessão ao
dessa relação nos corpos) quanto para a inovação gênero manual? Ou seria simplesmente um efeito
contida na proposta do filósofo (no caso da sexua natural da rotinização do carisma de um autor,
lidade, enfatizar não a repressão, mas a produção transformado em fonte de ensinamentos por seus
concomitante de diversas sexualidades que ora são intérpretes autorizados? A despeito das eventuais
encorajadas, ora marginalizadas) (p. 81-88). Já no reservas, e por tudo o que foi dito ao longo desta
que diz respeito às demais obras que compõem a resenha, o livro apresenta ao público não especia-
série, Usage des plaisirs e Le souci de soi, a ênfase lizado um balanço equilibrado e sofisticado da
recai sobre a mudança de foco da análise foucaul- produção de um autor que não se pode hoje facil-
tiana. Com efeito, trata-se de problematizar agora mente ignorar. As editoras brasileiras prestariam
o modo como um indivíduo governa sua própria serviço à comunidade acadêmica se optassem por
sexualidade, reconhecendo-se como sujeito. Bert uma tradução4.
ainda discute as implicações do recorte civilizacio- E quanto aos aspectos materiais e editoriais
nal proposto por Foucault (a história do Ocidente, da obra? Voltada a um grande público e pensada
a começar por Grécia e Roma antigas) (p. 88-96). como uma “síntese atualizada”, a coleção Repères
Fazendo as vezes de conclusão, Penser avec da editora La Découverte privilegia um formato
Foucault, o quinto capítulo, trata da recepção atu- de bolso, colando as páginas, compostas de uma
almente acordada ao filósofo entre cientistas so- variante de papel offset, na lombada. Ou seja,
ciais franceses. Para tanto, o autor sugere que tais enquanto objetos, seus livros não são feitos para
apropriações venham se dando em quatro dire- durar. Mas, se houve economia no quesito mate-
ções. Em primeiro lugar, valoriza-se em Foucault rial, a edição merece elogios. Além de uma biblio-
uma história cuja verdade seja relativa e não global, grafia bastante completa e atual, o livro de Bert
sensível ao que se passa às margens da sociedade e apresenta, ao lado de um quadro de referências
à sua própria condição narrativa (p. 99-100). Em contendo publicações, engajamentos e vínculos
segundo lugar, pratica-se hoje, a partir da obra institucionais de Foucault em ordem cronológica
foucaultiana, certa análise do discurso que é, em (p. 117-120), um índice onomástico e temático (p.
verdade, uma investigação arqueológica sobre as 121-122), algo extremamente útil ao leitor e cada
condições, os efeitos e os destinos dos enunciados vez mais raro.
(p. 100-102). Em terceiro lugar, tende-se a valori-
3
Destaco aqui, em especial, as seguintes obras: BOURDIEU,
Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Paris: Seuil, 2000 4
Fui informado pela editora La Découverte que os direitos
[1972]; e GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de da obra no Brasil foram adquiridos pela Parábola Editorial e
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 [1997]. que uma eventual tradução deve aparecer até inícios de 2013.