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Capítulo 3 - Uma história da figura autoral

A ideia ou noção contemporânea de autor não é possível em qualquer época ou cultura. Esta ideia
não é fixa nem delimitada, sendo influenciada por constantes mudanças nas práticas de produção,
inscrição e circulação. Foucault afirma que é inadequado tratar o autor como algo universal, assim
como é inapropriado tentar perquirir o momento do nascimento ou origem da figura autoral.
Entretanto, é possível identificar alguns arranjos específicos, que emergem em alguns momentos
histórico-culturais, ademais, é possível também falar em diferentes funções-autor na Antiguidade. O
conjunto de funções associadas à figura do autor emergiu na modernidade.
Com isso, uma questão se coloca: como delimitar as especificidades e analisar essa emergência
(surgimento) do autor no sentido propriamente moderno? De certa maneira, todos os elementos, tais
como a mentalidade da época, novas práticas de escrita, novas leis e instituições, os usos comerciais
e as inovações tecnológicas, articulam-se na composição da figura do autor. Para isso, será feito um
estudo da genealogia (emergência ou surgimento) do autor na modernidade, sendo que com o uso
do termo “modernidade”, não se intenta nomear uma época ou uma episteme (conhecimento), mas
sim, de uma forma geral e vaga, definir como a experiência medieval, de um período do século XIV
ao XVIII. Ademais, ao invés de se pensar em rupturas históricas, a análise da emergência do autor
em termos de transformações, que operam em diferentes estratos históricos, ora se acumulando, ora
se revendo, ora se reforçando, ora se contradizendo.

Genealogia e pesquisa histórica


O autor está associado a um modo de ser específico do discurso, a uma determinada especificação
do sujeito e a um dado jogo de poder, ou seja, o autor emerge quando o discurso passa a ser
organizado e controlado de determinada maneira, quando o sujeito é especificado de certa
forma e quando as relações de poder passam a funcionar de um modo específico. Portanto, a
linha do projeto de Michel Foucault consiste em desenvolver uma analítica do poder do autor
priorizando estratégias que fazem emergir e funcionar o autor na modernidade (estudo dos
mecanismos de funcionamento do autor e o envolvimento das relações de poder nesse
funcionamento) deixando de lado uma abordagem fenomenológica estrutural (Pesquisa que busca a
interpretação do mundo através da consciência do sujeito formulada com base em suas
experiências), muito marcante em seus livros como História da Loucura (1961) e o Nascimento da
clínica (1963).
É verdadeira a afirmação de que a posição-autor existe somente em certas sociedades, dentro
de determinadas formas de sensibilidade que a isolam, ao mesmo tempo excluindo e capturando.
Assim como, a afirmativa que preleciona a experiência medieval de autor como anônimo e
coletivo (autores na época medieval, não costumavam nomear as suas obras) para algo, na
modernidade, individual e privado. Contudo, o estudo é mais voltado para as práticas, discursivas
ou não-discursivas (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos), e para
as relações de poder envolvidas na emergência do autor na modernidade. Essa ideia foi primordial
para a readequação de sua antiga obra, História da loucura, em que seu foco é deslocado para como
a loucura era excluída e reprimida pelas instituições, leis e regulamentações. Ademais, Foucault aduz
que de todos esses elementos, em que os discursos são componentes, pertencem a um sistema de
poder.
Além disso, o texto pretende tomar certa distância de um estudo situado em um nível meramente
arqueológico (investigação de culturas passadas), de análise interna dos tipos de discurso (análise
do discurso em si). Apesar da importância desse tipo de estudo, não se trata de privilegiar o nível
discursivo, nem tratar o objeto de estudo (autor) como uma ordenação histórica de forma a constituir
uma globalidade ou totalidade cultural.
Ao longo do texto, é feito algumas comparações entre a arqueologia e a genealogia, sendo que
Roberto Machado observa a análise arqueológica desenvolvida em “As palavras e as coisas” visa a
“estabelecer as condições históricas de possibilidade internas ao próprio saber” (práticas
discursivas), sendo perceptível a diminuição do espaço concedido às práticas sociais (práticas
não-discursivas) no seio das pesquisas arqueológicas dos anos de 1960. Por outro lado, Gilles
Deleuze ressalta o fato de a genealogia desenvolvida em “Vigiar e punir” conferir uma forma
positiva, visível, ao que era na arqueologia designado apenas negativamente, como o não
discursivo, passando então, para empregar a expressão utilizada por Michel de Certeau, a trabalhar
“na beira da falésia”, tentando inventar um discurso para tratar de práticas não discursivas. Portanto,
Foucault fez várias reconsiderações críticas que oscilavam entre uma análise interna dos
discursos e outra voltada para as condições externas.
Como prova das suas reconsiderações críticas, observamos que em História da Loucura faz-se uma
análise das práticas de internação e às mudanças sociais e econômicas (condições externas),
enquanto “as palavras e as coisas” é voltada para a análise do discurso em si mesmo e suas regras
de formação (condições internas), nesta última situação nós não temos uma linha evolutiva no
itinerário de Foucault (análise meramente histórica), mas diferentes experiências de pensamento
(análise fenomenológica), que variam em função do objeto, do vocabulário e do enfoque privilegiado.
Partindo de um projeto genealógico, este livro fará uma investigação de discursos em relação às
suas condições históricas, econômicas e políticas (análise levando em consideração as condições
externas), sem fazer uma análise do discurso propriamente dito e uma globalização (generalização)
dessa análise. Portanto, a análise será parcial (no sentido de não poder extrapolar as conclusões
dessa pesquisa para toda a globalidade) e regional.
. Logo, essa pesquisa baseia-se em uma história do presente, na medida em que nasce de uma
inquietação atual e toma a crítica daquilo que somos como a tarefa por excelência da filosofia.
Trata-se de entender que a figura do autor, representada atualmente pela cibercultura, não é algo
imutável, mas sim produto de um processo que envolve uma significativa mudança na ordem do
discurso e nas relações de poder.
. São quatro características do estudo histórico que se pretende realizar, que serão esmiuçadas no
desenrolar do texto: Pesquisa histórico-filosófica, esforço de generalização, pergunta pela
emergência, jogos de poder e saber

A) Uma pesquisa histórico-filosófica


Para a análise histórico-filosófica e genealógica do autor é importante levar em conta a história das
mentalidades, dos comportamentos, das instituições ou dos indivíduos. Contudo, a atenção de Michel
Foucault está dirigida para as formações discursivas, para os processos de subjetivação (definida
pelo conjunto de características subjetivas de uma pessoa que a torna única - gostos, hobbies, etc) e
para as relações de poder. Além disso, o estudo histórico e sociológico das instituições (História da
autoria ou a história das prisões) deve ser considerado, entretanto, sua análise será feita mediante a
“lupa” das relações de poder (sempre uma análise conjugada com as relações de poder).
Um exemplo de como Foucault realiza as suas pesquisas, são em relação aos estudos do Hospital
Geral fundado em Paris durante o período medieval. Em sua perquirição, interessa ao filósofo
francês a razão do funcionamento do Hospital Geral, logo, essa instituição não poderia ser vista
como um mero estabelecimento médico, mas sim como uma ordem jurídica, visto que esse local não
visava a cura de seus pacientes, e sim, o imperativo de trabalho, baseado na condenação da
ociosidade, da mendicância e por uma ação moralizadora sobre os libertinos, os homossexuais e
todos os alvos de uma condenação moral que foram forçados a “embarcar em uma operação
purificadora”. Essa análise se repete em “Vigiar e Punir”, em que, apesar de a história das prisões
estar contida em sua obra, ela não se confunde com o verdadeiro objetivo de Foucault, entender a
tecnologia disciplinar (entender a arte de punir), ao conjunto de complexo de princípios, tais como: o
da correção, o da classificação, da modulação de penas, etc. Essa tecnologia disciplinar conjuga-se
com os discursos, a arquitetura, os regulamentos, as teorias científicas e os efeitos sociais (Ou seja,
conjuga-se com as relações de poder, as relações externas).
Por fim, a história do autor não se confunde com a história de nenhuma instituição ou aparelho do
Estado, pois a construção do autor na modernidade, apesar de moldada pela censura, pela
comercialização de livros e pelas bibliotecas, é resultado de um conjunto bem mais complexo de
elementos.
B) Um esforço de generalização
Existe um dilema entre uma análise particular, em que se pode fazer uma coleta sem fim de
particularidades, e uma análise geral que pode comprometer as especificidades históricas. Foucault
conhecia esse dilema, logo, delimitou o sistema penal francês como o seu objeto de estudo. E,
quando se fala em autoria, somos defrontados com uma multiplicidade de práticas e domínios tão
particulares que é imprescindível, para se desenvolver uma história do autor, considerar algumas
experiências e práticas específicas.
O objetivo do próximo tópico do texto é reunir esforços em torno de uma genealogia do autor, ou
seja, trata-se de fazer intervir os elementos pertinentes para a emergência do autor na modernidade,
contudo, nesses casos o que se exige é um trabalho de levantamento de informações em termos
mais gerais. Contudo, apesar da defesa, por parte do autor do texto, em se esforçar a uma análise
generalizada, não podemos cair em denominações extremamente simplistas, tais como
“humanismo”, “idealismo”, “romantismo” e "positivismo" que são termos amplos, e que ao mesmo
tempo que “explicam tudo, não explicam nada”.

C) A pergunta pela emergência


O fato de se analisar historicamente o autor não deve ser entendido como uma procura pelo seu
nascimento (“mito da origem”). Como Foucault deixou claro, interpretando Nietzsche, o estudo
genealógico não se confunde com a solene busca da “origem” mas tem por objeto o ponto de
aparecimento ou de “emergência” desse autor. Sendo assim, a “história efetiva” visa eliminar a
fantasia da origem, ou seja, a ideia de que o autor ele surgiu, da forma como conhecemos, há muito
tempo atrás e que as suas características foram preservadas ao longo da história da humanidade.
Além disso, os acontecimentos históricos não devem ser situados sobre um solo de permanência
nem vistos como erupções absolutamente inéditas, sem qualquer precedente. Portanto, a história
deve ser enxergada como continuidades e descontinuidades, sendo este, a ideia de um povo que
deixa de pensar de uma determinada forma e passa a pensar de outra forma diferente.
Ademais, essas mudanças históricas devem considerar as descontinuidades, os retornos e as
repetições, haja vista que as mudanças não ocorrem em bloco, ao mesmo tempo e integralmente.
Para descrever esse processo não se recorre à noção de época, entendida como unidade temporal
de base.
Em vigiar e punir, Foucault lembra que as transformações não são feitas de uma vez, nem mediante
a um processo único, mas em razão de uma multiplicidade de processos, geralmente ínfimos e de
diversas origens, que se repetem, imitam-se, apoiam-se, entram em convergência e desenham aos
poucos um funcionamento geral.
Ainda discorrendo sobre a relação entre continuidade e descontinuidade, é preciso estar atento ao
risco das falsas continuidades e categorias universais, mostrando a impossibilidade de se falar em
“objetos naturais”, tomados como uma categoria universal, a exemplo dos conceitos “loucura”,
“sexualidade” ou a “autoria”. Contudo, demonstrada a impossibilidade de “objetos naturais”, não se
pode desconsiderar que um conceito é produto de um processo de continuidades e
descontinuidades.
Foucault ressalta ainda sobre a necessidade de vencermos a “tirania do referente”, ou seja, de não
tomarmos o objeto como um referente, no sentido de algo estável no mundo, ao qual o discurso
simplesmente se dirige. Ao invés disso, o objeto deveria ser tomado como um “referencial”, entendido
como algo forjado no seio mesmo das práticas e das relações de força. Sendo assim, todo objeto
histórico deve ser tratado como um acontecimento, algo que emerge, que assume certa configuração
e logo se dissolve, mudando seus contornos e adquirindo novas formas. Todavia, essa emergência
não deve ser compreendida como uma simples mudança de mentalidade ou de comportamento, mas
sim como uma transformação nas condições da experiência real. Ademais, é importante ressaltar
que a construção do autor na modernidade não pode ser vista apenas como uma “inversão da
realidade” e nem como meras ilusões (“explicação em termos ideológicos”). Em suma, o poder ou o
exercício de um dispositivo de poder não se opõe simplesmente ao real, atuando sobre ele
posteriormente, de modo a deformá-lo e retirá-lo de sua pureza originária, mas está, ao contrário,
intrinsecamente ligado àquilo que é a nossa realidade, de forma constitutiva, logo não devemos
tomar o dispositivo da autoria e a figura do autor por meras construções ideológicas, simples
produtos ilusórios de um poder dominante. São, sim, construtos históricos (Conceito ou construção
teórica, puramente mental, elaborada ou sintetizada com base em dados simples, a partir de
fenômenos observáveis, que auxilia os pesquisadores a analisar e entender algum aspecto de um
estudo ou ciência), porém não são menos reais por isso.

D) Jogos de poder e saber


Esta pesquisa privilegia a ideia de rompimento com a concepção de que as transformações históricas
resultam de desenvolvimentos em termos de conhecimento e conquistas da ciência, logo, a
construção propriamente moderna do autor não deve ser vista como resultado de um progresso
contínuo do pensamento ou um ganho em termos de racionalidade e conhecimento, como se a
verdade tivesse sido enfim descoberta. É preciso, pelo contrário, analisar as transformações nas
formas de saber e nas relações de poder que fizeram com que o autor pudesse emergir na
modernidade.
Ademais, Foucault, em arqueologia do saber, reforça a crítica à visão progressista do conhecimento
científico e à tendência de eternizamos os objetos da ciência, deixando claro que seu objetivo não é
voltar-se para as “ciências” mas sim para “saberes”, que podem estar expressos nas demonstrações,
nas ficções, reflexões, nas narrativas, nos regulamentos institucionais ou nas decisões políticas
(portanto, o conhecimento está diretamente ligada aos discursos de uma sociedade e reflete isso em
suas instituições), assim como para o jogo de relações no qual eles são produzidos sem que se
possa falar em qualquer tipo de evolução. Dessa forma, não se pode falar em doença mental antes
do século XVIII, que é o período que marca o início do processo de patologização do louco (Com a
noção de eternização dos objetos da ciência, cremos que a loucura sempre foi uma preocupação dos
indivíduos. Além disso, acreditamos também que a loucura sempre foi definida ao longo da história
igualmente a definição de loucura que temos na contemporaneidade. Entretanto, Foucault demonstra
que a patologização da loucura só veio a ser uma preocupação da sociedade após a idade média,
ademais, o conceito de loucura foi alterado algumas vezes devido às relações de poder)
Para corroborar com a ideia que os avanços históricos não são frutos necessariamente científicos,
temos em Vigiar e Punir, que a substituição das penas de suplícios (penas com torturas, flagelação
humana, penas que impeliam grande sofrimento à vítima) pelas penas de prisão. Essa troca é
justificada por uma nova arte de punir, passando a objetivar mais a punição da alma (mentalidade)
que o corpo e atuar de forma cada vez mais extensa e permanente, além disso, as sessões públicas
de torturas, muitas vezes, estabelecia uma relação de solidariedade entre o público e os criminosos.,
o que não era interessante para a disseminação das relações de poder. Portanto, o fim das penas
aflitivas não tem como base uma humanização das penas, influenciada pelo Iluminismo, mas sim
uma alteração de acordo com as relações de poder. Da mesma forma, podemos falar que não foi
nenhum movimento humanista que alterou a ideia de autoria, mas sim uma série de mudanças, tais
como: as práticas editoriais, mercado livreiro e os instrumentos de controle.
O discurso humanista mascara as estratégias e técnicas de poder que engendram as
transformações no exercício da função-autor.

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