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aproximações e tensões1
A caixa de ferramentas
* USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas – Departamento
de Sociologia. São Paulo – SP – Brasil. 05508-010 – mcalvarez@usp.br.
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O presente texto foi originalmente elaborado como parte de tese de Livre-Docência, defendida na
Universidade de São Paulo (ALVAREZ, 2013).
O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como
o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar.
Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.
(FOUCAULT, 1981b, p.143).
Tal tipo de posicionamentos fornece uma pista não apenas para compreender
como Foucault se apropriava dos autores que achava importantes e que iriam se
constituir para ele como efetivos instrumentos de pensamento, mas igualmente
como desejava que seu próprio percurso intelectual fosse apropriado por outros
leitores. A metáfora da caixa de ferramentas se oporia, desse modo, ao ritual
acadêmico do comentário, que garantiria ao autor um lugar no conjunto da tradição
filosófica, mas pagando-se o preço da neutralização das novas possibilidades
abertas pelo seu pensamento, dos novos espaços de problematização que Foucault
buscava obsessivamente desobstruir. Seria também um convite ao uso público de
suas pesquisas pelos movimentos sociais e nas lutas setoriais, diante das quais o
intelectual não deveria desempenhar nenhum papel como protagonista, mas inserir-se
como intelectual específico em oposição ao intelectual universal, tal como Foucault
(1981b) prescrevia em entrevista de 1977. Em outra entrevista, a Roger Pol-Droit
em 1975, Foucault (2006) é ainda mais explícito no convite ao uso instrumental
de seus textos, embora a tensão entre o trabalho intelectual tradicional – do qual
Foucault nunca conseguiu se desvencilhar totalmente – e o sonho de um pensamento
verdadeiramente instrumental se faz presente:
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Em entrevista a Paul Rabinow de 1983, Foucault explica porque não gostava de se envolver em
polêmicas. Para o filósofo francês, o polemista sempre vê o interlocutor como um adversário ou um
inimigo a ser destruído, já que assume de antemão uma legitimidade que nega ao seu adversário.
Além dos efeitos esterilizantes, em termos de produção da verdade e nocivos em termos políticos, para
Foucault o que está em jogo também é toda uma moral da procura da verdade e da relação com o outro,
que a polêmica afronta (FOUCAULT, 1999).
não são termos equivalentes nem foram tratados de forma tradicional pelo próprio
Foucault (REVEL, 2012).
Tais desafios não são, no entanto, apenas obstáculos, mas parte do exercício
intelectual mesmo de apreensão e de compreensão de seu pensamento. Tomar
os trabalhos de Foucault em sua dispersão e heterogeneidade incontornáveis
e, ao mesmo tempo, dar conta da forma original de como ele trabalhava, da
descontinuidade coerente que atravessa os trinta anos de seu trabalho de escrita,
de pesquisa, de ensino e de compartilhamento de seu pensamento (REVEL, 2012),
permitem uma apropriação mais de acordo com seu próprio percurso intelectual.
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Exemplo desta abordagem seriam trabalhos como As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 1981a) e
A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2012). Sobre o momento arqueológico do percurso de Foucault,
conferir Rouanet et al (1971) e Gutting (1989).
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Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1977) seria o trabalho paradigmático desta abordagem genealógica.
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Desenvolvida sobretudo nos dois últimos volumes da História da Sexualidade II (FOUCAULT, 1984)
e História da Sexualidade III (FOUCAULT, 1985).
reificaria o poder na vida social, que acreditaria que os esforços de mudança social
estariam sempre condenados ao fracasso6.
Sem dúvida, outro equívoco recorrente consiste justamente na tentativa de
aplicação dos conceitos e análises de Foucault como se fossem modelos gerais de
pensamento, aplicáveis aos mais diversos contextos. Mas os trabalhos de Foucault
não se prestam a tal tipo de instrumentalização. Permitem, em contrapartida, novos
ângulos de abordagem de questões já tradicionais no campo da reflexão sociológica
e áreas afins.
Pode-se ilustrar esse impacto produtivo de um novo estilo de problematização
das relações entre saber, poder e subjetividade no âmbito da Sociologia a partir de
uma entrevista na qual Foucault explicita porque evitava utilizar em suas análises a
noção de ideologia, embora esta noção aparentemente pudesse recobrir muitos dos
estudos por ele realizados, sobretudo no final dos anos 60 e início dos anos 70 do
século XX. Ao manifestar suas reservas em relação a essa noção, Foucault afirma
em entrevista datada de 1977:
A citação acima adquire ainda maior relevância para a presente discussão, pois,
no interior da Sociologia, os trabalhos de Foucault foram inicialmente incorporados,
sobretudo, para suprir as lacunas deixadas por essa noção no estudo das relações entre
práticas de conhecimento e práticas de poder no interior da sociedade. As análises de
Foucault – principalmente de sua fase genealógica – serão mobilizadas para explicar
o papel desempenhado pelas ideias e instituições na manutenção cotidiana da ordem
social, ou seja, para descrever a microfísica do poder que perpassaria todo o corpo
social. Será igualmente a discussão acerca do papel das disciplinas – e dos saberes
normalizadores a ela associados – que ganhará a cena.
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Ver, por exemplo, o resumo que Anthony Giddens faz das ideias de Foucault (GIDDENS, 2005).
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Em entrevista de 1984, Foucault retoma suas reservas em relação à noção de Ideologia, ao indicar
novamente que, desde o início de seu percurso intelectual, ao tomar as relações entre saber e poder
como problema, tal noção não era capaz de dar conta das questões que pretendia desenvolver
(FOUCAULT, 2001).
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No entanto, a noção de poder não permanecerá inalterada ao longo do percurso intelectual de
Foucault. Como apontam diversos comentadores (ORTEGA, 1999), a concepção ligada à luta e ao
confronto, inspirada em Nietzsche e empregada sobretudo em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1977) será
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Para a reconstituição do percurso intelectual de Foucault no campo acadêmico francês de sua época,
conferir Eribon (1990, 1996), Pestaña (2006) e Veyne (2008). Sobre a recepção de Foucault nos Estados
Unidos, consultar Cusset (2005).
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Pestaña (2010) defende que Foucault desconsiderava as Ciências Humanas ao tomá-las como um
discurso fútil e estéril, daí seu desprezo também pela Sociologia. Entretanto, a relação de Foucault
com a Sociologia e as demais Ciências Humanas não pode ser equacionada de forma tão simples e,
sem dúvida, há muito que explorar a respeito, a despeito de trabalhos como o de Bert (2006a) e outros.
Aprofundar a compreensão dos espaços rivais da Filosofia e da Sociologia no campo intelectual francês,
ao longo da formação e da atuação de Foucault seria um caminho interessante, esboçado por Pestaña
(2006) mas não suficientemente desenvolvido mesmo por esse autor.
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Bert (2006b) afirma que a leitura esquemática que Foucault faz da Sociologia de Weber em
L´impossible prison se deve sobretudo ao desejo de Foucault de demarcar distância de uma tradição
que, antes dele, já havia indicado a existência de um liame entre modernidade e disciplina. Mas,
de fato, Foucault não conhecia muito bem a obra de Weber, como admite Veyne (2008, p.56). Em
contrapartida, as proximidades efetivas entre a visão de Weber acerca da racionalização e da burocracia
e a de Foucault acerca da disciplina e do panoptismo são manifestas e foram ressaltadas por inúmeros
comentadores (O´NEILL, 1986; OWEN, 1994; SZAKOLCZAI, 1998; ORTEGA, 1999; FONSECA, 2009)
mas também ambos compartilhavam inúmeras outras semelhanças, como o nominalismo, a influência
de Nietzsche, o ceticismo, a visão acerca do papel do cientista em relação à política etc. (VEYNE, 2008).
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Sobre as viagens de Foucault ao Brasil, consultar Rodrigues (2012).
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Entre muitos exemplos possíveis, conferir: Albuquerque (1978); Costa (1979); Cunha (1986); Engel
(1989); Luz (1979); Machado (1978); Passetti (1982); Rago (1985); Alvarez (1989).
no sentido vulgar da expressão, pois o que parece ocorrer, nos diferentes contextos
nacionais na modernidade, é uma combinação específica entre lei e norma, entre
soberania e disciplina, entre violência e instrumentos mais suaves de manutenção
da ordem política e social14. A natureza dessas composições no Brasil permanece
como um problema ainda não totalmente elucidado pelas pesquisas e pode ser mais
bem aprofundado a partir de um diálogo sistemático com as ideias de Foucault15.
Uma interessante análise das relações de poder no século XIX no Brasil inspirada em Foucault mas
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Regime, a prisão disciplinar etc. A vasta bibliografia crítica em relação aos seus
trabalhos precisa ser confrontada com a densidade de seu pensamento e não com
vulgarizações apressadas e esquemáticas de suas ideias. Por outro lado, uma crítica
à recepção de seus trabalhos no Brasil é igualmente fundamental, bem como uma
avaliação do alcance de suas problematizações para a delimitação e compreensão
da singularidade da sociedade brasileira.
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Recebido em 19/01/2015.
Aprovado em 21/04/2015.