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HISTÓRIA NARRATIVA 36
Título original:
The Penguin History ofLatin America

Copyright © 1992, 2009, Edwin Williamson


Todos os direitos reservados

Tradução: Patrícia Xavier

Revisão: Pedro Bernardo

Capa: FBA
H I S T O R I A DA
©Corbis/VMI

AMERICA
Depósito Legal n° 351055/12

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação

WILLIAMSON, Edwin

História da América Latina. - (História


Narrativa; 36)
ISBN 978-972-44-1657-1

CDU 94(8)'14/20"
LATINA EDWIN WILLIAMSON
Paginação:

Impressão e acabamento:
PAPELMUNDE
para
EDIÇÕES 70, LDA.
UERN/FAFIC/DHi
Junho de 20 1 6
Grupo de Pesquisa
História do Nordeste:
l .' Edição: Novembro de 20 1 2 Soci«d«d« • Cultora

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de procedimento judicial.
ÍNDICE

PREFÁCIO

FARTEI
A ÉPOCA IMPERIAL 11

1. Descoberta e Conquista 13
2. índios e Ibéricos 47
3. A Espanha na América 87
4. As índias Espanholas 127
5. O Brasil Colonial 179
PARTE n
O DESAFIO DO MUNDO MODERNO 205

6. Reforma, Crise e Independência 207


7. A Procura de Ordem: Conservadores e Liberais no Século xix.... 245
8. «Civilização e Barbárie»: Desenvolvimentos Literários e Culturais I 297
PARTE m
O SÉCULO XX 323
9. Nacionalismo e Desenvolvimento: Uma Análise Global 325
10. México: Revolução e Estabilidade 391
11. Brasil: Ordem e Progresso 423
12. Cuba: Dependência, Nacionalismo e Revolução 449
13. Argentina: O Longo Declínio 473
14. Chile: Democracia, Revolução e Ditadura 499
15. Identidade e Modernidade:
Desenvolvimentos Literários e Culturais n . . 525
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

PARTE IV

RUMO A UMA NOVA ERA 581

16: Globalização e Reforma: Uma Análise. 583

ANEXO ESTATÍSTICO 633

SUGESTÕES DE LEITURA 654

MAPAS 683

GLOSSÁRIO 697

ÍNDICE REMISSIVO 707

Prefácio

Aos que a observam, a história da América Latina tem suscitado, em igual


medida, fascínio e perplexidade. Há no continente uma aparente estranheza, um
exotismo que advém, talvez, do facto de um dia ter sido visto como um «novo
mundo», embora lá sobrevivam monumentos e relíquias de sociedades antigas,
cujas culturas ainda hoje conhecemos pouco. Este carácter algo fugidio - que
alude, simultaneamente, a um anterior estado de graça e a uma qualquer corrup-
ção original - tomou a história da América Latina peculiarmente vulnerável à
especulação e à mitificação. Assim, entreguei-me à minha tarefa com cautela,
para não dizer receio.
O primeiro objetivo deste livro é fornecer uma análise geral ao leitor não
especialista. Tanto quanto possível, tentei apresentar um relato de aconteci-
mentos desapaixonado e, por vezes, provisório, apontando lacunas no nosso
conhecimento ou áreas de controvérsia. Por outro lado, evitei retirar toda a cor
da pintura, e por isso o meu método é frequentemente narrativo; centrei-me oca-
sionalmente em personalidades, e ao comentar obras literárias procurei dar ao
leitor um vislumbre das características mais marcantes da cultura.
Porque o meu principal interesse é a América Latina, e não a América pré-
-colombiana, começo pela história de como alguns dos seus habitantes foram
conquistados pelos Espanhóis. Antes de passar à análise das sociedades híbridas
que depois emergiram, incluo um capítulo que descreve, em traços gerais, o meio
dos principais povos índios e o dos conquistadores ibéricos. Quanto ao período
pós-independência, decidi sacrificar um estudo exaustivo de todas as repúblicas
em favor de uma abordagem seletiva, convicto de que assim conseguiria um
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

ângulo mais adequado à discussão de desenvolvimentos representativos, sem


negligenciar por completo as condições locais. O século xx foi o mais difícil de
cobrir; optei, finalmente, por uma análise introdutória, seguida de capítulos mais
breves sobre um conjunto de países cuja experiência foi especialmente signi-
ficativa.
Nas últimas décadas, a literatura latino-americana foi alvo de uma extraordi-
nária atenção pelo mundo fora. As circunstâncias históricas em que foi produzida
não são tão bem conhecidas. Procurei, assim, inserir a minha discussão da lite-
ratura e da cultura num contexto histórico mais vasto. Nesses capítulos, dedico
alguma atenção a determinados autores, porque acredito que a sua obra nos dá
importantes indícios relativamente às ideias, imagens e preocupações que mol-
daram a «mentalidade» de um período. Por outro lado, achei que seria proveitoso
destacar, na medida do possível, as descobertas da investigação história recente
sobre temas que motivaram debate político e cultural na América Latina durante Primeka Parte
muitos anos. s

Um livro desta natureza serve-se, inevitavelmente, do trabalho de muitas


A Época Imperial
pessoas. Gostaria de reconhecer a minha dívida para com os numerosos inves-
tigadores que contribuíram para o nosso conhecimento sobre o passado do
continente.

E.W. 2012
A DIVERSIDADE DO MUNDO AMERÍNDIO
ANTES DAS INVASÕES EUROPEIAS

Civilizações avançadas (Impérios)


Tribos teocráticas e militaristas
Povos semissedeatários em florestas tropicais ou savanas
Kvs^ Povos semissedentários em território desértico
FvT^j Povos nómadas caçadores, pescadores e coletores

CAPÍTULO l

OCEANO ATLÂNTICO Descoberta e Conquista

Descoberta

O Fascínio das índias

Depois de uma viagem longa e difícil por zonas desconhecidas do oceano


Atlântico, o marinheiro genovês Cristóvão Colombo avistou terra na manhã de
12 de outubro de 1492. Ao desembarcar, estava convencido de que encontrara
um caminho marítimo ocidental para o continente asiático, e julgou que poderia
OCEANO PACÍFICO agora cumprir-se o propósito da sua viagem: obter dos governantes do Japão e
da China a permissão para estabelecer um comércio exclusivo de ouro e especia-
rias sob os auspícios dos seus patronos, os Reis Católicos de Espanha.
A Ásia, apesar de envolta em mistério, era um continente fascinante para os
europeus. Era vagamente conhecida pelo nome de «índias», designação que se
aplicava não apenas à índia propriamente dita, mas também a Malaca, às ilhas
Molucas e até, num uso livre, à China e ao Japão. Poucos europeus se tinham
aventurado pelas suas fabulosas regiões interiores, pelo que, no Ocidente, as
imagens da Ásia continuavam a ser influenciadas pelo relato de princípios do
século xrv do explorador veneziano Marco Polo, que narrara a sua viagem atra-
vés das estepes centrais até aos reinos de Kublai Khan, soberano de Catai.
A imaginação de Colombo foi também influenciada por outras descrições mais
fantasiosas da Ásia, como as famosas crónicas de Sir John Mandeville, que em
finais do século xrv evocou terras habitadas por monstros e por animais exóticos,
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA DESCOBERTA E CONQUISTA

terras com minas de ouro, onde o reino cristão do Preste João estava isolado profunda. Este declínio do comércio agravou a terrível depressão que a Europa
entre os pagãos. atravessava, em virtude de catástrofes naturais, de convulsões políticas e das
As ligações comerciais entre a Europa e a Ásia tinham, na verdade, come- acentuadas quedas demográficas que entre 1347 e 1350 acompanharam a Peste
çado séculos antes, através de uma série de rotas de comércio no Mediterrâneo Negra.
Oriental, dominadas pelas repúblicas italianas de Génova e Veneza desde o Em Portugal e em Espanha, os efeitos da depressão fizeram-se sentir até
século xi. No Levante, uma cadeia de colónias permitia o acesso ao Egito e à meados do século xv. Como Chaunu observou, «o ouro desapareceu quase por
Síria, passagens para as riquezas da Arábia, da índia e do Extremo Oriente. Des- completo da península Ibérica. Portugal mergulhou numa crise entre 1383 e
tas terras distantes, em caravanas que atravessavam os desertos ou em embarca- 1434, e Navarra viveu uma situação semelhante» (f). Portugal sofreu ainda
ções que navegavam junto às costas, chegavam especiarias, sedas e outros arti- com uma escassez de cereais: obtendo más colheitas a cada três anos, apro-
gos de luxo, para os quais havia uma procura crescente na Europa, em finais da ximadamente, viu-se obrigado a importar alimentos do Norte de África. No iní-
Idade Média. Génova e Veneza enriqueciam graças a este comércio e tomavam- cio do século xv, as necessidades materiais, a par de um renascido espírito de
-se peritas na atividade comercial e na navegação. Os Italianos também pro- cruzada contra os Mouros, encorajaram os Portugueses a tentar controlar de
duziam açúcar, em plantações trabalhadas por escravos nas suas colónias medi- modo mais direto as fontes de ouro e cereal. Assim, em 1415, atravessaram o
terrânicas - pois o tráfico de escravos era parte integrante do comércio entre a estreito de Gibraltar e tomaram o porto de Ceuta, mas a sua conquista de Marro-
Europa e a Ásia. cos foi posta em causa em Tânger, pelo que os Portugueses acabaram por con-
Os mercadores italianos tinham estabelecido trocas comerciais com a tornar o Magrebe e estabelecer uma rota marítima até às costas atlânticas da
Europa do Norte viajando através dos Alpes, mas esta via de comunicação, África subsariana.
demasiado lenta, levou-os a procurar melhores rotas e, em 1277, quando uma Uma fase intermédia crucial neste avanço ao longo da costa africana foi a
frota genovesa atravessou o estreito de Gibraltar com destino a Inglaterra e à exploração dos arquipélagos dos Açores, da Madeira e das Canárias. A desco-
Flandres, foi criada a primeira ligação marítima direta entre as economias medi- berta destes arquipélagos nos anos 30 e 40 do século xiv (já anteriormente se
terrânica e atlântica. Ao fim de poucos anos, tinham-se estabelecido em Sevilha, sabia da sua existência) mostra até que ponto os pequenos portos de pesca do Sul
Cádis e Lisboa comunidades de comerciantes genoveses, e esta presença italiana de Portugal e do Sudoeste da Andaluzia estavam a contribuir para a exploração
na costa atlântica da península Ibérica originaria a transferência para o ocidente marítima. No entanto, estas ilhas atlânticas só foram colonizadas cerca de um
das preocupações comerciais e das técnicas de navegação desenvolvidas através século mais tarde, quando a crise económica estimulou a vontade de explorar os
da longa experiência do comércio com as índias, no extremo oriental do Medi- seus recursos: nos anos 30 do século xv, colonos ibéricos criaram plantações de
terrâneo. açúcar na Madeira e em algumas das ilhas Canárias. Estas primeiras iniciativas
Os produtos de luxo adquiridos no Oriente eram pagos em ouro e em escra- em águas atlânticas levariam à exploração da costa africana e, uma vez contor-
vos, e a fonte mais abundante desses artigos era o continente africano - especial- nado o cabo Bojador, em 1434, os Portugueses tinham uma via marítima para
mente as regiões centrais e ocidentais abaixo do Sara, então conhecido como o comercializar diretamente ouro e escravos com o Sudão. Algumas décadas mais
império do Sudão. Em troca de bens europeus, o Sudão enviava escravos, mar- tarde, foram fundadas feitorias (entrepostos de comércio) em pontos estratégicos
fim e ouro em caravanas que atravessavam o deserto até aos portos nas costas da costa ocidental africana e das ilhas ao largo.
mediterrânicas do Magrebe muçulmano, de onde partiam para o Sul da Europa. Seguiu-se, então, um notável período de expansão marítima dos Portugue-
Porém, quando os metais preciosos se tornaram a base da economia monetária ses, que no final do século estabeleceriam um caminho marítimo para a índia,
da Europa, a procura de ouro já não podia ser satisfeita pelas caravanas de came- contornando a África e atravessando o oceano Índico para alcançarem o subcon-
los que se deslocavam vagarosamente pelo Sara. No decorrer do século xiv, tinente e as ilhas Molucas, que se encontravam do outro lado. Uma vez que a
surgiu aquilo que Pierre Chaunu designou uma «fome de ouro» na Europa, espe- potência emergente do Império Otomano encerrara as tradicionais rotas de
cialmente no Sul (*). O comércio com o Oriente entrou em défice e o sistema de comércio com o Oriente através do Levante, Portugal tornar-se-ia o principal
comércio que tão lucrativo se revelara para os Italianos mergulhou numa crise intermediário nas relações comerciais entre a Europa, a África e a Ásia, assu-
mindo na última década do século xv muitas das atividades económicas de

Q Pierre Chaunu, European Expansion in the Later Middle Ages (North-Holland: Ames-
terdão, Nova Iorque e Londres, 1979), p. 103. O Ibid. p. 103.
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA D E S C O B E R T A E CONQUISTA

Veneza e Génova - a produção de açúcar, o tráfico de escravos e a troca de ouro do oceano era muito inferior à geralmente aceite. Colombo, por sua vez, cometeu
e especiarias por bens europeus. Ainda assim, a presença de marinheiros e mer- outros erros de cálculo, pelo que a sua estimativa reduzia ainda mais a largura do
cadores genoveses nos portos atlânticos da península Ibérica, durante quase 200 oceano - para apenas 2400 milhas náuticas das ilhas Canárias ao Japão, o que
anos, foi um fator vital na grande «empresa das índias» levada a cabo pelos punha o Japão onde na verdade ficam as índias Ocidentais. Se, como era prová-
Portugueses. vel, existissem ilhas por descobrir no caminho, então uma via marítima por oeste
era uma proposta muito prática; restava apenas persuadir o rei de Portugal a
apoiar a sua nova empresa das índias.
As quatro viagens de Cristóvão Colombo (1492-1504) D. João n não se mostrou, todavia, favorável ao projeto que Colombo lhe
apresentou em 1485: a base científica do plano foi rebatida, e bem, pelos peritos
Foi no contexto da expansão portuguesa rumo à índia que Cristóvão do rei e, para todos os efeitos, o Estado português já investira demasiado na
Colombo, um membro da comunidade de comerciantes genoveses em Portuga^ procura de um caminho para a índia que contornasse África. A possibilidade de
concebeu a ideia de encontrar um caminho marítimo para oeste, atravessando o uma tal via marítima ganhava força na época: em 1484, Diogo Cão descobrira a
oceano Atlântico, para chegar ao continente asiático. Não se tratava, na época, foz do Congo, e desde então não parara de avançar, tendo já colocado um padrão
de um projeto absurdo: na Antiguidade, chegara-se à conclusão de que a Terra à latitude de 21° 47' sul; e em 1488 Bartolomeu Dias dobraria finalmente o Cabo
era redonda, pelo que seria possível, pelo menos em teoria, navegar para oci- da Boa Esperança, deixando aberto o caminho que Vasco da Gama faria para a
dente até Catai, evitando desse modo a longa viagem em redor do continente índia em 1497-98, numa viagem que seria um marco na história.
africano. Desconhecia-se, no entanto, a dimensão do oceano que ficava no meio, Assim, em 1485, a Coroa portuguesa viu no plano de Colombo uma diversão
uma imensidão que dissuadia os navegadores de tentarem uma travessia por extravagante e pouco razoável do projeto bem mais seguro de chegar à índia
oeste até às regiões lendárias do outro lado do mundo. contornando o continente africano. Colombo abordou outros príncipes europeus,
Marinheiro desde a sua juventude, Colombo ligara-se pelo casamento a uma incluindo os governantes de Castela, mas ninguém se mostrou disposto a embar-
importante família genovesa há muito estabelecida na Madeira: o avô da sua car em tal aventura. Contudo, em 1492, Fernando e Isabel, e especialmente esta
mulher trabalhara com o infante D. Henrique, o Navegador, o impulsionador das última, tendo conseguido a histórica rendição da Granada muçulmana, estavam
explorações marítimas dos Portugueses, e o seu pai distinguira-se em África. preparados para correr o risco de apoiar Colombo. O marinheiro genovês obteve
Colombo participara em pelo menos uma expedição à grande feitoria em São uma licença para empreender uma viagem de descoberta; as Capitulacion.es de
Jorge da Mina, na Costa do Ouro da África Ocidental, onde observara o funcio- Santa Fe eram extraordinariamente generosas, concedendo a Colombo os títulos
namento do sistema de comércio português, assente em trocas de géneros e no hereditários de Almirante do Mar Oceano, Vice-Rei das índias e Governador de
comércio de escravos. Apercebeu-se, então, de que um caminho marítimo por todas as terras que descobrisse na sua viagem, bem como o direito a um décimo
oeste para a índia traria enormes recompensas comerciais, além de glória e fama. de todas as riquezas provenientes dessas descobertas. Fernando e Isabel também
Por outro lado, essa ligação favoreceria os objetivos estratégicos e religiosos de lhe facultaram um empréstimo, e deram ordem aos pequenos portos maríti-
Portugal: permitiria que os cristãos estabelecessem contacto com o reino de mos em redor de Cádis para ajudarem a equipar e a abastecer a expedição.
Preste João no Oriente, obtendo um poderoso novo aliado e flanqueando o ini- Se Colombo fosse bem-sucedido, a Coroa tornar-se-ia soberana de novos terri-
migo muçulmano; abriria também caminho para a conversão de muitos milhões tórios além-mar, e Castela poderia ultrapassar Portugal no estabelecimento de
de almas pagãs, como preparação para o estabelecimento de uma monarquia uma ligação marítima direta com a Ásia e, assim, no controlo do lucrativo
universal que precederia o Segundo Advento. comércio com os grandes reinos do Oriente.
A incógnita era a largura do oceano. Colombo conhecia bem as teorias dos A 3 de agosto de 1492, Colombo zarpou do porto de Paios, no sudoeste da
cosmógrafos da Antiguidade e da Idade Média, e sabia que a distância entre a Andaluzia. Tinha três navios - uma nau galega, Santa Maria (100 toneladas), e
Europa Ocidental e a Ásia era objecto de alguma controvérsia, dada a discrepân- duas caravelas ao estilo português, construídas na região, Pinta (60 toneladas) e
cia entre a estimativa de Ptolomeu para as dimensões da massa conjunta dos Nina (50 toneladas). Eram tripuladas por um total de 87 homens - na sua maio-
continentes europeu e asiático, e o cálculo de Marco Polo. Contemporâneo de ria marinheiros robustos e experientes dos pequenos portos da região; os mais
Colombo, o grande erudito florentino Paolo Toscanelli apoiava a estimativa mais notáveis, com apelidos como Pinzón, Nino e Quintero, vinham de famílias emi-
otimista de Marco Polo, e levou o marinheiro genovês a acreditar que a largura nentes de marinheiros, cuja ajuda e experiência se revelaram essenciais para que
-
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA DESCOBERTA E CONQUISTA

Colombo cumprisse o seu projeto. Também participava na expedição o grande hospitaleiros - as mulheres nuas ofereceram-se de livre vontade aos estranhos. Na
marinheiro biscaíno Juan de Ia Cosa, comandante e proprietário da nau Santa costa noroeste, Colombo deparou com um importante chefe nativo, Guacanagari,
Maria, que nos anos seguintes ganharia fama como explorador e cartógrafo. que, para grande alívio do navegador, exibia alguns dos atributos de um soberano
Forçada a uma pausa de quase um mês, para reparações, nas Canárias, a - o que foi tomado como indício de que se aproximavam da civilização, logo, do
expedição partiu para a sua viagem de descoberta a 9 de setembro. Depois de um Japão ou da China. Quando os nativos mencionaram um lugar chamado Cibao,
mês infrutífero no mar, com os homens cada vez mais impacientes e encorajados Colombo pensou que se referiam a Cipangu, o nome então dado ao Japão.
apenas pela sua determinação, Colombo começou a aperceber-se de sinais favo- No Dia de Natal, o Santa Maria encalhou num recife de coral e teve de ser
ráveis - bandos de pássaros no céu, ramos à tona da água, e depois uma estranha abandonado. Mas Colombo interpretou este desastre como um sinal de Deus em
luz trémula no horizonte, em plena noite. Finalmente, às duas da madrugada de como deviam fundar ali a primeira colónia espanhola e, com a ajuda dos homens
12 outubro, o vigia do Pinta avistou terra - penhascos brancos iluminados pela de Guacanagari, a colónia de Navidad foi construída com à madeira do navio
lua. Ao nascer do dia, os navios encontraram-se numa pequena baía e Colombo encalhado. Um grupo de 21 voluntários foi deixado no local, e Colombo, con-
pisou terra firme; ajoelhou-se e deu graças a Deus por ter finalmente chegado a fiante de que alcançara as índias, partiu no dia 4 de janeiro a bordo do Nina,
terra. Atravessara, com efeito, um oceano, mas não estava no Japão; tratava-se iniciando a viagem de regresso a Espanha.
de uma ilha bastante pequena das Baamas, a que Colombo decidiu chamar São Condições atmosféricas terríveis obrigaram o Nina a abrigar-se nos Açores e
Salvador. depois também em Lisboa. Ainda assim, D. João n recebeu o Almirante com cor-
Ao ver aquelas três estranhas embarcações, os habitantes da ilha nadaram na tesia e permitiu-lhe seguir viagem para Espanha. A 20 de abril de 1493, Colombo
sua direção. O Almirante, corno chamavam agora a Colombo, registou a sua compareceu perante Fernando e Isabel na corte real de Barcelona, com uma
aparência: andavam completamente nus, alguns tinham o corpo pintado, as suas escolta que incluía seis nativos que levavam papagaios em gaiolas. Triunfante,
armas eram muito primitivas, e no entanto pareciam bastante dóceis, ansiosos Colombo apresentou-se como o descobridor de novas terras nas índias, terras
por trocar os seus pertences pelas bugigangas oferecidas pelos Espanhóis. Mas onde havia ouro e com as quais a Espanha poderia lucrar através do comércio.
nada daquilo era o que Colombo procurava: propusera-se chegar ao Japão, e Os Reis Católicos podiam agora esperar vencer Portugal na competição para
aquelas pessoas eram demasiado bárbaras para serem súbditos de um rei pode- estabelecer relações comerciais diretas com a índia (os Portugueses só chega-
roso. Colombo era um homem de objetivos bem definidos - apostara a sua vida riam à índia em 1498). A necessária legitimidade para tal empresa foi concedida
e a sua honra em como chegaria ao Oriente, e agora procurava obstinadamente pelo papa Alexandre VI, um Bórgia espanhol, que emitiu uma série de bulas
provas que confirmassem a sua ideia. Além disso, como conhecia as iniciativas atribuindo a Castela o domínio sobre todas as terras que viessem a ser descober-
comerciais dos Italianos e dos Portugueses, podia facilmente avaliar o potencial tas no hemisfério ocidental. Por forma a evitar conflitos com Portugal, as bulas
económico da sua descoberta. Não tendo encontrado muito em São Salvador concediam a cada uma das potências ibéricas rivais uma secção da parte do
- embora lhe tivesse ocorrido a possibilidade de os nativos serem usados no globo por descobrir. Em 1493, traçou-se uma linha de demarcação a uma longi-
comércio de escravos -, visitou outras ilhas das Baaamas, impressionado pela tude de 100 léguas a oeste dos Açores e das ilhas de Cabo Verde, mas no Tratado
beleza da paisagem, até ouvir falar das ilhas maiores, para sul, onde havia ouro. de Tordesilhas, celebrado em 1494, a pedido de Portugal, e com o acordo diplo-
Chegou depois à costa norte de «Coíba» (nome que mais tarde seria hispanizado mático da Espanha, a referida linha avançou mais 270 léguas para ocidente,
como Cuba), esperando ter finalmente encontrado o Japão. O ouro que ali havia colocando, inadvertidamente, sob domínio de Portugal o até então desconhecido
era escasso, mas Colombo observou como os nativos ficavam descontraídos ao território mais tarde chamado Brasil.
soprar um grande rolo feito de folhas a arder, a que davam o nome de tabacos, Ainda antes de se chegar a este compromisso diplomático, Colombo partira
um hábito que os Espanhóis acabariam por adquirir e introduzir na Europa. de Cádis a 25 de setembro de 1493 com uma grande expedição de 17 navios e
No extremo leste da ilha, o Almirante tomou conhecimento, através das cerca de 1500 homens (não havia mulheres a bordo), com o intuito de fundar
dóceis tribos aruaques que encontrara até então, da existência dos violentos cari- uma colónia permanente nas ilhas anteriormente descobertas. Ao regressar a
benhos, canibais, e por isso navegou para leste. Quando chegou a outra ilha de Espanola, Colombo verificou que os nativos haviam destruído a colónia e
grande dimensão que lhe pareceu semelhante à Espanha, deu-lhe o nome de La+ matado os espanhóis, como vingança pelo seu comportamento ganancioso. Era
Islã Espanola (a ilha que hoje compreende o Haiti e a República Dominicana). Aí um acontecimento sinistro, que revelava a natureza das expectativas dos homens.
encontrou nativos cobertos de ornamentos de ouro e que se revelaram bastante Os colonos eram aventureiros endurecidos, e as suas motivações básicas, que
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA DESCOBERTA E CONQUISTA

não diferiam muito das de Colombo, eram, no entanto, concebidas de modo bem frota de exploração, sob o comando de Vasco da Gama, na esperança de chega-
mais rude. Correndo riscos pessoais consideráveis, tinham ficado naquelas terras rem finalmente à índia.
para procurar a riqueza e o estatuto que lhes eram negados no seu país de origem. Colombo precisou de cerca de 18 meses para organizar uma nova expedição,
Não se contentariam, obviamente, com uma vida de camponeses, cultivando a desta vez financiada pelo tesouro real, sob a supervisão do arcediago de Sevilha,
terra ou negociando pacificamente com os nativos; afinal havia grandes reservas Juan Rodríguez de Fonseca, um funcionário ambicioso que ao longo das duas
de mão de obra indígena a utilizar de modo a que os europeus enriquecessem o décadas seguintes conquistaria uma enorme influência na direção da empresa das
suficiente para viverem como senhores ao regressar a Espanha. índias. Colombo zarpou em maio de 1498 e chegou à ilha de Trindade em julho;
Transtornado com a destruição de Navidad, Colombo navegou para leste, explorou em seguida a costa da Venezuela e, pela força das correntes de água
procurando um novo local onde fundar um entreposto de comércio ou uma fei- doce no golfo de Pária e no delta do Orenoco, depreendeu que aquele lugar devia
toria ao estilo português, como os existentes na costa africana. Fundou uma fazer parte de um grande continente, uma tierra firme. Porém, obcecado pela
colónia, a que deu o nome de Isabela, em homenagem à rainha, num local parti- demanda do Oriente, não se apercebeu das implicações da descoberta daquela
cularmente mal escolhido, e daí o Almirante enviou expedições para o Cibao, imensa massa de terra, embora a referisse metaforicamente como um «outro
com o objetivo de localizar a fonte do ouro dos nativos. Embarcou em seguida mundo». Seria um outro explorador italiano, Américo Vespúcio, navegando num
numa viagem de reconhecimento que o levou mais uma vez a Cuba e em redor navio espanhol por rotas abertas por Colombo, a formular a ideia poderosa de
da Jamaica, e regressou a Isabela em Setembro de 1494, deparando-se com que aquele era um continente sem ligação à Ásia: foi o primeiro a chamar-lhe
novos problemas de indisciplina por parte dos seus - uma facão de catalães mundus novus, um «novo mundo». Colombo, por sua vez, nunca se libertou do
revoltara-se contra o seu irmão Diego, que deixara à frente da colónia. Com uma seu pensamento medieval; foi, até ao fim, o visionário apocalíptico, intrigado
crescente tensão entre, por um lado, a sua vocação de explorador e comerciante pelas maravilhas que se lhe revelavam, especulando, por exemplo, que o delta do
(orgulhosamente reconhecida no seu título, Almirante do Mar Oceano) e, por Orenoco talvez fosse o rio de quatro braços que, segundo as Escrituras, atraves-
outro, o seu papel de governador da nova colónia espanhola (Vice-rei das índias, sava o Paraíso Terrestre.
como anunciava o seu outro grande título), Colombo tentou satisfazer as ambi- Ao chegar a Espanola, o Almirante encontrou os espanhóis num estado de
ções de espanhóis desordeiros que queriam recompensas rápidas pela coloniza- guerra civil. A cidade de Santo Domingo, construída na sua ausência pelo seu
ção: autorizou novas expedições brutais pelo interior, em busca de ouro, e pro- irmão Bartolomeu, tornara-se tão ingovernável como a colónia de Isabela.
cedeu a um repartimiento (uma distribuição) de índios cativos, que passaram a Colombo tentou estabelecer um acordo entre as facões belicosas, mas o Almi-
trabalhar para os espanhóis. Considerou igualmente a possibilidade de iniciar um rante e os seus irmãos eram desprezados como estrangeiros, e a incapacidade de
tráfico de escravos com vista a melhorar as perspetivas económicas da sua coló- controlar a situação minou ainda mais a sua autoridade. Finalmente, em agosto
nia, e enviou para Espanha um navio com aproximadamente 500 índios (cerca de 1500, chegou um administrador real, Francisco de Bobadilla, com ordens da
de 200 morreram de frio durante a viagem e a maioria dos restantes faleceu Coroa para investigar o conflito. Os irmãos Colombo foram detidos e Cristóvão
pouco depois de chegar ao mercado na Península). As tribos índias de Espanola foi enviado para Espanha, a ferros.
revoltaram-se e avançaram sobre Isabela, mas foram facilmente dominadas pelas Este tratamento tirânico foi, evidentemente, uma humilhação terrível para o
armas e pelos cães selvagens dos espanhóis. Almirante, mas as circunstâncias exigiam uma revisão do empreendimento ori-
Em março de 1496, Colombo voltou a Espanha para se defender de calúnias ginal de Colombo. Os problemas políticos de Espanola tinham-se tornado tão
espalhadas por colonos dececionados que haviam regressado de Espanola. A sua graves porque a ilha não podia ser convertida num entreposto de comércio, como
empresa das índias vinha sendo desacreditada na corte: parecia não haver gran- Colombo planeara. Não era possível obter ouro através de um sistema de trocas,
des indícios de jazidas de ouro, não fora estabelecido qualquer contacto com os como acontecia nas feitorias portuguesas das costas africanas; era preciso extrair
governantes do Japão ou da China, e Espanola vivia agitada pelo descontenta- diretamente o minério, o que requeria uma operação mais complexa, incluindo
mento; além disso, a devota rainha Isabel mostrava-se insatisfeita com o trata- uma colonização permanente e a organização de um conjunto de trabalhadores,
mento dado aos índios e proibira expressamente que estes fossem feitos escra- operação que exigia a intervenção do Estado, para criar um sistema de governo
vos. Ainda assim, Colombo verificou com alívio que os Reis Católicos, apesa» efetivo. E, assim, o monopólio pessoal de Colombo sobre a empresa, conforme
das suas reservas, continuavam a confiar nele - talvez porque estivessem preo- definido nas Capitulaciones de Santa Fe, chegou ao fim. Em fevereiro de 1502,
cupados com as intenções dos Portugueses, que se sabia estarem a preparar uma os Reis Católicos de Castela enviaram um administrador experiente, Nicolás de
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Ovando, que se tornou o primeiro governador real do território que viria a ser O conflito era intrinsecamente desigual, claro. Em primeiro lugar, os Espa-
conhecido como índias Espanholas. nhóis, embora em número muito reduzido, possuíam recursos tecnológicos
Mas Colombo continuava decidido a encontrar uma passagem ocidental para muito superiores e uma forte motivação para atingir um conjunto de objetivos
a Ásia, e obteve autorização para fazer urna quarta viagem de exploração através bem definidos. Mas não era tudo: existia ainda uma dimensão biológica oculta,
do Atlântico, tendo partido em maio de 1502 numa expedição que só terminaria que se revelou desastrosa para a população nativa e que agravou o choque de
em novembro de 1504. Esta viagem aprofundou consideravelmente o conheci- culturas. O encontro de duas raças até então isoladas levou a uma troca de vírus
mento dos Espanhóis sobre as terras recém-descobertas no hemisfério ocidental, que custou muitas vidas a ambas as partes.
pois ao tentar encontrar uma passagem que o levasse ao continente asiático, Os Espanhóis foram vitimados por doenças tropicais: dos 1500 homens que
Colombo traçou a linha costeira da América Central ao longo das Honduras, da partiram com Colombo, em 1493, para colonizar Espanola, restavam apenas
Nicarágua, da Costa Rica e do Panamá. Ao regressar a Espanha, solicitou à cerca de 360 em 1502, quando Nicolás de Ovando chegou com mais 2500 colo-
Coroa a restauração de alguns dos seus privilégios, e conseguiu, pelo menos, nos; um ano mais tarde, cerca de metade destes últimos morrera de doenças
garantir a nomeação do seu filho Diego para o cargo de governador de Espanola, misteriosas conhecidas como modorra e baquía. Os que sobreviveram e se adap-
como reconhecimento concedido pelos títulos hereditários de vice-rei e almi- taram foram chamados baquianos, um termo que acabaria por designar os
rante. Cristóvão Colombo morreu a 20 de maio de 1506, ainda convencido de homens duros que trabalhavam como batedores e que combatiam os índios nas
que encontrara o caminho marítimo ocidental para o Oriente e que as terras que fronteiras das colónias espanholas durante o período colonial.
descobrira eram ilhas e penínsulas da Ásia. Por sua vez, as populações nativas das ilhas foram dizimadas pela varíola,
pelo sarampo e por outras doenças do Velho Mundo, contra as quais não estavam
Os problemas que Colombo teve ao governar as primeiras colónias espanho- imunes, pois haviam vivido completamente isoladas de outras raças durante
las nas Caraíbas prenunciavam os problemas de governação muito complexos milénios. A mortalidade causada pelas epidemias foi, sem dúvida, assombrosa,
que o Estado espanhol enfrentaria na América. A desordem política em Espanola mas as opiniões divergem quanto ao nível de depopulação, não existindo dados
devia-se ao choque entre dois ramos da humanidade até então desconhecidos um estatísticos fiáveis (alguns autores acreditam que a população de Espanola
do outro e com expectativas culturais incompatíveis. Os Espanhóis, como todos poderá ter atingido os oito milhões de habitantes; outras consideram que rondaria
os europeus contemporâneos, operavam numa economia monetária em que o os 50 000).
ouro era extremamente escasso e, por isso, alvo de uma intensa procura; por A doença aliou-se às pressões económicas, gerando uma dinâmica de destrui-
outro lado, a sua sociedade atribuía um estatuto elevado à suserania, em detri- ção terrível, que ceifou muitas vidas nativas. Na sua maioria, os colonos espa-
mento de uma força de trabalho submissa, fosse esta última escrava ou nominal- nhóis eram camponeses rudes, incultos, da Extremadura e do oeste da Andaluzia,
mente livre. O povo das ilhas, pelo contrário, vivia numa economia de subsistên- que rapidamente se amotinavam e que muitas vezes desrespeitavam a autoridade,
cia assente na troca de géneros, em que o ouro tinha um valor meramente pois tinham ido para as ilhas das Caraíbas para fazer fortuna e depois regressar a
decorativo e onde os mecanismos de serviço de mão de obra estavam ainda por casa. Revelavam uma indiferença escandalosa pelo bem-estar dos índios, o que
desenvolver. Assim, os Espanhóis procuravam bens e serviços que as sociedades suscitava protestos da parte de outros espanhóis, em particular do clero.
indígenas não estavam pura e simplesmente preparadas para oferecer. A sua busca desenfreada de mão de obra índia resultou numa exploração cruel
Nenhuma das partes soube interpretar este conflito de expectativas: os colo- e fez prosperar o comércio de escravos, apesar de esta prática ser ilegal. Exaustos
nos espanhóis encararam a relutância dos índios em trabalhar como preguiça, e devido a horários de trabalho absurdos, aos maus-tratos e à interferência nas suas
os índios eram incapazes de compreender a ânsia dos Espanhóis pelo ouro e as atividades agrícolas por parte dos colonos, os índios tornaram-se ainda mais vul-
suas exigências de trabalho. O conflito ameaçou destruir ambas as partes: sem neráveis à doença, e muitos deles perderam a vontade de viver e de procriar.
uma força de trabalho índia para extrair da terra um bem comercializável como A necessidade de conservar a mão de obra índia tornou-se um dos principais
o ouro, a colónia espanhola não podia sobreviver, mas a procura de ouro e de estímulos à continuação da exploração e das conquistas espanholas. Quando essa
mão de obra por parte dos Espanhóis originaria pressões insustentáveis sobre as mão de obra caiu drasticamente, os traficantes de escravos partiram à procura de
sociedades nativas. A gestão deste conflito de expectativas, com todas as dificul* mais índios, indo de ilha em ilha: Porto Rico foi conquistado em 1508, a Jamaica
dades éticas e económicas que o problema colocava, tornar-se-ia a principal em 1509, Cuba em 1511. Destas ilhas, os invasores espanhóis avançaram para
tarefa política da Coroa espanhola no século xvi. regiões ulteriores, onde estabeleceram postos de comércio para negociarem em

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escravos, ouro e outros bens. Tierra Firme (a costa norte das actuais Colômbia e da defesa dos direitos dos índios, papel que desempenhou durante cerca de cinco
Venezuela), descoberta por Colombo na sua terceira viagem, tinha já em 1509 décadas da sua longa vida.
atraído espanhóis apostados em explorar as suas riquezas. Em 1509, traficantes Os protestos dos dominicanos persuadiram Fernando de Aragão (a rainha
de escravos partiram à conquista do istmo do Panamá, fundando a colónia de Isabel morrera em 1504) a promulgar em 1512 as Leis de Burgos, que definiam
Darién; o explorador Ponce de León descobriu a Rórida em 1513, mas este ter- valores de pagamento justos e previam a supervisão do sistema de encomienda
ritório só viria de facto a ser colonizado muito mais tarde. por administradores reais. Era, no entanto, impossível fazer cumprir estas leis
A oferta de trabalho constituiu, assim, um problema vital para os sucessivos nas Caraíbas, pelo que estas tendiam a ser ignoradas. Ainda nesse ano, foram
governadores de Espanola e das ilhas. Colombo fora vencido pelo problema, levadas a cabo algumas tentativas para controlar a escandalosa prática de caça de
uma vez que a rainha Isabel o proibira de escravizar os índios. Num esforço para escravos: a Coroa reiterou a sua posição, insistindo em que só os índios captura-
estabilizar aquela colónia instável, o governador que lhe sucedeu, Nicolás de dos numa «guerra justa» podiam ser legitimamente feitos escravos. Um jurista
Ovando, adaptou às circunstâncias de Espanola uma forma tradicional de serviço espanhol produziu um guia que permitia aos conquistadores no terreno determi-
de mão de obra, conhecido em Espanha pelo nome de encomienda: os trabalha- nar as condições para uma guerra justa. O Requerimento era um documento que
dores índios eram entregues a colonos espanhóis na condição de que fossem bem estabelecia o direito do monarca espanhol à soberania sobre as índias e que
tratados, decentemente remunerados e instruídos na fé cristã, em troca dos seus apresentava as linhas gerais da fé cristã. A referida declaração tinha de ser lida
serviços. A rainha Isabel não via com bons olhos o sistema de encomienda, uma sempre que os conquistadores encontravam tribos índias, e só a explícita rejeição
vez que este implicava coerção, ficando, por isso, aquém do ideal de trabalho dos seus termos constituiria motivo para uma guerra justa e a consequente obten-
assalariado livre que a Coroa espanhola nunca deixaria de defender; por outro ção de escravos. O Requerimento foi, evidentemente, bastante maltratado por
lado, Isabel, como os seus sucessores, também receava criar nas índias uma nova caçadores de escravos profissionais.
classe de senhores feudais que pudesse desafiar a autoridade real. Ainda assim, Após a morte de Fernando, em 1516, o regente, o cardeal Jiménez de Cisne-
a encomienda era preferível à escravatura, e já nessa altura se tornara claro que ros, que fora o conselheiro espiritual de Isabel, fez uma nova tentativa para levar
os índios não trabalhariam voluntariamente em troca de um salário. Embora a justiça cristã aos Caribenhos. O governo de Espanola foi confiado a um grupo
branqueasse o trabalho forçado, a encomienda representava uma tentativa de o de três monges jeronimitas, mas estes religiosos também não conseguiram erra-
regular e de o humanizar, introduzindo um elemento de responsabilidade feudal dicar os abusos do sistema de encomienda, e, confrontados com o rápido declínio
para com os trabalhadores índios por parte do encomendero. O sistema viria a ter da população índia, permitiram a importação de escravos negros de África para
um tremendo impacto nas relações de trabalho nas índias espanholas. satisfazer as necessidades de trabalho da colónia.
Todavia, em Espanola, a encomienda não tardou a ser minada pelo rápido As tentativas de conciliar necessidade económica e princípios cristãos
decréscimo da população índia, e não foi possível eliminar abusos como o suceder-se-iam até ao fim do século. O processo de colonização espanhola seria,
excesso de trabalho e a captura de escravos. Quando, em 1509, Ovando foi subs- com efeito, acompanhado de muita reflexão oficial - de tal modo que nos anos
tituído no seu cargo de governador por Diego Cólon, filho de Colombo, o Estado 50 do século xvi a Coroa acharia por bem arejar todas as complexas questões
espanhol redobrou as suas tentativas de impor a lei e a ordem nas colónias das jurídicas e éticas suscitadas pela presença da Espanha na América num grande
Caraíbas. Em 1511, a primeira audiência (tribunal real) americana foi criada em debate que teve lugar em Valladolid. Por essa altura, as dificuldades morais com
Santo Domingo. Um ano antes, quatro missionários dominicanos tinham che- que a Coroa e a Igreja se debatiam haviam sido agravadas pelas novas conquistas
gado à ilha para ajudar a organizar a cristianização dos índios. Ficaram horrori- no continente, que relegaram para segundo plano os problemas de Espanola e das
zados perante o modo como os encomenderos espanhóis tratavam os trabalha- ilhas. Ao mesmo tempo, os objetivos transatlânticos da Espanha tinham-se tor-
dores nativos. Em 1511, o frade dominicano António de Montesinos proferiu nado muito mais claros: a América deveria ser responsável pela maior parte
um sermão famoso em que exortava os encomenderos a lidarem com os seus da atividade comercial do império. Isto porque em 1519 Fernão de Magalhães
índios de modo humano, sob pena de danação. Foi o primeiro grande esforço passara pelo estreito que hoje tem o seu nome, chegara às águas do Pacífico e
empreendido por missionários espanhóis para defender os direitos dos índios circum-navegara o globo pela primeira vez. Os Espanhóis sabiam agora que não
contra os interesses dos colonos. Um encomendero reagiu de modo impressio-» havia um caminho marítimo fácil para a Ásia, e que a ambição original de
nante a este apelo à consciência cristã: Bartolomé de Ias Casas renunciou à sua Colombo teria de dar lugar à tarefa de explorar e conquistar o imenso continente
encomienda e tornou-se frade dominicano, vindo a ser o grande impulsionador que, como finalmente se apercebiam, ficava entre a península Ibérica e o Japão.

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A Conquista do Continente cerca de 600 homens, 16 cavalos, 14 canhões e 13 mosquetes; todavia, com
estes recursos propunha-se enfrentar o que quer que houvesse do outro lado
Durante mais de 20 anos após a primeira travessia do Atlântico por Colombo, daquela muralha de montanhas que impediam o acesso direto às riquezas das
os Espanhóis fizeram poucas descobertas relevantes além de Espanola e de índias.
Cuba. O que ficava além destas ilhas era ainda motivo de especulação: as via- De Cuba, Cortês fez a pequena travessia para a ilha de Cozumel, ao largo do
gens de exploração tinham gradualmente traçado a costa caribenha do continente lucatão, onde encontrou um náufrago espanhol chamado Jerónimo de Aguilar,
americano, mas a extensão dessa Tierra Firme, como ficara conhecida, estava que falava maia. Continuou a subir a costa e em Tabasco ofereceram-lhe uma
ainda por desvendar. Com o declínio das populações nativas das ilhas, os Espa- mulher chamada Malintzin — Dona Maria, para os Espanhóis —, que falava
nhóis avançaram por Tierra Firme à procura de escravos, e este primeiro objetivo nahuatl e também a língua maia, e que daí em diante serviria Cortês com leal-
levou a expedições de conquista e povoamento cada vez mais ambiciosas, para dade, como intérprete e como sua amante. Com os serviços destes dois falantes
compensar o cada vez menor interesse das Caraíbas. das línguas nativas, Cortês estava em boas condições de avaliar a natureza da
Em 1513, partiu de Espanha uma expedição chefiada por Pedrarias Dávila oposição que se lhe deparava e de delinear uma estratégia informada para a sua
com permissão real para conquistar a região do istmo da América Central. campanha de conquista. Com efeito, o pensamento estratégico de Cortês revelar-
À chegada, Dávila encontrou outro espanhol, Vasco Núnez de Balboa, líder de -se-ia crucial para o seu sucesso, pois em breve estaria sob a observação de
um grupo de sobreviventes de uma expedição enviada a Tierra Firme em 1509, agentes do imperador Montezuma, que fora informado da chegada de homens
missão que fora malsucedida. Balboa já criara a colónia de Darién naquela região estranhos de rosto branco, trazidos por torres aladas do outro lado do mar.
tropical inóspita, e em 1513 tinha atravessado o istmo e erguido o estandarte real Na Sexta-Feira Santa, em abril de 1519, Cortês fundou Veracruz, a «Cidade
sobre as águas do oceano Pacífico, reclamando-as para os Reis Católicos de da Verdadeira Cruz», numa zona da costa do golfo do México sob a jurisdição
Castela. Mais importante ainda, Balboa ouvira rumores sobre um reino dourado do imperador asteca. Ao fazê-lo, Cortês esperava conseguir alguma legitimidade
com o nome de Birú, o qual parecia corresponder a tudo o que um conquistador para a sua iniciativa, uma vez que partira de Cuba sem permissão real e desa-
espanhol desejaria encontrar nas índias. Pedrarias Dávila não tardou a entrar em fiando a autoridade de Velázquez. Passados dias, chegaram os primeiros emissá-
conflito com Balboa e deu ordem para que o executassem; prosseguiu, depois, rios de Montezuma, com presentes rituais e aconselhando os Espanhóis a ir-se
com a exploração do istmo, à procura de ouro e escravos, mas não encontrou embora. Mas Cortês não faria tal coisa; em vez disso, enviou para Espanha todo
saque significativamente melhor do que aquilo que já fora encontrado nas ilhas. o ouro que reunira até então, na esperança de apaziguar o imperador Carlos V e
Em 1519, fundou a cidade do Panamá, e daí partiu para novas explorações, em de prevenir qualquer decisão que o impedisse de gozar os frutos da conquista que
busca do fabuloso reino de Birú. estava a planear. Em seguida, abriu rombos no casco de todos os seus navios.
Eram tempos conturbados, em que muitos outros espanhóis alimentavam Não podia recuar: à sua frente erguia-se a capital asteca de Tenochtitlán, e nada
sonhos de conquista e saque. Entre 1517 e 1518, Diego Velázquez, o conquista- mais havia a fazer senão avançar sobre a cidade e conquistá-la.
dor de Cuba, enviara duas expedições para reconhecer as costas continentais em À medida que os Espanhóis avançavam para o centro do poder asteca, Cortês
redor das regiões que hoje conhecemos como península do lucatão e golfo do foi tomando conhecimento das divisões políticas no seio do império de Monte-
México. Esses exploradores tinham regressado com provas da existência de uma zuma, e compreendeu até que ponto os Astecas eram odiados por povos que lhes
civilização no interior, pelo que Velázquez preparou uma expedição com o estavam sujeitos e por outros reinos. Cortês decidiu explorar estes antagonis-
intuito de estabelecer uma base que servisse de apoio a novas explorações e mos, ao mesmo tempo que escondia dos Astecas as suas verdadeiras intenções.
possíveis conquistas. Seguindo o procedimento normal, Velázquez enviou o Em Cempoala, conseguiu o apoio dos Totonacas, e mais tarde, depois de uma
seu pedido para Espanha, solicitando a necessária autorização da Coroa; porém, batalha feroz, os Espanhóis persuadiram os Tlaxcalas, inimigos históricos dos
antes que a permissão real chegasse a Cuba, o comandante nomeado para lide- Astecas, a apoiá-los na sua campanha para derrubar Montezuma. Quando chega-
rar a expedição adiantou-se a Velázquez e zarpou sem autorização do porto de ram ao reino dos Cholulas, os Espanhóis fizeram uma demonstração inicial de
Santiago. Este indivíduo arrogante era Hernán Cortês, um fidalgo de 33 anos amizade àqueles entusiásticos vassalos dos Astecas, mas Cortês descobriu o que
oriundo de Medellín, na província da Extremadura, o qual se distinguira como» parecia ser uma conspiração para o assassinar, e decidiu, então, levar a cabo um
soldado e administrador em Espanola e em Cuba desde que chegara às Caraíbas, massacre exemplar de nobres e sacerdotes reunidos para uma festividade reli-
aos 19 anos. A expedição que comandava era modesta: levava nos seus navios giosa na cidade. Segundo fontes nativas, as táticas equívocas deste género seme-

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aram a confusão e a discórdia entre os Astecas, o que deu aos invasores uma Quando chegaram ao principal caminho que levava à cidade confinada por
vantagem psicológica sobre os índios. um lago, o senhor de Texcoco veio ao encontro dos Espanhóis para os saudar e
Montezuma, por seu turno, parecia também ter optado, desde cedo, por uma convidou-os para uma audiência com Montezuma. Embora ciente de que pode-
estratégia idêntica para confundir os Espanhóis, combinando uma diplomacia riam estar a atraí-lo para uma armadilha, Cortês levou os seus homens para
ritual com ameaças vagas e ataques dissimulados. Persistem, no entanto, as dúvi- Tenochtitlán, a metrópole com maior densidade populacional no Novo Mundo.
das quanto às suas verdadeiras intenções ao deixar que os Espanhóis avançassem Foi bem recebido por Montezuma, que o acomodou, juntamente com o seu con-
até ao coração dos seus domínios. A especulação incidiu essencialmente sobre a tingente de cerca de 400 homens, num conjunto de grandes edifícios no interior
fraqueza aparente do seu carácter e sobre a sua pretensa crença de que Cortês da cidade. Durante cerca de uma semana, os Espanhóis viveram no medo cons-
seria o deus Quetzalcoatl, que viera reclamar o seu reino, mas estas suposições tante de serem atacados e mortos, apesar da cortesia com que estavam a ser tra-
devem ser encaradas com reserva: Montezuma não era um monarca hereditário; tados pelo imperador e pela sua família. Contudo, mostrando-se os seus coman-
fora escolhido por um povo agressivo, imperialista, pelo que devia ser um dantes cada vez mais ansiosos quanto às verdadeiras intenções de Montezuma e
homem com invulgares qualidades de liderança, um homem que dificilmente dos seus ministros, Cortês decidiu finalmente capturar o imperador e fazê-lo
estaria disposto a abdicar de todo um império por acreditar que um estranho mal refém nos aposentos dos espanhóis, alegando que o imperador o atraiçoara e que
equipado fosse um deus de visita. É, com efeito, bastante mais plausível que ordenara um ataque contra a guarnição espanhola em Veracruz, causando a morte
Montezuma tenha simplesmente interpretado mal Cortês, e isto porque, entre de um comandante espanhol. O que Cortês pretendia era, na realidade, um golpe
outras razões, os objetivos da guerra e da política na América Central diferiam de Estado; com uma força de tal modo reduzida, ser-lhe-ia impossível proceder
consideravelmente dos da Europa renascentista. Enquanto os europeus comba- a um ataque frontal contra o poder asteca. Capturando Montezuma, os Espanhóis
tiam para matar, ocupar e pilhar, os índios encaravam a batalha como um ritual encurralados poderiam ganhar tempo e tentar manipular a autoridade imperial
de domínio e submissão, no qual era preferível fazer prisioneiros vivos para para seu benefício. Assim, o destino do México dependeria do resultado de uma
depois os sacrificar numa cerimónia aos seus deuses sedentos de sangue. Visto batalha de inteligência entre dois homens.
que a invasão espanhola terminou em desastre para os Astecas, talvez os erros Porém, num momento crítico do golpe de Estado espanhol, chegaram notí-
táticos de Montezuma tenham sido retrospetivamente elaborados por poetas de cias de que Pánfilo de Narváez aportara em Veracruz com uma força numerosa
língua nahuatl e por cronistas espanhóis, numa fábula assombrosa de mau pres- de espanhóis de Cuba, incumbido pelo governador Velázquez de castigar Cortês
ságio e maldição. pela insubordinação inicial. Cortês decidiu que só pessoalmente poderia lidar
Não restam contudo dúvidas de que Montezuma subestimou a determinação com aquela ameaça inoportuna a toda a sua empresa, e por isso partiu com a
e a astúcia de Cortês. Tendo partido de Cholula, depois de uma caminhada de maior parte dos seus homens, para enfrentar Narváez, deixando um dos seus
dois dias, os Espanhóis avistaram a capital asteca e avançaram na sua direção, comandantes, Pedro de Alvarado, como responsável por Montezuma. Alvarado
apesar de terem sido avisados de que Montezuma lhes preparara uma ameaça e viu-se perante uma situação difícil e instável: sendo o cargo imperial eletivo, e
planeava destruí-los. À medida que se aproximavam, a paisagem majestosa não hereditário, quanto mais tempo o imperador passasse em cativeiro, maiores
deixava-os maravilhados. Bernal Díaz, um soldado do pequeno exército de Cor- as probabilidades de a sua autoridade ser desacreditada. Para que o golpe fosse
tês, escreveu mais tarde: bem-sucedido, os Espanhóis tinham de agir com determinação após a captura de
Montezuma, de modo a consolidar a sua posição. Mas a chegada de Narváez
Quando vimos todas aquelas cidades e aldeias construídas na água, e outras levara Cortês a ausentar-se num momento crucial, deixando o contingente espa-
grandes vilas em terra seca, e aquela passagem direita e nivelada, pelo meio da água, nhol enfraquecido em Tenochtitlán, à mercê dos sobrinhos agressivos de Monte-
que levava ao México, ficámos boquiabertos. Aquelas grandes cidades e aqueles zuma. Alvarado ficou alarmado ao ouvir rumores de uma conspiração tecida pela
cues [templos] e edifícios que se erguiam da água, todos feitos de terra, pareciam nobreza asteca para atacar os Espanhóis; decidiu-se, então, por um ataque pre-
uma visão encantada saída do Romance de Amadís. Na verdade, alguns dos nossos ventivo contra um grupo de sacerdotes e nobres índios reunido para uma cerimó-
soldados perguntaram se tudo aquilo não seria um sonho (*). nia religiosa. O massacre indignou os Astecas, que se rebelaram e montaram um
cerco ao complexo de Alvarado.
Entretanto, Cortês conseguira convencer a maior parte do exército de
(') Bernal Díaz, The Conquest of New Spain (Penguin Books: Harmondsworth, 1963),
p. 214. Narváez a apoiar a sua conquista do império asteca, em vez de entrar em guerra

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contra outros Espanhóis. Porém, ao regressar a Tenochtitlán, encontrou os Espa- aliados índios destruíram, um edifício após outro, a cidade que Cortês descreve-
nhóis cercados e os Astecas numa disposição beligerante. Também perdeu a ria como a mais bela do mundo. A 13 de agosto, quando já só um quarto de
paciência com o imperador cativo, suspeitando de que Montezuma contactara Tenochtitlán continuava de pé, o imperador Cuauhtemoc, que chefiara a heróica
secretamente Narváez para lhe oferecer ajuda contra Cortês, em troca da sua resistência dos Astecas, foi capturado e forçado a render-se. Ansioso por recom-
libertação. Mas, na verdade, Montezuma já perdera quase toda a sua autoridade, pensar os seus soldados exaustos como eles esperavam, Cortês deu ordens para
tendo sido na prática substituído no cargo de imperador por Cuitlahuac, um dos torturar Cuauhtemoc, na tentativa de descobrir o paradeiro do tesouro que os
seus irmãos. Morreu pouco depois do regresso de Cortês, alegadamente devido Espanhóis haviam perdido durante a noche triste.
a ferimentos causados por pedras atiradas pelo seu próprio povo, quando saiu Alcançada a vitória, Cortês entregou-se à tarefa de reconstruir Tenochtitlán
para tentar acalmar a multidão em fúria que cercara os edifícios dos Espanhóis. e de unificar os antigos domínios dos Astecas sob o poder espanhol. Foi extraor-
A morte de Montezuma fez ruir a estratégia de Cortês; as provisões escasse- dinariamente bem-sucedido no seu projeto, tornando-se uma figura venerada
avam e muitos espanhóis tinham morrido ou estavam feridos. O comandante pelas massas índias e conquistando a autoridade carismática de um soberano de
espanhol decidiu, assim, abandonar Tenochtitlán. A 30 de junho de 1520, os direito próprio. Carlos V recompensou-o com grandes propriedades, com o
Espanhóis travaram um combate para sair da cidade, sofrendo numerosas baixas direito de receber impostos de milhares de índios e com o título nobiliárquico de
e perdendo, na retirada, grande parte do ouro e das jóias até então reunidos. marquês do Vale de Oaxaca. Contudo, o tremendo poder de Cortês na Nova
A noche triste, aquela «noite triste» de derrota, assinalou o nadir do percurso dos Espanha, como ele chamava aos territórios que conquistara, suscitaria a inveja
Espanhóis no México: Cortês vira o seu golpe de Estado falhar desastrosamente, de rivais e a desconfiança da Coroa, sempre desejosa de refrear as ambições
e os homens que lhe restavam arrastaram-se de volta a Tlaxcala, para recuperar. políticas dos conquistadores naquelas terras ricas e distantes. Em 1527, Cortês
Tendo esgotado as artimanhas da guerra psicológica, a única opção de deixou o cargo de governador da Nova Espanha e uma audiência (um conselho
Cortês era um ataque em grande escala contra Tenochtitlán. Durante seis meses, judicial de administradores reais) assumiu a governação do reino. Cortês enten-
o líder espanhol planeou a sua campanha em Tlaxcala; chamou reforços das deu por bem regressar a Espanha em duas ocasiões, para se defender de detrato-
Caraíbas, recrutou milhares de soldados índios e mandou construir bergantins res em tribunal, e foi lá que morreu, em 1547. Depois de Cortês, sob a liderança
em módulos que podiam ser transportados pelas serras e reconstituídos para ser de Nuno de Guzmán, presidente da primeira audiência, o governo da Nova
usados no lago Texcoco. Os Espanhóis tinham também um aliado oculto, do qual Espanha degenerou numa exploração cruel dos nativos. Em 1530, Guzmán foi
provavelmente nem suspeitavam; tratava-se do vírus da varíola, que fora levado afastado e uma segunda audiência restaurou alguma ordem na colónia turbu-
de Cuba para o continente por um dos soldados de Narváez e que agora se dis- lenta. A autoridade ficou, por fim, firmemente estabelecida quando a Nova Espa-
seminava entre os índios, que não estavam imunes a esta doença do Velho nha se tornou um vice-reino em 1535, entregue a António de Mendoza, um dos
Mundo. O imperador asteca recém-eleito, Cuitlahuac, foi uma das primeiras mais notáveis administradores do império espanhol.
vítimas, e sucedeu-lhe Cuauhtemoc, um governante que já não alimentava ilu- A esplêndida vitória de Hemán Cortês acelerou o ritmo da expansão espa-
sões quanto às intenções dos Espanhóis no México e que, por isso, estava prepa- nhola na América e ergueu a fasquia da ambição individual; era como se os
rado para defender a sua cidade e o seu império, até ao último homem, contra os muitos capitães espanhóis nas índias competissem entre si para conquistar um
invasores europeus. segundo México. Nem o próprio Cortês perdeu tempo, e embarcou em novas
Em dezembro de 1520, Cortês marchou pelo vale do México e passou outros explorações, avançando para norte, ao longo da costa do Pacífico, até uma região
três meses a preparar-se para a guerra. Finalmente, em abril, a ofensiva espa- a que chamou Califórnia, o nome de uma mítica terra de mulheres guerreiras
nhola começou: Cortês cercou Tenochtitlán, usando os seus bergantins para descrita em Lãs sergas de Esplandián, um romance de cavalaria que na época
patrulhar o lago, de modo a impedir o abastecimento da cidade. Ainda assim, os fazia sucesso, e navegando também para sul, até aos reinos dos Maias e daí para
primeiros ataques diretos falharam e custaram muitas vidas, embora os Espa- as Honduras.
nhóis quase tivessem conseguido tomar o templo central. Tornou-se evidente que Em 1524, dois dos capitães de Cortês chefiaram expedições na América
combater num labirinto de ruas estreitas anulava a vantagem que os cavalos e Central. Cristóbal de Olid foi para as Honduras, mas tentou reclamar o território
canhões conferiam às forças espanholas, em número muito inferior. Cortês com» para si, enfurecendo Cortês ao fazer um acordo com o seu velho inimigo Veláz-
preendeu que, para conquistar Tenochtitlán, teria de a reduzir a ruínas; e assim, quez, o governador de Cuba. Cortês partiu no encalço de Olid, determinado a
durante cerca de quatro penosos meses de lutas intensas, os Espanhóis e os seus castigá-lo, e viu-se numa viagem terrível através de pântanos e florestas. Como

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mais tarde se soube, quando Cortês chegou às Honduras já Olid fora assassinado. de Núnez de Balboa, integrando a expedição que descobriu o oceano Pacífico em
A expedição revelar-se-ia inteiramente inútil - não foram encontrados novos 1513; anos mais tarde, juntara-se a Pedrarias Dávila e conspirara para a detenção
reinos de ouro e Cortês manchou a sua reputação ao ordenar a execução do de Balboa, pelo que recebera terras e índios das mãos do novo governador do
imperador asteca cativo, Cuauhtemoc, suspeito de ter incitado a revolta dos sol- Panamá. Ao contrário de Hernán Cortês, Pizarro não era um fidalgo: antigo
dados índios da expedição. A América Central seria uma deceção para os seus guardador de porcos, era filho bastardo, tendo permanecido inculto e, possivel-
primeiros conquistadores. O outro capitão de Cortês, Pedro de Alvarado, dedicou mente, analfabeto até ao fim dos seus dias. Almagro não lhe ficava à frente:
os dez anos seguintes à conquista da Guatemala e de El Salvador, sem encontrar abandonado em criança, partira de Castela para as índias fugido à justiça, e
nada que se comparasse às riquezas do império asteca. Descendo para a Nicará- conseguira subir a pulso até um cargo de suserania sobre os índios, no istmo -
gua, deparou-se com outras expedições espanholas enviadas do istmo pelo tais eram as oportunidades de sucesso nó traiçoeiro mundo da política pana-
ganancioso governador do Panamá, Pedrarias Dávila. mense sob o governo de Pedrarias Dávila.
Embora tivessem sido parceiros em iniciativas anteriores, a capitulación de
conquista que Pizarro trouxe de Espanha deixou Almagro desapontado; melin-
A Conquista do Peru dou-se por Pizarro ter conseguido o título de Governador e Capitão-Geral do
Peru, quando o que lhe prometiam era o cargo bem menos lucrativo de governa-
Desde que matara Balboa, Pedrarias Dávila nada encontrara de comparável dor da cidade de Tumbes. Outra potencial fonte de atrito era a confiança deposi-
aos frutos da conquista de Cortês, apesar das suas explorações brutais no Sul da tada por Pizarro nos seus meios-irmãos e nos seus amigos estremenhos, que
América Central, uma região em tempos conhecida pela designação otimista de formavam um grupo exclusivo no seio da força expedicionária. O melindre de
Castilla dei Oro - Castela do Ouro. Porém, a notícia do êxito alcançado pelos Almagro atenuou-se, mas as circunstâncias viriam, mais tarde, a reacendê-lo,
Espanhóis no México convencera-o de que devia concentrar-se na Nicarágua, transformando-o numa hostilidade aberta.
que parecia oferecer melhores perspetivas do que o Sul, onde até à data pouco Em dezembro de 1530, Pizarro zarpou do Panamá com a principal força
mais surgira do que relatos fantasiosos de uma terra de ouro chamada Birú ou expedicionária, composta por cerca de 180 homens e 27 cavalos; Almagro deve-
Peru. Ainda assim, dois veteranos das índias, Francisco Pizarro e Diego de ria segui-lo, depois de recrutar mais espanhóis. Chegando à costa do Equador,
Almagro, obtiveram permissão de Dávila para partirem em busca desses territó- Pizarro desembarcou a sua tropa e partiu para Tumbes, numa longa viagem cheia
rios. Uma primeira tentativa, efetuada em 1524, revelou-se desencorajadora, mas de contratempos, perturbada pela doença e por ataques de índios. Quando final-
uma segunda expedição, em 1527, chegou à cidade de Tumbes (no noroeste do mente chegaram a Tumbes, os Espanhóis descobriram que o grande império
Peru), e regressou com artigos de ouro e de prata, além de outras provas de que inça, que tencionavam conquistar, vivia tempos conturbados e estava dividido
se encontrara uma civilização evoluída. Fazendo-se valer destas descobertas, por uma guerra de sucessão dinástica originada pela morte do imperador Huayna
Pizarro viajou para Espanha em 1528 com a intenção de obter uma capitulación, Capac, outra vítima da varíola (a misteriosa doença descera do México e dizi-
ou licença, da Coroa, para conquistar e colonizar o Peru independentemente mava agora a população dos Andes centrais).
de Pedrarias Dávila. Quando regressou ao Panamá, Pizarro fez-se acompanhar A sucessão estava a ser disputada pelo filho de Huayna Capac, Huascar, e
de muitos conterrâneos da Extremadura, incluindo os seus quatro meios-irmãos. pelo seu meio-irmão, Atahualpa, que organizara uma revolta nas províncias do
O seu parceiro Almagro recrutara, entretanto, homens no Panamá, preparando a Norte, perto do Equador. Quando Pizarro chegou, Atahualpa alcançara a vitória
conquista, e um outro parceiro, o padre Hernando de Luque, encarregara-se de e avançava para sul, rumo à cidade sagrada de Cusco, o centro do mundo inça,
angariar capital para a iniciativa junto de investidores abastados. onde os seus homens tinham aprisionado Huascar. Pizarro soube que Atahualpa
Francisco Pizarro e Diego de Almagro eram figuras estabelecidas na colónia tinha o seu acampamento não longe de Cajamarca, uma cidade que fora abando-
do Panamá, possuindo propriedades rentáveis e direitos de tributação sobre os nada pela maioria dos seus habitantes durante a guerra civil.
índios, mas eram também conquistadores endurecidos com um extraordinário Com reforços acabados de chegar do Panamá, Pizarro decidiu procurar Ata-
apetite por aventura: quando partiram à conquista do Peru, tinham ambos mais hualpa e, à semelhança do que Cortês fizera com Montezuma, fez o Inça refém.
de 50 anos, idade avançada para a época. Pizarro chegara às índias em 1502 e» Como acontecera no México, os índios mantiveram os Espanhóis sob vigilância
participara em várias expedições de conquista. Partira de Espanola para o conti- no seu percurso para Cajamarca, mas, mais uma vez, por razões que não são cla-
nente com Diego de Ojeda, em 1509; depois, atravessara o istmo, sob o comando ras, o imperador nativo absteve-se de destruir uma força invasora composta por

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não mais de 60 cavaleiros e aproximadamente 100 soldados de infantaria. Em que a sua intenção era capturar Pizarro e matar ou escravizar os seus homens.
novembro de 1532, quase dois anos depois de ter partido do Panamá, Pizarro O que poupou os Espanhóis a sofrerem este destino foi a impiedade de apanha-
chegou a Cajamarca e instalou-se na cidade. Enviou depois uma delegação de rem o Inça de surpresa.
espanhóis encarregada de convidar Atahualpa para um encontro. Os emissários Com Atahualpa como refém, Pizarro tinha o vento de feição. O Inça conti-
espanhóis procuraram impressionar o Inça exibindo a sua cavalaria, estratagema nuava sem perceber o objetivo final dos Espanhóis: não lhe parecia possível que
que pelos vistos foi bem-sucedido, visto que o cavalo era algo completamente quisessem de facto governar o seu império; o mais provável era que fossem
novo para os índios. Atahualpa concordou ir até Cajamarca no dia seguinte, mas bandidos, pelo que poderiam ser comprados com ouro e depois mortos, quando
só apareceria ao final da tarde, tendo sido informado pelos seus espiões de que tentassem escapar. Assim, Atahualpa ordenou aos seus generais que não atacas-
os Espanhóis tiravam os arreios aos cavalos à noite, pelo que ficavam então mais sem os Espanhóis, e ofereceu aos seus captores um resgate avultado em ouro
vulneráveis ao ataque. puro. Pizarro aceitou-o avidamente, com a promessa solene de libertar Atahualpa
Ao cair da noite de sábado, 16 de novembro de 1532, Atahualpa entrou na logo que o resgate fosse entregue. Atahualpa encarregou-se também de consoli-
praça deserta de Cajamarca numa liteira magnifica transportada por 80 nobres, dar a sua posição política: ordenou aos soldados que ocupavam Cusco que exe-
escoltado por 6000 homens; numa planície às portas da cidade, milhares de guer- cutassem o seu irmão Huascar, certificando-se assim de que o rival vencido não
reiros em ordem de batalha aguardavam ordens. Pizarro, por sua vez, tinha os retirava proveito do seu cativeiro. Durante oito meses, os Espanhóis esperaram,
seus cerca de 100 homens escondidos nos edifícios vazios em redor da praça, com Atahualpa, que o resgate chegasse de Cusco e de outros lugares. Fora
onde esperavam havia horas, apreensivos e aterrorizados. Atahualpa ficou per- enviado um pedido de reforços ao Panamá, mas a espera implicava riscos óbvios:
plexo com a ausência de espanhóis, julgando que se tratava de um sinal de medo os Espanhóis eram uma presa fácil para os exércitos vitoriosos de Atahualpa. Em
perante a força do seu exército. Mas já o padre Vicente de Valverde surgia na Cusco encontravam-se 30 000 soldados sob o comando de Quisquis; em Jauja, a
praça, acompanhado apenas por um intérprete nativo, e a recitar o Requerimento, meio caminho entre Cusco e Cajamarca, estava estacionado um exército de
o pedido formal para que os pagãos se submetessem à autoridade do papa e ao 35 000 homens, chefiado por Chalcuchima; e no norte estava outro poderoso
rei de Espanha e que permitissem o ensino da religião cristã. A rejeição do exército, comandado por Ruminavi, a guardar Quito - qualquer destes generais
Requerimento era considerada razão suficiente para declarar uma «guerra justa» poderia decidir atacar o pequeno contingente espanhol que fizera o imperador
em nome da Coroa espanhola. Atahualpa, que nunca antes vira um livro, pegou refém. Dadas as circunstâncias, os Espanhóis dependiam de artimanhas. Her-
no breviário de Valverde e examinou-o com curiosidade, antes de o atirar ao nando Pizarro, que regressava através de Jauja de uma excursão em busca de
chão. Valverde voltou-se, então, e gritou aos espanhóis escondidos que o Inça ouro, persuadiu Chalcuchima a visitar o seu imperador cativo; em Cajamarca,
repudiara a palavra de Deus. A um sinal combinado, os homens de Pizarro lan- este general inça foi feito prisioneiro, o que constituiu mais um golpe contra a
çaram o ataque: pistolas e canhões abriram fogo sobre a praça repleta de índios, estrutura de poder imperial.
a cavalaria emergiu dos edifícios e Pizarro tentou arrancar Atahualpa da sua Outra desvantagem para Atahualpa foi a chegada de Diego de Almagro em
liteira - algo que só conseguiu fazer depois de os nobres inças terem sido derru- abril de 1533, à frente de uma companhia de 150 conquistadores, todos eles
bados pelos espanhóis, quando resistiam ferozmente ao ataque contra o seu ansiando pela pilhagem. Vendo-se ainda prisioneiro, depois de todo o ouro que
imperador. Os cavaleiros e os soldados espanhóis expulsaram da cidade os índios prometera ter sido reunido e derretido, Atahualpa ter-se-á apercebido de que só
em pânico e concentraram-se depois no exército inça, que esperava na planície, a força militar poderia libertá-lo. Com efeito, os Espanhóis perguntavam-se o que
à saída de Cajamarca; perderam a vida entre 6000 e 7000 índios, e muitos mais fazer com o imperador, agora que tinham recebido o seu resgate. Pizarro ouviu
ficaram feridos. rumores de que o exército de Ruminavi avançava a partir de Quito, e enviou um
Francisco Pizarro conseguira um extraordinário coup de main: numa única grupo de cavaleiros, chefiado por Hernando de Soto, para verificar a informação.
noite, conquistara todo um império, visto que o poder do imperador inça, cuja Porém, ainda antes de De Soto regressar já Almagro e os seus apoiantes pressio-
autoridade era tida como divina, era absoluto e inquestionável. Tal como aconte- navam Pizarro para matar Atahualpa sem mais demora. Pizarro acabou por
cera com Montezuma, Atahualpa subestimará os Espanhóis; fora-lhe impossível ceder, pois receava que o Inça conseguisse fugir ou que causasse uma revolta
conceber que uma força tão diminuta se atrevesse a atacar um império que el% geral se os acompanhasse na longa viagem para Cusco. Assim, o indefeso
próprio só conquistara depois de uma guerra civil sangrenta. Movido pela curio- Atahualpa foi executado por estrangulamento. Tratou-se de um ato cruel e ilegal,
sidade, permitira que os invasores chegassem a Cajamarca, e admitiu mais tarde lamentado por muitos Espanhóis estabelecidos no Peru, que entendiam que o

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imperador devia ter sido enviado para o exílio; o ato foi igualmente censurado origem de novas guerras sangrentas e adiariam ainda por cerca de três décadas a
pela Coroa, apostada em preservar o direito moral e religioso da Espanha a pacificação do Peru.
governar no Novo Mundo. A conquista das províncias a norte de Quito foi levada a cabo por um dos
Com Atahualpa fora do caminho, os Espanhóis prepararam-se para avançar lugares-tenentes de Pizarro, Sebastián de Benalcázar. Esta expedição teve, no
sobre Cusco, o centro do império. As suas forças eram ainda muito reduzidas, entanto, de competir com uma invasão rival chefiada por um dos conquistadores
mas as circunstâncias tinham-lhes dado a oportunidade de dividir e reinar. do México, Pedro de Alvarado, que, sem aviso, avançara da Guatemala em busca
A guerra de sucessão exacerbara as divisões políticas e tribais no império, e de novas riquezas para saquear. Os dois exércitos de conquistadores estive-
Pizarro pôde virar um lado contra o outro. O assassínio de Atahualpa foi visto ram prestes a confrontar-se, mas Alvarado acabou por aceitar ser pago em ouro
com bons olhos pela família real inça chegada a Huascar, que começou a cola- por Diego de Almagro, que chegara com reforços para se juntar a Benalcázar.
borar com os espanhóis, na esperança de recuperar o trono perdido para o usur- A campanha que se seguiu foi particularmente difícil e sangrenta; ainda assim,
pador de Quito. Pizarro aproveitou, naturalmente, a oportunidade para se apre- no final de 1534, Benalcázar e Almagro tinham arrancado as províncias de Quito
sentar às tribos leais a Huascar como o restaurador da linhagem inça legítima. aos generais sobreviventes de Atahualpa, e o poder militar do império inça foi
Fez com que um dos irmãos de Huascar, Tupac Huallpa, fosse proclamado praticamente anulado.
imperador, para que quando os Espanhóis chegassem a Cusco pudessem ser Entretanto, Francisco Pizarro, que agora se intitulava governador do Peru,
vistos como os libertadores que expulsariam o exército ocupante de Quito, o qual andara ocupado a consolidar a presença espanhola nas regiões centrais. Foi esta-
era comandado por Quisquis, um dos generais de Atahualpa. belecido um município espanhol na própria Cusco, mas a cidade ficava dema-
A viagem de Cajamarca para Cusco não foi fácil: pela primeira vez desde a siado para interior e demasiado alto nos Andes para servir de capital para os
chegada ao Peru os Espanhóis tiveram de enfrentar exércitos índios numa bata- Espanhóis. Em vez disso, Pizarro decidiu erguer uma nova capital perto da costa,
lha. A estratégia política de Pizarro ruiu quando o imperador-fantoche Tupac junto à foz do rio Rimac. A cidade foi oficialmente fundada a 6 de janeiro de
Huallpa adoeceu e morreu. Suspeitando de que Chalcuchima, o general de Quito 1535 e recebeu o nome de «Cidade dos Reis», para comemorar o dia de Reis,
feito prisioneiro, envenenara Tupac Huallpa, Pizarro acusou-o de traição e man- mas não tardou a ser conhecida como Lima, corruptela do termo Rimac, o nome
dou queimá-lo vivo. Outro irmão de Huascar, Manco, de 20 anos, foi escolhido do rio que a banhava. Pizarro fizera uma boa escolha, pois no conflito em que
para ser o novo governante-fantoche. Por fim, depois de uma série de batalhas viria a enfrentar o seu parceiro, Almagro, Lima dar-lhe-ia a vantagem de ser
travadas pelo caminho, os Espanhóis infligiram uma derrota decisiva ao exército abastecido diretamente por mar, pelo Panamá.
de Quisquis, numa batalha sangrenta travada nas montanhas sobre Cusco. A 15 O pomo da discórdia entre Pizarro e Almagro seria a cidade de Cusco. No iní-
de novembro, Pizarro conduziu os seus homens até à cidade real dos Inças, onde cio de 1535, os dois parceiros haviam recebido uma ordem de Carlos V que atri-
os conquistadores espanhóis puderam saciar o seu apetite por ouro, saqueando buía a Pizarro a jurisdição sobre os territórios do Norte do império inça, enquanto
os abundantes tesouros da metrópole. Almagro governaria os do Sul. O decreto real não explicitava, todavia, quem devia
Embora as regiões centrais do império inça estivessem agora nas mãos de ficar com o apetecido prémio de Cusco, situado bem no centro do império. A incer-
Pizarro, a conquista não estava, de modo algum, completa. Restavam as provín- teza gerou tensão entre os apoiantes de Pizarro e os de Almagro dentro da própria
cias nortenhas de Quito (atual Equador), onde se encontrava o exército de Rumi- cidade. A disputa foi temporariamente amenizada por Pizarro, que persuadiu
fiavi e para onde recuavam os soldados vencidos de Quisquis. Para sul, os terri- Almagro a empreender uma expedição de conquista por terras que hoje pertencem
tórios que hoje constituem a Bolívia e o Chile tinham ainda de ser penetrados. à Bolívia e ao Chile; estas regiões encontravam-se inequivocamente sob a jurisdi-
Mais importante ainda, havia questões a clarificar antes que o poder espanhol ção de Almagro e prometiam novas riquezas. Almagro partiu, então, para uma
pudesse ficar devidamente estabelecido no Peru. Em primeiro lugar, Manco Inça campanha que duraria dois anos e redundaria num completo desastre. Apesar da
continuava convencido de que Pizarro era um aventureiro, não um conquistador; tremenda crueldade infligida aos índios, e das terríveis privações sofridas na tra-
alimentava a ambição de governar um império restaurado, depois de os Espa- vessia dos Andes gelados e das extensões tórridas do deserto do Atacama, a expe-
nhóis serem induzidos a partir. Segundo, Almagro e os seus homens melindra- dição de Almagro pouco encontrou que tivesse valor. Ao regressarem, de mãos
vam-se cada vez mais do domínio dos irmãos Pizarro, pois não tinham recebido» vazias e desesperados, mas unidos por uma solidariedade forjada durante este
um quinhão do resgate de ouro de Atahualpa e o seu apetite pelas recompensas episódio brutal, os «homens do Chile» de Almagro eram agora inimigos declara-
da conquista não fora totalmente saciado. Estes assuntos por resolver estariam na dos dos irmãos Pizarro, e iriam cobiçar Cusco mais intensamente do que nunca.

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Na ausência de Almagro e dos seus homens, Gonzalo e Juan Pizarro tinham nome da Coroa. A morte de Atahualpa causara bastante perturbação, mas a exe-
ficado como responsáveis por Cusco, mas, na verdade, a sua missão revelara-se cução de Almagro enfurecera a corte imperial: quando Hernando Pizarro viajou
um fiasco que poria em risco toda a conquista espanhola do império inça. Pou- para Espanha em 1539, levando presentes de ouro para o imperador, foi detido e
cas restrições haviam sido impostas à ganância dos caçadores de prémios que levado para a prisão, de onde só sairia 22 anos mais tarde. Para Francisco, as
acorreram aos magotes à cidade sagrada. Pelos ultrajes e maus-tratos infligidos repercussões do assassínio de Almagro seriam fatais: a 26 de junho de 1541, 20
aos índios, tornou-se óbvio para o governante-fantoche, Manco Inça, que os alrriagristas assaltaram o seu palácio em Lima e mataram-no à machadada.
Espanhóis rapaces não tinham intenções de abandonar o Peru. Bastante censu- Depois, os assassinos proclamaram o jovem Diego de Almagro governador do
rado pelos anciãos inças pela sua subserviência, Manco decidiu no outono de Peru.
1535 deixar de colaborar com os estrangeiros e apelar a uma revolta que os Como acontecera anteriormente, o Peru espanhol resvalou para a guerra
expulsasse dos seus domínios. Na primavera de 1536, Manco reunira um exér- civil, mas desta vez a Coroa interveio diretamente para repor a ordem. Um admi-
cito formidável e montara cerco a Cusco, onde se encontravam apenas 190 espa- nistrador real, Cristóbal Vaca de Castro, foi enviado para o Peru e, com um
nhóis - embora fossem agora chefiados pelo competente Hernando Pizarro, que exército de apoiantes de Pizarro, marchou contra os almagristas, derrotando-os
assumira o controlo e afastara os seus irresponsáveis irmãos mais novos. Outro na batalha de Chupas, a 16 de setembro de 1542. Mas a agitação não tinha ainda
exército inça cercara Lima e, nessa cidade, Francisco Pizarro, julgando tudo chegado ao fim: dois anos mais tarde, os colonos espanhóis no Peru revoltaram-
perdido, apelara à ajuda dos espanhóis do Panamá. Com provisões e reforços -se contra o vice-rei, Blasco Núnez Vela, por causa dos esforços desastrados
vindos de todas as índias espanholas, o cerco de Lima não tardou a ser quebrado, deste para implementar um novo código real que regulasse as relações entre
mas Cusco permaneceu em perigo durante quase um ano. A cidade foi finalmente Espanhóis e índios. Foi Gonzalo Pizarro quem chefiou a rebelião, tornando-se o
libertada quando os «homens do Chile» de Almagro regressaram da sua expedi- líder do Peru depois de Núnez Vela morrer em combate, em 1546.
ção, em abril de 1537, e obrigaram Manco Inça a recuar. Almagro entrou, então, Com a morte do vice-rei, os irmãos Pizarro sobreviventes, e os seus muitos
na cidade exausta, e prendeu os irmãos Pizarro, pondo-se em seguida a caminho seguidores entre os colonos espanhóis, viram uma oportunidade para declarar a
de Lima, para defrontar Francisco. Os antigos parceiros não conseguiram resol- sua independência da Espanha, levando Gonzalo a proclamar-se rei do Peru.
ver as suas diferenças, e o Peru, que caíra nas mãos dos Espanhóis devido a um Para impedir que tal acontecesse, em 1547 chegou ao país um exército real,
conflito mortífero entre os Inças, foi assolado por outra guerra civil - desta vez comandado por Pedro de Ia Gasca. La Gasca suspendeu o novo código para
entre os conquistadores espanhóis, incapazes de chegar a acordo quanto ao saque apaziguar os colonos, e depois, a 9 de abril de 1548, enfrentou e venceu os pizar-
da vitória. ristas na batalha de Sacsahuana, nos arredores de Cusco. Com a execução de
A guerra não durou muito, embora o seu legado trágico tenha sido extrema- Gonzalo por traição, os Pizarros perderam, finalmente, o poder; a autoridade real
mente prejudicial para os interesses espanhóis no Peru. Após uma série de esca- foi vigorosamente afirmada, sem rivais diretos, por sucessivos vice-reis compe-
ramuças, Hemando Pizarro conseguiu alcançar Cusco, onde infligiu uma derrota tentes, ao longo das décadas de 50 e 60, mais de 20 anos depois de Francisco
pesada aos homens de Almagro na batalha de Lãs Salinas, a 26 de abril de 1538. Pizarro e o seu grupo de guerreiros terem irrompido pelo império inça.
Diego de Almagro foi feito prisioneiro, julgado e, para horror de muitos espa- Persistia, contudo, um obstáculo considerável à pacificação do Peru: a resis-
nhóis, condenado à morte por estrangulamento. Os irmãos Pizarro eram agora tência índia iniciada por Manco Inça, que liderara motins importantes em 1536-7
senhores do Peru, mas o seu poder sobre o império conquistado era precário. Em e em 1538-9. Nos meandros das florestas quase impenetráveis que cobriam as
primeiro lugar, tinham de lidar com uma facão numerosa de almagristas seden- montanhas em redor do vale de Vilcabamba, a meio caminho entre Cusco e
tos de vingança, agora chefiados pelo filho mestiço do seu líder assassinado. Lima, Manco fundara um Estado independente neoinca, onde a religião e as leis
Outra fonte de problemas era o rebelde Manco Inça, que continuava em liber- ancestrais foram restauradas; aí estabelecido, Manco continuou a lançar ataques
dade e a instigar revoltas de índios que tinham de ser reprimidas com derrama- e a incitar revoltas contra os Espanhóis até 1545, altura em que foi atraiçoado e
mento de sangue, o que atrasava a pacificação do país. Para agravar o ambiente assassinado por fugitivos almagristas a quem dera refúgio dos irmãos Pizarro.
tumultuoso, vagas sucessivas de marginais espanhóis iam chegando ao Peru, em O seu sucessor, Titu Cusi, teve o cuidado de manter relações, embora por vezes
busca de ouro inça, homens que depressa ficavam descontentes e à deriv» bastante tensas, com os Espanhóis - a ponto de aceitar o batismo em 1568 e per-
quando viam as suas expectativas frustradas. Por fim, pesava sobre os Pizarros mitir que monges augustinianos entrassem em Vilcabamba para pregar o cristia-
o desagrado do monarca espanhol pela forma como o Peru fora conquistado em nismo aos seus súbditos. Mas esta tentativa de criar um modus vivendi estava

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condenada ao fracasso: os Espanhóis não podiam aceitar a existência de um 30 e de 40 do século xvi, o ritmo da exploração e da conquista voltou a intensi-
pequeno Estado neoinca no seio dos seus domínios. Foi o vice-rei Francisco de ficar-se. Inicialmente, o interesse centrava-se nas regiões a norte do império inça
Toledo que compreendeu que a Espanha, se quisesse estabelecer a sua autoridade - nomeadamente, os atuais Equador, Colômbia e Venezuela. Um dos capitães de
sobre os índios dos Andes centrais, teria de desmantelar de vez o poder inça. Pizarro, Sebastián de Benalcázar, depois da sua conquista das províncias de
Ao mesmo tempo, os Inças abandonaram a sua política de coexistência pacífica Quito partiu numa excursão pelo território dos índios Chibcha, onde fundou as
quando Titu Cusi morreu em 1571, vitimado por uma estranha doença. Os índios colónias espanholas de Popayán (1536) e Cali (1537). Ao aproximar-se de
convenceram-se de que o seu líder fora envenenado por um membro do pequeno Bogotá, a capital do mais poderoso dos reinos chibcha, cruzou-se com duas
círculo de espanhóis que viviam na corte inça e, como retaliação, o novo inça, outras expedições espanholas, que haviam penetrado o interior de Tierra Firme
Tupac Amam, repudiou o cristianismo e mandou torturar até à morte um missio- a partir de pontos diferentes da costa caribenha - uma era chefiada por Gonzalo
nário espanhol. Os subsequentes esforços das autoridades espanholas com vista Jiménez de Quesada, que já conquistara o reino chibcha de Tunja; a outra era
a restabelecer as relações diplomáticas foram suspensos quando um emissário liderada por Nikolaus Federmann, um súbdito alemão de Carlos V. Levados às
espanhol foi assassinado em Vilcabamba. Estas afrontas deram ao vice-rei savanas dos planaltos de Bogotá por rumores de ouro e esmeraldas - a expedição
Toledo o pretexto para ordenar a destruição no Estado neoinca; em 1572, o de Pedro de Herédia ao oeste da Colômbia, em 1533, encontrara depósitos de
enclave na floresta foi destruído por forças espanholas e o último líder inça livre, ouro -, os três conquistadores rivais decidiram evitar um confronto armado e
Tupac Amam, foi executado. A memória de Vilcabamba sobreviveu, no entanto, aceitar a mediação da Coroa. Benalcázar acabou por ser nomeado governador
na reprimida cultura popular índia, e Tupac Amaru tornou-se um poderoso sím- daquele novo território fronteiriço e os outros dois comandantes retiraram-se.
bolo de independência - de tal modo que, nos anos 80 do século xvm, um chefe Mas persistiam os rumores - rumores em que Jiménez de Quesada, entre
índio assumiu o nome de Tupac Amaru e dirigiu uma revolta de grande escala outros, acreditava - de que do outro lado dos Andes, no misterioso interior do
contra os brancos do Peru. continente, existia uma terra tão rica em ouro que o seu rei se cobria do precioso
Contudo, a resistência não foi a única resposta inça à conquista espanhola. pó uma vez por ano para se banhar num lago sagrado. Apesar de nunca se ter
O próprio rebelde Manco começou a sua vida política como colaboracionista, tornado realidade, a lenda do Homem de Ouro, El Dorado, aguçou o apetite dos
uma estratégia que o seu meio-irmão, Paullu, continuou depois de Manco ter aventureiros espanhóis e, juntamente com outras histórias de riquezas fabulosas,
optado pela rebelião. Convencido de que a presença dos Espanhóis era um facto impulsionou feitos audazes de exploração, que, se de pouco mais serviram, reve-
consumado, Paullu rejeitou as exortações de Manco para que se juntasse àquilo laram pelo menos aos Espanhóis algumas regiões particularmente difíceis das
que lhe parecia ser uma luta fútil, e decidiu, em vez disso, tornar-se leal à Coroa Américas. Por exemplo, em 1541, Gonzalo Pizarro, então governador de Quito,
espanhola. Tendo em conta as abruptas transições de poder no rescaldo da con- atravessou os Andes para leste, à procura de El Dorado, e deambulou às cegas
quista, Paullu revelou-se extraordinariamente hábil na arte da sobrevivência pelas florestas tropicais, contornando os afluentes do rio Amazonas. Desespe-
política, servindo de boa vontade como inca-fantoche quaisquer espanhóis que rado, enviou um grupo de homens chefiado por Francisco de Orellana em busca
passassem pelo poder no Peru, de Francisco Pizarro aos almagristas, passando de mantimentos. Pizarro acabou por regressar a Quito, mas Orellana perdeu-se e
pelos primeiros vice-reis. Grande parte da família real e da nobreza inça seguiu percorreu toda a extensão do rio Amazonas - uma distância de cerca de 3200
o exemplo de Paullu, aceitando a soberania do rei de Espanha e recebendo pen- quilómetros (não corresponde à extensão do rio) - e depois navegou até à ilha de
sões e propriedades da Coroa como recompensa pela sua lealdade. Espanola. O grande sistema de rios recebeu um nome europeu porque Orellana
foi alvo de ataques de mulheres guerreiras, a quem chamou Amazonas.
No México e nas Caraíbas, os Espanhóis deixaram-se seduzir por quimeras
Outras Explorações e Conquistas de riqueza e glória igualmente infrutíferas, o que motivou esforços heróicos
igualmente espantosos. O equivalente norte-americano de El Dorado era a lenda
A conquista do Peru foi um processo longo, sangrento e perigoso, no qual das Sete Cidades de Cíbola, cujos edifícios se dizia estarem cobertos de ouro e
muitos dos principais conquistadores perderam a vida. No entanto, assim como turquesas. Esta lenda teve a sua origem em relatos sobre outro grande império
a conquista do México inspirara a continuação da exploração para o interior d* índio situado no extremo noroeste do México; estes relatos tinham sido trazidos
continente americano, também a notícia do resgate de Atahualpa incitou alguns por Alvar Núnez Cabeza de Vaca, um dos poucos sobreviventes de uma expedi-
capitães espanhóis a partirem em busca de outros reinos de ouro. Nas décadas de ção frustrada realizada por 400 homens, que haviam partido sob o comando de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA DESCOBERTA E CONQUISTA

Pánfilo de Narváez para a conquista da Florida, em 1528, e que fora assolada desertos da América do Norte, foram, em larga medida, evitadas pelos colonos
pela doença e por ataques índios. Durante oito anos, Cabeza de Vaca viajara por espanhóis até à década de 70 do século xix.
mar, pântanos e desertos desde a Florida até ao golfo da Califórnia, atravessando As tentativas de colonizar a terra fértil em redor dos sistemas fluviais do
as terras de muitas tribos índias selvagens, até que, por fim, chegara à Cidade do Paraguai e do Paraná foram infrutíferas até finais do século xvi. Nos primeiros
México em 1536. Passados quatro anos, decidiu tentar novamente a sua sorte e anos, o grande estuário do rio da Prata só despertou interesse na medida em que
embarcou noutra viagem épica de exploração, que o levou através das florestas parecia prometer uma passagem por sudoeste para a Ásia. Juan Díaz de Solís
tropicais do interior brasileiro e, por fim, ao Paraguai, onde durante algum tempo iniciou as suas explorações em 1516, mas foi vítima de canibais. Fernão de
exerceu o cargo de governador de Asunción. Magalhães fez uma nova tentativa, em 1520, antes de rumar a sul e encontrar o
A demanda das Sete Cidades de Cíboia foi empreendida em 1540, quando o estreito que hoje tem o seu nome. Foi o explorador veneziano Sebastian Cabot,
vice-rei espanhol no México enviou uma expedição de 300 espanhóis e várias então ao serviço da Espanha, que chamou ao estuário Rio de Ia Plata, enganando-
centenas de índios, chefiada por Francisco Vasquez de Coronado, a territórios -se ao pensar que encontraria prata nas suas margens. Só em 1535 se fez um
que hoje constituem o Novo México e o Arizona. Não encontrando aí nada que esforço para colonizar a região junto ao rio da Prata; uma expedição espanhola
lhe despertasse interesse, Coronado avançou para leste, descobriu o Grand encabeçada por Pedro de Mendoza fundou a cidade de Santa Maria de Buenos
Canyon, e depois atravessou o rio Grande para o Texas. Depois de ouvir histórias Aires, que viria, no entanto, a ser destruída por índios em 1541. Os homens de
contadas pelos índios a respeito de Quivira, outro reino dourado, embarcou numa Mendoza subiram depois o rio até ao Paraguai, onde fundaram Asunción, a pri-
segunda demanda, que o levou para norte, até Oklahoma e ao Kansas. Regressou meira colónia espanhola permanente a leste dos Andes, que permaneceria a única
ao México sem ter encontrado o que procurava, mas estendeu os domínios espa- ainda durante mais duas décadas.
nhóis por territórios imensos no norte das Américas. Com efeito, em meados da década de 40 o ritmo da conquista espanhola
Outro dos grandes exploradores da América do Norte foi Hernando de Soto, começara a abrandar: não só as histórias de El Dorado e das Sete Cidades de
que se distinguira junto de Pizarro na ocupação do Peru. Esperando fazer a sua Cíboia se iam revelando miragens, como também várias campanhas, iniciadas
própria conquista, liderou em 1539 uma numerosa expedição de cerca de 600 com as habituais grandes esperanças entre 1527 e 1540, se tinham transformado
homens à Florida - a terceira maior tentativa dos Espanhóis, em 25 anos, de em lutas cruéis e sangrentas contra os povos índios que se recusavam a ser «paci-
explorar aquele território. Mais uma vez, De Soto nada encontrou que valesse a ficados» pela Espanha. O balanço da conquista começava a ser claramente des-
pena conquistar; passou pela Geórgia, pelo Alabama e pela Louisiana, desco- favorável para os Espanhóis: as perdas humanas e materiais ultrapassavam em
brindo pelo caminho o Mississipi, mas morreu de febre em 1541. Todas estas muito as compensações na forma de tesouros ou de mão de obra nativa.
grandes extensões de terra no norte do continente se revelaram estéreis para os A conquista da península do lucatão foi uma iniciativa especialmente parca
Espanhóis - não apresentavam fontes óbvias de ouro, e os nómadas belicosos em recompensas. Foi iniciada por Francisco de Montejo em 1527, mas nos anos
que as habitavam eram demasiado rebeldes para ser utilizados no trabalho agrí- 40 do século xvi os índios maias ainda não tinham sido pacificados; em 1542
cola. Estas regiões continuariam a ser zonas fronteiriças perigosas, formalmente organizaram uma insurreição em massa, que teve de ser reprimida com uma
integradas no império espanhol mas esparsamente povoadas até meados do violência assombrosa. Apesar dos indícios de civilizações luxuriantes no pas-
século xrx, quando foram ocupadas por colonos anglo-saxónicos vindos do lito- sado, a península do lucatão reservava escassas riquezas aos seus conquistadores
ral atlântico. espanhóis e permaneceria uma área marginal da Nova Espanha. A conquista do
Também na América do Sul foram negligenciadas vastas extensões. Toda a Oeste e do Noroeste do México foi um processo longo, que decorreu de 1529 e
região a leste da cordilheira dos Andes - o grosso do continente, na verdade - foi 1575. Numa campanha notoriamente feroz, Nuno de Guzmán formou o reino da
explorada e colonizada muito lentamente, porque, ao contrário do Peru, as difi- Nova Galiza (composto pelos estados de Michoacán, Jalisco, Nayarit e Sinaloa
culdades criadas pelo clima e pela geografia não eram compensadas por recursos do México atual), mas pouco ouro se encontrou e em 1541 os índios de Jalisco
económicos apelativos para os europeus do século xvi. O imenso interior do sublevaram-se, numa revolta sangrenta que ficou conhecida como a Guerra de
Brasil, região de florestas tropicais e savanas batidas pelo sol, tecnicamente atri- Mixtón e em que os Espanhóis quase foram derrotados. A fronteira noroeste do
buídas a Espanha pelo Tratado de Tordesilhas mas mais tarde ocupadas pelo» domínio espanhol avançou um pouco mais com Francisco de Ibarra, que criou
Portugueses, permaneceu território virgem até bem dentro do século xx. As pam- Nueva Vizcaya em campanhas brutais levadas a cabo entre 1562 e 1575. Na sua
pas da Argentina e os desertos gelados da Patagónia, tal como as pradarias e os maioria, estes territórios continuaram a ser terras fronteiriças pouco povoadas,

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA DESCOBERTA E CONQUISTA

constantemente atacadas por tribos índias vindas do Norte bárbaro, ê que acaba- tureiros, que enfrentavam dois grandes impérios e várias tribos, em circunstân-
ram por ser convertidas em ranchos de grande dimensão. cias difíceis, perigosas e muitas vezes imprevisíveis. De que vantagens especiais
Na América do Sul, a conquista do Chile seguiu um padrão semelhante ao dispunham os Espanhóis?
da península do lucatão e do Noroeste mexicano. Em janeiro de 1540, Pedro de Em primeiro lugar, possuíam uma tecnologia militar superior: tinham arma-
Valdivia partiu de Cusco, com a permissão de Francisco Pizarro, para conquistar duras, armas de fogo e navios. Porém, muitas vezes os conquistadores estavam
e colonizar os territórios no extremo meridional do império inça, que Diego de mal equipados - Cortês tinha 13 espingardas e cerca de 15 canhões quando
Almagro abandonara após a sua desastrosa campanha chilena de 1535. A expe- chegou ao México - e o terreno difícil anulava frequentemente essa superiori-
dição de Valdivia precisou de um ano inteiro para atravessar os Andes e atraves- dade técnica. Um instrumento mais versátil era o cavalo, que dava aos europeus
sar o deserto do Atacama. A 12 de fevereiro de 1541, Valdivia fundou a cidade vantagens físicas e táticas em combate. Mas Cortês tinha uns meros 16 cavalos,
de Santiago, que todavia seria destruída seis meses mais tarde por índios arauca- e Pizarro 27; em nenhum dos casos poderia a cavalaria constituir um fator deci-
nos, um dos povos mais belicosos que os Espanhóis defrontaram; durante mais sivo para a derrota dos governantes nativos, capazes de reunir exércitos de
de dois anos, Valdivia resistiu em Cerro Santa Lúcia, numa ilha do rio Mapocho, milhares de homens.
até chegarem reforços vindos do Peru. Depois de Santiago ser fundada pela Uma vantagem mais relevante residia na política e na estratégia militar.
segunda vez, os Espanhóis avançaram para sul, estabelecendo as cidades de Os Espanhóis não eram invencíveis: perderam várias batalhas e muitos povos
Concepción em 1550, Valdivia em 1552, e outras colónias; viram-se incapazes índios revelaram-se impossíveis de derrotar - pelo menos durante longos perío-
de transpor o rio Bío-bío, que se tornou a fronteira com os Araucanos, às mãos dos. No entanto, os conquistadores exploravam astutamente as rivalidades nati-
de quem o próprio Pedro de Valdivia morreu em 1553. Os Espanhóis desenvol- vas e os conflitos intestinos de modo a granjear aliados e a enfraquecer os pode-
veram um profundo respeito pela capacidade marcial dos índios araucanos, res estabelecidos. E aqui, mais uma vez, o sucesso dos Espanhóis foi facilitado
talento que ganhou fama e foi enaltecido na mais bem conseguida epopeia espa- pelos vírus do Velho Mundo, que alastraram pela América com efeitos devasta-
nhola do Renascimento, La Araucária, de Alonso de Ercilla, um veterano da dores - grandes epidemias esgotaram os recursos nativos e causaram uma pro-
campanha do Chile. funda desmoralização. As consequências para os europeus não foram, de modo
Do Chile, os Espanhóis avançaram para o território que hoje constitui a algum, tão graves - talvez nem a sífilis tenha chegado à Europa através das
Argentina, fundando na década de 60 do século xvi, nas faldas orientais dos índias, como em tempos se julgou.
Andes, as cidades de Mendoza e de San Juan, que se tornaram extensões da As perdas demográficas agravaram o desequilíbrio psicológico entre índios
colónia chilena. Outras cidades do interior argentino, como Tucumán e Córdoba, e Espanhóis. Embora, talvez, fascinados pela descoberta de um Novo Mundo, os
foram fundadas nos anos 60 e 70 do mesmo século por expedições enviadas do Espanhóis sabiam exatamente o que queriam dele, designadamente ouro e poder.
Peru. Estas colónias do outro lado dos Andes, assim como as fundadas no centro Além disso, ao tentarem adquirir estes bens, os conquistadores acreditavam estar
do Chile, continuaram a ser postos avançados do império, todos eles dependentes a cumprir os desígnios dos Céus. Os índios americanos, pelo contrário, não
da economia peruana. Com efeito, durante a maior parte da era colonial, aquilo sabiam o que esperar dos intrusos. Quando os líderes astecas e inças consegui-
que é a Argentina moderna não existia como entidade distinta. A cidade de Bue- ram organizar a sua resistência, era já demasiado tarde - a estrutura de autori-
nos Aires, abandonada pelos Espanhóis em 1541, foi de novo fundada, desta vez dade imperial fora minada e tinham surgido divisões irreparáveis entre os povos
em definitivo, no ano de 1580 por uma expedição do Paraguai. Até finais do nativos. Não pôde, assim, haver um esforço concertado para repelir os invasores
século xvm, permaneceria uma cidade portuária de pouca importância, subsis- europeus, cujo poder e cujos motivos eram ainda, para todos os efeitos, insondá-
tindo com base num comércio ilícito de escravos africanos e prata peruana com veis para a maioria dos povos índios. No entanto, aqueles que de facto tiveram a
mercadores portugueses do Brasil. oportunidade de se aperceber da natureza do ataque europeu conseguiram sobre-
viver sem ser vencidos - alguns até bem tarde no século xix, como foi o caso dos
Pode dizer-se que o processo de conquista, em declínio desde a década de 40 Araucanos. Os índios desenvolveram uma resistência eficaz adoptando alguns
do século xvi, chegou ao fim em meados dos anos 70. No meio século decorrido dos métodos do seu inimigo - aprendendo a montar a cavalo e a manejar espin-
desde que Cortês desembarcara em Veracruz, a Espanha explorara e dominam gardas, por exemplo. Se os Astecas e os Inças tivessem tido uma oportunidade
uma área várias vezes superior à sua dimensão. É digno de nota que tal feito não semelhante para reagir, a conquista espanhola talvez nem se tivesse concreti-
tenha sido realizado por exércitos regulares, mas por pequenos grupos de aven- zado. Em última análise, os conquistadores tiveram a vantagem da surpresa:

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

estavam fanaticamente na ofensiva, enquanto a maioria dos povos indígenas,


apanhada desprevenida, contava apenas com defesas inadequadas.
E todavia, apesar de não haver mistério na vitória dos conquistadores, os
índios explicaram a sua derrota em termos metafísicos. O frade espanhol Bernar-
dino de Sahagún reuniu a informação oral que os Astecas partilharam com ele,
relativamente a portentos e profecias de maldição que pretensamente haviam
previsto a chegada dos Espanhóis. Os registos de Sahagún dão-nos também a
perturbadora indicação da prostração de Montezuma perante Cortês, alegada-
mente devido à sua crença de que o invasor era o deus Quetzalcóatl que viera
retomar o seu reino divino. No Peru, os cronistas espanhóis relataram mitos
semelhantes sobre o deus Viracocha, que em tempos partira para o Pacífico pro-
metendo regressar.
Tal mitologização da Conquista não é, contudo, isenta de verdade, mas capta CAPÍTULO 2
em termos poéticos a desorientação de povos cujo isolamento histórico foi subi-
tamente quebrado por seres de uma esfera estranha, seres cuja intrusão num índios e Ibéricos
ambiente familiar e circunscrito deve, na verdade, tê-los feito parecer visitantes
«do outro lado do céu».
índios

O homem que daria o seu nome ao continente descoberto por Colombo e


conquistado pelos Espanhóis e pelos Portugueses foi um explorador florentino,
Américo Vespúcio, que participou numa expedição espanhola, em 1499, ao delta
do Orenoco e à costa da Venezuela, e que em 1501-1502 navegou com os Portu-
gueses ao longo da costa do Brasil. Numa carta enviada ao seu patrono Pier
Francesco de Médicis,Vespúcio referiu-se ao continente como um mundus novus
e foi este termo que agradou à imaginação dos europeus. Prestando homenagem
a Vespúcio, o geógrafo alemão Martin Waldseemuller deu o nome de «América»
à área correspondente ao Brasil num mapa do Novo Mundo publicado em 1507;
mais tarde, todo o continente ficaria conhecido por esse nome. Os Espanhóis con-
tinuaram, no entanto, a referir-se a estas terras como Lãs índias, um reflexo do
erro geográfico de Colombo, e por essa razão os nativos foram designados índios.
A princípio, exploradores como o próprio Colombo e como Vespúcio, ao
entrarem em contacto com povos bastante primitivos nas Caraíbas ou nas costas
do Brasil, tiveram a tendência de os idealizar como selvagens nobres. Vespúcio
descreveu aquilo a que chamou um «paraíso terrestre», onde homens e mulheres
passeavam nus desfrutando de uma natureza generosa. A experiência posterior
modificaria esta imagem idílica, sobretudo depois de os Espanhóis terem encon-
trado as sociedades mais desenvolvidas da América Central e dos Andes, embora
nunca se tenha dissipado por completo o mito de inocência americana inicial-

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HISTÓRIA DA AMÉRICA L A T I N A ÍNDIOS E I B É R I C O S

mente propagado, após os primeiros contactos entre os europeus e os povos nativas sedentárias no Brasil. Depois de algumas tentativas insatisfatórias de
nativos. forçar caçadores-recoletores e populações semissedentárias a trabalhar nas plan-
A América estava, é claro, longe de ser um continente virgem. Era um «novo tações de açúcar, tiveram de importar mão de obra em massa de África para
mundo» para os europeus em virtude do seu anterior isolamento de outros ramos estabelecer o tipo de economia privilegiado nos primeiros tempos da Europa
da humanidade e, nesse sentido, é adequado falar da sua descoberta por moderna. Foi, assim, na América Central e nas regiões dos Andes que a interação
Colombo, pois foi esse acontecimento que trouxe o hemisfério ocidental para a de europeus e índios se tornou mais intensa e complexa; estas regiões foram o
história do mundo. Quanto aos habitantes originais, que lá viveram durante caldeirão das sociedades híbridas que emergiram no continente.
vários milénios antes da chegada de Colombo e que haviam penetrado cada
canto do continente, os conflitos e problemas associados à mudança histórica
não os tinham poupado, embora o seu mundo fosse circunscrito pelas fronteiras O Desenvolvimento da Civilização
naturais da América. A chegada dos europeus foi apenas mais uma fase na sua na América Central e nos Andes Centrais
experiência histórica; devido à sua própria natureza, foi uma fase traumática,
mas talvez não a pior na história de muitos destes povos nativos. A história da América Central e das regiões dos Andes antes das invasões
Além disso, muitas partes desde «novo mundo» eram densamente povoadas. europeias pode ser dividida em quatro períodos, correspondentes a fases de
As estimativas demográficas continuam a ser tema de debate, mas os cálculos da desenvolvimento cultural: Arcaico ou Pré-cerâmico (7000-2500 a.C.); Pré-clás-
população total da América no momento do primeiro contacto com os europeus sico (2500 a.C-1 d.C); Clássico (l d.C.-lOOO); Pós-clássico (1000-1500).
têm apontado para mais de 57 milhões de pessoas (*). Esta população numerosa O período Arcaico ou Pré-cerâmico assinala os primórdios da agricultura,
não vivia em sociedades uniformes. Na geografia extremamente variada e muitas com pequenas tribos seminómadas que utilizavam técnicas de cultivo simples,
vezes difícil do continente, os habitantes humanos tinham-se adaptado a ambien- servindo-se, por exemplo, do pau de cavar. Nas áreas arborizadas, praticava-se
tes ecológicos muito diferentes, pelo que, ao chegar à América, os europeus uma agricultura itinerante com queimada: cortavam-se as árvores e cultivavam-
encontraram uma enorme diversidade de sociedades, desde caçadores-recoleto- -se espécies agrícolas de primeira necessidade por períodos curtos, não superio-
res nómadas a civilizações totalmente sedentárias com organizações políticas e res a três anos, depois do que os solos ficavam exaustos e tinha de se encontrar
sociais tão complexas como as do Velho Mundo. novos locais. No final deste período começou-se a fazer uma cerâmica rudi-
A maior parte do continente era povoada por tribos semissedentárias ou mentar.
nómadas que praticavam uma agricultura itinerante com queimada, e estas popu- No período Pré-clássico, desenvolveu-se uma economia agrária sedentária,
lações revelaram-se extremamente difíceis de subjugar; tinham grande mobili- baseada em grupos com laços de parentesco que habitavam em aldeias. Numa
dade, eram demasiado beligerantes, e habitavam geralmente zonas com condi- fase mais tardia deste período, apareceram pequenos Estados tribais, governados
ções demasiado difíceis ou desinteressantes, como florestas tropicais ou planícies por elites religiosas. A religião era ainda animista, mas as cerimónias públicas
expostas a um calor intenso, não estando adaptadas ao trabalho sistemático e eram realizadas em templos de madeira com cobertura de colmo, erguidos em
intensivo que as economias europeias exigiam. Assim, os Espanhóis gravitavam colinas. A cerâmica e a tecelagem tinham desenvolvido estilos decorativos
em torno das sociedades sedentárias, assentes numa agricultura desenvolvida e intrincados. A civilização mais avançada desta época era a dos Olmecas (1500-
em mecanismos sociais, das quais podiam obter impostos e mão de obra; ignora- -400 a.C), que habitavam a região em redor de Veracruz, no golfo do México;
vam as tribos semissedentárias e nómadas, exceto quando estas ocupavam terras esta civilização possuía esculturas de pedra, sistema de calendário e hieróglifos.
com recursos valiosos, como foi o caso das regiões ricas em prata do centro- O seu florescimento precoce sugere que tenha sido a origem de civilizações
-norte do México. Os Portugueses, pelo contrário, não encontraram sociedades posteriores na América Central. Na região dos Andes, a cultura mais avançada
estava estabelecida em Chavín (900-500 a.C.), no Peru Central.
O período Clássico abrange sociedades que desenvolveram as ideias, as
(") Estes cálculos, baseados em dados insuficientes ou inadequados, variam considera- técnicas e a organização social das suas antecessoras, mas sem introduzirem
velmente: a população do México Central, por exemplo, foi estimada em 25 milhões de habU mudanças fundamentais. O Estado tornou-se mais poderoso e passou a ser enca-
tantes por alguns autores e em 4,5 milhões por outros. O problemas do cálculo demográfico
beçado por um rei; a classe sacerdotal continua a gozar de supremacia, embora
são analisados em William M. Denevan (org.), The Native Population ofthe Americas in 1492
(University Wisconsin Press: Madison, 1976). as situações de guerra mais frequentes tenham elevado o estatuto dos soldados.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

Surgiram cidades e os locais das cerimónias são construídos em pedra, tal como Na América Central, o primeiro dos Estados imperiais pós-clássicos foi o
os grandes edifícios públicos e as casas da aristocracia. Os lugares das civiliza- dos Toltecas, cuja capital era a cidade de Tuia ou Tollan. Originalmente uma
ções clássicas na América Central são Teotihuacán (l d.C-c. 750), a cerca de 50 das tribos chichimecas que se deslocaram das planícies do Norte para as terras
quilómetros a norte da Cidade do México, monte Albán (500 a.C.-c. 800 d.C) em altas centrais, os Toltecas assimilaram a religião e a cultura de Teotihuacán, e
Oaxaca, e os centros maias nas terras baixas da selva de Petén (300-900 d.C), por volta de 1000 d.C. tinham construído um império que julgamos ter-se
compreendendo o Sul do lucatão e o Norte da Guatemala. Ao longo da costa do estendido pelo centro e pelo Sul do México. Há também indícios da influên-
Peru, emergiram as civilizações Moche, no Norte, e Nazca, no Sul (ambas c. 200 cia dos Toltecas sobre as sociedades maias do Norte de lucatão: em Chichén
a.C.-600 d.C). Por volta de 600 d.C., as civilizações clássicas encontravam-se Itzá, sobrevivem vestígios da arte, da arquitetura e da religião tolteca. Todavia,
também nas terras altas dos Andes. Tiahuanaco, perto do lago Titicaca, estendeu o Estado, minado por lutas intestinas, desintegrou-se por volta de 1200 d.C.
o seu poder para sul, para os territórios da Bolívia e do Norte do Chile; a civiliza- Os dois séculos seguintes constituíram um período de mudanças contínuas, em
ção Huari expandiu-se para norte de Ayacucho, para ocupar a região central dos que uma multiplicidade de cidades-Estados combateram entre si, na ausência de
Andes, estendendo-se das fronteiras do Equador para sul, até ao lago Titicaca; um poder imperial unificador; este período conturbado permitiu sucessivas inva-
ambas as civilizações parecem, no entanto, ter declinado por volta do ano 1000. sões de tribos selvagens vindas do norte. Apesar de terem emergido vários reinos
Uma era de trevas separa as civilizações Clássicas das Pós-clássicas, um capazes de subjugar os seus vizinhos durante algum tempo, foi só com a ascen-
período de colapso social e desintegração cultural que parece ter afetado toda a são, no início do século xv, de um desses povos bárbaros do norte, os Mexica
antiga América. Não se sabe ao certo o que terá acontecido, mas acredita-se que (mais tarde conhecidos por Astecas), que se estabeleceu um novo sistema verda-
terá sido um tempo marcado por desastres ecológicos resultantes de desfloresta- deiramente imperialista na América Central. Mais uma vez, os novos imperialis-
ção em excesso e de erosão dos solos, seguidos de invasões de tribos bárbaras. tas absorveram a religião e a cultura dos seus antecessores, ligando a civiliza-
As cidades e lugares cerimoniais foram abandonados e os impérios ruíram. Esta ção asteca criada pelos Mexica à era tolteca e à anterior civilização clássica de
idade de trevas parece ter tido início por volta de 750 d.C, com a misteriosa Teotihuacán.
queda de Teotihuacán, no México Central. Um século mais tarde, monte Albán Na região central dos Andes, a era Pós-clássica assistiu à emergência de
e os lugares maias de Petén haviam também sido abandonados. O Peru declinou vários reinos poderosos, tendo Chimú sido o mais vasto, com a capital em Chan
um pouco mais tarde, mas por volta do ano 1000 tanto Tiahuanaco como o impé- Chan, junto à costa noroeste do Peru. Mas o poder imperial mais forte só viria a
rio huari tinham caído. Durante este período, deu-se o retrocesso para Estados emergir no século xv; os novos conquistadores eram os Inças, cuja terra natal se
tribais mais pequenos e mais localizados, que conservavam ainda vestígios de situava na periferia da cidade de Cusco, nas terras altas dos Andes centrais. Indo
cultura clássica. além das conquistas territoriais de impérios clássicos como Tiahuanaco ou o dos
Depois desta idade de trevas, iniciou-se um novo e mais vigoroso ciclo Huari, os Inças dominaram uma vasta área que se estendia de Quito, no norte, à
imperialista, que decorreu entre cerca de 900 e a chegada dos Espanhóis, por atual Santiago do Chile, no sul. Constituíram o maior e mais coeso Estado impe-
volta de 1500. Nesta era Pós-clássica, não se registaram inovações de grande rial da América pré-colombiana; no entanto, alguns indícios sugerem que, por
importância na tecnologia produtiva ou nas formas culturais; os desenvolvimen- volta de 1530, quando Pizarro e os seus homens entraram em cena, ó Estado inça
tos mais significativos ocorrem, antes, na organização do Estado e da sociedade se dispersara demasiado e estava à beira do desmembramento, após menos de um
- os impérios tornam-se maiores, à medida que as poderosas classes dirigentes século de poder.
aprendem a explorar os recursos das tribos conquistadas através de mecanismos A conquista pelos Espanhóis foi, sem dúvida, facilitada pelo facto de tanto
políticos e ideológicos complexos. Uma expansão imperialista agressiva dá ori- os Astecas, na América Central, como os Inças, nos Andes, terem já procedido a
gem a culturas belicosas, militarizadas, em que as guerras constantes são justifi- uma considerável integração política e económica nas suas respetivas esferas
cadas em termos religiosos com a necessidade de apaziguar os deuses mediante de influência. Ambos os Estados imperiais mostravam, contudo, sinais de fra-
o sacrifício de vidas humanas. Uma aristocracia de guerreiros, sacerdotes e quezas internas motivadas pelo descontentamento dos muitos povos sob o seu
administradores dissociou-se por completo das massas trabalhadoras através de jugo, relativamente ao pagamento de impostos e a outras exigências imperiais.
um sistema de privilégios senhoriais e benefícios materiais. O poder torna-s% O carácter altamente militar de ambos os impérios sugere também insegurança,
altamente centralizado e é atribuído a um governante absoluto com autoridade uma necessidade de estar constantemente alerta devido à ameaça de desintegra-
divinamente atribuída. ção. Com efeito, não foi o Estado imperial, mas sim o reino étnico e a sua juris-

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

dição territorial que constituiu a entidade política mais estável e duradoura na ordenou-lhes que criassem raízes no lugar onde vissem uma águia empoleirada
América antiga. De tempos a tempos, um desses reinos conseguia subjugar num cacto a atacar uma serpente (o emblema nacional da República do México
alguns dos seus vizinhos e adquirir uma esfera de influência muito mais vasta do representa este sinal). O portento apareceu numa grande ilha do lago Texcoco, e
que a sua jurisdição tribal original, mas à expansão imperialista seguia-se inva- os Mexica ergueram aí a sua capital em meados do século xrv, dando-lhe o nome
riavelmente uma fase de declínio e retorno a regimes étnicos. de Tenochtitlán, o «lugar do cacto».
O ritmo cada vez mais rápido de formação e queda de civilizações índias e, Naquele terreno pantanoso, os Mexica desenvolveram uma técnica de adap-
em particular, os colapsos económicos e as misteriosas lutas de poder que carac- tação da terra para a agricultura que consistia em formar uns canteiros chamados
terizaram a idade de trevas eram talvez manifestações de uma estagnação latente chinampas, usando montes de terra e sedimentos fixados com verga entrelaçada.
dos recursos produtivos nas duas regiões da América mais adequadas à agricul- As chinampas eram extremamente férteis, permitindo o cultivo durante todo o
tura. Apesar da sua grandeza, os impérios pós-clássicos dos Astecas e dos Inças ano, mas aquelas faixas artificiais de terra comprimida não podiam, por si só,
não registaram avanços técnicos ou artísticos relativamente aos seus antecesso- sustentar uma população em crescimento; e havia outras matérias-primas neces-
res; desenvolveram, isso sim, mecanismos mais eficazes para explorar a mão de sárias à vida urbana que não estavam disponíveis na periferia do lago. A falta de
obra e a produção das tribos vencidas. A América pré-colombiana era, afinal, um espaço e de recursos materiais obrigou os Mexica a procurarem além da sua terra
mundo restrito, um mundo sem o ferro e sem a roda, sem animais de tração nem no lago, o que levou a um processo de expansão que, passado um século, trans-
navios, onde a matemática era rudimentar e a escrita discursiva não fora inven- formara uma tribo de bárbaros outrora desprezados e errantes nos criadores de
tada. Este mundo parece ter sido incapaz de expandir os seus recursos limitados uma brilhante civilização imperial. No seu centro situava-se Tenochtitlán, então
através do progresso tecnológico. A chegada dos europeus transformou irrevoga- uma espécie de Veneza da América, uma cidade de canais e passagens sobre a
velmente o mundo ameríndio, mas nem tudo foi destruído. Com efeito, os con- água, com cerca de 200 000 habitantes, mais populosa do que qualquer metró-
quistadores estrangeiros aproveitaram muito do que lá encontraram: a mudança pole europeia contemporânea.
ocorreu gradualmente, e grande parte da cultura indígena sobreviveu até aos O caminho dos Mexica para o poder começou no início do século xv (possi-
tempos modernos. velmente no ano de 1427), quando o chefe Itzcoatl se revoltou contra o paga-
mento de impostos à cidade-Èstado de Atzcapotzalcò, então a força dominante
no vale do México e capital do reino dos Tepanecas. A vitória tinha, no entanto,
Os Astecas de ser alcançada através de uma aliança com outros dois vizinhos, a cidade-
-Estado de Texcoco, na margem nordeste da lagoa, e a pequena cidade de Tlaco-
As terras altas do centro do México eram o lugar da civilização na América pán (mais tarde conhecida como Tacuba). Foi esta Tripla Aliança que constituiu
Central desde o tempo de Teotihuacán. No entanto, as cidades daquele planalto a Confederação Asteca. O termo «asteca», embora derivado de Aztlán, o lugar
estavam expostas às invasões de tribos chichimecas nómadas vindas das prada- de origem da tribo Mexica, raramente era utilizado na época, mas tornou-se um
rias do Norte. Um desses povos eram os Mexica, que, segundo as suas próprias nome útil para designar a aliança das três cidades-Estados do vale de Anáhuac
lendas, na segunda metade do século xn iniciaram a sua longa migração da que conquistaram um império. Tenochtitlán foi o parceiro dominante na aliança:
região de Aztlán, no noroeste, para o México Central. Durante um século, a o imperador asteca era invariavelmente um membro da linhagem real dos
pequena tribo mexicana deambulou pelo planalto, passando por dificuldades e Mexica, apesar de ser escolhido com o acordo dos senhores de Texcoco e de
privações, estabelecendo-se por algum tempo em Tuia, onde assimilou influên- Tlacopán.
cias dos Toltecas, e acabou por se fixar no monte de Chapultepec, nas margens O chefe real Itzcoatl liderou a aliança na conquista de toda as cidades e vilas
ocidentais do lago Texcoco, na bacia Anáhuac (o atual vale do México). Aí, que anteriormente pagavam impostos aos Tepanecas. Foi o seu sucessor, Monte-
fundiram-se com o povo das regiões circundantes e, sem nunca perderem o zuma I, que levou o poder asteca além do domínio dos Tepanecas, avançando
essencial da sua identidade tribal, adotaram muitos dos costumes e crenças para sul, pela região de Oaxaca, terra do povo Mixteca. Perpetrando terríveis
locais, incluindo a divindade tutelar Huitzilopochtli. Várias décadas mais tarde, massacres, invadiu vários dos seus centros urbanos e estabeleceu colónias aste-
foram levados de Chapultepec e feitos prisioneiros pelos habitantes da cidad^- cas entre eles. O povo seguinte a ser conquistado foi o dos Totonacas, cujo terri-
-Estado vizinha de Culhuacan. O mito original dos Mexica relata a sua libertação tório se situava nas planícies tropicais em redor do golfo do México. Dirigentes
do cativeiro e a demanda de uma terra que fosse sua: o deus tribal Huitzilopochtli posteriores estabeleceriam os domínios astecas na costa do Pacífico em redor de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

Acapulco e na direção da atual fronteira guatemalteca em Soconnsco. Mas o priado e distribuído como propriedade privada a nobres astecas que se mostras-
poder asteca tinha limites. Perto da sua terra natal, por exemplo, os Astecas não sem merecedores. De modo a conservar a sua hegemonia, os Astecas estabele-
foram capazes (ou talvez não estivessem dispostos) a subjugar os Tlaxcalas, que ciam colónias nas terras conquistadas e apoiavam-nas com guarnições. Os
habitavam um vale próximo; as tentativas de expansão para noroeste foram gora- cobradores de impostos traziam para Tenochtitlán uma abundância de produtos,
das pelos Tarascanos, senhores de um «império» emergente na zona que é hoje não apenas bens essenciais, como milho ou feijão, mas também artigos de luxo
Michoacán. e adornos, símbolos de estatuto que a aristocracia asteca desejava - objetos de
A própria sociedade asteca apresentava divisões vincadas entre nobres e ple- jade e de ouro, pedras preciosas, penas de quetzal e peles de jaguar. Com efeito,
beus. A aristocracia incluía guerreiros, sacerdotes e altos funcionários públicos, as conquistas astecas eram motivadas tanto por fatores religiosos e culturais
que possuíam terras e lucravam diretamente com os frutos da conquista. A massa como por necessidades puramente económicas. As tribos vencidas eram forçadas
da população era, no entanto, composta por trabalhadores agrícolas, que viviam a acrescentar as divindades astecas ao seu panteão e a adotar a língua nauatle.
do mesmo modo que tinham vivido os seus antepassados antes de os Astecas Uma das principais razões para haver guerra era fazer prisioneiros para serem
terem iniciado a sua carreira imperial. Tal como outros povos da América Cen- sacrificados nos altares da grande pirâmide em Tenochtitlán. Com a sua inces-
tral, esta numerosa classe inferior encontrava-se organizada em calpulli, entida- sante exigência de sangue humano, os deuses astecas estimulavam a beligerância
des comunitárias que parecem ter tido origem em grupos familiares mas que e é possível que o objetivo das contínuas «guerras de flores» contra o povo vizi-
evoluíram para clãs que desempenhavam determinadas funções sociais e econó- nho Tlaxcala fosse garantir um fornecimento regular de vítimas sacrificiais, e
micas. A maioria dos calpulli era rural e cada uma destas estruturas reunia uma não a conquista em si.
vila principal e algumas aldeias isoladas. Os chefes dos calpulli eram intermedi- A nobreza asteca conseguia viver luxuosamente, adaptando os costumes e as
ários responsáveis por canalizar bens e serviços para a classe dirigente dos Aste- instituições tradicionais da cultura tribal da América Central para seu próprio
cas, através de administradores imperiais ou dos senhores étnicos de reinos benefício. A mais eficaz dessas adaptações registou-se no campo do mito e da
dominados, que os Astecas absorviam no seu império, permitindo-lhes benefi- religião, pois foi a religião que sustentou a autoridade inquestionável do impera-
ciar do sistema tributário. Nas cidades havia calpulli que não possuíam terra mas dor asteca ou tlatoani («aquele que fala»), e que facultou a justificação para a
que se dedicavam a um ofício específico, à semelhança das guildas europeias conquista e para a imposição tributária. A religião era um instrumento imperia-
medievais. Estes artesãos e mercadores formavam um estrato intermédio que lista particularmente eficaz porque grande parte da religião asteca era comum a
podia beneficiar da expansão imperial sem, no entanto, gozar de privilégios outros povos da América Central, devendo todos eles a sua herança aos Toltecas,
sociais especiais. Outra classe de calpulli sem terra eram os que trabalhavam os verdadeiros fundadores da civilização nauatle. Depois de terem iniciado a sua
como criados domésticos ou nas propriedades da aristocracia, numa condição expansão imperial, os Astecas orgulhavam-se de se apresentar como herdeiros
semelhante à dos serviçais na Europa. Havia ainda uma numerosa classe de dos Toltecas, proclamação que conferia ao seu domínio uma justificação sagrada.
escravos; eram pessoas capturadas nos combates, ou simples camponeses que A religião nauatle era excessivamente complexa e está longe de ser plena-
em situações de extrema necessidade se tinham visto obrigados a vender-se mente compreendida. Uma das dificuldades mais importantes é a falta de identi-
como escravos para sobreviver. A maior parte do povo era muito pobre. Os tra- dades fixas no bem fornecido panteão asteca, onde figuram cerca de 126 deuses
balhadores rurais asseguravam a sua mera subsistência cultivando a terra; tam- principais. Podiam ser atribuídas qualidades opostas a uma mesma divindade, ou
bém eram obrigados a pagar impostos e a cumprir, à vez, o serviço de coatequitl, uma qualidade associada a um deus podia ser intermitentemente assumida pelo
que consistia na obrigação de trabalhar em propriedades do Estado ou na cons- seu inimigo. Esta mutabilidade advinha do dualismo que permeava todo o pen-
trução de edifícios públicos, ou servir no exército. A terra, apesar de pertencer à samento asteca. Por exemplo, o originador do universo era o «deus dual», Ome-
comunidade, era atribuída para cultivo a famílias individuais, que não tinham teotl, que tinha uma manifestação masculina e uma manifestação feminina,
permissão para dispor dos terrenos mas podiam passá-los à geração seguinte. «Dois Senhor» e «Duas Senhora»; da sua união tinham nascido quatro filhos - os
Os assuntos dos calpulli eram da competência de chefes hereditários, os quais espelhos fumegantes branco, negro, vermelho e azul -, sendo cada um deles
formavam um conselho de anciãos composto por sacerdotes e funcionários responsável pela criação de mundos específicos e de todas as criaturas que neles
públicos locais, como um arquivista e um tesoureiro. * viviam. Mas estes quatro deuses-criadores representavam também diferentes
A base do domínio asteca era a cobrança de impostos, na forma de bens e aspetos de um único deus omnipresente e todo-poderoso, conhecido como o
mão de obra, às tribos derrotadas em batalha. O território também era expro- Deus do Espelho Fumegante, Tezcatlipoca.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

Na cosmogonia asteca, quatro mundos, ou «sóis», tinham-se formado, e em Chichén Itzá, introduzindo novos estilos de arquitetura e arte. No século xm,
sucessivamente destruído. Os Astecas acreditavam que a era em que viviam, o o poder de Chichén Itzá declinara e dera lugar a um novo império, que tinha o
Quinto Sol, tivera início com o surgimento de Teotihuacán, a «cidade dos seu centro em Mayapán, mas, à chegada dos Espanhóis, também este império já
deuses», e era a criação especial do próprio Deus-Sol, que os Astecas identifica- se desintegrara, tendo-se dividido em Estados de menor dimensão.
vam, convenientemente, com o seu deus tribal Huitzilopochtli. Para que a vida A economia dos Maias tinha como base o milho, que era cultivado através
daquele Quinto Sol fosse preservada, o Deus-Sol exigia alimentar-se de corações de métodos de queimada que esgotavam o solo ao fim de pouco tempo. Uma
humanos - daí a necessidade de procurar vítimas através de guerras constantes. consequência deste tipo de agricultura era a tendência dos camponeses para
Este Quinto Sol estava destinado a ser destruído, uma certeza que afligia a psique viverem em colónias improvisadas de madeira e colmo, e não em aldeias. As cida-
asteca com um pressentimento de ruína. des maias eram, assim, menos concentradas do que no México Central, e funcio-
Outro mito importante - igualmente ligado ao de destruição e renovação navam essencialmente como centros religiosos e administrativos, onde viviam
cósmica -, e que os Astecas adaptaram aos seus objetivos imperialistas - era a sacerdotes e nobres, embora pareça ter existido mais colonização residencial por
história de Quetzalcoatl, a Serpente Emplumada, um deus-tornado-homem que parte do povo do que inicialmente se julgou, especialmente nas principais cida-
se dizia ter reinado em Tuia e ter trazido a civilização, a lei e o bom governo aos des do Norte do lucatão, como Chichén Itzá e Mayapán.
Toltecas. A Serpente Emplumada foi expulsa de Tuia pelos seus inimigos, tendo- Os reinos maias eram governados por um líder com autoridade religiosa e
-se refugiado no Leste, de onde deveria regressar um dia para inaugurar uma era política; a sociedade estava dividida em duas classes, correspondendo uma delas
dourada. Alguns cronistas espanhóis registaram que quando Hernán Cortês sur- ao povo comum, enquanto a outra, superior, integrava sacerdotes, guerreiros e
giu, em 1519, vindo de leste, os índios acreditaram que ele era Quetzalcoatl. administradores. Quando um reino conseguia exigir impostos e trabalho a outros
Reclamando para este rei tolteca, redentor e fazedor de leis, uma espécie de Estados mais pequenos, criava-se um «império». Tal como os Astecas, os Maias
sucessão apostólica (os sacerdotes eram chamados «sucessores de Quetzalcoatl», acreditavam numa sucessão de mundos que haviam sido criados e destruídos, e
os Astecas imbuíam o seu domínio imperial de uma autoridade religiosa, pois, estavam convencidos de que o seu tempo teria igualmente um fim apocalíptico.
tal como todos os imperialistas, estavam convencidos de que levavam os bene- Para adiarem esta calamidade, sacrificavam seres humanos e praticavam várias
fícios da civilização aos povos que conquistavam. formas de expiação. A sua preocupação com o destino do cosmos originou um
sistema de calendário complexo e uma matemática bem desenvolvida, que inte-
grava o conceito de zero vários séculos antes de este ter sido descoberto na índia.
Os Malas A escrita hieroglífica aparece em esteias, nas entradas e nas paredes dos templos,
e numa série de códices; por outro lado, a cultura maia era oral e rica em mito-
A outra grande civilização da América Central, e a mais desenvolvida no que logia, e um pouco desta vertente foi preservada no Popol Vuh, o livro sagrado
tocava a artes e ciências, foi a dos Maias, cujo território abrangia a península do dos Maias Quiché da Guatemala, escrito no alfabeto europeu a partir de fontes
lucatão, o Sul do México, a Guatemala, o Belize e partes das Honduras e de El orais, depois da Conquista espanhola. Na arquitetura, os Maias foram mais longe
Salvador. A sua manifestação no período clássico ocorreu entre 300 d.C e 900, do que outras civilizações índias; dominavam a escultura em pedra e a pintura de
na floresta tropical de Petén, no Norte da Guatemala, embora se pense que a murais, como se pode verificar pelos frescos de Bonampak, em Chiapas.
cultura maia possa ter tido a sua origem por volta de 1000 a.C na costa do golfo
do México, numa região próxima de Veracruz, que também assistiu ao despontar
da cultura olmeca. Se assim for, a cultura maia será remotamente aparentada com Os Inças
a asteca.
A sociedade maia clássica foi vítima de um misterioso declínio que começou Os Inças foram inicialmente uma das várias tribos insignificantes que habi-
por afetar Teotihuacán. Em meados do século viu, os lugares clássicos de Péten tavam o vale de Cusco, nas montanhas centrais dos Andes. Os seus mitos contam
haviam sido abandonados. Por volta de 900 d.C., uma cultura maia pós-clássica como Manco Capac, o primeiro governante inça, conduziu até àquele vale a tribo
emergiu na extremidade norte da península do lucatão; foi o resultado de um» vinda das margens do lago Titicaca ou, numa outra versão, das «janelas» ou
fusão com elementos da cultura mexicana central, trazidos para o lucatão por grutas de Paccari-Tambo, um lugar cerca de 30 quilómetros a sudeste de Cusco.
invasores toltecas, que conquistaram a península e estabeleceram a sua capital À semelhança de Quetzalcoatl para os Toltecas e para os Astecas, a figura mítica

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA (NDIOS E IBÉRICOS

de Manco Capac era venerada por ter trazido a civilização ao mundo; ele era Ao longo dos séculos, as sociedades andinas aprenderam a ultrapassar este
também adorado por ser um descendente direto do Deus-Sol, e este parentesco problema enviando colonos para explorar a terra a diferentes altitudes, de modo
dava aos soberanos inças um estatuto quase divino. a complementar as colheitas dos seus territórios nativos. Assim, as sociedades
Em finais do século xiv, os Inças subjugaram as outras tribos do vale de dos Andes não eram unidades territorialmente integradas, mas assumiam a forma
Cusco, e o seu percurso imperial começou em força em 1438, quando o grande de «arquipélagos verticais» onde se incluía a terra natal ancestral - que providen-
conquistador Yupanqui Inça Pachacuti, o «Transformador», subiu ao trono. Entre ciava o núcleo de identidade tribal - e povoações agrárias remotas, situadas em
1438 e 1463, Pachacuti estendeu o domínio inça até à região do lago Titicaca, diferentes camadas ecológicas especializadas em vários tipos de produtos agrí-
avançando daí para noroeste. Outras conquistas levadas a cabo por Pachacuti e colas para distribuição e troca entre os ramos dispersos da tribo. Deste modo, a
pelo seu filho Topa Inça expandiram os territórios do Norte até Quito. Foi Pacha- geografia criava uma estrutura económica única, que por sua vez determinava
cuti quem lançou as fundações de um Estado inça bem organizado, centrado em valores e práticas sociais. Onde a terra fértil, sendo escassa, precisava de ser
Cusco, uma cidade santa onde se encontrava o imponente Templo do Sol, repre- cultivada com todos os cuidados, não admira que a sua distribuição tivesse de ser
sentativo da fonte do poder inça. Em 1471, Pachacuti foi sucedido no trono por tão rigorosamente regulada pela comunidade, nem que o espírito de cooperação
Topa Inça, que, tendo já dominado o grande reino Chimú, no norte, se aventurou fosse tão prezado pelos membros da tribo. Assim, os dois princípios básicos da
então para sul, para onde é hoje o Chile, estabelecendo o limite do poderio inça sociedade tribal andina eram a redistribuição e a reciprocidade.
no rio Maule, território dos índios Araucanos. A partir de 1493, o líder inça A unidade social básica era o ayllu, um grupo familiar alargado ou clã, idên-
seguinte, Huayna Capac, envolveu-se numa campanha de grande envergadura tico ao calpulli na América Central. Todo o ayllu possuía terra que atribuía aos
contra reinos étnicos revoltosos, junto as fronteiras do Norte, especialmente na responsáveis das famílias, podendo estes cultivá-la para seu proveito mas não
região de Quito. Após a morte de Huayna Capac, entre 1525 e 1528, com a ajuda vendê-la a terceiros. Era prática comum no ayllu um membro trabalhar nas terras
de vários generais importantes, o seu filho bastardo Atahualpa apoderou-se des- de um vizinho em troca de ajuda igual; pagava também tributo trabalhando, à
tes territórios fronteiriços e lançou um golpe de Estado contra o legítimo her- vez, durante determinados períodos de tempo, nas terras do líder do ayllu e nas
deiro do trono, o seu meio-irmão Huascar. Foi durante a guerra civil que se dos chefes tribais. Dadas as dificuldades intrínsecas do terreno, os ayllus tinham
seguiu que Francisco Pizarro chegou aos reinos do Sol. de se unir para realizar algumas tarefas coletivas, como a construção de socalcos
Em menos de um século, os Inças tinham erguido o maior império do hemis- para alargar a área de cultivo e a preparação de sistemas de irrigação. Devido à
fério ocidental. Como no caso dos Astecas, o domínio deste povo caracterizava-se ameaça de más colheitas, pois o clima era muito Instável, usava-se uma série de
essencialmente pela cobrança de impostos a muitas tribos e reinos subjugados. armazéns públicos para acondicionar cereais e outros produtos que eram distri-
Todavia, os Inças foram muito mais longe do que os Astecas no desenvolvimento buídos em tempos de fome. A produção das diferentes camadas ecológicas tinha
de um Estado burocrático ao serviço de uma classe dirigente. Neste aspeto, as de ser distribuída por todos os ayllus da tribo. Assim, a geografia dos Andes
especificidades físicas da região dos Andes tiveram uma influência direta. ditava um elevado nível de ação coletiva e de regulação central no seio das
A geografia da área coberta pelo império inça apresenta grandes contras- comunidades tribais.
tes de clima e de terreno. Subindo dos desertos áridos da costa até aos picos Os Inças desenvolveram estas práticas tradicionais de regulação comunitária
cobertos de neve dos Andes, passamos por ambientes ecológicos muito diversos. e de serviços recíprocos de modo a construírem um Estado imperial. O impe-
Na costa, a agricultura só é possível nas proximidades de rios ou em terras rialismo inça não eliminou identidades locais; acrescentou, antes, um estrato
irrigadas; assim, a pesca foi sempre uma atividade importante. Nas montanhas, superior de autoridade às hierarquias tribais preexistentes. Os chefes étnicos tra-
a altitude determina o tipo de espécies que se pode produzir; o milho, por exem- dicionais, sob supervisão de governadores inças e de guarnições inças, eram
plo, vinga até aos 3300 metros, enquanto a altitudes mais elevadas se pode cul- responsáveis pela cobrança de impostos ao seu povo e pela entrega dos mesmos
tivar tubérculos e grãos. Na. puna - pradaria semelhante à estepe, mesmo abaixo à aristocracia inça. O tributo dos povos súbditos assumia, muitas vezes, a forma
da linha da neve -, a agricultura não é possível, mas há pasto para os lamas, de trabalho. As tradições locais de trabalho coletivo foram aproveitadas pelo
vicunhas e outros ruminantes dos quais se obtém carne e lã. Cada nível constitui Estado imperial e transformadas na mita, um sistema de trabalho forçado
uma «camada ecológica» adequada a determinado conjunto de espécies, mas não mediante o qual os ayllus colonizados davam, rotativamente, a sua mão de obra
existe, em nível algum, terra fértil suficiente para sustentar uma população por períodos de tempo definidos. A mita era a expressão de homenagem a
numerosa. três autoridades - o supremo inça e a sua dinastia, o Deus-Sol e o Estado. Isto

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significava, na prática, trabalhar nas propriedades da família real e da alta nas suas propriedades pessoais. A parte mais substancial dos impostos cobrados
nobreza, em terras pertencentes à elite eclesiástica e em iniciativas estatais como aos camponeses na forma de géneros destinava-se a aprovisionar o exército, a
a extração de minério ou projetos de construção. Outros tipos de tributo exigidos burocracia e outros setores do Estado imperial, mas uma porção era guardada em
pelos Inças aos ayllus sob o seu domínio eram quantidades específicas de bens celeiros para ser distribuída em tempos de fome, um ato de generosidade do Inça
ou tecidos para equipar o exército e os funcionários públicos, para além da oferta com vista a aliviar o sofrimento do povo. O Inça também redistribuía parte dos
de pessoas jovens e fisicamente válidas para trabalharem como yanaconas (fun- bens para auxiliar velhos e doentes. Na perspetiva de Nathan WachtelO, «os
cionários permanentes da aristocracia inça). camponeses sentiam, então, que participavam no consumo dos bens que entrega-
O Estado inça usava a estrutura de arquipélago vertical também para defen- vam como imposto», embora convenha lembrar que esta forma de reciprocidade
der o seu poder imperial. Assim, a prática tribal de enviar colonos para cultivar assentava na exploração ideológica do trabalho camponês.
diferentes zonas ecológicas foi convertida num programa de repovoamento colo- Havia, sem dúvida, um nítido contraste entre a vida difícil dos camponeses
nial, que permitiu aos Inças estabelecer tnitimaes (camponeses leais) em territó- nas aldeias e as circunstâncias ociosas da nobreza inça e dos curacas (senhores
rios recém-conquistados e enfraquecer a resistência de povos conquistados tribais) que haviam sido admitidos na classe dirigente imperial. Estes aristocratas
transferindo ayllus de regiões hostis para zonas mais seguras. - a quem os Espanhóis chamavam orejones, ou «orelhas grandes», dado o seu
A pedra angular do sistema imperial era a crença de que a autoridade do inça costume de esticar os lóbulos das orelhas com discos de ouro - possuíam pro-
supremo tinha origem divina, uma vez que fora legada por Manco Capac, o pri- priedades privadas e riqueza material, que exibiam como sinal do seu poder. Para
meiro inça e, segundo a lenda, filho do Sol. Os nobres inças podiam partilhar das além do requinte dos seus trajos e das iguarias que compunham a sua alimenta-
raízes sagradas da legitimidade política, pois as suas linhagens estavam ligadas ção, tinham permissão para praticar a poligamia e o concubinato, e para mastigar
por laços de sangue à dinastia real. Cusco, fundada por Manco Capac, era o a folha narcótica da coca. Estas liberdades especiais eram estritamente proibidas
centro do mundo. Na verdade, «Peru» era um nome inadequado utilizado pelos às gentes comuns, uma vez que, como todas as sociedades aristocráticas, os Inças
Espanhóis; os Inças chamavam ao seu império Tahuantin-suyu, «o reino das eram obcecados pelo estatuto e, talvez até mais do que na maioria dos casos,
quatro partes», uma vez que o território se encontrava dividido em quartos, res- conseguiram usar a religião para justificar o privilégio social.
petivamente a norte, sul, este e oeste de Cusco; cada quarto era governado por A religião inça era, em grande medida, um assunto de família, uma vez que
um apo, um parente próximo do inça supremo, que nos seus domínios tinha as o inça supremo e os seus parentes possuíam a aura sagrada da linhagem divina.
funções de uma espécie de vice-rei e era membro do conselho de Estado que o Este é outro exemplo do modo como os Inças converteram os costumes tribais
Inça consultava a respeito dos assuntos imperiais. Para além de ser a metrópole em ferramentas do imperialismo. Todos os povos andinos adoravam os fundado-
administrativa e política, Cusco era uma cidade santa e um lugar de peregrina- res míticos da sua tribo, identificando-os com determinada pedra, com um lago
ção, em virtude da sua fundação sobrenatural, que era comemorada no Corican- ou com uma árvore, e em cuja memória construíam um huaca (santuário). Uma
cha, o Recinto Dourado, onde se situava o grande Templo do Sol. tribo, ao ser conquistada pelos Inças, acrescentava antepassados da dinastia inça
Como descendente direto do Deus-Sol, o inça supremo era um soberano ao seu panteão; os corpos mumificados dos dirigentes inças eram escrupulosa-
absoluto com uma magnificência impressionante. Tal como o Sol sustentava mente venerados, as suas terras continuavam a ser cultivadas por camponeses, e
todas as coisas no mundo natural, o Inça era responsável pelo bem-estar da lugares e objetos que lhes estivessem associados ganhavam o estatuto fetichista
ordem social. Cabendo-lhe a aplicação da justiça, recebia, em troca, dos seus de um huaca. Para controlar a proliferação de deuses-antepassados nos domínios
súbditos impostos e trabalho. O Estado inça partiu, com efeito, de relações tribais inças em expansão, o grande edificador do império, Pachacuti, instituiu a crença
elementares de reciprocidade e ajuda mútua e converteu-as num sistema sofisti- no Ser Supremo, Viracocha, criador do universo, do qual descendiam todas as
cado de controlo ideológico baseado numa relação entre o patrono real e os seus divindades. A doutrina da prevalência de Viracocha não dispensava, contudo, o
clientes que não era, na sua essência, diferente da relação entre um monarca culto do Deus-Sol. A cosmogonia inça, à semelhança da dos Astecas e da dos
europeu contemporâneo e os seus súbditos. O que muitos autores modernos Maias, dividia a história do universo em «sóis», tendo cada era terminado com
viram como características singulares de um Estado «socialista» ou de um um cataclismo. O Quinto Sol fora inaugurado pelo Inça Manco Capac, e aos
«Estado-providência» no império inça eram, na verdade, manifestações de pr»-
tecção régia. Assim, o Inça permitia, por exemplo, que os camponeses levassem
os seus animais a pastar em terras comuns como recompensa pelo trabalho feito
(*) The Vision ofthe Vanquished (Harvester Press: Brighton, 1976), p. 72.

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descendentes deste competia garantir a sobrevivência do mundo através do sacri- Outros Povos índios
fício e da expiação. Embora não tão pródigos como os Astecas no que tocava a
vidas humanas, os Inças sacrificavam jovens e crianças - que tinham de ser Os Espanhóis contactaram com muitos outros povos índios, mas nenhum
fisicamente perfeitos - de tempos a tempos, quando o sacrifício de lamas era com sociedades tão desenvolvidas como as anteriormente descritas. As maiores
considerado insuficiente para salvar o mundo da calamidade. ilhas das Caraíbas, como Espafiola, Cuba e Porto Rico, onde Colombo encontrou
A classe religiosa era numerosa e influente. Uma hierarquia de sacerdotes, pela primeira vez ameríndios, eram habitadas por povos aruaques, originários de
encabeçada pelos parentes diretos do próprio inça, servia os muitos templos e zonas continentais da América do Sul. A sua sociedade era sedentária e apesar de
huacas espalhados por todo o império: no Templo do Sol, em Cusco, cerca de não ter alcançado a complexidade das sociedades da América Central ou dos
4000 pessoas dedicavam-se ao ministério da religião do Estado. Comunidades Andes, exibia características semelhantes: a unidade básica era a família alar-
religiosas de «mulheres escolhidas», recrutadas muito jovens em todas as partes gada ou o clã, que residia em aldeias onde várias famílias partilhavam habitações
do império, desempenhavam funções diversas: algumas podiam ser selecionadas amplas de madeira e colmo. Cada clã tinha um chefe chamado cacique, que
para sacrifícios a oferecer aos deuses, outras tornavam-se concubinas do Inça e recebia tributo do seu povo na forma de mão de obra; existia uma classe nobre,
dos seus favoritos; as restantes teciam a preciosa lã de vicunha para fazer roupas bem como uma classe especial de servos conhecidos como naborías, que desem-
para a família real ou preparavam comida e libações para as muitas cerimónias penhavam funções semelhantes às dos yanaconas dos Andes.
organizadas por sacerdotes e nobres. Seriam também encontrados povos sedentários com uma estrutura social
Esta identificação muito próxima de religião com governo conferia um relativamente complexa na América Central e no Noroeste da América do Sul,
enorme poder ao Estado inça. No que resta dos grandes edifícios em Cusco, na nas montanhas da atual Colômbia e na Venezuela. Estes povos partilhavam mui-
fortaleza colossal de Sacsahuamán ou na cidade em ruínas de Macchu Picchu, tas das características das sociedades centro-andinas: chefes dinásticos quase
toda construída com enormes pedras cortadas para caberem exatamente no lugar, divinos, uma aristocracia de sacerdotes e guerreiros, um povo que pagava impos-
encontramos monumentos impressionantes a essa extraordinária capacidade de tos e uma classe de escravos. Mas os seus templos e edifícios eram rudimentares,
mobilizar o trabalho humano. Talvez a arregimentação extrema por parte do feitos de lama e madeira, enquanto as gentes comuns habitavam estruturas para
Estado fosse necessária para compensar as deficiências técnicas de uma civiliza- várias famílias idênticas às construídas pelos Aruaques. As povoações urbanas
ção que, quanto ao resto, era sofisticada: sem animais de carga nem o conheci- eram geralmente pequenas, embora existissem dois grandes domínios em Bogotá
mento da roda, os Inças dependiam crucialmente da mão de obra humana. Mas e em Tunja, com poder suficiente para subjugar regimes menores.
o seu verdadeiro sucesso reside na perícia com que construíram um regime que Noutras regiões da América, os Espanhóis encontraram povos semissedentá-
transcendia em muito os limites da tribo. A governação tornou-se um monopólio rios ou nómadas, com uma estrutura social menos estratificada e escassos meca-
dinástico com base num conhecimento privilegiado, não apenas no que se referia nismos para cobrar tributo na forma de trabalho ou bens. Assim, estas tribos não
aos mistérios da religião mas também a um nível mais mundano: a ausência de apresentavam grande interesse económico para os conquistadores, pelo que, na
um sistema de escrita reservava a informação importante a uma oligarquia sua maioria, foram ignoradas ou, quando hostis, controladas por guarnições mili-
fechada, que tinha acesso a registos efetuados em cordas com nós, conhecidas tares, como foi o caso dos belicosos Araucanos, no Sul do Chile, ou dos Chichi-
pelo nome de quipus: esse conhecimento privilegiado aumentava as possibilida- mecas, no Norte do México e no Sudoeste dos atuais EUA. Foi, todavia, preci-
des de controlo político sobre massas submissas cuja cultura era ainda comple- samente com este tipo de tribos que os Portugueses se depararam no Brasil.
tamente oral. Enquanto se pudesse manter a crença na origem divina da dinastia
inça e no seu direito de usufruir de amplos privilégios, o edifício do Estado
continuaria de pé. Porém, no ano de 1531, Francisco Pizarro e a sua companhia Os índios do Brasil
de infiéis chegaram ao império inça, Tahuantin-suyu, e desencadearam o colapso
da grande pirâmide do Estado ao violarem o pináculo sagrado da sua autoridade. No Brasil, os povos índios pertenciam a quatro principais famílias linguísti-
cas - Tupi, Macro-Jê, Aruaque e Caribe. O maior grupo, o Tupi, seria originário
das regiões circundantes dos rios Paraguai e Paraná, mas deslocara-se para
norte, ao longo da costa atlântica, e estabelecera-se na bacia do Sul do Amazo-
nas. O rio Amazonas e os seus afluentes providenciavam também um habitat

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para os Aruaques e os Caribes. Os Aruaques podiam ser naturais desta região ou proveniente das suas origens comuns na Hispânia romana e no reino visigótico
ter migrado para lá vindos de noroeste; habitavam também as ilhas Caraíbas e anterior à invasão muçulmana de 711.
algumas regiões da América Central. Na altura da chegada dos ibéricos, os Os muçulmanos ocuparam praticamente toda a península Ibérica e aí perma-
semissedentários Aruaques estavam a ser pressionados por invasões dos Caribes, neceram cerca de oito séculos, durante os quais criaram uma poderosa civiliza-
que eram oriundos das montanhas da Guiana e tinham avançado para o Norte da ção islâmica, inicialmente unificada, mas depois fragmentada em reinos mais
Amazónia, depois de terem expulsado tribos aruaques das ilhas mais pequenas pequenos e beligerantes. Contudo, de uma perspetiva cristã, o período caracteri-
das Antilhas. Os povos falantes de macro-jê encontravam-se nas vastas savanas zou-se pela recuperação gradual do território que os Visigodos haviam perdido
do interior. para os infiéis. A Reconquista teve as suas muito modestas origens nas monta-
A economia destes povos combinava caça e pesca com uma agricultura iti- nhas das Astúrias, no extremo setentrional, onde os Visigodos sobreviventes se
nerante com queimada em solos que facilmente ficavam esgotados, devido à envolviam em escaramuças periódicas contra forças muçulmanas. A derrota dos
desflorestação. Era muito difícil povoar, com carácter permanente, regiões de muçulmanos em Covadonga, no ano de 718, é convencionalmente apontada
floresta densa ou planícies tórridas, onde as condições eram extremas: até as como o início do avanço dos cristãos para sul. Em meados do século ix, os cris-
tribos que viviam principalmente da agricultura habitavam aldeias temporárias, tãos conseguiram ocupar as terras semiáridas entre as montanhas do Norte e o
com cabanas feitas de ervas e madeira. As suas sociedades eram geralmente rio Douro, e no Nordeste, em redor de Barcelona, os muçulmanos tinham expul-
pequenas e móveis, assentes em grupos unidos por laços de parentesco que for- sado os Francos. No entanto, neste avanço cristão havia apenas um sentido
mavam unidades multifamiliares, lideradas por anciãos e xamãs. As tribos trava- intermitente de cruzada religiosa, e os pequenos reinos que emergiram ora se
vam guerras constantes entre si, e os feitos em batalha constituíam uma fonte de envolviam em lutas dinásticas e territoriais uns com os outros ora se uniam con-
estatuto. O combate, com arcos e cacetes, era extremamente selvagem; dispu- tra o inimigo muçulmano.
tava-se não o território ou o saque, mas prisioneiros, que depois eram mortos e O grande avanço cristão que se seguiu foi facilitado pela desintegração, no
comidos em rituais canibais. Não se verificando um povoamento duradouro, as século xi, do grande califado de Al-Andalus em vários reinos taifa conflituosos.
artes e o artesanato destes povos índios tinham uma natureza provisória ou trans- Os cristãos conseguiram chegar ao rio Tejo, com a captura de Toledo em 1085,
portável - pintavam os seus corpos e decoravam cabaças, cerâmica e cestos. e depois ao rio Ebro, após a queda de Saragoça para os Aragoneses em 1118.
Os Portugueses tiveram dificuldade em subjugar e organizar povos nativos Contudo, estas conquistas só ficariam seguras a partir do século xm, pois os
com um sentido de território tão fluido e fragmentados em tribos errantes. Assim, contra-ataques muçulmanos eram frequentes; assim, durante cerca de dois sécu-
a interação entre índios e europeus era esporádica, quase sempre hostil, e tinha los, as regiões centrais da península assemelharam-se a um mosaico de Estados
como resultado habitual a escravização dos índios capturados em ataques efetu- de fronteira, cristãos e muçulmanos, tentando cada um explorar a fraqueza dos
ados na floresta. Uma alternativa mais benigna era a fixação forçada de índios vizinhos numa luta por território, escravos e saques.
em missões, onde eram civilizados de acordo com as normas europeias. Ainda assim, os cristãos foram pouco a pouco avançando para sul, ocupando
e povoando território conquistado. Naqueles primeiros tempos de expansão ter-
ritorial, as guerras de fronteira eram travadas por grupos de guerreiros liderados
Os Ibéricos por um caudilho proeminente. Tratava-se, em muitos casos, de exercícios de
livre iniciativa - investidas predatórias contra reinos muçulmanos, em busca de
Quando chegaram ao Novo Mundo, Espanha e Portugal não eram estreantes ouro e tributo. Mas os reis cristãos encorajavam estes saqueadores prometendo-
na conquista e na colonização. Portugal já ocupara as ilhas dos Açores e da -Ihes jurisdição sobre as terras ou cidades que conseguissem conquistar e defen-
Madeira, e estava a estabelecer colónias comerciais na costa ocidental africana, der dos muçulmanos. Desta forma, homens ambiciosos podiam mais facilmente
enquanto Castela se apoderara do reino mouro de Granada e estava prestes a encontrar riqueza e estatuto através de proezas militares do que trabalhando
concluir a conquista do arquipélago das Canárias. Mais importante ainda era o terras pobres e pouco compensatórias, e assim, embora fluida e instável, a socie-
facto de estes reinos vizinhos terem alcançado a sua existência independente dade de fronteira dos Estados ibéricos era fundamentalmente aristocrática, em
através de uma luta de vários séculos para expulsar os muçulmanos da península virtude das oportunidades que um homem do povo tinha de se tornar nobre,
Ibérica. Esta experiência de reconquista marcara profundamente ambos os povos passando a possuir terras e direitos sobre vassalos. Incentivos idênticos viriam,
ibéricos, consolidando a herança de língua, religião, costumes e mentalidade mais tarde, a chamar para a aventura os conquistadores da América.

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No início do século xni, existiam quatro reinos cristãos bem definidos e bas- propriedades (os latifúndios) a nobres proeminentes, ou a instituições como a
tante poderosos - Portugal, Navarra, Aragão e Castela. Um exército constituído Igreja, mosteiros e ordens militares. Estas concentrações de terra criaram a ten-
pelos últimos três alcançou uma vitória impressionante sobre os muçulmanos em dência para um regime senhorial nas zonas rurais, especialmente em Nova Cas-
Lãs Navas de Tolosa, no ano de 1212, após o que a balança do poder na península tela, na Extremadura e na Andaluzia. Os nobres e as ordens militares acharam
pendeu decisivamente a favor dos cristãos. Por volta desta altura, também os des- mais conveniente obter rendimentos através dos impostos e da dízima em vez de
tinos dos principais reinos cristãos começaram a divergir. Portugal, que se tornara se empenharem diretamente na agricultura. De qualquer modo, nos locais onde
um Estado independente em 1143, depois de ter sido um condado de Castela que haviam permanecido os camponeses muçulmanos eram obrigados a pagar
tinha o Porto como principal cidade, completou a conquista do reino muçulmano impostos, enquanto os pequenos proprietários cristãos, necessitando de proteção
do Algarve em 1249, alcançando a sua plena integridade territorial muito antes de militar nas zonas fronteiriças turbulentas, se «entregavam» a um senhor em troca
Castela. Isolado por terrenos acidentados e voltado para o Atlântico, Portugal de pagamentos ou trabalho, vendo reduzidas as suas liberdades políticas, num
exploraria a navegação e o comércio marítimo. Aragão, que incluía o condado de regime que viria, na verdade, a aproximar-se do feudalismo.
Barcelona (Catalunha), tendo conquistado o reino muçulmano de Valência e Desta forma, as dinâmicas da conquista produziram um sistema peculiar de
cedido a Castela o direito sobre o reino de Múrcia em 1179, olhou para norte, para entrega a um senhor mediante o pagamento de impostos, sistema que evoluiria
além dos Pirinéus, e para o Mediterrâneo, onde edificaria um império marítimo do na América para a instituição da encomienda, o principal mecanismo para a
qual fariam parte as ilhas Baleares, a Sardenha, a Sicília, Nápoles e várias colónias obtenção de bens e mão de obra das comunidades índias. A Reconquista também
no Levante. Coube a Castela prosseguir a cruzada contra o islão ainda depois do proporcionou aos Castelhanos a experiência de povoar defensivamente territó-
século xm. Com Fernando Dl, os Castelhanos ocuparam as cidades cruciais de rios no seio de um povo de raça e cultura diferentes. Nas cidades muçulmanas
Córdova (1236) e Sevilha (1248), e conquistaram a maior parte da Andaluzia, mas conquistadas, os cristãos estabeleceram as suas instituições cívicas e religiosas
o reino de Granada, no sudeste, sobreviveu, protegido pelas suas montanhas, sobre a base muçulmana, convertendo as principais mesquitas em igrejas e esta-
durante mais dois séculos, num estado de independência precária comprada atra- belecendo os seus municípios entre comunidades estrangeiras; no campo, os
vés do pagamento de impostos aos monarcas de Castela, embora constantemente cristãos preferiram fixar-se em cidades novas, enquanto os muçulmanos conti-
assolado por ataques às suas fronteiras por parte de guerreiros castelhanos. Assim, nuaram a viver nas suas aldeias rurais dispersas, pelo menos nas regiões de onde
muito depois de Aragão e Portugal terem concluído as suas reconquistas, o remo não foram expulsos.
de Castela continuava preocupado com a conquista de território aos infiéis. Uma esfera de atividade económica que se revelou particularmente apelativa
Os problemas de povoar e defender grandes extensões de território, a par da para a nobreza castelhana foi a criação de gado. Em Nova Castela, na Extrema-
sobrevivência de um espírito feroz de cruzada religiosa, confeririam à sociedade dura e especialmente na Andaluzia, grandes manadas circulavam pelas pasta-
e ao carácter castelhanos traços que mais tarde se tornariam evidentes no Novo gens, vigiadas por cavaleiros chamados vaqueros. Era um tipo de criação de
Mundo. Um dos principais problemas era a escassez de mão de obra. A Coroa gado que não se praticava em nenhuma outra parte da Europa, apesar de já ser
viu-se obrigada a criar incentivos para atrair habitantes do Norte para as terras comum em Espanha no século xn. Esta peculiar economia de rancho, com a sua
despovoadas a sul. Assim, concedeu terra e fueros (forais) aos habitantes das cultura de marcas a ferro quente, cerrados e tarefas como apanhar com laço e
cidades fundadas nos novos territórios. A colonização castelhana foi, com efeito, reunir o gado, teria um enorme impacto em toda a América ibérica, desde as
predominantemente urbana, assentando em municípios estabelecidos de acordo pastagens do rio da Prata até às extensões desertas do Norte do México e do
com normas definidas pela Coroa. Sob a jurisdição de cada uma dessas cidades Texas; nos EUA, acabaria por ser adotada pelos migrantes anglo-saxónicos do
ficava uma extensa área rural, onde a terra era atribuída aos vecinos (cidadãos) século xix, inspirando o ethos do cowboy no Oeste. Mais importante, porém, para
da cidade em função da sua riqueza ou do seu estatuto, mediante um processo a economia do reino medieval de Castela era a criação de gado ovino. Assistiu-se
conhecido como repartimiento (distribuição). Muitas destas cidades, ficando ao desenvolvimento de uma considerável economia pastoral, que implicava des-
próximas da fronteira, conservavam um carácter militar, com um núcleo fortifi- locar sazonalmente enormes rebanhos através de longas distâncias para encon-
cado onde os vecinos podiam refugiar-se em caso de guerra. Este modelo de trar pasto. A mobilidade das atividades de rancho e de pastoreio combinava com
colonização seria mais tarde utilizado no povoamento das índias. » as flutuações próprias das fronteiras em tempo de guerra, mas dificultava a
No entanto, quanto mais avançava para sul, maior a dificuldade de Castela (agricultura de cultivo e o estabelecimento de uma sociedade sedentária de peque-
em encontrar colonos para povoar a terra, pelo que foram entregues vastas nos proprietários rurais.

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Ao longo dos séculos xin e xiv, Castela tornou-se um grande produtor de lã independentes. Nos séculos xiv e xv, o reino de Castela foi abalado por uma série
para o mercado europeu, comércio que levou prosperidade aos portos nortenhos de sangrentas guerras civis e revoltas de barões, que por pouco não levaram à sua
da costa da Cantábria e às cidades da Castela-a-Velha. Estas comunidades urba- desintegração.
nas eram zelosas na defesa dos seusfueros e serviam-se da sua representação nas Como reação à ameaça constante de desintegração, religiosos e apoiantes da
Cortes para exercer alguma influência sobre o Estado através do seu direito de monarquia elaboraram uma teoria rudimentar de absolutismo, que exaltava o
voto sobre as receitas da Coroa. Mas as populações urbanas e os mercadores poder do rei, conferido por Deus, sobre os direitos dos nobres e das outras clas-
nunca adquiriam poder suficiente para desafiar o regime senhorial das zonas ses do reino. Este conceito de soberania já surgira em Siete Partidas, o grande
rurais; o que conseguiam, na melhor das hipóteses, era aliar-se ao rei para defen- código legal de Castela produzido na década de 60 do século xm sob os auspícios
der os seus interesses contra a nobreza. Castela permaneceria, com efeito, uma de Afonso X, o Sábio, e adotado como lei da terra em 1348:
sociedade de conquista ferozmente aristocrática, onde possuir uma grande pro-
priedade e exercer poder senhorial sobre outrem constituía o ideal social,- não Os reis são vicários de Deus, cada um no seu reino, colocados acima do povo
apenas para a numerosa nobreza de cavaleiros e fidalgos, mas também para para preservarem a justiça e a verdade nas questões temporais (*).
grande parte do povo, que podia ainda aspirar a uma melhoria da sua condição
através da força das armas nas guerras contra a Granada muçulmana, na con- D. João H de Castela expressou esta ideia de modo mais veemente em 1439,
quista das Canárias ou, mais tarde, na epopeia das índias. Assim, praticamente em resposta a críticas dos seus nobres relativamente ao poder real:
até ao final do século xvi, a libertação do trabalho rural mediante o uso da espada
continuaria a ser uma hipótese para um castelhano ambicioso. De tal ordem é o poder do rei que todas as leis e todos os direitos estão abaixo
A queda da Andaluzia permitiu o acesso de Castela ao Atlântico através da dele, e esta posição foi-lhe concedida não pelos homens mas por Deus, cujo lugar o
sua costa sudoeste. A princípio, era necessário poder marítimo para patrulhar o rei ocupa no que toca aos assuntos temporais C).
estreito de Gibraltar e impedir que os muçulmanos do Norte de África viessem
em auxílio dos Mouros de Granada. Mas a atividade comercial também era Contudo, esta visão do papel do rei estava em desacordo com um conceito
importante, e o estreito era uma passagem através da qual o comércio do Medi- mais feudalista de um contrato entre o rei e os seus vassalos, que dava a estes
terrâneo podia chegar aos portos norte-atlânticos da Bretanha, da Inglaterra e da últimos um «direito de resistência» contra qualquer rei que agisse de modo tirâ-
Flandres. Em finais do século xiv, os portos da costa atlântica de Castela tinham, nico e infringisse arbitrariamente os direitos e as liberdades tradicionais dos seus
juntamente com os portos do Sul de Portugal, formado um arco de iniciativa súbditos. Segundo esta perspetiva, que fora teoricamente justificada por São
marítima, onde um apetite comum pela exploração levaria portugueses, castelha- Tomás de Aquino e pela escolástica medieval, a autoridade política resultava de
nos e os muitos genoveses radicados naquelas paragens a aventurar-se pelo um «pacto de submissão», mediante o qual os súbditos de um monarca se com-
oceano. Com a descoberta de novas ilhas surgiram os primeiros sinais de rivali- prometiam a obedecer à vontade real desde que o soberano defendesse «a justiça
dade colonial entre os reinos de Castela e Portugal, visto que ambos pretendiam e a verdade» e promovesse o «bem comum».
conquistá-las e povoá-las. De acordo com Mário Góngora:
O progresso da Reconquista fora perturbado por divisões internas entre os
cristãos. Em virtude de uma tendência fissípara para procurar a autonomia rela- Na Idade Média e no século xvi, não existia apenas o direito de resistir à «tira-
tivamente a regimes maiores, tinham-se formado Estados: Castela começara por nia» ou a ordens injustas específicas, mas também a ordens que fossem contra o bem
ser um condado do reino de Leão; Portugal nascera quando um conjunto de ter- comum ou a felicidade dos súbditos. A lei, a justiça e o bem comum encontram-se
ras a sul do rio Minho, dote da filha do rei de Castela, foi usado pelo filho desta, tão intimamente interligados na visão medieval que o direito de resistência habitava
Afonso Henriques, como trampolim para as suas próprias ambições régias. ubiquamente todas as autoridades e comunidades (").
Os reinos cristãos da Ibéria foram, pois, o resultado de um processo de fissão,
recomposição e avanço à custa dos muçulmanos, e estas tendências não se dissi-
param por completo nem mesmo depois de os principais Estados se terem cris- (*) Citado em A. Mackay, Spain In the Middle Ages (MacmiUan: London, 1977), p. 133.
talizado no século xin, pois em virtude da política dinástica e do regime senhorial C) Ibid., p. 137
(") Mário Góngora, Studies in the Colonial History of Spanish America (Cambridge
da fronteira surgiam constantemente homens que reclamavam para si domínios
University Press: Cambridge, 1975), p. 74.

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A tensão entre as perspetivas absolutista e contratualista da autoridade dos var um sentido de unidade cultural e política, dada a considerável diversidade de
monarcas nunca foi totalmente resolvida, e afloraria em tempos de crise. Na raças, culturas e povos sujeitos à autoridade do monarca. O grande feito de
América, como veremos, esta tensão teve uma extrema importância, subsistindo Fernando e Isabel, os Reis Católicos, como seriam chamados, foi terem inven-
ao longo do período colonial: afetaria a criação do Estado imperial no século xvi, tado um sistema político que se revelou extraordinariamente eficaz na concilia-
quando a Coroa tentou impor a sua autoridade a conquistadores e colonos; dois ção destas duas características. Isto porque, sem destruir os direitos e liberdades
séculos mais tarde, as reformas dos Bourbons espanhóis reavivá-la-iam nas tradicionais das suas partes constituintes, a monarquia católica alcançou uma
índias; no século xix, voltaria a dar que falar e contribuiria para a grave crise de unidade de objetivos que triunfou sobre as tendências centrífugas que por várias
autoridade real que precipitou as guerras da independência. vezes haviam perturbado os reinos da Ibéria.
Em meados do século xv, a autoridade real em Castela enfraqueceu de tal Como se conseguiu este sentido de unidade? Não tendo propriamente ino-
modo que nobres e prelados quase a rejeitaram no decurso de uma disputa acesa vado o exercício da governação, Fernando e Isabel reuniram nas suas mãos ins-
relativamente à sucessão, episódio que viria a originar outra guerra civil. A ven- trumentos de poder já existentes e empregaram-nos com mais êxito do que os
cedora, em 1479, contra forças apoiadas pelo rei de Portugal, que reclamara o seus antecessores. Em primeiro lugar, os monarcas católicos conseguiram con-
trono para a sua noiva castelhana, foi Isabel, meia-irmã do falecido Henrique IV solidar a autoridade da Coroa contra a alta nobreza e as ordens militares. O prin-
e mulher de Fernando de Aragão, que nesse mesmo ano chegaria ao trono desse cipal instrumento foi, neste caso, patrocínio: o favor real na forma de direito a
reino. O casamento de Fernando e Isabel uniu os dois reinos ibéricos mais pode- jeceber o dízimo, a atribuição de cargos, concessões de terra e honras palacianas
rosos numa monarquia dual, que permitiu uma consolidação sem precedentes da permitiam aos soberanos jogar com as ambições sociais dos nobres e, desse
autoridade real, bem como a criação de um Estado do qual o facciosismo baro- modo, controlá-los. O poder da monarquia foi ainda fortalecido através da cria-
nial foi banido com êxito. ção ou revitalização de instituições centrais. Uma força policial a cavalo, a Santa
A união de Castela e Aragão foi, no entanto, sob muitos aspectos, puramente Hermandad, mantinha a ordem em vastas áreas do país. Os conselhos de Estado,
nominal, pois tratou-se de uma aliança dinástica que não alterou significativa- outrora reservados à aristocracia, eram agora preenchidos por letrados, homens
mente as estruturas constitucionais, administrativas ou fiscais de nenhum dos cultos da baixa nobreza que deviam o seu cargo inteiramente ao apoio do rei.
reinos. Castela era o Estado mais unitário, com leis que vigoravam em todos os O cargo de corregedor, um funcionário real que participava nos conselhos muni-
seus vários domínios (com a exceção parcial das províncias bascas) e um parla- cipais, foi instituído nas principais cidades, aumentando consideravelmente o
mento que contemplava representações de todas elas. A Coroa de Aragão, pelo alcance da intervenção do rei sobre as regiões. Por último, quando as Cortes de
contrário, era uma monarquia federada que abrangia três reinos autónomos - Ara- Castela reuniam - o que não era de modo algum frequente -, o controlo exercido
gão, Valência e Catalunha, possuindo cada um o seu próprio parlamento, para pelos monarcas através dos corregedores garantia, em geral, a obediência dos
além de domínios ultramarinos com administrações distintas nas ilhas Baleares, representantes das cidades na votação de verbas para a Coroa.
na Sardenha, em Nápoles e na Sicília. A federação aragonesa desenvolvera uma No entanto, a revisão do aparelho do Estado não justifica, por si só, o êxito
instituição que, devidamente adaptada, desempenharia um papel vital na adminis- dos Reis Católicos. Esta centralização não poderia ter tido um impacto dura-
tração do seu império americano: cada domínio da Coroa de Aragão era gover- jdouro se não tivesse sido acompanhada de uma ideologia de Estado invulgar-
nado por um vice-rei em quem o monarca na sua ausência delegava autoridade. ymente poderosa. A base dessa ideologia era a identificação da monarquia com os
O acordo de casamento de Fernando e Isabel previa, além do mais, formal- jetivos da Igreja Católica; e o seu elemento catalisador foi uma cruzada
mente, a separação de Aragão e de Castela, separação que levaria, por exemplo, lançada em 1482 contra os infiéis de Granada. A religião tornar-se-ia a força
à exclusão de Aragão do comércio com as índias. Mas o remo deAragão, enfra- unificadora vital num reino de Castela dividido internamente por conflitos, e foi
quecido por conflitos baroniais e pelo declínio comercial resultante da suprema- revigorada por reformas concebidas para pôr termo ao laxismo e ao abuso de
cia marítima de Génova, viria a ter uma poderosa castelhanização durante o reino privilégios que caracterizavam a Igreja no final da Idade Média.
de Fernando, pois Castela tornar-se-ia o parceiro dominante da aliança, e o O impulso que determinou estas reformas veio, em grande parte, da mui pia
pluralismo institucional da federação aragonesa seria imbuído do espírito abso- l, rainha Isabel, que era aconselhada por clérigos competentes, como o seu confes-
lutista que emanava do seu vizinho mais assertivo. • »£, sor, Hernando de Talavera, e o franciscano Jiménez de Cisneros. Na verdade, a
A união de Castela com Aragão gerou o grande tema que dominaria a gover- f reforma dos franciscanos e de outras ordens mendicantes libertou enormes reser-
í*
nação e o imperialismo espanhóis por vários séculos - a necessidade de conser- í- vás de energia, cujos efeitos seriam bem evidentes no esforço missionário para

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ii l-,
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

converter os índios americanos no século seguinte. Foi também a época do dando a Castela a promessa de inauditas riquezas, que viriam do comércio com
humanismo renascentista e da renovação do conhecimento, em larga medida o Oriente. Mas a combinação de trono e altar era muito mais do que uma coin-
promovida pela Igreja: eruditos italianos importantes eram apoiados pela corte; cidência de interesses, e não implicava a aquiescência da Igreja quanto ao seu
a Universidade de Alcalá foi fundada por Cisneros, que supervisionou a elabora- controlo por parte da Coroa. A relação era tão importante por ser vital para a
ção da grande Bíblia Poliglota; a recuperação de textos clássicos fez-se acompa- constituição de uma ideologia de absolutismo real, a base para a criação de um
nhar de um novo interesse pela língua - a gramática de castelhano de António de Estado-nação protomoderno em Espanha. (A este respeito, as campanhas para
Nebrija, a primeira gramática de uma língua europeia moderna, foi publicada em converter judeus e muçulmanos ao catolicismo, e a expulsão, em 1492, de judeus
1492. A língua, como aconselharam à rainha, «é o instrumento perfeito do impé- que recusavam converter-se - medidas tão ofensivas para a consciência liberal
rio» e o prestígio cultural do castelhano manteve-se, na Europa, durante cerca de moderna - podem ser vistas como pré-requisitos para a construção da ideologia
dois séculos. Esta florescente cultura humanista de Castela foi um estímulo de um Estado-nação espanhol.)
importante para o estudo das línguas e sociedades dos povos ameríndios, por O peso dessa ideologia vigorosa de absolutismo real residia no facto de a
parte dos missionários espanhóis no Novo Mundo. Igreja legitimar o poder da Coroa ao resolver a tensão histórica entre as perspe-
A própria Igreja tomou-se a instituição que melhor servia a política centrali- tivas absolutista e contratual da autoridade real - a vontade do soberano não seria
zadora de Fernando e Isabel. Os Reis Católicos conseguiram ter o controlo de considerada «tirânica» se fosse ao encontro dos objetivos da religião e se obser-
parte dos recursos financeiros e dos apoios da Igreja. Mais tarde, o papado viria vasse a ortodoxia católica. Uma tal fórmula não só libertava a Coroa dos perigos
a conceder-lhes uma série de direitos que lhes permitiria fazer nomeações para da visão contratualista da soberania, o que poderia originar desafios diretos à sua
todos os principais cargos eclesiásticos no reino conquistado de Granada e na autoridade por parte de súbditos rebeldes, como também a poupava a acusações
América. Este Patrocínio Real dava ao Estado imperial nas índias um controlo de arbitrariedade, uma vez que a vontade do monarca estava implicitamente
singular sobre a hierarquia da Igreja. No começo do reinado, o Santo Ofício, ou limitada por motivos religiosos tal como interpretados pela Igreja. Foi, então, por
Inquisição, foi fundado em Castela e reanimado em Aragão, como instituição via desta associação com a Igreja que a monarquia católica viria a alcançar um
concebida para prevenir desvios da ortodoxia religiosa por parte de uma popula- formidável monopólio de legitimidade nos seus muitos e diversos territórios
ção cristã no seio da qual viviam muitos judeus e muçulmanos. espalhados pelo mundo. No futuro, a governação de sucessivos reis de Espanha
O antissemitismo de longa data do povo garantiu à Inquisição uma ampla estaria casada com a causa da religião católica. Isto porque, na defesa da ortodo-
base de apoio popular, e os tribunais do Santo Ofício preocupavam-se acima de xia, os monarcas espanhóis procuraram preservar também a legitimidade do
tudo com a vigilância dos conversos, sobre os quais pairava a suspeita de desle- poder central no que viria a ser um vasto império com domínios da Europa e na
aldade para com a sua nova fé. O decreto de 1492 que obrigava os judeus a América. Para posteriores pensadores políticos da Espanha, a legitimação do
converterem-se, sob pena de serem expulsos de Espanha, foi motivado pelo poder real por parte da Igreja parecia ter sido a pedra basilar do Estado, a garan-
desejo premente dos monarcas de criar uma população ideologicamente homo- tia fundamental da sua unidade e estabilidade política.
génea em terras que tinham estado sujeitas a perturbações políticas constantes; '. Com efeito, a relação entre trono e altar foi de tal modo central na legitima-
receavam que a presença de comunidades judaicas e muçulmanas numerosas ção do Estado-nação espanhol que, em meados do século xvi, surgiu um novo
fosse uma tentação perene para os conversos, que poderiam regressar à sua ' perigo teórico: à medida que a autoridade real se estendia ao Novo Mundo, a sua
antiga religião em segredo. Contudo, a Inquisição não se tornou particularmente relação com a Igreja ficava sujeita a um rigoroso escrutínio intelectual, reves-
importante nas índias, embora a preocupação popular generalizada com a lim- tindo-se de um certo brilho contratualista que lhe conferiam os teólogos neoes-
pieza de sangre, a ideia de que a honra da família dependia da ausência de qual- colásticos, entre os quais se destacou Francisco de Vitoria. Inspirados pela con-
quer mácula de sangue judeu ou muçulmano, tenha persistido na América na s^quista dos Astecas e dos Inças, Vitoria e os seus discípulos reexaminaram a
forma de preconceito relativamente ao casamento com pessoas de cor (precon- questão da legitimidade política e refinaram a teoria do absolutismo hispânico,
ceito que não se estendia às relações sexuais). ^argumentando que, além de obedecer às leis de Deus, a vontade do rei devia ser
A aliança entre a Igreja e o Estado na monarquia católica pareceu abençoada ^restringida pela Lei Natural comum a toda a humanidade. Esta teoria tinha como
pela aprovação divina em 1492 - o ano providencial em que Granada foi tomada íobjetivo proteger os índios pagãos da América dos abusos de poder cometidos
pelos cristãos, acontecimento que pôs fim a 800 anos de reconquista da península f por conquistadores e administradores da Coroa, consolidando assim a reivindi-
' i?
Ibérica, e o ano em que Colombo descobriu terras do outro lado do oceano, |«acão de legitimidade da autoridade real no Novo Mundo. Todavia, na prática,

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ÍNDIOS E IBÉRICOS
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

pouco faltava para expressar a relação entre monarca e Igreja nos termos de um monarquia, Igreja e povo que fora alcançado por Fernando e por Isabel, e que
contrato, uma vez que a Lei Natural era um conceito vindo da escolástica, e os viria a ser confirmado e defendido pelos seus sucessores.
seus intérpretes eram, inevitavelmente, teólogos, que, enquanto homens da E assim, tendo derrotado os muçulmanos e expulsado os judeus, a Espanha
Igreja, eram os supervisores da legitimidade do Estado, e tinham por responsa- reagiu com alarme ao alastrar do protestantismo pela Europa, por razões políti-
bilidade examinar a propriedade religiosa e ética das políticas da Coroa. cas como por razões puramente religiosas. A contaminação de heresia em qual-
Deste modo, o pensamento da Escola de Salamanca sobre a Lei Natural quer parte do vasto império espanhol podia, afinal, semear a discórdia entre
contestava implicitamente o poder absoluto da Coroa; e tratava-se de uma con- trono e altar; se tal sucedesse, a essência da monarquia católica desfar-se-ia, a
testação importante, pois advinha da construção teórica do próprio absolutismo legitimidade do poder real seria posta em causa, e todo o império, incluindo a
espanhol. Com efeito, os teólogos de Salamanca defenderiam que a Espanha não própria Península, afundar-se-ia certamente na anarquia. Quando um terrível
tinha, à luz da Lei Natural, o direito intrínseco de conquistar os reinos índios ou ; conflito religioso começava a lançar a Alemanha, a França e a Inglaterra numa
de expropriar os seus habitantes: tinha apenas o direito de pregar o cristianismo agitação que se prolongaria pelo século xvi, a defesa obstinada de uma única
aos povos do Novo Mundo. Partindo deste princípio, o frade dominicano Barto- religião, por parte da Coroa espanhola, parecia amplamente justificada: em com-
lomé de Ias Casas iria ao ponto de advogar o fim da conquista e a retirada de -. paração com os reinos e principados da Europa, o império espanhol era um
Espanha das índias. Era uma posição extraordinária, tratando-se de funcionários exemplo de paz, estabilidade e ordem. Ainda em 1615, depois de a Espanha ter
intelectuais e religiosos de uma monarquia imperial; e, com efeito, na década de lutado durante décadas para preservar a integridade territorial e religiosa dos
50 do século xvi, o rumor de que o imperador Carlos V se preparava para «aban- seus domínios, o capelão real, Juan de Santa Maria, reiterava o princípio funda-
donar as índias» alarmou e enfureceu os colonos espanhóis na América. Eram os mental da política espanhola: «O rei cristão deve compreender que, mantendo-se
pareceres de alguns teólogos puristas no seio do clero, mas revelam os limites firme na sua fé, e certificando-se de que os seus súbditos fazem o mesmo, terá a
que podiam ser impostos ao absolutismo espanhol através da identificação da obediência e o temor de todos; de outra forma, tudo ruirá.» (*)
monarquia católica com os interesses da Igreja. E, mais importante ainda, esses Após a morte de Fernando e de Isabel, os monarcas de Espanha teriam de
pareceres tinham um efeito prático na política imperial: o facto de Lãs Casas ter pagar um preço cada vez mais elevado para impedir que tudo misse. Uma das
defendido os índios na corte influenciou profundamente, como veremos, o suas principais dificuldades residia no enorme acréscimo de territórios e povos
enquadramento legal e institucional criado pela Coroa para regular as relações resultante da subida ao trono de Carlos V, em 1516. O novo rei, nascido na Flan-
entre espanhóis e índios no Novo Mundo. dres mas pertencente à dinastia de Habsburgo da Áustria, trouxe consigo uma
Apesar destas tensões teóricas internas, entre os pensadores políticos espa- fabulosa herança de domínios na Europa Central e do Norte; ao ser eleito Sacro
nhóis era consensual que Igreja e Estado eram entidades interdependentes no Imperador Romano em 1519, jurou defender a cristandade em todo o continente
seio da estrutura da monarquia católica, ligadas por uma espécie de pacto mútuo e no Mediterrâneo. A Espanha viu-se, então, arrastada para a arena da política
que garantia um monopólio da legitimidade política. O jesuíta Juan de Mariana internacional - contra o Império Otomano, a França, os príncipes protestantes da
observou que deviam «unir-se através da boa vontade e do cumprimento das Alemanha, os Estados italianos, e contra o próprio papado. Perante a imensidão
obrigações que tinham um para com o outro. Assim unidos no espírito, os ecle- do império, o que inspirava muitos dos apoiantes de Carlos, se não o próprio
siásticos zelarão pela segurança do Estado, e os príncipes (...) empenhar-se-ão imperador, era a noção essencialmente medieval da monarquia universal, que o
com grande esforço na proteção da religião estabelecida.» (*) poeta Hernando de Acuna condensou nos famosos versos:
Partindo destes pressupostos ideológicos, considerava-se que a monarquia
católica, para preservar a sua autoridade e legitimidade, devia manter a todo o Um redil, um único pastor na Terra...
custo uma religião única entre os súbditos. Tolerar outras religiões constituía um Um monarca, um império e uma espada.
perigo mortal para a integridade do Estado, pois a unidade política, que durante
séculos escapara aos reinos ibéricos, assentava no extraordinário consenso entre Era a visão de Fernando e de Isabel levada mais longe, demasiado longe,
provavelmente, para merecer a aprovação do próprio rei.

(*) Citado em J. A. Fernández-Santamaría, Reason of State and Statecraft in Spanish


Political Thought, 1595-1640 (University Press of America: Lanham, Nova Iorque, Londres, O J. A. Fernández-Santamaría, Reason of State and Statecraft in Spanish Political
1983), p. 64. Thought, 1595-1640, pp. 81-2.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

Com efeito, Carlos quase destruiu a obra dos seus avós. Sendo estrangeiro contra a França e contra os Turcos deixaram a Espanha esgotada e desperdiçaram
(cresceu na Flandres e falava francês), era, no início, insensível ao equilíbrio as riquezas das índias. Quando Filipe n morreu, em 1598, a Espanha (designação
interno da política castelhana, o que provocou uma rebelião da população urbana que, para todos os efeitos, significava Castela) estava falida, esmagada pelos
em 1520. Estes comuneros de Castela protestavam contra a cobrança de. impos- impostos e devastada pelos flagelos da inflação, da fome e da crise económica.
tos efetuada por um rei estrangeiro e frequentemente ausente, para pagar guerras Ainda assim, não cedera um milímetro dos seus territórios, e a preservação da
em partes remotas que não eram, claramente, do interesse da Espanha. A revolta integridade política e religiosa do império foi a tarefa sagrada que Filipe deixou
foi esmagada em 1521, mas simbolizou a reanimação, na prática, por parte das aos seus sucessores.
gentes livres de Castela, da perspetiva contratualista da monarquia, segundo a Contudo, na viragem de século, pouco depois da morte de Filipe II, as clas-
qual o povo podia reivindicar um «direito de resistência» contra um rei que abu- ses instruídas de Castela estavam bem cientes da crise, tendo compreendido que
sasse dos seus poderes. Era um direito que também os conquistadores da Amé- a situação económica era de uma gravidade extrema e que ó fardo imperial não
rica haveriam de invocar, cerca de 20 anos mais tarde, quando Carlos te.ntou podia ser sustentado sem reformas. Numerosos arbitristas, analistas autono-
impor-lhes leis que consideravam contrárias aos seus interesses vitais. A derrota meados dos males da nação, ofereceram os seus remédios. Mas, para proceder a
dos comuneros castelhanos permitiu preservar a integridade do absolutismo real; reformas, a Coroa via-se obrigada a restruturar o sistema - era necessário esti-
mas foi, talvez, o carácter cada vez mais religioso e de cruzada da política mular a produção e reanimar a agricultura, e estancar a hemorragia de prata
externa de Carlos V que poupou a Coroa a um maior desgaste da sua legitimi- americana que continuava a pagar as guerras na Europa. Impunham-se reformas
dade. O monopólio de legitimidade de que gozava a monarquia católica era, com para combater a sobrecarga fiscal que incapacitava as populações urbanas e
efeito, algo de extraordinariamente valioso, mas assentava, em última instância, rurais de Castela; era necessário distribuir o fardo dos impostos por outras partes
num amplo equilíbrio de interesses, num consenso político fundamental, entre a do império e pelas fileiras excessivamente privilegiadas e cada vez mais nume-
Coroa, a Igreja e o povo. rosas da nobreza e do clero. Outro problema era excessiva dispersão das forças
À medida que o ouro e a prata da América iam chegando a Sevilha, a Espa- armadas espanholas, que tentavam defender, e até estender, a fé desde as Filipi-
nha - e as armas espanholas - adquiria uma importância cada vez maior para nas à Holanda; era, talvez, necessária uma visão mais pragmática, admitir-se a
Carlos V no teatro europeu. As complicações militares estrangeiras acabariam, futilidade de tentar salvar os Países Baixos para a religião católica, ou de resistir
no entanto, por sujeitar o tesouro real a uma pressão excessiva; ainda não termi- ao alastrar do islão no Pacífico. Porém, um compromisso com os protestantes na
nara o reinado de Carlos e já a riqueza da América estava a ser hipotecada a Holanda seria aceitar o triunfo da heresia dentro dos domínios do monarca cató-
banqueiros estrangeiros. Quando Carlos V abdicou, em 1556, os seus territórios lico; isto prejudicaria a reputação da Espanha como grande potência empenhada
foram divididos entre o seu irmão, que se tornou Sacro Imperador de Roma, e o na defesa do catolicismo pelo mundo fora, e poderia afastar importantes setores
seu filho, Filipe II de Espanha. Apesar da divisão, o novo rei espanhol continu- da Igreja, cavando um fosso entre trono e altar, o que poria em risco o precioso
ava a ser herdeiro de um império imenso, que compreendia o continente ameri- monopólio de legitimidade que unificava o império.
cano, grande parte da Itália, o Franco Condado e a Holanda; em 1580, com a Pragmatismo a que preço? Poderia a Coroa agir por «razões de Estado»,
subida de Filipe ao trono de Portugal, não só a Península se voltou a unificar sob quando essas razões talvez estivessem em conflito com os fins da verdadeira
um único soberano como as posses dos Portugueses no Brasil, em África, na religião? Mais uma vez, na alvorada do século xvn, o tema da autoridade real
índia e no Extremo Oriente foram também integradas no domínio imperial. estava no centro do debate político. No clima de ortodoxia religiosa que se
Incomparavelmente mais vasto e mais diverso do que Fernando e Isabel teriam vivia, a discussão sobre o pragmatismo tinha de ser conduzida de um modo
podido imaginar, este gigantesco regime sujeitaria os princípios da monarquia velado. Os políticos, entre os quais homens que nutriam uma simpatia secreta
católica a uma prova decisiva. pela conceção de Maquiavel de que o príncipe estava acima das normas éticas
Pela lógica intrínseca da monarquia, era absolutamente necessário preservar comuns e devia agir apenas por «razões de Estado», defendiam um absolutismo
a religião única como força unificadora dos seus muitos domínios, e Filipe II real mais vigoroso (como o que Luís XTV viria a reclamar para si em França) no
revelou-se o mais devoto e católico dos reis, convicto da sua missão providencial que se referia a subir os impostos e a suspender direitos consuetudinários em
de devolver ao mundo cristão a sua fé unitária. Falhou em absoluto o seu oh^s- nome das reformas, bem como uma postura mais pragmática na política externa.
tivo, e com enormes custos materiais; as guerras contra as províncias protes- Contra eles estavam os defensores do tradicional conjunto hispânico entre Coroa
tantes rebeldes da Holanda, contra a também protestante Isabel I de Inglaterra, e Igreja, opositores resolutos de Maquiavel, que consideravam que qualquer

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

desvio, por parte do rei, das leis de Deus ou dos interesses da fé tornaria a sua E no entanto, apesar da sua fraqueza política e económica, a Espanha foi
política intrinsecamente imoral e convidaria ao castigo divino. Tal era o dilema capaz de conservar a maior parte do seu império. A monarquia católica, embora
da monarquia católica no século xvn: o império encontrava-se sob a ameaça de ultrapassada e quase paralisada pela inércia, possuía ainda uma aura sagrada de
colapso económico devido ao esforço imenso de conservar a sua integridade legitimidade aos olhos dos seus súbditos, tanto em Espanha como fora do país.
religiosa, que, por sua vez, se julgava essencial para manter a unidade política; e No que respeitava às colónias americanas, era uma vantagem preciosa, pois o rei
se a tão dispendiosa guerra contra os hereges holandeses fosse abandonada ape- conseguia ter a lealdade política dos povos diversos e, amiúde, divididos das
nas por razões pragmáticas, não poderia o império desintegrar-se, de qualquer índias, atuando como um foco de unidade e estabilidade em colónias potencial-
forma, em virtude de um castigo dos Céus? A recuperação económica implicaria mente rebeldes. Paradoxalmente, a fraqueza política do Estado espanhol poderá
necessariamente comprometer a legitimidade política? A Coroa optou por não ter contribuído para a longevidade do seu império americano; a situação das
correr o risco do pragmatismo; procurou ater-se à sua velha garantia de legitimi- índias no século xvn foi definida como «autonomia sob o comando do rei (*)»,
dade assente na aliança com a Igreja. pois as elites das colónias prosperavam, como veremos, com a inércia de uma
Nos anos 20 e 30 do século xvii, foram empreendidos grandes esforços para monarquia absoluta que se ia desmoronando, hipocritamente, do outro lado
aumentar as receitas, de modo a prosseguir a guerra contra os Holandeses e do mar.
suportar os custos cada vez avultados da defesa global do império. A política da A monarquia católica fundada por Fernando e Isabel revelou-se uma criatura
União de Armas concebida pelo primeiro-ministro enérgico e reformista de política extraordinariamente resistente. Muito depois do seu declínio económico
Filipe IV, o conde-duque de Clivares, tinha como objetivo aliviar a pressão fiscal e da perda de poder na Europa, a Espanha mantinha as suas posses imperiais na
sobre Castela - que sempre suportara a maior parte do esforço de guerra - , América praticamente intactas. A lealdade que a Coroa espanhola conseguia
aumentando os impostos noutros territórios do império; mas a tentativa de imple- inspirar aos seus súbditos americanos pode ser atribuída ao monopólio de legiti-
mentar reformas internas foi malsucedida em 1640, tendo originado revoltas midade que retirava da sua relação simbiótica com a Igreja, um monopólio que
armadas na Catalunha, em Portugal e nos territórios italianos, quando os os Habsburgos tanto fizeram para defender. Mas a Espanha dos Habsburgos
súbditos do monarca católico nestes reinos invocaram o seu «direito de resistên- continuou a declinar quando subiu ao trono o pouco afortunado Carlos H, o
cia» a uma política que os privava dos seus direitos e liberdades consuetu- último da sua dinastia; depois da morte do rei, em 1700, a Guerra da Sucessão
dinários. Espanhola deu o trono à dinastia francesa dos Bourbons. Porém, quando tenta-
Ironicamente, um programa concebido para manter o império coeso, e até ram introduzir reformas nas últimas décadas do século xvui, os Bourbons pertur-
para levar mais longe a sua unificação política, conseguira apenas deixar a baram o tradicional equilíbrio entre trono e altar que caracterizava a Espanha.
monarquia católica à beira da destruição, porque pusera em causa o consenso Nas índias, o absolutismo moderno, ao estilo francês, da monarquia Bourbon,
fundamental entre Coroa, Igreja e povo que sustinha o Estado imperial. A revolta sobrepondo-se à Igreja e agindo contra os seus interesses, minou a legitimidade
catalã acabou por ser contida, assim como todas as outras, à exceção da portu- da Coroa e deu origem a acusações de «tirania» por parte de alguns setores do
guesa. A Espanha mostrou-se, no entanto, incapaz de vencer os Holandeses após clero e da sociedade hispano-americanos. Com as suas fundações abaladas, a
80 anos de guerra; em 1648, viu-se obrigada a reconhecer a independência da monarquia católica da Espanha acabou por ruir, na América, quando os exércitos
Holanda e em 1668 o direito de Portugal à independência foi formalmente aceite. de Napoleão invadiram a península Ibérica em 1808.
Em finais do século xvn, a Espanha já não era a suprema potência mundial; era,
antes, um país exausto que gastara as suas riquezas na perseguição de uma qui- Pela experiência da Reconquista e pela sua herança cultural ibérica, Portugal
mera de unidade política e religiosa, agarrando-se a uma forma de absolutismo partilhava de muitas das características da vizinha Castela, e as histórias relacio-
que dava à Coroa uma legitimidade formidável, mas que a deixava demasiado - nadas dos dois reinos cruzavam-se e sobrepunham-se com frequência. Como
sujeita à influência da Igreja. Na segunda metade do século xvn, a monarquia acontecera em Castela, vários séculos de lutas contra os muçulmanos tinham
católica tomara-se um anacronismo, uma relíquia da Idade Média tardia. Em produzido uma sociedade em que a religião possuía um cariz de cruzada e estava
monarquias rivais, já então economicamente superiores à Espanha, as razões de estreitamente associada à identidade nacional. O sistema de exploração da terra
Estado ganhavam prioridade sobre os interesses da religião, como sucedeu já
França de Luís XIQ e de Luís XIV. Noutras partes, de que eram exemplo a
(*) J. H. Elliott, Cambridge History of Latín America, (org.) Leslie Bethell (10 vols.,
Holanda e a Inglaterra, começavam a difundir-se ideias de constitucionalismo.
Cambridge University Press: Cambridge, 1984-92), vol. l, p. 338.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

era semelhante ao de Castela: no Norte fértil e bem povoado, havia um número levaram Isabel ao trono de Castela. Em Portugal, D. João II (1481-95) acabou
elevado de pequenos proprietários e lavradores; já no Sul predominavam os por impor a ordem e conseguiu, por meio de uma combinação de assassínios e
latifúndios e vigorava um regime senhorial. execuções, destruir o poder da nobreza e confiscar grande parte da sua riqueza.
Os Portugueses não eram particularmente dados à navegação marítima. Foi D. João n quem finalmente criou em Portugal um Estado-nação absolutista
Embora a pesca fosse uma atividade importante, a maior parte da população era semelhante à monarquia católica da Espanha, com a Igreja a desempenhar um
composta por camponeses que cultivavam a terra. No entanto, a sociedade por- papel crucial — conferindo um monopólio de legitimidade à autoridade unifica-
tuguesa era motivada por valores aristocráticos e militares, e, com o seu processo dora da Coroa.
de reconquista concluído cerca de dois séculos antes do de Castela, Portugal Nas oito décadas que se seguiram à morte de D. João H, a monarquia
partiu em busca de glória e de riquezas para o Norte de África e para o Atlântico, católica portuguesa supervisionou a edificação de um dos impérios mais vastos
onde o espírito de aventura de uma pequena minoria alcançaria feitos notáveis criados por europeus: em 1487, o cabo da Boa Esperança foi dobrado por
na exploração marítima e na edificação de um império. As proezas além-mar Bartolomeu Dias; em 1498, Vasco da Gama chegou à índia; o ano de 1500 viu
andavam, todavia, a par do comércio, estimulado pela presença de um número outra expedição portuguesa descobrir uma terra a que mais tarde se chamaria
considerável de mercadores e marinheiros genoveses que se haviam estabe- Brasil; no decorrer no século xvi, os Portugueses estabeleceram postos e feito-
lecido ao longo da costa, e especialmente em Lisboa, de longe a cidade mais rias no Ceilão, em Malaca e nas ilhas Molucas do arquipélago indonésio; em
populosa. 1570, tinham conseguido o monopólio do lucrativo comércio entre a China e o
No decurso dos séculos xm e xiv, a monarquia portuguesa foi constante - Japão, a partir de uma base estabelecida em Macau, na China continental, em
mente ameaçada por nobres ambiciosos, por uma Igreja ambiciosa e, não menos 1557.
importante, por conflitos dinásticos em que as suspeitas recaíam invariavelmente Nesse mesmo ano, um novo rei, D. Sebastião (1557-78), subiu ao trono e
sobre Castela, e por bons motivos. As relações com a Espanha continuariam mudou o rumo da história portuguesa ao levar a cabo uma tentativa caprichosa
ambivalentes: a vizinha, de maior dimensão, exercia uma considerável influên- de reavivar o espírito medieval de cruzada religiosa contra os Mouros, empreen-
cia tanto cultural como política, mas existiriam sempre forças de repulsão, e a dendo uma campanha contra o imperador de Marrocos. O exército português
política externa portuguesa guiava-se pela preocupação de se manter indepen- sofreu uma dura derrota na batalha de Alcácer-Quibir; D. Sebastião perdeu a vida
dente de Castela. A associação de longa data entre Portugal e Inglaterra - que no incidente e, depois de uma série de manobras dinásticas com vista à sucessão,
começara com relações comerciais no século xu e era periodicamente formali- Filipe II de Espanha subiu ao trono de Portugal em 1580. O povo português
zada através de uma série de tratados - devia-se à necessidade dos Portugueses recusou-se, todavia, a aceitar a morte do rei, e ganhou forma uma lenda messiâ-
de um aliado forte para contrabalançar a ameaça constante de incorporação na nica, segundo a qual D. Sebastião regressaria um dia ao seu reino para o condu-
Espanha. zir até uma nova época áurea, em que o mundo inteiro seria unido numa monar-
Um ponto de viragem surgiu em 1385, na batalha de Aljubarrota, quando um quia universal sob a Coroa portuguesa. Esta lenda influenciou profundamente a
novo rei, D. João de Avis, nomeado pela corte portuguesa e apoiado por aliados população dos domínios portugueses, de Macau a Pernambuco; continuava bem
ingleses, alcançou uma vitória contra Castela e os nobres portugueses. O longo viva no século xvm e ainda em 1896 foi capaz de inspirar uma revolta fanática
reinado de D. João I (1385-1433) assistiu ao desenvolvimento de uma monarquia em Canudos, no interior do Brasil, em defesa da monarquia e contra a recém-
poderosa, capaz de criar um Estado-nação estável, em larga medida livre de -proclamada república brasileira.
desafios baroniais e impulsionado por um novo espírito de cruzada, que era O sebastianismo alimentou o espírito de independência num país então
agora dirigido para África: a fase imperial da história portuguesa começou com sujeito à Coroa espanhola. A união com a Espanha, a principal potência do
a tomada de Ceuta em 1415. Alguns anos mais tarde, um dos filhos de D. João mundo, tinha as suas vantagens comerciais e militares, e Filipe II prometeu
I, o infante D. Henrique, o Navegador, estabeleceu uma escola de navegação em respeitar as instituições portuguesas, mantendo-as separadas das espanholas.
Sagres, no Algarve, e tornou-se o patrono das viagens de exploração que prosse- Os assuntos portugueses ficaram, no entanto, entregues a um vice-rei estabele-
guiriam ainda durante muito tempo após a sua morte, em 1460, e que revelariam cido em Lisboa, que respondia perante um Conselho de Portugal em Espanha
a África, a índia e o Oriente aos europeus. 9 (embora composto por elementos portugueses). Estes anos assistiram ainda a
À morte de D. João I seguiu-se um interlúdio de revoltas aristocráticas e uma competição pela supremacia no campo missionário do Extremo Oriente,
guerras civis dinásticas, coincidindo as últimas com as guerras de sucessão que entre os jesuítas portugueses, estabelecidos havia décadas na China e no Japão,

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HISTORIA DA AMERICA LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

e religiosos espanhóis acabados de chegar das Filipinas. Aquela disputa religiosa Após a morte de D. João V, a evidente debilidade económica de Portugal
oferecia um estranho espetáculo: os dois vizinhos ibéricos envolvidos em confli- relativamente à Inglaterra motivou a tentativa de proceder a reformas profundas
tos esporádicos no outro lado do mundo, em zonas remotas e desconhecidas do no país e nas colónias, em particular no Brasil, a «vaca leiteira» do império, no
mar do Sul da China, que Portugal alcançara através de um tortuoso caminho período de despotismo iluminado do primeko-ministro de D. José I, o marquês
por leste, e aonde os Espanhóis tinham chegado vindos de oeste. Em finais do de Pombal (1750-77). As reformas de Pombal não trouxeram melhorias substan-
século xvi, a hegemonia da Espanha valera a Portugal a atenção agressiva da ciais à economia portuguesa, mas, à semelhança do que se verificaria com as
Holanda, uma potência emergente de comerciantes e navegadores, que se rebe- reformas da casa de Bourbon no mundo espanhol, o seu carácter anticlerical
lara contra os Espanhóis e que via no império marítimo português, com territó- minou o monopólio de legitimidade da monarquia católica e ocasionou, indire-
rios espalhados por todo o mundo, uma tentação irresistível. Na última década tamente, as primeiras manifestações de republicanismo e autonomia no Brasil.
do século xvi, navios holandeses contornaram o Cabo e iniciaram o processo de Seriam, no entanto, curiosamente, os Britânicos protestantes a facilitar a sobre-
retirar a Portugal a maioria dos seus entrepostos comerciais no Oriente. Em vivência da monarquia católica, quando os exércitos de Napoleão ameaçaram
1624, os Holandeses atacaram as plantações de açúcar do Nordeste brasileiro e Portugal em 1808. Toda a corte portuguesa viajou para o Rio de Janeiro sob
mais tarde, em 1641, lançaram uma ofensiva contra a Angola portuguesa. escolta naval britânica, onde lançou os alicerces para a sobrevivência da monar-
Os saques contínuos perpetrados pelos Holandeses ameaçavam privar Portu- quia no Brasil até 1889, situação totalmente diversa daquela a que se assistiu na
gal de todas as suas fontes de riqueza colonial - especiarias orientais, açúcar América espanhola, onde a monarquia católica terminou em caos.
brasileiro e escravos africanos. Estando a Espanha, em meados do século xvn, Se os impérios das duas potências ibéricas exibiam muitas semelhanças nos
demasiado enfraquecida e dispersa para proteger estas bases, os Portugueses seus valores sociais, culturais e religiosos, havia também diferenças importantes.
(e os Brasileiros) tiveram de se defender sozinhos, acabando por expulsar os Em primeiro lugar, Portugal era um reino unitário, enquanto a Espanha tinha de
Holandeses de Angola em 1648 e do Brasil em 1654, embora a maioria dos lidar com uma pluralidade de territórios, na própria Península e na Europa, o que
entrepostos comerciais do Oriente estivessem irremediavelmente perdidos. não só tornava a governação mais complexa como arrastava a nação para guerras
Os conflitos com os Holandeses nas colónias foram uma das principais razões intermináveis contra potências rivais. O império português era um império
que levaram os Portugueses a revoltar-se contra a Espanha em 1640. Conduzido comercial, um conjunto de entrepostos comerciais fortificados e enclaves costei-
por um novo rei, D. João IV, duque de Bragança, Portugal recuperou a indepen- ros que não implicavam penetrar o interior nem proceder a uma colonização
dência e reforçou a sua posição concluindo uma nova aliança com a Inglaterra, extensa. O interior do Brasil, por exemplo, só foi desbravado, muito gradual-
simbolicamente firmada pelo casamento de Catarina de Bragança e Carlos II, em mente, em finais do século xvn, e o interior de Angola e de Moçambique apenas
1661, com Tânger e Bombaim como dote. no século xrx; não houve nada que se comparasse aos tremendos problemas
A monarquia católica portuguesa atingiu o seu zénite de esplendor material militares, políticos, jurídicos e religiosos com que a Coroa espanhola se debateu
na primeira metade do século xvra, enquanto a Espanha ainda mal recuperara de na tentativa de incorporar os impérios dos Astecas e dos Inças, e de muitos outros
meio século de declínio às mãos dos Bourbons. A descoberta de ouro no Brasil reinos índios. Apesar da sua dispersão física, do ponto de vista político o império
inflamou o fervor religioso de D. João V (1706-50), dando-lhe contornos de de Portugal era muito mais integrado do que o da Espanha; os súbditos portugue-
sumptuosidade e extravagância arcaicas, e imortalizando-o no palácio-convento ses que se estabeleciam além-mar tendiam a identificar-se mais com os interes-
de Mafra, que foi concebido para rivalizar com o Escoriai e Versalhes, e constru- ses do seu país de origem do que os hispano-americanos, uma vez que a Espanha
ído por um exército de mão de obra forçada durante mais de 18 anos. Mas a encarava os seus domínios como reinos de direito próprio, enquanto as posses de
extravagância dourada de Mafra era uma distração do facto de a economia nacio- Portugal sempre foram, essencialmente, vistas como colónias que tinham por
nal estar a ser corroída pela dívida. Além disso, o Tratado de Methuen, assinado objetivo enriquecer a metrópole.
com a Inglaterra em 1703, estabeleceu uma relação de dependência comercial, Contudo, numa análises final, Portugal e Castela eram ambos reinos econo-
mediante a qual os Portugueses trocavam os seus vinhos e os seus metais precio- micamente retrógrados e com fraca densidade populacional. As suas carreiras
sos por têxteis ingleses; mais importante ainda, o tratado conferia aos Ingleses imperiais nos séculos xvi e xvn foram, em muitos aspectos, triunfos do espírito
acesso ao Brasil, um mercado que iria crescer sistematicamente ao longo <jlo humano sobre os recursos materiais. E o seu êxito em manter esses impérios
século xvm e que permitiria que a Inglaterra se introduzisse cada vez mais no durante ainda muito tempo após os países se terem afundado num pântano de
comércio imperial português. fracasso económico deveu-se, em larga medida, à extraordinária resistência do

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HISTORIA DA AMERICA LATINA ÍNDIOS E IBÉRICOS

sistema político que tinham em comum. Este sistema era a monarquia católica, noções de imposição de impostos, mudança de religião e obediência, assim como
cujo monopólio de legitimidade lhe conferia a capacidade de conciliar diversi- de manipulação de governantes locais, juntamente com uma autonomia local
dade cultural e unidade política, mantendo territórios distantes leais à Coroa pelo menos temporária. »(*)
durante cerca de 300 anos e, no caso das colónias africanas de Portugal, até ao Estes dois mundos - Europa renascentista e América índia - encontraram-se
século xx. e colidiram no século xvi. As consequências desse encontro foram múltiplas e
diversas, e, por razões que não podem ser exclusivamente atribuídas aos ibéri-
cos, revelaram-se destrutivas para muitos índios. Tornou-se, contudo, evidente
O encontro de dois mundos que os dois mundos apresentavam semelhanças políticas e sociais bastantes, pelo
menos na América Central e nos Andes centrais, para que se verificasse um pro-
O que aconteceu no século xvi não foi tanto a descoberta de um Novo cesso de restruturação e hibridação relativamente rápido, uma vez terminada a
Mundo como o encontro de dois ramos da humanidade até então desconhecidos conquista.
um do outro. Para os índios da América, que haviam levado uma existência
totalmente isolada, o encontro com estranhos foi intrinsecamente traumático.
As invasões europeias levaram-lhes muito de radicalmente novo no domínio das
ideias e dos valores, dos métodos agrícolas, incluindo novas espécies de cultivo
e novos animais, no domínio da tecnologia, com a introdução de elementos como
a roda, o ferro, as armas, os navios, as ferramentas, e no domínio da economia,
estando o uso do dinheiro, a procura do lucro e o comércio muito mais desenvol-
vidos do que nas sociedades índias. Todas essas inovações trariam mudanças e
perturbações ao mundo índio.
Ainda assim, nas regiões imperiais da América Central e dos Andes, a rutura
com a tradição não foi completa. Em primeiro lugar, índios e ibéricos tinham
ideias semelhantes no que respeitava à soberania política: os monarcas católicos
dos reinos ibéricos obtinham a sua legitimidade e a sua autoridade absoluta de
fonte divina, tal como acontecia com os governantes astecas e inças. Tanto nos
Estados imperiais europeus como nos ameríndios, a instituição religiosa estava
profundamente envolvida na tarefa da governação; uma casta sacerdotal ou uma
hierarquia da Igreja apoiavam o Estado e recebiam vastos privilégios, terras e
impostos pagos pelo povo. Ambos os tipos de sociedade eram senhoriais: os
nobres índios, tal como os seus homólogos ibéricos, possuíam grandes proprie-
dades onde trabalhavam camponeses que pagavam impostos; também chefiavam
vastas comunidades compostas por famílias alargadas ou grupos com laços de
parentesco, bem como muitos dependentes e servos. As relações no seio destas
comunidades e entre clãs nobres constituíam uma réplica da relação de recipro-
cidade entre o monarca e o seu povo, assente no patriarcado e na proteção - um
homem de poder concedia favores em troca da lealdade dos seus vassalos e
subordinados. Os aristocratas valorizavam a honra e a glória alcançadas por
feitos militares, pois na América, como na Ibéria, era longa a experiência de
conquistar e subjugar reinos estrangeiros. Com efeito, James Lockhart e Stupt
Schwartz comentaram como as expectativas dos americanos nativos «correspon- O Early Latin America: A History of Colonial Spanish America and Brazil (Cambridge
diam às dos ibéricos, cujo conhecimento adquirido na conquista incluía também University Press: Cambridge, 1984), p. 45.

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CAPÍTULO 3

A Espanha na América

Padrões de colonização

A conquista e a exploração do Novo Mundo ficaram a dever-se à iniciativa


de grupos de homens que reagiam a circunstâncias estranhas e difíceis. Em vir-
tude da sua liberdade de ação, os conquistadores fundaram sociedades com um
cariz fortuito, improvisado: não havia um programa sistemático de colonização
coordenado por uma organização central. As duas principais forças motrizes da
colonização eram o desejo dos conquistadores de encontrarem metais preciosos
e a sua necessidade de mão de obra; ambas as forças se revelaram essenciais para
responder às grandes ambições dos aventureiros europeus do século xvi - alcan-
çar um estatuto nobre através da obtenção de riqueza, terras e poder sobre
homens.
Os conquistadores foram, assim, atraídos para as regiões do Novo Mundo
que mais prontamente satisfariam os requisitos de um modo de vida senhorial.
As regiões de colonização espanhola no século xvi coincidiram, então, grosso
modo, com os limites dos antigos impérios dos Astecas e dos Inças. Numa fase
inicial, fora das esferas de influência asteca e inça, o processo de colonização
decorreu apenas nos locais onde foram descobertos depósitos de minério. No
México, isso ocorreria em territórios bem para norte do vale central - a futura
região mineira em redor de Zacatecas -, que eram habitados por tribos índias
|- nómadas e que exigiram, durante muito tempo, um tipo de colonização mais
marginal e defensivo. Mesmo nas regiões peruanas ricas em prata, que fica-
vam mais próximas dos centros populacionais inças, a colonização europeia

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

continuou a ser periférica, porque os Espanhóis consideravam as altitudes partiam para a Cidade do México ou para Lima, de onde o tráfego se propagava
dos Andes inóspitas e preferiam o clima das regiões mais baixas a ocidente da até aos diferentes entrepostos do império, através das vias estabelecidas.
cordilheira. Na primeira fase de colonização, as cidades espanholas situavam-se no inte-
Em parte devido ao seu número reduzido, mas também por razões militares rior, longe das regiões costeiras de baixa altitude, que estavam mais sujeitas a
e políticas, os Espanhóis tendiam a concentrar as suas colónias em pontos estra- doenças e mais vulneráveis a ataques vindos do mar. E cada uma das duas cida-
tégicos de regiões já densamente povoadas pelos índios. Estas primeiras concen- des capitais'era apoiada por um porto: a Cidade do México tinha Veracruz, no
trações no México e no Peru tornaram-se as regiões centrais da influência euro- golfo; Lima servia-se do porto próximo de Callao, no Pacífico, e depois, pelo
peia; os Espanhóis só gradualmente abandonariam estas terras para fundar acesso ao mar das Caraíbas, de Nombre de Dios (mais tarde substituído por Por-
cidades noutros locais. A presença espanhola na América foi, assim, muito tobello) no istmo do Panamá (não sendo esses portos panamianos muito mais do
desigual: as regiões centrais não tardaram a absorver influências espanholas, e à que conjuntos de edifícios modestos aumentados por acampamentos de comer-
medida que outros territórios, como a Guatemala, o Chile e Nova Granada ciantes, que surgiam sempre que as frotas transatlânticas eram esperadas). Sendo
(Colômbia e Equador atuais), iam sendo eficazmente colonizados, também estas a costa sul-americana do Pacífico extraordinariamente longa, e dadas a barreiras
regiões foram lentamente adquirindo a maioria dos traços hispânicos dos centros naturais ao comércio por terra, as cidades secundárias da América do Sul orga-
originais. Vastos territórios continuaram, todavia, quase à margem da presença nizavam-se do seguinte modo: Santiago do Chile, por exemplo, contava com o
espanhola: na América do Sul, quase todo o interior permaneceu por colonizar porto próximo de Valparaíso para fazer a ligação a Lima, enquanto Quito tinha
durante mais de quatro séculos; a leste da cordilheira dos Andes, havia apenas o porto de Guayaquil, que era também um dos vários pontos de paragem maríti-
uma faixa de território colonizado, que se estendia das encostas orientais dos mos entre Lima e o istmo. Outras rotas contribuíam para esta rede, como era o
Andes no Norte da Argentina, atravessando o Paraguai e o sistema de rios do caso do complexo de Nova Granada formado por Bogotá e Tunja, e da sua saída
Paraná até ao estuário do rio da Prata; a faixa costeira caribenha de Tierra Firme para o mar das Caraíbas em Cartagena das índias, um porto que funcionava
- Norte da Venezuela e Nova Granada - sofreu alguma colonização espanhola; também como entreposto para frotas transatlânticas que tinham como último
no Chile, foram as regiões centrais em redor de Santiago que foram colonizadas; destino o Peru. Com o desenvolvimento da extração de prata, cada uma das redes
na América do Norte, em praticamente toda a área a norte do vale do México, estendeu-se às suas respetivas regiões mineiras: a Cidade do México voltou-se
incluindo a Califórnia, o Novo México, o Arizona, o Texas e a Florida, o povo- para norte, para Zacatecas, enquanto Lima se ligou, através de cidades provin-
amento espanhol foi muito esparso. ciais como Cusco e La Paz, às grandes minas de prata de Potosí, no território que
Esses vastos territórios que estavam fora do controlo inça ou asteca eram, hoje constitui a Bolívia. Deste modo, o sistema imperial de comércio e adminis-
além do mais, habitados por tribos índias cujos níveis de desenvolvimento social tração assentava em duas vias principais - a prata era trazida do interior através
diferiam bastante: havia comunidades sedentárias e sujeitas a um sistema contri- dos centros de Lima e da Cidade do México, respetivamente, e daí era exportada
butivo em Nova Granada, ou sociedades maias complexas na América Central, para Espanha, enquanto os produtos europeus eram levados para Sevilha, de
tendo ambas muitos traços em comum com os Estados imperiais pré-colombia- onde seguiam por aquelas mesmas rotas para ser distribuídos pelas colónias
nos; sociedades seminómadas, como a dos Araucanos do Sul do Chile ou como espanholas nos dois vice-reinos do Novo Mundo.
os vários povos Chichimecas do Norte do México; e havia tribos simples de Este padrão de comunicação permitia que uma monarquia demasiado dis-
caçadores-recoletores nas florestas tropicais da América Central e do interior persa, com compromissos um pouco por toda a Europa, empregasse os seus
sul-americano. A natureza da interação dos colonos espanhóis com estas comu- recursos de um modo económico em territórios vastos. A estrutura básica foi
nidades nativas tão diversas influenciou o carácter e a identidade das sociedades estabelecida logo no início do século xvi, mas as extremidades da rede ramifica-
hispano-americanas que mais tarde emergiram. vam-se constantemente para integrar as regiões periféricas que iam ficando sob
A colonização espanhola foi, em suma, limitada, dispersa e heterogénea. influência espanhola. Este padrão ilustra uma característica fundamental do
Ainda assim, todas estas regiões hispânicas estavam ligadas às antigas zonas imperialismo espanhol na América: era uma combinação de iniciativa privada e
centrais. No coração da rede do Norte situava-se a Cidade do México; no coração controlo do governo — havia sempre novas regiões a ser exploradas e conquista-
do Sul, Lima. E era através destes dois principais centros que a Espanha comu- das por grupos de guerreiros espanhóis que agiam sem a supervisão direta do
nicava com os seus domínios americanos. O comércio, a informação e os assun- governo; contudo, logo que a colonização se iniciava, o território recém-conquis-
tos do governo chegavam a Sevilha (mais tarde, a Cádis), na Península, e daí tado era integrado na rede de comunicação existente, e a Coroa podia, assim,

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

fazer chegar a sua autoridade aos locais mais remotos. Esta interação de inicia- numa árvore ou numa estaca, o que simbolizava a implantação da justiça real no
tiva local e autoridade central prolongar-se-ia por todo o período colonial, e território; o grupo reunido proclamava o nome da cidade por entre gritos de Viva
explica, em larga medida, a adaptabilidade e a resistência do Estado imperial nas el Rey!', e em seguida celebrava-se uma missa, para santificar o local e para
índias. impressionar os nativos.
A autoridade real era transmitida no próprio ato de colonização. Os princí- Os conquistadores que decidiam estabelecer-se na nova cidade tornavam-se
pios que orientavam a partilha dos frutos da conquista obedeciam à justiça do rei, vecinos (cidadãos) de um município espanhol, elegiam o seu comandante militar
que delegava no adelantado, o líder de um grupo de conquistadores. Quando o para o cargo de chefe civil, e declaravam-se vassalos do rei de Espanha. De entre
grupo de conquistadores errantes queria tomar posse de um território, seguia um os vecinos mais importantes - aqueles quetinhamas maiores encomiendas - o
procedimento comum a todos os processos de colonização anteriores no Novo adelantado nomeava um conselho municipal, o cabildo; o notário real e o padre,
Mundo e nas ilhas Canárias, e que fora, com efeito, utilizado durante gerações que acompanhavam sempre uma expedição de conquista, tornavam-se, respeti-
na Reconquista da Península. O adelantado assumia as funções de governador vamente, o magistrado e a autoridade eclesiástica da nova cidade espanhola.
ou capitão-geral do território conquistado, tomando-se responsável tanto pela Assim, os órgãos essenciais da sociedade hispânica estavam presentes desde o
defesa militar como pela administração civil da região em questão. Segundo os início nas colónias fronteiriças.
termos da sua capitulación da Coroa - a licença real para a «entrada» (iniciativa Uma característica particularmente vincada da colonização espanhola era,
de conquista) -, ficava autorizado a distribuir as recompensas da reconquista com efeito, o modo como as relações políticas e sociais se expressavam na orga-
pelos homens que o acompanhavam. A terra e o saque eram divididos de acordo nização das novas cidades. As colónias urbanas nas índias seguiam um modelo
com o contributo militar ou financeiro de cada membro da companhia para o predefinido, uma traza, que os adelantados levavam consigo nas expedições.
sucesso da empresa. As concessões de terra eram feitas em unidades designadas No centro da cidade, era traçada uma área retangular, em volta da qual se cons-
peonías (cerca de 40 hectares), atribuídas a soldados de infantaria, ou caballerías truíam a residência do governador, o cabildo, a igreja, a prisão e as casas dos
(aproximadamente 200 hectares), destinadas a membros da cavalaria. principais encomenderos. Partindo dos lados dessa praça, oito ruas paralelas
O acesso a mão de obra e a impostos pagos pelos índios nada tinha a ver com dividiam a cidade numa grelha composta por blocos regulares de casas. Quanto
a distribuição de terras. O direito a receber impostos e mão de obra das comuni- mais longe um espanhol vivia da praça central, mais baixa a sua posição na
dades nativas era um privilégio especial conferido pelo mecanismo de enco- escala social. A periferia da grelha era habitada por famílias de sangue misto e
mienda, que fixava a quantidade de mão de obra e o valor dos impostos devidos negros livres.
aos conquistadores com mais mérito. Os espanhóis que recebiam encomiendas A construção destas cidades era efetuada por índios, em trabalho como paga-
constituíam a elite da sociedade da Conquista. Mas não se tomavam senhores mento de tributo, organizados pelos seus chefes, que por sua vez eram supervi-
feudais, pois a encomienda não concedia jurisdição feudal sobre os contribuintes sionados pelos Espanhóis. Esses índios não eram membros do município; viviam
índios, que continuavam a ser súbditos livres da Coroa. nas suas próprias aldeias, sob a autoridade dos seus senhores étnicos tradicionais.
As aspirações sociais e económicas, aliadas ao espírito de aventura, eram o No entanto, fora da grelha da cidade espanhola apareceria mais tarde uma popu-
incentivo para a constante expansão espanhola no Novo Mundo. Após a distri- lação serviçal índia não oficial, alojada em habitações humildes, numa periferia
buição das recompensas, alguns membros da expedição optavam por regressar a desordenada que se alterava conforme as circunstâncias, sem afetar o centro
Espanha com a fortuna feita; outros preferiam ficar no território conquistado e espanhol. Estas zonas periféricas dariam origem aos subúrbios índios que acaba-
criar raízes; outros ainda não se sentiam totalmente satisfeitos com a sua parte da riam por nascer nos arredores de todas as grandes cidades espanholas. Os índios
recompensa e decidiam posteriormente investir ou participar noutra «entrada» urbanizados que aí viviam eram fugitivos das suas comunidades tradicionais e,
em território desconhecido, esperando dessa forma subir um pouco mais nas como os indivíduos de sangue misto e os negros, ocupavam uma posição anó-
hierarquias elementares geradas pela Conquista. mala, indefinida, nos estratos mais baixos da sociedade espanhola.
A conquista espanhola da América decorreu a par de um esforço para esta- Na América, a cidade espanhola era, assim, o núcleo da colonização. No
belecer os elementos da vida civilizada numa comunidade. Conforme previsto "século xvi, estas cidades proporcionavam um abrigo cultural familiar e um refú-
pela capitulación, o adelantado ficava incumbido de fundar uma cidade e ujn .rgio militar a um número ainda reduzido de colonos espanhóis, que estavam
município. O ato ritual de fundação invocava as fontes essenciais de autoridade ^rodeados por um mar de comunidades índias potencialmente hostis. A cidade
no Estado espanhol - a Coroa e a Igreja: com uma espada, vibrava-se um golpe 'fespanhola funcionava também como um instrumento de apropriação e de

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H I S T Ó R I A DA AMÉRICA LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

controlo sobre os recursos de um território específico e da sua população nativa. desfavorecidas. Os aristocratas não iam para as índias e, no início, poucos fidal-
Grande parte da terra era atribuída a espanhóis, para seu uso privado, mas essas gos deram esse passo - até finais dos anos 70 do século xvi pouco mais de 4%
propriedades eram cultivadas por trabalhadores índios. Nos primeiros tempos da dos espanhóis foram para lá. A maioria dos conquistadores e emigrantes que
colonização espanhola na América, a maior parte da produção de uma região era partiram para as índias nesse século eram operários, artesãos, comerciantes,
obtida por índios nas suas próprias terras e depois oferecida aos encomenderos, soldados e marinheiros; na maior parte das expedições seguiam também alguns
como tributo, ou trocada nos mercados semanais que os índios muitas vezes escravos negros ou mulatos da Península.
eram autorizados a realizar nas praças das cidades espanholas. Verificou-se, Tendo arriscado a vida na conquista do Novo Mundo, estes homens estavam
desde o início, uma constante interação económica e até cultural da cidade espa- determinados a progredir materialmente, e, dadas as enormes distâncias que
nhola com as comunidades índias, embora não se tenha vindo a registar a inte- muitas vezes os separavam das autoridades espanholas, eram muitas as oportu-
gração política ou jurídica das duas, por razões que serão discutidas mais nidades para cometer delitos, para a insubordinação e, especialmente, para a
adiante. exploração de um povo subjugado de raça diferente. Na esteira destes primeiros
De um modo geral, a economia dos colonos era agrária e ajustada às neces- colonos vinha um fluxo constante de migrantes espanhóis que procuravam tra-
sidades locais. A sua preferência ia para os produtos e o gado europeu, embora balho, terra e uma melhor posição social. Esses recém-chegados podiam ficar ou
os produtos índios fossem consumidos seletivamente. Todavia, com o cresci- partir, ao fim de algum tempo, para lugares mais promissores, mas começavam,
mento da população das cidades espanholas, a agricultura e a exploração de em qualquer dos casos, a competir pelos recursos disponíveis, o que já de si
ranchos desenvolveu-se com objetivos comerciais, assentando nas concessões de contribuía para a desordem e a fluidez da vida nas primeiras colónias.
terra iniciais e em propriedades adicionais adquiridas através de meios diversos: Um fator de grande importância na formação desta sociedade da Conquista
compra, novas concessões reais, ocupação de terras livres ou usurpação de pro- era a escassez de mulheres espanholas. Até aos anos 40 do século xvi, apenas 6%
priedades índias comunitárias. Assim, os colonos mais poderosos, quase sempre dos emigrantes espanhóis que partiram para as índias eram do sexo feminino.
encomenderos, começaram a constituir um conjunto de propriedades. Foi assim Isto significava que os homens espanhóis dependiam sobretudo de mulheres
que surgiu a fazenda — a mais duradoura e cobiçada das instituições rurais na indígenas para relações sexuais. Os colonos achavam-nas atraentes e as nativas
América espanhola. viam o seu estatuto melhorado por se relacionarem com os conquistadores, pelo
Nenhuma cidade espanhola podia ser uma unidade inteiramente autossufi- que o ritmo de miscigenação foi rápido. A Coroa e a Igreja encorajavam a legi-
ciente; tinha de estabelecer laços comerciais e administrativos com cidades timação destas uniões através do casamento cristão, e muitos colonos casaram,
maiores e, através destas, com a capital da região e, finalmente, com a Península. de facto, com as suas amantes nativas, mas era muito mais frequente tais ligações
As cidades que apresentavam um crescimento mais rápido eram as que se encon- permanecerem irregulares. Nas primeiras fases da Conquista, e nas zonas mais
travam numa posição favorável para fornecer mercadorias à economia transa- remotas das índias, alguns espanhóis tinham autênticos haréns e uma nume-
tlântica; mas os colonos empreendedores de algumas regiões especializavam-se rosa prole ilegítima. O Paraguai acabou por ser chamado «paraíso de Maomé»,
amiúde na produção de bens como o açúcar, o tabaco, as peles de animais e pois os espanhóis viviam aí abertamente com muitas mulheres. Um religioso
matérias corantes, que eram importantes no comércio inter-regional. Os maiores ^relatou, supostamente horrorizado, que os espanhóis do Paraguai chegavam a ter
proprietários formavam uma elite que controlava o cabildo e os principais gabi- 70 concubinas nativas, e raramente viviam com menos de cinco ou seis mulhe-
netes municipais. No entanto, independentemente da influência que pudessem res. No período inicial, também os homens negros tinham falta de mulheres da
exercer, na sua área, sobre o governo municipal, as famílias importantes tinham sua raça, pelo que tendiam também a ligar-se a mulheres ameríndias. Essa era
de responder perante administradores reais nomeados para cada província, bem uma fonte de preocupação para as autoridades espanholas, em virtude dos fortes
como perante tribunais de instância superior nas capitais regionais. preconceitos que havia contra os africanos e do estigma que recaía sobre os fru-
Contudo, apesar de todas a tentativas da Coroa para assegurar a ordem e o tos dessas relações.
cumprimento da lei, os primeiros tempos destas colónias espanholas foram tur- Quando as mulheres espanholas começaram a chegar em números conside-
bulentos e instáveis. A Conquista continuou a ser uma questão de iniciativa iveis, passaram a ser as parceiras prediletas dos colonos para o casamento,
individual e de aventura, algo em que os homens participavam não por quererefti embora poucos homens tenham de facto abdicado da sua preferência por parcei-
cumprir uma missão civilizadora, mas porque queriam uma vida melhor. Assim, ras ilícitas de raças índias ou não-brancas. A pele branca correspondia ao ideal
a conquista da América tendia a atrair indivíduos comuns e homens de classes Jéhuco, e os homens que procuravam ascender socialmente sentiam a necessidade

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

de se acomodar às normas da sua sociedade de origem. Os preconceitos raciais pelas influências, que se reforçam mutuamente, da «lenda negra» sobre a cobiça
dos europeus, acentuados por noções medievais espanholas de pureza de sangue, e a crueldade dos Espanhóis e do mito contrastante do índio americano como o
foram traduzidos para o Novo Mundo e preservados como um mecanismo legi- «bom selvagem». A acrescer às dificuldades surge o facto inquestionável do
timador nas sociedades hispano-americanas emergentes - as crianças de raça colapso demográfico da população índia durante os séculos xvi e xvn. A dimen-
branca eram quase sempre legítimas; as de sangue misto quase nunca o eram. são deste colapso só foi avaliada recentemente, pelo que, até aos nossos dias, a
A colónia urbana era, então, o meio através do qual a monarquia espanhola despopulação nativa foi exclusivamente atribuída à crueldade da Conquista
procurava controlar e consolidar o processo irregular de conquista naquele que espanhola. Mas sabe-se agora que esse colapso demográfico se deveu em larga
era, afinal, um continente totalmente desconhecido. Mas o núcleo urbano, medida a pandemias causadas por vírus europeus para os quais os ameríndios
embora servisse para transmitir as formas de ordem civil, era igualmente um não possuíam imunidade, embora o tratamento infligido pelos Espanhóis às
ponto de interseção para as muitas tensões e contracorrentes - entre espanhol e , populações nativas tenha, sem dúvida, contribuído para agravar essas doenças.
índio, branco e não-branco, homem e mulher, ambições pessoais e interesses de O declínio catastrófico da população é, naturalmente, um fator que influencia a
Estado - que perturbavam as novas sociedades híbridas em formação. interpretação da mudança no mundo índio somente em termos de perda.
Contudo, se encararmos a Conquista espanhola como um acidente histórico
irreversível - um acidente não necessariamente mais cruel, no seu aspeto pura-
O Impacto da Conquista no Mundo índio mente militar, do que outras experiências de conquista menos controversas,
como a conquista normanda da Inglaterra, por exemplo -, então o tema da
O mundo índio caracterizava-se pela sua extrema diversidade. Mesmo nas mudança no mundo pós-Conquista pode ser discutido não como urna espoliação
regiões de influência imperial asteca ou inça, havia uma quantidade imensa de selvagem excecional de povos inocentes, mas antes como um longo processo de
reinos étnicos e de grupos tribais; alguns tinham sido incorporados nas estruturas adaptação - sem dúvida muito doloroso em variadíssimas situações - sofrido por
imperiais maiores, mas muitos outros permaneciam à margem desses impérios e inúmeras sociedades ameríndias forçadas por circunstâncias históricas a lidar
eram muitas vezes abertamente hostis aos imperialistas pré-hispânicos ou esta- com um conjunto diferente de senhores imperiais.
vam envolvidos em constantes lutas por território e poder contra tribos ou reinos É evidente que os Espanhóis, como quaisquer outros conquistadores, inter-
vizinhos. vieram sistematicamente, e muitas vezes de modo violento, nas sociedades
Assim sendo, não estaria correto partir do princípio de que existia unidade nativas para se apoderarem de recursos em benefício próprio; mas verificou-se
política ou cultural no mundo índio. O termo «índio» é útil para distinguir estes também, como veremos, uma forte tendência, por parte do Estado espanhol,
povos americanos dos europeus, mas não deve ser entendido como referência a para proteger e preservar as culturas índias. O que podemos afirmar com toda a
uma qualquer cultura uniforme, coesa. Todas essas sociedades índias foram, no certeza é que a Conquista não originou a ruína em grande escala das socie-
entanto, afetadas pela Conquista espanhola, ainda que de modos distintos: algu- dades nativas. Pelo menos nas regiões que têm sido estudadas de modo mais
mas foram completamente destruídas; outras optaram por se aliar aos conquista- aprofundado, nomeadamente os territórios da América Central e, cada vez mais,
dores; outras ainda viram na «conquista» uma libertação bem-vinda da opressão do Peru, existem indícios de um elevado grau de continuidade cultural rela-
asteca ou inça. Na maioria dos casos, os costumes tradicionais sobreviviam . Jivamente aos tempos pré-Conquista. Com efeito, os historiadores sociais James
inalterados ainda em pleno período de dominação espanhola. Lockhart e Stuart Schwartz foram ao ponto de afirmar que «de um modo geral,
O tema das sociedades índias sob domínio espanhol apresenta inúmeras as cidades e províncias índias sobreviveram à Conquista essencialmente
dificuldades. Em primeiro lugar, até há relativamente pouco tempo a heteroge- intactas »(*).
neidade do mundo índio não foi levada em consideração pelos historiadores e t No decurso da Conquista espanhola e nas décadas imediatamente a seguir,
dada a tremenda variedade de culturas e grupos étnicos é arriscado tecer genera- as estruturas imperiais dos Astecas e dos Inças foram destruídas, tendo as famí-
lizações quanto à reação índia a um fenómeno tão multifacetado como a Con- lias reais e a nobreza imperial destes povos sido privadas do seu poder. Foi
quista espanhola. Em segundo lugar, a questão dos efeitos do domínio espanhol '• sobretudo esta aristocracia nativa que mais razões teve para lamentar o fim da
sobre os índios sempre foi controversa. Verifica-se ainda uma forte predisposiçio l ordem antiga, e as expressões da sua nostalgia e da sua tristeza chegaram até nós
para interpretar a mudança histórica no Novo Mundo como uma perda trágica de
coesão e autenticidade das culturas nativas. Neste ponto, o problema é agravado O Early Latin America, p. 113.

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em escritos que por demasiadas vezes foram considerados representativos da tentar resistir aos invasores ou até revoltar-se. No Peru, na década de 60 do
generalidade dos índios. século xvi, a mais radical destas revoltas foi a do movimento milenarista Taki
Estabelecido o domínio espanhol, a aristocracia índia teve de escolher entre Onqoy, na região de Huamanga, onde muitas tribos outrora leais aos Espanhóis
colaborar com os seus conquistadores ou organizar revoltas com o objetivo de se rebelaram como reação às excessivas exigências de trabalho, e exigiram a
recuperar o poder. Corno vimos, o jovem príncipe Manco Inça, do Peru, come- rejeição imediata da religião e das leis espanholas, apelando aos seus deuses para
çou por escolher a colaboração, na esperança de levar a melhor sobre os seus que os ajudassem a expulsar os invasores.
rivais dinásticos na corrida ao título imperial, mas viria mais tarde a decidir-se No entanto, embora as estruturas básicas da vida dos índios a um nível
pela rebelião contra os Espanhóis, quando compreendeu que os conquistadores comunitário e tribal tenham, em larga medida, permanecido inalteradas pela
não tinham intenção de abandonar o país. Mesmo em gerações posteriores, suce- Conquista, é certo que muitas aldeias, muitas colheitas e muitas vidas individuais
dia por vezes que os colaboradores aristocráticos mudavam de ideias e tentavam foram destruídas no decorrer das guerras (no Peru, convém lembrar, uma san-
rebelar-se contra o poder espanhol. Este tipo de resistência era elitista e dinás- grenta guerra civil havia começado vários anos antes da chegada dos Espanhóis).
tico, pouco tendo a ver com a defesa das massas de índios. Mas a expropriação Não restam dúvidas de que um número elevado de índios sofreu torturas e vio-
não era, na verdade, o destino dos nobres astecas e inças; desde que aceitassem lações às mãos dos conquistadores. O trabalho para os encomenderos era muitas
a soberania espanhola, era-lhes permitido manter o seu estatuto aristocrático na vezes, embora nem sempre, árduo e explorador, dado que muitos espanhóis não
sociedade pós-Conquista: o monarca espanhol concedia-lhes terras e encomien- estavam interessados em criar raízes no Novo Mundo e queriam apenas enrique-
das, e os seus filhos estudavam em escolas para nobres, como o colégio em cer tanto quanto possível nas índias para depois regressarem a Espanha. A Con-
Tlatelolco, no México, e os de Huancayo e de Cusco, no Peru. quista também perturbou comunidades; muitos índios fugiram para zonas rurais
Alguns reinos índios formaram até alianças com os invasores espanhóis e tornaram-se vagabundos ou escaparam aos Espanhóis para se esconder nas
contra os seus inimigos históricos. No México, o exemplo mais famoso é o dos florestas. Este tipo de deslocação foi particularmente comum no Peru, onde o
Tlaxcalas, que atacaram Tenochtitlán e ajudaram Cortês a destruir a cidade; no sistema de mitmaq, baseado em «arquipélagos horizontais» ou colónias remotas,
Peru, o apoio do povo Huanca foi crucial para a derrota que Pizarro infligiu aos foi parcialmente destruído, deixando muitos habitante das colónias afastados das
Inças. «Alianças deste tipo expressavam as contradições e o descontentamento suas terras de origem. Uma opção para estes indivíduos deslocados era trabalhar
internos que minavam o poder asteca e inça, e o fracasso destes impérios em para os Espanhóis, integrando a classe plebeia designada naborías no México e
erradicar o potencial militar independente de reinos étnicos descontentes »(*). yanaconas no Peru - índios destribalizados que se tornavam criados das aristo-
Mesmo depois de a Conquista espanhola estar concluída, muitos reinos e tribos cracias asteca e inça e que os Espanhóis também empregavam.
étnicos decidiram colaborar com os novos governantes para obterem vantagem Os piores efeitos da Conquista fizeram-se sentir a longo prazo. O mais des-
contra rivais, recuperar território perdido ou para se libertarem do domínio de trutivo foi, de longe, a devastação causada pelas pandemias que se propagaram
inimigos figadais. O desmoronamento dos impérios pré-hispânicos teve, assim, pelo continente nos anos após a chegada dos Espanhóis. Foram surtos de varíola,
o efeito de devolver a identidade e a autonomia a reinos étnicos subjugados, e de sarampo, tifo e outras doenças ainda por identificar. Os povos índios de regiões
revitalizar a autoridade de chefes étnicos. Era esta classe de chefes, designada costeiras ou de baixa altitude foram os mais afetados por estes vírus: a população
pipiltin no México e cu.ra.cas no Peru, que lidava com os Espanhóis e que orga- das Caraíbas foi quase eliminada. Nas terras altas do continente, que eram tam-
nizava o seu próprio povo para pagar tributo e prestar serviços aos encomenderos bém as mais populosas, a taxa de mortalidade não foi tão elevada, mas a perda
espanhóis. de vidas foi, ainda assim, desastrosa. Estima-se que, ao longo do século que se
No seio destes reinos e comunidades índios, a vida tradicional pouco mudou, seguiu à Conquista, a população no México Central tenha sofrido um decréscimo
e, tendo aceitado os novos senhores, fazia sentido que os nativos aceitassem de 90%. No Peru, o declínio foi mais lento e menos drástico, mas a queda da
também a sua religião. Ainda assim, no rescaldo da Conquista, as relações com população rondou os 40%. As terríveis epidemias surgiram em vagas a cada dez
os Espanhóis eram instáveis. Se um reino ou uma tribo se convencia de que a anos, aproximadamente, até final do século xvi, e continuaram a assolar a popu-
aliança com os Espanhóis já não era vantajosa para os seus interesses, podia lação periodicamente a partir de então - no Peru, o declínio demográfico só se
interrompeu no início do século xvm.
O contributo destas epidemias para a vitória dos Espanhóis é impossível de
(*) Steve J. Stern, «The Rise and Fali of Indian-White Alliances: A Regional View of
calcular, não só pela tremenda perda de vidas mas também porque as doenças
'Conquest'History», Hispanic American Historical Review, 61,3 (1981), pp. 461-91 (p. 461).

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA
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abalaram as estruturas de poder nativas e desmoralizaram os índios, que não


sobreviveram à conversão ao cristianismo, resultando muitas vezes num sincre-
conseguiam compreender o que lhes estava a acontecer. No México, a varíola
tísmo desequilibrado de velho e novo. Este fenómeno foi mais evidente no Peru
matou vários líderes astecas importantes, entra os quais o imperador Cuitlahuac,
do que no México, e apresentou variações consideráveis entre os diferentes
enfraquecendo assim a capacidade dos nativos de contra-atacar. Ainda antes da
povos nativos (*)• É, no entanto, extremamente difícil avaliar o processo de
chegada de Pizarro, os Inças tinham mergulhado numa desastrosa guerra de
«desestruturação», e mais ainda aferi-lo para determinar o sofrimento real -
sucessão, depois da morte do imperador Huayna Capac e do seu herdeiro esco-
deveremos entendê-lo como puramente negativo, ou é simplesmente o sinal de
lhido, Ninan Cuyoche, ambos vítimas de varíola.
uma transição inevitável para novas condições, que foram, talvez, muito mais
Outro efeito a longo prazo da Conquista foi a sobrecarga imposta aos recur-
perturbadoras do que teriam sido na ausência de um desastre demográfico?
sos nativos, visto que os colonos espanhóis dependiam da comida e do trabalho
Acima de tudo, a resistência cultural dos índios foi notável; a sua capacidade
das comunidades índias. É difícil apurar se as exigências de tributo por parte dos
de resistir às múltiplas pressões, diretas e indiretas, a que os Espanhóis os sujei-
Espanhóis eram mais pesadas do que as anteriormente feitas pelos Astecas e
taram; a sua disposição para selecionar e escolher os elementos da cultura euro-
pelos Inças às tribos subjugadas, mas muitas comunidades índias protestaram ou
peia que mais lhes convinham. O conservadorismo das massas índias é evidente
rebelaram-se, e muitos indivíduos sentiam-se tão oprimidos pelas obrigações
na preservação dos rituais sociais e religiosos, no respeito pela autoridade tribal
tributárias que fugiam das suas aldeias para trabalhar como assalariados nas
e na adaptação das novidades espanholas - modo de vestir, espécies de cultivo e
cidades espanholas. É, todavia, provável que o tributo fosse muitas vezes consi-
ferramentas - aos métodos antigos. As unidades sociais básicas, os grupos de
derado excessivo, não por o sistema ser visto como estranho ou desumano, mas
parentesco designados ayllu no Peru e calpulli no México, continuaram a funcio-
porque as tendências demográficas nas índias funcionavam contra ele. Em suma,
nar; a economia espanhola, assente no dinheiro e na propriedade privada, não foi
enquanto a população índia era dizimada pela doença, a população espanhola
admitida como tal nas comunidades índias; internamente, estas comunidades
crescia regularmente através da imigração e da reprodução. Na segunda metade
continuaram a funcionar, como sempre tinham feito, com base na produção de
do século xvi, a procura de tributo e de mão de obra por parte dos Espanhóis
subsistência e na troca de bens.
estava a aumentar, precisamente quando os recursos humanos do mundo nativo
Não há dúvida de que as autoridades espanholas intervieram de modo a
sofriam a sua queda mais acelerada. As resultantes pressões sobre as comunida-
transformar os costumes índios e a afirmar a sua autoridade. A intervenção mais
des índias geraram indignação e violência contra os Espanhóis. É, então, prová-
imediata e flagrante consistiu na campanha sistemática para converter os índios
vel que o sofrimento causado pela implantação de um novo regime imperial
ao cristianismo - uma consequência do domínio imperial entendida e aceite por
espanhol tenha sido bastante intensificado e prolongado pelo efeito devastador
conquistadores e conquistados, mas que envolveu, ainda assim, mudanças signi-
daquelas misteriosas epidemias.
ficativas na sociedade e no comportamento índios, como veremos mais adiante.
Os indícios apontam para uma desmoralização social generalizada - relatos
A evangelização implicou também introduzir formas de organização hispânicas.
de suicídios, apatia, abortos, perda de vontade de procriar, a par de um enfraque-
Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que as tradições índias devem a sua
cimento da autoridade tradicional, que se manifestou nos cada vez mais numero-
sobrevivência à política explícita da Igreja e da Coroa espanholas, que ao longo
sos casos de delinquência e alcoolismo nas aldeias. Tais fenómenos foram con-
de todo o século xvi tentaram preservar tantas tradições quantas fossem compa-
siderados reveladores de «desestruturação», o termo que Nathan Wachtel usou
tíveis com a religião cristã e com os interesses vitais do Estado.
para descrever a desorganização das estruturas económicas, sociais e ideológicas
Foram feitos alguns esforços no sentido de aliar as inovações aos costumes
que antes conferiam coerência e sentido às culturas índias. Segundo Wachtel, no
índios. Por exemplo, o governo comunal índio centrava-se, tradicionalmente,
Peru, por exemplo, o pagamento de impostos no período pré-Conquista fora
numa cidade principal, a que os Espanhóis chamavam cabecera, e que exercia
«contrabalançado» por rituais de reciprocidade entre o senhor e os seus plebeus,
jurisdição sobre um conjunto de distritos ou aldeias, designados sujetos. O padrão
e porrituaisde redistribuição na forma de presentes - reais e simbólicos - ofe-
cabecera-sujeto foi preservado em finais do século xvi, apesar da introdução das
recidos pelo senhor aos contribuintes. Sob o domínio espanhol, o pagamento de
estruturas municipais espanholas nas comunidades índias - mesmo em lugares
impostos consistia numa transferência de bens para os novos senhores sem que
onde fora levado a cabo um extenso repovoamento índio. Este respeito pelos cos-
se verificasse qualquer reciprocidade. Do mesmo modo, durante várias décadas
tumes índios está também patente nas maiores cidades índias onde os Espanhóis
após a Conquista, os índios tentaram assimilar a religião dos conquistadores
na sua própria visão do universo. As estruturas da sua mentalidade religiosa
O Nathan Wachtel, Cambrídge History ofLatin America, vol. l, pp. 212-30.
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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

se fixaram. Na Cidade do México, por exemplo, o município exclusivamente espanhóis, por exemplo, queriam impedir os índios de aprender castelhano, por-
índio de Tenochtitlán continuava a existir, funcionando a par de instituições que receavam que isso os expusesse à influência moral nefasta dos colonos
equivalentes destinadas aos colonos espanhóis; e os senhores índios ainda aí espanhóis. Mas a Coroa temia que o monolinguismo conferisse às ordens mis-
tinham uma considerável autoridade sobre os seus vassalos. sionárias demasiado poder sobre os nativos. Passou, então, a ser obrigatório, pelo
Na segunda metade do século xvi, o Estado espanhol tentou reconfigurar o menos em teoria, ensinar castelhano a uma população indígena cuja lealdade a
mundo índio para melhor o controlar. Mais uma vez, esta intrusão foi, em Coroa não podia ainda dar como garantida. Esta medida determinou que, nas
parte, ditada pela escala da despopulação índia. No início da década de 70 do regiões centrais, onde a influência hispânica foi mais forte, muitas comunidades
século xvi, os Espanhóis compreenderam que em algumas regiões não podiam índias se tenham tornado bilingues; em regiões mais remotas, as massas índias
continuar a depender inteiramente dos chefes étnicos tradicionais para obter o conservaram as suas próprias línguas.
tributo em trabalho e bens nas quantidades exigidas por um setor hispânico em A transformação cultural do mundo índio após a Conquista foi um processo
expansão; as tribos índias viviam em pequenas aldeias dispersas por vastas lento, heterogéneo, irregular. O flagelo das epidemias de doenças novas, a des-
extensões rurais que iam sendo devastadas pela fome e pela doença. Os adminis- truição causada pelas guerras e as crescentes exigências tributárias impostas a
tradores espanhóis conceberam, então, um programa de repovoamento: a popu- uma população em declínio por encomenderos espanhóis gananciosos levaram a
lação índia dispersa foi concentrada em cidades e aldeias construídas segundo o que um fluxo constante de índios abandonasse as suas aldeias de origem para ir
padrão de grelha hispânico; cada família recebeu um lote de terra e a comuni- viver nas vilas e cidades espanholas, onde eram mais rapidamente aculturados.
dade, no seu todo, adquiriu o direito sobre terras comuns, as quais deviam ser Os que permaneciam nas comunidades - teoricamente protegidas pela Coroa -
utilizadas para pastagem e para o cultivo de subsistência e com fins comerciais, ficavam também sujeitos a influências espanholas, mas a sua resistência ao
destinando-se o rendimento daquele último ao financiamento de empreendimen- processo de aculturação e a sua capacidade de adaptação eram muito, vincadas.
tos comunitários. Em meados do século xvn, quando o declínio populacional se interrompeu, as
Este programa foi aplicado em momentos diferentes em várias regiões. comunidades índias começaram a florescer em novas condições biculturais,
Começou por ser implementado no Peru, no início da década de 70 do século xvi, embora a longo prazo se viesse a verificar a tendência de os indivíduos índios
no âmbito de um esforço mais amplo empreendido pelo vice-rei Francisco de entrarem no mundo hispânico para se misturarem e serem absorvidos pela cul-
Toledo de impor a autoridade da Coroa numa parte do império que estava em tura mais intensivamente híbrida, mestiça, que também aí ia ganhando forma.
constante estado de agitação desde a Conquista. A justificação económica para
esta iniciativa foi a descoberta de novas minas de prata, ouro e mercúrio na
década anterior, o que originou a necessidade de uma fonte regular e abundante As Instituições do Estado
de mão de obra. O vice-rei Toledo instituiu, então, o seu programa de repovoa-
mento para facilitar a cobrança de impostos e a supervisão dos trabalhadores Considerava-se que o monarca de Castela exercia uma «autoridade natural»
recrutados para as minas por administradores da Coroa. O sistema de trabalho sobre todos os territórios das índias espanholas. A terra e os seus frutos podiam
seguia o modelo inça da mita, uma forma de trabalho tributário em que as aldeias ser concedidos aos indivíduos pela graça do soberano, mas os seus súbditos não
índias contribuíam com uma quota de homens saudáveis para trabalhar para o tinham, em última instância, direitos sobre esses bens. O Estado que se consti-
Estado inça. Sob o domínio espanhol, o sistema da mita para as minas tornou-se tuiu no Novo Mundo era, assim, um estado patrimonial, pois todo o poder e toda
um fardo extraordinariamente cruel para uma população índia em declínio. No a autoridade advinham da pessoa do monarca, e as instituições desse Estado
México e na Guatemala, foram implementados programas de repovoamento existiam para cumprir a vontade real.
índio (a que foi dado o nome de congregación civil) em algumas regiões nas A fundação do governo real nas índias foi um processo gradual, iniciado na
últimas décadas do século, mas esta prática parece não ter afetado mais de 16% última década do século xv e finalmente consolidado nos anos 70 do século xvi.
da população índia. Em Nova Granada, o repovoamento teve início nos anos 80 Na primeira fase da Conquista espanhola, a fase caribenha, os assuntos relativos
e fez-se acompanhar da criação de resguardos, terras comunitárias que a Coroa às índias tinham ficado a cargo de uma subcomissão do Conselho de Castela,
reservava para os índios e que eram atribuídas às novas cidades. » perante a qual respondiam os governadores das várias ilhas. Depois da conquista
As autoridades espanholas mostravam-se por vezes divididas quando tinha do México, a governação dos territórios do Novo Mundo tornou-se mais com-
de se decidir até que ponto a cultura índia devia ser preservada. Os missionários plexa, o que levou à criação do Conselho das índias em 1524. Mas a desordem

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persistente, primeiro no México e mais tarde no Peru, levou ao estabelecimento Guatemala, e abrangia as províncias de Guatemala, Chiapas, Nicarágua, El
de um sistema de vice-reino, concebido para afirmar a autoridade do rei nos seus Salvador, Honduras e Costa Rica, tendo a sua audiência situada em Santiago de
domínios ultramarinos. Guatemala.
As índias gozavam, todavia, de separação jurídica do reino de Castela. Tal Todas as audiências ficavam sob a jurisdição de um ou de outro vice-rei.
como Castela se compunha de um conjunto de reinos - Leão, Navarra e Granada, Os vice-reis presidiam às duas audiências mais importantes, a da Cidade do
para além do reino de Castela propriamente dito -, também as índias eram México e a de Lima. Inicialmente, os vice-reis eram também presidentes das
consideradas uma pluralidade de reinos que obedeciam a um mesmo soberano. audiências menores, mas mais tarde estas passaram a ter presidentes próprios,
Na conceção dos Habsburgos, o império abrangia toda uma diversidade de reinos e os territórios que administravam foram chamados presidências, embora o vice-
unidos apenas pela Coroa e pela Igreja. As índias eram vistas como parte desse -rei tenha mantido as suas funções de governador militar, continuando a ser tam-
mosaico de domínios imperiais, embora, enquanto novos estados, estivessem bém o responsável máximo pelas políticas a seguir.
muito mais estreitamente ligadas à vontade do soberano do que os territórios A par desta estrutura da audiência do vice-reino e das suas audiências saté-
europeus, onde os súbditos do rei tinham desenvolvido instituições e direitos lites, havia territórios que pela sua importância económica, militar ou demográ-
complexos que limitavam o poder real. Através dos seus vice-reis e da burocracia fica ganhavam um estatuto mais autónomo. Contudo, nominalmente, dentro da
real, o monarca podia exercer um poder absoluto nas índias - pelo menos em esfera de um vice-reino esses territórios eram da responsabilidade de um
teoria. "capitão-geral que na prática lidava diretamente com o Conselho das índias em
Para efeitos de administração, as índias foram divididas em dois vice-reinos. Espanha. As capitanias-gerais eram quatro - Guatemala, Santo Domingo, Nova
Todo o território a norte do istmo do Panamá tornou-se o vice-reino da Nova Granada e Chile; todas gozavam de um estatuto intermédio entre a presidência e
Espanha, governado a partir da Cidade do México. Os domínios espanhóis na o vice-reino.
América do Sul ficaram sob a jurisdição de Lima, capital do vice-reino do Peru. A administração real nas índias era inteiramente absolutista na sua inspira-
Mas estes territórios eram tão vastos que foram subdivididos em unidades admi- ção e conceção. Todos os cargos governativos eram preenchidos por nomeação.
nistrativas de menor dimensão, com os seus limites a serem determinados por Os funcionários tinham alguns poderes executivos e administrativos, mas as
um conjunto de fatores - geográfico, histórico, militar e económico. A estrutura questões políticas tinham de ser remetidas às instâncias superiores, percorrendo
da administração espanhola nas índias formava, assim, uma hierarquia, em que a hierarquia burocrática até chegarem ao Conselho das índias. O Conselho deli-
cada território ocupava um determinado lugar em relação à Cidade do México berava e consultava o monarca, comunicando a sua decisão através dos canais
ou a Lima, posição que refletia a sua importância no seio do vice-reino. estabelecidos, até que esta chegasse, se necessário, ao funcionário público de
A unidade administrativa básica era a província, que ficava entregue a um menor categoria no canto mais remoto do império. Com a relativa exceção dos
governador. Na fase inicial da conquista de um território, o governador era um cabildos (conselhos municipais), não havia corpos eletivos com o direito consti-
conquistador importante que se tornava responsável por uma série de colónias tucional de representar os interesses dos súbditos do rei na América; nem existia
espanholas e pela região que estas controlavam, inclusive pelas comunidades qualquer mecanismo de controlo ou supervisão das finanças do Estado. Para
índias que aí viviam. Na maior parte dos casos, quando já não se verificava o expressar os seus pontos de vista, os súbditos do rei tinham apenas dois meios
risco de a Coroa perder o território, o governador passava a ser um membro da ao seu alcance: dirigir «súplicas» ao monarca ou recorrer de uma decisão judicial
burocracia real, que desempenhava também as funções de magistrado e que para uma instância superior. A Coroa detinha, assim, um monopólio sobre a vida
supervisionava a cobrança de impostos. As províncias ficavam sob a jurisdição política oficial dos seus domínios.
de uma audiência, um tribunal, com determinados poderes administrativos e Nenhum soberano espanhol alguma vez visitou as índias. A autoridade da
executivos, e situada nas cidades capitais das províncias de maior dimensão. Coroa estava representada na pessoa do vice-rei, que, por essa razão, tinha
No século xvi, foram estabelecidas audiências em Santo Domingo (1511), na alguma da mística do próprio monarca. O vice-rei estava encarregado do cum-
Cidade do México (1529), no Panamá (1538), em Lima (1542), na Guatemala primento dos decretos reais, da administração da justiça, da supervisão das
(1544), em Guadalajara (1549), em Santa Fé de Bogotá (1549), em Charcas í finanças reais e da salvaguarda do bem-estar espiritual e material dos índios.
(1559), em Quito (1563) e em Santiago do Chile (1565). Os territórios adminis- A seguir ao vice-rei, os administradores públicos mais importantes nas
trados por uma audiência constituíam reinos distintos dentro de cada um dos índias eram os juizes das audiências, chamados oidores. A audiência era o
vice-reinos. A América Central, por exemplo, era conhecida como o reino da 't supremo tribunal para os territórios sob sua jurisdição. Julgava casos criminais e

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
A E S P A N H A NA A M É R I C A

civis, e era o tribunal de última instância para casos dos tribunais de instância
inferior, dos tribunais eclesiásticos e dos vários tribunais especiais que lidavam Os bispos podiam interferir nos assuntos de Estado, por vezes a ponto de contes-
com os assuntos de instituições corporativas. O vice-rei não intervinha nas deci- tarem as ações do vice-rei. Porém, no seio da Igreja, como no âmbito da admi-
sões puramente judiciais da audiência, embora pudesse supervisionar os proce- nistração civil, havia rivalidades de jurisdição entre diferentes instituições e
dimentos da mesma, para garantir a sua justeza. organizações, o que gerava tensão, e até conflitos, entre o clero secular e as
Ao contrário das suas homólogas em Castela, as audiências americanas ordens religiosas, entre as várias ordens religiosas, e entre o episcopado e insti-
tuições aparentemente autónomas como a Inquisição.
tinham certas funções administrativas e executivas que cumpriam sob orientação
do vice-rei. Apesar de a autoridade caber a este último, os oidores da audiência Os tribunais da Inquisição foram estabelecidos em Lima no ano de 1570 e
no México em 1571 (um outro tribunal para Nova Granada foi estabelecido em
estavam em posição de influenciar as decisões do vice-rei, participando desse
1620 em Cartagena), mas o Santo Ofício não desempenhou nas índias o papel
modo na governação das colónias. Neste aspecto, as audiências funcionavam
central que alcançou em Espanha; não possuía jurisdição sobre os índios, o
como conselhos de Estado e adquiriram contornos políticos. Por outro lado,
como supremos guardiões da lei, os oidores podiam vigiar a conduta do vice-rei perigo de influência protestante na América era remoto, e as práticas judaizantes
tinham menos probabilidades de ocorrer (à exceção de um período entre os anos
e participar irregularidades diretamente ao Conselho das índias. Tendo o seu
30 e 40 do século xvn, quando o sentimento antiportuguês motivou ações judi-
cargo uma duração superior à do cargo de vice-rei, os oidores asseguravam a
_áais contra criptojudeus, que eram em número considerável nas comunidades
continuidade na governação do território, pelo que quase sempre acabavam por
jnercantis portuguesas das índias espanholas). A sua ação era em larga medida
se identificar com interesses locais. Em finais do século XVT, quando a Coroa
dedicada ao castigo de blasfemos, adúlteros, religiosos errantes e outros margi-
recorreu à venda de cargos públicos, as audiências começaram a admitir cada
,'nais, e à muitas vezes ineficaz censura de livros. Neste sentido, a Inquisição teve
vez mais espanhóis nascidos na América, embora raramente se estabelecessem
um papel de alguma importância como cão de fila da monarquia católica, embora
nas suas regiões de origem. Ainda assim, esta tendência contribuiu para ameri-
estivesse longe de inspirar terror à população; quando muito, os homens que se
canizar um órgão muito importante do governo imperial e conferiu às elites das
^tomavam membros laicos da Inquisição gozavam de prestígio social nas suas
índias uma influência considerável sobre a administração real.
comunidades.
Os funcionários do tesouro constituíam outro importante setor do governo.
Esta multiplicidade de gabinetes e instituições rivais funcionava como um
Todas as expedições de conquista incluíam um funcionário do tesouro, que
sistema de separação de poderes que impedia qualquer ataque ao monopólio de
garantia que a Coroa recebia a sua parte do saque. Quando uma região era colo-
legitimidade da monarquia católica no seu vasto império. Com efeito, a Coroa
nizada, a Coroa passava a cobrar impostos e a exigir obrigações aos habitantes,
criava salvaguardas contra a concentração de demasiado poder nos seus domí-
e a cobrança era organizada por agentes reais nomeados para todas as cidades
;níos ultramarinos. Os funcionários públicos de categorias superiores estavam
importantes. O vice-rei era o responsável máximo pela cobrança das receitas do
tados nas suas relações com grupos de interesse locais - não podiam unir-se
rei, e as contas eram escrutinadas pelas audiências antes de serem enviadas para
.o casamento a famílias locais, nem envolver-se em atividades comerciais ou
o Conselho das índias. As principais fontes de receita eram o «quinto», a quinta
imprar terras em território sob sua jurisdição. A Coroa tendia a nomear espa-
parte do valor de todos os metais preciosos extraídos nas índias; o almojarifazgo
iis da Península para os cargos mais elevados - os vice-reis eram invariavel-
(imposto de importação); a alcabala (imposto sobre vendas), o tributo índio;
inte enviados de Espanha; e mesmo quando eram nomeados para as audien-
as receitas provenientes de rendas, de monopólios e empresas da Coroa; o
', os espanhóis americanos vinham geralmente de outro domínio das índias,
dízimo; e um imposto especial cobrado para financiar as guerras contra os infi-
desempenho de um funcionário público estava sujeito a uma avaliação desig-
éis. Em tempos difíceis, a Coroa podia obter receitas adicionais recorrendo a
residencia e de tempos a tempos eram enviados de Espanha ou de outra
impostos extraordinários, à venda de cargos públicos, a pedidos de doações
das índias juizes independentes para uma «visita» em que investigavam as
especiais ou a empréstimos forçados.
ividades de determinadas instituições ou funcionários.
A Coroa tinha ainda o direito de nomear todos os bispos e sacerdotes para as
Estas salvaguardas e procedimentos tinham como finalidade manter a auto-
índias ao abrigo do Patronato Real atribuído aos Monarcas Católicos pelo papa
ia do Estado relativamente à sociedade civil, assegurar a neutralidade da lei
em 1508. Em virtude do poder e da influência da Igreja na sociedade hisgâ-
ite direitos adquiridos; isto porque o monarca tinha de julgar um sem-fim de
nica, o controlo régio da hierarquia eclesiástica munia a Coroa de um outro ins-
ios, petições e súplicas dos seus súbditos, e não podia ser visto como alguém
trumento de governação, que funcionava em paralelo com a administração civil
favorecia determinado interesse ou que infringia os direitos de um qualquer
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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA

grupo. Era igualmente dada alguma liberdade aos administradores na aplicação nos locais onde se realizavam eleições só os mais proeminentes vecinos da
de decretos reais às condições locais. Era necessário avaliar se o cumprimento cidade eram elegíveis para esses cargos. Deste modo, a administração municipal
rigoroso de uma ordem real não seria impraticável ou desaconselhado em dadas era mais oligárquica do que democrática - os lugares no cabildo eram monopo-
circunstâncias. Um funcionário podia, então, responder a uma diretiva da Coroa lizados pelas famílias poderosas, que depois os transmitiam a parentes ou a
com a fórmula «Obedezo pêro no cumplo» - «Obedeço mas não aquiesço.» clientes políticos, acentuando dessa forma as relações de proteção que eram
Embora absoluto, o Estado imperial não era monolítico; socorria-se de uma endémicas nas índias. O cabildo podia lançar impostos locais, atribuir terra do
série de instrumentos formais e práticos para alcançar a imparcialidade, a justiça município, supervisionar os mercados locais e manter a ordem; estes poderes
e a flexibilidade. Porém, com o passar do tempo, e na vastidão da América, a serviam claramente os interesses das famílias proeminentes da região. Uma
dispersão do poder por tantas entidades rivais retirou à autoridade do rei grande representação mais alargada era permitida pelo cabildo «aberto», que se reunia
parte da sua eficácia. Os éditos eram gradualmente reduzidos ou silenciosamente em tempos de crise - logo, muito raramente -, quando um conjunto de outras
negligenciados à medida que percorriam o labirinto de burocracia nas índias vozes locais podia fazer-se ouvir.
As oportunidades de corrupção eram, além disso, demasiado frequentes: um A administração local índia manteve a sua forma tradicional de governo
cargo público era encarado como património pessoal durante um período limi- hereditário conduzido por chefes até meados do século xvi. A partir da década de
tado, e, sendo os salários geralmente baixos, os funcionários sentiam-se tentados r *?• 60 do século xvi, a Coroa começou a introduzir instituições que seguiam o
a usar o seu cargo em benefício próprio. O suborno florescia sempre que um modelo hispânico. Nas cabeceras (cidades principais), foram criados cabildos
monarca com dificuldades financeiras colocava cargos públicos à venda - com poderes semelhantes aos dos seus equivalentes no setor espanhol. Estes
mediante um pagamento, era possível contornar leis, comprar sentenças e conse- conselhos eram também oligárquicos, o que no contexto índio significava a con-
guir licitações públicas. Na sua maioria, os vice-reis eram íntegros e conscencio- tinuação, sob nova capa, do poder hereditário exercido por chefes e anciãos tri-
sos, e os homens que ocupavam os níveis mais elevados da administração eram, bais. Ainda assim, o facto de os cargos municipais serem atribuídos por eleição
por norma, honrados servidores da Coroa, mas as leis que proibiam o envolvi- ou por nomeação foi corroendo os princípios hereditários. Em algumas regiões,
mento com interesses locais eram geralmente ignoradas; na prática, os funcioná- esta corrosão foi acelerada pela congregación e pela reducción, os programas de
rios reais estabeleciam laços próximos com as famílias e os clãs poderosos das relocalização índia levados a cabo por missionários e por funcionários da Coroa,
regiões que administravam. Era nos cargos mais baixos da função pública que os que provocaram o enfraquecimento das lealdades tribais. Plebeus índios, resi-
abusos proliferavam, e era precisamente aí que os seus efeitos se revelavam mais dentes não tribais e até mestiços acabaram por exercer cargos em muitos cabil-
perniciosos. Se era nas províncias e nas regiões rurais que os conflitos de inte- dos do setor índio. Os municípios ao estilo espanhol contribuíram, assim, para o
resse entre conquistadores e conquistados assumiam a sua forma mais grave, era desaparecimento das hierarquias índias e para um certo nível de aculturação a
também aí que a copiosa legislação que protegia os direitos dos índios - uma longo prazo.
causa em que a Coroa estava sinceramente empenhada - tinha menores probabi- Contudo, a reforma administrativa que maior impacto teria na vida nativa foi
lidades de ser respeitada. a divisão do setor índio em corregimientos. O corregidor de índios não era um
A estrutura da administração local refletia a segregação jurídica entre índios nativo, mas um espanhol, e muitas vezes um hispano-americano, com ligações a
e espanhóis, que a Coroa concebera com o objetivo de proteger os nativos da proprietários de terras hispânicos da região. Sendo ele o funcionário real em
exploração por parte dos colonos. Cada raça tinha os seus próprios municípios, contacto mais próximo com o mundo índio, era deste homem que dependia o
t sucesso da política da Coroa relativamente aos nativos. Era ele o responsável
gabinetes e tribunais, e cada jurisdição era supervisionada separadamente por
administradores reais. No setor hispânico, as províncias encontravam-se dividi- pelo bem-estar espiritual e material dos índios e pela administração da justiça,
das em corregimientos (unidades administrativas) chefiadas por um corregidor mas era também ele que cobrava os impostos e que organizava a mão de obra
(também chamado alcaide mayor na Nova Espanha), que residia na principal nativa para servir o setor espanhol; e estas últimas atividades convidavam aos
cidade da região e que devia vir de fora. O corregidor tinha poderes executivos abusos mais espantosos. Isto porque o corregidor de índios era nomeado por dois
e judiciais limitados, estando sujeito à autoridade do governador da província e, três anos apenas, tinha um salário baixo, que era retirado dos impostos cobra-
acima deste, da audiência. Em cada cidade do corregimiento havia um cafaldo aos índios, e era-lhe permitido dedicar-se a atividades comerciais. Não
(conselho municipal), cujos membros eram recolhidos entre os habitantes locais. que este funcionário encarasse a sua breve passagem pelo cargo como
Na maioria dos casos, os vereadores eram nomeados pelo corregidor, e mesmo licença para extorquir aos índios toda a riqueza que lhe fosse possível.

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As instituições do Estado criadas pela monarquia católica nas índias seguiam da humanidade antes do começo do reino milenar de Cristo na Terra. O milena-
o modelo das que funcionavam bem em Castela. Muito se fez para as adaptar às rismo dos franciscanos dava-lhes um sentido apocalítico de urgência; contribuiu
condições específicas da América, e a legitimidade da Coroa foi inquestionavel- também decisivamente para a idealização dos índios e para o impulso de os pro-
mente preservada. Porém, na realidade, a eficácia destas instituições encontrava- teger da corrupção do Velho Mundo afastando-os o mais possível dos Espanhóis.
-se seriamente comprometida. A distância, a diversidade e os antagonismos Os nativos eram vistos como almas simples cuja existência fora tardiamente
raciais das índias eram, sem dúvida, fatores adversos, mas foi a debilidade finan- revelada por Deus para que o cristianismo pudesse renovar-se no Novo Mundo.
ceira da Coroa nas últimas décadas do século xvi que mais contribuiu para frus- Aos franciscanos seguiu-se um grupo de doze dominicanos, que chegou à
trar os objetivos da administração real no Novo Mundo. Ironicamente, o período América em 1526, e depois os agostinianos, em 1533. O trabalho de evangeliza-
em que a Coroa mais se empenhou na institucionalização da sua autoridade na cão teve início no vale do México e com a chegada de cada vez mais monges ao
América foi também a época em que os seus recursos financeiros entravam em Novo Mundo as ordens mendicantes expandiram-se para outras áreas, concen-
rápido declínio. Em 1557, o ano anterior à subida ao trono de Filipe II, que suce- trando-se os franciscanos no Noroeste, nas regiões de Michoacán e da Nova
deu ao seu pai, Carlos V, o tesouro real não conseguira pagar as suas dívidas. Em Galiza, os agostinianos no Nordeste, e os dominicanos no Sul, em redor de
1575, e novamente em 1596, a Coroa esteve em situação de incumprimento Oaxaca. Foram enviadas outras ordens nos anos seguintes, das quais a mais
Filipe procurou formas de aumentar as suas receitas nas índias: subiu os impos- influente foi a dos jesuítas, que chegou no ano de 1568 e começou a estabelecer
tos e os direitos aduaneiros, e até leiloou alguns cargos administrativos menores missões bem-sucedidas no Norte do México e no Paraguai. Ainda em pleno
Mas a verdade era que não havia simplesmente dinheiro suficiente para pagar século xvm, jesuítas e franciscanos persistiam na sua missão em zonas fron-
uma administração eficaz além-mar. Pior ainda, o próprio império começara a teiriças.
depender do fluxo de metais preciosos que vinha do outro lado do Atlântico para A tarefa que estes grupos muito pequenos de missionários enfrentavam era
cumprir os seus múltiplos compromissos nos campos de batalha da Europa. Em verdadeiramente assombrosa: havia milhões de índios, que falavam uma enorme
última análise, as ambições imperiais da monarquia espanhola contrariavam a variedade de línguas desconhecidas e habitavam um continente vasto e inexplo-
sua genuína preocupação com a justiça e o bom governo da América. rado. Eram escassos os precedentes para uma tal missão de conversão. A princí-
pio, a política dos monges consistiu em erradicar a religião dos nativos e em
ensinar aos neófitos os rudimentos da fé cristã, antes de os batizar en masse.
A Evangelização dos índios ídolos, templos e códices - que os missionários viam como instrumentos de
Satanás - eram destruídos, e nos lugares sagrados dos nativos erguiam-se igrejas
Uma das principais justificações para a conquista espanhola da América era pelas mãos dos índios. Estes primeiros missionários apostólicos consideraram
a conversão de povos pagãos ao cristianismo. A monarquia católica perseguiu um enorme sucesso o batismo de milhares de convertidos; viam sinais da graça
esse objetivo com a maior seriedade. No entanto, a experiência das Caraíbas de Deus em numerosos milagres e ocorrências sobrenaturais.
revelara-se desastrosa; a ganância dos colonos espanhóis, aliada a epidemias No entanto, mais tarde, outros missionários mostraram-se menos convictos
virulentas, dizimara a população índia. Alguns missionários começaram a censu- " do entusiasmo dos índios pela nova religião; acreditavam que o cristianismo só
rar a empresa da conquista e até a questionar a aptidão da Espanha para a levar Seria devidamente recebido se fosse incorporado nas culturas nativas. Dedica-
a cabo. Então, quando Hernán Cortês conquistou os reinos densamente povoados ram-se, então, à aprendizagem das línguas índias, produzindo dicionários e gra-
do México, a Coroa decidiu que não iria desonrar a obrigação divina da Espanha máticas de idiomas nativos; também estudaram a história dos povos indí-
de levar a Palavra de Deus aos nativos do Novo Mundo. Em 1524, 12 monges genas, bem como os costumes e as tradições das suas sociedades. Esta tentativa
franciscanos desembarcaram em Veracruz para dar início ao trabalho de conver- • inédita de compreender as culturas desconhecidas do Novo Mundo lançou as
são. Este número, escolhido para celebrar os doze apóstolos de Cristo, refletia o fundações para o desenvolvimento da etnologia; com efeito, as obras dos missio-
idealismo que inspirava a iniciativa: os missionários espanhóis partiam com a nários continuam a ser fontes valiosas para a investigação moderna das civiliza-
esperança de recuperar a pureza e a simplicidade da Igreja primitiva, através da ções pré-colombianas.
evangelização dos índios americanos. . » Um problema persistente era o escasso número de missionários para tantos
A visão dos franciscanos era influenciada por uma interpretação mística do f índios que tinham de ser evangelizados e depois mantidos na fé cristã. Para ten-
seu projeto, segundo a qual estariam a iniciar a última grande vaga de conversão tar minorar este problema, os monges viajavam de vila em vila celebrando a

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missa e administrando os sacramentos. Também estabeleciam doctrinas, reuni-


e jesuítas assemelhavam-se mais aos fortes espanhóis (presídios) dispersos por
ões regulares de índios para instrução e prestação de culto nas missões. Mas em aqueles territórios fronteiriços inóspitos do que às congregaciones utopianas das
algumas regiões os índios estavam demasiado dispersos, ou as suas aldeias regiões centrais. Com efeito, o sucesso da evangelização dependia da eficácia da
tinham sido destruídas pelas guerras da Conquista ou assoladas por epidemias. conquista e do controlo político. No lucatão e na América Central, onde o pro-
Nesses casos, os missionários adotavam a política de restabelecer os índios em
cesso de conquista fora especialmente perturbador, a recetividade dos índios à
congregaciones, aldeias especialmente concebidas para o efeito onde os nativos nova religião era menor do que nas regiões do México pacificadas por Hernán
podiam adquirir os costumes civilizados dos europeus e ser educados em comu- Cortês, mas um programa específico de congregación implementado nos anos 40
nidades cristãs bem organizadas.
do século xvi relocalizou a maioria dos índios até então dispersos pelas monta-
Os protótipos destas colónias eram os dois Pueblos-Hospitales de Ia Santa nhas da América Central, apesar de o processo ter sido muito mais lento no
Fe - estabelecidos pelo clérigo humanista Vasco de Quiroga perto da Cidade do
lucatão.
México (1532) e em Pátzcuaro, Michoacán (1538), dos quais Quiroga se tornou Os missionários chegaram ao Peru na década de 30, pouco tempo depois de
bispo. Estas cidades-modelo inspiravam-se na sociedade ideal descrita na obra Pizarro. No entanto, com as guerras civis entre conquistadores rivais, com a
Utopia de Sir Thomas More: os nativos seguiam um regime de trabalho comunal agitação das primeiras guerras pela sucessão inça, com a rebelião de Manco Inça
em terras partilhadas, elegiam representantes para um cabildo, fundaram um e outras revoltas dos índios, a evangelização fora das principais cidades só pros-
hospital e escolas, e observavam o ciclo do ano cristão com procissões, ritos e perou a partir dos anos 60, quando o vice-rei Francisco de Toledo começou a sua
festivais. Quiroga pertencia a um conjunto de humanistas erasmianos espanhóis extensa campanha de pacificação. Na verdade, foram as autoridades reais do
responsáveis pelo ímpeto intelectual para a evangelização do Novo Mundo. Peru que deram início ao programa de concentração de índios em reducciones.
O franciscano Juan de Zumárraga, que foi ordenado em 1527, tornando-se o Nos anos 70, o ímpeto missionário dava sinais de enfraquecimento - aproxima-
primeiro bispo do México, escreveu um catequismo para neófitos índios e um damente na mesma altura em que o impulso de explorar e conquistar começava
breve manual da doutrina cristã para uso nas missões. Também fundou o Colégio a afrouxar. Ainda assim, a chegada dos jesuítas depois de 1568 reavivou o espí-
de Santa Cruz, em Tlateloco, onde os filhos da nobreza índia aprendiam latim, rito missionário em zonas fronteiriças tão remotas quanto o extremo Norte do
filosofia, retórica e lógica. Sob a sua direção, a Bíblia foi traduzida para uma México e as regiões do Sudeste do Paraguai, e conservou esse espirito até ao
série de línguas nativas. século XVIH, à semelhança de outras ordens, como a dos capuchinhos, que che-
Os missionários também proporcionavam uma instrução técnica aos índios garam em finais do século xvn e evangelizaram o interior da Venezuela.
que tinham a seu cargo, ensinando-lhes novos métodos agrícolas e familiari- Em suma, a cristianização dos índios americanos foi profundamente desi-
zando-os com novos instrumentos, introduzindo diferentes espécies hortícolas e gual. Embora seja difícil avaliar o grau e a qualidade da experiência religiosa,
construindo aquedutos e sistemas de irrigação, que permitiam converter exten- para muitos nativos o resultado global dos esforços heróicos destes pequenos
sões áridas em terras de cultivo. Contudo, a autoridade dos missionários sobre os grupos de missionários espanhóis foi um sincretismo de catolicismo e crenças
índios incomodava os latifundiários espanhóis, que exigiam mão de obra índia índias: sob a aparência da prática católica, persistia amiúde um apego a crenças
para trabalhar as suas terras e que se melindravam por os religiosos criticarem a e ritos pagãos. No entanto, a relação entre paganismo e cristianismo variava
sua exploração dos nativos. Também a Coroa desconfiou da autonomia que os consideravelmente de uma região para outra, e até de um indivíduo para outro,
missionários reclamavam para as suas colónias de índios; eles não aceitavam, sem dúvida. O paganismo podia, em alguns casos, persistir apenas na forma de
por exemplo, que os índios a seu cargo pagassem o dízimo à Igreja secular, e superstições populares ou de um interesse superficial por magia e feitiçaria, tal
resistiam à transferência para o clero secular da responsabilidade pelas paróquias como acontecia em zonas rurais remotas da Espanha ou da Irlanda. Nos Andes,
índias. Por vezes, as ordens missionárias quase que estabeleciam para os índios pelo contrário, os resquícios de crenças pagãs eram muito mais evidentes e
uma política contrária aos interesses da Coroa e que ameaçava lançar dúvidas em muitas regiões isoladas da América as culturas pagãs sobreviveram quase
sobre a natureza da presença da Espanha na América.
intactas.
Fora das regiões centrais do México, a empresa da evangelização revelou-se Mas não restam dúvidas de que os ritos e devoções católicos eram observa-
ainda mais difícil. No extremo norte, as tribos nómadas opunham uma resistên.- dos na grande maioria das colónias índias nas principais regiões sob domínio
cia quase total ao cristianismo, e o trabalho das missões avançava a um passo tão espanhol. Além do mais, o carácter sacramental da crença católica, o culto da
hesitante quanto o da pacificação militar; as estações missionárias franciscanas Virgem e dos santos, o ritual da liturgia católica, a opulência e o esplendor da
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arquitetura, da arte e da música religiosa atraíram certamente Os índios e servi- A Ligação Transatlântica
ram para transformar o sentimento religioso pagão em novas formas cristãs. Um
exemplo notável deste processo é o culto da Virgem de Guadalupe entre os As ligações comerciais da Espanha com o seu império ultramarino em
índios do México. A igreja que assinala o aparecimento da Virgem ao camponês expansão tinham-se estabelecido na última década do século xv entre Sevilha e
índio Juan Diego em 1531 foi erguida no local de um santuário asteca dedicado Santo Domingo, em Espanola. Da Península seguiam as pessoas, os animais e as
à deusa Tonantzin, Mãe da Terra. Do mesmo modo, a prática de autoflagelação provisões necessários à colonização; em troca, os colonos enviavam ouro das
entre alguns povos dos Andes poderá ter a sua origem em atos semelhantes de Antilhas. Após a conquista do México e do Peru, a ligação transatlântica sofreu
expiação nas suas antigas religiões. algumas modificações, mas o seu carácter essencial permaneceu inalterado: con-
Os próprios missionários tinham, evidentemente, dúvidas quanto à eficácia tinuou a ser um comércio monopolista entre portos autorizados da Península e o
da sua campanha de evangelização. No México registaram-se, num período Novo Mundo, conduzido sob supervisão do Estado na Casa de Contratación em
inicial, tentativas de formar um clero nativo, mas o projeto foi abandonado nos Sevilha.
anos 60 do século xvi, e a partir dessa altura os índios foram considerados inap- A Casa de Contratación era o órgão regulador supremo do comércio das
tos para o sacerdócio. Apesar de alguns esforços das autoridades de Roma, no índias. Fundada em 1503, era responsável pelo licenciamento dos navios, pela
princípio do século xvn, no sentido de encorajar o recrutamento de índios, em organização das frotas transatlânticas, pela inspeção e registo de mercadorias,
pleno século xvm o clero das índias era ainda branco. Os mestiços também esta- pela cobrança de impostos e taxas aduaneiras, e pela receção do quinto real de
vam excluídos das ordens religiosas, ao que parece devido à sua ilegitimidade ouro e prata da América. Desempenhava um papel de tal modo central na ligação
- embora existisse claramente um certo preconceito racial, dado que a situação transatlântica que se tornou uma entidade quase autónoma, aconselhando a
se manteve mesmo depois de uma dispensa papal dirigida aos mestiços ilegíti- Coroa em todas as questões relacionadas com o comércio imperial e funcionando
mos em 1576. como um tribunal em questões comerciais. A Casa de Contratación estava, na
Como resultado, a Igreja continuou a ser uma instituição hispânica e colo- realidade, encarregada de garantir o monopólio da Espanha sobre o comércio das
nial, e, apesar de toda a sua dedicação aos índios e da sua defesa dos direitos índias, e mantinha-se este monopólio canalizando todo o comércio atlântico
nativos contra os colonos, as ordens missionárias nunca puseram de lado a sua através de um pequeno número de portos, facilitando dessa forma o controlo a
atitude tutelar e paternalista para com os povos nativos. Mostravam-se extrema- partir de Sevilha.
mente relutantes, por exemplo, em entregar o ministério índio ao clero secular, Na Península, no início do século xvi, alguns portos estavam autorizados a
conforme previsto por bulas papais dos anos 20 do século xvi, alegando que os participar no comércio com a América, mas nenhum competia com Sevilha;
padres seculares não partilhavam do seu empenho no bem-estar dos índios e que só Cádis viria mais tarde a ganhar importância, especialmente no século xvm.
permitiriam a exploração dos nativos pelos proprietários hispânicos. Havia Do lado americano, Santo Domingo acabou por ser suplantado pela Cidade do
alguma verdade nesta alegação, pois os padres seculares que ficaram encarrega- México e, depois, por Lima, passando cada capital a funcionar como o núcleo
dos de paróquias índias, nas últimas duas décadas do século, eram muitas vezes comercial e de distribuição para todo o comércio do seu vice-reino. Três portos
negligentes e extorquiam pagamentos indevidos aos seus paroquianos. americanos estavam autorizados como pontos de entrada e saída de frotas: Vera-
Em última instância, a Igreja Católica não conseguiu escapar à ambivalência cruz, para o México e para a América Central; Nombre de Dios (substituído por
para com os índios que caracterizou toda a empresa colonial espanhola na Amé- Portobello no século xvn), no istmo do Panamá, que servia sobretudo o Peru e o
rica. Abrangendo sociedades de conquistadores e de conquistados, absorveu as Chile; e Cartagena de índias, para o interior de Nova Granada. O porto de Car-
tensões entre as duas raças. De qualquer forma, se era essencialmente colonia- tagena era também usado como ponto de reabastecimento por navios vindos de
lista, a verdade é que adotou, enquanto instituição, uma postura coerente na Espanha, e Havana, em Cuba, desempenhava a mesma função para o tráfego em
defesa do tratamento humano dos índios americanos: trabalhou para aliviar o sentido contrário.
sofrimento dos nativos e proporcionou-lhes uma vida digna onde tal foi possível. As viagens transatlânticas eram conhecidas como correra de índias, e
Além disso, estando tão estreitamente ligada à monarquia espanhola, a Igreja seguiam rotas e planos ainda vagamente aparentados com os da viagem original
teria uma influência decisiva na forma do Estado e da sociedade que finalmente» de Colombo. Desde o início da primavera, as frotas partiam de Sevilha, reabas-
emergiriam nas índias, uma vez terminado o período de conquista e conso- teciam-se nas ilhas Canárias e atravessavam o Atlântico, seguindo para sul, por
lidação. uma rota que as levava através das ilhas das Antilhas Menores até ao sul do mar

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

menor escala, açúcar, peles e matérias corantes. Depois da descoberta dos gran-
das Caraíbas; este percurso demorava cerca de um mês. Das Caraíbas, os navios
com destino ao Panamá seguiam viagem até Cartagena de índias, onde se rea- des depósitos de prata, em finais dos anos 40 e nos anos 50, no Norte do México
basteciam, e depois até Portobello, no istmo, para descarregarem a carga espe- e no Alto Peru, a prata tornou-se a principal exportação das índias, e continuaria
a sê-lo durante todo o período colonial. Porém, até a este respeito se manteve
rada em Lima e na América do Sul; outras frotas dirigiam-se para Veracruz, com
mercadoria para a Nova Espanha; ambos os percursos levavam mais um mês e uma considerável interdependência até ao fim do século xvi, pois o processo de
meio. Para a viagem de regresso, os comboios de navios iam buscar a Portobello extração de prata requeria mercúrio, o qual era obtido nas minas de Almadén, em
ou a Veracruz a carga destinada à Península e zarpavam para Havana, onde pas- Espanha, e nos domínios austríacos da Coroa (embora em finais da década de 70
se tenha começado a extrair algum mercúrio de depósitos em Huancavelica, no
savam o inverno; no começo da primavera, iniciavam a travessia de regresso a
Sevilha, que levava cerca de 65 dias. Peru). A necessidade de importar mercúrio da Europa, e o facto de este produto
A partir do início da década de 60, quando a exportação da prata americana estar reservado como monopólio da Coroa, contribuía para a complementaridade
sofreu um enorme aumento, a Coroa adotou novas medidas para controlar e da economia transatlântica.
Verificavam-se, contudo, tendências que a longo prazo viriam desequilibrar
defender o comércio transatlântico, introduzindo um sistema de escolta armada.
Todos os navios tinham de integrar uma de apenas duas frotas anuais autorizadas o comércio colonial. O desenvolvimento da extração de prata foi um estímulo
poderoso para a economia de muitas regiões da América, uma vez que as cidades
a navegar para as índias. A frota para Nova Espanha, conhecida simplesmente
mineiras tinham de ser abastecidas com alimentos, vestuário, materiais de cons-
como aflota, partia de Sevilha na primavera com destino a Veracruz, levando
consigo alguns navios que seguiriam para as Honduras, em busca de prata, e para trução, ferramentas e animais, especialmente mulas de carga. Ao expandir-se, na
segunda metade do século xvi, esta economia americana interna começou a dis-
uma série de ilhas das Caraíbas. A segunda frota, da qual faziam parte alguns
pensar as mercadorias da Península. E a Espanha, incapaz de substituir as suas
navios destinados a portos da costa norte da Venezuela, partiam em agosto para
exportações agrárias para as índias pelos produtos manufaturados e de luxo
Nombre de Dios com mercadoria para a América do Sul; uma vez que esta frota
traria para a Península a preciosa prata de Potosí, era escoltada por uma meia requeridos pelos colonos americanos, viu-se progressivamente reduzida a um
dúzia de galeões, e por isso ficou conhecida como a frota dos galeones. As duas mero papel de intermediária, fornecendo à índia bens exportados por outros
frotas passavam o inverno juntas em Havana, regressando a Espanha na pri- países europeus.
mavera. O comércio transatlântico estava nas mãos de casas mercantis de Sevilha, da
Cidade do México e de Lima. Este monopólio foi confirmado pela Coroa, que
Com a África e a Ásia foram estabelecidas outras ligações marítimas.
O comércio de escravos africanos era em larga medida conduzido por Portugue- em 1543 concedeu direitos de exclusividade de comércio com as índias a uma
ses e estrangeiros com a licença da Casa de Contratación. Não havia rotas defi- corporação de comerciantes de Sevilha conhecida como o consulado. Durante a
nidas, mas os escravos da África Ocidental eram levados para diferentes portos maior parte do século, os comerciantes de Sevilha tinham filiais nas capitais dos
das colónias espanholas, em particular para Cartagena de índias, que desenvol- vice-reinos, mas, com o florescer da economia das índias, estas dependências
coloniais começaram a operar autonomamente; os comerciantes da Cidade do
veu um enorme mercado de escravos. Após a conquista das Filipinas por Miguel
López de Legazpi, nos anos 60 do século xvi, estabeleceu-se um comércio trans- México obtiveram o seu estatuto de consulado em 1592, e os de Lima em 1613.
pacífico entre Manila e Acapulco, na costa ocidental do México. Manila tornou- Estes monopolistas, em cada um dos lados do comércio transatlântico, manti-
-se um grande entreposto para o comércio com o Oriente: especiarias, sedas e nham os preços elevados nos mercados cativos das índias manipulando o fluxo
porcelana eram trocadas por prata americana. A Casa de Contratación tentou de bens, garantindo lucros extraordinários (que iam até aos 100% brutos, em
muitos dos artigos exportados). Os preços americanos eram também elevados
controlar este comércio permitindo apenas dois galeões por ano na travessia para
Acapulco-Manila. As ligações diretas ao Peru foram autorizadas durante algum pelos vários impostos e direitos aduaneiros cobrados pela Casa de Contratación,
cujos funcionários trabalhavam em estreita colaboração com os mercadores dos
tempo, mas acabariam por ser interrompidas, como consequência dos protestos
dos comerciantes de Sevilha, sempre ciosos do seu monopólio comercial. consulados. Não é, assim, de estranhar que este comércio oficial restritivo com
Até meados do século xvi, o comércio entre a Espanha e as suas colónias as índias fosse ultrapassado pelo contrabando em grande escala de bens europeus
americanas era razoavelmente complementar. As ilhas das Caraíbas, no início, e • a preços reduzidos.
mais tarde o México e o Peru, recebiam imigrantes, sementes, animais, cereais, A incapacidade da Espanha de fornecer os produtos manufaturados cada vez
azeite e vinho da Península, e enviavam ouro, sobretudo, alguma prata e, em mais procurados nas índias, aliada aos preços artificialmente elevados gerados

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pelo seu monopólio de comércio, encorajou a participação de comerciantes euro- Sir John Hawkins iniciou o fornecimento de escravos africanos às índias, vio-
peus na economia transatlântica. Os europeus chegavam aos mercados coloniais lando o monopólio comercial da Espanha; todavia, em 1568 sofreu uma dura
espanhóis operando através das casas mercantis de Sevilha para obterem os derrota infligida por uma esquadra espanhola ao largo de Veracruz. Um ataque a
lucros do comércio oficial, ou fornecendo mercadorias diretamente às colónias, Nombre de Dios em 1572 assinalou o início da longa carreira de Sir Francis Drake
recorrendo ao contrabando. Por outro lado, a ligação transatlântica da Espanha na apropriação de tesouros espanhóis e na pilhagem de portos das índias. As faça-
sempre fora vulnerável à pirataria, o velho flagelo do comércio marítimo euro- nhas de Drake na década de 80 convenceram Filipe n da necessidade de reforçar
peu e mediterrânico. À medida que os domínios espanhóis na América se torna- as defesas costeiras nas Caraíbas. Em 1586, foi encomendado ao engenheiro ita-
vam mais vastos, a atenção de piratas e corsários voltou-se para as novas opor- liano Juan B autista Antoneli um projeto de fortificações para os principais portos
tunidades de saque proporcionadas pela carreira das índias, especialmente a da correra de índias - Cartagena, Portobello, a ilha de San Juan de Ulúa, ao largo
partir de meados do século xvi, quando as quantidades de prata americana que de Veracruz, Havana e San Juan, em Porto Rico. Estas defesas, embora dispendio-
atravessavam o oceano aumentaram significativamente. Nas últimas décadas do sas, revelaram-se eficazes contra os piratas; contudo, nos últimos anos do século
século, os interesses comerciais europeus convergiriam com as intenções milita- os Holandeses protestantes, em rebelião contra a Espanha desde o início da
res dos inimigos da Espanha, e o assalto comercial ao monopólio espanhol década de 70, estenderam a sua luta às costas da América, sobrecarregando con-
ganhou contornos claramente políticos. sideravelmente o já catastrófico orçamento da monarquia católica.
Foi o crescente envolvimento da Espanha nos conflitos da Europa Central e No final do século, o esforço exigido pelo império começava a tornar-se
do Norte que transformou os tradicionais riscos do comércio, como a pirataria e incomportável: a Espanha recebia um fluxo de prata das índias mas já não con-
o contrabando, em recursos da política internacional. Quando Carlos V implicou seguia fornecer os mercados da América espanhola, servindo-se apenas dos seus
a Espanha nos assuntos do Sacro Império Romano, as guerras religiosas e dinás- recursos. Ao invés, o comércio das índias começava a cair nas mãos de merca-
ticas das potências europeias foram levadas para as águas do Atlântico norte. dores estrangeiros, quer através da reexportação de bens por Sevilha, quer atra-
Os países que tinham motivos para lutar contra a Espanha católica nos campos vés do contrabando, deixando a Espanha como pouco mais do que mera interme-
de batalha da Europa procuraram enfraquecê-la atacando a verdadeira fonte da diária nas trocas económicas entre a América e a Europa. Contudo, uma vez que
sua riqueza, que, como todos sabiam, não era a sua economia doméstica, mas a a economia hispano-americana se tornava cada vez mais independente da Espa-
prata que recebia das índias. nha, podemos perguntar-nos por que razão continuavam os colonos ligados a um
Apesar de nunca ter representado mais de 20% das receitas imperiais, a prata sistema que os impedia de comerciar diretamente com todo o resto do mundo,
era o combustível que alimentava a máquina de guerra espanhola. Na segunda que mantinha os preços artificialmente elevados, que cobrava impostos elevados
metade do século xvi, quando as finanças da monarquia católica se arrastavam para pagar guerras dinásticas remotas e que interferia no quotidiano dos negócios
de crise em crise, as injeções regulares daquele metal precioso vindo das índias de inúmeras formas mesquinhas.
permitiam que a Espanha se mantivesse de pé usando a promessa da prata ame- Embora a Espanha estivesse destinada a tornar-se, em rigor, supérflua às
ricana como garantia para os empréstimos de guerra concedidos pelos banquei- relações comerciais entre a Europa e a América, a Coroa espanhola organizava a
ros genoveses e alemães. O financiamento externo crónico a que a Coroa espa- economia transatlântica de tal modo que reservava ao Estado um papel central
nhola recorria para cumprir os seus compromissos militares tornou-se, assim, na sua operação. Sendo o comércio canalizado por vias estratégicas que permi-
outro canal de escoamento da riqueza das índias, que ia saindo da Península para tiam um controlo apertado, a Coroa conseguia supervisionar todas as principais
a economia europeia mais alargada. E os inimigos da Espanha compreenderam transações no sistema. Mais importante ainda, a indústria da extração de prata,
que se o fornecimento de prata pudesse ser interrompido ou cortado, o esforço que era a força motriz da economia americana, dependia crucialmente do Estado
militar da monarquia católica no Norte da Europa rapidamente sucumbiria. espanhol. Ao nível da produção, a Espanha dispunha de importantes mecanismos
Por esse motivo, a ação dos corsários contava com o apoio de Estados hostis de controlo: o Estado organizava a maior parte da mão de obra índia para as
à Espanha. Piratas franceses e ingleses tomavam de assalto os navios do tesouro minas; gozava do monopólio do mercúrio necessário para tratar a prata; os seus
espanhóis e começaram a saquear os portos hispano-americanos. Para os Ingleses, direitos sobre a riqueza do subsolo permitiam-lhe cobrar impostos sobre a pro-
sobretudo no reinado de Isabel I, os ataques à navegação e ao comércio espanhol • dução, que eram diversificados de modo a influenciarem os resultados.
tornaram-se parte de uma luta mais geral pela liberdade religiosa e nacional contra Todo o sistema de comércio estava, desse modo, sujeito à autoridade da
a ameaça de absorção por parte da Espanha católica. Nos anos 60 do século xvi, Coroa, e por muito que os colonos hispano-americanos quisessem a independên-

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
A E S P A N H A NA A M É R I C A

cia económica, rebelar-se contra o rei era quase inconcebível; a força subtil, e
Coroa. Os conquistadores partilhavam entre si os nativos e punham-nos a pro-
todavia crucial, da Espanha na América consistia no tremendo desejo dos colo-
curar ouro em rios ou a colher açúcar nas plantações em condições pouco melho-
nos de permanecerem leais à monarquia católica. Ainda assim, as fundações do
res do que as da escravatura. À medida que os nativos morriam, os colonos
Estado espanhol nas índias não eram perfeitamente sólidas; havia falhas, geradas
organizavam ataques a ilhas vizinhas para escravizarem outros índios e reporem
pelas circunstâncias da Conquista - nenhuma falha tão crítica que o derrubasse,
os níveis da sua força de trabalho. Um motivo de alarme para muitos espanhóis,
mas várias com gravidade suficiente para o impedir de alcançar uma coerência
plena. e para os missionários religiosos em particular, era o facto de a população nativa
estar a desaparecer devido à doença e ao excesso de trabalho. Os Espanhóis não
se aperceberam de que o rápido declínio demográfico se devia sobretudo à falta
de imunidade dos índios contra as doenças, e a inquietação moral entre o clero
As Fundações do Estado nas índias
levou à condenação aberta do comportamento dos colonos espanhóis. Estas
denúncias não podiam ser ignoradas pela Coroa, pois se os índios estivessem, de
Desde início que os Espanhóis se perguntavam com que direito o monarca
facto, a sofrer uma exploração cruel, e não a ser instruídos na fé cristã, o direito
católico governava na América. Havia três razões principais para a Coroa preci-
da Espanha a governar as índias ficaria seriamente comprometido.
sar de demonstrar, inequivocamente, que o domínio das índias lhe era devido.
Desde cedo se tornara evidente que os nativos tinham de ser protegidos dos
Em primeiro lugar, tinha de garantir que a sua autoridade no Novo Mundo era
maus-tratos dos colonos espanhóis. A rainha Isabel proibiu expressamente a
vista por conquistadores e colonos como sendo tão legítima quanto a autoridade
escravização dos índios e declarou-os súbditos livres e iguais da Coroa; embora
que exercia no Velho Mundo. Em segundo lugar, depois da conquista do México
pudessem ser coagidos a trabalhar, o seu trabalho devia ser remunerado através
e do Peru, tornou-se claro que os índios daquelas regiões não eram «selvagens»
de um pagamento justo. Mas o problema fundamental que se verificava na Amé-
como os das Antilhas, mas viviam em regimes civilizados, com soberanos natu-
rica residia no facto de os índios (nas ilhas e, como os Espanhóis viriam a des-
rais legítimos. Tornou-se, assim, da maior importância moral e jurídica provar
cobrir, no continente) não estarem habituados a trabalhar a troco de dinheiro e, a
que o derrube daqueles governantes nativos não era um ato de tirania praticado
não ser que os forçassem, regressavam simplesmente à tradicional economia de
pelo rei espanhol, mas um ato justificado e necessário. Em terceiro lugar, o justo
subsistência das suas comunidades. Ao que tudo indicava, seria inevitável recor-
direito à posse de todos os territórios do Novo Mundo era imprescindível para
rer a uma qualquer forma de trabalho forçado, e o sistema de encomienda, que
dissuadir outros príncipes europeus de estabelecerem colónias rivais na América
fora introduzido por Nicolás de Ovando, o primeiro governador real de Espanola,
ou de tentarem conquistar terras já colonizadas pela Espanha.
parecia uma solução bastante humana para o problema. Ainda assim, em 1512
Havia dois grandes argumentos a favor do domínio espanhol na América.
Fernando de Aragão decretou as Leis de Burgos, que procuravam regular a enco-
O primeiro baseava-se no tradicional direito de descoberta e conquista de novos
mienda e erradicar os abusos perpetrados por encomenderos sem escrúpulos. No
territórios. O segundo era mais complexo e advinha do carácter histórico único
que se referia a condições de trabalho e pagamentos justos, os efeitos destas
do Novo Mundo. Eram territórios povoados por nativos que nunca haviam
medidas foram, todavia, limitados.
estado expostos às verdades da revelação cristã; considerava-se, então, que a
O que tornava a questão dos direitos índios ainda mais complexa era o facto
descoberta de tais raças inocentes era obra da providência divina, querendo isso
de a Coroa ter obrigações para com os conquistadores, tanto quanto para com os
dizer que os monarcas católicos da Espanha tinham sido escolhidos por Deus
nativos. Os espanhóis que haviam estado envolvidos em expedições de conquista
para cumprir a tarefa sagrada de levar a fé aos índios.
bem-sucedidas esperavam ser recompensados pelos seus esforços através da
A Coroa espanhola queria que estes dois argumentos se complementassem e
concessão de privilégios, de terras e do trabalho dos conquistados. Não recom-
reforçassem mutuamente, mas o comportamento imoderado dos colonos espa-
pensar estes homens seria considerado uma injustiça e, segundo os costumes
nhóis nas ilhas das Caraíbas não tardou a evidenciar um potencial conflito - a
antigos, os conquistadores poderiam invocar aquilo a que Mário Góngora cha-
realidade da conquista ameaçava desacreditar a missão de cristianização. Durante
mou «direito de resistência» à autoridade da Coroa (*). Esta noção implicita-
grande parte do século xvi, a Espanha tentou conciliar estes dois argumentos,
mente contratualista de justiça vigorava na Península havia muito tempo e mar-
mas nunca conseguiu, de facto, resolver a questão do justo direito às índias. 9
cara o desenvolvimento do Estado espanhol durante os oito séculos da
Os maus-tratos assombrosos infligidos aos índios nos primeiros tempos da
colonização das Caraíbas tornaram-se fonte de grande preocupação para a
(*) Studies in the Colonial History ofSpanish America, pp. 74-79.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

No entanto, vendo-se sob as pressões contrárias de encomenderos, por um


Reconquista, continuando profundamente enraizada nas atitudes e expectati-
lado, e do clero pró-índio, pelo outro, Carlos V decidiu remeter toda a questão
vas dos conquistadores da América e seus descendentes. Porém, para conster-
para um conselho extraordinário, que se realizou em 1541. O conselho chegou à
nação dos conquistadores, a Coroa, apoiada pelos monges metediços das ordens
conclusão de que a encomienda era intrinsecamente injusta e dada a grandes
missionárias, parecia encarar a conquista da América como algo bem diferente
abusos, e que o sistema devia, por essa razão, ser abolido. Assim, as Novas Leis
da conquista da própria Espanha: os índios conquistados deviam ser tratados não
das índias, promulgadas em 1542, incluíam medidas destinadas a anular gradu-
como os mouros infiéis ou como os africanos escravizados, mas como inocentes
almente o sistema em causa; não seriam concedidas novas encomiendas e, o que
vulneráveis que exigiam proteção e cuidados especiais. A defesa dos índios por
era uma decisão mais drástica, os direitos de herança associados a estes privilé-
parte da Coroa espanhola criava, assim, o perigo de desobediência ou até revolta
gios foram retirados: por morte de um encomendem, o tributo índio de que este
por parte de colonos ressen-tidos.
gozara já não poderia transitar para um parente, passando a ser pago diretamente
O cerne da questão era o estatuto do índio. Se era um súbdito livre da Coroa,
à Coroa. Assim, enquanto instituição a encomienda só sobreviveria até à morte
como podia ser levado a trabalhar para os Espanhóis contra a sua vontade?
do último encomendem.
Por outro lado, era óbvio que a empresa colonial tinha de assentar no trabalho da
As novas leis provocaram uma reação extremamente violenta nas índias.
população nativa. O Estado espanhol nunca resolveu este dilema. Tentou-se uma
No Peru, tal como na Nicarágua, conduziram à rebelião explícita de colonos
solução através da separação jurídica dos direitos e obrigações das duas raças,
espanhóis; no México, a violência só foi impedida mediante a suspensão das
definindo a América espanhola como uma sociedade dual, dividida numa «repú-
medidas que afetavam a encomienda. Apesar de não ter revogado as Novas Leis,
blica» dos Espanhóis e numa «república» dos índios. As necessárias transações
a Coroa permitiu que elas não fossem observadas, cedendo temporariamente ao
económicas entre as duas repúblicas seriam mediadas pela Coroa através da
interesse dos encomenderos. Mas continuou a minar a instituição: em 1549, o
instituição da encomienda: os índios tinham a obrigação de oferecer tributo em
tributo na forma de trabalho pessoal realizado por índios para espanhóis foi abo-
primeira instância ao rei, como seu senor natural, mas o rei concedia, depois, o
lido; o tributo devia ser pago em géneros, não em dinheiro. Passado algum
direito secundário de receber tributo índio a espanhóis que o merecessem, os
tempo, o tributo de encomienda passou a ter de ser entregue diretamente à Coroa,
quais teriam, por sua vez, de proteger os seus índios e pagar a sua cristianização
que depois o distribuiria na forma monetária aos encomenderos', o sistema
pelo clero.
aproximava-se, deste modo, de uma pensão real que quase dispensava o contacto
Mas nem assim a Coroa conseguiu, apesar dos seus esforços, fazer a enco-
direto entre encomendem e nativos. Acima de tudo, a Coroa certificou-se de que
mienda funcionar de modo justo na prática. As críticas ao sistema persistiram.
os direitos de sucessão destes privilégios ficavam estritamente limitados; permi-
Segundo Lãs Casas e os seus seguidores, esta política tomara-se um mero pre-
tiria a herança ainda por duas ou três «vidas», mas raramente mais do que isso.
texto para os espanhóis poderosos se apropriarem da mão de obra e dos bens
Nos anos 70, a encomienda enquanto instituição fora já «domada» (*); a Coroa
índios, obtendo grandes lucros à custa da exploração do trabalho dos nativos
não concedera o direito crucial de herança, o que impediu que a classe de enco-
- indo ao ponto de os alugar para trabalharem para outros espanhóis -, ao mesmo
menderos evoluísse para uma genuína aristocracia.
tempo que negligenciavam por completo o seu bem-estar espiritual e físico. Por
Em finais da década de 40 do século xvi, a controvérsia em torno da enco-
sua vez, os encomenderos poderosos, liderados pelo muito influente Hernán
mienda foi implicada na discussão mais abrangente sobre os direitos dos nativos
Cortês, marquês do Vale de Oaxaca e agora um aristocrata quase da mais alta
e sobre o direito da Espanha às índias. Juan Ginés de Sepúlveda, um dos mais
estirpe na Nova Espanha, apresentaram o seu caso à corte real, apelando para que
eminentes eruditos humanistas, defendeu numa dissertação que os índios da
os direitos de encomienda passassem a incluir a posse perpétua e direitos feudais
América eram uma raça bárbara, com capacidades racionais inferiores às dos
de jurisdição sobre os índios, defendendo que só quando os nativos se tornassem
europeus, e que como tal podiam estar legitimamente subordinados aos Espa-
verdadeiros vassalos de senhores espanhóis é que os encomenderos teriam um
nhóis. Era uma justificação teórica tanto para o direito da Espanha sobre as
interesse direto em zelar pelo seu bem-estar. Mas a Coroa não se mostrou rece-
índias como para o direito dos encomenderos de adquirirem vassalos índios.
tiva a tais argumentos, receando que a criação de uma poderosa classe feudal de
Segundo J. H. Elliott, «Sepúlveda defendia não a escravização dos índios, mas
encomenderos originasse desafios diretos à autoridade real e uma consequente
queda no tipo de regime baronial que afligira a Espanha antes da ascensão dos
Reis Católicos. Não era, assim, do interesse político da Coroa fortalecer a enco- (*) Lesley Byrd Simpson, The Encomienda in New Spain: The Beginning ofNew México
mienda. (University of Califórnia Press: Berkeley, 1950), p. 145.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A L A T I N A
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uma forma de controlo paternalista pleno em benefício dos seus interesses. Tra- planeadas racionalmente, que fora introduzida no México pelos primeiros mis-
tava-se de um argumento a favor da tutela, mas exercida pelos encomenderos, sionários, como Vasco de Quiroga, foi, de um modo geral, adotada pelo Estado;
não pela Coroa» (*). a partir dos anos 60, os funcionários da Coroa transformaram a vida das comu-
Em agosto de 1550, teve lugar em Valladolid um grande debate entre Sepúl- nidades nativas mediante um programa sistemático de relocalização acompa-
veda e Lãs Casas sobre a legitimidade do domínio espanhol e sobre o estatuto nhado da criação de municípios ao estilo espanhol nas vilas índias. Ao mesmo
dos índios. O primeiro esgrimiu argumentos clássicos, baseando-se na autori- tempo, a Coroa tomou medidas para reduzir o poder das ordens missionárias,
dade de Aristóteles, em defesa do direito da Espanha a conquistar e a impor o decidindo que os nativos convertidos, depois de terem recebido instrução ele-
cristianismo aos índios, bem como a exercer direitos senhoriais sobre os nativos. mentar na fé cristã ministrada pelas ordens regulares, ficariam sob responsabili-
Lãs Casas, pelo contrário, defendeu que os índios não podiam ser classificados dade do clero secular, sobre o qual a Coroa exerceria um controlo mais apertado
como bárbaros com base nos critérios de Aristóteles, pelo que não era legítima a através do seu direito de proteção eclesiástica.
sua subordinação aos Espanhóis. Não questionou, porém o direito da Espanha de Esta abrangente intervenção real na segunda metade do século xvi foi uma
levar o cristianismo aos povos da América; na verdade, Lãs Casas também tentativa, por parte de Filipe II, de construir um Estado justo, que se posicionasse
defendia uma forma de tutela sobre os índios, mas uma tutela espiritual, assente acima de interesses específicos e que servisse todos os setores da sociedade
na persuasão e não na força, e exercida pela Igreja em conjunto com a Coroa. complexa em formação nas índias. Era uma aspiração nobre e humana da monar-
Este complexo debate prendia-se, em última análise, com a questão da res- quia católica, que não tardou, no entanto, a revelar-se vã. Com efeito, este inter-
ponsabilidade pelos índios. Quem deveria ter o direito de proteger e civilizar os vencionismo enérgico exigia recursos humanos e materiais que, na altura, a
nativos - uma aristocracia neofeudal de conquistadores e colonos, como se Espanha simplesmente não possuía. Pelo contrário, os compromissos militares
depreendia da argumentação de Sepúlveda a favor da encomienda, ou as ordens de Filipe na Europa obrigavam-no a contar cada vez mais com a prata vinda da
missionárias espanholas apoiadas pela Coroa, como pretendia Lãs Casas? O pro- América. Nas índias, o poder económico concentrava-se cada vez mais nas mãos
blema nunca foi solucionado: a encomienda persistiu, embora numa forma con- de elites de encomenderos e de colonos abastados que agiam em conluio com
trolada e truncada. Sepúlveda não teve permissão para publicar o seu tratado, e funcionários públicos corruptos, e a Coroa não podia dar-se ao luxo de contrariar
Lãs Casas pôde retirar uma certa satisfação do facto de a Coroa ter continuado a os interesses destes homens se queria obter as receitas necessárias à continuação
assumir a responsabilidade máxima pelo bem-estar dos nativos, expandindo o das suas guerras religiosas na Europa. Foi, então, a debilidade económica e
seu papel nas colónias como a suprema instituição de mediação entre a república financeira da Espanha que acabou por trair o ideal de uma sociedade justa, com-
dos Espanhóis e a dos índios. posta por duas repúblicas mantidas em equilíbrio por um rei sensato. Após a
Por volta de 1550 e até ao final do século, a Coroa empenhou-se profunda- morte de Filipe H, em 1598, tornar-se-ia impossível diminuir o poder enraizado
mente em afirmar a sua autoridade sobre as índias. Só nas últimas décadas do das elites hispano-americanas.
século xvm se verificaria um esforço comparável para intervir de forma tão Mas será que estas oligarquias do Novo Mundo, tendo-se tornado tão pode-
conscenciosa nos assuntos das colónias. De Espanha foram enviados vice-reis da rosas, vieram alguma vez a constituir uma ameaça para o rei de Espanha, como
maior competência para impor a ordem nas índias turbulentas, especialmente no Carlos V receou que acontecesse com os encomenderos! Em 1566, na Cidade do
Peru, com as suas facões assassinas de colonos brancos e os seus povos índios México, foi descoberta uma conspiração com vista a rejeitar a soberania espa-
nervosos. nhola e pôr Martin Cortês, filho de Hernán Cortês, no trono de um reino mexi-
Por toda a parte, na América, a autoridade real foi expandida e fortalecida: cano independente. A conspiração, organizada pelos jovens irmãos Ávila, tinha a
criaram-se novas audiências e estabeleceram-se corregimientos com jurisdições aprovação de muitos encomenderos ainda ressentidos com as Novas Leis de
separadas para as repúblicas espanhola e índia. Quando a mão de obra nativa foi 1542. Contudo, o golpe de Estado planeado não reuniu um apoio ativo, ao que
excluída dos privilégios da encomienda, a Coroa assumiu a responsabilidade parece nem da parte do próprio Martin Cortês; foi eliminado sem dificuldade,
direta pela distribuição de trabalhadores índios pelos Espanhóis através do meca- com a execução pública dos Avilas. Um ano mais tarde, Filipe II enviou um juiz,
nismo de repartimiento, um sistema de trabalho rotativo organizado por funcio- que organizou uma demonstração exemplar de terror de Estado, no decurso da
nários reais. A política de concentrar comunidades índias dispersas em colónias qual outros pretensos lideres de grupos com objetivos semelhantes foram tortu-
rados e centenas de suspeitos presos. A partir de então, as elites hispano-ameri-
O Cambridge History of Latin America, vol. l, p. 308. canas não voltaram a apoiar qualquer manifestação de deslealdade à Coroa.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A E S P A N H A NA A M É R I C A

Por outro lado, continuariam a resistir às tentativas dos administradores (jade da monarquia católica, amparada pelo braço da Igreja, que melhor podia
reais de reduzir o seu muito considerável poder de facto. Na década de 20 do suscitar lealdade à ordem estabelecida entre as comunidades índias e as classes
século xvn, um vice-rei interventivo, o marquês de Gelves, opôs-se a interesses mais baixas de hispânicos, negros e indivíduos de sangue misto nas colónias.
protegidos pela lei ao tentar acabar com um monopólio que controlava o forne- Em última análise, as oligarquias brancas aceitavam o seu estatuto colonial for-
cimento de cereais à Cidade do México e que mantinha os preços de bens de mal como o preço a pagar pela manutenção daquele outro, bem real, colonia-
primeira necessidade artificialmente elevados. A elite mexicana, incluindo os lismo interno, do qual elas eram as principais beneficiárias.
juizes da audiência, cerrou fileiras contra aquele intruso da Coroa e conseguiu Em suma, a monarquia católica nas índias presidia a um colonialismo de
afastá-lo, depois de incitar uma multidão a atacar o seu palácio a 15 de janeiro dois níveis - do espanhol peninsular sobre o espanhol americano, no primeiro
de 1624. Os limites ao poder de intervenção da Coroa haviam sido claramente caso, e depois do branco sobre o não-branco. O ideal do século xvi de uma socie-
definidos pelo círculo de interesses oligárquicos, embora a legitimidade da auto- dade dual composta pela república dos Espanhóis e pela república paralela dos
ridade da Coroa não fosse posta em questão. Este paradoxo estava bem patente índios veio, na realidade, a degenerar numa forma de segregação racial desigual.
no grito tradicional dos manifestantes, hispânicos como índios, em todo o perí- Mediado a custo por uma Coroa enfraquecida, o sistema de duas repúblicas aca-
odo colonial: «Viva el Rey, y muera el mal gobierno!» - «Vida o rei, e morte ao bou por ter o efeito acidental de impedir que as feridas da Conquista sarassem.
mau governo!» Era um sentimento que distinguia amavelmente o direito do rei O fosso entre conquistadores e conquistados nunca foi ultrapassado; não se for-
a governar da competência dos seus funcionários para aplicarem a vontade real. mou uma sociedade integrada nem nasceu um sentido de identidade comum que
Como caracterizar, então, a verdadeira natureza do Estado imperial nas fosse partilhado por senhores e por servos. Em vez disso, a realidade da con-
índias? Era um Estado legítimo com uma autoridade imperfeita, pois fora feito quista foi minando as fundações do Estado que a Espanha construíra nas índias.
refém de interesses especiais, cujo verdadeiro poder se recusava, todavia, a reco- Subterraneamente abalado por forças contrárias, partes consideráveis desse edi-
nhecer. As oligarquias hispano-americanas não haviam, afinal, evoluído para fício cederam e até caíram juntas, até não restar de pé nada mais sólido do que
uma aristocracia legítima: não tinham conseguido fazer dos índios seus vassalos; uma bela fachada. Ainda assim, os pilares essenciais - a Coroa e a Igreja - con-
não podiam fazer-se representar por quaisquer instituições políticas; o acesso aos tinuaram no seu lugar, conservando intacto o monopólio de legitimidade da
altos cargos governativos nas suas regiões de origem estava-lhes, regra geral, monarquia. Desse modo, a paz e a estabilidade reinaram nas índias ainda mais
vedado; não gozavam de privilégios especiais e poucos direitos as distinguiam dois séculos. Só quando essa legitimidade real fosse ela própria minada, no
das massas hispânicas das índias. Sendo uma classe dirigente frustrada, estas começo do século xix, é que todo o edifício do Estado acabaria por ruir, e as
elites tinham de exercer grande parte do seu poder desafiando discretamente a índias ver-se-iam finalmente mergulhadas na anarquia e nos conflitos sangrentos
autoridade real - por outras palavras, corrompendo os funcionários da Coroa. Tal a que pareciam votadas pela intrusão dos aventureiros espanhóis na América.
pode ser visto como uma espécie de liberdade política, mas, como observou
Mário Góngora:

era uma forma de liberdade que existia à margem da estrutura do Estado, ao invés da
liberdade no seio do Estado, a que se assistia na Idade Média europeia. Nas Améri-
cas, a liberdade não assentava numa noção bem definida nem num novo conceito de
Estado: tinha as suas raízes na negligência: era, por assim dizer, essencialmente
«colonial» (').

Ainda assim, por que razão haviam estas poderosas oligarquias de se fingir
a favor da charada colonial? Porque tinham bastante interesse em proceder dessa
forma. Por um lado, a Coroa era uma preciosa mediadora de disputas entre as
próprias elites hispano-americanas; por outro, era precisamente a sólida legitime-

(") Studies in the Colonial History ofSpanish America, p. 126.

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CAPÍTULO 4

As índias Espanholas

Declínio Espanhol e Desenvolvimento Imperial

O século xvn assistiu à emergência de uma sociedade característica nas


índias. Longe de ser uma ramificação da Espanha, o que surgiu foi um exemplar
híbrido - uma sociedade hispânica, sim, mas uma sociedade cujas raízes se ali-
mentavam num solo diferente e que recebera enxertos de outras raças e culturas.
A entrada desta sociedade na maturidade foi facilitada pelo declínio da
metrópole. A fraqueza económica e militar da Espanha levou a um afrouxar do
seu domínio sobre os territórios no Novo Mundo, o que permitiu que a sociedade
colonial se desenvolvesse de acordo com as suas próprias dinâmicas internas.
O fator mais significativo para esse processo foi a expansão do setor hispânico
híbrido, à custa do mundo índio. A despopulação índia prosseguiu, espasmodica-
mente, até meados do século, mas as comunidades nativas foram mais debilita-
das ainda pela acelerada hispanização de indivíduos índios. Outro fator impor-
tante foi a chegada - a partir dos últimos anos do século anterior - de muitos
escravos africanos. Este influxo contribuiu decisivamente para a mistura racial
que seria um dos traços distintivos mais evidentes da sociedade hispano-ameri-
cana. Acima de tudo, a relativa impotência da Espanha permitiu a formação de
oligarquias locais poderosas, que se tornaram as classes dirigentes de facto nas
muitas e diversas regiões que constituíam as índias espanholas. Essa foi a era do
crioulo (criolló) - o espanhol nativo da América. Embora não fosse corrente
na época, o termo «crioulo» é hoje muito usado pelos historiadores modernos

127
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

porque se presta a indicar o afastamento que esses espanhóis americanos foram A acompanhar os problemas da carrera, verificou-se uma diminuição siste-
sentindo cada vez mais em relação aos seus primos peninsulares, ao longo do mática da produção g!obal das minas de prata americanas. O Peru foi o mais
século. seriamente afetado, a partir de 1603, aproximadamente, mas a produção de prata
A Espanha entrou em declínio devido aos inúmeros compromissos mili- mexicana sofreu também uma queda a pique a partir de meados da década de 30.
tares que não podia pagar. As dívidas que se acumulavam faziam a inflação Esta redução devia-se à escassez de mercúrio de Huancavelica e a dificuldades
aumentar rapidamente, a que se juntava uma contínua desvalorização da moeda técnicas no processo de produção. Privada de metais preciosos, a Espanha mer-
por parte de um Estado em desespero financeiro. A partir de 1621, ano em que gulhou numa crise económica muito mais severa e prolongada do que a depres-
expirou uma trégua de dez anos assinada com os rebeldes holandeses, as contí- são geral que varreu a Europa em meados do século xvn. Mas será que as índias,
nuas tribulações da guerra quase levaram a monarquia espanhola à desintegra- no seu todo, também sofreram uma crise económica? Pensou-se em tempos que
ção. Em 1640, as tentativas de implementar reformas económicas e políticas as dificuldades na indústria de extração mineira, o decréscimo da mão de obra
tinham fracassado, e as rebeliões separatistas atacavam a Espanha a partir do seu disponível, os preços elevados e o colapso da carrera eram sinais de uma pro-
interior: os Catalães estavam em revolta, enquanto os Portugueses, dinastica- funda crise económica na América. Os indícios ainda não são conclusivos, mas
mente unidos ao trono de Castela desde 1580, declararam o duque de Bragança parece agora que a situação não era trágica: se a atividade económica abrandou,
soberano de um reino independente. de facto, no século xvn, em particular na produção mineira, outros setores como
Para enfrentar tais desafios, a Espanha precisava mais do que nunca da prata a agricultura, a indústria e o comércio, tanto inter-regional como transpacífico,
das índias. Mas a crescente pressão fiscal sobre as colónias na forma de impos- floresceram, pelo menos em muita regiões das índias. Além do mais, a acentuada
tos, empréstimos forçados e confiscações do metal precioso precipitaram uma redução das mercadorias que chegavam a Sevilha sugere que ficavam retidas nas
crise de confiança no comércio transatlântico: os comerciantes americanos esta- índias grandes quantidades de prata, não apenas para pagar a defesa mas também
vam a enviar menos prata para Espanha, pelo que tinham de ser enviados menos para investir em empresas locais. Esta foi, afinal, a grande era de construção
bens para as índias através de Sevilha. A confiança estava também a ser abalada pública e embelezamento arquitetónico na América espanhola - nos principais
pela vulnerabilidade das frotas do tesouro espanholas aos saqueadores estrangei- centros de colonização espanhola construíram-se portos, fortificações, estradas,
ros. Os Holandeses tinham-se agora juntado aos Ingleses e aos Franceses nos igrejas, palácios e mansões.
ataques ao comércio marítimo espanhol, sobrecarregando ainda mais o orça- Por outro lado, o abrandamento do comércio transatlântico oficial encobre
mento defensivo. a importância da atividade de contrabando, impossível, pela sua própria natu-
Em 1615, uma frota holandesa entrou pela primeira vez no oceano Pacífico reza, de quantificar, mas que se supõe ter crescido consideravelmente, com os
- até então encarado como um «lago espanhol» -, o que determinou que uma capitalistas hispano-americanos e os comerciantes europeus a tentarem contor-
grande quantidade de prata tivesse de ficar nas índias para financiar a construção nar o incómodo monopólio de Sevilha, sujeito a impostos elevados, através dos
de defesas ao longo da agora vulnerável costa ocidental da América espanhola. novos entrepostos estrangeiros estabelecidos nas Caraíbas. Como observou John
Nos anos 20, os Holandeses começaram a apoderar-se de território reclamado Lynch, «a crise na carrera de índias ocorreu, não porque as economias america-
pela Espanha ou por Portugal, estando ambos os reinos então unidos sob a auto- nas estivessem em declínio, mas porque estavam a desenvolver-se e a libertar-se
ridade de um mesmo soberano. Em 1624, e novamente em 1630, ocuparam fér- da antiga dependência do país natal. Esta foi a primeira emancipação da América
teis plantações de açúcar no Nordeste do Brasil, obrigando a Espanha a organizar espanhola» (*).
expedições dispendiosas para tentar expulsá-los. Em 1634, os Holandeses toma- A relativa autonomia económica das índias fez-se acompanhar de um cres-
ram Curaçau e outras ilhas das Caraíbas; corsários ingleses e franceses proce- cimento do poder efetivo das muitas elites crioulas. As dificuldades financeiras
diam do mesmo modo, até que os mares das Antilhas ficaram pontilhados de do Estado imperial criavam inúmeras oportunidades para as famílias crioulas se
bases usadas por estrangeiros para atacar os navios do tesouro espanhóis ou para infiltrarem nas instituições do governo colonial e da Igreja, ou para vergarem a
introduzir bens contrabandeados nas índias. O maior golpe infligido à carrera de lei de acordo com os seus interesses, subornando funcionários públicos. Durante
índias deu-se em 1628, quando o holandês Piet Heyn se apoderou de toda uma este período, as propriedades das famílias crioulas mais poderosas expandiram-
frota do tesouro na baía de Matanzas, ao largo da costa de Cuba. No mundo dos -se até formarem vastos latifúndios. Grandes clãs crioulos compraram assentos
negócios, a confiança na ligação transatlântica esvaneceu-se por completo em
finais da década de 30; em 1640, já não chegavam tesouros a Sevilha.
(*) Spaln under the Habsburgs (2 vols., Blackwell: Oxford, 1969), vol. 2, p. 193.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

nos cabildos locais e mantiveram-nos na sua família. Os interesses conjugados vastas e de gado» (t). Por outro lado, «para além da sua mansão e de muitos
de funcionários públicos e aristocratas locais criaram monopólios nas economias criados, convidados e vassalos, ele [i.e., o grande nobre] tem de possuir terra,
regionais: as melhores terras, os recursos hídricos e os sistemas de irrigação, o gado e cavalos, e várias explorações agrícolas, desde campos de trigo a hortas
acesso à cada vez mais escassa mão de obra índia, os monopólios legais para o com legumes» (t). Porém, como a Coroa impedira os encomenderos de converter
suprimento das necessidades básicas das vilas - tudo isto caiu nas mãos de oli- os índios em seus vassalos, os proprietários de terras hispano-americanos procu-
garquias fechadas. raram concretizar esse ideal ibérico de autossuficiência senhorial com as oportu-
O século xvn testemunhou, assim, o florescimento de uma elite hispano-ame- nidades disponíveis no Novo Mundo.
ricana, que exercia o seu poder num desrespeito parcial ou tático pela lei, e com As raízes da fazenda remontavam às concessões de terra do tempo da Con-
um fraco sentido de responsabilidade por outros setores da sociedade. Quanto aos quista. Essas propriedades, geralmente designadas estancias, variavam em
índios, em particular os que viviam em comunidades tribais, eram tratados como dimensão e, no período imediatamente a seguir à Conquista, eram maioritaria-
gente sin razón, pessoas de razão deficiente, rudes e preguiçosas. Até o Estado mente cultivadas com fins de subsistência, não para efeitos comerciais. Quanto
espanhol abandonara a pretensa tentativa de colocar os índios num plano de igual- maior a estancia, mais substancial a necessidade de mão de obra, mas uma vez
dade civil com o setor hispânico; oficialmente, deviam continuar a ser protegidos, que as principais fontes de mão de obra eram as comunidades índias, o proprie-
mas apenas porque a sua condição infeliz era vista como irremediável: tário tinha de arranjar forma de recrutar trabalhadores temporários para cultiva-
rem as suas terras. Emergiu, então, um padrão em que o proprietário empregava
Primeiro retoricamente e mais tarde (nos anos 40 do século xvn) também juridi- uma pequena equipa de trabalhadores - conhecidos como naborías ou gananes
camente, passaram a ser identificados como miserables, pessoas reconhecidas no México e como yanaconas no Peru -, e depois, recorrendo a diversos meios,
no Velho Testamento e definidas pelos juristas do imperador Constantino como recrutava trabalhadores temporários, geralmente nas aldeias índias circundantes.
desfavorecidas - viúvas, órfãos, e outros -, merecedoras da compaixão pública e de Esta padrão não se alterou duranteo período colonial. O que de facto mudou foi
proteção (*). a dimensão das propriedade e os métodos de recrutar mão de obra temporária.
A evolução da estancia para a fazenda foi um processo contínuo, respon-
Tratava-se de uma visão muito diferente daquela que colocava o destino dos dendo simultaneamente a valores sociais e a uma lógica económica. As grandes
índios sob tutela espanhola, e que era defendida por Lãs Casas, por Vasco de propriedades estavam associadas à nobreza, e a aquisição de um estatuto nobre
Quiroga ou, para todos os efeitos, pelo próprio Filipe E. era uma das principais motivações dos conquistadores e dos primeiros colonos.
Assim, a tendência para se formarem propriedades cada vez maiores era intrín-
seca à dinâmica social da sociedade pós-conquista. Do ponto de vista econó-
A Economia mico, o crescimento da propriedade estava ligado à expansão da população his-
pânica nas índias. À medida que crescia a procura de produtos agrícolas, os
TERRA E MÃO DE OBRA proprietários iam aumentando o cultivo de determinadas espécies e ou de produ-
tos que satisfaziam exigências específicas do mercado, sem pôr de lado a sua
O século XVH está convencionalmente associado ao desenvolvimento da aspiração à autossuficiência e à diversificação de atividades. A coexistência,
fazenda, a grande propriedade de terras, que era a unidade económica mais pode- numa mesma iniciativa, de uma agricultura de subsistência e de uma agricultura
rosa no mundo rural e a principal fonte de estatuto social. A fazenda era um comercial promovia a formação de propriedades de grande dimensão. Outro
fenómeno peculiarmente hispano-americano, não porque diferisse qualitativa- fator que contribuía para o crescimento era a vontade de obter vantagens no
mente das propriedades ibéricas, mas porque representava a tentativa de incor- mercado anulando a concorrência. Semelhante tendência monopolista signifi-
porar um ideal ibérico de posse de terra dentro dos limites legais impostos pela cava que os maiores proprietários estavam constantemente a tentar absorver as
Coroa nas índias após a Conquista. Esse ideal, conforme definido por James terras de pequenos proprietários.
Lockhart, «teria combinado a jurisdição sobre vassalos com a posse de terras

( r ) «Encomienda and Hacienda: the Evolution of the Great Estale in the Spanish Indies»,
(") Lyle N. McAlister, Spain and Portugal in the New World, 1492-1700 (Oxford Uni- Hispanic American Historial Review, 49, 3 (1969), pp. 411-429 (p. 427).
versity Press: Oxford, 1984), p. 395. (*) Ibid., p. 424.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS Í N D I A S E S P A N H O L A S

Enrique Florescano descreveu a lógica económica das grandes proprieda- era, portanto, invariavelmente a fazenda a aglutinar terra índia. Em regiões como
des (*)• A agricultura era uma atividade arriscada, sujeita a flutuações climáticas Oaxaca, lucatão, Chiapas e Guatemala, as comunidades índias conseguiram
imprevisíveis que podiam arruinar a colheita de um agricultor. Logo, fazia sen- quase sempre resistir à usurpação das suas terras durante o período colonial.
tido diversificai- o leque de produtos que se obtinha numa propriedade. A impre- Não era fácil para uma família conservar uma fazenda durante mais de uma
visibilidade das condições climatéricas também ditava a variação de preços, pelo ou duas gerações. Os hacendados viam-se amiúde com problemas financeiros,
que havia a tentação de minimizar os riscos reduzindo a concorrência e alcan- sobrecarregados com a obrigação de sustentar a sua numerosa descendência e o
çando uma posição de monopólio no mercado. Uma propriedade de grande seu círculo privado no estilo faustoso que se esperava de um grdn senor - pois
dimensão e autossuficiente era, pois, a melhor garantia numa economia rural que era essa a razão de possuir uma fazenda. O prestígio social exigia também que
caso contrário se tornaria volátil. A melhor terra da propriedade era utilizada no fossem doadas à Igreja quantias avultadas - uma prática generalizada entre os
cultivo de espécies com fins comerciais. Dos restantes terrenos, alguns eram hacendados. Com margens de lucro geralmente baixas, os grandes proprietários
destinados ao cultivo de produtos para consumo doméstico, outros reservados estavam muitas vezes hipotecados até ao limite, e uma má colheita ou um perí-
como terras de pasto para gado ou outros animais de criação; algumas terras odo longo de seca podiam representar um desastre financeiro. Por outro lado, a
ficavam em pousio, e outras ainda podiam ser arrendadas em troca de mão de legislação hispânica relativa às heranças, que determinava a divisão de uma
obra ou de uma parte das colheitas. As propriedades de maior dimensão, como propriedade por todos os descendentes legítimos, levava muitas vezes à frag-
as dos grandes complexos mineiros, fabricavam muitos dos bens de que neces- mentação de uma fazenda em propriedades demasiado pequenas para serem
sitavam, como instrumentos agrícolas, carroças, sabão, velas, couro e têxteis, financeiramente viáveis, e estas tinham, por sua vez, de ser vendidas a outros
protegendo-se ainda mais do mercado. proprietários em ascensão. Só uma minoria dos mais nobres hacendados conse-
A evolução da estancia do século xvi para a fazenda do século xvn foi con- guia obter do rei o privilégio de um mayorazgo, o direito a passar a sua proprie-
seguida através de várias formas de aquisição de terra. As concessões de terra por dade intacta para o primeiro filho varão da família. As famílias com mayorazgos
parte da Coroa, após a Conquista, consistiam em extensões vagas, mas os pro- constituíam a elite mais distinta das índias.
prietários alargavam os seus lotes quer através da compra, quer invadindo terras À mercê de inseguranças financeiras, os hacendados envolviam-se na polí-
comuns, domínios reais ou território índio. Em finais do século xvi, a questão das tica, esperando consolidar a sua posição: procuravam obter favores de funcioná-
fronteiras e dos títulos tornara-se tão confusa que a Coroa tentou pôr ordem na rios da Coroa, compravam lugares nos cabildos, colocavam parentes em cargos
situação através de um processo conhecido como composición de tierras, que públicos, e constituíam cartéis com outros produtores para dominar um mercado
permitia que os proprietários adquirissem legalmente terra que tinham ocupado ou subir os preços. Tais eram as pressões internas que criavam os regimes oligár-
mediante o pagamento de uma taxa ao tesouro real. As composiciones de tierras quicos que controlavam grande parte das regiões rurais. Mas a fazenda não era a
foram permitidas em diversas ocasiões, em parte com o objetivo de aumentar as única forma de propriedade; em praticamente todas as regiões existiam muitas
receitas reais. estancias e ranchos mais pequenos pertencentes a hispânicos, mestiços e mula-
Sendo a aquisição de terra um processo fragmentado, a fazenda que acabava tos; algumas destas propriedades podiam, com o tempo, expandir-se ou então ser
por se formar raramente era uma extensão de território contínua. Na maioria dos os restos de uma fazenda fragmentada. As propriedades das índias estavam em
casos, compreendia uma série de terrenos dispersos, de diferentes dimensões, permanente mudança - fragmentavam-se ou consolidavam-se à medida que uns
intercalados com terras de outros proprietários ou de comunidades índias. Era o proprietários ascendiam e outros desciam de posição.
que acontecia sobretudo em áreas próximas de vilas, onde se verificava uma O padrão básico das terras rurais nas índias consistia, então, numa proprie-
maior concentração de terra e onde as fazendas só podiam expandir-se absor- dade que empregava um pequeno contingente de trabalhadores permanentes mas
vendo quintas de menor dimensão ou terras comuns índias. Nessas regiões, que contava também com mão de obra temporária proveniente das aldeias índias.
assistia-se a litígios constantes a respeito de terras, títulos e limites de proprieda- Os métodos através dos quais se obtinha essa mão de obra temporária nas povo-
des; os índios tendiam a ressentir-se dos direitos de propriedade e mostravam-se ações índias mudaram ao longo do tempo. Até à década de 60 do século xvi, a
muitas vezes extremamente conflituosos, como seria de esperar, dadas as pres- encomienda era o principal meio de conseguir índios para trabalhar nas proprie-
sões que os proprietários hispânicos exerciam sobre as suas comunidades. Não * dades espanholas. A Coroa concedia a um encomendero o direito a receber ser-
viços, como forma de tributo, de um certo número de índios durante determinado
(') Cambridge History ofLatin America, vol. 2, pp. 171-182. período de tempo. Contudo, quando o serviço de mão de obra como tributo de

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encomienda foi abolido, passou a vigorar o sistema de repartimiento, mediante AGRICULTURA E CRIAÇÃO DE GADO
o qual funcionários da Coroa eram responsáveis pelo racionamento e pela distri-
buição de trabalho índio entre os proprietários hispânicos por períodos limitados. No século xvi, a produção agrícola era, na sua esmagadora maioria, uma
As condições de trabalho e os salários eram estipulados pelas autoridades mas atividade índia, e as espécies cultivadas eram ainda indígenas - milho, feijão,
raramente seguidos na prática. O sistema de repartimiento começou, todavia, a batata e mandioca -, assim como as técnicas utilizadas para trabalhar a terra.
ser abandonado no início do século xvn, quando a contínua despopulação índia Esta produção entrava no ainda pequeno mundo hispânico de conquistadores e
tornou a mão de obra tão escassa em algumas regiões que a Coroa teve cada vez primeiros colonos através do tributo oferecido pelos índios aos encomenderos.
mais dificuldade em identificar as necessidades reais de mão de obra para a eco- À medida que a imigração se intensificava e que as colónias cresciam, o mercado
nomia. Os proprietários começaram a contornar a mão de obra organizada pelo hispânico foi-se expandindo, o que determinou um aumento da procura de bens
Estado contratando trabalhadores índios a prazo por sua própria conta, a troco de alimentares europeus — trigo, carne, açúcar e vinho. Os colonos que haviam rece-
salários ligeiramente superiores aos oferecidos pelo sistema de repartimiento. • bido concessões de terra tinham, então, um incentivo para produzir para merca-
As fazendas tendiam a aumentar a percentagem de trabalhadores temporá- dos de cidades espanholas, bem como para a sua própria subsistência. No meio
rios, reduzindo a quantidade de trabalhadores permanentes. Em alguns casos, rural índio, formou-se lentamente uma economia agrária europeia, que tinha o
estes trabalhadores ficavam ligados a uma propriedade num regime de peonagem dinheiro como principal meio de troca, enquanto os produtos índios continuaram
- a concessão de crédito por parte de um proprietário, na condição de que a a circular através do tributo ou da troca de géneros. Com o passar do tempo,
dívida fosse paga através do trabalho. Este sistema parece, todavia, não ter sido muitas comunidades índias próximas de colónias espanholas desenvolveram um
tão generalizado como em tempos se julgou. A situação mais comum era um setor comercial dirigido às cidades hispânicas e entraram parcialmente na econo-
hacendado atrair camponeses de aldeias índias próximas para trabalharem nas mia de dinheiro, embora mantivessem sempre uma considerável produção agrí-
suas propriedades em regime temporário; gradualmente, alguns desses índios cola tradicional para consumo interno e continuassem a praticar a troca de
optavam por residir na fazenda como empregados permanentes, gozando de géneros nas suas comunidades. A proporção entre a agricultura hispânica e a
salários mais elevados e de maior segurança material relativamente aos tempo- índia variava muito consoante as regiões, mas em todo o período colonial persis-
rários; o hacendado procurava depois reter os seus trabalhadores estabelecendo tiram muitas áreas onde a agricultura índia era predominante ou pelo menos
relações paternalistas de proteção e lealdade, através de mecanismos como o existia em paralelo com o setor hispânico.
padrinaje (apadrinhamento) e do compadrazgo (apadrinhamento partilhado). Numa perspetiva global, foi, no entanto, o setor hispânico que se expandiu
Estas relações de trabalho informais eram mais frequentes em regiões com alta fisicamente e que se desenvolveu no domínio do comércio. Como seria de espe-
densidade de espanhóis, como no centro e no centro-norte do México. rar, tendia a concentrar-se fundamentalmente em redor das vilas e cidades mais
Em algumas regiões da América Central e nas montanhas do Peru e do Alto importantes. O crescimento de grandes centros de população hispânica gerava
Peru, o repartimiento sobreviveu até uma fase tardia do período colonial e uma forte dinâmica de mercado num vasto raio, acabando por se estender bem
mesmo depois, visto que os índios eram muito mais numerosos do que os espa- para lá das regiões circundantes e por abranger outras províncias. Cidades como
nhóis, e a competição dos proprietários por mão de obra era menos intensa. México e Lima atraíam produtos diversos de províncias distantes para os seus
A sobrevivência do repartimiento no Peru, onde era conhecido pelo nome quí- vice-reinos, e o mesmo acontecia com cidades mineiras como Potosí ou Zacate-
chua de mita, deveu-se também ao facto de ser a base do recrutamento de cas. Esta tendência cada vez mais evidente para a formação de mercados maiores
mão de obra para as minas de prata. Existira nos tempos inças um sistema rota- originou uma produção especializada em várias regiões e um comércio flores-
tivo, dirigido pelo Estado, de recrutamento de mão de obra para as minas e para cente entre diferentes domínios das índias espanholas, que muitas vezes compe-
os trabalhos públicos, sistema que tinha também raízes profundas nas tra- tiam com a Espanha e ofereciam produtos semelhantes aos importados a melhores
dições tribais andinas. No México, no período pré-Conquista, existira uma forma preços, como era o caso do azeite e do vinho. No início do século xvn, as índias,
de recrutamento de mão de obra rotativa, designado coatequitl, mas como as no seu todo, eram autossuficientes em cereais e carne. Algumas regiões agrícolas
minas de prata do Norte do México ficavam fora das tradicionais áreas de povoa- entraram também na economia de exportação internacional especializando-se em
mento índio, a mão de obra assalariada livre apareceu nas minas em finais do produtos agrícolas ou outras mercadorias para as quais havia procura na Europa.
século xvi. Nos anos 30 do século xvn, as fazendas mexicanas das regiões cen- A produção especializada permitiu que regiões das índias sem indústria
trais estavam igualmente a abandonar o sistema de repartimiento. mineira se desenvolvessem para além de uma economia de subsistência e

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HISTORIA DA AMERICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

acumulassem capital para suportar sociedades urbanas substanciais. O Chile Nas índias, o setor têxtil só se desenvolveu em finais do século xvi. Até então
Central e o Sul do Peru, por exemplo, especializaram-se no fornecimento de não havia um mercado de dimensão suficiente, visto que as comunidades índias
trigo e vinho a Lima e às principais cidades do Peru. Potosí recebia estes produ- teciam a sua própria roupa, usando materiais e técnicas tradicionais. Quando as
tos das fazendas da região que hoje constitui o Noroeste argentino, em redor de áreas hispânicas começaram a ser habitadas por um elevado número de espa-
Tucumán. Tucumán também se especializou na criação de mulos como animais nhóis de classes baixas, crioulos, mestiços e negros, que usavam roupa ao estilo
de tração para as minas do Alto Peru. A cana de açúcar era cultivada nas ilhas europeu, pôde, então, emergir uma indústria têxtil propriamente dita. Nessa
caribenhas de Espanola e Porto Rico, nas zonas costeiras do Peru Central e em altura, também os rebanhos de ovelhas importados da Europa tinham já crescido
zonas tropicais do Sul do México. As peles de animais eram produzidas pelas o suficiente para abastecer as oficinas. A crise na correra de índias, em meados
economias de rancho do rio da Prata, das planícies centrais da Venezuela e do do século xvn, também funcionou como estímulo à indústria.
Norte do México. Nos Andes peruanos plantava-se coca, muitas vezes por agri- Os tecidos eram produzidos em oficinas chamadas obrajes, que emprega-
cultores espanhóis, destinada aos trabalhadores índios das minas, que mastiga^ vam, no máximo, cerca de 100 trabalhadores. Dada a natureza técnica do traba-
vam as folhas para acalmar a fome e ganhar vigor. O Paraguai especializou-se lho, estas obrajes careciam de um grupo de trabalhadores permanentes, especia-
em yerba mate, uma planta cujas folhas eram usadas para preparar uma espécie lizados, mas as reduzidas margens de lucro no comércio e a escassez de mão de
de chá consumido em muitas zonas dos Andes centrais e nas regiões do cone a obra dificultavam o recrutamento, uma vez que os salários não podiam competir
sul. O cacau era cultivado ao longo da costa da Venezuela, para ser exportado com os praticados na extração mineira ou na agricultura. Isto conduziu a formas
para o México, e também em redor de Guayaquil, que abastecia o Peru. primitivas de coerção, como o uso de escravos, condenados ou índios, que eram
Em finais do século xvi assistiu-se ao desenvolvimento de uma importante ludibriados, mediante um adiantamento de salários, para depois saldarem as suas
economia de exportação assente numa série de produtos, embora o leque de bens dívidas com trabalho, ou que eram simplesmente presos nas fábricas. Apesar de
agrícolas exportáveis estivesse limitado pela natureza perecível dessas mercado- haver obrajes na maior parte do território das índias, algumas regiões especiali-
rias. As substâncias corantes, por exemplo, tinham uma procura considerável, zaram-se na produção têxtil. Na Nova Espanha, os principais centros eram Pue-
em virtude do crescimento das indústrias têxteis na Europa; a cochinilha e o bla e Tlaxcala, que abasteciam as áreas metropolitanas em redor da Cidade do
índigo eram as principais exportações hispano-americanas. Contudo, de um México; a cidade de Querétaro fornecia as regiões mineiras do norte. Na Amé-
modo geral, em volume e em valor as exportações de produtos agrícolas ficavam rica do Sul, o principal centro era Quito, onde os rebanhos de ovelhas e a mão
muito aquém das de metais preciosos. No século xvm, a melhoria das comunica- de obra índia eram abundantes; os seus mercados situavam-se no Peru Central, a
ções marítimas tornaria alguns produtos, como o cacau e o café, viáveis para sul, e nas regiões de minas de ouro em Nova Granada, a norte. Uma significativa
exportação para a Europa. indústria têxtil estabeleceu-se também em Tucumán, cuja economia se centrava
no abastecimento das cidades de minas de prata do Alto Peru.
Outra indústria de grande importância era a construção naval. Atingiu o seu
MANUFATURAS pleno desenvolvimento no século xvu, quando a concorrência dos estaleiros
espanhóis se atenuou e surgiram novas oportunidades na costa do Pacífico. Do
Tal como a agricultura, a produção manufatureira surgiu para fornecer a lado atlântico, Havana e Cartagena, portos de grande dimensão que serviam a
população hispânica e mestiça em crescimento. No entanto, o potencial para a correra de índias, eram os centros dominantes. No entanto, quando o comércio
expansão estava seriamente limitado pela concorrência direta de produtores mais marítimo do cacau entre a Venezuela e o México prosperou, Maracaíbo tornou-
bem equipados em Espanha. Os produtos agrícolas perecíveis não podiam ser -se um centro secundário. Os principais estaleiros na costa do Pacífico ficavam
importados da Europa, mas os têxteis, ferramentas, mobília e outras mercadorias em Guayaquil, que abastecia os navios para a ligação marítima entre o Panamá
podiam, pelo que os fabricantes das índias tendiam a fornecer a camada mais e Callao, e mais tarde para o comércio em expansão entre o Peru e o México.
baixa do mercado com produtos mais baratos. Nos têxteis, por exemplo, que Realejo, na Nicarágua, fornecia navios para o comércio transpacífico com as
representavam o setor mais importante da indústria, havia dois tipos de produto Filipinas. A indústria, de um modo geral, entrou em declínio no século xvm,
no mercado - os tecidos importados de boa qualidade, conhecidos como ropa de ressentindo-se dos avanços técnicos da construção naval na Europa e da cres-
Castilla, e o material inferior, produzido localmente, para vestir as massas, a cente importância da marinha mercante europeia no comércio internacional da
ropa de Ia tierra. América hispânica.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

Os artesãos e operários especializados nas vilas e cidades hispânicas traba- No Alto Peru, a situação era bem diferente. As minas estavam situadas em
lhavam noutras manufaturas. (As comunidades índias produziam os seus áreas dos Andes densamente povoadas, que tinham constituído parte do império
próprios artigos tradicionais.) Com abundantes fontes locais de madeira, couro inça e onde havia uma longa tradição de produção de prata. Por exemplo, os
e metais preciosos, estas manufaturas atingiam altos padrões de qualidade. Espanhóis adaptaram o método indígena de hiiayra, que consistia em canalizar
Os artesãos eram geralmente hispânicos e trabalhavam em pequenas oficinas, os ventos altos dos Andes para ventilar os fornos utilizados no processo de fun-
empregando assistentes e aprendizes de cor. Para os índios urbanizados, os dição. Havia também o sistema laborai mita, que os Espanhóis mantiveram e
negros livres e as pessoas de sangue misto, este comércio representava, assim, a expandiram após a descoberta em 1545 do Cerro Rico, em Potosí, a zona de
oportunidade de se estabelecerem por conta própria após uma fase de aprendi- depósitos mais rica das índias.
zado. O sistema corporativo que se desenvolveu no século xvn para supervisio- Ao contrário dos mexicanos, os mineiros peruanos eram, na sua maioria,
noar padrões e controlar admissões tendia, no entanto, a excluir os elementos que camponeses índios das comunidades, recrutados como mão de obra por períodos
não fossem brancos, mas como nunca foi inteiramente bem-sucedido, muitos de alguns anos. Estavam, portanto, ainda bem presos às suas raízes étnicas, quase
artesãos eram homens de cor. não falavam espanhol, e o seu trabalho nas minas constituía parte da obrigação
de tributo que tinham para com a Coroa. O sistema de mita para as minas de
prata era, na verdade, uma impressionante operação de mão de obra dirigida pelo
Estado. Mais de 13000 camponeses índios de aldeias espalhadas pelos Andes
EXPLORAÇÃO MINEIRA centrais - uma área de aproximadamente 1280 quilómetros de norte a sul e de
cerca de 400 quilómetros de este a oeste — eram anualmente reunidos pelos seus
Prata caciques, sob a supervisão de corregidores de índios hispânicos, e marchavam
em procissão, com famílias e pertences, para irem colher o precioso minério da
A indústria de exploração de prata constituía a maior e mais complexa de grande montanha da prata em Potosí.
todas as empresas nas índias. Era o motor que fazia funcionar tanto o comércio As minas estavam invariavelmente em mãos privadas. No início, os pro-
transatlântico como a economia inter-regional na América. Concentrava-se em prietários das minas eram encomenderos ricos, que possuíam o capital para
duas regiões - no México Norte-Central, em redor de Zacatecas e de Guanajuato, investir na produção. Mas quando os depósitos à superfície se esgotaram,
e nas montanhas do Alto Peru (Bolívia moderna) -, apesar de existirem regiões passados poucos anos, e se tornou necessária uma maior capacidade técnica
secundárias de relativa importância nas Honduras e nos Andes peruanos. A pro- para trabalhar filões mais profundos, os proprietários das minas passaram a
dução de prata exigia um enorme investimento de capital e a longo prazo, mão ser, regra geral, homens que tinham feito o seu percurso no seio da indús-
de obra abundante, especialização técnica e um elevado grau de organização tria. Dirigir uma mina era uma operação que exigia recursos abundantes. Um
social e económica para suportar a infra-estrutura de uma indústria situada num campo mineiro, que compreendia o poço da mina, propriamente dito, e uma
território difícil, como as altitudes geladas dos Andes ou, no caso do México, refinaria, era uma unidade económica em larga medida autossuficiente que
em regiões remotas e subpovoadas, expostas a ataques de tribos índias hostis. empregava mão de obra permanente e temporária - muito idêntica a uma
Os Espanhóis conseguiram, ainda assim, ter êxito nesta indústria, através de uma fazenda, sob este prisma. Produzia internamente grande parte dos bens de que
combinação de iniciativa privada e ação do Estado. necessitava - cultivando a terra, criando animais, recolhendo o seu próprio com-
As minas de prata do México foram descobertas no início da década de 40 bustível e fabricando algum do próprio equipamento de trabalho. O pessoal
do século xvi, em zonas que não tinham estado integradas no império asteca e permanente era treinado para executar tarefas especializadas, como a manuten-
onde havia poucos índios sedentários. A resultante escassez de mão de obra era ção dos poços e dos sistemas de drenagem e ventilação; os trabalhadores tempo-
um problema, que foi resolvido povoando a região com naborías (índios que não rários extraíam o minério dos poços. O trabalho humano era complementado por
estavam ligados a qualquer comunidade) vindos das regiões centrais e impor- outras fontes de energia: em. Potosí, construiu-se um sistema de reservatórios
tando alguns escravos negros - uma opção dispendiosa - para realizar um traba- para a produção de energia hidráulica; utilizavam-se também animais, mulos e
lho especializado. Os mineiros mexicanos hispanizaram-se rapidamente, mistuJ» cavalos, sobretudo nas minas do México, onde a água escasseava. Uma parte
raram-se com outras raças e depressa se tornaram um proletariado racialmente vital da operação era o processo de refinação, que assentava numa técnica de
misto, assalariado e especializado. amalgamação com mercúrio, inventada por um espanhol; este avanço permitiu a

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extração de minério menos puro, aumentando extraordinariamente o potencial de vice-reino de Rio de Ia Plata, precisamente para melhorar o acesso da prata
produção. andina ao Atlântico, através de Buenos Aires. Sucedeu, no entanto, que as liga-
A Coroa desempenhou um papel essencial na indústria mineira. Como pos- ções económicas e financeiras estabelecidas com Lima se romperam, e o ajuste
suía os direitos para a riqueza do subsolo, impunha a taxa de um quinto a toda a a novas condições afetou a produtividade. Outra desvantagem era o arcaico sis-
prata produzida, mas a proporção variava consoante as circunstâncias económi- tema de recrutamento de mão de obra; no âmbito do sistema de mita, cerca de
cas, e podia por vezes ser reduzida para um décimo, com vista a estimular a um quarto dos mineiros continuavam sujeitos ao trabalho forçado. A produção
produção. A cobrança de impostos na indústria da prata era relativamente eficaz, da América do Sul nunca ficou a par da mexicana, mas recuperou gradualmente
porque o fornecimento de mercúrio - essencial para o processo de refinação - era da recessão que atravessou na segunda metade do século xvn. Em finais do perí-
um monopólio da Coroa, que o extraía apenas em Almadén, na Espanha, e em odo colonial, a indústria da prata registava, de um modo geral, um rápido cres-
Huancavelica, no Peru; a produção real de prata podia, deste modo, ser calculada cimento, o que funcionou como um estímulo para outros setores da economia
com bastante rigor, correlacionando o volume de mercúrio fornecido às minas hispano-americana.
com a quantidade de prata declarada pelos proprietários das minas para efeitos
fiscais. No Peru, o envolvimento da Coroa passava, é claro, pelo fornecimento de
mão de obra através do sistema mita, que era organizado por funcionários reais. Ouro
A produção de prata sofreu um aumento acentuado em finais dos anos 70 do
século xvi, na sequência da introdução do processo de amalgamação de mercú- Até meados do século xvi, o ouro fora o bem mais procurado nas índias.
rio, e atingiu o seu pico entre 1610 e 1645, após o que entrou em declínio até ao O incentivo para organizar entradas em regiões inexploradas vinha em larga
fim do século. Esta tendência não estava diretamente ligada ao decréscimo da medida da perspetiva de encontrar novas fontes do metal amarelo. Mas os depó-
população índia, como em tempos se julgou. O fornecimento de mão de obra sitos descobertos, tanto nas Caraíbas como no México ou no Peru, não tinham
manteve-se, graças ao sistema de mita no Peru e aos operários especializados e dimensão suficiente para criar uma indústria mineira duradoura. A maioria dos
hispanizados no México. A queda deveu-se, antes, a problemas técnicos - a depósitos era encontrada em leitos de rio e o minério tinha de ser extraído recor-
necessidade de poços mais profundos, de melhores sistemas de drenagem, da rendo ao método algo aleatório de peneirar areia e gravilha.
abertura de novos veios -, que resultavam num lapso de tempo considerável Desenvolveu-se, no entanto, uma indústria de extração de ouro que se man-
entre a mobilização do avultado capital necessário e o retorno do investimento teve até ao fim do período colonial, na região noroeste de Nova Granada, nos
com o produto melhorado. As minas mexicanas também foram atingidas pela distritos de Antioquia, Popayán e El Choco. Tal como nas Caraíbas, estes depó-
escassez de mercúrio quando as importações de Alrnadén foram desviadas para sitos de ouro começaram por ser explorados usando mão de obra índia, mas o
Potosí para compensar o decréscimo da produtividade em Huancavelica. número de mineiros diminuiu rapidamente, devido a uma combinação de doença
A indústria recuperou no início do século xvm, com a produção a aumentar e excesso de trabalho. Em finais do século xvi, foram substituídos por escravos
sistematicamente até atingir o seu pico nas últimas décadas do século. As minas africanos importados através de Cartagena.
mexicanas ultrapassavam agora o Peru na produção de prata: contavam com uma Comparada com a exploração das minas de prata, a indústria do ouro era
mão de obra mais moderna e especializada, eram abastecidas com o mercúrio de volátil e especulativa; assumia basicamente a forma de extração do minério de
Almadén, mais barato e mais abundante do que o de Huancavelica, e gozavam depósitos superficiais, ao longo de leitos de rio, por grupos de escravos negros
de um melhor acesso à costa atlântica, logo, ao mercado europeu. Além do mais, dirigidos por supervisores hispânicos. A vida destes escravos era árdua, e a taxa
a Cidade do México desenvolvera um sofisticado sistema financeiro, capaz de de mortalidade elevada; mas alguns conseguiam ficar com uma parte do ouro
reunir os avultados capitais necessários para investir no desenvolvimento técnico que encontravam, comprar a sua liberdade e depois estabelecer-se por conta
das minas. Algumas minas mexicanas tinham atingido dimensões colossais: a própria como pesquisadores de ouro. Os proprietários hispânicos de um elevado
grande mina de Valenciana, em Guanajuato, empregava aproximadamente 3000 número de escravos conseguiam levar uma vida de luxo nas grandes cidades,
trabalhadores, e tinha poços com cerca de 610 metros de profundidade e 31 onde gozavam de um estatuto social equiparado ao dos proprietários de terras,
metros de diâmetro. mercadores e oficiais da Coroa. Mas os resultados da extração de ouro nunca se
A indústria peruana, pelo contrário, sofreu um forte abalo quando Potosí e aproximaram dos da prata, e a importância desta indústria para a economia impe-
as outras minas importantes do Alto Peru foram atribuídas, em 1776, ao novo rial foi ainda reduzida pela dificuldade de avaliar a produção para efeitos fiscais.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

De qualquer forma, a riqueza gerada pela extração do ouro conferiu a Nova da economia colonial. Eram eles os principais beneficiários do restrito comércio
Granada uma autonomia económica do México e do Peru de que nenhuma outra imperial, e os seus lucros, graças aos preços inflacionados pelo monopólio, eram
região das índias se podia gabar. Este foi um fator decisivo para a elevação de tal ordem que estes homens acabaram por alcançar um elevado estatuto aris-
do seu estatuto de capitania-geral para vice-reino de pleno direito em 1739. tocrático numa sociedade senhorial que, por regra, desprezava as lides comer-
No entanto, apesar de ter dado a Nova Granada um peso económico indepen- ciais.
dente, o ouro nunca se tornou central na economia daquilo que era, na realidade, Inicialmente, o comércio transatlântico era dominado pelas casas mercantis
um território imenso, cujas características geográficas determinavam uma de Sevilha, que enviavam agentes aos portos americanos autorizados para se
extrema diversidade regional e uma fragmentação económica. encarregarem dos negócios no outro extremo da ligação. Esses agentes vendiam
O ouro também era extraído na região norte-centro do Chile, o Norte Chico; produtos europeus por atacado a outros mercadores, nas capitais dos vice-reinos,
na Nova Espanha, nas proximidades de Guadalajara, e em algumas zonas do ou nas grandes feiras de comércio que tinham lugar em Veracruz e Jalapa, no
Norte, como San Luis Potosí, Guanajuato, Durango e Chihuahua; e também em México, e também em Nombre de Dios e Portobello, no istmo do Panamá. Por
regiões do Peru e do Alto Peru, onde, como acontecia no México, os depósitos vezes, participavam no fornecimento das maiores cidades regionais e das cidades
de ouro eram por vezes encontrados junto de depósitos de prata. A produção de mineiras. Assim, estas casas mercantis transatlânticas moviam-se quase exclusi-
ouro entrou em crise, por toda a parte, em meados do século xvn, mas, à seme- vamente nas mais altas esferas do comércio, comprando e vendendo bens euro-
lhança da indústria da prata, recuperou no século seguinte. peus em troca da prata e do ouro das índias, e participando, mais tarde, no comér-
cio transpacífico de artigos de luxo com Manila, ou no comércio direto entre a
Cidade do México e Lima, financiado por grandes quantidades de prata peruana.
MERCADORES E COMÉRCIO No início do século xvu, as casas mercantis das capitais coloniais tinham-se
tornado independentes das de Sevilha. Alguns dos grandes mercadores das
Durante a maior parte do século xvi, a principal via comercial das índias era índias eram crioulos, mas, na sua maioria, eram «peninsulares». Estes últimos
a ligação transatlântica a Sevilha, mas a expansão da colonização espanhola atuavam como intermediários entre a Espanha e as colónias. Embora, por regra,
criou vias secundárias de distribuição e troca comercial. Depois, quando a car- se unissem pelo casamento a famílias crioulas, conservavam fortes ligações
rera de índias atravessou um período difícil, em meados e finais do século xvn, familiares na Península. Havia, com efeito, uma curiosa prática que consistia em
as ligações comerciais entre as diferentes regiões do Novo Mundo fortaleceram- convidar parentes jovens a emigrarem de Espanha para trabalharem no negócio;
-se. Por essa altura, fora também já estabelecida uma nova ligação oceânica entre esses peninsulares mais jovens casavam, então, com as suas primas crioulas e
Acapulco, na Nova Espanha, e Manila, nas Filipinas. A Coroa autorizou duas assumiam o controlo da firma; possivelmente, também eles chamariam, mais
travessias por ano dos galeões de Manila, que trocavam a prata do México por tarde, outro jovem parente do país natal. Como os seus filhos crioulos envereda-
seda, porcelana, especiarias e outros artigos de luxo importados do Oriente. vam por outras atividades - como explorar uma fazenda ou uma operação
O Peru entrava nesta ligação indiretamente, adquirindo produtos orientais no mineira -, os comerciantes peninsulares tinham ligações próximas com as elites
México e reforçando, desse modo, os laços comerciais entre as capitais dos dois crioulas mesmo quando mantinham laços diretos com a Espanha.
vice-reinos. Outra razão para o poder económico dos comerciantes transatlânticos era o
Outra atividade comercial que ganhou importância no século xvn e daí em facto de possuírem capital líquido, o que os tornava importantes fontes de crédito
diante foi o contrabando com cidadãos europeus, em contravenção com o mono- numa economia em que os principais produtores - donos de minas e hacendados
pólio comercial da Espanha. Esta atividade concentrava-se em duas regiões: — sentiam uma necessidade constante de dinheiro. Os comerciantes podiam, por
a bacia das Caraíbas, como vimos, e a área do rio da Prata, onde Buenos Aires, exemplo, emprestar aos empresários do setor mineiro o capital necessário para
para além de comprar a comerciantes portugueses escravos africanos para traba- investir em material, na condição de serem reembolsados em prata. Ao longo do
lhar nas minas e nas plantações do Peru, se tornou um centro para a exportação século xvu, os problemas com equipamento e os avanços técnicos exigiram gran-
ilegal de prata de Potosí, através de Colónia do Sacramento, um entreposto de des injeções de capital, e os comerciantes ficaram estreitamente envolvidos no
contrabando português, na margem oposta do estuário do rio da Prata. financiamento da extração de prata, tendo em muitos casos obtido direitos de
O monopólio comercial que a Espanha tanto se esforçara por manter pôs monopólio para abastecer cidades mineiras ou para comprar prata para cunhar
os mercadores envolvidos no comércio transatlântico numa posição privilegiada moeda.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA
r AS Í N D I A S E S P A N H O L A S

No século xvm, as grandes casas mercantis assumiam já o papel de banquei- O capital da Igreja entrava na economia secular essencialmente por duas
ros para as elites crioulas. Garantiam fundos de investimento para a indústria vias. À semelhança da comunidade mercantil, a Igreja atuava como uma institui-
mineira, e alguns mercadores possuíam de facto grandes complexos mineiros. ção financeira de grande envergadura, concedendo crédito e capital de investi-
A eles recorriam os hacendados aristocratas quando atravessavam tempos de mento a laicos. Os empréstimos assumiam geralmente a forma de hipotecas
crise na economia rural. Até os administradores da Coroa lhes deviam o dinheiro sobre propriedade, a longo prazo, com taxas de juro reduzidas. Num outro cená-
com que tinham comprado os seus cargos, dívidas que esperavam saldar reti- rio, urna diocese ou casa religiosa podia receber fazendas, minas ou plantações
rando o máximo proveito dos seus cargos. Os mercadores implicados no comér- como herança, e esses bens eram arrendados ou geridos diretamente pelo clero.
cio internacional acabavam, então, por formar círculos fechados, ciosos dos seus As ordens religiosas, que muitas vezes estavam encarregadas de comunidades
consideráveis privilégios. Depois dos seus homólogos em Sevilha, os comer- índias, podiam empregar os nativos para trabalhar nas suas propriedades; noutros
ciantes da Cidade do México (em 1592) e de Lima (em 1613) obtiveram licenças casos, as propriedades eclesiásticas recebiam a sua quota-parte de trabalhadores
da Coroa para criarem consulados. No século xvm, formaram-se outros consula^ do repartimiento ou empregavam mão de obra assalariada. Tais empresas eram
dos em cidades secundárias como Caracas, Buenos Aires e Havana, onde se fazia habitualmente geridas com particular eficiência e contavam-se, talvez, entre as
um importante comércio de longa distância. mais vigorosas e rentáveis das colónias. A acumulação de terras pela Igreja era
Já os envolvidos no comércio inter-regional e regional gozavam de menos considerável, visto serem bens de mão-morta e, ao contrário das propriedades
prestígio social do que os comerciantes transatlânticos, embora fossem também, seculares, não podiam ser alienadas por particulares.
muitas vezes, espanhóis peninsulares. Tinham por função abastecer as regiões A outra grande função económica da Igreja consistia em providenciar edu-
com mercadoria comprada às casas transatlânticas da Cidade do México e de cação e cuidados de saúde à população em geral, e em prestar assistência aos
Lima, ou distribuir produtos das capitais regionais pelas cidades da província. pobres. Grande parte das suas receitas e dos seus recursos humanos era investida
Comerciantes de pouca importância, ou tratantes, operavam num nível muito nestas atividades. Ordens religiosas como a dos jesuítas e a dos dominicanos
local, fornecendo subúrbios índios nas cidades e colónias mineiras, e comprando usavam os lucros das suas fazendas para financiar as suas escolas, seminários e
os bens de aldeias índias ou de produtores muito pequenos para os distribuir num colégios. Muitas ordens, masculinas e femininas, trabalhavam nesta base,
mercado de província mais abrangente. gerindo estabelecimentos de ensino e formação que estavam sujeitos a paga-
mento para os ricos mas que eram gratuitos para os pobres. Outras dirigiam
hospitais, hospícios para doentes mentais e para doentes em fase terminal, casas
A IGREJA para pobres, orfanatos, abrigos para raparigas sem-abrigo, e outros. A Igreja
desempenhava, assim, um importante papel económico, fazendo circular capital,
Nas índias, como em Espanha, a Igreja participava na economia como a gerindo negócios lucrativos em determinadas áreas da economia e prestando
maior proprietária corporativa de terras, bens imobiliários e capital, a seguir à serviços sociais.
Coroa, e como a principal responsável pela educação e pelos serviços de assis-
tência social. As suas extraordinárias receitas provinham do dízimo, que era
pago por toda a população, branca e de cor, de rendas das suas muitas proprie- Sociedade
dades, e de donativos voluntários dos fiéis. Estes donativos consistiam geral-
mente em legados de dinheiro ou propriedade deixados por uma pessoa laica, A divisão das índias em duas «repúblicas» juridicamente distintas, uma de
doações de benfeitores ricos e dotes de filhas que entravam para uma ordem Espanhóis e outra de índios, continuou a ser uma característica básica da organi-
religiosa. Cada diocese e cada casa religiosa recebia este tipo de oferta dos seus zação social durante todo o período colonial. Este padrão social bipartido tornou-
paroquianos ou apoiantes, e os níveis de riqueza variavam consideravelmente de -se, no entanto, progressivamente mais complicado em consequência de dois
uma para outra. Este enorme capital era, naturalmente, posto ao serviço da eco- fatores. Em primeiro lugar, verificava-se um movimento constante, e com ten-
nomia; não era «improdutivo», embora não fosse investido com vista a maximi- dência para se acelerar, de índios para as áreas urbanas espanholas; reciproca-
zar a rentabilidade; esbanjavam-se quantias avultadas na construção de igrejas e mente, registava-se uma crescente influência hispânica sobre as comunidades
conventos, e também no ornato dei culto, arte e ornamentação sacra, amiúde índias. Em segundo lugar, a mistura de raças era cada vez mais acentuada, e para
sumptuosas. isso contribuía a chegada de muitos escravos africanos, que se dispersavam por

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muitas partes do império. Ainda assim, manteve-se a divisão institucional entre poucos crioulos obtiveram títulos. No século xvn, algumas das mais eminentes
uma sociedade hispânica e um setor índio claramente separado, abrangendo famílias crioulas conseguiram um estatuto nobre, outras foram admitidas numa
comunidades numerosas e diversas - uma distinção que, na prática, persistiu até das quatro ordens militares de cavalaria, mas a Coroa era extremamente parci-
aos nossos dias, moniosa na atribuição destas honrarias. Pela própria natureza da sua fundação, a
sociedade hispano-americana era senhorial e assentava na noção de estatuto, mas
faltavam-lhe os meios para institucionalizar diferenças no estatuto social.
A REPÚBLICA DOS ESPANHÓIS As elites crioulas tinham de se contentar com símbolos de estatuto menos
bem definidos - riqueza na forma de terras, pureza racial e reputação. Podemos
A sociedade hispânica que emergiu nas índias foi moldada pelas circunstân- avaliar a posição conferida pela posse de terras se atentarmos no facto de tanto
cias da Conquista. A distribuição de recompensas após uma expedição de con- os mercadores como os proprietários de minas comprarem invariavelmente uma
quista criou uma hierarquia social rudimentar, que se expressava no traçado fazenda assim que faziam fortuna, para adquirirem prestígio social. O mesmo se
físico das cidades que os conquistadores deviam fundar. O resultado foi a criação aplica aos administradores da Coroa. Porém, como já foi referido, as fazendas
de uma sociedade senhorial, liderada por uma aristocracia natural composta não eram empreendimentos seguros do ponto de vista financeiro, e, por essa
pelos espanhóis que haviam recebido as maiores extensões de terra e as melhores razão, a nobreza que as terras conferiam perdia-se em caso de ruína financeira.
encomiendas. Durante todo o período colonial, a posse de terra seria o critério Uma pele branca era requisito indispensável para um estatuto nobre, pois
mais importante na definição de eminência social: quanto maior a propriedade, qualquer vestígio de sangue índio ou africano diminuía inevitavelmente o esta-
mais elevado o estatuto social. A evolução da fazenda no século xvn, e posterior- tuto de um crioulo como a suspeita de um antepassado judeu comprometia a
mente, teve como estímulo fundamental esta aspiração de todos os hispânicos nobreza da linhagem de um espanhol peninsular. Os conceitos de «pureza de
nas índias a alcançar o estatuto nobre implícito na condição de um grande pro- sangue» da Espanha medieval foram, assim, transferidos para as índias, mas
prietário. ganharam um novo significado naquele ambiente racial tão diferente: a pele
O conceito de nobreza era, todavia, intrinsecamente instável, porque eram branca distinguia aqueles que pertenciam à raça dos conquistadores, separando-
muito raros os símbolos predeterminados de estatuto, além da riqueza, que per- -os dos conquistados ou dos escravos. Daí o interesse obsessivo dos espanhóis
mitissem diferenciar o aristocrata do indivíduo comum. A Coroa, que era a ver- americanos em classificar e ordenar as várias permutações de raça (ver adiante).
dadeira fonte de nobreza, recusara-se a conceder os privilégios tradicionais de Mas nem a pureza racial era um critério seguro para a eminência social, pois em
uma aristocracia à elite natural das índias. Esta posição explicava as contracor- finais do século xvii a miscigenação tornara-se de tal modo comum que muito
rentes de insatisfação e ressentimento contra o país natal que havia entre os poucas famílias de hacendados estavam totalmente livres de sangue misto.
crioulos e que afloravam de tempos a tempos, durante todo o período colonial. Como a pele branca já não era condição suficiente para a superioridade, era
Os encomenderos não tinham atingido o objetivo de fazer dos índios vencidos preciso complementá-la com outros símbolos de qualidade social; e, caso não
seus vassalos e perderam o direito a receber tributo índio na forma de mão de se cumprisse aquele primeiro critério, a falha podia ser compensada por esses
obra; nem sequer tinham permissão para conservar, como privilégio hereditário, símbolos - o mais poderoso dos quais era a linhagem ou a reputação de uma
os limitados direitos ao tributo índio que eram concedidos na encomenda. Fora- família.
-Ihes negada uma voz na governação do Estado e também o direito de acesso aos A fonte mais fiável de reputação era o mando, o poder de comandar subor-
cargos mais elevados do serviço da Coroa. Ao contrário da aristocracia da Penín- dinados e de conceder favores a clientes: era o mais próximo que um crioulo
sula, não podiam distinguir-se das ordens mais baixas através da isenção do socialmente eminente podia chegar da condição do aristocrata europeu que tinha
pagamento direto de impostos. Em Espanha, o povo pagava um imposto princi- direitos de jurisdição sobre vassalos. O mando era algo necessariamente mais
pal designado pecho, enquanto os nobres de estatuto igual ou superior ao dos difuso e podia ser exercido em diferentes esferas. Assim, o alto clero, os grandes
fidalgos estavam isentos dessa contribuição. Na América, não se verificava proprietários de minas e os mercadores transatlânticos muito ricos possuíam
semelhante distinção, pois todos os espanhóis e crioulos estavam livres de um tal mando e podiam integrar o escalão superior da sociedade. A fazenda era, de certa
imposto; só os índios pagavam tributo direto à Coroa. Finalmente, a Coroa con- forma, um acessório do mando, não a sua fonte; era o teatro onde um homem de
cedeu aos notáveis americanos muito poucos títulos honoríficos. Para além dos autoridade, independentemente das origens da sua fortuna, podia representar
primeiros descobridores e conquistadores, como Colombo, Cortês e Pizarro, para os outros a dimensão dessa autoridade, através da quantidade dos seus

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dependentes, clientes, servidores, criados e trabalhadores. Na ausência do verda- No fundo da pirâmide social estavam os plebeus hispânicos, sem negócios
deiro selo de aprovação real, a nobreza, nas índias, era em larga medida gestual nem propriedades, brancos pobres cuja única distinção das camadas mais baixas
e carismática - uma questão de pôr em evidência as atitudes adequadas através era cor da sua pele, pois em seu redor abundavam as massas de índios urbaniza-
de atos esbanjadores de generosidade, hospitalidade desinteressada, consumo dos, negros livres e indivíduos de sangue misto que viviam na república dos
exibicionista ou demonstração de cortesia e honra. Assim, o comportamento Espanhóis sem serem membros jurídicos da mesma.
«não-económico» da elite crioula - contrair uma elevada hipoteca apenas para
fazer um donativo para uma capela, por exemplo - não era uma extravagância
arbitrária, mas uma representação social com o objetivo de publicitar determi- A REPÚBLICA DOS ÍNDIOS
nada posição social.
A demanda da nobreza tinha também de ser empreendida no campo da polí- A República dos índios formou-se como um regime à parte nos domínios
tica, e constituía mais um incentivo para práticas oligárquicas: os nobres não- da Coroa espanhola, e possuía as suas próprias leis e instituições. A intenção da
-autorizados da sociedade colonial procuravam manter a sua reputação forjando Coroa era proteger os nativos da exploração de colonos espanhóis e permitir-lhes
alianças através do casamento com outras famílias distintas; tentavam também manter a sua cultura, desde que esta não entrasse em conflito com o catolicismo.
assegurar para os seus posições proeminentes na sociedade comprando-lhes um Assim, espanhóis e crioulos estavam proibidos de residir nas comunidades
lugar no cabildo ou uma capelania, ou conseguindo-lhes um cargo na burocracia índias, estando os índios igualmente confinados às suas terras. Mas a «pro-
real, e assim por diante. Uma vez estabelecida, uma família ou clã eminente teção» dos índios através da segregação era minada pelo facto de os nativos
tornava-se uma entidade social capaz de conferir um estatuto elevado aos seus terem de prestar tributo em géneros aos hispânicos e de estarem obrigados a
membros individuais, mas a família no seu todo tinha de conservar o seu estatuto trabalhar periodicamente no setor hispânico, onde tendiam a ser tratados com
de uma geração para a outra. A linhagem acabou por ter um papel a desempenhar severidade e onde ficavam expostos a influências culturais europeias. Quando,
na definição do estatuto aristocrático, mas a sua natureza foi sempre mais eva- no século xvi, as epidemias assolaram as aldeias índias, a sobrecarga de tributo
nescente na América do que na Europa. e serviço de mão de obra forçaram muitos índios a fugir das suas terras tribais
No ápice da pirâmide social, em qualquer região hispânica, encontravam-se para procurarem trabalho nas colónias hispânicas ou nas propriedades hispâni-
grupos de famílias crioulas aparentadas entre si que gozavam de um estatuto cas. Juntavam-se, então, àquela classe de índios destribalizados conhecidos
nobre indiscutível. Imediatamente abaixo, delineava-se uma classe variada de como naborías no México e yanaconas no Peru; estes índios não eram membros
famílias que não tinham alcançado a mesma proeminência, ou porque não de nenhuma das repúblicas, mas faziam parte de uma população heterogénea de
tinham linhagem ou porque a sua fortuna não era suficiente, ou ainda porque não estatuto indefinido.
estavam envolvidas no tipo certo de negócio. As profissões, sobretudo na área Em muitas regiões, a conquista, a doença e o tributo pressionavam de tal
das leis e na Igreja (a medicina não gozava de grande prestígio), eram ocupações modo as aldeias índias que na década de 60 a Coroa optou por uma política de
adequadas para os filhos mais jovens das famílias nobres e tinham um estatuto relocalização e concentração em novas comunidades planeadasracionalmente.
elevado, na medida em que eram praticadas por aristocratas e estavam asso- Os programas de congregación e reducción eram, por si só, perturbadores, e
ciadas aos interesses da aristocracia. Os cargos importantes na burocracia real muitos índios tinham de ser deslocados à força. Contudo, na vkagem do século,
também conferiam estatuto, e os administradores de mais alto nível, juizes e as novas colónias estavam já a garantir a base para a reintegração da vida comu-
funcionários do tesouro, muitos dos quais eram peninsulares, pertenciam à elite. nitária índia. Tratava-se de comunidades remodeladas pelo Estado espanhol - e,
Nas cidades, as classes médias da sociedade branca incluíam artesãos esta- nessa medida, eram culturalmente híbridas -, mas conservavam, ainda assim,
belecidos por conta própria, artífices, funcionários públicos de pouca importân- grande parte da estrutura tradicional da sociedade índia. Muitas comunidades
cia, funcionários administrativos e donos de lojas; estas pessoas mostravam-se foram reorganizadas dentro dos limites das terras tribais. Quando a relocalização
tão ciosas quanto as da classe alta de conservar o seu estatuto na sociedade - os ocorria fora de território tribal, as novas terras comunitárias eram designadas
artesãos, por exemplo, tentavam excluir rivais de condição inferior, os quais pela Coroa. A organização tradicional hispânica de jurisdição provincial, com-
eram muitas vezes indivíduos de cor, formando grémios e corporações. Nas posta por uma cabecera (cidade principal) e por sujetos (aldeias subordinadas),
zonas rurais, as classes médias compreendiam os intendentes de grandes fazen- servia de modelo, mas a autoridade dos chefes étnicos dinásticos continuava a
das e os donos de propriedades de média dimensão e de ranchos. ser reconhecida no cabildo índio, que se tornou uma espécie de conselho de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

anciãos tribais. Assim, o mundo índio estava constantemente a assimilar e a com que escorassem identidades coletivas. Mas também retiravam proveito
adaptar influências hispânicas em seu próprio proveito: dessas influências nas suas relações com o mundo exterior, usando-as para afir-
mar a sua independência. No século xvn, defenderam ativamente os seus interes-
Os elementos que eram originalmente introduzidos a partir do exterior integra- ses contra hispânicos ou contra tribos índias rivais, e aprenderam a exercer
vam-se de acordo com padrões de pensamento e comportamento índios, para formar influências e a fazer petições à Coroa, técnicas que eram fundamentais para a
associações estáveis de traços, identificando-se a comunidade índia com todos eles, vida política do mundo hispânico. Tornaram-se, além do mais, famosas pelas
sem questionar quais eram indígenas, quais eram espanhóis, quais resultavam de suas lutas incansáveis relativamente a direitos de propriedade; no início do
uma combinação. Depois de uma análise, quase tudo parece encaixar nesta última século, foram criados tribunais especiais, juzgados de Índios, para julgar casos
categoria: índio na raiz e de alguma forma alterado à superfície, como as próprias civis e criminais que envolviam contendas entre índios ou entre índios e não-
unidades provinciais (*)• -índios. Quando estes métodos falhavam, era frequente as comunidades revolta-
rem-se para forçar a Coroa a uma determinada concessão ou para alterar uma
O mundo corporativo índio continuava a assentar no grupo de parentesco decisão ou conseguir que um funcionário fosse afastado; tratava-se de uma téc-
com o nome de calpulli no México e de ayllu no Peru. A terra era ainda predo- nica política comum no mundo hispânico, que era também utilizada por outras
minantemente comunal; o trabalho agrícola era efetuado na base de reciproci- comunidades étnicas - crioula, mestiça e negra - e à qual as autoridades respon-
dade entre grupos de parentes; e recorria-se a sistemas de trabalho rotativo para diam de acordo com as circunstâncias, embora fosse mais comum a pacificação
as atividades de maior envergadura a que a sociedade se dedicava. Eram estas as do que a repressão de tais manifestações públicas de descontentamento.
forças sobreviventes da vida índia; no entanto, elementos da cultura espanhola Com efeito, em algumas partes das índias, como na zona indígena do Sul do
- vestuário, artefactos, ferramentas, métodos agrícolas, espécies cultivadas e México, no lucatão, nas comunidades índias da Guatemala e também nas coló-
animais - introduziam-se nas comunidades e eram absorvidos de modo a satis- nias espanholas, existiam estruturas paralelas com um grau de independência
fazer necessidades índias. Assim foi no caso particular da receção da nova reli- considerável. Na região de Oaxaca, como nos mostrou William B. Taylor, a
gião e das suas práticas. presença corporativa índia era dominante e assertiva (*). Ao longo do último
Depois de ter sido imposto aos nativos, o catolicismo desempenhou um século de domínio espanhol, comunidades e particulares índios controlavam
papel fundamental no fortalecimento e manutenção dos laços comunitários. aproximadamente dois terços da terra agrícola, e os índios optavam por cultivar
As cerimónias, as procissões e os festivais da Igreja tornaram-se acontecimentos espécies tradicionais - milho, feijão e agave -, apesar de estarem aptos a produ-
centrais na vida dos pueblos nativos. As comunidades adotaram determinados zir uma abundante variedade de alimentos europeus.
aspetos da Virgem ou santos para seus padroeiros, e usavam esta prática tão Contudo, a longo prazo, a tendência geral foi para uma hispanização mais
característica do catolicismo para reforçar a sua identidade tribal e a sua territo- elementar. No seio das próprias comunidades, as características tradicionais
rialidade. Danças rituais e cortejos com origem em cultos pagãos revestiram-se sofreram mudanças. Por exemplo, a relação entre os senhores étnicos e o seu
de um brilho cristão, sem no entanto deixarem de expressar mitos tribais. A tra- povo tornou-se mais tensa. Os caciques viram reconhecidos privilégios por parte
dição medieval hispânica de formar cofradías (irmandades religiosas) sob a dos Espanhóis, como possuir armas e cavalos, e usar vestuário espanhol. Tam-
proteção especial de um santo foi entusiasticamente adotada pelos índios e tor- bém colaboraram com os Espanhóis na organização da mão de obra das massas
nou-se um meio privilegiado para expressar a solidariedade social. Igreja e índias para tributo, e aproveitaram esta oportunidade para explorar a mão de obra
município encontravam-se estreitamente ligados através de cajás de comunidad índia em benefício próprio, acumulando mais terras e propriedades privadas do
(fundos comunitários), que eram usados para financiar festas religiosas e para que era costume nas comunidades tradicionais. Porém, ao mesmo tempo, os
pagar a decoração da igreja da comunidade, motivo de um enorme orgulho. caciques hereditários começaram a perder o controlo sobre os cabildos, que
A prática hispânica de compadrazgo (criação de laços sociais através do apadri- foram gradualmente ocupados por plebeus índios e até por elementos estranhos
nhamento) generalizou-se entre os índios no século xvn. à tribo, incluindo mestiços que se haviam estabelecido no território de uma
As comunidades índias eram, então, profundamente conservadoras, demons- comunidade. A autoridade dinástica e hereditária estava a ser substituída por
trando uma extraordinária capacidade de incorporar influências alheias e de fazer

(*) Landlord and Peasant in Colonial Oaxaca (Stanford University Press: Stanford,
(*) James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin America, p. 175. 1972).
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HISTORIA DA AMERICA LATINA AS Í N D I A S ESPANHOLAS

uma administração municipal mais eletiva. O nivelamento social tornou-se ainda apenas substantivos do espanhol, mas depois passaram a ser usados também
mais patente quando, em virtude da despopulação nativa, os próprios caciques verbos, preposições, conjunções e expressões idiomáticas, o que sugere uma
tiveram de pagar tributo para que a comunidade atingisse a sua quota. rápida evolução no bilinguismo, à medida que cada vez mais índios aprendiam a
A interação do mundo índio com o hispânico aumentou no século xvu. lidar com o setor hispânico em toda uma série de áreas. Noutras regiões, onde a
Os índios estavam constantemente a ser arrastados para a economia hispânica interação não foi tão intensa ou onde não começou tão cedo, o processo de acul-
devido à procura de mão de obra e bens por parte dos colonos. Alguns nativos turação terá ocorrido mais tarde (*).
empregavam-se como trabalhadores temporários em vilas ou propriedades espa-
nholas. Outros migravam das suas aldeias para se estabelecerem, permanente-
mente ou por longos períodos, em regiões hispânicas, onde podiam escapar ao AFRICANOS
tributo e à exploração dos caciques e dos corregidores. As comunidades locali-
zadas perto de cidades hispânicas cultivavam produtos agrícolas para vender Um terceiro grupo étnico de grande importância, os negros do continente
nesses mercados. A entrada na economia de mercado, com o consequente uso de africano, viria a integrar a sociedade hispano-americana. Tratava-se, inicial-
dinheiro, desencadeou, muito lentamente, mudanças nas atitudes nativas relati- mente, de um grupo inteiramente constituído por escravos. A escravatura era
vamente à posse de terra e à produção, e a organização assente na reciprocidade uma prática comum nas sociedades mediterrânicas - tanto cristãs como muçul-
e na utilização comum das terras deu lugar a uma conceção mais individualista manas - desde a Idade Média, e foram incluídos escravos negros nas primeiras
da propriedade. No sentido oposto, verificou-se um movimento das áreas hispâ- expedições ao Novo Mundo. Contudo, durante a maior parte do século xvi, o seu
nicas para o mundo coletivo índio. Crioulos e mestiços das classes mais baixas número era pouco significativo, uma vez que se recorria à mão de obra índia.
fixaram-se ilegalmente em território índio, introduzindo valores estranhos nas Quando a população nativa entrou em declínio e a mão de obra se tornou escassa,
comunidades, quando empregavam trabalhadores índios ou estabeleciam laços a procura de escravos aumentou, até que, em finais do século, a Coroa espanhola
sociais com caciques através do casamento ou do compadrazgo. se viu obrigada a autorizar a importação sistemática de africanos.
Estes contactos informais aceleraram o ritmo da transformação cultural nas Para a importação de escravos, a Espanha dependia dos Portugueses, pois o
comunidades índias. Todavia, James Lockhart e Stuart Schwartz identificaram Tratado de Tordesilhas atribuíra grande parte da costa ocidental africana a Por-
um padrão de aculturação que ocorreu a diferentes ritmos nas várias partes das tugal, e os Portugueses tinham estabelecido o comércio de escravos africanos
índias. Nas regiões centrais do México, verificou-se um período de 50 a 80 anos, havia muito tempo. Quando, em 1595, a Coroa espanhola começou a conceder
de 1570 até 1650, aproximadamente, a que dão o nome de «fase de consolida- contratos, designados asientos, a^ercadores portugueses envolvidos no comér-
ção», em que as comunidades se tinham já ajustado às novas estruturas hispâni- cio de escravos, a quantidade de negros transportados para as índias espanholas
cas e floresceram numa situação cultural híbrida, com os seus mecanismos sofreu um aumento acentuado. Estima-se que o número total de africanos impor-
sociais tradicionais a operarem eficazmente através de instituições hispânicas (*). tados pelas índias entre 1595 e 1640 fosse de 132 600, enquanto o total relativo
Foi uma época em que os índios dos pueblos construíram igrejas e as decoraram ao período de 1521 a 1595 fora pouco além dos 50 000. Por mais que a Coroa se
com frescos e entalhes; também participavam na liturgia católica nas suas comu- esforçasse por controlar este comércio impondo quotas de importação, era-lhe
nidades, tocando, e por vezes até compondo, a rica música sacra introduzida impossível pôr fim ao contrabando ativo que veio responder à procura de mão de
pelos padres espanhóis. Em meados do século xvu, o ritmo subjacente de hispa- obra nas colónias espanholas.
nização atingira um ponto crítico, a partir do qual a maioria de índios poderia, Durante o resto do período colonial, o tráfico não deu sinal de diminuir,
num plano individual, mais facilmente satisfazer as suas aspirações no setor porque a população de escravos negros na América não se reproduziu a um ritmo
hispânico do que nas suas próprias comunidades. Daí em diante, as comunidades natural; dado que as mortes excediam os nascimentos, tinha de se proceder a
nativas do México Central parecem ter sido sistematicamente relegadas para as importações constantes para satisfazer a necessidade de mão de obra. Aos portu-
margens da vida índia. gueses, não tardaram a juntar-se mercadores holandeses, ingleses e franceses
Lockhart e Schwartz detetam este fenómeno na interação do nauatle com o no comércio de escravos; a princípio, levavam ilegalmente africanos para as
espanhol. Até meados do século xvn, aproximadamente, a língua nativa absorveu índias espanholas, mas, mediante uma cláusula do Tratado de Utrecht de 1713,

(') Early Latin America, pp. 165-7. (*) Early Latin America, pp. 167-8.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

a Espanha foi forçada a conceder à English South Sea Company um asiento para dimensão do influxo não permitia que se fosse além do batismo e de uma instru-
o fornecimento de escravos às suas colónias. Com efeito, o século xvm assistiu ção muito superficial. Ainda assim, alguns padres, em particular os jesuítas,
a um aumento repentino do tráfico de escravos, quando Cuba e outras ilhas espa- mostraram-se perseverantes nas suas tentativas de converter efetivamente os
nholas desenvolveram uma economia baseada na plantação de açúcar, atividade africanos e de conseguir que eles fossem tratados humanamente. Mas, de um
que dependia exclusivamente da mão de obra negra escrava, à semelhança do modo geral, os escravos negros vindos de África adquiriam apenas uma noção
que Ingleses e Franceses haviam feito com tanto êxito nos seus territórios das imperfeita do cristianismo e conservaram grande parte das crenças e dos rituais
Caraíbas. animistas que haviam trazido da sua terra de origem. Por vezes fundido com
Antes de os Espanhóis criarem uma indústria do açúcar em Cuba e nas Cara- elementos da fé católica, o animismo foi transmitido às gerações subsequentes,
íbas, os escravos negros iam para quase todo o território das índias. Eram con- e são ainda hoje comuns alguns cultos afro-americanos nas regiões da América
centrados em regiões costeiras ou de baixa altitude, pois eram essas as áreas onde espanhola com populações negras numerosas.
a população índia ficara irremediavelmente reduzida, pelo menos no México e. Tal como aconteceu com os índios que haviam deixado as suas comunidades
no Peru. Em Nova Granada, os africanos constituíam a principal sustentação da para trabalharem no setor hispânico, os escravos negros da segunda geração
indústria do ouro, enquanto na Venezuela trabalhavam nas plantações de cacau foram hispanizados. A palavra criollo era originalmente usada para distinguir
junto à costa. No noroeste da atual Argentina, os escravos negros eram utilizados negros aculturados, nascidos e criados na América espanhola, a que se chamava
na criação de gado, na produção de vinho e no cultivo de trigo, sendo importados negros bozales, por analogia com os animais selvagens não domesticados que
através de Buenos Aires por contrabandistas portugueses do Brasil. Nas cidades, necessitavam de um açaimo (bozal). Este tipo de terminologia revela a ansiedade
os negros eram frequentemente usados nos obrajes têxteis, mas eram também dos proprietários brancos em relação à natureza potencialmente violenta dos seus
muito apreciados pelo seu valor estatutário como criados domésticos das famí- escravos. Mas, na verdade, as revoltas de escravos eram raras; era muito mais
lias hispânicas ricas. Os crioulos de condição mais modesta podiam possuir frequente indivíduos ou grupos de indivíduos tentarem fugir do cativeiro e
alguns escravos; artesãos e artífices, por exemplo, empregavam muitas vezes refugiar-se na selva. Por vezes, os fugitivos conseguiam sobreviver e uniam-se a
escravos negros como assistentes nas suas oficinas. Em meados do século xvn, outros numa povoação a que era dado o nome de palenque ou cumbe. Estas
os negros haviam-se tomado uma das presenças mais importantes nas índias; as comunidades neoafricanas precárias, que ganharam uma nova forma na América,
principais cidades tinham populações negras numerosas, e pensa-se que quase conseguiam, em alguns casos, sobreviver durante períodos bastante longos, antes
metade da população de Lima fosse negra ou mulata. de sucumbirem aos ataques punitivos de forças brancas ou, num cenário mais
O volume do comércio de escravos causava, só por si, incómodo moral à provável, à subnutrição e à doença. Mas mesmo em cativeiro os africanos e os
Igreja e à Coroa. E contudo, na Europa, a escravatura nunca fora encarada como seus descendentes mantinham vivas algumas memórias das suas antigas identi-
uma prática moralmente reprovável. Aristóteles sancionara a escravização de dades tribais, associando-se a outros escravos das suas nações de origem em
povos de civilizações inferiores, e era assim que os africanos eram vistos pelos irmandades religiosas ao estilo espanhol, invocando as suas divindades ances-
europeus. A Igreja tolerava a escravatura, que via como o destino infeliz de cer- trais e praticando em segredo ritos tribais. Esta fragmentação cultural parece ter
tas raças, mas dizia acreditar que os escravos podiam alcançar a salvação e sido encorajada pelos Espanhóis como forma de impedir qualquer solidariedade
defendia a sua conversão - na realidade, a Igreja aprovava a escravização de entre os negros, que poderia ter levado a uma rebelião em grande escala.
selvagens como meio para os conduzir para a verdadeira fé. Estipulava apenas As condições de vida dos escravos diferiam bastante. Uma família de escra-
que deviam ser tratados de modo humano. vos que vivesse numa casa abastada, ao serviço de um proprietário misericor-
Mas tornou-se evidente que o comércio de escravos para as índias estava dioso, podia usufruir de alguma dignidade e segurança, ao contrário do que
longe de ser humano: nas costas da África Ocidental decorria uma hedionda caça acontecia com os escravos que trabalhavam nas plantações de açúcar, onde fica-
ao homem; os infelizes cativos eram amontoados nos porões imundos de navios vam expostos aos duros castigos físicos infligidos pelos vigilantes e onde lhes era
de escravos e, depois, descarregados como animais para serem vendidos em muito difícil estabelecer relações pessoais com a família do proprietário que
enormes mercados nos portos americanos. Os missionários tentavam cristianizar pudessem mitigar a desumanidade da sua condição. As mulheres escravas
os negros que iam chegando à América espanhola, mas nunca com o zelo que * sofriam ainda o risco adicional de serem forçadas a ter relações sexuais com os
haviam demonstrado ao converter os índios. Os escravos não estavam, natural- proprietários, um fenómeno que, dado o crescimento da população mulata, deve
mente, num estado de espírito favorável à assimilação da doutrina cristã, e a ter sido bastante comum. A maioria dos escravos tinha uma vida extremamente

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

precária - viviam mal alojados, mal agasalhados e mal alimentados, e a sua saúde durante um período de tempo muito longo que a assimilação total se tornou pos-
pouco importava ao proprietário. É, no entanto, pouco provável que as circuns- sível para muitos indivíduos, especialmente no século xvm, quando a maioria das
tâncias materiais de muitos escravos, em especial nas cidades, fossem muito famílias hispânicas fora já afetada.
piores do que as suportadas pela maioria dos pobres que viviam em liberdade. No século xvi, a miscigenação ocorreu predominantemente entre espanhóis
O Estado espanhol professava, hipocritamente, o ideal de que os escravos e índios, e os seus descendentes ficaram conhecidos como mestiços. Na sua
deviam poder conquistar a sua liberdade. Com o crescimento da população geral, maioria, estas uniões eram irregulares, dado que, no período que se seguiu à
na segunda metade do século xvn, e com o aumento da mão de obra disponível, Conquista, a posição dominante dos indivíduos espanhóis do sexo masculino
a taxa de manumissão intensificou-se; muitos proprietários libertaram os seus lhes permitia ter mulheres indígenas como parceiras fora do casamento. Em
escravos como recompensa pelo seu serviço leal ou pelo menos permitiram-lhes finais do século, a chegada de escravas africanas multiplicou as oportunidades
que comprassem a liberdade. Em finais do século xvm, os negros da América para estas relações, e os filhos destas uniões foram chamados mulatos.
espanhola eram, na sua maioria, livres e tinham-se tornado trabalhadores assala- Tanto a Coroa como a Igreja encorajaram a imigração de mulheres espanho-
riados, artesãos por conta própria ou modestos camponeses. las, com vista à formação de laços familiares legítimos nas índias. Todavia, se os
Em liberdade, o negro era aceite como um membro pleno, embora distinto, colonos espanhóis preferiam casar com mulheres brancas por motivos de ordem
de uma sociedade corporativa: era um súbdito da Coroa e um filho da Igreja; social e económica, as circunstâncias ainda lhes permitiam manter relações
podia possuir bens, participar em transações legais e lutar pela prosperidade e extraconjugais com mulheres de outras raças, que invariavelmente trabalhavam
pela dignidade social; e tinha acesso a algumas oportunidades educativas. Mas, como criadas ou escravas. Os filhos ilegítimos eram, em muitos casos, tolerados
apesar de tudo, numa sociedade em que a pele branca era um sinal de distinção, nas grandes casas dos espanhóis mais ricos, onde ocupavam uma posição inde-
o negro era inevitavelmente vítima de um preconceito racial endémico, vendo- finida — algures entre criados domésticos e parentes de sangue; tinham acesso a
-se, por isso, relegado para as camadas mais baixas da pirâmide social. Os des- alguma instrução e eram incluídos no testamento do pai. Esta era a condição dos
cendentes dos inúmeros escravos trazidos de África foram, assim, assimilados poucos afortunados que conseguiam um lugar na estrutura patriarcal da vida
pelos níveis mais baixos da sociedade dominada por brancos transplantada da familiar hispânica, mas a maioria tinha de suportar um forte estigma social.
Espanha e juntamente com os índios contribuíram para a sua diversidade étnica, Era o caso, em particular, dos filhos de pais índios e negros, que inicialmente
sobretudo devido à miscigenação que ocorreu entre as três raças. foram chamados mulatos mas que mais tarde ficaram conhecidos como zambos.
Ironicamente, a ilegitimidade era menos comum neste tipo de situação, porque
muitas vezes não havia preconceito social relativamente ao casamento entre
MISTURA DE RAÇAS grupos de cor.
As correlações entre os estatutos social e racial eram bastante complexas.
Se as índias foram legalmente constituídas como uma sociedade dual de Os espanhóis puros eram inquestionavelmente encarados como social e etnica-
espanhóis e índios, a realidade social da América espanhola foi muito mais hete- mente superiores, e estabeleciam o padrão contra o qual se avaliava o estatuto
rogénea devido à presença de africanos, e sobretudo devido o crescimento de dos restantes grupos. Os índios encontravam-se na base da escala social, e, toda-
uma população de etnicidade intermédia, conhecida coletivamente como castas. via, a sua cor e as suas características físicas eram consideradas mais próximas
Na república dos Espanhóis, viviam pessoas de sangue misto, mas o seu estatuto das dos Espanhóis, pelo que os mestiços gozavam do estatuto mais elevado entre
nunca foi claramente definido; eram livres, mas tinham de pagar um imposto as populações de sangue misto. Socialmente, os crioulos negros estavam mais
especial exigido aos castas, e estavam igualmente sujeitas a restrições legais que próximos dos hispânicos do que os índios, mas do ponto de vista racial eram-lhes
lhes impediam a ascensão social; estavam-lhes vedados os cargos públicos, o mais estranhos, pelo que os mulatos tinham um estatuto inferior ao dos mestiços.
sacerdócio e frequentar a universidade. E todavia, apesar de o sangue de cor ser Seguindo esta lógica, os zambos - indivíduos de sangue negro e índio - eram
encarado como uma mácula que impedia a aceitação total por parte da sociedade social e racialmente inferiores aos restantes grupos.
hispânica, as verdadeiras circunstâncias das pessoas de sangue misto dependiam Numa sociedade em que a cor da pele de uma pessoa determinava tanto o
de uma série de variáveis como a legitimidade, o grau de cor, a ocupação, o nível * estatuto jurídico como social (e uma vez que disso dependiam, em última ins-
de hispanização e a proximidade da relação com o pai, caso este fosse branco. tância, as obrigações fiscais e os privilégios legais), as gradações étnicas susci-
Em qualquer dos casos, o processo de miscigenação foi de tal modo intenso tavam um interesse obsessivo, e as permutações entre elas ficavam sujeitas a

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS Í N D I A S E S P A N H O L A S

uma refinada análise genealógica. Por exemplo, se a filha mestiça de Um hispâ- entre iguais, servindo os favores para dominar mercados, para criar cartéis de
nico casasse com um homem branco, os seus filhos seriam considerados castizos produtores que mantinham os preços elevados, para obter do Estado direitos de
e podiam retomar o estatuto jurídico de brancos. Porém, se uma filha nascida de monopólio, e assim por diante. Em suma, os grandes clãs procuravam deter e
uma união entre um elemento branco e um mestiço - isto é, uma castiza - controlar mercados por forma a converter consumidores comuns em clientes
casasse com um índio, os seus filhos pertenceriam à república dos índios; e se passivos, que teriam de comprar bens a preços elevados como se tal fosse uma
ela casasse com um mestiço, os descendentes seriam mestiços. Os filhos desta espécie de tributo pago ao poder patriarcal do produtor. Por outro lado, os lucros
última combinação, e outros, eram habitualmente identificados através de nomes e rendas avultados eram gastos pelas grandes famílias de modos economica-
distintivos, que não tinham, no entanto, influência sobre o estatuto legal. mente «não produtivos» — em atos de generosidade pública, através de donativos
À medida que se aproximava o fim do período colonial, a atribuição de uma à Igreja, à Coroa e à comunidade, e mantendo um estilo de vida luxuoso que
categoria a cada grau de mistura étnica tornou-se uma tarefa demasiado com- reforçasse o prestígio e o poder do patriarca e do seu clã.
plexa. Dado que a grande maioria da população tinha sangue misto, o estatuto A monarquia punha o seu selo nesta ordem patriarcal da sociedade. O rei era
étnico passou a ser determinado mais pela aparência e pelo comportamento o pai do povo, a fonte pessoal da justiça e da lei, e governava também graças à
social do que por uma análise genealógica ou estritamente étnica. A cada vez sua capacidade de conceder favores a troco de lealdade e obediência. Os seus
mais numerosa população de mestiços e mulatos esbateu a fronteira entre as súbditos não tinham direitos intrínsecos; em vez disso, dirigiam petições ao
repúblicas hispânica e índia. Num dos extremos, pessoas de sangue misto desli- monarca para que lhes fosse concedida uma qualquer graça ou recompensa.
zavam para o setor branco, entrando na universidade e acedendo às profissões e Acima do rei estava somente Deus, o Pai Supremo, e o mundo social não era,
às corporações legalmente reservadas aos brancos, enquanto, no extremo oposto, afinal, mais do que o reflexo material da hierarquia espiritual instituída pelo
se infiltravam nas comunidades índias, sentando-se nos cabildos e ocupando próprio Criador. Dado que a religião fornecia a justificação máxima para a auto-
outros cargos destinados a índios. Após a independência, este vasto leque inter- ridade política, a monarquia católica era uma força poderosa para a unidade:
médio de castas obteria direitos civis plenos, mas o prestígio social continuaria funcionava como uma estrutura abrangente que mantinha a miríade unida,
a ser fortemente influenciado pelas perceções dos traços étnicos. tecendo redes de laços recíprocos que se expandiam e se elevavam a partir da
autoridade do pai na mais humilde unidade familiar.

A ORDEM PATRIARCAL DA SOCIEDADE


Cultura
O mundo social das índias espanholas era patriarcal e hierárquico. O ideal
consistia em viver como um senhor, possuir propriedades vastas e dominar AS FUNDAÇÕES NO SÉCULO XVI
outros homens. Este ideal reproduzia o padrão da unidade familiar ibérica, em
que os chefes de família exerciam uma autoridade benevolente mas inquestioná- A descoberta, a conquista e a evangelização do Novo Mundo inspiraram um
vel sobre a mulher, os filhos, dependentes, criados, escravos e um extenso clã de conjunto substancial de textos que ainda constitui a base do nosso conhecimento
parentes e clientes. O domínio do patriarca era exercido mais pela proteção do sobre este empreendimento extraordinário. Esses livros e documentos foram, na
que pela força: eram concedidos favores em troca de respeito e lealdade; uma sua maioria, escritos por homens que estiveram ativamente envolvidos na colo-
proteção especial num mundo duro era a recompensa pela obediência dos indi- nização espanhola da América, e consistem em crónicas das invasões europeias
víduos socialmente inferiores, muitas vezes ligados à família por laços de padri- ou em estudos históricos das civilizações índias que as precederam.
naje e compadrazgo. Alguns dos principais descobridores e conquistadores deixaram registos das
Semelhantes valores permeavam o comportamento político e económico. suas experiências. Colombo escreveu um diário das suas quatro viagens às
Na política, levavam inevitavelmente à oligarquia, uma vez que os clãs patriar- índias, que mais tarde foi editado por Bartolomé de Ias Casas. O relato de Her-
cais procuravam conservar a sua influência penetrando nas instituições podero- nán Cortês da conquista do México pode ser reconstruído a partir das suas cartas
sas e conduzindo os assuntos públicos com os métodos utilizados nas relaçõe» a Carlos V. Francisco López de Gomara publicou em 1532 uma história da Con-
familiares - nomeadamente, a troca de favores entre patronos e clientes. Também quista que exaltava o papel de Cortês, apesar de o autor nunca ter estado
a prática económica era oligárquica, com tendência para excluir a concorrência nas índias. Em parte como resposta a este livro, a obra Verdadeira História da

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS Í N D I A S ESPANHOLAS

Conquista da Nova Espanha foi escrita em meados do século xvi, (mas publi- índios de Vilcabamba, também escreveu um tratado sobre a governação do Peru.
cada só em 1632) por Bernal Díaz dei Catillo, um soldado do exército de Cortês, texto que defendia o direito dos Espanhóis a dominarem os Inças. No entanto,
que ficou melindrado com a excessiva glorificação de Cortês por parte de como observa John Hemming, «é extraordinário que os autores responsáveis
Gomara e que produziu uma versão que enfatiza a natureza coletiva e até provi- pelas argumentações mais poderosas a favor do domínio espanhol - Sepúlveda,
dencial da fundação da colónia espanhola. A conquista do Peru e o seu turbulento Matienzo e Sarmiento de Gamboa - não tenham publicado as suas obras em
rescaldo deram origem a crónicas escritas por participantes como Pedro Cieza de Espanha no século xvi, enquanto tudo o que Lãs Casas escreveu foi publi-
Léon e Pedro Pizarro, um primo de Francisco, e por um funcionário da Coroa, cado» (*).
Agustín de Zárate. Com efeito, a vida cultural das índias estava condicionada pela fortíssima
Muitos espanhóis tinham curiosidade a respeito dos impérios ameríndios que convicção da Coroa e da Igreja de que a melhor justificação para o domínio
haviam subjugado. Na ausência de fontes escritas nativas, a informação sobre as espanhol residia na cristianização dos índios. Por esse motivo, as primeiras
civilizações pré-hispânicas veio de relatos orais de índios que foram transcritos expressões de cultura hispânica no Novo Mundo tinham um acentuado carácter
para espanhol. Nesta tarefa de transmissão cultural, padres e mestiços desempe- religioso e didático. Tal como em Espanha, todos os livros estavam sujeitos a
nharam um papel de destaque. O monge franciscano Bernardino de Sahagún uma rígida censura que estava atenta a indícios de heresia e de imoralidade, mas
escreveu Historia general de Ias cosas de Ia Nueva Espana (1570-82), que for- a preocupação oficial com as mentes impressionáveis dos neófitos índios levou
neceu uma versão nativa da Conquista e abordou a mitologia e a cultura dos a que a importação de obras de ficção para a América fosse também proibida
Astecas. O missionário franciscano Toribio de Benavente, conhecido como (uma proibição que não tardou a revelar-se inaplicável). As tipografias chegaram
Motolinia, a palavra nauatle para «pobre» (trabalhara durante décadas com os cedo às principais cidades: a Cidade do México teve uma em 1535, e Lima em
índios como monge indigente), publicou uma importante história dos índios da 1583. Estas primeiras tipografias publicavam obras de devoção e manuais para
Nova Espanha em 1541. Ambas as histórias continuam a ser importantes fontes os pregadores.
de conhecimento sobre os Astecas. Os mestiços Fernando de Alva Ixtlilxochitl, Em meados do século xvi, estava montado todo o aparato de um sistema
um descendente dos senhores de Texcoco, e Alvarado Tezozomoc escreveram educativo: os missionários estavam incumbidos de instruk os índios no cristia-
crónicas em espanhol a respeito dos seus antepassados; o padre Diego Durán, um nismo e na língua castelhana, bem como noutras competências práticas; os colé-
sacerdote mestiço, compilou a história dos índios da Nova Espanha com base em gios foram instituídos na Nova Espanha e no Peru para garantir uma sólida
códices hieroglíficos e em relatos orais. No Peru, o sobrinho de Atahualpa, Titu educação humanista para aristocratas índios e mestiços; foram fundados seminá-
Cusi Yupanqui, ditou uma história da sua família; o padre Martin de Murúa, que rios para formação do clero, e foram estabelecidas universidades, seguindo o
era amigo de membros da família real, recontou a história da Conquista na pers- modelo de Salamanca, em Santo Domingo (1538), na Cidade do México (1553)
petiva inça. Mestiços peruanos, como o inça Garcilaso de Ia Vega, Felipe Gua- e em Lima (1551). Estas instituições estavam sob a alçada da Igreja e, como em
man Poma de Ayala e Juan de Betanzos, produziram crónicas sobre a sociedade todos os estabelecimentos de ensino na Europa contemporânea, a teologia e o
índia antes e depois da Conquista. O jesuíta José de Acosta debruçou-se sobre a latim ocupavam um lugar central nos currículos.
história e a geografia do México e do Peru na sua influente e cientificamente Durante a maior parte do século xvi, a cultura secular foi limitada pelos
objetiva Historia natural y moral de Ias índias (1590), entre outras obras. números da população europeia e pela sua natureza dispersa: os colonos espa-
Este precioso conjunto de crónicas e relaciones sobre a Conquista e os impé- nhóis, que na sua maioria não eram, para todos os efeitos, pessoas cultas, viviam
rios nativos foi produzido não apenas para que existisse um registo de aconteci- maioritariamente em pequenas cidades isoladas rodeados por índios. Contudo,
mentos objetivo, mas, em muitos casos, para apoiar um ou outro lado do grande em meados do século, as principais cidades, e em particular a Cidade do México,
debate do século xvi sobre os direitos dos povos índios. Bartolomé de Ias Casas Lima e Cusco, conseguiam manter alguma vida cultural à margem da Igreja.
escreveu, entre 1552 e 1561, uma história das índias para consolidar a sua defesa Com a criação de tribunais e audiências nos vice-reinos, onde se concentra-
dos direitos dos nativos. Pelo contrário, Francisco de Toledo, o grande vice-rei vam funcionários reais, clérigos e nobres cultos, gerou-se um foco de cultura
espanhol no Peru, encomendou a Pedro Sarmiento de Gamboa uma história erudita e exposição social, que atraiu encomenderos ricos e mercadores transa-
sobre os Inças que justificasse a soberania espanhola; a obra ficou concluída em» tlânticos.
1572, o ano da última campanha contra o Estado neoinca de Vilcabamba. Juan
de Matienzo, um jurista que estivera envolvido na diplomacia espanhola com os
(*) The Conquest ofthe Inças (Macmillan: Londres, 1970), p. 415.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

Nestes círculos distintos, a cultura do Renascimento europeu - o equivalente uma epopeia com qualidade, Primem parte de Arauca domada (1596), e Fran-
secular ao humanismo religioso dos missionários - foi aplicada, com alguma cisco de Terrazas compôs fragmentos de um poema épico, El Nuevo Mundo y su
discriminação, à experiência da América. Nos anos 50, por exemplo, Francisco conquista (1580). O outro grande mestre literário da cultura hispano-americana
Cervantes de Salazar, professor de retórica na Universidade do México, cronista no século da Conquista, e uma figura cujas obras viriam a tornar-se clássicos da
oficial da Conquista e um prestigiado humanista erasmiano, que conhecia literatura espanhola, foi um mestiço peruano, Garcilaso de Ia Vega, filho ilegí-
pessoalmente Hernán Cortês, reuniu condições para escrever elegias poéticas e timo de um descendente do grande poeta castelhano com o mesmo nome e de
diálogos em latim sobre a vida na «grande Cidade do México». Um espanhol uma princesa inça. A sua primeira grande obra foi uma epopeia em prosa sobre
nascido na América, Francisco de Terrazas, foi um poeta bem-sucedido ao estilo a conquista da Florida por Hernando de Soto (1605). Vega já traduzira para cas-
de Petrarca e do castelhano Garcilaso de Ia Vega (seria elogiado por Miguel de telhano (1590) o livro seminal do neoplatonismo renascentista em Espanha,
Cervantes). Bernardo de Balbuena, que estudou na Universidade do México em Dialoghi d'amore, de Leão Hebreus. Mas a sua obra-prima foi Comentários
finais da década de 80 e que mais tarde foi abade da Jamaica e bispo de Porto Reales que ti-atan dei origen de los Yncas (1609), uma crónica escrita numa
Rico, escreveu uma famosa elegia poética da Nova Espanha, Grandeza Mexi- prosa da melhor qualidade em que o autor apresenta a civilização dos seus ante-
cana (1604), seguindo modelos italianos, e também um extenso poema pas- passados Como um prelúdio providencial da chegada do cristianismo ao Novo
toril, Siglo de Oro (1608), inspirado em Arcádia, de Sannazaro, e uma epopeia, Mundo, assim como o Renascimento caracterizara a antiguidade greco-romana
El Bernardo, o Victoria de Roncesvalles (1624), sobre o lendário herói medieval como uma preparação para o posterior triunfo da verdadeira fé no Velho Mundo.
da Reconquista de Espanha, Bernardo dei Carpio -, tendo este último sido A esta obra seguiu-se Historia general dei Peru (1617).
influenciado pela epopeia Orlando, de Boiardo e Ariosto. A difusão da cultura hispânica nas índias não se confinou às capitais dos
Homens como Cervantes de Salazar, Terrazas e Balbuena foram escritores vice-reinos. A península Ibérica era rica em tradições literárias populares - bala-
proeminentes na ainda pouco numerosa elite cultural que se formou na capital da das, canções, contos populares, provérbios e poemas satíricos. Esta tradição foi
Nova Espanha perto do final do século xvi. Por este meio passaram também levada para a América pelos muitos espanhóis de condição humilde que se esta-
figuras de primeiro plano que haviam construído a sua reputação literária na beleceram naquele ambiente estranho, e que aí criaram raízes, como também
Península ou que viriam a fazê-lo mais tarde, mas cujos talentos e interesses aconteceu com as suas músicas e danças. Na realidade, a divisão entre a cultura
exerceram certamente alguma influência sobre a qualidade da cultura intelectual erudita e a cultura popular da Espanha não era muito nítida, e tinham muitos
no México colonial. Juan de Ia Cueva, que seria um precursor do novo drama pontos em comum, pontos que ganharam importância em finais do século xvi.
espanhol no século xvn, após 1574, viveu durante vários anos no México. Desenvolveu-se uma tradição dramática «nacional» que conseguiu atrair tanto
Gutierre de Cetina, um poeta de grande importância, também residiu na Nova nobres como plebeus; poetas cultos como Lope de Vega, Luis de Góngora e até
Espanha durante alguns anos. A figura mais ilustre foi Mateo Alemán, autor de o reacionário e aristocrático Francisco de Quevedo escreveram canções e poe-
uma das obras mais populares e mais influentes de toda a literatura espanhola, mas em registo popular, os quais circulavam livremente entre o vulgo. O próprio
Guzmán de Alfarache (1599; 1602), o romance fundador da literatura picaresca; teatro era um dos vários locais onde espanhóis de alta e baixa condição podiam
foi para o México em 1608 e aí viveu até morrer, em 1615. Juan Ruiz de Alarcón partilhar atividades culturais. Outros desses lugares eram a igreja e a praça
foi um crioulo nascido na Cidade do México em 1580 que foi para Espanha e se pública - cerimónias religiosas, procissões e representações históricas faziam
tornou um grande dramaturgo da era dourada do teatro espanhol; a sua peça mais parte do calendário de qualquer cidade, e inseriam-se na tradição áafiesta, que
famosa, La Verdad sospechosa (1634), inspirou Lê Menteur, de Corneille, e desde tempos antigos desempenhava um papel preponderante na cultura hispâ-
// bugiarão, de Goldoni. nica.
Na segunda metade do século, o impulso histórico para registar os grandes Rituais religiosos e festas públicas criavam pontos de ligação às outras cuL
feitos da Conquista tornou-se mais conscientemente literário, como que refinado turas étnicas - índia e africana. O contacto inicial foi essencialmente promovido
pela sensibilidade poética cultivada pela elite. O resultado foi o aparecimento da pelos missionários, que introduziram nas comunidades índias práticas católicas
epopeia heróica tanto em verso como em prosa. O modelo supremo deste género medievais, como as procissões públicas e as festas em dias de santos. Um dos
foi La Araucana, de Alonso de Ercilla (1569; 1578; 1589), o melhor texto épico» métodos de instrução mais utilizados era a peça de teatro moralista, que repre-
renascentista em espanhol, que tinha por tema as guerras de fronteira no Chile sentava visualmente os mistérios da fé. Os índios eram encorajados a pôr em
contra os índios araucanos. Dos imitadores de Ercilla, Pedro de Ona produziu cena outras peças e representações - muitas vezes usando máscaras e trajos

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HISTÓRIA DA AMERICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

inspirados nas tradições indígenas - para comemorar lendas históricas espanho- alegações a respeito de infrações contra os direitos dos nativos. Esteve preso e
las, como as batalhas entre mouros e cristãos no período da Reconquista, os foi banido, tendo morrido na pobreza com uma idade avançada, provavelmente
feitos de Carlos Magno e de Rolando, ou até as explorações dos conquistadores em 1616.
da América. Mas também se registou uma considerável influência no sentido Todavia, apesar de tudo, a Nueva Corónica era dirigida a Filipe III, e era
oposto, sobretudo quando o ritmo de migração das comunidades índias para as acompanhada por cartas que solicitavam favores em reconhecimento pelos ser-
colónias hispânicas se intensificou, perto do final do século. Estes índios destri- viços prestados à Espanha pelo pai de Guaman Poma. O outro famoso cronista
balizados misturaram-se com os hispânicos das classes mais baixas, com os mestiço do Peru, Garcilaso de Ia Vega, também enviou vários pedidos de favores
negros e os indivíduos de sangue misto e acrescentaram os seus próprios costu- ao rei espanhol, como recompensa pelos serviços prestados pelo seu pai espa-
mes ao conjunto de músicas, danças, canções, pratos gastronómicos, modos e nhol à Coroa durante a conquista do Peru. Não foi bem-sucedido, e por altura da
expressões que viriam a constituir o património das classes populares da América. morte da sua mãe índia acrescentou ao seu nome o título oficioso de «o Inça»,
Em cidades hispânicas de todo o território das índias verificava-se uma mis- como que para reclamar a sua identidade ameríndia, apesar de ter vivido em
tura cultural vital, uma mestizaje de tradições. A natureza desta interação depen- Espanha desde os 21 anos de idade.
dia da composição étnica e cultural das diferentes regiões, e podia até variar A cultura colonial das índias espanholas não era um todo uniforme, mas,
significativamente entre cidades da mesma província: esta realidade explica em ainda assim, as sociedades multiformes e racialmente divididas da pós-Conquista
larga medida as tradições regionais tão ricas e diversas da América espanhola. giravam, todas elas, em torno do eixo político e cultural da monarquia católica.
Mas todas as variações deste tipo ocorriam em torno de um núcleo espanhol: a A Coroa era o seu ponto de referência central e, enquanto tal, atuava como uma
Espanha fornecia o paradigma, enquanto os índios livres e os escravos africanos força para a unidade e a ordem, atraindo os diversos grupos étnicos, tribos e
o modificavam em função das suas influências ancestrais. Seria, contudo, um classes para o sistema patriarcal de valores, da mesma forma que unia politica-
erro sugerir que a cultura colonial da América espanhola constituía um todo mente os muitos reinos que constituíam o império. Por esta razão, a mestizaje
harmonioso. Havia divisões profundas entre raças e classes: a exploração de não era, de todo, uma ameaça à ordem das coisas estabelecida pela Espanha.
índios e escravos africanos originou numerosas revoltas. Não restam dúvidas de O Estado imperial não impunha a uniformidade cultural, apesar de insistir for-
que estes grupos étnicos subjugados se ressentiam profundamente com a opres- malmente na lealdade religiosa por parte dos seus súbditos. O elevado grau de
são, e usavam muitas vezes as suas tradições nativas - o vudu afro-americano ou pluralismo cultural e étnico que existia nas índias podia ser tolerado pela monar-
as diversas formas de magia animista ameríndia - para subverter e resistir à quia católica porque a unidade política do império estava garantida.
cultura dos seus senhores.
A mentalidade do mestiço, em particular, era um caldeirão de contradições.
Encontramos indícios destas tensões num documento curioso, intitulado El pri- A CULTURA DOS CRIOULOS NO SÉCULO XVII
mer nueva Corónica y Buen Gobierno, escrito entre 1567 e 1615 por um mestiço
peruano, Felipe Guaman Poma de Ayala. Esta crónica pretendia ser uma denún- O século XVH assistiu à emergência de sociedades crioulas distintas nas
cia dos maus-tratos infligidos aos índios pelos espanhóis e, simultaneamente, várias regiões das índias, à medida que as vilas e as cidades se expandiam e que
um ensaio sobre a necessidade de uma governação justa no Peru. Guaman Poma a economia hispano-americana ganhava autonomia relativamente à da Península.
estava claramente perturbado por uma impressão de ilegitimidade e expro- Agora que mais prata ficava na América, em vez de ser exportada para a Espa-
priação. A crónica denigre os Inças, afirmando-se o autor como um descendente, nha, a elite crioula podia gastar mais da sua fortuna no apoio às artes. As princi-
por via paterna, dos senhores de Huánuco, que haviam sido derrotados pelos pais cidades americanas puderam, então, desenvolver uma cultura aristocrática
senhores de Cusco e cujas terras haviam sido incorporadas no império inça. de um luxo considerável.
O texto de Guaman Poma revela, assim, divisões tanto entre índios como entre Uma característica importante da cultura deste período era o crescente desejo
nativos e espanhóis. O autor trabalhara como intérprete para vários funcionários dos crioulos de afirmarem a sua própria identidade como espanoles americanos,
da Coroa espanhola, e percorrera as zonas rurais numa campanha para destruir por oposição aos espanhóis vindos da Península que tinham imigrado na Amé-
ídolos pagãos. Após a morte do pai, em 1580, esteve envolvido em litígios pelo* rica. Nos escritos dos americanos, é evidente um certo ressentimento para com
seu direito de herança a terras que lhe haviam sido legadas. Mais tarde, entrou os peninsulares, e, numa sociedade dominada pela Igreja, este sentimento encon-
repetidamente em conflito com funcionários públicos espanhóis pelas suas trava por vezes expressão numa sensibilidade religiosa indígena alegadamente

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HISTORIA DA AMERICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

mais pura do que a da própria Espanha. Os pregadores crioulos esforçavam-se A sociedade crioula deleitava-se com o teatro e com os espetáculos públicos.
por provar que o Novo Mundo fora especialmente favorecido por Deus. Mani- Tal como em Espanha, as peças eram postas em cena em corrales (pátios)
festações da Virgem na América serviam para canalizar o patriotismo crioulo - a perante multidões entusiásticas. A maioria das peças era importada da Península,
Virgem de Guadalupe era objeto de fervorosa devoção no México, tanto entre mas uma indicação da profundidade do interesse crioulo no teatro é o facto de
crioulos como entre índios, sendo preferida às suas equivalentes peninsulares, um dos maiores dramaturgos da idade de ouro ser o corcunda Juan Ruiz de Alar-
incluindo a Virgem de los Remédios, que fora venerada pelos conquistadores. cón, apesar de a sua carreira se ter, em grande parte, desenrolado em Espanha.
O mesmo se aplicava às outras vírgenes criollas'. a Virgem de Copacabana, no Um género dramático que floresceu no século xvn foi o auto sacramental, um
Peru, a Virgem de Guápulo, no Equador. complexo drama alegórico que tinha por tema a eucaristia celebrada ao ar livre
Os crioulos chegariam mais tarde a reclamar até aspetos do passado pré- com bens extravagantes no banquete de Corpus Christi; em Espanha, Calderón
-hispânico para se distinguirem aos peninsulares. Jacques Lafaye mostrou como, de Ia Barca transformou-o numa arte erudita. Estes autos sacramentales, tão
no século xvm, o clero mexicano tentou cristianizar o deus nauatle Quetzalcoatl, populares entre os crioulos, nasceram da mesma tradição de mistérios medievais
defendendo que ele era na realidade o apóstolo São Tomás, que estivera no Novo que os primeiros missionários tinham usado para facilitar a evangelização das
Mundo antes dos conquistadores para levar a palavra de Deus aos índios: o cris- massas índias.
tianismo teria, então, raízes na América, que eram independentes das da Penín- Na antiga capital inça de Cusco, onde a cultura tradicional andina era muito
sula. Era uma forma de rejeitar o domínio cultural da Espanha e de compensar o forte e onde ainda vivia uma importante nobreza inça, embora hispanizada, o
sentimento colonial de inferioridade. teatro espanhol sofreu uma curiosa mestizaje - comédias religiosas e até secula-
Se encontramos aqui exemplos claros de patriotismo crioulo, será talvez res eram por vezes escritas na língua quíchua; a famosa peça Ollantay, de autoria
anacrónico interpretá-los como sinais da formação de uma «consciência nacio- desconhecida mas que se supõe ter sido escrita em finais do século xvn ou prin-
nal», e era ainda menos provável que fosse um nacionalismo capaz de constituir cípios do século xvm, põe em cena os temas e a estrutura do drama espanhol
uma qualquer espécie de ameaça política para o império, ou que pudesse ter contemporâneo. Entre os dramaturgos de Cusco, o mais bem-sucedido foi Juan
lançado as sementes de um espirito de independência que a Espanha tivesse de de Espinosa Medrano, conhecido como El Lunarejo, que escreveu tanto em
reprimir. A Coroa podia acomodar um nível muito elevado de diversidade nos espanhol como em quíchua, e que se tornou famoso pelos seus autos sacramen-
seus domínios. Além disso, o patriotismo crioulo era uma reação defensiva à tales e pelas suas peças bíblicas (compôs O Filho Pródigo em quíchua, situando
arrogância injuriosa de imigrantes e administradores da Península; não era, de a ação no Peru e usando personagens índias).
todo, um ataque à monarquia católica propriamente dita, uma instituição que os O apreço pelo espetáculo teatral era de tal ordem que se encenavam intrin-
crioulos entendiam ser vital para os interesses da sua sociedade. cados dramas históricos e cerimónias públicas pela ocasião, por exemplo, da
Acima de tudo, o patriotismo crioulo deve ser inserido no contexto de chegada de um novo vice-rei, da ordenação de um bispo ou do aniversário de um
desenvolvimentos culturais mais abrangentes do mundo hispânico, em finais do qualquer acontecimento ou personagem histórico. Quadros alegóricos com cenas
século xvi, que serviu para propagar e reforçar os atrativos ideológicos da da mitologia clássica eram por vezes representados mesmo em lugares remotos
monarquia católica. O mais sedutor desses desenvolvimentos foi o florescer de da província, e tanto por índios como por crioulos. «A cidade de Chiapas»,
uma forte tradição dramática, sobretudo após a emergência da comedia nueva de observou o monge dominicano inglês Thomas Gage,
Lope de Vega, na viragem de século. Lope de Vega descobriu uma fórmula dra-
mática que continuava a ser dominante em pleno século xvm. Era espantosa- fica situada junto de um grande rio, ao qual pertencem muitos barcos e canoas, onde
mente eficaz na representação das forças impulsionadoras da sociedade hispâ- aqueles índios foram ensinados a representar lutas navais com uma enorme destreza,
nica e na análise dos seus valores centrais, políticos como religiosos. E no âmago e a representar as ninfas de Parnaso, Neptuno, Éolo, e os restantes deuses e deusas
dessa fórmula encontrava-se a noção patriarcal do rei como restaurador e garante pagãos, de tal modo que são uma maravilha para toda a sua nação (*).
da ordem social. Esta ideia inspira as peças do próprio Lope de Vega, de Tirso
de Molina, de Calderón de Ia Barca e de todos os principais dramaturgos da
idade de ouro do teatro espanhol. A comedia nueva exibia, assim, o sistema de*
valores do mundo hispânico em formas artísticas que eram altamente populares, (*) Citado em Irving I. Leonard, Baroque Times in Old México, (University of Michigan
uma vez que agradavam tanto às camadas populares como à aristocracia. Press: Ann Arbor, 1959), p. 122.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

O espetáculo público era intrínseco a esta sociedade hierárquica. Bem à parte obras de cariz religioso. A Igreja era, na realidade, a maior benfeitora da arte nas
das máscaras festivas (procissões em ricos trajos temáticos) e dos dramas histó- índias. A sua tremenda influência no drama contemporâneo foi já referida, e o
ricos com grandes desfiles de carros alegóricos, a cultura exigia exibições fre- papel que desempenhava na promoção da arquitetura, das artes plásticas e da
quentes de estatuto social, tais como o ritual diário do paseo ao final da tarde, música era mais importante ainda.
altura em que a classe alta crioula saía elegantemente vestida para embelezar as No século xvi, a arquitetura religiosa era bastante rudimentar, combinando
avenidas das cidades. Até a poesia era em larga medida uma arte pública, escrita com o espírito missionário, pioneiro, do período que se seguiu à Conquista.
para celebrar uma ocasião cívica especial ou para ser lida num concurso. A sua Os mosteiros, as igrejas e as missões construídos pelas ordens religiosas consis-
formalidade arrevesada dispensava a introspeção profunda, prestando-se, em vez tiam em estruturas funcionais, embora com traços decorativos nas ombreiras
disso, a cultivar a linguagem como se se tratasse de um jogo em que a sagacidade nas portas e nas janelas, fruto de uma longa tradição hispânica. Os elementos
e o engenho eram altamente apreciados. Em suma, no auge da cultura crioula, o básicos eram tendencialmente góticos - arcos, arcadas e colunas, em particular
estilo da literatura era barroco - com metáforas elaboradas, tecnicamente intrin- abóbadas de cruzeiro, que eram muito resistentes a terramotos. Com efeito, a
cado e repleto de pretensiosismo. Este estilo continuou a dominar as letras criou- f. preocupação com questões práticas justifica em parte a natureza eclética da
las até finais do século xvni e foi, talvez, um elemento crucial na emergência de arquitetura nas índias espanholas. Era necessário alcançai" um equilíbrio entre
uma sensibilidade hispano-americana característica. Pelo menos, assim o consi- funcionalismo e estética — a catedral em Santo Domingo, por exemplo, combina
deraram importantes artistas hispano-americanos do século xx, poesia e ficção uma robusta estrutura gótica com uma ornamentação inspirada no Renascimento
muito mais modernas evidenciam uma afinidade consciente com a arte barroca. italiano. A destruição causada por terramotos, um pouco por todo o continente,
Porém, ao contrário do escritor moderno, o artista barroco não era um indivi- explica a mistura de estilos, pois muitas igrejas e conventos tinham de ser perio-
dualista; o próprio meio através do qual se expressava fazia parte do tecido ceri- dicamente reparados ou parcialmente reconstruídos devido à ocorrência de sis-
monial da sua sociedade, como se torna bem patente na descrição de Mariano mos. A catedral da Cidade do México foi repetidamente acrescentada ao longo
Picón-Salas de um cortejo carnavalesco organizado em Lima no ano de 1627: do período colonial: tendo a sua construção sido iniciada em 1563 no estilo
clássico espanhol, o edifício apresentava abundantes traços barrocos quando foi
Entre outras atrações, havia crocodilos puxados por mulos cobertos de peles de consagrado, em 1667; por fim, um arquiteto espanhol adicionou-lhe torres e
unicórnios míticos, baleias, astrólogos, Polifemo com um enorme olho, Ganimedes cúpulas redondas na última década do século xvm.
e Eneias, Jasão perseguindo o Tosão de Ouro, Saturno carregando uma ampulheta, Este ecletismo é, então, a característica dominante da arquitetura hispano-
e Marte. Também aparecia o carro de Apoio, com uma efígie do poeta, Luis de -americana, uma mestizaje resultante do uso, da geografia, do clima e, natural-
Góngoraf). mente, do gosto. Na verdade, as muitas combinações estilísticas, que variam de
região para região e consoante os materiais disponíveis, revelam muitas vezes
Foi, com efeito, Góngora, mais do que qualquer outro escritor, que personi- uma integridade intrínseca e servem para estabelecer uma estética visual rica,
ficou a estética barroca no mundo hispânico; é digno de nota o facto de, apenas herdada da Espanha e da Europa, mas transformada criativamente pelas circuns-
alguns meses após a sua morte, na cidade espanhola de Córdoba, a sua memória tâncias do Novo Mundo. Muitos dos conventos, igrejas e catedrais mais impor-
estar a ser publicamente homenageada na distante Lima, juntamente com os tantes das índias foram iniciados nas últimas décadas do século xvi, tendo sido
deuses da Antiguidade. projetados segundo o estilo clássico, monumental e muito sóbrio que Juan de
Embora voltada para o prazer, sociável e sexualmente permissiva, a socie- Herrera, o arquiteto do Escoriai e da catedral de Valladolid, aperfeiçoara em
dade crioula não era frívola. Pouco depois da sua fundação, produziu figuras Espanha. Discípulo de Herrera, Francisco Becerra, oriundo da Extremadura,
artísticas de grande relevo, tendo-se algumas delas aproximado da primeira elaborou o projeto para a catedral de Puebla, no México, e para as catedrais de
categoria da cultura hispânica contemporânea, como veremos. E se a literatura Lima e de Cusco, bem como para conventos em Quito. Mas se as estruturas eram
secular era tão extrovertida e ritualizada, isso devia-se ao facto de as expressões bastante normalizadas, os elementos decorativos, como já foi mencionado, varia-
mais intimistas da consciência humana estarem em larga medida reservadas às vam consideravelmente: podiam incluir motivos de inspiração italiana, tetos de
madeira esculpida ao estilo mudéjar, de influência árabe, e fachadas num registo
plateresco, que reunia traços góticos, árabes e italianos. Ao longo do século xvn,
(") A Cultural History ofLaíin America: From Conquest to Independence (University of
Califórnia Press: Berkeley, 1964), p.91. com o desenvolvimento do estilo barroco, essencialmente dramático, a natureza

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

dinâmica desta mestizaje intensificou-se através do uso de colunas em espi- «se contam entre os momentos mais profundos e mais belos do génio colonial
ral, pilares estípites afunilados, altares e retábulos da fachada com estatuária nativo em todas as artes» (*). Na América do Sul, o génio de maior destaque foi
expressiva. Juan de Araújo, que serviu primeiro na catedral de Lima e mais tarde em La Paz,
A mistura criativa de materiais locais dava tonalidades indígenas à essência durante as últimas três décadas do século e até à sua morte, em 1712.
dos edifícios. A pedra tezontle, de um vermelho-escuro, que se encontrava nas Contudo, a música eclesiástica, apesar de toda a perícia e da aprendizagem
regiões vulcânicas do México Central, era muito utilizada localmente e produzia que envolvia, não ficava à margem das pessoas comuns ou das comunidades
um singular aspeto sombrio. Era por vezes combinada com outros tipos de pedra, étnicas. Tocada regularmente perante congregações numerosas, era também uma
como a chiluca, cor de areia. Nas regiões andinas do Peru e do Alto Peru, a pedra arte predominantemente pública. A cultura musical das índias espanholas parti-
dura, geralmente granito, era usada na construção dos edifícios mais importan- lhava as características idênticas que observámos relativamente à literatura do
tes, mas nas cidades costeiras utilizava-se sobretudo adobe, tijolo ou guinche período colonial: podia assimilar estilos não-europeus e interagir com registos
(canas e barro cobertos de argamassa). Tal como na Península, recorria-se muitas populares. Logo nos primeiros tempos, a Igreja começou a absorver tradições
vezes ao azulejo para ornamentar tanto fachadas como interiores, com grandes musicais índias. Nas missões espalhadas por todo o território das índias, os mon-
variações em função das tradições locais. ges combinavam estilos musicais e instrumentos europeus com os indígenas na
Os artesãos, muitas vezes mestiços ou índios, conferiam um carácter indí- missa e noutras cerimónias. Mesmo nas cidades, os índios continuaram a tocar a
gena à enorme produção de madeira trabalhada, mobília, esculturas e artigos de sua própria música com instrumentos tradicionais, e estes, com o passar do
prata que as igrejas de todo o território das índias reclamavam. Partindo inevita- tempo, acabavam por ser seletivamente absorvidos pelo repertório eclesiástico.
velmente de um padrão hispânico, desenvolveu-se toda uma profusão de estilos Robert Stevenson descreve como o precedente foi aberto no Corpus Christi em
regionais híbridos. Encontramos um estilo mestiço muito particular em cidades 1551 por Juan de Fuentes, o mestre de orquestra da catedral de Cusco:
como Arequipa, Potosí e La Paz, onde a flora e a fauna nativas foram incorpora-
das na escultura e nos ornamentos entalhados. Tendo vestido oito rapazes mestiços com o trajo inça (e não seis, que era o tra-
Na pintura, a temática religiosa era preponderante. No primeiro século após dicional número de rapazes de coro numa catedral espanhola, mas oito, em conside-
a Conquista, pintores italianos e espanhóis foram empregados em várias regiões ração à numerologia inça), Fuentes fê-los cantar um haylli inça. No refrão, os ele-
das índias, mas o talento nativo atingiu o seu auge sob a influência do grande mentos do coro adultos de origem espanhola cantaram música vocal, para grande
pintor italiano Francisco Zurbarán, em finais do século xvn e princípios do contentamento de Garcilaso de Ia Vega... A ideia de Fuentes de combinar música inça
século xvm. No México, duas figuras de destaque foram Cristóbal de Villalpando e música espanhola teve um tal êxito que o capítulo da catedral de Cusco decidiu
e Juan Corrêa. Aproximadamente na mesma altura, no Peru, surgiu a famosa contratar, de futuro, todo um complemento de rapazes de coro (**).
escola de pintores de Cusco, que teve por fundador o índio Diego Quispe Tito.
As obras destes pintores de Cusco, com as suas folhas douradas para efeitos As vigorosas tradições musicais dos escravos africanos produziram também
decorativos, assemelham-se a ícones, pela sua simplicidade. Considera-se que o o seu impacto na cultura hispano-americana. No século xvii, tornou-se habitual
principal pintor da região andina, na época, foi Melchor Pérez de Holguín. compositores e poetas brancos, cultos, escreverem canções em estilos híbridos,
Como sucedeu com as outras artes, a música prosperou sob o patrocínio da que podiam ser chamados negros, negrillas ou guineas, empregando ritmos afri-
Igreja - principalmente nas grandes catedrais. Os mestres de orquestra, muitos canos, dialeto hispânico negro e enfáticos refrões africanos como gulungú
dos quais eram índios ou mestiços, compunham e tocavam, tradicionalmente, gulungú ou he he he cambulé. Tratava-se de uma variante crioula da longa tradi-
música sacra, e emergiram vários talentos musicais de primeiro plano. Também ção espanhola de composição de villancicos e canciones - canções e baladas em
aqui o final do século xvi testemunhou o culminar do esforço artístico. No verso e com métricas populares, tradição que, escusado será dizer, floresceu
México evidenciou-se Francisco López Capillas, um compositor de grande igualmente nas índias. De entre os seus intérpretes na Nova Espanha, distinguiu-
erudição; o exemplo máximo do seu talento foi a composição de quatro missas -se, pelo seu talento, a freira crioula Sor Juana Inés de Ia Cruz, cujos espirituosos
distintas para serem cantadas em perfeita harmonia pelo mesmo número de villancicos, muitos dos quais musicados por sucessivos mestres de orquestra da
coros na ordenação simultânea de quatro bispos na Cidade do México, em 1656.$
O mais ilustre dos músicos mexicanos foi Manuel de Zumaya, ativo até meados (*) Cambridge History ofLatin America, vol. 2, p. 793.
do século xvm, cuja música litúrgica, salmos e hinos, segundo Robert Stevenson, (") Cambridge History ofLatin America, vol. 2, p. 774.

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catedral da Cidade do México, incorporavam por vezes fragmentos de nauatle ou astrónomo, arqueólogo e historiador, mas também um homem cuja ortodoxia
dialeto afro-hispânico. religiosa e formação escolástica punham limitações à sua curiosidade por áreas
Sor Juana representa a cultura e a sociedade crioula da Nova Espanha no seu tão diversas. O mesmo se pode dizer da outra proeminente figura intelectual do
zénite, em finais do século xvn. Aclamada em vida como a Décima Musa, tornou- período colonial, o peruano Pedro Peralta Barnuevo, que era professor universi-
-se a maior figura literária do mundo hispânico após a morte do dramaturgo tário de matemática em Lima. Homem de interesses enciclopédicos, Barnuevo
espanhol Pedro Calderón de Ia Barca, em 1681. Sor Juana nasceu em 1648, filha acabou, no entanto, tal como Sor Juana, por renunciar ao conhecimento secular
ilegítima de uma mulher crioula e de um espanhol do qual nada se sabe. Criada no final da sua vida, numa obra intitulada Pasión y triunfo de Cristo (1738). Este
pela mãe numa fazenda perto da Cidade do México, causou, ainda jovem, uma espírito de renúncia final era característico do pensamento barroco hispânico, e
forte impressão na corte do vice-reino pelos seus dotes intelectuais e musicais. está patente também na poesia mordazmente satírica do mais ilustre poeta do
Tornou-se freira porque o convento lhe proporcionava as melhores condições para Peru colonial, Juan dei Valle Caviedes. Semelhantes formas de deceção espiri-
cultivar o seu amor pela poesia e pela erudição. San Jerónimo era um convento tual com as atrações do mundo humano, e uma consequente dedicação às coisas
liberal, onde mulheres com recursos se podiam isolar, levando as suas criadas e da alma, são tão evidentes nas índias como na Espanha contemporânea.
escravas consigo, para viverem numa cela que era, na realidade, uma série de
aposentos. Foi aí que Sor Juana prosperou como uma grande anfitriã literária,
visitada por amigos dos mais elevados círculos sociais, incluindo o vice-rei e a O SÉCULO XVffl
sua consorte. O relativo lazer da vida religiosa explica o número apreciável de
mulheres entre os poetas e escritores devotos nas índias espanholas. Sor Juana Se figuras crioulas como Sor Juana, Siguenza y Góngora e Peralta Barnuevo
destacou-se em todos os registos, incluindo poesia dramática e auto sacramental. demonstravam algum interesse científico e paixão pelo conhecimento secular,
A experiência de Sor Juana ilustra tanto a liberdade como a rigidez da cultura não existem indícios de que estivessem avançados relativamente às correntes
crioula hispânica. Havia uma considerável tolerância para com aberrações pes- intelectuais da própria Espanha. Viveram num período em que a cultura da
soais, desde que os princípios elementares da sociedade não fossem postos em Contra-Reforma começara a perder a sua vitalidade, mas em que as novas ideias
questão. O facto de ser bastarda não foi um obstáculo à carreira de Juana. críticas tinham ainda de romper o invólucro de ideologia tradicional que abar-
A sua mãe teve seis filhos de dois homens, nenhum dos quais seu marido, mas cava todo o mundo hispânico. Em Espanha, seria a mudança de dinastia dos
isso não a impediu de conseguir casamentos respeitáveis para as suas filhas, que Habsburgos para os Bourbons franceses, após 1700, que acabaria por per-
teriam, elas próprias, filhos ilegítimos e que viveriam abertamente com os seus mitir que o pensamento do Iluminismo chegasse lentamente a uma pequena
amantes. Mas Sor Juana entrou em conflito com as autoridades da Igreja quando minoria da elite intelectual da Península. E mesmo então procurou-se conciliar
se envolveu numa luta de poder entre o seu protetor, o vice-rei, e o arcebispo do autoridade e razão, numa ideologia cautelosa que foi designada Iluminismo
México. Acabou por renunciar aos seus livros, submetendo-se ao seu confessor católico.
jesuíta num documento assinado com o seu próprio sangue. A sua escrita ofen- O seu primeiro e mais famoso proponente foi o padre espanhol Benito
dera interesses poderosos na Igreja e Juana convenceu-se, por fim, de que, sendo Feijóo, que na década de 20 do século xvni se tornou um crítico da cultura e
mulher, a busca do conhecimento colocaria a sua alma em perigo. da educação tradicional espanholas. Em meados do século, pensadores ilumina-
O destino de Sor Juana constitui, ainda hoje, um enigma. Será simplesmente dos próximos da monarquia Bourbon, como o influente Gaspar Melchor de
elucidativo da repressão de uma sociedade patriarcal, ou deverá ser visto como Jovellanos, tinham concebido um abrangente projeto de reforma a ser implemen-
um indício de colonialismo cultural, prova de que a Espanha asfixiou o espírito tado em todo o mundo hispânico. (O impacto destas reformas nas índias espa-
criativo dos crioulos? Explicações como estas foram propostas por estudiosos da nholas será discutido no capítulo 6.) A velha perspetiva de que os livros franceses
modernidade, mas o ato de renúncia de Sor Juana deve ser entendido no contexto ilícitos introduziram ideias modernas nas colónias espanholas já não é válida.
mais vasto da cultura barroca católica. Ela foi, na verdade, uma de várias figuras Segundo Mário Góngora, «o Iluminismo foi trazido para a América espanhola
de uma geração crioula muito talentosa, geração que floresceu numa cultura por funcionários públicos e eclesiásticos espanhóis, com os quais os crioulos se
intelectual vigorosa, centrada nas universidades, nos conventos, nos salões aris- identificavam» (*)• Os seus primeiros efeitos foram visíveis em reformas do
tocráticos e nas cortes das capitais dos vice-reinos. Um parceiro intelectual
regular de Sor Juana foi o polímato Carlos Siguenza y Góngora. Era matemático,
O Studies in the Colonial History of Spanish America, p. 191.

172 173
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS Í N D I A S E S P A N H O L A S

curriculum universitário que pretendiam vencer o escolasticismo acrílico e pro- Celaya. No que concerne à pintura, os últimos anos do século assistiram a uma
mover uma atitude mais aberta e interrogativa relativamente ao mundo natural. preferência pelos retratos e pelos temas seculares, em oposição aos temas reli-
A maior parte do clero do século xvin - os jesuítas em particular - e, uma giosos que dominavam desde o século xvi. A música continuou a centrar-se nas
pequena elite tecnocrática apoiavam as ideias do Iluminismo. Contudo, após a igrejas, rnas a partir de meados do século xvin as grandes catedrais começaram
expulsão dos jesuítas dos domínios espanhóis em 1767, verificou-se uma impor- a escolher italianos e espanhóis peninsulares para mestres de orquestra.
tante rutura na cultura da América espanhola. A maioria dos jesuítas banidos das As equivalentes intelectuais às academias de artes neoclássicas eram as
índias eram crioulos e estabeleceram-se na Europa, especialmente em Itália. Foi «Sociedades Económicas» ou «Sociedades de Amigos da Região», que se forma-
aí que se iniciou o «processo de negação da Espanha» por parte dos hispano- ram nas décadas de 80 e 90 em muitos pontos das índias, com o objetivo de
-americanos (f). Com efeito, muitos desses jesuítas, ressentidos com o «despo- apoiar as ciências práticas e o ensino técnico. Foram estes círculos de homens
tismo esclarecido» da casa de Bourbon, que levara à sua expulsão, contribuíram crioulos cultos que prepararam o caminho para os «precursores» intelectuais dos
com os seus escritos para a velha «lenda negra» que vinha sendo propagada movimentos de independência. Ainda assim, os crioulos progressistas consti-
conta a Espanha pelos seus inimigos desde o século xvi. E assim, se até aos anos tuíam uma mera fração das elites brancas das índias. À sua ideologia estava,
70 os crioulos se tinham identificado com os conquistadores, orgulhando-se da além disso, longe de ser uniforme - havia jacobinos, mações e republicanos, mas
sua ligação à Espanha, agora as vozes jesuítas dissidentes denunciavam as explo- também apoiantes da monarquia constitucional e católicos devotos. Com efeito,
rações dos conquistadores como atrocidades e atacavam a «tirania» exercida pela uma importante corrente do movimento independentista teve a sua origem no
monarquia imperial sobre os crioulos. Por outro lado, enalteciam os esplendores clero, que se opôs às reformas centralizantes dos Bourbons e que invocava a
da natureza no Novo Mundo e escreviam elogios das civilizações pré-colombia- Virgem de Guadalupe na sua luta por uma forma mais pura de cristianismo no
nas. Foi deste modo que surgiu o amerlcanismo antiespanhol, que viria a desem- Novo Mundo. Foi, por exemplo, esta corrente que impulsionou a revolta maio-
penhar um papel tão importante na história das repúblicas independentes. ritariamente índia lançada contra a Coroa pelo P.1 Miguel Hidalgo no México,
No território das índias, a separação ideológica da Espanha foi mais gradual, em 1810.
mas, também a partir da década de 70, elementos da elite intelectual crioula O Iluminismo trouxe novas e graves divisões à sociedade hispano-ameri-
começaram a perder a sua herança de respeito pela Espanha como porta-estan- cana. Em primeiro lugar, levou uma minoria de crioulos modernizantes a sepa-
darte de uma ordem cristã universal. A França tornou-se cada vez mais o farol da rar-se das oligarquias brancas tradicionalistas. Uma consequência mais séria
civilização, visto que o Iluminismo no mundo ibérico não era mais do que uma ainda foi o profundo fosso que surgiu entre, por um lado, uma elite intelectual de
extensão das ideias francesas. Nas artes, as últimas décadas do século viram os crioulos empenhados no liberalismo e, por outro, a esmagadora massa de pessoas
estilos barrocos hispânicos darem lugar a um neoclassicismo de inspiração fran- de todos os grupos étnicos que se atinha à ordem patriarcal da monarquia cató-
cesa, associado à modernidade e ao progresso. lica. Quando, em 1808, as forças de Napoleão invadiram a península Ibérica, a
Um indício deste desenvolvimento é o crescente recurso a artistas e músicos monarquia católica foi destruída e essas divisões afloraram imediatamente, e nas
de origem estrangeira para trabalhos de grande importância nas principais índias com consequências que ainda hoje são evidentes.
cidades. Em finais do século xvm, as encomendas de edifícios públicos e novas Talvez a consequência mais importante da rutura com a Espanha tenha sido
igrejas couberam a italianos, franceses e espanhóis da Península. A catedral o dilema da identidade cultural com que as novas repúblicas se depararam.'
de Buenos Aires foi concebida por um italiano, tal como o elegante Palácio de A cultura da monarquia católica possuía sustentação bem firme: estendia-se a
La Moneda, de estilo neoclássico, em Santiago do Chile. Na Cidade do México, todas as camadas da sociedade, ligando cultura popular e cultura erudita; podia
Carlos Hl fundou uma Academia de Belas-Artes em 1785, a qual teria um cata- acomodar a mestizaje em todas as esferas, desde as relações sexuais à arquite-
lão, Manuel Tolsá, como um dos seus mestres mais influentes: foi ele que dese- tura; e era, finalmente, capaz de conciliar a grande variedade étnica e regional
nhou a magnífica Escola de Minas e que deu à catedral barroca a cúpula e as com um sentido de unidade subjacente. A monarquia católica providenciava uma
torres neoclássicas; a sua estátua equestre de Carlos IV, na Cidade do México, é base de identidade cultural às índias espanholas.
considerada uma obra-prima no género. Um aluno crioulo de Tolsá, Eduardo A independência da Espanha viria, então, a divorciar a maior parte da elite
Tresguerras, foi o responsável por muitos edifícios neoclássicos na cidade de . intelectual crioula da gente comum, e, por esse motivo, a questão da identidade
cultural tornar-se-ia uma preocupação central para os escritores e os intelectuais
Góngora, Studies in the Colonial History ofSpanish America, p. 183. das novas nações. Simplesmente, e nisso consistia a ironia, os modernizadores

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA AS ÍNDIAS ESPANHOLAS

liberais viriam a denegrir a Igreja e a atacai" os seus privilégios, quando sempre A relativa submissão das elites americanas demonstra, talvez, o verdadeiro
fora a Igreja a incentivar uma cultura genuinamente popular nas índias, uma carácter colonial das índias. Os domínios europeus da monarquia católica possu-
cultura que pudesse sustentar o tipo de solidariedade social reclamado pelos íam uma identidade à parte, anterior ao estabelecimento da autoridade espa-
edificadores dos Estados independentes. Com o passar do tempo, o grande liber- nhola; Holandeses, Portugueses, Cataiães e outros tinham tradições e fontes de
tador Simón Bolívar ver-se-ia cruelmente dececionado com a falta de unidade legitimidade alternativas que podiam ser invocadas contra a Espanha para justi-
nos territórios que ajudara a libertar, e o seu projeto de uma federação pan- ficar a rebelião. Mas o Estado imperial na América era a criação única da monar-
-americana assente numa herança hispânica comum cairia por terra. No que dizia quia católica, e os crioulos, independentemente das suas frustrações, não tinham
respeito à vanguarda intelectual das elites brancas, a independência talvez tenha outra fonte de autoridade legítima que não a do rei espanhol. Agir contra o rei
aberto caminho para a modernidade e o esclarecimento, mas para as massas de seria dar um passo para um vazio constitucional. Poucos crioulos, se é que
índios e hispano-americanos representou, antes, um salto no escuro. alguns, estavam preparados para levar o seu descontentamento tão longe. Até
porque, em última análise, as índias sofriam de um duplo colonialismo: a desi-
gualdade entre crioulos e espanhóis nada era quando comparada com a subordi-
O Colonialismo Patriarcal da Monarquia Católica nação de índios e indivíduos de cor aos próprios crioulos. Qualquer ataque direto
à monarquia corria o risco de fazer ruir o complexo edifício ideológico que
As índias espanholas eram, como vimos, territórios heterogéneos e assolados impedia que o duplo colonialismo das índias se desmoronasse num caos san-
por conflitos; estavam fragmentadas em numerosas regiões, na sua maioria iso- grento.
ladas, e divididas de formas diversas entre hispânicos e índios, brancos e não- Os crioulos aceitaram claramente o pacto colonial durante cerca de três sécu-
-brancos, crioulos e peninsulares. Além disso, as oligarquias crioulas constituíam los. E esse pacto tinha uma força peculiar, porque apresentava a relação colonial
uma classe dirigente frustrada. Se a monarquia espanhola não se tivesse revelado num molde patriarcal familiar: os crioulos ofereciam com lealdade o seu tributo
tão impotente e frouxa no século xvn, teriam estas elites tolerado o governo de prata ao rei espanhol, em troca da autoridade unificadora que ele lhes conce-
imperial? Vários indícios sugerem que os crioulos estavam muitas vezes a fervi- dia graciosamente, na forma de proteção, nos seus territórios americanos, que de
lhar de ressentimento contra a Espanha. E, no entanto, o seu descontentamento outro modo estariam fragmentados e racialmente divididos. Foi só na primeira
nunca evoluiu para urna rebelião séria. Em vários momentos do século xvn, e década do século XLX, quando forças externas destruíram, imprevisivelmente,
perto do fim do século xvui, houve conspirações e tumultos contra alegados abu- essa autoridade real na própria Península, que o colonialismo patriarcal deixou
sos de determinados vice-reis, mas não se registaram propostas declaradas com de poder funcionar como até então, e que os desafortunados clientes americanos
vista à independência, nem desafios diretos à autoridade da Coroa enquanto tal. do monarca católico se viram finalmente lançados no vazio a que tinham resis-
Nem mesmo nos anos 40 do século xvn, quando a monarquia imperial vaci- tido durante tanto tempo.
lava, devido a múltiplos ataques internos e externos, as elites crioulas agiram.
A maioria dos outros domínios do império ergueu-se contra a monarquia
espanhola. Os Holandeses, claro, estavam em rebelião havia cerca de 70 anos.
Os Catalães, os Portugueses, os Sicilianos e os Napolitanos revoltaram-se em
meados do século. Até o duque de Medina-Sidónia, na Andaluzia, desafiou
abertamente o rei espanhol. Mas os crioulos permaneceram, aparentemente,
leais. É certo que, em 1642, Dom Guillén de Lampart, um irlandês estabelecido
na Cidade do México, ao saber das revoltas dos Portugueses e dos Catalães,
concebeu um plano para a independência da Nova Espanha, esperando obter
vantagens do ressentimento crioulo contra as imposições fiscais da Coroa. Mas
a conspiração não deu frutos, e é pouco provável que tivesse obtido grande
apoio, se tivesse sido levada por diante. Isto porque a típica reação crioula a
medidas populares era criticar, e talvez até conspirar contra o vice-rei, mas nunca
avançar abertamente contra o rei.

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BRASIL COLONIAL, c. 1700

OCEANO ATLÂNTICO

Nata!
IO G R A N D E
O NORTE 1598
Paraíba
^ P A R A Í B A 1582 Capítulo 5

O Brasil Colonial

Escravos importados
Descoberta e Colonização
_ ._ da África Ocidental
Salvador (Bahia)
Sede de Governo (1540), depois No decorrer do século xv, Portugal estivera bem adiante de Castela na
B A H I A 1534 } Govemo-Geral (1578) do Brasil
sua expansão ultramarina. Se Castela estava a colonizar Espafíola e a explorar
mia estabelecida mas outras ilhas das Caraíbas, os Portugueses tinham contornado o cabo da Boa
não donatária residente.
Absorvida pela Bahia Esperança e estabeleciam entrepostos ao longo da costa oriental de África. Em
1498, Vasco da Gama chegou à índia, e a partir daí os Portugueses estenderiam
o seu império comercial até Ceilão, Malaca e à colónia de Macau, na China
continental.
Esta lucrativa rede de enclaves comerciais em dois continentes absorveria os
interesses dos Portugueses durante o século seguinte, aproximadamente, mas no
ano de 1500 uma expedição liderada por Pedro Álvares Cabral, que se dirigia
para a índia, no seguimento da viagem histórica de Vasco da Gama, afastou-se
demasiado da sua rota e, a 22 de Abril, avistou por acaso uma costa desconhecida
que ficava muito a ocidente de África. Esta descoberta deu aos Portugueses um
ponto de apoio no Novo Mundo, embora na altura lhes fosse impossível saber
que tinham chegado ao mesmo continente que os Espanhóis. Na verdade, nas
As datas indicam uma donatária residente ou colonização efetiva
duas ou três décadas seguintes, nenhuma das nações ibéricas suspeitou da liga-
Fronteiras entre jurisdições (aproximadas)
Limite da ocupação holandesa (1630-54) ção entre as suas descobertas no hemisfério ocidental: os Espanhóis, tanto
Áreas de plantação de açúcar colonizadas (desde meados do séc. xvi)
Áreas de extração de ouro quanto se sabia, tinham encontrado, havia poucos anos, algumas ilhas no Atlân-
Diamantes e pedras preciosas
Incursões de bandeirantes paulistas e outros caçadores de escravos
tico Ocidental, e os Portugueses convenceram-se de que tinham desembar-
cado numa ilha muito mais a sul, à qual deram, inicialmente, o nome de «Ilha de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

Vera Cruz». Explorações marítimas posteriores revelariam que estes territórios Franceses e as empresas comerciais não prosperaram. Mais uma vez, a Coroa
constituíam, na realidade, parte de um vastíssimo novo continente. teve de intervir para garantir o controlo sobre o Brasil, desta vez criando a figura
Em 1501 e em 1503-1504 foram enviadas outras expedições, incumbidas de do governador-geral, que tinha por função supervisionar as capitanias. Em 1549,
explorar e de avaliar o potencial da nova descoberta para o comércio. O único bem Tomé de Sousa foi enviado, na qualidade de governador-geral, para a capitania
que despertou o interesse dos Portugueses foi uma espécie de madeira corante deserta da Bahia, e estabeleceu-se em Salvador, que se tornou, para todos os
conhecida como «pau-brasil», e foram criados alguns pequenos postos comer- efeitos, a primeira capital do Brasil. Acompanharam-no seis padres jesuítas, que
ciais, semelhantes aos da costa africana, para reunir e exportar a madeira. Durante inauguraram a poderosa presença missionária e educativa que esta ordem teria
os 30 anos seguintes, Portugal concentrou-se na índia e no Extremo Oriente, dis- em todo o Brasil.
pensando pouca atenção à sua modesta colónia no ocidente, que foi colonizada por Uma das principais causas do fracasso das capitanias-donatárias foi a difi-
pequenos mercadores, réprobos e marginais comuns conhecidos como «degreda- culdade de recrutar mão de obra índia para a emergente indústria do açúcar.
dos», indivíduos banidos de Portugal para partes remotas do império. Relativa- Atividade bastante mais rentável do que o comércio do pau-brasil, o cultivo de
mente livres de autoridade política nos primeiros anos de colonização do Brasil, açúcar poderia, assim se esperava, fortalecer a presença portuguesa no Brasil,
muitos desses degredados conseguiram ser aceites por tribos índias: aprenderam atraindo muitos colonos. Por outro lado, os Portugueses estavam bem familiari-
as línguas nativas, tomaram filhas de chefes para mulheres e concubinas, e tiveram zados com esta atividade, que desenvolviam nas suas plantações dos Açores, da
uma numerosa prole de sangue misto; entre estes descendentes, João Ramalho, em Madeira e das ilhas de Cabo Verde. Mas o problema residia no facto de os índios,
São Vicente, e Caramurú da Bahia tornaram-se lendários, tendo sido romantizados que até então se tinham mostrado satisfeitos em trocar pau-brasil por outros
como os precursores de um novo tipo híbrido - os primeiros brasileiros. géneros com os colonos, colaborando inclusive no corte e no transporte de árvo-
Mas o comércio do pau-brasil atraiu a atenção dos Franceses, que começa- res, não conseguirem, como caçadores-recoletores, adaptar-se ao esgotante ritmo
ram a apoderar-se dos navios portugueses e a lidar diretamente com tribos índias de trabalho de uma economia de plantação.
ao longo da costa. Havia também o perigo de os Franceses estabelecerem postos No entender dos Portugueses, a relutância dos índios em trabalhar devia-se
comerciais no litoral que rivalizassem com os portugueses. Quando a França à preguiça, e, tentando salvar a indústria do açúcar, começaram a escravizar
proclamou o direito de comerciar em qualquer parte do Brasil que não estivesse nativos. A escravidão era já comum entre os índios, que atacavam tribos rivais e
efetivamente ocupada por Portugal, a Coroa viu-se obrigada a levar a ameaça a capturavam indivíduos para sacrifícios rituais e práticas de canibalismo. Mas a
sério e a natureza da presença portuguesa teve de mudar: as pequenas feitorias conduta dos Portugueses tinha motivações comerciais e não conhecia limites,
ao estilo africano deram lugar à colonização extensa que fora levada a cabo nos pelo que originou o corte de relações com as tribos nativas. Os índios começa-
Açores e na Madeira. Em 1530, Martim Afonso de Sousa foi enviado com cerca ram, então, a atacar as povoações dos brancos, ameaçando o desenvolvimento
de 400 homens para fundar uma colónia real em São Vicente, perto da atual económico das colónias portuguesas.
cidade de Santos. A chegada dos jesuítas assinalou a determinação da Coroa portuguesa em
A ocupação de toda a faixa costeira estava, todavia, para além dos recursos instituir uma política coerente no Brasil. Os jesuítas foram enviados para estabi-
da Coroa, que tentou, por esse motivo, mobilizar interesses privados que prote- lizar e regular as relações entre índios e europeus. O seu objetivo era converter
gessem os seus domínios no Novo Mundo. O Brasil foi dividido em 12 territórios os índios ao cristianismo e aos costumes europeus, educando-os em aldeias
[capitanias] e entregue a capitães-donatários, escolhidos pela sua lealdade à especialmente concebidas para o efeito, que seguiam o modelo das congregacio-
Coroa. Estes capitães foram investidos de amplos poderes: direito hereditário ao nes dos missionários da América espanhola. Os jesuítas não tardaram, no
território; a autoridade para fazer concessões de terra, as chamadas sesmarias, a entanto, a deparar com a oposição dos colonos, que não queriam ver o seu acesso
colonos; jurisdição civil e criminal sobre os habitantes; o privilégio de cobrar à mão de obra escrava impedido pelos missionários. O conflito entre jesuítas e
certos impostos e de atribuir licenças de comércio e indústria. A Coroa reteve, no colonos viria a tornar-se uma característica permanente e muito perturbadora da
entanto, a sua prerrogativa de soberania natural sobre o Brasil no seu todo, esta- vida colonial no Brasil.
belecendo os direitos constitucionais dos colonos em relação ao capitão-donatá- Os jesuítas também enfrentarem a oposição do clero secular, que, de um
rio e reservando para si o direito de taxar as principais atividades comerciais. t modo geral, partilhava a perspetiva de que os índios eram selvagens e que era
À exceção de Pernambuco, as capitanias-donatárias falharam enquanto ini- legítimo fazê-los cativos. Em 1554, a fricção entre os jesuítas e o primeiro bispo
ciativas de colonização. Foram hostilizadas por tribos índias, não detiveram os do Brasil, Fernandes Sardanha, obrigou os missionários a abandonar a Bahia e a

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

estabelecer-se na capitania de São Vicente; fundaram uma aldeia em Piratininga, correta não era com o México ou o Peru, mas com a experiência dos Espanhóis
onde mais tarde viria a erguer-se a cidade de São Paulo. O pleno desenvolvi- entre os Aruaques e os Caribes das ilhas Caraíbas.
mento do sistema de aldeias só foi possível após a substituição de Sardanha e a Ainda assim, por uma combinação de princípios e conveniências, a Coroa
nomeação, em 1557, de um novo governador, Mem de Sá, que estava mais em favoreceu uma política missionária de evangelização. A evangelização, reforçaria
sintonia com os objetivos dos missionários. o seu direito ao Brasil, tal como fortalecera a reivindicação da Espanha ao
Decorridos aproximadamente dez anos da chegada do primeiro governador- México e ao Peru - em qualquer dos casos, converter os nativos era uma prática
-geral e dos primeiros missionários, a situação no Brasil continuava instável. estabelecida na expansão ultramarina ibérica. A política de concentrar os índios
Como se tal não bastasse, a década de 50 assistiu a nova ameaça dos Franceses em aldeias e de lhes incutir hábitos sedentários contribuiria também, significati-
contra a posição da Coroa portuguesa no Novo Mundo. Uma expedição de cerca vamente, para a pacificação das colónias. Finalmente, era importante para o bom
de 600 franceses, maioritariamente protestantes, estabeleceu uma colónia, cha- governo da sociedade colonial - especialmente no que tocava às relações entre
mada France Antarctique, na Baía de Guanabara, numa região não colonizada colonos e nativos — que os direitos dos nativos estivessem definidos; e a questão,
pelos Portugueses. Esta séria ameaça aos interesses portugueses exigiu uma como sucedeu na América espanhola, estava inevitavelmente ligada ao problema
resposta determinada, e da Bahia foram enviadas várias expedições até os Fran- da escravatura.
ceses serem finalmente expulsos do Brasil em 1567. No lugar deixado pelos A este respeito, a analogia com a experiência dos vizinhos ibéricos em
Franceses foi fundada a colónia do Rio de Janeiro, tendo sido criada uma capi- Espanola é a mais relevante. À semelhança dos índios das ilhas das Caraíbas, as
tania real para proteger a região de novas incursões. tribos brasileiras não tinham a tradição de trabalhar para senhores ou de executar
Daí em diante, os Portugueses dominaram o Brasil, mas a ameaça de rivais tarefas rotineiras. Assim, os colonos ibéricos só podiam satisfazer a sua necessi-
europeus não desapareceu por completo. Unido à Espanha, sob Filipe II, desde dade de mão de obra recorrendo à escravatura. Nas quatro ou cinco décadas em
1580, Portugal teria as suas posses imperiais na mira dos Holandeses. Em 1630, que a Coroa «negligenciara» o Brasil, os colonos tinham tido muito tempo para
os Holandeses ocuparam Pernambuco - uma das regiões de cultivo de açúcar desenvolver as técnicas e o conhecimento necessários à caça de escravos na
mais ricas do Nordeste brasileiro -, e por pouco não se apoderaram de todo o floresta - os índios robustos eram bens preciosos, e podiam ser vendidos a bons
comércio atlântico de Portugal ao conquistarem a Angola portuguesa em 1641. preços, no mercado de mão de obra, para a economia de plantação.
Mas os Portugueses contra-atacaram, recuperando Angola em 1648-1649, e Assim, quando a Coroa enviou os jesuítas, na década de 50, para converter os
depois de muitos anos de dura resistência no Brasil acabaram por expulsar os índios, o conflito com os colonos foi inevitável. O modelo jesuíta de relações com
Holandeses em 1654. Estes últimos levaram, todavia, com eles as técnicas adqui- os índios era tutelar e paternalista - por motivos humanitários, se não por outros,
ridas à frente das fábricas e plantações de açúcar, e fundaram uma indústria rival os nativos tinham de ser protegidos da exploração. Mas a bem-intencionada ini-
nas Caraíbas, que viria a prejudicar o Brasil. ciativa missionária, assente no sistema de aldeias, era também uma forma de intro-
missão na sociedade índia, e uma forma de reorganização da mesma. Os índios, à
semelhança de crianças, ficavam entregues aos padres jesuítas e eram transforma-
A Soberania e a Questão da Escravatura dos numa força de trabalho submissa e diligente nos campos e plantações alta-
mente rentáveis das missões. Não é de admirar que os colonos invejassem a
As tentativas de potências europeias rivais de ocuparem o Brasil tinham de riqueza das aldeias jesuítas e que se indignassem: a seu ver, os jesuítas impediam-
ser contrariadas, em parte, pela afirmação de um direito legítimo sobre a terra. -nos de obter a mão de obra necessária ao cultivo das suas próprias plantações.
A Coroa dava-se por satisfeita por fundamentar a sua reivindicação na desco- Assim, no Brasil, dada a natureza da economia dos colonos, a escravatura era
berta e na ocupação prévias do território. Relativamente à soberania índia, os uma necessidade. Mas uma vez que a escravização de bárbaros não era vista como
Portugueses não se depararam com os obstáculos jurídicos e morais que os Espa- um pecado, a escravidão dos índios não foi um tema tão polémico como nas
nhóis enfrentaram no México ou no Peru. Os índios do Brasil não pertenciam a índias espanholas, onde a questão do barbarismo dos índios era bem mais difícil
sociedades sedentárias avançadas, com formas de governo que os europeus do de resolver. Ainda assim, a crueldade da caça de escravos gerou problemas morais
século xvi pudessem considerar «civilizadas». Nómadas e canibais, os caçado- entre o clero e os missionários, e a Coroa acabou por se ver obrigada a intervir.
res-recoletores do Brasil foram classificados como selvagens, que por isso O que gerou o debate em torno da questão da escravatura no Brasil foi o apa-
não podiam exercer uma verdadeira soberania natural sobre a terra. A analogia recimento de doenças europeias. A primeira epidemia atingiu a Bahia em 1562 e

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

seguiu-se-lhe um surto mais generalizado no ano seguinte. O número de mortos bem possível que houvesse entre 13 000 e 15 000 escravos negros no Brasil, o
foi assombroso: estima-se que terá perecido entre um terço e metade da popula- que corresponderia a cerca de 70 % da mão de obra nas plantações. Estima-se
ção índia nas zonas costeiras sob domínio português. Desprovidos de imunidade que a população branca do Brasil, por volta de 1585, fosse de aproximadamente
contra microrganismos europeus, os nativos sucumbiram a doenças como o 29 000. Durante a primeira metade do século xvn, estavam a ser importados 4000
sarampo, a varíola, a tuberculose e outras infeções virais. A fome seguiu-se à escravos por ano; entre 1650 e 1680, este número subiu para cerca de 8000, após
doença, e os índios, aterrorizados, com as suas sociedades abandonadas ao caos, o que começou a diminuir. No século xvm, o volume das importações voltou a
começaram a vender-se a colonos em troca de comida e abrigo. crescer, quando a indústria do ouro determinou um aumento da procura global
A crise exigia alguma regulação legal para as relações entre nativos e bran- - só a Bahia recebia entre 5000 e 8000 escravos por ano. No Nordeste, o total de
cos. Administradores da Coroa, juristas, bispos e missionários debateram o pro- escravos correspondia a cerca de metade da população - mais de dois terços nas
blema e em 1570 o rei emitiu finalmente um decreto, declarando que os índios zonas das plantações de açúcar. Importava-se tantos escravos, em parte, porque
nasciam livres e que só podiam ser escravizados no caso de praticarem caniba- a taxa de mortalidade da população escrava negra era muito elevada e porque a
lismo ou de serem feitos prisioneiros numa «guerra justa». A prática comum de sua taxa de procriação caía constantemente abaixo do nível de reposição - um
«resgate» - mediante a qual índios capturados por tribos rivais eram «libertados» indício da profunda desmoralização e do tremendo esforço físico a que os
por caçadores de escravos e postos a trabalhar em plantações - foi declarada escravos estavam sujeitos. Segundo os cálculos de Philip Curtin, no decurso do
ilegal, mas a medida provocou tamanha indignação entre os colonos que o século xvii o Brasil era responsável por 41,8 % do total de escravos transportados
decreto teve de ser revogado em 1574. para a América (*).
Na prática, a legislação régia relativa à escravização de índios foi ignorada A chegada de africanos em números tão elevados conferiria uma nova
quase por completo pelos Portugueses no Brasil. A caça de escravos índios per- dimensão demográfica às colónias portuguesas no Novo Mundo. Visto que uma
sistiria durante todo o período colonial. Contudo, a natureza da escravatura no grande parte da população se compunha de indivíduos de cor, a mistura de raças
Brasil sofreu uma mudança lenta mas que se revelaria decisiva a partir de mea- não tardou a gerar, como sucedera nas índias espanholas, muitas pessoas de
dos do século xvi. Na região litoral, havia cada vez menos índios: as hostilidades etnicidade intermédia - mulatos ou «pardos» (branco-negro), «mamelucos» ou
entre colonos e nativos intensificavam-se, as tribos refugiavam-se no interior; ao «caboclos» (branco-índio) e «cafusos» (índio-negro). O Brasil tornou-se rapida-
mesmo tempo, as doenças causavam uma elevada taxa de mortalidade. A mão de mente uma sociedade extremamente atenta à cor da pele, onde os traços raciais
obra disponível sofreu uma redução drástica, o que atiçou a concorrência entre eram um elemento importante para a categorização social e para a identificação
missionários e agricultores pelo trabalho índio. cultural. E um facto irrefutável que a economia do açúcar, tal como se formou
Uma solução óbvia residia na importação de escravos africanos para traba- em meados do século xvi, fez da escravatura um elemento fundador da sociedade
lhar nas plantações brasileiras. Havia um século que os Portugueses mantinham brasileira.
uma operação de comércio de escravos ao longo da costa africana, e eram A importação de escravos africanos não pôs fim ao aprisionamento de
esplêndidos marinheiros, pelo que não havia impedimento em estender esse índios. O Brasil fora uma sociedade esclavagista desde a sua origem; a indústria
comércio ao Novo Mundo. Embora os escravos africanos fossem mais caros do do açúcar apenas amplificou a escala desta prática e introduziu uma nova popu-
que os índios, havia duas vantagens significativas para os proprietários: no que lação vinda de outro continente. A importação de africanos veio simplesmente
tocava a infeções virais, os africanos tinham as mesmas imunidades dos euro- acentuar a deslocação de índios para as margens da colonização, pressionados
peus, e constava que se adaptavam melhor ao trabalho árduo exigido pelas pela doença e pela perseguição. Encontramos, assim, uma clara divergência no
plantações. A procura de mão de obra para a florescente indústria do açúcar no desenvolvimento do Brasil, que originou dois tipos de sociedade muito diferen-
Brasil levaria a uma enorme expansão do comércio de escravos africanos (e esta tes. Em primeiro lugar, o «Brasil» propriamente dito, onde a soberania do rei de
procura viria ainda a intensificar-se algumas décadas mais tarde, nos anos 80, Portugal era totalmente reconhecida e onde um aparelho de Estado e da Igreja
quando os agricultores das ilhas e das regiões costeiras das índias espanholas governava uma sociedade organizada de cidades t plantações onde coexistiam
começaram a tentar substituir a mão de obra índia que escasseava). brancos, negros e pessoas de raça mista. Em finais do século xvi e durante a
Não se sabe ao certo quantos escravos foram importados pelo Brasil, e os
cálculos de que dispomos continuam a ser objeto de discussão, mas não há
(*) The Atlantic Slave Trade: A Census (University of Wisconsin Press: Madison, 1969),
dúvida de que se trata de números muito elevados. Em finais do século xvi, é quadro 34, p. 119.

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HISTORIA DA AMERICA LATINA O BRASIL COLONIAL

maior parte do século xvn, esta sociedade «civilizada» concentrou-se nos encla- portugueses e indivíduos de sangue misto que não conseguiam estabelecer-se
ves das plantações de açúcar nas costas do Nordeste e em certas regiões secun- adequadamente na costa. O interior seria sempre apelativo, porque estava repleto
dárias em tomo das colónias ainda bastante primitivas de São Paulo e do Rio de de índios que podiam ser feitos cativos e porque encerrava a promessa de metais
Janeiro, onde se cultivava algum açúcar, além de outras espécies. preciosos para descobrir.
A outra sociedade localizava-se na periferia das florestas - em extensões de Até ao século xvm, os escravos seriam a principal mercadoria da sociedade
território marginais, mal definidas, onde o povoamento era esparso e a lei de de fronteira brasileira. A caça de escravos passou a ser como que uma especiali-
pouco valia. Na realidade, a sobrevivência económica destas zonas de fronteira dade da região de São Paulo. Tornou-se uma atividade altamente organizada,
assentava em larga medida na pilhagem do interior, em busca do que lá pudesse, envolvendo muitas vezes expedições de vários milhares de homens equipados
existir. Era nestas regiões fronteiriças que a interação de portugueses e tribos com munições, algemas e mantimentos, incluindo animais domésticos, para sus-
índias nómadas prosseguia em toda a sua bárbara ferocidade. tento durante a viagem. Estas companhias de comerciantes de escravos eram
Os índios foram gradualmente desaparecendo da sociedade do Brasil «civi- conhecidas como «bandeiras», e partiam para a floresta ou para a selva por perí-
lizado». Embora se encontrassem alguns, escravos, nas plantações, até por volta odos de vários anos, com o objetivo de capturar índios para posterior venda a
de 1730, a presença demográfica do índio foi-se tornando cada vez menos per- donos de plantações e a fazendeiros das capitanias de São Paulo e do Rio de
cetível. Em meados do século xvin, quando o Iluminismo europeu fizera do Janeiro, e possivelmente até mais longe. Os «bandeirantes» tornaram-se parti-
«nobre selvagem» uma noção sofisticada, o índio tinha-se tornado uma figura cularmente ativos no princípio do século xvn, quando os Portugueses perderam
exótica para a maioria dos brasileiros. Ironicamente, isto permitiu-lhe ser ideali- Angola para os Holandeses e as plantações brasileiras ficaram excluídas do
zado como um protótipo cultural, de tal modo que, após a independência, os comércio de escravos africano.
nacionalistas românticos incitariam as classes médias urbanas a aprenderem as Quando Portugal recuperou Angola, em 1648, a procura de escravos índios
suas línguas indígenas, para se tornarem mais plenamente «brasileiros». começou a decair, e os bandeirantes tiveram de procurar outras fontes de riqueza,
partindo para o interior em busca de minério ou, possivelmente, de rotas de
comércio para as minas de prata de Potosí, que os Espanhóis controlavam. Em
A Fronteira em Movimento: Sertão e Selva 1648-51, o célebre Raposo Tavares liderou uma bandeira desde São Paulo, atra-
vés do Chaco do Paraguai, até às faldas dos Andes, voltando-se depois para norte
A fronteira teria um papel muito mais importante no desenvolvimento do e deparando-se com a bacia amazónica, de onde seguiu o curso do grande rio até
Brasil do que no das índias espanholas. A América Central e o Peru, com os seus ao mar. Os homens de São Paulo tornaram-se tão famosos pelas suas técnicas de
metais preciosos e a sua mão de obra índia sedentária, funcionariam como pólos perseguição e combate aos índios que os governadores das capitanias do Nor-
de atração idênticos para os colonos espanhóis. As grandes explorações aventu- deste recorriam muitas vezes aos seus serviços na luta contra as tribos índias
reiras dos Espanhóis no século xvi foram motivadas pelo desejo de encontrar agressivas do sertão, com a finalidade de libertar terras para a criação de gado.
novos Méxicos e novos Perus. Na América do Sul, foram os Espanhóis que Seriam os bandeirantes de São Paulo a fazer as primeiras descobertas de ouro em
descobriram os grandes sistemas fluviais nas regiões remotas em torno do rio da Minas Gerais, na última década do século xvn, e depois em Goiás e em Mato
Prata, e foram eles que primeiro se aventuraram pelas florestas tropicais do inte- Grosso. Estas expedições em territórios por desbravar serviram para estender
rior, explorando a Amazónia e a sua bacia. Contudo, quando estas demandas de a área controlada pelos Portugueses até zonas remotas da América do Sul.
El Dorado fracassaram, os Espanhóis, de um modo geral, perderam o interesses À medida que os bandeirantes penetravam o sertão e encontravam recursos que
nas zonas fronteiriças, e concentraram-se no desenvolvimento das suas duas valia pena explorar, iam surgindo colónias rudimentares e a fronteira brasileira
principais áreas de colonização, e em algumas outras regiões onde havia reservas avançava um pouco mais para o coração do continente.
de mão de obra nativa sedentária. Os jesuítas, por sua vez, partiam também em busca de índios selvagens para
O caso do Brasil foi muito diferente. No século xvi, os Portugueses não converter e reduzir à vida «civilizada» das suas missões. Como as epidemias
encontraram nada de remotamente comparável ao Peru e depois de terem esta- dizimavam as tribos das regiões costeiras, os padres avançavam para o interior e
belecido plantações de açúcar numa série de enclaves ao longo da costa atlântica fundavam novas estações missionárias em lugares remotos. Na região de São
não tinham mais para onde se voltar senão para aquele vasto e misterioso inte- Paulo, onde haviam estabelecido a sua primeira base, em Piratininga, os jesuítas
rior. Era o sertão que oferecia um amplo horizonte de possibilidades àqueles ergueram várias aldeias missionárias, mas depararam com a concorrência dos

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colonos de São Paulo, que reivindicavam o direito a uma parte da mão de obra promulgou, em 1655, um decreto que proibia a escravização de índios. Mas
índia. Os conflitos constantes entre paulistas e jesuítas resultaram por duas vezes embora os jesuítas tenham conseguido a conversão de muitas tribos, que se fixa-
na expulsão dos missionários daquela região no século XVH. ram voluntariamente na aldeias missionárias, as suas promessas de tratamento
Porém, os confrontos mais graves que envolveram missionários ocorreram humano dos índios foram minadas pelas epidemias de doenças europeias - que
nas bacias dos rios Paraguai e Paraná. Esta área tornou-se uma das mais turbu- causaram a morte de muitos nativos - e pela perseguição levada a cabo por colo-
lentas das regiões fronteiriças, devido às frequentes disputas territoriais entre nos brasileiros, ávidos de mão de obra.
Portugal e Espanha. As tensões geopolíticas foram agravadas pelas missões As últimas décadas do século xvn testemunharam muitos conflitos entre
fundadas por jesuítas espanhóis entre os índios Guarani, numa zona a meio cami- colonos e jesuítas pela obtenção de mão de obra índia. Em 1661 e em 1684, os
nho entre São Paulo, no Brasil, e Asunción, no Paraguai. Os Guarani mostraram- jesuítas foram expulsos das suas propriedades por colonos enfurecidos. Final-
-se recetivos à conversão e eram trabalhadores dóceis, pelo que os jesuítas con- mente, chegou-se a um compromisso, segundo o qual os índios das missões
seguiram criar grandes plantações altamente produtivas, de onde obtinham podiam trabalhar para colonos brasileiros por determinados períodos de tempo e
açúcar, chá mate e outros produtos. Os bandeirantes de São Paulo não resistiam por salários acordados (o que não se verificava na prática). Apesar dos vários
a tirar proveito da grande reserva de mão de obra guarani que os jesuítas espa- decretos reais que pretendiam regulamentar o exercício da escravatura, as expe-
nhóis haviam tão convenientemente «civilizado» nas suas plantações. As bandei- dições das tropas de resgate na bacia do Amazonas perdurariam até ao fim do
ras paulistas começaram a atacar as missões jesuítas, tomando índios convertidos período colonial.
como escravos. Os jesuítas espanhóis deslocaram as suas missões para sul e para À semelhança do que os bandeirantes de São Paulo haviam feito no Sul, os
oeste, e até armaram os seus índios para combater os paulistas (algo que fizeram caçadores de escravos do Norte empurraram a fronteira do Brasil muito para lá
com sucesso, depois de uma autêntica guerra travada em 1641), mas os bandei- da linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas para demarcar os territórios das
rantes prosseguiram com as suas ofensivas, acabando por contribuir para a defi- duas monarquias ibéricas. Em 1637, uma expedição chefiada por Pedro Teixeira
nição das fronteiras sul e sudoeste do Brasil. subiu o Amazonas e deslocou a fronteira noroeste do Brasil cerca de 2400 quiló-
O outro grande território fronteiriço do Brasil colonial foi a região equatorial metros para oeste da linha do Tratado, deixando-a aproximadamente no ponto
do Norte, que abrangia o Maranhão e o Pará. Os caçadores de escravos percor- onde hoje se encontra. O rei de Espanha foi aconselhado por um dos seus agen-
reram o sertão do Maranhão e partindo da colónia de Belém do Pará, na foz do tes a proceder rapidamente ao povoamento da bacia do Amazonas, para evitar
Amazonas, avançaram para montante em busca de índios. Estas excursões eram que os Portugueses se apoderassem de vastas extensões atribuídas à Espanha.
conhecidas como «tropas de resgate» e eram levadas a cabo com frotas de Mas o soberano (que na altura era também o rei de Portugal) não agiu e a socie-
canoas, remadas por índios sob comando de escravos caboclos. As tropas explo- dade fronteiriça brasileira pôde avançar um pouco mais pela selva. Quando as
raram o Amazonas e seus afluentes, trazendo produtos das florestas, para além fronteiras do Brasil foram definidas pelo Tratado de Madrid, em 1750, as aldeias
de cargas humanas. As muitas tribos populosas das florestas tropicais sofreram missionárias jesuítas estabelecidas junto aos afluentes do Amazonas, no extremo
depredações terríveis às mãos destes caçadores de escravos de sangue misto: norte, contribuíram para a decisão de satisfazer a reivindicação de Portugal à
segundo o relato de um eclesiástico, três décadas após a chegada, em 1616, às maior parte dos territórios no centro da América do Sul.
regiões do Maranhão e do Pará, algumas centenas de colonos teriam causado a A divisão entre território de fronteira e sociedade civilizada ficaria profun-
morte a mais de dois milhões de índios da Amazónia. Em 1637, a capitania, de damente enraizada na mentalidade dos Brasileiros. A fronteira era vasta e mal
vastos territórios (atual Amapá), foi entregue a um famoso explorador de índios, definida, um lugar de onde a região selvagem podia ser pilhada numa impuni-
Bento Maciel, que os usou como terreno particular de caça de mão de obra dade quase completa. Aí, a cultura europeia foi permeada por costumes indíge-
nativa. nas: colonos brancos e de sangue misto da periferia de São Paulo e do norte
Os territórios fronteiriços do Maranhão e do Pará tornaram-se domínios equatorial adotaram hábitos e costumes índios - dormiam em camas de rede,
importantes para as missões dos jesuítas, que chegaram em 1653, sob a liderança comiam mandioca, tinham concubinas e falavam a «língua franca» proveniente
do jesuíta brasileiro Padre António Vieira. Vieira ganhara fama no mundo luso- do tupi. Para além do alcance do Estado, a fronteira criava um ambiente permis-
-hispânico como pregador, diplomata e confessor do rei de Portugal. Denunciou* sivo para combatentes de índios, bandidos, escravos foragidos e milhares de
imediatamente a caça de escravos e instituiu um regime de aldeias administradas criminosos; se ali havia alguma ordem, era a da autoridade arbitrária de capitães
por jesuítas seguindo o modelo das criadas no Paraguai. A pedido de Vieira, o rei violentos e dos «poderosos do sertão», os rancheiros que controlavam as grandes

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manadas de gado nas planícies das regiões remotas. O Estado só tinha uma exis- Península. Os vários enclaves coloniais ao longo da costa atlântica mantinham
tência efetiva no outro Brasil, no Brasil civilizado. Porém, à medida que iam um contacto mais direto com Portugal do que entre eles, e o facto de o grosso da
estabelecendo uma economia estável, estas zonas de fronteira tendiam a desen- mão de obra não ser indígena mas consistir em escravos negros importados de
volver as normas daquela outra sociedade. África acentuava a noção de que Portugal tinha um direito intrínseco ao Brasil.
Assim, não se verificava entre a Coroa e os colonos o nível de tensão que carac-
terizava os domínios hispano-americanos.
Estado, Governo e Igreja Por outro lado, a Coroa portuguesa era menos intervencionista do que a
espanhola. Sendo o estatuto da população índia mais fácil de definir segundo os
A história do Brasil no século xvi mostra a determinação da Coroa portu- tradicionais critérios aristotélicos de barbarismo, a Coroa não precisava de se
guesa em conservar um território cuja posse devia ao acaso. A autoridade real esforçar para implementar a política inviável de proteger terras e comunidades
impôs-se gradualmente, em resposta a múltiplas ameaças vindas de potências índias administrando uma «república» indígena distinta da dos brancos, política
estrangeiras, da hostilidade índia e da instabilidade interna da colónia que se que poderia ter suscitado ressentimentos entre os brasileiros, como sucedeu entre
desenvolvia. O Estado que ali se formou era, em muitos aspetos, semelhante ao os crioulos hispano-americanos. Outro fator decisivo foi a inexistência de prata.
das índias espanholas, mas havia importantes diferenças, ocasionadas pelas cir- Numa época mercantilista, em que a posse de ouro ou prata era um indício sufi-
cunstâncias específicas da experiência brasileira. ciente de poder económico, a descoberta de prata no Brasil poderia ter levado a
Tal como nas índias espanholas, a Coroa proclamou a sua soberania natural Coroa a tentar exercer um controlo rígido sobre setores cruciais da economia de
e direitos patrimoniais sobre a terra, e a sua autoridade baseava-se num monopó- exportação, com todos os custos militares e burocráticos associados a tais medi-
lio de legitimidade sancionado pela Igreja Católica. Assim, apesar de ter confe- das. A relativamente reduzida interferência do Estado facilitou a relação entre o
rido amplos direitos de colonização e jurisdição a particulares na década de Portugal metropolitano e os donos de plantações, que constituíam a elite brasi-
30 do século xvi, a Coroa reservou para si a autoridade máxima sobre as capita- leira.
nias-donatárias e intervinha no seu governo quando necessário. Não se regista- Uma vez que o açúcar foi o principal bem produzido no Brasil até finais do
riam tentativas de retirar as capitanias originais de mãos privadas, mas um século XVH, Portugal pôde adotar um regime colonial flexível mais consentâneo
Estado mais centralizado foi gradualmente tomando forma, através da colocação com os recursos de um pequeno país já bem disperso entre as suas atividades em
de administradores da Coroa em capitanias vagas e à frente de territórios acaba- África, na índia e no Extremo Oriente. Ainda assim, a mão do Estado fez-se
dos de conquistar, e com o governador-geral da capitania real da Bahia a ser sentir na economia do Brasil. A Coroa geria um monopólio comercial baseado
investido do direito de supervisionar o governo de todas as capitanias do Brasil. no licenciamento de navios mercantes para o comércio de açúcar e de escravos;
Ainda assim, persistiria a tensão entre a autoridade privada dos capitães-donatá- mas as licenças acabavam por ser concedidas a navios de potências amigas e a
rios e a autoridade teoricamente abrangente do govemador-geral ao serviço da comerciantes de escravos particulares, por forma a reduzir a despesa de organi-
Coroa. zar e proteger os comboios de navios que partiam de Lisboa, em viagens que se
Considerado no seu todo, o Estado imperial português era muito mais unitá- mantiveram até meados do século xvm. A Coroa cobrava ainda uma série de
rio do que o espanhol. Em larga medida, isto era fruto do acaso: sendo caçadores- impostos sobre a importação e a exportação.
-recoletores, os índios do Brasil eram selvagens, segundo os critérios europeus O Brasil era, com efeito, administrado como se fosse uma projeção de Por-
contemporâneos. Havia toda uma série de vantagens jurídicas e políticas que tugal no outro lado do Atlântico; por princípio, os assuntos coloniais não eram
advinham deste estado de coisas. Os monarcas portugueses não se depararam tratados separadamente dos da metrópole. As questões de política geral eram
com o difícil problema de justificar o derrube violento dos soberanos nativos de decididas pelo rei, sob a orientação do Conselho de Estado. Uma série de outros
reinos civilizados. Uma vez que podia proclamar o seu direito ao Brasil sem conselhos tinha jurisdição sobre áreas mais especializadas: finanças, justiça,
referência a uma soberania nativa anterior, a Coroa portuguesa não teve de cons- assuntos eclesiásticos e religiosos. Em 1642, D. João IV criou o Conselho Ultra-
tituir as suas colónias no Brasil como reinos distintos de Portugal, enquanto as marino para discutir assuntos coloniais, mas a agenda deste conselho tinha fre-
índias espanholas eram, teoricamente, reinos separados da Espanha. Assim, o quentes sobreposições com as agendas dos restantes.
Brasil era encarado como uma mera extensão do território português e os seus Lisboa continuou a ser o foco administrativo das várias colónias transatlân-
habitantes consideravam-se tão súbditos da Coroa portuguesa quanto os da ticas e ao longo do século xvn registaram-se novas tentativas para consolidar o

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controlo da administração real sobre as várias capitanias, através do agrupa- cias particulares, ainda que para vantagem dos interesses estabelecidos. De igual
mento de territórios em unidades administrativas mais abrangentes. Em 1621, as modo, o impacto do poder real absoluto era difundido através das várias jurisdi-
colónias de Portugal na América foram divididas em dois Estados: o Estado do ções que se sobrepunham e que constituíam o governo imperial, e era atenuado
Maranhão, com um governador-geral em São Luís, que integrava algumas capi- também pelas tensões políticas que existiam entre a autoridade dos capitães-
tanias recém-estabelecidas nas regiões subpovoadas do Norte, e o Estado do -donatários e a do governador-geral.
Brasil, que tinha a sua capital em Salvador da Bahia e que se estendia para sul, Os poderes centralizantes do Estado faziam-se sentir com menos intensidade
até São Vicente, incluindo todas as antigas capitanias. Havia, no entanto, confli- nos negócios internos do Brasil do que nas índias espanholas. Isto é evidente
tos de jurisdição contínuos entre o governador-geral, na Bahia, e os capitães de pelo nível de autorregulação de que gozavam os conselhos municipais, designa-
centros importantes como Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. No começo dos «senados da câmara», que, à semelhança dos cabildos hispano-americanos,
do século xvm, estas três capitanias subiram de estatuto, passando a exercer existiam em todas as cidades importantes. A câmara compreendia até seis verea-
autoridade sobre territórios vizinhos. dores, um ou dois magistrados (juizes ordinários) e um procurador, que era res-
Esta concessão testemunhava a crescente importância económica das capita- ponsável pelos assuntos fiscais. Eram eleitos por um sufrágio limitado a «homens
nias do centro-sul relativamente às regiões bastante mais antigas de plantações bons», de posses e de sangue puro certificado. Este princípio eletivo manteve-se
de açúcar do Nordeste. Em meados do século, o centro de gravidade deslocara- até ao fim do século xvn, altura em que a presidência rotativa do senado foi
-se decisivamente para o sul, em virtude da descoberta de ouro e das persistentes substituída pela nomeação de um juiz externo da Coroa, o «juiz de fora», e pela
dispntas de fronteiras com a Espanha ao longo dos flancos sul e sudoeste do seleção dos outros membros do conselho de entre as figuras notáveis da região.
Brasil. Em 1763, a sede do governo real foi transferida de Salvador para o Rio Ainda assim, os membros dos conselhos municipais mudavam regularmente e os
de Janeiro. Finalmente, em 1774, a distinção entre os estados do Maranhão e do cargos nunca se tornaram hereditários, como aconteceu nas índias espanholas.
Brasil foi abolida, e todo o território passou a ser administrado a partir do Rio de Como tinham jurisdição sobre um vasto leque de assuntos relacionados com a
Janeiro. cobrança de impostos, as obras públicas, os contratos municipais e a lei e a
Durante a maior parte do século xvi, a administração da justiça era confiada ordem, as câmaras eram um fórum útil para os interesses políticos locais.
a um juiz da Coroa (o «ouvidor»), nomeado para cada capitania e diretamente A Igreja, enquanto instituição, pode ser considerada um braço do governo
responsável perante Lisboa, mas em 1549 os juizes passaram a estar sujeitos à imperial. Os monarcas portugueses gozavam de direitos de patronagem sobre
autoridade de um «ouvidor geral», estabelecido na Bahia, e em 1588 foram ainda os assuntos da Igreja, graças ao Padroado Real, que foi concedido pelo papa
subordinados aos juizes de um tribunal de instância superior, a Relação da Bahia, em 1551 e que lhes permitia nomear candidatos para cargos eclesiásticos no
que por sua vez ficou sob a jurisdição do supremo tribunal, em Lisboa. À seme- Brasil. Todas as questões relativas à organização da Igreja eram decididas em
lhança das audiências hispano-americanas, a Relação estava autorizada a lidar Lisboa, não em Roma, o que fortaleceu claramente a autoridade política da
com certas questões administrativas e políticas, sob a orientação do governador- Coroa. O Padroado Real foi conferido pelo papado em reconhecimento pela
-geral. Os assuntos de teor fiscal estavam a cargo dos funcionários do tesouro de especial responsabilidade da monarquia portuguesa pela propagação da fé no
cada capitania. Novo Mundo. A Igreja no Brasil foi, assim, nas suas origens, concebida como
As condições de serviço dos funcionários da Coroa de categoria mais ele- um empreendimento missionário, e as ordens religiosas - sobretudo os jesuítas,
vada eram idênticas às dos seus homólogos na América espanhola. Havia regu- mas também franciscanos, beneditinos, carmelitas e capuchinhos - dominaram,
lamentações destinadas a impedi-los de estabelecer laços com a sociedade local: em geral, a vida religiosa durante a maior parte do período colonial, incidindo as
não podiam servir nas suas terras de origem, nem envolver-se em negócios da suas atividades principalmente na conversão e instrução dos índios. O clero
região ou casar-se com mulheres locais. Estas regras não eram, de um modo secular foi introduzido numa fase posterior, tendo por objetivo servir as áreas
geral, observadas, pois era do interesse das oligarquias criar ligações com fun- onde se estabelecera uma sociedade portuguesa. Decorreria, contudo, ainda
cionários reais, para obterem favores ou gozarem de um tratamento especial. algum tempo até que as estruturas diocesanas criassem raízes - até 1676, a dio-
O suborno e a corrupção tornaram-se endémicos na burocracia imperial, apesar cese de Salvador, na Bahia, serviu todo o Brasil; foram criadas outras dioceses a
de a Coroa recorrer à «visita» e à residência para escrutinar a conduta dos seus # partir desse ano e durante o século xvra. Esta presença tão dispersa do clero
funcionários. Porém, como acontecia na América espanhola, a conivência entre secular significava que a disciplina religiosa era pouco rigorosa nas cidades e
administradores reais e elites locais tinha o efeito de ajustar as leis a circunstân- colónias brasileiras, especialmente nas regiões fronteiriças.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

A Igreja possuía ainda assim uma influência considerável em toda a socie- «enquanto os convertidos do catolicismo ao calvinismo eram tão raros como
dade. Nas cidades principais, as ordens religiosas dirigiam hospitais, escolas, galinhas com dentes» (*).
orfanatos e hospícios para pobres e doentes. As receitas provenientes do dízimo
e de donativos financiavam a aquisição de terra e propriedade, o que criava
emprego e também gerava capital, que era emprestado a mercadores e a agricul- A Economia
tores à taxa de juro fixa e reduzida de 6,25% . De uma forma mais indireta, a
Igreja exercia a sua influência através das irmandades religiosas para pessoas O Brasil foi a primeira colónia europeia nas Américas a fundar a sua eco-
laicas, as quais eram bastante populares em todas as classes e raças. Estas asso-, nomia na exportação de um produto dominante para a Europa, e este padrão
ciações autorreguladas prestavam serviços sociais aos seus membros. A mais manteve-se até meados do século xx. O crescimento da economia brasileira
famosa era a Santa Casa da Misericórdia, que tinha representações em Portugal no período colonial pode -ser dividido em três fases. Durante a maior parte do
e por todo o império. Os membros desta instituição usufruíam de estatuto social século xvi, a principal exportação foi o pau-brasil. Nas últimas duas décadas do
- ninguém com antepassados judeus ou de cor podia ser admitido, e fazia-se referido século, o pau-brasil foi suplantado pelo açúcar, e graças à expansão
distinção entre os membros abastados e outros de classe mais baixa, como arte- sistemática da indústria do açúcar, ao longo do século xvn, o Brasil deixou de ser
sãos e pequenos comerciantes. As irmandades para negros e pessoas de sangue uma colónia marginal para se tornar o mais importante território ultramarino da
misto funcionavam como uma importante fonte de solidariedade corporativa Coroa portuguesa.
para estes grupos oprimidos. Para além das suas atividades no âmbito da assis- Na última década do século xvn, a concorrência das plantações das Caraíbas
tência social, as irmandades organizavam festivais religiosos, onde os vários contribuiu para uma profunda crise na indústria do açúcar, que declinou na
grupos étnicos podiam expressar a sua cultura. (A prática sobrevive ainda hoje primeira parte do século seguinte. Contudo, a economia brasileira no seu todo
no contexto bastante profano do Carnaval do Rio de Janeiro, para o qual se pre- recuperou após a descoberta de ouro, em 1695, na região de Minas Gerais, no
param intrincados carros e desfiles pelas escolas de samba, em larga medida centro-sul do território. Embora o açúcar tenha continuado a ser a principal
formadas por negros e mulatos de diferentes bairros pobres.) exportação, o ouro seria o principal motor da economia brasileira até aos anos 60
Assim, não foi apenas o Padroado Real, mas também a presença tradicional, do século xvm, altura em que as receitas das exportações voltaram a cair e o ciclo
ainda que difusa, da própria Igreja na sociedade portuguesa que auxiliou consi- do ouro perdeu o seu ímpeto. O Estado implementou, então, reformas com vista
deravelmente a Coroa na preservação do Estado imperial. A Igreja funcionava a aumentar a produtividade geral, mas as medidas tomadas não tiveram grande
como uma força coesa em territórios dispersos cuja lealdade política teria, nou- sucesso a longo prazo. Em finais do século, o crescimento da procura de açúcar
tras circunstâncias, de ser assegurada por recursos que estavam muito além dos à escala mundial ajudou à recuperação da economia, assim como a diversifica-
meios financeiros da Coroa. Na verdade, grandes extensões do Brasil escapavam ção dos produtos exportados, entre os quais cacau, arroz, algodão e, cada vez
ao controlo dos administradores reais, mas a influência abrangente da religião na mais, café. Depois da independência, o café tornar-se-ia a principal exportação
cultura portuguesa encorajava pelo menos a aceitação nominal da soberania do até aos anos 40 do século xx.
rei. Na conturbada região de extração de ouro de Minas Gerais, onde os funcio- O Brasil colonial desempenhou um papel muito mais importante na econo-
nários da Coroa se deparavam com uma extrema dificuldade em impedir a eva- mia global do que a América espanhola. A produção de açúcar destinava-se
são fiscal em grande escala, uma boa parcela da fortuna privada era doada ao sobretudo à exportação, enquanto as índias espanholas se concentravam no
clero para financiar a construção de igrejas com uma decoração extravagante abastecimento dos mercados internos. O Brasil via-se, assim, obrigado a impor-
O sucesso com que as ordens missionárias instilavam lealdade à Coroa e forta- tar a maior parte dos bens de que necessitava em troca de açúcar, e, sendo a
leciam os laços com a cultura portuguesa pode ser avaliado através do exemplo economia de Portugal demasiado pequena e improdutiva para fornecer o Brasil,
oposto que foi a experiência holandesa. Charles Boxer observou que «durante os o grosso dessas importações, especialmente manufaturas, vinha de vários países
vinte e quatro anos em que os Holandeses controlaram total ou parcialmente o europeus. Oficialmente, todo o comércio tinha de ser autorizado por Lisboa,
Nordeste brasileiro, a população subjugada recusou-se obstinadamente a apren- todavia, na prática grande parte realizava-se através do contrabando.
der a língua dos seus soberanos heréticos, e julga-se que terão sobrevivido ape-»
nas duas palavras holandesas na língua popular de Pernambuco». Com efeito,
(*) C. R. Boxer, The Portugueses Seaborne Empire (Penguin Books: Harmondsworth,
muitos dos holandeses de Pernambuco converteram-se à Igreja de Roma,
1973), pp. 126, 128 [O Império Marítimo Português, Lisboa, Edições 70, pp. 133, 135].

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Falar de uma economia brasileira é, no entanto, dar uma visão pouco rigo- trabalhar. Os membros mais bem-sucedidos desta classe conseguiam, muitas
rosa da realidade. Até ao século xvm, a economia brasileira consistia em pouco vezes, acumular capital suficiente para comprar um engenho falido ou para cons-
mais do que algumas colónias costeiras que produziam açúcar para exportação truir um novo. O cultivo da cana de açúcar era, assim, uma via reconhecida para
para a Europa, concentradas sobretudo no extremo nordeste do território. Mais a alguém se tornar um dos grandes senhores de engenho.
sul, as capitanias marginais do Rio de Janeiro e de São Paulo forneciam um A indústria do açúcar prosperou durante a maior parte do século xvn, embora
conjunto de bens ao Nordeste e também produziam algum açúcar. São Paulo era tenha sofrido uma deslocação nas décadas de 40 e 50, em virtude da ocupação
sobretudo uma base de comerciantes de escravos que faziam incursões pelo ser- de Pernambuco pelos Holandeses. A subida dos preços do açúcar trouxe a
tão, mas a corrida ao ouro dos anos 90 do século xvn na região vizinha de Minas riqueza aos plantadores e protegeu o Brasil da crise económica geral que nesse
Gerais funcionaria como um estímulo para esta parte do Brasil e também para as período afeíou a Europa e, em menor escala, as índias espanholas. Contudo, nem
planícies de Rio Grande do Sul, onde a criação de gado e o cultivo de trigo se após a expulsão dos Holandeses se assistiria à total recuperação desta indústria,
tornariam dominantes. A geografia económica do Brasil tendia, deste modo, para que teve os seus melhores anos nas quatro primeiras década do século. Uma crise
a especialização regional; o comércio interno seria sempre menos importante do de superprodução começou a desenhar-se quando as novas economias do açúcar
que as ligações comerciais que cada região mantinha, separadamente, com a das Caraíbas entraram em concorrência com o Brasil - as plantações brasileiras
Europa. eram relativamente ineficientes quando comparadas com as da colónia francesa
de Santo Domingo ou com as ilhas britânicas e holandesas. O preço do açúcar, à
escala global, começou a cair: em meados da década 80 era já cerca de um terço
O AÇÚCAR do valor que tivera trinta anos antes. Nos anos 80, a seca, a doença e a recessão
económica ameaçaram destruir por completo a economia brasileira do açúcar.
O núcleo da indústria do açúcar era a plantação. Os Portugueses usavam o O crescimento foi retomado na década de 90, e o açúcar continuaria a ter um
termo «engenho» para se referirem não apenas à fábrica onde a cana de açúcar papel importante nas exportações durante o século seguinte, mas a descida dos
era refinada mas a todo o conjunto de campos, abrigos, alojamentos para escra- preços seria a tendência a longo prazo. Em finais do século xvn, a economia do
vos e edifícios que eram necessários à produção de açúcar. Ao contrário da Brasil teria mergulhado nurna profunda crise se não se tivesse dado a oportuna
fazenda hispano-americana, o engenho não pretendia ser uma unidade econó- descoberta de ouro.
mica autossuficiente; o seu objetivo era produzir para exportação, mas incorpo-
rava a maioria das atividades secundárias necessárias à produção de açúcar, de
modo a reduzir os custos e a minimizar os riscos. Todavia, ao que parece, a O OURO
situação financeira dos engenhos terá sido bastante precária, uma vez que o cul-
tivo de açúcar envolvia muita mão de obra - que podia ir até 200 escravos nos As explorações dos bandeirantes tinham dado conta da existência de depósi-
engenhos de maior dimensão -, enquanto a refinação, um complicado processo tos de ouro no sertão da Bahia logo no século xvi, mas só na última década do
semi-industrial, requeria avultados investimentos em maquinaria e manutenção, século seguinte se registaram verdadeiras corridas ao ouro no Brasil. Os primei-
e o emprego de técnicos e gestores altamente especializados. Crédito excessiva- ros depósitos substanciais foram encontrados na região de São Paulo. Pouco
mente prolongado, dívidas e bancarrota eram cenários recorrentes. Assim, na depois, deram-se novas incursões nas capitanias da Bahia e de Espírito Santo.
classe de plantadores registava-se uma certa mobilidade, com algumas famílias Mas os depósitos mais ricos foram encontrados na região a norte de São Paulo
a saírem do negócio enquanto outras montavam uma nova operação ou compra- que ficaria conhecida como Minas Gerais, onde se viria a concentrar a maior
vam uma já estabelecida. parte da indústria do ouro. Nas décadas de 20 e 30 do século xvm, novas explo-
Para além das grandes plantações, havia vários pequenos plantadores, rações que partiram de Minas Gerais para o interior, na direção oeste, revelariam
os «lavradores da cana», que cultivavam a sua própria cana mas tinham de outros grandes depósitos no Mato Grosso e em Goiás.
fazer contratos com o «senhor de engenho» para tratarem a cana na sua fábrica. As descobertas desencadearam uma corrida aos campos de ouro, levada a
Os lavradores mais humildes pouco mais eram do que arrendatários, alugand* cabo por prospetores do Nordeste e de Portugal. Estes recém-chegados não foram
terra de um engenho e pagando renda na forma de uma parte da sua produção. bem recebidos pelos paulistas, que desejavam estabelecer direitos de exclusivi-
Mas a maioria dos lavradores de cana possuía plantações e escravos para as dade na exploração dos depósitos. O clima de tensão levou a confrontos armados

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O BRASIL COLONIAL
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA

em 1708-9, naquilo que ficou conhecido como Guerra dos Emboabas (os de dimensão e o isolamento destes territórios, e a tentação do tráfico de ouro e
fora). O conflito contrariou as ambições dos paulistas e permitiu que os de fora diamantes contribuíam para os frequentes casos de corrupção entre os funcioná-
participassem na exploração da riqueza mineral do interior. Mas os paulistas, rios públicos. O governo real foi também consolidado pela elevação das três
dececionados, começaram a explorar outras regiões do sertão, fazendo incursões principais regiões mineiras do interior ao estatuto de capitanias: Minas Gerais
no Mato Grosso e em Goiás, e descobrindo os ricos depósitos de diamantes na (1720), Goiás (1744) e Mato Grosso (1748). Finalmente, a importância da indús-
região de Serro do Frio, a norte de Minas Gerais, que mais tarde ficou conhecida tria dó ouro para a economia do Brasil, e de Portugal, foi reconhecida pela trans-
ferência, em 1763, da sede do governo imperial de Salvador, no Nordeste, para
como o distrito de Diamantina.
Uma vez que o ouro se encontrava principalmente junto aos leitos dos rios, o Rio de Janeiro, uma cidade portuária que permitia uma comunicação mais
os prospetores utilizavam bateias para peneirar a terra à procura de partículas. direta com as capitanias do interior.
A extração em filões era mais rara, e o método quase não era usado em Minas Seria o ouro a salvar a economia de Portugal de um desequilíbrio debilitante
Gerais. A tecnologia era primitiva, e consistia sobretudo em maquinaria hidráu- no comércio com a Grã-Bretanha, o seu aliado comercial mais próximo. Mas foi
lica para inundar os solos ricos em minério e para drenar pedreiras. A coagem e também este minério que levou a um considerável aumento da procura, no Bra-
a peneiração eram feitas por escravos negros - era um trabalho duro que destruía sil, de bens manufaturados da Europa e de artigos de luxo do Oriente. Graças ao
a saúde dos escravos e causava uma elevada taxa de mortalidade; a vida de tra- ouro, o Brasil tornar-se-ia muito mais rico do que Portugal, que ficou reduzido à
balho de um escravo nos campos de ouro raramente ultrapassava os 12 anos. posição de intermediário no comércio com as nações estrangeiras, especialmente
Minas Gerais foi, de longe, a região mais produtiva no século xvni, tendo com a Grã-Bretanha.
atingido o seu pico entre 1735 e 1745, quando a sua produção anual foi mais do
décuplo da registada nos primeiros cinco anos do século. As minas do Mato
OUTROS SETORES
Grosso e de Goiás atingiram o seu ponto máximo aproximadamente na mesma
altura, mas em níveis inferiores - a produção anual máxima de Goiás situou-se
em dois terços da produção de Minas Gerais, e a de Mato Grosso em cerca de As principais exportações do Brasil, o açúcar e o ouro, estimularam o desen-
um sétimo. Na segunda metade do século, a produção caiu sistematicamente, por volvimento de produtos secundários e a expansão da economia para novas áreas.
várias razões - falta de investimento de capital e de inovação técnica, esgota- O tabaco tornou-se um bem importante, embora constituísse apenas uma fração
da produção agrícola; à semelhança do rum, era usado pelos Portugueses para a
mento de depósitos e restrições burocráticas.
A Coroa procurava incessantemente controlar a tão especulativa indústria troca por escravos nas costas de África. Em algumas regiões do Brasil, a criação
mineira, principalmente com o objetivo de a taxar mais eficazmente. Os minei- de gado tornou-se preponderante, visto que era preciso fornecer animais de tra-
ros tinham de pagar um imposto que consistia num quinto de todo o ouro produ- ção, carne, peles e sebo aos engenhos. A necessidade de terras de pasto levou os
zido, e os funcionários da Coroa tentavam constantemente verificar as declara- criadores de gado a avançarem pelo sertão do Nordeste, na periferia do rio de
ções e estimar o valor dos achados para efeitos fiscais. Contudo, a irregularidade São Francisco, e para norte, até Piauí e ao Maranhão. Antes da descoberta de
da exploração dos depósitos colocava grandes dificuldades à supervisão do ouro, a capitania de São Paulo era, em larga medida, uma zona de atividades
governo e a evasão fiscal era comum. No esforço de regular a indústria, foi económicas subsidiárias, fornecendo alimentos e escravos ao Nordeste. No pla-
criado um importo à cabeça, com base no número de escravos empregados por nalto onde a cidade foi erguida, as fazendas produziam trigo, farinha, algodão,
um mineiro. Por outro lado, foram estabelecidas fundições reais aonde os minei- vinho e gado.
ros tinham obrigatoriamente de levar o seu ouro, e estes locais funcionavam Do mesmo modo que a indústria do açúcar do Nordeste criara, indireta-
como pontos de coleta do quinto destinado à Coroa. Nenhuma das referidas mente, uma economia de rancho no Norte, também a necessidade de abastecer
medidas bastou, no entanto, para pôr cobro à frequente evasão fiscal e ao contra- as cidades mineiras do centro-sul levou ao desenvolvimento da agricultura e da
criação de gado nas pampas do extremo sul, perto dos territórios do rio da Prata
bando.
Na verdade, as regiões mineiras eram lugares sem lei. Assegurava-se alguma controlados pela Espanha. Esta região viria a ser conhecida como Rio Grande do
estabilidade estabelecendo instituições de governo local nas maiores colónias1 Sul, e a sua economia assentava na captura e na matança de gado das grandes
mineiras, o que passava pela nomeação de juizes que, ao serviço da Coroa, ins- manadas selvagens que habitavam as planícies, e em fazendas que produziam
tauravam a lei, e pela criação de milícias que a faziam cumprir. Todavia, a trigo
i para Minas Gerais. A atividade dos ranchos era o pilar desta economia, e o

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HISTORIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

modo de vida «gaúcho» de Rio Grande do Sul era muito semelhante ao do cias dos donos de minas nas índias espanholas, gozando, ao mesmo tempo, do pres-
províncias espanholas que mais tarde seriam o Uruguai e a Argentina. tígio aristocrático tradicionalmente reconhecido, nas sociedades ibéricas, aos
No extremo norte encontrava-se uma sociedade de fronteira muito pobre, grandes proprietários de terras com autoridade sobre subordinados. Deste modo,
cuja população consistia sobretudo em filhos de índias, caboclos e escravos um senhor de engenho era, simultaneamente, um capitalista que gerava receitas,
índios. As tentativas de cultivar espécies rentáveis como o açúcar, o algodão e o com interesses económicos estreitamente ligados aos dos comerciantes envolvi-
café conheceram um sucesso limitado até às reformas administrativas implemen- dos na importação e exportação de bens, e um patriarca que possuía escravos, o
tadas nos últimos anos do século xvm. Em finais do século XVH, só o cacau se equivalente social dos administradores reais e dos religiosos de mais alto nível.
tornara uma exportação de vulto. Era colhido por escravos índios na floresta Abaixo destes grandes senhores da indústria do açúcar, por via do estatuto,
amazónica, onde crescia em estado selvagem. Outros produtos da selva, como a se não da riqueza, encontravam-se os comerciantes transatlânticos, que conce-
baunilha e a salsaparrilha, eram também colhidos e exportados, mas em menores diam crédito aos senhores de engenho e que muitas vezes possuíam também
quantidades. terras e fábricas; os mais ricos podiam aspirar a ligar-se pelo casamento a uma
família de plantadores. Uma peculiaridade desta classe era, todavia, a presença
de uma minoria significativa de cristãos-novos. Os cristãos-novos eram descen-
Sociedade dentes de judeus convertidos pela força; carregavam o estigma do sangue
impuro, e o facto de se incluírem neste estrato desprestigiava a classe dos comer-
A sociedade que emergiu nas principais colónias do Brasil trouxe de Portu- ciantes no seu todo — especialmente na América espanhola, onde a comunidade
gal o seu modelo de base. A sociedade portuguesa era bastante idêntica à da sua de comerciantes portugueses e brasileiros com negócios no Peru, por exemplo,
vizinha ibérica, Castela: havia uma preocupação semelhante com a nobreza e a estava associada ao criptojudaísmo.
pureza de sangue; a família patriarcal alargada constituía a unidade social básica; Os lavradores da cana mais abastados podem ser integrados neste segundo
e a influência do catolicismo era abrangente. grupo. Do ponto de vista do estatuto, a classe seguinte consistia em pequenos
Além do mais, os primeiros colonos do Brasil tendiam a considerar-se «con- agricultores, e em retalhistas e comerciantes ligados aos mercados internos.
quistadores» da terra e, como os seus homólogos das índias espanholas, exibiam Depois vinham artesãos e artífices, com uma posição mais humilde, não apenas
aspirações senhoriais sobre uma mão de obra nativa servil. As primeiras incur- por se dedicarem ao trabalho manual mas também por haver muita gente de cor
sões em regiões remotas à procura de índios para escravizar foram chamadas livre envolvida neste setor. E no patamar mais baixo da escada social encontrava-
«entradas», tal como as expedições de conquista levadas a cabo na América -se um grande grupo de criminosos e vagabundos brancos - cuja existência se
espanhola, e a fundação de colónias seguiu a prática corrente nas índias espanho- devia, em parte, ao desdém dos Portugueses pelas ocupações manuais partilha-
las: o comandante de uma expedição escolhia um local adequado e estabelecia das por gente de cor.
uma cidade em nome do rei, implantando um símbolo do poder real e atribuindo A divisão entre homem livre e escravo era mais elementar na sociedade bra-
lotes de terra aos seus seguidores, consoante a sua categoria. Os cargos do sileira. E como os escravos não eram de origem europeia, a cor era em si mesmo
senado da câmara eram entregues aos principais colonos (os «moradores»). um fator preponderante na determinação do estatuto: quanto mais escura a pele
Tal como acontecia nas colónias espanholas, no próprio ato de coloniza- de um indivíduo, mais ele estava associado à classe dos escravos. Assim, a pele
ção era criada uma hierarquia social elementar. Inicialmente, havia alguma dife- branca era apreciada como um símbolo de valor social, e, no caso de indivíduos
renciação atendendo à nobreza - os fidalgos que se encontravam entre os primei- mulatos ou mestiços que se tivessem, de algum modo, distinguido na sociedade,
ros colonos mantiveram os seus privilégios hereditários -, mas a Coroa não adotou-se o hábito educado de os considerar brancos. Este fingimento era bas-
concedeu prerrogativas aristocráticas à classe alta do Brasil e as divisões sociais tante comum em capitanias marginais como São Paulo e Maranhão, onde havia
efetivas eram determinadas pela riqueza e pelo modo como esta fora alcançada: relativamente poucos colonos portugueses nos primeiros dois séculos da colónia.
a posse de fábricas de açúcar e de plantações conferia o estatuto mais elevado, A existência desta numerosa classe de escravos de cor constituía a diferença
enquanto o comércio e, evidentemente, o trabalho manual eram vistos como mais evidente entre as sociedades brasileira e portuguesa. Havia poucos campo-
atividades desprestigiantes. » neses livres no Brasil: as classes mais baixas nas regiões rurais eram os escravos
Os senhores de engenho constituíam, assim, a elite da sociedade brasileira. dos engenhos e das fazendas, muitos dos quais tinham permissão para cultivar
Deviam o seu estatuto ao facto de possuírem um peso económico equivalente ao pequenos lotes da terra do senhor para a sua própria subsistência. A autoridade

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA O BRASIL COLONIAL

do proprietário era inquestionável e as condições de vida dos escravos -eram, em metade do século xvi, em particular pelo jesuíta Fernão Cardim, em 1584, e por
regra, difíceis - a imagem de um patriarcado benevolente associada às planta- Gabriel Soares de Sousa, em 1587.
ções é consideravelmente exagerada. Mas os escravos domésticos podiam usu- Em todo o período colonial, o Brasil não assistiu à fundação de uma univer-
fruir de uma certa afeição e de alguma lealdade por parte da família do seu sidade ou ao estabelecimento de uma tipografia - os filhos da elite eram envia-
senhor - a manumissão, processo mediante o qual um proprietário concedia a dos para Portugal, para a universidade de Coimbra. Os jesuítas criaram seminá-
liberdade a um escravo como reconhecimento pela sua lealdade, era uma prática rios e colégios, e encarregavam-se da instrução dos colonos. A produção literária
bastante comum, que explica o crescimento, ao longo do século xvn, de uma era escassa: o escritor que mais se distinguiu no século xvn foi o padre jesuíta
população livre de cor. António Vieira, que defendeu os índios nas suas cartas e nos seus sermões. Um
Mas a manumissão tem de ser considerada a par de um outro fenómeno mais jesuíta italiano, sob o pseudónimo de André João Antonil, descreveu os recursos
frequente - a fuga, das plantações e das minas, de escravos que eram levados ao naturais e económicos do Brasil entre 1693 e 1711. Houve poucos escritores
limite da sua resistência. Uma vez no sertão, estes foragidos estabeleciam coló- brasileiros nativos de vulto antes de finais do século xvm: Gregório de Matos da •
nias conhecidas corno «quilombos» ou «mocambos». A mais famosa destas foi Bahia escreveu poesia satírica que hoje é relembrada; Vicente do Salvador pro-
a colónia de Palmares, onde vários milhares de escravos fugitivos ergueram uma duziu uma história do Brasil em 1627, a qual serviu de base para a História da
série de vilas e aldeias que resistiram durante praticamente todo o século xvn no América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, que foi publicada em 1730.
interior remoto de Pernambuco, até serem destruídas por uma expedição militar Na arquitetura, eclesiástica como nacional, o Brasil seguiu de perto os estilos
punitiva no ano de 1695. de Portugal. Já foi até observado que, relativamente a este aspeto, temos de
Embora profundamente dividida em classes e raças, a sociedade do Brasil entender o Brasil «como sendo uma parte de Portugal, tanto como o Minho, por
colonial contava com poderosos fatores de integração e, como em qualquer exemplo» (*). Como seria de esperar, as igrejas e os conventos mais importantes
sociedade ibérica tradicional, a religião desempenhava um papel fundamental. estão concentrados nas capitais das regiões mais ricas, onde se produzia açúcar
A Igreja Católica apoiava as hierarquias patriarcais de várias maneiras. As irman- e ouro, nomeadamente, as cidades costeiras de Olinda, em Pernambuco, Salva-
dades laicas, por exemplo, que eram dedicadas à Virgem ou a um santo, confir- dor, Rio de Janeiro e também a área circundante da cidade interior de Ouro Preto,
mavam identidades sociais particulares, desde os senhores de engenho aos escra- em Minas Gerais. Um traço particular é o elevado número de igrejas de estilo
vos negros, ao mesmo tempo que proporcionavam a todos eles uma coesão barroco e rococó em Minas Gerais, o que se deve à extraordinária riqueza das
orgânica sob a autoridade de Deus e do rei. Os laços sociais eram ainda cimen- minas de ouro. Em finais do século xvm, Minas teve um escultor de génio, o
tados através do «compadrio» (ligação entre um patrono e um subordinado), que mulato António Francisco Lisboa, a quem chamavam «o Aleijadinho», cujas
conferia uma natureza sacramental à estrutura do patronato que contemplava obras-primas incluem a série de estátuas diante da igreja de peregrinação em
diferenças de classe e raça. Congonhas do Campo, e as figuras de madeira para as estações da cruz no cami-
A influência da Igreja contribuiu para a consolidação de uma pirâmide social nho para este local. Francisco Lisboa criou um estilo individual, uma forma de
em cujo ápice se encontravam os senhores das plantações de açúcar. No entanto, rococó que ficou conhecida como «estilo aleijadinho», e que foi empregue na
apesar das evidentes semelhanças com a América hispânica, a sociedade brasi- decoração de interiores de igrejas, incluindo altares, púlpitos e retábulos.
leira colonial era mais rudimentar; a capital, Salvador, não era como Lima ou A riqueza de minas Gerais, aliada à sua distância tanto da sede do governo
como a Cidade do México: não tinha a mesma opulência na arquitetura nem real como dos antigos centros aristocráticos das plantações de açúcar do nordeste,
aquela sumptuosidade na exibição social, e essa pobreza relativa refletia-se na tornou-a particularmente recetiva às ideias do Iluminismo, e na década de 80 do
sua vida cultural. século xvm a cidade de Ouro Preto teve o mais talentoso dos poetas e escritores
do período colonial. Homens como José de Santa Rita Durão, Cláudio Manuel da
Costa, José Basílio da Gama, José Inácio de Alvarengo Peixoto contribuíram para
Cultura a inauguração de uma tradição republicana e participaram na conspiração que
ficou conhecida como Inconfidência Mineira, em 1788-9, a primeira tentativa, no
O primeiro registo escrito sobre o Brasil seguiu-se ao estabelecimento do , Brasil, de desafiar a autoridade colonial da monarquia portuguesa.
governo real e à chegada dos primeiros jesuítas, em 1549. Vários relatos que
descrevem o clima, o ambiente e os povos nativos foram escritos na segunda (*) J. B. Bury, Cambridge History of Latin America, vol. 2, p. 769.

202 203
H I S T O R I A DA A M E R I C A L A T I N A

Mas o golpe falhou: Minas Gerais foi exceção à regra no Brasil apenas por
um breve período de tempo. Havia demasiados laços culturais, económicos e até
pessoais que ligavam as elites brasileiras a Portugal, e poucas discriminações
significativas em relação à colónia. Além disso, a ausência de uma vida cultural
sólida, autónoma - não havia universidade nem tipografia - atrasou a formação
de uma identidade distinta. Fatores como estes reforçaram a conceção unitária do
império português, de tal modo que quando Napoleão ameaçou as monarquias
ibéricas em 1807-1808, o Brasil e Portugal chegariam a uma solução para a crise
bem diferente daquela por que optaram a Espanha e as suas colónias americanas.

Segunda Parte

O Desafio do Mundo Moderno

204
AMÉRICA DO SUL ESPANHOLA,
APÓS AS REFORMAS BOURBONS, c. 1800

CAPÍTULO 6

Reforma, Crise e Independência


I. HUANCAVELICA

Uma mudança de dinastia em Espanha:


da Casa de Habsburgo à Casa de Bourbon

OCEANO PACÍFICO
Em finais do século xvn, o equilíbrio do poder económico no mundo hispâ-
nico deslocara-se, através do Atlântico, para as índias. A Nova Espanha e o Peru
tinham-se tornado sociedades prósperas e bem organizadas, com uma cultura
OCEANO ATLÂNTICO
aristocrática florescente; eram as verdadeiras metrópoles das Américas, man-
tendo relações comerciais dinâmicas entre elas e com outras regiões, e até ope-
CAPITANIA-GERAI
rações lucrativas com o Extremo Oriente, através das Filipinas, a maior colónia
Concepción
espanhola na Ásia. Por esta altura, as restrições ao comércio com outros países
DO CHILE que não a Espanha haviam sido largamente minadas pelo contrabando. A admi-
I. CONCEPcfóN
nistração colonial era laxista e corrupta, tendo as elites crioulas absorvido nos
seus círculos os altos funcionários vindos da Península. E, para todos os efeitos,
os cargos mais altos no governo colonial, sem contar com o de vice-rei, podiam
ser ocupados por crioulos. Por outras palavras, o Estado imperial habsburgo
entregara-se a uma confortável inércia que na prática dava às oligarquias crioulas
aquilo que lhes era negado em teoria: o acesso ao sistema de comércio norte-
P. ILHAS MALVINAS
ff> -atlântico e o poder de moldar as suas sociedades de acordo com os seus inte-
resses.
• Capital de Vice-Reino A Espanha, pelo contrário, vivia tempos de miséria: sofrera uma longa
I. = INTENDÊNCIA DE
P. = PROVÍNCIA DE crise económica e uma grave queda demográfica; o seu poder militar fora enfra-
quecido por sucessivas derrotas na Europa e por revoltas separatistas internas;

207
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

o sistema de comércio transatlântico estivera à beira do colapso em diversas era investido por Deus da autoridade para governai'; deste modo, o seu poder não
ocasiões, diminuindo perigosamente o fluxo de metais preciosos de que o país era, por princípio, limitado por sanções religiosas e éticas da parte da igreja, e
precisava para manter as suas pretensões imperiais. Enquanto potência imperial, muito menos pela noção mais antiga, medieval, de contrato ou obrigação para
a Espanha exibia agora o curioso espetáculo de uma metrópole que precisava com os seus súbditos, que estava ainda latente em Espanha e que sempre fora
mais das suas colónias do que o inverso; e no conjunto das potências mundiais, mais evidente entre os conquistadores e os seus sucessores nas índias.
passara claramente para segundo plano. O novo regalismo criou condições para que o monarca fizesse aquilo que os
O estado da Espanha encontrava-se personificado no fraco e imbecil Carlos II, Habsburgos haviam sido impedidos de fazer pela força do conselho religioso:
o último da dinastia dos Habsburgos e um monarca incapaz de uma atitude viril. permitiu que a Coroa delineasse a sua política em função de questões pragmáti-
Após a sua morte, em 1700, iniciou-se uma guerra entre as potências europeias cas de interesse nacional. Quimeras impraticáveis com que a Espanha católica
pela sucessão ao trono espanhol. Filipe de Anjou, neto de Luís XIV de França, perdera tanto sangue e tanta riqueza - a defesa da ortodoxia contra rebeldes
acabou por se tomar rei da Espanha, mas o seu direito ao trono só foi reconhecido holandeses e separatistas ingleses, a cruzada contra os Turcos, a proteção dos
pelos seus inimigos à custa de cedências importantes definidas no Tratado de direitos dos índios no Novo Mundo -já não tinham de ser perseguidas para além
Utrecht, de 1713. A Flandres e os domínios italianos foram entregues à Áustria e dos limites do razoável, pois a luz da razão tinha de perpassar as cortinas que
a Saboia; a Grã-Bretanha ficou com Gibraltar e com Minorca, e obteve o direito haviam mantido a Espanha na sua escuridão neomedieval. E, todavia, essas cor-
exclusivo ao fornecimento de escravos africanos às índias espanholas, e a um tinas não podiam ser simplesmente removidas; a Igreja Católica estava dema-
carregamento anual de mercadoria para comércio com as colónias americanas; siado enraizada no Estado e na sociedade e, para todos os efeitos, os Bourbons
Portugal conservou o seu centro de contrabando de Colónia do Sacramento, na estavam cientes do valor desta instituição como pilar da ordem social e como
margem leste do rio da Prata. Estas concessões à Grã-Bretanha e a Portugal acen- fator unificador num império vasto.
tuaram a debilidade imperial da Espanha, uma vez que infringiram, pelo menos A ideologia reformadora da monarquia Bourbon foi, com propriedade,
durante algum tempo, o monopólio de comércio corn as índias, algo que o país designada Iluminismo católico, consistindo na tentativa cautelosa de se ajustar
tanto se esforçara por defender. A soberania da Espanha estava agora reduzida à ao espírito científico e racionalista do século xvm sem perturbar os fundamentos
Península e aos seus domínios na América e nas Filipinas. da fé católica. Os reformadores introduziram na administração da Espanha e do
Esta redução de poder, embora humilhante, veio pelo menos libertar a Espa- seu império princípios de razão e utilidade que haviam sido cuidadosamente
nha das suas posses dinásticas em Itália e nos Países Baixos, que tantos recursos retirados do seu enquadramento filosófico mais abrangente, para evitar que pro-
lhe haviam consumido durante os dois séculos anteriores. Com efeito, o Tratado movessem ideias subversivas da religião. Porém, esta ideologia refreada e tépida
de Utrecht obrigou a Espanha a abdicar do conceito habsburgo de império, base- foi, por um lado, demasiado longe, e, por outro, ficou aquém do que devia:
ado na visão essencialmente medieval de uma constelação supranacional de impediu o radicalismo que talvez tivesse trazido um sucesso económico dura-
reinos sob a autoridade de um único soberano empenhado na defesa da integri- douro, mas enfraqueceu as fundações políticas da monarquia católica.
dade católica na Europa. A nova dinastia francesa de Bourbon governaria a Na Espanha propriamente dita, os Bourbons criaram uma forma de governo
Espanha como um Estado-nação europeu entre os demais, e os seus territórios mais centralizada e executiva. O leque de conselhos do reino, que refletia a natu-
ultramarinos, ainda muito substanciais, seriam encarados como recursos a explo- reza consultiva da monarquia dos Habsburgos, deu lugar a uma máquina buro-
rar economicamente, de modo a fortalecer a posição espanhola no teatro político crática de secretários de Estado dirigidos por uma elite administrativa que tinha
das potências europeias. Assim, no decurso do novo século, os monarcas Bour- por principal objetivo modernizar o país. A aristocracia proprietária de terras
bons reconfigurariam os objetivos e os métodos do governo imperial espanhol. viu-se excluída da administração, e os seus privilégios foram reduzidos; os direi-
O espírito de reforma alterou significativamente a base ideológica da monar- tos tradicionais do reino de Aragão (que incluía a Catalunha) foram abolidos; foi
quia católica, que os Habsburgos, ao toma-la de Fernando e Isabel, haviam estabelecido um Exército regular, composto por oficiais de carreira, e a Marinha
desenvolvido como princípio dominante da sua política imperial. A simbiose foi fortalecida mediante um programa de construção naval.
peculiarmente espanhola entre Coroa e Igreja, que conferira à monarquia cató- Todas estas mudanças foram facilitadas por uma recuperação económica que
lica o seu monopólio de legitimidade, foi, ao longo dos sucessivos reinados dos parece ter começado ainda nos anos 80 do século xvn, especialmente ao longo
Bourbons, sendo substituída por um absolutismo mais severo, de inspiração do litoral mediterrânico. No entanto, apesar dos esforços dos Bourbons para
regalista francesa. Segundo a nova teoria do direito divino dos reis, o monarca estimular o crescimento da economia espanhola, não se pode falar em êxito

208 209
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA R E F O R M A , CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

duradouro: registou-se um aumento do volume do comércio transatlântico, mas jurisdição da Cidade do México. Embora a capital do vice-reino fosse Bogotá, a
a agricultura e a indústria não progrediram de modo a que a Espanha recuperasse crescente importância comercial da Venezuela, devido à produção de cacau, foi
um papel dominante na vida económica das suas colónias americanas. Na reali- reconhecida através da criação de uma audiência em Caracas. O vice-reino de
dade, o impacto das reformas no Novo Mundo perturbou o statu quo - com que Nova Granada seria abalado por tensões geográficas e económicas — sobretudo
os Habsburgos haviam pactuado - que trouxera prosperidade às elites crioulas. entre a Bogotá tradicionalista, encerrada no interior a oeste dos Andes, e, a leste,
Assim, a autoridade da Coroa nas índias foi consideravelmente enfraquecida por o florescente porto de Caracas, voltado para as ilhas multinacionais das Caraíbas,
medidas que, ironicamente, haviam sido concebidas para a fortalecerem. para a América do Norte e para a Europa.
A reconfiguração das fronteiras territoriais foi acompanhada por medidas
destinadas a consolidar a autoridade de Madrid. Os cargos da velha burocracia
As Reformas dos Bourbons na América Espanhola dos Habsburgos tinham, na sua maioria, sido gradualmente ocupados por criou-
los, mas os reformadores da monarquia Bourbon começaram a entregá-los a
De um modo geral, a mão reformadora dos Bourbons não se fez sentir nas funcionários de origem espanhola; os tribunais da audiência, por exemplo, pas-
índias até ao reinado de Carlos ffl (1759-88). Durante a Guerra dos Sete Anos, saram aos poucos para as mãos de juizes da Península. A nova burocracia execu-
a perda de Havana e de Manila para os Britânicos, em 1762-3, fez a Espanha tiva estendeu-se pelas regiões mediante a substituição dos governadores das
tomar consciência da necessidade de reedificar o seu poder imperial. Em 1765, províncias por intendentes ao estilo francês, enviados de Espanha. Estes admi-
um administrador competente e dinâmico, José de Gálvez, foi enviado às índias, nistradores eram apoiados por funcionários do tesouro real, que se encarregavam
numa série de visitas generales, para analisar o estado das colónias. Os relatórios da cobrança de impostos aos crioulos. Nas comunidades índias, subdelegados
que elaborou para a Coroa constituíram a base de um abrangente programa de espanhóis, que prestavam contas diretamente aos intendentes, tomaram o lugar
mudança. O principal objetivo das reformas era conseguir receitas para a Coroa. de corregidores de índios crioulos corruptos, e procuraram aumentar as receitas
Tal propósito implicava uma reorganização administrativa para melhorar o sis- provenientes dos impostos sujeitando mais categorias de índios à rede fiscal e
tema de cobrança de impostos à América, e uma restruturação do comércio abolindo o repartimiento de comercio e outras formas de iniciativa burocrática
imperial que estimulasse a economia espanhola. Não se sabia ao certo que bene- privada que desviavam receitas fiscais devidas à Coroa.
fícios poderiam estas reformas trazer às colónias, e tanto crioulos como índios As tentativas dos Bourbons de restruturar o comércio colonial para vantagem
manifestar-se-iam contra as medidas. Gálvez recomendou a criação de um novo da Espanha depararam com o problema de os produtos espanhóis, à exceção dos
vice-reino e de várias novas audiências, com vista a reforçar os mecanismos de metais preciosos, serem bastante idênticos aos das colónias. Então, os reforma-
controlo administrativo e a desenvolver as economias das regiões do litoral dores tentaram criar um mercado de grande escala para as exportações espanho-
atlântico. Em 1776, foi fundado o vice-reino de Rio de Ia Plata, que tinha a sua las proibindo nas colónias a produção de bens como o trigo, o vinho ou o azeite.
capital no pequeno porto de Buenos Aires. Este novo vice-reino compreendia A indústria têxtil da Catalunha foi protegida da concorrência através do encerra-
todos os vastos territórios subpovoados a leste da cordilheira andina que até mento forçado de obrajes no Peru e na Nova Espanha. Deste modo, a autonomia
então se encontravam sob a jurisdição de Lima, mas incluía também a província de que as índias gozavam no tempo dos Habsburgos foi ameaçada por um sis-
do Alto Peru (a Bolívia dos nossos dias), onde se concentrava a maior parte da tema artificial de trocas económicas com a metrópole imposto por um Estado
indústria da prata. A criação do novo vice-reino determinou um importante des- intervencionista.
vio na orientação económica, tendo-se verificado uma deslocação de Lima e do Em simultâneo, foram implementadas algumas medidas mais liberais com
Pacífico para o Atlântico, uma vez que a prata de Potosí seria agora transportada vista a impulsionar a economia colonial. Procedeu-se ao ajuste de tarifas e incen-
para Buenos Aires e daí enviada, por navio, para Espanha, reduzindo o tempo e tivos fiscais para estimular a produção, especialmente da prata. Os índios foram
os custos do comércio transatlântico. Porém, a restruturação deslocaria também encorajados a aderir ao trabalho remunerado. Os exportadores das colónias obti-
muitas economias locais da região andina, que durante séculos se haviam orga- veram um acesso mais alargado aos mercados da Península e de outras regiões
nizado em torno de Lima. das índias. E embora o monopólio oficial do comércio transatlântico por parte da
Na realidade, já em 1739 se formara um vice-reino que unia a capitania-geral Espanha continuasse a vigorar, as mercadorias já não eram canalizadas exclusi-
de Nova Granada ao território da Venezuela. Este último pertencera em tem- vamente através da Cidade do México ou de Lima para Sevilha ou Cádis. Outros
pos à capitania-geral de Santo Domingo, que em última instância estava sob a centros coloniais, como Buenos Aires, Caracas, Cartagena e Havana, podiam

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

comerciar diretamente com vários portos da Espanha. A designação utilizada há séculos. Tupac Amaru não conseguiu, no entanto, unir todas as tribos índias
para descrever o novo sistema de comércio colonial era un comercio libre y pro- contra os brancos; alguns chefes optaram até por apoiar a Coroa contra os rebel-
tegido - comércio livre sob a proteção do Estado. des. Depois de uma autêntica carnificina, que fez milhares de vítimas, sobretudo
Mas apesar da restruturação do comércio imperial, a economia espanhola índios, Tupac Amam caiu nas mãos das autoridades espanholas, que fizeram da
revelou-se incapaz de satisfazer a procura da América. Grande parte do comércio sua morte um espetáculo: foi despedaçado, membro após membro, por cavalos,
da Espanha continuava a assumir a forma de reexportação de bens de outras na praça principal de Cusco. A revolta índia prosseguiu ainda durante alguns
partes da Europa para as índias. E assim, embora o novo sistema de comercio meses e acabou por ser reprimida no início de 1782.
libre fizesse muito para estimular a economia colonial, o crescimento americano Outra grande rebelião ocorreu em 1781, na região de Socorro, em Nova Gra-
era limitado por restrições de natureza política que, obviamente, serviam os inte- nada (atual Colômbia), mas sem relação com Tupac Amaru. Mais uma vez, a
resses da Espanha. Ao mesmo tempo, o facto de o monopólio comercial espanhol origem dos tumultos deveu-se aos excessos dos funcionários espanhóis, que
continuar a ser dominado por comerciantes de importação/exportação exacer- estavam a exigir contribuições demasiado severas e a tentar racionalizar a produ-
bava o ressentimento contra a Espanha entre os crioulos. ção privada de tabaco, para conveniência do monopólio de tabaco do governo.
Com efeito, nas índias, todos os setores da sociedade tinham razões de Entre os rebeldes contavam-se plantadores modestos, mestiços e índios. Mas o
queixa das reformas dos Bourbons. A subida do imposto sobre as vendas atingiu seu descontentamento encontrou apoio entre o clero, funcionários crioulos das
a população em geral. Os crioulos abastados eram constantemente pressionados províncias e até entre a elite de Bogotá, que não nutria simpatia pelos administra-
pelos administradores da Coroa para fazerem donativos para o tesouro real, ver- dores da Casa de Bourbon. Uma força de vários milhares de rebeldes, que havia
bas que se destinavam a pagar guerras dinásticas remotas na Europa. A venda marchado sobre a capital do vice-reino, foi dissuadida de atacar a cidade por um
forçada de terras da Igreja privou o clero de rendas, pondo em causa o sustento acordo negociado entre o arcebispo e os seus líderes. O compromisso alcançado
de padres de paróquias pobres. As comunidades índias eram asfixiadas pelos não satisfez alguns dos revoltosos, que continuaram a sua luta ao lado de comu-
impostos. Em alguns lugares, a resistência a estas exações originou tumultos e nidades índias, exigindo a devolução de terras usurpadas. A revolta comunero,
revoltas declaradas. Como seria de esperar, as regiões mais abaladas pelo clima como ficou conhecida, adquiriu contornos de uma guerra social e étnica, e teve
de tensão foram aquelas onde a reorganização administrativa causara uma deslo- no mestiço José António Galán o seu líder. As elites crioulas tomaram o partido
cação mais pronunciada: Peru, Alto Peru e Nova Granada. das autoridades reais e a insurreição acabou por ser esmagada, juntamente com
O levantamento mais sério teve a sua origem no Sul do Peru, onde um caci- uma revolta comunero semelhante que surgira na vizinha Venezuela.
que índio, José Gabriel Condorcanqui, começou a manifestar-se contra os maus- Nem os levantamentos índios no Peru nem as rebeliões de Nova Granada
-tratos que os índios tinham de suportar às mãos dos funcionários espanhóis. Em constituíram uma reivindicação coerente de independência. Foram reações inten-
1780, o descontentamento atingiu tal ponto que Condorcanqui, que se procla- sas mas, em última análise, limitadas ao intervencionismo da monarquia Bour-
mava descendente da linhagem real inça, assumiu o nome de Tupac Amaru n e bon. Contudo, não se assistia nas índias a rebeliões de tal dimensão e ferocidade
organizou uma rebelião contra as autoridades reais. A revolta alastrou a outras desde meados do século xvi, aquando da consolidação do Estado Habsburgo, nas
zonas e, no Alto Peru, em 1781, registaram-se grandes levantamentos, na décadas que se seguiram à Conquista. A eclosão destas importantes revoltas em
sequência dos quais a capital de província La Paz foi cercada por índios. Tupac finais do século xvin poderá, talvez, ser lida como um sinal exterior de que a
Amaru reclamava o fim da m/to, dos empréstimos forçados e de outras exações relação imperial entre a Espanha e as índias estava a sofrer uma mudança mais
impostas aos pueblos índios pelos odiados funcionários da Coroa espanhola. profunda.
O seu objetivo declarado era livrar-se dos Espanhóis, e instava os crioulos a As reformas dos Bourbons ameaçavam, na verdade, precipitar uma crise
juntar-se-lhe. Mas se a sua causa contou, a princípio, com alguma simpatia por de legitimidade política. No tempo dos Habsburgos, a Coroa gozara de um
parte dos crioulos, estes não tardaram a rejeitá-la quando os índios começaram a monopólio de legitimidade que se devia, sobretudo, ao seu entendimento com a
massacrar brancos indiscriminadamente, fazendo pairar o terrível espetro de uma Igreja. Na América, esse monopólio fora reforçado pela concessão de terras e
guerra racial. favores aos conquistadores e seus descendentes, como retribuição pelos feitos
Se Tupac Amaru pretendia ou não pôr fim, em absoluto, à autoridade espa- de conquista, e, no que se referia aos índios, pela intenção declarada da Coroa
nhola, é algo que não se sabe ao certo. Mas a escala da sua revolução denunciava, de proteger os seus direitos ancestrais em nome do verdadeiro Deus, a cuja reli-
sem dúvida, a ira dos índios contra um sistema de exploração que se mantinha gião os nativos tinham de se converter. Todavia, para além do monopólio de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA R E F O R M A , CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

legitimidade, a lealdade da aristocracia crioula perdurara ao longo do século xvu clérigos, como Juan Pablo Viscardo, um jesuíta peruano exilado, ou o monge
(mesmo quando, nos anos 40, outras elites do império, como a portuguesa, a franciscano Servando Teresa de Mier, foram dos primeiros hispano-americanos
catalã e a siciliana se haviam revoltado) porque a debilidade económica da Espa- a protestar contra a «tirania» da Coroa espanhola, e viriam a apelar à indepen-
nha permitira que as elites crioulas satisfizessem na prática duas aspirações dência com o objetivo de preservar a integridade da fé católica no Novo Mundo.
cruciais: o exercício do poder no seio das suas próprias sociedades e a participa- Durante as guerras da independência, um número considerável dos chefes de
ção no comércio internacional através do contrabando. A vigorosa reafirmação, rebeliões emergiria do baixo clero, especialmente entre os que se dedicavam às
pela dinastia Bourbon, do poder da metrópole ameaçava agora frustrar essas comunidades índias; como herdeiros dos primeiros missionários, chefiariam
duas aspirações. revoltas contra o Estado espanhol que se modernizava, invocando a proteção da
Além do mais, num momento em que as novas políticas perturbavam o Virgem de Guadalupe no seu esforço para estabelecer na América uma ordem
decorrer normal da vida das índias, os reformadores começavam também a ata- utópica de simplicidade cristã.
car o poder da Igreja, que fora uma das principais fontes da legitimidade política . As censuras do clero à monarquia Bourbon eram essencialmente conserva-
dos Habsburgos e que era uma força unificadora em sociedades coloniais com doras, remontando aos debates do século xvi sobre os limites do poder real
profundas divisões regionais e de identidade étnica. Os reformadores da monar- gerados por Bartolomé de Ias Casas e por outros escolásticos. Mas estas críticas
quia Bourbon consideravam a fortuna da Igreja improdutiva, e por isso tentaram religiosas à tirania decorriam a par de outros ataques mais modernos ao des-
transferir as suas terras e outros tipos de propriedade para mãos privadas, sempre potismo, feitos por liberais que se preocupavam com os direitos do indivíduo
que possível. Os regalistas de inspiração francesa viam, além disso, a Igreja relativamente ao Estado e com a noção de soberania do povo. Estas ideias do
hispânica como um potencial obstáculo ao livre exercício da vontade real; e os Iluminismo europeu secular - as mesmas ideias, ironicamente, que os clérigos
seus inimigos ideológicos eram, em particular, os jesuítas, que detinham um americanos queriam impedir de se estabelecer nas índias - começaram a circular
enorme poder na América e deviam obediência explícita ao papa. As fricções entre os crioulos cultos a partir dos anos 80 do século xvm. A sua influência
com a Igreja culminaram, em 1767, na expulsão da ordem dos jesuítas de todos ficou, no entanto, limitada a pequenos círculos, muitas vezes reunidos em Socie-
os domínios espanhóis. O exílio forçado dos padres jesuítas, que na sua maioria dades Económicas, que promoviam o estudo científico das características das
eram crioulos, gerou um profundo ressentimento na América, tanto entre religio- suas regiões com fins «patrióticos».
sos como entre laicos. Ambientes deste tipo produziram indivíduos mais radicais, inspirados pelas
Os Bourbons regalistas estavam, então, a modificar a base histórica com que revoluções americana e francesa, que defendiam o republicanismo e a indepen-
a Coroa espanhola justificara o seu poder. E talvez não fosse uma coincidência dência total da Espanha. Em retrospetiva, estes homens podem ser vistos como
que os seus opositores invocassem direitos e reivindicações tradicionais que os «precursores» intelectuais e políticos da independência, homens como Fran-
haviam criado as condições para uma autoridade real legítima. A Igreja resistiu cisco de Miranda, na Venezuela, António Narino; em Bogotá, Manuel Bregrano
à doutrina do direito divino dos reis porque esta deixava pouco espaço ao conse- e Mariano Moreno, em Buenos Aires, todos eles conhecedores da literatura do
lho religioso ao monarca. Os comuneros de Nova Granada (o nome remetia para Iluminismo e admiradores das revoluções francesa e americana; alguns entraram
a revolta comunero que tivera lugar em Espanha, em 1520-21, quando as cida- em conflito com a Inquisição e foram detidos, outros fugiram para o exílio ou
des castelhanas se tinham insurgido contra a abolição das suas liberdades por foram conspirar contra a Espanha em Inglaterra, em França ou nos Estados
Carlos V) reafirmavam o «direito de resistência» medieval às medidas injustas Unidos.
da Coroa. Ao invocar a sucessão inça, Tupac Amaru relembrara que o direito dos O apoio ao republicanismo revolucionário era, todavia, inexpressivo entre a
Espanhóis às índias assentava na obrigação de tratar as comunidades índias aristocracia crioula. Os planos para lançar insurreições falharam: em 1806,
segundo os princípios cristãos de justiça. Miranda desembarcou um grupo de voluntários em Coro, na costa da Venezuela,
Todas as três correntes de resistência americana ao regalismo dos Bourbons mas não conseguiu arrastar os seus compatriotas para uma revolução contra a
se opunham à ausência de limites religiosos e tradicionais que este preconizava. Espanha; em 1811, uma nova tentativa obteve apoio em Caracas, mas foi tam-
Do ponto de vista do pensamento escolástico (que fora revitalizado em parte bém facilmente esmagada no espaço de um ano. A realidade era que a maioria
devido à conquista da América pelos Espanhóis e que ainda florescia nas univer- da elite crioula era católica e conservadora, e, quando muito, a Revolução Fran-
sidades e nos seminários hispano-americanos), havia motivos para considerar cesa causava-lhes um profundo receio. Temia-se que a desobediência à monar-
que os Bourbons estavam a agir como tiranos ao impor as suas reformas. Alguns quia conduzisse a uma guerra racial. Havia precedentes terríveis: as revoltas dos
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

negros do Haiti contra os plantadores franceses, em 1793, as rebeliões dos jesuítas e até alguns bispos), dos índios e das gentes comuns; com os grandes
índios, liderados por Tupac Amara, no Pêra, e a revolta dos comuneros tinham tumultos políticos que se registavam nas Américas e na Europa, pairavam no ar
dado aos brancos uma noção do que poderia acontecer se a autoridade da Coroa ideias de liberdade e igualdade; e a prostração da Espanha levava os crioulos a
ruísse nas índias. Isto porque o pacto colonial não era meramente económico; duvidar da sua capacidade para se defender ou assegurar a ordem nas índias.
as elites crioulas tinham sido preparadas para aceitar as restrições dos Espanhóis Este último problema tornou-se evidente para os hispano-americanos aquando
no comércio, em troca da preservação efetiva do colonialismo interno de brancos das invasões britânicas de Buenos Aires e de Montevideu, em 1806 e 1807, na
sobre não-brancos que a monarquia católica conseguira estabelecer. Porém, com altura em que um almirante britânico dissidente tentou apoderar-se de uma por-
as mudanças que se faziam sentir em finais do século xvni, durante quanto tempo ção do império espanhol. Foram as milícias crioulas, e não as forças do vice-rei,
seria possível manter semelhante ordem colonial? que enfrentaram os ataques britânicos. Durante a situação de emergência, o vice-
Nos anos 90, a inércia da América crioula parecia ter triunfado sobre a ino- -rei espanhol foi destituído pela audiência, e apesar de não haver intenção de
vação regalista e as ideias modernas: as reformas dos Bourbons haviam perdido deslealdade ao rei esta usurpação da autoridade legal permitiu que os crioulos de
o seu ímpeto e os administradores da Coroa tinham mais uma vez sido assimila- Buenos Aires experimentassem o poder direto sobre os seus assuntos - um pri-
dos pelas oligarquias coloniais. O fator decisivo não foi tanto o descontenta- vilégio que a Coroa negava às elites hispano-americanas desde a Conquista.
mento dos crioulos como a incapacidade da Espanha de exercer a autoridade Dado o colapso do comércio transatlântico e o estado abjeto da metrópole,
colonial e de proteger as suas colónias. O governo degenerado e mercenário de era pouco provável que as elites crioulas se resignassem a voltar à sua anterior
Carlos IV, dominado pelo amante da rainha, Manuel Godoy, teve uma política subserviência política em relação à Península. Na viragem de século, as relações
externa errática, que conduziu o país para uma aliança desastrosa com a França imperiais precisavam, claramente, de ser revistas, para que os crioulos obtives-
revolucionária. Seguiram-se as guerras com a Grã-Bretanha, que causariam a sem um papel reconhecido na sua própria governação. Mas que forma institucio-
ruína do poder naval espanhol e separariam a Espanha das suas colónias, des- nal poderia o poder crioulo assumir? Seria possível reconstruir a monarquia
truindo o seu monopólio de comércio com as índias. À derrota que Nelson infli- absoluta de modo a que as elites das índias alcançassem uma certa autonomia?
giu à frota espanhola no cabo de São Vicente, em 1797, seguiu-se um bloqueio Seria o caminho a seguir o de uma monarquia constitucional? Ou viria a repú-
a Cádis e aos portos espanhóis da América. Assim, não restava à Espanha outra blica a revelar-se, afinal, a única solução possível? Nada podia tornar-se claro no
opção senão a de abrir o comércio transatlântico a países neutrais. Quando a paz cenário confuso gerado pelas hostilidades contínuas entre as potências europeias.
foi assinada em 1802, os Espanhóis recuperaram algum controlo, mas voltaram E no entanto, pouco mais de um ano após as invasões britânicas na região do rio
a perdê-lo em 1805, quando se viram uma vez mais em guerra com Inglaterra, e da Prata, aqueles conflitos remotos no Velho Mundo teriam uma reviravolta
Nelson pôs então termo ao poder marítimo da Espanha no Atlântico, na Batalha inesperada, e o destino político da América espanhola ficaria à mercê dos acasos
de Trafalgar. Depois de Trafalgar, o monopólio do comércio espanhol com as e das oportunidades que fervilhavam na esteira do avanço triunfante de Napoleão
índias ficou definitivamente perdido; em 1807, já não chegavam navios do através dos reinos da Europa.
tesouro a Cádis, e a Espanha, privada dos seus mercados americanos e sem
metais preciosos, mergulhou numa grave crise económica. Nas colónias, a impo-
tência da metrópole e a escassez de provisões causada pelo bloqueio britânico A Reforma no Brasil
levaram a uma transição para o comércio direto com países neutrais como os
Estados Unidos, e até com a grande inimiga da Espanha, a Inglaterra. Embora Portugal não tenha sofrido, no século xvn, o severo declínio que
Quebrado o vínculo económico com a Espanha, os crioulos viram concreti- atingiu a Espanha, a verdade é que, relativamente às grandes potências euro-
zada uma das suas aspirações históricas; comércio sem restrições no sistema peias, estava numa posição de fraqueza e dependência. Ficara a dever a sua
atlântico. E no que respeitava ao vínculo político? Para as elites crioulas, a emancipação política da Espanha, em 1668, à proteção especial da Inglaterra,
monarquia católica tinha valor na medida em que era uma fonte de lei e de ordem que se tornou a principal fornecedora de bens do império português. Portugal
para as suas sociedades, mantendo os não-brancos no seu lugar. Mas o regime ficaria em constante défice no comércio com a Inglaterra; importava manufatu-
colonial estava agora a ser questionado de um modo até então inconcebível: ras e trigo britânicos em troca de azeite e vinho, e compensava a diferença expor-
as reformas da monarquia Bourbon tinham corroído a legitimidade da autori- tando o ouro do Brasil. O ouro brasileiro permitiu, com efeito, que o extrava-
dade real aos olhos de alguns setores da Igreja (grande parte do baixo clero, os gante D. João V evitasse as reformas. Mas quando a produção de ouro entrou em

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

dificuldades, nos anos 50 do século xviii, o novo rei, D. José I, aprovou um vasto prolongou-se pelos anos 50, até que, por fim, em 1758, Pombal conseguiu impli-
programa de reformas económicas e políticas. car os seus adversários numa conjura para assassinar o rei. A ordem foi expulsa
A restruturação de Portugal e do seu império foi concebida e dirigida pelo de todos os territórios do império em 1759, tendo as suas terras e propriedades
marquês de Pombal, cuja governação despótica, na qualidade de primeiro-minis- sido confiscadas. Pombal expropriou ainda grande parte da riqueza de outras
tro, decorreu entre 1750 e 1777. O seu programa assemelhava-se ao da elite ordens religiosas e restringiu as entradas em conventos e mosteiros - sendo um
ministerial da Casa de Bourbon em Espanha. Pombal apercebeu-se de que a moderaizador, Pombal via o peso económico da Igreja como um obstáculo à
eficácia económica passava pela modernização da sociedade e do Estado. Como regeneração.
os seus homólogos da monarquia Bourbon, apoiava a doutrina de regalismo ou O fortalecimento do poder real resultou num controlo mais centralizado da
despotismo iluminado, que tentou promover reformando o currículo da Univer- administração no Brasil. Em 1763, a capital do vice-reino foi transferida de Sal-
sidade de Coimbra, e nomeando para cargos importantes membros do clero que vador, no Nordeste, para o Rio de Janeiro, e os dois Estados em que o Brasil se
partilhavam das mesmas ideias. Os privilégios da nobreza foram reduzidos e a • dividira foram unidos em 1774 sob a autoridade de um único vice-rei. Na buro-
classe aristocrática abriu-se a homens de fortuna e de talento. Foram levantadas cracia imperial, os poderes dos funcionários da Coroa foram aumentados em
as restrições impostas aos cristãos-novos - homens de ascendência, judaica nor- relação aos dos conselhos locais eleitos. Em cada capitania-geral estabeleceu-se
malmente bem-sucedidos no comércio. Nas colónias, procurou-se incorporar um gabinete do tesouro, de modo a garantir a cobrança eficaz de impostos, e
índios e pessoas de cor livres na sociedade portuguesa. O objetivo por detrás intensificaram-se os esforços para controlar o contrabando de ouro e diamantes.
destas iniciativas era reunir novas energias que ajudassem a economia do impé- Pombal encarregou-se ele próprio dos assuntos do tesouro em Lisboa, consciente
rio português a libertar-se da sua dependência da Inglaterra. da necessidade de coordenar a política fiscal da Coroa para maximizar as receitas.
Como aconteceria em Espanha, a nova doutrina do direito divino dos reis Pombal e os seus sucessores sabiam que a chave para a reanimação de Por-
defendida por Pombal e pelo seu círculo suscitaria hostilidade por parte de tugal residia no crescimento da economia do Brasil. O que se pretendia era
alguns setores da Igreja. E, como nos territórios espanhóis, quem mais resoluta- aumentar e diversificar as exportações do império, para pôr fim ao défice relati-
mente se opunha ao despotismo esclarecido eram os jesuítas. Contudo, no caso vamente à Inglaterra, reservando o esperado crescimento do comércio para os
português, a contenda entre a Coroa e os jesuítas assumiu um carácter mais aceso súbditos da Coroa portuguesa. Pombal queria também racionalizar as trocas
e até violento. Tal deveu-se, em parte, à animosidade de Pombal para com a comerciais entre Portugal e o Brasil, dando um novo fôlego à indústria na metró-
ordem, e também ao facto de as missões jesuítas nas áreas envolventes dos rios pole, ao mesmo tempo que limitava a colónia à exportação de ouro, açúcar e
Paraguai e Paraná se terem estabelecido nas fronteiras disputadas entre o Brasil outros bens primários. Um sinal do desejo de estimular o comércio foi a aboli-
e os domínios da Coroa espanhola. ção, em 1766, do lento e pouco confiável sistema de frotas, que canalizava o
A fricção com os jesuítas a respeito da doutrina do regalismo foi levada para comércio exclusivamente através de comboios de navios em viagens calendari-
a geopolítica das reivindicações territoriais contra a Espanha, na América do Sul. zadas entre Lisboa e os portos brasileiros de Salvador e do Rio de Janeiro.
O Tratado de Madrid (1750) prometia pôr fim a estes dispendiosos conflitos nas Assim, começaram a atravessar livremente o Atlântico navios autorizados indi-
fronteiras: a Espanha aceitou abdicar da sua pretensão a territórios junto ao Ama- vidualmente, com destino a diferentes portos do Brasil e de Portugal.
zonas e a leste do rio Uruguai; em troca, Portugal abandonaria Sacramento, o seu O instrumento de revitalização económica que Pombal preferia era a compa-
centro de contrabando de prata no rio da Prata, em frente de Buenos Aires. Mas nhia de monopólio. Uma empresa obtinha o controlo exclusivo do comércio
o tratado não podia entrar em vigor enquanto os jesuítas e os Guarani a seu cargo numa dada zona e facultava crédito, capital e mão de obra escrava a produtores
nas missões paraguaias continuassem a resistir à jurisdição das autoridades por- locais, por forma a estimular a produção e a encorajar o cultivo de novas espé-
tuguesas. A sua recusa em evacuar as missões levou a uma guerra aberta em cies. O investimento na empresa estava aberto a estrangeiros, mas os cargos
1754-6. Na Amazónia, os jesuítas portugueses estavam a inviabilizar as tentati- executivos estavam reservados a portugueses. No Brasil, a companhia de
vas de Pombal de recrutar mão de obra índia. Grão Pará e Maranhão foi fundada em 1755 com o objetivo de desenvolver as
Perante a obstinação dos jesuítas, Pombal considerou a ordem uma força vastas regiões da Amazónia e do norte do Brasil. Foram introduzidas novas espé-
supranacional que conspirava contra a Coroa. Acusou os jesuítas de criarem • cies agrícolas, como o cacau, o algodão e o arroz, e surgiu no Maranhão uma
um Estado dentro de outro Estado, no Paraguai, pelo que estariam a usurpar os abrangente economia de plantação, assente no comércio de escravos africanos
direitos dos monarcas de Portugal e de Espanha. A disputa com os jesuítas organizado pela companhia. A exploração das regiões do Amazonas no Pará não

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HISTÓRIA DA A M E R I C A LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

teve o mesmo sucesso, principalmente devido à dificuldade de recrutar mão de O valor político deste sentido unitário de império era bem evidente para os
obra índia. As tribos índias resistiram à assimilação e os jesuítas opuseram-se estadistas portugueses. Pombal, por exemplo, tinha o cuidado de não afastar as
tenazmente à companhia. Em 1759 foi fundada uma empresa semelhante para elites brasileiras com as suas reformas. Os cargos administrativos e nas milícias
Paraíba e Pernambuco, com a intenção de reativar a economia de açúcar do Nor- recém-formadas estavam abertos a brasileiros; as oligarquias locais tinham per-
deste, que passara por dificuldades devido à concorrência das ilhas das Caraíbas missão para investir nas companhias de monopólio; a introdução de novas espé-
produtoras de açúcar. As exportações aumentaram, de facto, mas os maiores cies agrícolas em áreas até então despovoadas, assim como a expansão e a libe-
lucros iam para os comerciantes estrangeiros, que dominavam o comércio com ralização do comércio em geral, destinava-se a beneficiar tanto os portugueses
Portugal. O monopólio também tinha o efeito de tornar os preços elevados, o que americanos quanto os europeus. Até a expulsão dos jesuítas, que sempre se
retraía a produção. haviam oposto à escravização dos índios e à ocupação de terras nativas pelos
A morte de D. José I, em 1777, levou Pombal a demitir-se do seu cargo, mas colonos brancos, mereceu a aprovação brasileira - as grandes propriedades bem
os seus seguidores permaneceram no poder e deram seguimento à sua política até geridas dos jesuítas, bem como a mão de obra índia libertada pela destruição das
bem depois da viragem de século. Uma mudança significativa foi o encerra- missões, criavam excelentes oportunidades económicas para comerciantes e
mento das companhias de monopólio brasileiras em 1778-79. Mas isto fazia plantadores de posses. Considerava-se o Brasil uma parte de Portugal que, sim-
parte de uma política mais abrangente de reduzir as atividades monopolistas plesmente, ficava situada no outro lado do Atlântico - de tal modo que a possi-
por forma a estimular o comércio, um desígnio pombalino, para todos os efeitos. bilidade de transferir a corte imperial para o Brasil, em tempos de perigo, fora
No período em que Pombal estivera no poder, a economia do império português discutida em Lisboa logo em meados do século xvn.
não conseguira emergir da recessão e da dependência da Inglaterra - a indústria As revoluções americana e francesa mergulhariam toda a Europa, Portugal
do açúcar no Nordeste do Brasil entrara em declínio e a produção de ouro e dia- inclusive, num tumulto ideológico e militar. As réplicas chegaram ao Brasil,
mantes em Minas Gerais estava a decair. Porém, na década de 80, a situação foi combinando-se com descontentamentos locais, motivados pelos impostos e por
melhorando gradualmente, até que em meados dos anos 90 a balança do comér- excessos de funcionários públicos, para produzir conspirações ocasionais em que
cio com a Grã-Bretanha apresentava um excedente considerável, tendência que se acalentava a ideia de uma república. A mais importante dessas conspirações
se manteve até 1807. Com a revolta das suas colónias americanas, em 1776, a foi a Inconfidência Mineira de 1788-1789, que foi desmantelada em Ouro Preto,
Inglaterra passou a estar constantemente em guerra, e Portugal viu-se numa boa o centro da exploração de ouro de Minas Gerais, indústria que se encontrava em
posição para responder à procura britânica. A política de Pombal de diversifica- crise: muitos membros da elite local, incluindo oficiais do Exército, proprietários
ção e estímulo do setor agrícola começou a dar frutos à medida que a economia de terras, donos de minas, advogados e padres planearam derrubar as autoridades
brasileira preteria a exploração mineira em favor da produção agrícola (o café, e declarar uma república independente. Os rebeldes foram castigados, e um dos
em particular, viria a ganhar importância, até se tornar, no século xix, o principal seus líderes mais carismáticos, conhecido como Tiradentes, foi enforcado para
produto agrícola para exportação). servir de exemplo. Na Bahia ocorreu outra conspiração republicana frustrada, em
Em Portugal, o facto de o Brasil ser o motor da economia imperial era um 1798. Havia, neste caso, uma dimensão racial - muitos dos conspiradores eram
dado assente. O país invertera de facto o seu défice comercial com a Inglaterra, mulatos ou escravos negros; a sua retórica era influenciada pelas ideias revolu-
mas à custa de um défice crónico com a sua maior colónia. Apesar disso, o dese- cionárias francesas de igualdade e fraternidade. Estes ecos perturbadores das
quilíbrio não gerava frustração política no Brasil. Os Portugueses tinham conse- revoltas haitianas suscitaram uma reação severa da parte das autoridades - os
guido criar um sentido unitário de império, de tal modo que as elites coloniais se cabecilhas foram enforcados e os seus corpos exibidos publicamente. Outras
identificavam profundamente com a metrópole. Ao contrário do que sucedia na conspirações foram descobertas, e imediatamente reprimidas, no Rio de Janeiro,
América hispânica, não havia grande ressentimento contra os portugueses penin- em 1794, e em Pernambuco, 1801; e em 1807 desmascarou-se uma conspiração
sulares: não existia propriamente uma cultura brasileira distinta para a elite; o que pretendia desencadear uma revolta de escravos africanos na Bahia.
envolvimento dos plantadores de açúcar na economia de exportação criava um Tratava-se de episódios locais, isolados, e para a Coroa o perigo consistia,
interesse comum para homens de negócios, comerciantes de escravos e funcio- não no grau de oposição republicana, mas no facto de essa tendência se tornar
nários públicos portugueses; por fim, a presença esmagadora de africanos e conhecida. Traição e rebeldia nada eram de novo para a monarquia; simples-
mulatos reforçou a identificação dos brasileiros brancos com os seus primos mente, agora alguns dos seus súbditos conseguiam conceber uma sociedade em
europeus (os laços familiares eram, na verdade, estreitos). que os monarcas eram supérfluos. Que semelhante ideia pudesse ser posta em

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HISTÓRIA DA A M É R I C A L A T I N A R E F O R M A , CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

prática era ainda uma possibilidade remota no Brasil, mas os acontecimentos na viram-se beneficiadas, política e economicamente. Com a corte no Rio de
Europa eram de tal modo imprevisíveis que, passados alguns anos, a Coroa por- Janeiro, um novo sentido de unidade apoderou-se de uma vasta colónia cujas
tuguesa estaria perante a ameaça mortal de exércitos franceses. Como iria, então, regiões tinham, até então, estado muito afastadas uma da outra. Por outro lado,
reagir o Brasil? encontrando-se Portugal sob ocupação francesa, o monopólio de comércio tor-
nou-se inviável, pelo que o príncipe regente declarou a liberdade de comércio
com todas as outras nações. (A Inglaterra exigiu e conseguiu uma tarifa preferen-
Napoleão e a Crise de Legitimidade cial, e não tardou a dominar o comércio com o Brasil.) Havia, no entanto, alguns
no Mundo Ibérico (1808-10) focos de tensão: a Coroa fez-se acompanhar de vários milhares de cortesãos
portugueses e de todo o aparato do poder absoluto. Um controlo central mais
Em finais do século XVHI, a relação entre as monarquias ibéricas e as suas apertado, exercido pelo Rio de Janeiro sobre as capitanias, aliado a invejas polí-
respetivas colónias tornara-se tensa, devido às reformas modernizadoras, às ' ticas, na corte, entre oligarcas locais e nobres peninsulares, alimentou ressenti-
rebeliões e às vicissitudes da guerra na Europa. As elites americanas tinham mentos. Ironicamente, foi quando a monarquia se estabeleceu no Rio de Janeiro
razões para se sentir frustradas com a subordinação à metrópole: a liberalização que a rivalidade entre os seus súbditos peninsulares e os americanos se tornou
do monopólio de comércio trouxera prosperidade à maioria das regiões, mas isso mais notória. Ainda assim, entre 1807 e 1822, o Brasil gozaria de estabilidade,
servira, em larga medida, para evidenciar a natureza oportunista e colonial dos ordem e continuidade sob a Coroa. Nas índias espanholas, a situação seria bem
limites ainda colocados ao comércio direto com outros países, especialmente a diferente.
Grã-Bretanha. Por outro lado, a Revolução Francesa e o exemplo do Haiti mos-
traram às elites brancas das colónias o valor da Coroa enquanto responsável por A intervenção de Napoleão em Espanha originou a derrocada da autoridade
assegurar a lei e a ordem nas suas sociedades com divisões raciais. E no entanto, real na Península e nas colónias. Tendo ocupado Portugal, Napoleão enviou um
em Portugal como em Espanha, o regalismo anticlerical dos reformadores corro- exército francês para Espanha em março de 1808. A corte espanhola viu-se mer-
erá a base tradicional da legitimidade das monarquias católicas ibéricas, ao gulhada na confusão: Carlos IV foi persuadido a abdicar do trono em favor do
mesmo tempo que o Iluminismo apontava potenciais alternativas à soberania seu filho Fernando, mas Napoleão atraiu-os a ambos a Bayonne, onde arrancou
real, como os revolucionários da América inglesa haviam demonstrado. Em a renúncia a pai e filho. Depois, arranjou um estratagema para os reter indefini-
suma, as relações imperiais no início do século xix estavam sujeitas a críticas de damente em França, e entregou a coroa de Espanha ao seu irmão José. Mas
um modo que não fora possível desde o período de formação dos impérios ame- Napoleão não soube lidar com o povo espanhol: a 2 de maio de 1808, os habi-
ricanos; mas, uma vez mais, as elites americanas tinham de pesar os benefícios tantes de Madrid sublevaram-se contra as tropas francesas, e este levanta-
da liberdade política contra os riscos da desordem interna e de uma guerra racial. mento desencadeou revoltas por todo o país, em defesa do monarca legítimo,
De qualquer forma, não existia no seio das colónias uma força consistente Fernando VJJ, el deseado («o desejado»). O Francês impusera à Espanha uma
que pudesse ter derrubado a autoridade imperial. Foi toda uma série de aconte- nova dinastia, mas ao fazê-lo quebrara o acordo tácito entre o rei espanhol e o
cimentos externos, na Europa, que precipitou uma crise de legitimidade real no seu povo, quando só esse acordo poderia justificar o poder absoluto de um sobe-
mundo ibérico, uma crise cuja dimensão e cujo carácter repentino eram total- rano. Formaram-se, então, juntas militares em várias cidades e na ausência de um
mente imprevisíveis. Em Agosto de 1807, Napoleão pressionou Portugal a fechar monarca desejado estes conselhos assumiram uma soberania provisória, colo-
os seus portos aos navios britânicos. Por sua vez, a Inglaterra enviou uma frota cando-se sob a autoridade de uma Junta Suprema em Sevilha.
e ameaçou bombardear Lisboa e atacar o Brasil, caso os Portugueses satisfizes- A subida de José Bonaparte ao trono da Espanha originou uma grave crise
sem as exigências francesas. Quando, em novembro, um exército francês invadiu constitucional nas índias espanholas, ao tornar evidente a sua situação contradi-
o país, o príncipe regente decidiu salvar o trono de Portugal colocando-o a salvo tória. Ao invés do Brasil, as índias eram, em rigor, reinos de direito próprio,
no Brasil. Sob escolta britânica, toda a corte partiu para o Rio de Janeiro, que constitucionalmente distintos da Espanha, mas com um monarca em comum.
subitamente se tornou a capital do império português, num momento em que a O desaparecimento abrupto do soberano dinástico levantou a dúvida: a quem
autoridade real fora destruída na metrópole. cabia, afinal, a autoridade legítima? Pertenceria a José Bonaparte, aos vice-reis
Foi esta extraordinária sequência de acontecimentos que preservou, e até americanos, ou à Junta Suprema em Sevilha? E se coubesse aos próprios criou-
consolidou, a legitimidade da autoridade imperial no Brasil. As elites coloniais los, que poderiam estabelecer juntas, seguindo o exemplo espanhol, e assumir a

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REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA

soberania provisória na ausência de Fernando? Esta última hipótese tinha impli- Espanhóis impediu a criação de uma junta revolucionária na Cidade do México
cações revolucionárias, pois significava que, pela primeira vez na sua história, os por membros da elite crioula. Em vez disso, o apelo para que se rejeitasse Cádis
crioulos podiam legitimamente exercer o poder na América sem dever obediên- e se jurasse lealdade diretamente a Fernando Vil veio de baixo; foi proferido na
cia a um vice-rei e sem ser desleais ao rei. Esta era, naturalmente, a opção cidade de Bolores, na região central do Bajío, por um padre, Miguel Hidalgo,
apoiada pelos crioulos que queriam ver as índias avançar para uma qualquer que em breve se viu a liderar um violento movimento composto sobretudo por
forma de autonomia relativamente à Península. revoltosos índios e mestiços.
A questão da soberania criou divisões entre os crioulos, e entre crioulos e A situação que se vivia na América do Sul era muito confusa. O Peru, o
espanhóis, e as respostas variaram de uma região para outra. No México, o pro- velho coração do império espanhol, obedeceu ao seu vice-rei e seguiu Cádis. No
blema não tardou a ser resolvido: uma facão de comerciantes espanhóis lançou vice-reino de Nova Granada, foram proclamadas juntas revolucionárias em
um golpe de Estado contra o vice-rei Iturrigaray, que se mostrara favorável à várias cidades provinciais, das quais a mais radical foi a junta de Caracas, na
ideia de uma junta mexicana autónoma, e substituiu-o por um novo vice-rei leal • Venezuela, que ficou sob a influência de republicanos como Francisco de
a Sevilha. Noutras regiões, os defensores das juntas crioulas foram derrotados e Miranda e Simón Bolívar. No Chile, após algumas hesitações urna junta revolu-
a burocracia real, sob a autoridade de Sevilha, manteve o controlo central. Só as cionária tomou o poder em Santiago. O vice-reino do Rio de Ia Plata extinguiu-
juntas crioulas de Quito e de La Paz opuseram resistência, mas foram obrigadas -se. A sua capital, Buenos Aires, estabeleceu uma junta que, ao que parece, jurou
a render-se. lealdade a Fernando, mas que se viu fragmentada por conflitos entre moderados
Esta escaramuça preliminar mostrou duas coisas: primeiro, a força da auto- e partidários da secessão, como Mariano Moreno, Manuel Belgrano e Bernar-
ridade espanhola nas índias entre os próprios crioulos; segundo, o carácter dis- dino Rivadia. Por outro lado, cidades provinciais como Montevideu, Córdoba,
perso e dividido da oposição ao poder peninsular. Porém, a hesitação de alguns La Paz e Asunción, no Paraguai, optaram por reconhecer a autoridade de Cádis.
funcionários espanhóis - íturrigaray no México, por exemplo - era indício da Ajunta de Buenos Aires enviou então contingentes militares para submeter as
confusão política sob a aparente restauração da ordem. Com efeito, a autoridade províncias à sua autoridade. Para além das perturbações que se fizeram sentir
nas índias dependia do que pudesse acontecer na guerra contra Napoleão que se entre as elites crioulas, também as massas de índios e as castas - mestiços, mula-
travava na Península, e essa incerteza significava que todos os grupos de inte- tos e negros — reagiriam ao desmoronar da autoridade espanhola de formas que
resse da América hispânica se encontravam numa situação indefinida, em que as ninguém podia ainda prever —, embora no México os índios que haviam respon-
vantagens políticas podiam ser subitamente invertidas e as causas perdidas dido ao apelo do P.e Hidalgo tivessem começado a matar os seus opressores
podiam, com igual rapidez, ganhar novo vigor. brancos, independentemente de estes serem hispânicos ou crioulos.
A queda da Andaluzia às mãos dos Franceses, na primavera de 1810, causou O contraste com o Brasil não podia ser mais evidente. A Coroa portuguesa
uma reviravolta na América espanhola. A Junta Suprema de Sevilha refugiou-se iludira Napoleão e conservara uma autoridade legítima sobre o seu império.
em Cádis, onde sobreviveu precariamente, cercada pelo inimigo. Aí, reconsti- O Brasil permaneceu, assim, unido e em paz. Tal resultado não fora possível nas
tuiu-se como um «Conselho de Regência» e, caindo sob a influência de «libe- índias espanholas, pois tendo Napoleão usurpado o trono da Espanha, todas as
rais» - era a primeira vez que a palavra era usada na política europeia -, convo- velhas certezas que sustentavam a cadeia de comando imperial começaram a
cou as Cortes para incluir representantes de todo o império na elaboração de uma dissolver-se. Ò simples grito de lealdade a Fernando encerrava toda uma série de
constituição, a primeira na história da Espanha. Este desenvolvimento deixou às motivos diferentes, e muitas vezes contraditórios, entre os crioulos. Alguns dese-
elites crioulas a escolha entre duas opções fundamentais: podiam enviar delega- javam genuinamente permanecer leais à monarquia absoluta, outros esperavam
dos a Cádis, para negociar uma nova relação com a metrópole, ou podiam dar o usar a crise para obter direitos constitucionais da Coroa, outros ainda idealiza-
passo revolucionário de rejeitar a autoridade do Conselho de Regência e estabe- vam uma monarquia hispano-americana independente da Península. E uns pou-
lecer as suas próprias juntas em nome de Fernando. Simplesmente, a queda da cos - talvez ainda muito poucos - viam na profissão de lealdade ao cativo Fer-
Andaluzia levava a crer que Napoleão não tardaria a alcançar a vitória na Penín- nando pouco mais do que um pretexto para a completa secessão e para a
sula. Assim, muitos crioulos que de outro modo teriam uma postura conserva- declaração de uma república.
dora estavam convencidos de que a sujeição a Cádis era inútil. Em 1810, os três séculos da Pax Hispânica na América tinham chegado ao
Porém, mais uma vez, as índias estavam divididas na sua resposta aos acon- fim. Privados da monarquia católica, os crioulos viram-se à deriva no mar alto
tecimentos na Península. Na Nova Espanha, um golpe de Estado a favor dos da política, arrastados por correntes que ninguém sabia ao certo navegar. Opções

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

políticas inconcebíveis poucos anos antes surgiam agora, vagas> no horizonte, Ainda assim, a constituição de Cádis consagrava o direito a eleições livres e
como destinos possíveis. Alguns radicais aproveitaram a oportunidade para a uma imprensa livre, o que em princípio dava aos crioulos a oportunidade de
encaminhar as índias para tais fins, mas também eles seriam apanhados no tur- expressarem as suas queixas abertamente e de participarem de forma mais direta
bilhão de acontecimentos que varria a Península. A crise de legitimidade real na vida política das suas regiões. Mas nas índias, os vice-reis, habituados aos
dividiu irremediavelmente os crioulos, e os desentendimentos políticos em breve processos de uma monarquia absoluta, tentavam ignorar as liberdades concedi-
desencadeariam lutas fratricidas e, depois, uma série de violentas guerras civis. das em Cádis, ou, na impossibilidade de o fazerem, procuravam manipular as
eleições para os cabildos americanos. Em 1814, o imperialismo das Cortes de
Cádis, tanto quanto a intransigência dos funcionários da Coroa, parecia impedir
A América Hispânica: o Caminho para a Independência uma solução negociada para a crise imperial, o que afastava muitos crioulos.
Simplesmente, enquanto a autoridade metropolitana se encontrasse dividida
A PRIMEIRA FASE (1810-14) entre os parlamentares liberais de Cádis e os administradores conservadores nas
colónias, a situação política permaneceria fluida.
No período de 1810-14, a conquista de uma qualquer forma de autonomia Enquanto decorrera a busca por uma solução política, a partir de 1810, e um
para as índias dentro de uma estrutura imperial, sob a autoridade de uma monar- pouco por todo o território das índias, grupos de radicais crioulos tinham pegado
quia Bourbon restaurada, parecia exequível, e era uma solução política que reu- em armas para conquistar a independência total de Espanha. Embora ainda em
nia o apoio de uma maioria da opinião crioula. O Conselho de Regência, cercado escasso número, só podiam beneficiar da frustração da maioria perante a inflexi-
em Cádis, declarara a igualdade de todos os reinos do império e convocara bilidade do governo imperial. As rebeliões que levaram a cabo diferiram em
delegados para uma assembleia constituinte. Em 1812 foi proclamada uma cons- natureza e dimensão de uma região para outra, e o seu efeito sobre as maiorias
tituição liberal, que efetivamente previa o estabelecimento em Espanha de uma crioulas, nas suas respetivas áreas, foi igualmente variado.
monarquia limitada, em que o poder real prestaria contas a Cortes eleitas e os
direitos individuais seriam garantidos. A constituição de Cádis de 1812 tornou-
-se, então, o símbolo unificador dos liberais hispano-americanos e peninsulares, A rebelião no México
pois prometia aos crioulos aquilo a que eles sempre tinham aspirado - uma voz
mais forte no seu próprio governo, mantendo a monarquia como fonte legítima A rebelião em favor da independência no México foi diferente de todas as
de autoridade. outras revoltas no sentido em que veio de fora da elite crioula. Foi desencadeada
Porém, o liberalismo do governo de Cádis atingiu os seus limites quando se por um padre crioulo, Miguel Hidalgo, que fora reitor do prestigiado colégio de
tratou de lidar com o império. O governo de Cádis rejeitou a proposta dos dele- San Nicolás, em Valladolid (agora Morelia), mas que se incompatibilizara com
gados americanos para a formação de uma espécie de comunidade de reinos as autoridades reais devido aos seus interesses pelas ideias do Iluminismo e à sua
constitucionais autónomos sob a autoridade de um único monarca - para todos vida pessoal (vivia abertamente com a mãe das suas duas filhas). Hidalgo fora
os efeitos, a encarnação liberal da teoria de império dos Habsburgos. Os crioulos enviado pelo seu bispo para a pequena paróquia de Dolores, perto de Querétaro,
reivindicavam o direito a comerciar com o estrangeiro, uma representação pro- onde trabalhava entre índios e mestiços. Em 1810, participou numa conspiração
porcional nas Cortes, e igual acesso a todos os cargos governativos. Mas as de crioulos ricos para estabelecer uma junta revolucionária. Quando o plano foi
Cortes liberais em Cádis não estavam preparadas para fazer qualquer destas descoberto, Hidalgo apressou-se a apelar a um levantamento geral contra os
concessões, pois nem os liberais espanhóis contemplavam a hipótese de abdicar Espanhóis. Foi o famoso Grito de Dolores de 16 de setembro (atualmente cele-
do controlo político sobre as índias. Afinal, esse controlo providenciava ao brado como Dia da Independência do México). O Grito foi um apelo à indepen-
Estado espanhol receitas avultadas, na forma de impostos, direitos aduaneiros, dência em nome de Fernando VII e da Virgem de Guadalupe. Os objetivos de
empréstimos forçados e tributo índio, para além de lucros garantidos no mono- Hidalgo eram abrangentes mas difusos: abolição do tributo índio, restituição das
pólio do comércio para os exportadores espanhóis e para os comerciantes de terras índias e morte a todos os espanhóis.
Cádis (muitos dos quais eram, como seria de esperar, apoiantes dos liberais nas A reação da população rural foi explosiva, pois havia dois anos que a rica
Cortes). A verdade era que a Espanha dependia economicamente das suas coló- região agrícola do Bajío sofria com a seca e a fome, e os camponeses estavam
nias, e esse facto transformava liberais políticos em imperialistas obstinados. desesperados. Uma multidão de índios e mestiços sublevou-se e começou a

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

pilhar e a matar os brancos. No espaço de uma semana, os rebeldes capturaram procurando salvaguardai' os seus privilégios, mal se pensou que a Espanha fora
duas cidades e entraram na capital da província, Guanajuato, onde cercaram o dominada por Napoleão. Na verdade, os brancos da Venezuela encontravam-se
Alhóndiga - o celeiro municipal fortificado onde crioulos e espanhóis aterrori- em minoria, rodeados de uma massa de negros, índios e pardos mestiços, cujo
zados se haviam refugiado. Houve um massacre sangrento, a que seguiu a pilha- avanço durante o governo dos Espanhóis eles viam como uma ameaça à sua
gem da cidade. Três semanas mais tarde, Valladolid, a capital da província de autoridade social. Em março de 1811, elegeu-se um congresso, através de uma
Michoacán, tinha também caído, e os revoltosos, cujo número ultrapassava agora votação que excluiu os não-brancos.
os 80 000, dirigiram-se para a Cidade do México. O seu avanço foi, no entanto, Todavia, um grupo mais radical, que se autointitulava Sociedade Patriótica de
travado por um recontro penoso com forças realistas. Os rebeldes decidiram Caracas, incitou à declaração de uma república independente. A Sociedade Patrió-
recuar, mas no caminho de regresso a Querétaro foram detidos por outro exército tica era liderada por homens como Francisco de Miranda, que regressara à Vene-
real e sofreram uma derrota devastadora. Dividiram-se em duas forças, que iam zuela em 1810, e Simón Bolívar, membro de uma das mais ricas e mais poderosas
mirrando; uma delas retirou-se para Valladolid, e daí para Guadalajara, sob o. famílias da oligarquia venezuelana de plantadores de cacau. Era este o grupo
comando de Hidalgo, e a outra encaminhou-se para Guanajuato, liderada por social que mais tinha a ganhar com a separação da Espanha, assumindo depois o
Ignacio Allende. Apesar de ter conseguido recrutar mais camponeses em Guada- poder político sobre os não-brancos e abrindo o comércio com a Inglaterra e os
lajara, Hidalgo viu as suas forças esmagadas pelos realistas em janeiro de 1811. EUA. A 5 de julho de 1811, o congresso declarou a independência e fundou a
Fugiu para norte, mas foi capturado em março e fuzilado, juntamente com a primeira República da Venezuela. Miranda foi nomeado comandante supremo do
maioria dos seus comandantes; as suas cabeças foram expostas no tristemente exército republicano. A constituição previa uma estrutura federal, a igualdade legal
célebre Alhóndiga, em Guanajuato, onde permaneceriam durante dez anos. de cidadãos de todas as raças e a abolição dos privilégios clericais e militares.
A resistência seria pouco consistente ao longo do ano seguinte, após o que Contudo, na realidade, pouco fazia pelos indivíduos de cor: a maioria dos pardos
os rebeldes recuperaram alguma da sua força anterior sob a liderança de José era impedida de votar por um critério com base nas posses, a escravatura manteve-
Maria Morelos, um padre mestiço de Michoacán, cuja competência militar e inte- -se, e os llaneros, os cavaleiros das planícies, eram afastados por medidas destina-
ligência política tornaram o movimento de independência mais coerente do que das a colocar os lianas (planícies) em mãos privadas. Quando, em março de 1812,
fora com Hidalgo. Morelos pôs de lado a profissão de lealdade a Fernando VII e uma pequena força espanhola chegou de Porto Rico comandada por Domingo de
delineou um programa radical, que incluía a redistribuição de terra e a plena Monteverde, os não-brancos tentaram a sua sorte junto dos realistas e, passados
integração de índios e mestiços na sociedade. Tendo-se apoderado da cidade de poucos meses, o exército republicano rendeu-se a Monteverde. O seu líder,
Oaxaca, no Sudoeste, organizou um congresso em Chipalcingo, no ano de 1813, Miranda, foi deportado para Espanha e morreu na prisão alguns anos mais tarde.
onde a independência foi declarada a 6 de novembro. Este governo republicano Simón Bolívar conseguiu todavia fugir para Nova Granada, onde as juntas
alternativo, com o seu pequeno exército, foi continuamente perseguido por for- da província lutavam entre si para definir os termos da sua associação. Uma
ças realistas - Oaxaca foi recuperada no início de 1814 - e não conseguiu grande federação precária - as Províncias Unidas de Nova Granada - formara-se sob a
apoio entre os crioulos. No entanto, apesar dos conflitos internos que levaram ao chefia de Camilo Torres em finais de 1811; mas ajunta da capital do vice-reino,
afastamento de Morelos da liderança, a revolta prosseguiu, obstinadamente, Bogotá, rejeitou a constituição federal e estabeleceu-se como o Estado indepen-
desafiando as probabilidades. O congresso republicano aprovou uma constitui- dente de Cundinamarca, sob a liderança de António Narifio, um conhecido dis-
ção em Apatzingan, em outubro de 1814, mas nessa altura Fernando já se encon- sidente liberal no tempo da monarquia Bourbon. Outras cidades e províncias,
trava em liberdade e a monarquia absoluta foi restaurada em Espanha e nos seus como Panamá, Santa Marta e Pasto, permaneceram leais ao Conselho de Regên-
domínios. Morelos foi capturado em 1815 e executado. cia de Cádis. A extrema fragmentação política do vice-reino originou confrontos
armados entre facões crioulas revolucionárias.
Apesar da desordem, Bolívar conseguiu a ajuda das Províncias Unidas de
A rebelião em Nova Granada Nova Granada para uma nova campanha contra os realistas da Venezuela.
Naquela ocasião, o seu objetivo político era tirar partido da recusa dos libe-
Das várias juntas revolucionárias que surgiram em 1810 no vice-reino de rais de Cádis em fazer concessões relativamente à autonomia para as índias
Nova Granada, foi a de Caracas que mais depressa avançou para o republica- Em 1813, Bolívar entrou na Venezuela e declarou uma «guerra até à morte»
nismo e para a inevitável luta armada. As elites crioulas agiram rapidamente, contra a autoridade da Espanha, pretendendo assim forçar os crioulos hesitantes

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H I S T Ó R I A D A A M É R I C A LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

a escolher entre a independência ou a submissão a um colonialismo que não dava incluídos na junta de Buenos Aires; o conservadorismo dos novos elementos
sinais de ceder. Travando uma campana admirable, chegou a Caracas em agosto moderou o fervor jacobino dos políticos portenos, mas, na ausência de um líder
e declarou uma segunda república, assumindo as funções de um ditador militar, forte, o governo crioulo na capital continuou dividido pelas diferentes facões.
visto que se desencantara com as assembleias democráticas ao observar a caótica Em 1813, ajunta convocou uma assembleia nacional daquilo que agora desig-
situação de Nova Granada. Mas a Segunda República ruiu ao fim de alguns nava como Províncias Unidas de Rio de Ia Plata, apesar de ainda não ter sido
meses: Bolívar não conseguira o apoio dos pardos, muitos dos quais haviam sido declarada a independência da Espanha.
recrutados por um espanhol, José Tomás Boves, para um movimento de guerri- Algumas províncias do vice-reino recusaram-se, no entanto, a aceitar a auto-
lha leal ao rei. Na batalha de La Puerta, a 15 de junho de 1814, o exército de ridade dos revolucionários de Buenos Aires, nomeadamente, Paraguai, Banda
Bolívar foi vencido pelas guerrilhas realistas de Boves. Oriental (Uruguai atual) e Alto Peru (agora a Bolívia) — a província andina onde
De regresso a Nova Granada, Bolívar juntou-se à disputa entre centralistas e se situavam as grandes minas de prata de Potosí e cuja economia, até 1776, se
federalistas até se desiludir com o descontrolo dos revolucionários e em 1815 centrara em Lima. Buenos Aires tentou submeter estas províncias pela força das
partiu para a Jamaica. De qualquer modo, os movimentos independentistas em armas. Um exército liderado por Juan José Castelli tomou Potosí e aliou-se a
Nova Granada não resistiriam a um contra-ataque organizado na Venezuela por rebeldes locais para conquistar o Alto Peru aos realistas, mas passados meses
Pablo Morillo, um general espanhol extraordinariamente competente que fora fora derrotado por um exército do Peru. Outra expedição, liderada por Manuel
enviado da Península, na primavera de 1815, para pacificar as índias, acompa- Belgrano, reconquistou Potosí, sendo novamente expulsa pelos realistas. Uma
nhado por um exército de 10000 homens. Em 1816, tanto a Venezuela como terceira tentativa de ocupar o Alto Peru foi rechaçada em 1815, e Buenos Aires
Nova Granada estavam novamente sob controlo dos realistas. teve finalmente de abandonar aquela província e as suas minas de prata.
Buenos Aires perdeu também o Paraguai. Em 1811, um exército porteno
chefiado por Manuel Belgrano foi vencido por milícias lealistas. Pouco depois,
A rebelião em Rio De Ia Plata formou-se em Asunción uma junta que acabou por abrir caminho à ditadura de
José Gaspar Rodríguez de Francia e, sob a autoridade excêntrica e determinada
O outro teatro de conflito militar na América do Sul foi Rio de Ia Plata, ter- do novo líder, esta província seguiu, a partir de então, um caminho independente.
ritório que, à semelhança de Nova Granada, só fora elevado ao estatuto de vice- A Banda Oriental, do outro lado do rio Paraná, causaria constantemente proble-
-reino algumas décadas antes, e onde a autoridade política não estava devida- mas a Buenos Aires, durante as guerras da independência e até muito depois de
mente enraizada na nova capital, Buenos Aires. A 25 de maio de 1810, uma junta estas terem terminado. José Gervasio Artigas, um rancheiro da região, iniciou a
que proclamara lealdade a Fernando VII tomou o poder em Buenos Aires, e não revolta contra os realistas de Montevideu e pediu apoio a Buenos Aires. Mas
tardou a cair sob a influência retórica de radicais jacobinos como Mariano Artigas mostrou-se renitente em aceitar a autoridade dos portenos, e as relações
Moreno, jornalista liberal e tradutor do Contrato Social de Rousseau. A junta entre os aliados oscilaram durante a guerra para libertar Montevideu. Com a
liberal abriu o porto de Buenos Aires ao comércio com todas as nações e procla- queda da cidade, em 1814, Artigas assumiu o controlo da província e implemen-
mou a igualdade de todos os cidadãos, independentemente da sua raça. Mas, tou uma política agrária radical, dividindo as grandes fazendas e distribuindo
na realidade, a junta expressava os interesses dos portenos - a elite de Buenos terra pelos índios, mestiços e pequenos agricultores. Todavia, em 1816 foi esma-
Aires -, cujas medidas pretendiam atacar os comerciantes de importação-expor- gado por um exército invasor vindo do Brasil.
tação espanhóis, e que tiveram o cuidado de excluir os setores não-brancos do Já em 1815 a liderança de Buenos Aires das Províncias Unidas de Rio de Ia
governo. Plata era claramente instável. Grandes extensões do vice-reino haviam escapado
Os elementos radicais de cor da junta de Buenos Aires pouco fizeram para a por completo à autoridade dos portenos, enquanto outras províncias interiores se
recomendar às oligarquias das províncias do interior, e uma reação lealista na revelavam rebeldes; a própria elite de Buenos Aires continuava dividida, e a
velha cidade de Córdoba, onde havia uma audiência e uma universidade, foi maioria conservadora mostrava-se cada vez mais descontente com o radicalismo
esmagada pelos liberais portenos, que executaram os líderes do levantamento; de advogados transformados em políticos profissionais. Quando o movimento
fizeram o mesmo a Santiago Liniers, que comandara as forças milicianas respon-^ pela independência começou a perder a força, só a grande distância entre Buenos
sáveis pela expulsão dos Britânicos do rio da Prata em 1806-1807. Mas a hosti- Aires e a metrópole salvou os revolucionários liberais de um castigo militar
lidade das províncias acalmou-se quando delegados do interior foram, por fim, imediato por parte de Espanha, quando Fernando VII recuperou o trono.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

O REGRESSO DO REI que pelo menos conheciam, e dar um salto no escuro atrás de uns quantos radi-
cais divididos.
Com a derrota de Napoleão na península Ibérica, em 1814, Fernando VII, Os dirigentes da minoria radical estavam cientes da mudança nas circunstân-
que acabara de recuperar o seu trono, procurou reconstruir a autoridade que tão cias políticas e da necessidade, por conseguinte, de tornar os seus programas
subitamente ruíra seis anos antes. O seu regresso a Espanha fora celebrado pelo independentistas apelativos à massa de crioulos conservadores. Até em Buenos
povo como uma vitória nacional e, tomando partido dessa imensa devoção popu- Aires - em tempos um foco de republicanismo - os líderes crioulos procuravam
lar, Fernando reinstaurou o poder absoluto: as Cortes de Cádis foram dissolvidas, atívamente uma solução monárquica para a luta pela independência. Embora
a constituição de 1812 foi abolida e a rutura com a Igreja foi sanada, a ponto de uma conciliação com Fernando VII estivesse, aparentemente, fora de questão,
se restaurar a Inquisição e a Ordem dos Jesuítas. Convencionalmente retratado dada a aversão do rei ao constitucionalismo, tinham sido enviados à Europa
pelos historiadores liberais como um autocrata obstinado, incapaz de zelar pelos enviados da junta de Buenos Aires para procurarem um príncipe que quisesse
seus próprios interesses, Fernando, embora um Bourbon, estava a tentar recupe- . sentar-se no trono de um reino independente no rio da Prata. Personalidades
rar o tradicional monopólio de legitimidade de que haviam gozado os monarcas influentes como Manuel Belgrano, outrora um republicano jacobino e apoiante
Habsburgos, legitimidade que durante mais de dois séculos servira para garantir de Mariano Moreno, defendiam agora uma monarquia encabeçada por um des-
a obediência dos súbditos das índias. Afinal, os seus antecessores imediatos cendente do Inça. José de San Martin, um soldado profissional que servira em
pouco mais tinham feito, com as suas reformas modemizantes, do que enfraque- Espanha e que em breve assumiria o comando de um exército de libertação, era
cer a autoridade do trono e danificar o sen pacto com a Igreja; os liberais de também favorável à criação de uma monarquia hispano-americana independente.
Cádis tinham ido ainda mais longe, reconfigurando toda a base da soberania real Até Simón Bolívar, um republicano convicto, entendeu que devia dar ao
ao fazê-la depender da vontade do povo. E o resultado de todas aquelas inova- seu programa um pendor marcadamente conservador. Dececionado com a anar-
ções fora a rebelião na América e o risco de perder o império para uma qualquer quia que vira em Nova Granada, concluíra que o republicanismo na América do
potência estrangeira como a Inglaterra. Sul não podia seguir o modelo norte-americano, muito menos o da Revolução
As hipóteses de a Espanha recuperar o terreno perdido nas índias eram muito Francesa. Estava cada vez mais convencido de que uma democracia eletiva sem
favoráveis: o México estava praticamente pacificado; Nova Granada fora recu- restrições seria catastrófica para sociedades que, a seu ver, tinham sido mantidas
perada em 1816 e estava nas mãos competentes do general Morillo; ajunta de num estado de imaturidade política por aquilo que lhe parecia ser a «tirania da
Buenos Aires revelara-se incapaz de estender a sua autoridade ao interior das Espanha». Assim, o caminho a seguir teria de ser um compromisso entre autori-
províncias, e um exército espanhol bem equipado não tardaria a subjugar as dade e democracia. Na sua Carta da Jamaica de 6 de setembro de 1815, Bolívar
forças revolucionárias, que em larga medida se compunham de relutantes cam- revelou um pragmatismo nascido da desilusão, observando que a América his-
poneses crioulos e escravos negros. Com efeito, a Espanha esteve muito perto de pânica devia «não adotar o melhor sistema de governo, mas aquele que tem
esmagar por completo a reivindicação crioula à independência, e o seu domínio melhores hipóteses de sucesso» (*). Sem abandonar o seu empenho para com o
poderia ter-se mantido ao longo de todo o século xix, quiçá até mais tarde. (Cuba, republicanismo, Bolívar encontrava agora na monarquia britânica um modelo
Porto Rico e as Filipinas só se tornaram independentes em 1898.) A maré vol- para as constituições hispano-americanas, e contemplava a possibilidade de a
tara-se contra os defensores da independência, e correria a favor da monarquia Inglaterra ser convidada a tornar-se tutora e protetora das nações libertadas do
católica até 1820. jugo espanhol.
A partir de 1814, os crioulos enfrentaram uma situação política muito dife- Estes reajustes ideológicos foram acompanhados de mudanças nas estraté-
rente da que se vivia quando Napoleão se apoderara da Coroa espanhola e con- gias políticas e militares. Tanto Bolívar como San Martin percebiam a inutili-
quistara, ao que parecia, toda a península Ibérica. Com o rei legítimo de regresso dade de confrontos diretos com exércitos realistas. Em vez disso, procurariam a
ao seu trono, a oposição à administração colonial tinha necessariamente de ser vantagem da surpresa apoderando-se de território vulnerável e estabelecendo
considerada traição. Parecia, então, possível, que o pacto colonial fosse restau- um governo independente, oferecendo assim aos crioulos um destino político
rado, e os crioulos abdicaram da autonomia formal em troca da unidade e da
estabilidade que a monarquia católica conferia às sociedades diversas e racial-
(*) Escritos dei Libertador (Caracas, 1964, vol. 8, p. 241. Citado, em John Lynch, Simón
mente divididas do Novo Mundo. Como sucedera no período de 1808-10, a
Bolívar and lhe Age ofRevolution (University of London, Institute of Latin American Studies'
maioria dos crioulos teve de optar entre acolher o demónio do absolutismo, algo Working Papers, n° 10: London, 1983), p. 15.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA R E F O R M A , CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

alternativo à monarquia católica. Em 1817, San Martin e Bolívar estavam pron- contornar as regiões costeiras a norte e, especialmente, Caracas, onde se encon-
tos para levar a cabo novas campanhas nos seus respetivos teatros de guerra. trava o general Morillo com o grosso das forças monarquistas.
Em Angostura, Bolívar convocou um congresso nacional em fevereiro de
1819 e delineou uma constituição para a futura república. Propôs um presidente
As Guerras da Independência na América do Sul executivo forte, que responderia pelas finanças perante uma assembleia legisla-
tiva. A semelhança do parlamento britânico, essa assembleia seria constituída
No rio da Prata, San Martin reuniu um «Exército dos Andes», mas em vez por duas câmaras, sendo uma delas eleita e a outra um senado hereditário. Bolí-
de avançar para o Alto Peru, onde três campanhas anteriores haviam fracassado, var recomendou também um poder judiciário independente, e, como prevenção
decidiu atravessar o rio para o Chile e depois de libertar este território seguiu por adicional relativamente aos males de uma democracia sem limites, um «poder
mar para Lima, o centro do poder régio na América do Sul. Ao atravessar os moral», que seria formado por um conjunto não eleito de cidadãos ilustres encar-
Andes, em fevereiro de 1817, defrontou uma força monarquista em Chacabuco- regados de zelar pela virtude na condução dos assuntos públicos. O congresso
e prosseguiu até à capital, Santiago. Aí formou um governo chefiado por Ber- rejeitou, todavia, tanto o senado hereditário como o poder moral.
nardo 0'Higgins, um comandante chileno do seu exército, e em fevereiro de Das planícies centrais da Venezuela, Bolívar seguiu para leste, na direção de
1818 foi formalmente declarada a independência. Após a vitória em Maipú, em Nova Granada, evitando os realistas no norte e planeando juntar-se aos republi-
abril, a libertação do Chile estava praticamente concluída, embora as tropas lea- canos comandados por Francisco de Paula Santander, no outro lado dos Andes.
listas tenham continuado a resistir ainda durante algum tempo. O seu objetivo era lançar um ataque contra Bogotá, a capital do vice-reino.
A tarefa seguinte consistiu em preparar o assalto ao Peru. Para esse fim, San Depois de sofrer tremendas dificuldades na marcha através das planícies e na
Martin recebeu material e apoio financeiro do regime de 0'Higgins; muitos chi- escalada ainda mais árdua até aos cumes gelados dos Andes, os homens de Bolí-
lenos ofereceram-se como voluntários para servir no exército de libertação e a var uniram-se aos de Santander, e em Boyacá, em agosto de 1819, o exército
pequena frota de navios de guerra de San Martin, sob o comando do aventureiro republicano infligiu uma derrota decisiva às forças realistas. Quando Bolívar
escocês lorde Cocnrane, foi tripulada sobretudo por marinheiros chilenos. Mas a entrou em Bogotá, alguns dias mais tarde, Nova Granada já caíra às mãos dos
posição de San Martin era pouco sólida. Um elemento crucial da sua estratégia revolucionários. Em dezembro, deu-se a declaração da independência de todas
era o apoio logístico que O'Higgins lhe providenciaria a partir do Chile livre. as províncias do vice-reino e foi fundada a República da Colômbia. Os rebeldes
Contudo, ainda San Martin não zarpara do Peru e já O'Higgins se via em dificul- tinham criado a estrutura de um Estado alternativo: dominavam a capital do vice-
dades: assumira poderes ditatoriais para impor reformas liberais que tinham -reino, bem como extensas áreas de Nova Granada e da Venezuela. Mas faltava
afastado setores importantes da elite chilena. Também não conseguira destruir os Quito, Panamá e as regiões mais populosas da Venezuela, incluindo Caracas; e
últimos bastiões da resistência lealista. Com as fundações políticas do regime havia que enfrentar as principais forças realistas, comandadas por Morillo.
chileno visivelmente abaladas (O'Higgins seria afastado do governo em 1823), Na luta pela independência, durante os cinco anos que se seguiram à recupe-
o panorama que se oferecia a San Martin, aquando da sua partida, em agosto de ração do trono por Fernando (1814-19), as forças realistas estiveram em vanta-
1820, para enfrentar a força do império espanhol, era extremamente incerto. gem. Mas os dois principais exércitos separatistas da América do Sul tinham
Em 1817, Símon Bolívar tinha já regressado à Venezuela, onde iniciou uma alcançado importantes objetivos estratégicos - aguardava-os ainda o confronto
campanha no oeste, ocupando a cidade estratégica de Angostura, que, estando com a força plena do Estado imperial, mas antes de isso acontecer a situação
situada junto ao Orinoco, lhe permitia receber apoio por mar, ao mesmo tempo política sofreria outra mudança totalmente inesperada, que interferiria decisiva-
que propiciava o acesso às planícies centrais por via fluvial. No final do ano, mente no equilíbrio de forças, colocando-os em vantagem.
tinha estabelecido contacto com José António Páez, o líder temido dos llaneros
de sangue misto, que vinha travando uma luta de guerrilha contra os realistas.
Desta vez, Bolívar teve o cuidado de não repetir o erro que lhe custara a sua O MOTIM DE CÁDIS DE 1820
Segunda República: concedeu alguns incentivos políticos limitados a pardos
e a escravos negros, para que estes combatessem ao seu lado. A aliança com O ponto de viragem seguinte no ziguezague do processo de independência
Páez revelar-se-ia vital para a campanha, pois não só alargou a base étnica da surgiu não nas índias mas, mais uma vez, na Península. A l de janeiro de 1820,
revolução como deu a Bolívar o acesso às planícies centrais, o que lhe permitiu um exército de aproximadamente 14 000 homens, reunido em Cádis com o

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

propósito expresso de reconquistai' os territórios rebeldes do rio da Prata, amoti- uma força de rebeldes exausta no Sul, liderada, após a morte de Morelos, por um
nou-se subitamente. A maioria das guarnições em Espanha aderiu ao pronuncia- mestiço, Vicente Guerrero. Em novembro de 1820, o vice-rei Apodaca enviou
miento e Fernando VII, ameaçado pelo seu próprio exército, viu-se obrigado a Agustín de Iturbide, um veterano crioulo da sua confiança, que participara nas
renunciar ao absolutismo e a aceitar a constituição de Cádis de 1812. campanhas contra Hidalgo e Morelos, para infligir o golpe final aos separatistas.
Porque se revoltou o exército? A causa imediata não tinha tanto a ver com Mas a notícia do motim de Cádis mudara a atitude de Iturbide relativamente à
convicções liberais como com o descontentamento relativamente ao soldo e aos ligação entre o México e a Espanha: Iturbide entrou em contacto com o líder
planos para reduzir as forças armadas. Mas as consequências foram tão graves rebelde Guerrero e forjou com ele uma aliança contra o governo espanhol. luntos
porque as Cortes de Cádis tinham apresentado, na constituição de 1812, uma elaboraram o Plano de Iguala a 24 de fevereiro de 1821, e foi este documento
fonte alternativa de legitimidade política que os opositores da vontade real que guiou o México numa transição para independência em que quase não houve
podiam invocar, partilhassem ou não da ideologia liberal. Anteriormente, esta sangue derramado.
alternativa não estava disponível para os rebeldes que desafiassem a Coroa.. Segundo o plano de Iguala, o México tornar-se-ia uma monarquia indepen-
A verdade é que após a intervenção de Napoleão na Península, a Coroa não con- dente, limitada pela constituição de 1812 de Cádis, tendo Fernando VII ou um
seguira restabelecer o seu monopólio de legitimidade; a própria monarquia cató- dos seus irmãos como imperador; o catolicismo continuaria a ser a única religião
lica fora lançada à deriva no mar da política, e esta última tempestade em Cádis legítima e a Igreja conservaria as suas propriedades e os seus privilégios; todos
levaria ao fim da sua autoridade na América. os súbditos, incluindo índios, mestiços e os muitos espanhóis que viviam no
O motim de Cádis minou a posição dos vice-reis espanhóis e dos comandan- México, gozariam de igualdade perante a lei. Seriam esses os três pilares da nova
tes em campanha nas índias. O novo governo liberal de Espanha ordenou às ordem - Independência, Religião e União -, e teriam a defendê-los um Ejército
autoridades coloniais que procurassem um cessar-fogo com os revoltosos, como Trigarante, o Exército das Três Garantias, constituído pela fusão das tropas rea-
primeiro passo para a negociação de um acordo que pusesse fim à longa crise listas de Iturbide com as forças rebeldes de Guerrero. O Plano oferecia algo
colonial. Como os revolucionários americanos logo concluíram, a iniciativa - embora não tudo - a cada um dos principais grupos de interesse do México,
equivalia a uma capitulação por parte de Espanha, pois demonstrava que a contemplando desde os tradicionalistas católicos aos reformadores liberais; hon-
monarquia católica não tinha condições para recuperar a sua autoridade nem em rava até a Espanha como metrópole, sentimento que ainda era partilhado pela
Espanha nem na América. Com a legitimidade real assim contestada e diminu- maioria dos Mexicanos. Iguala foi, em suma, um compromisso criativo que
ída, que benefícios poderiam os liberais espanhóis oferecer às colónias que os muito pouco tempo depois se cristalizou num consenso nacional. Passados seis
crioulos não conseguissem alcançar por si? Não havia, certamente, razão para se meses, contava já com o apoio de todas as principais guarnições no México, e o
submeterem a um monopólio comercial e a uma administração política dirigida novo vice-rei enviado da Península teve de reconhecer que o país tinha efetiva-
mente conquistado a sua independência, facto que foi ratificado por tratado a
por liberais imperialistas da Península.
Com efeito, a revolta de Cádis pôs fim ao único grande benefício que levara os 24 de agosto de 1821. Um mês mais tarde, Iturbide entrou vitoriosamente na
crioulos a aceitar as restrições coloniais: a autoridade unificadora e estabilizadora Cidade do México e assumiu o cargo de presidente da Regência do Império
da monarquia absoluta. Sem esse benefício, o pacto colonial perdia o seu valor. Mexicano.
De 1820 em diante, a maioria dos crioulos afastar-se-ia da sua inveterada lealdade O Plano de Iguala foi bem-sucedido porque conciliava dois interesses histó-
à Coroa, caminhando para a aceitação da inevitabilidade da independência. Res- ricos das elites crioulas que nunca antes haviam coincidido num único acordo
tava, claro está, a tarefa assombrosa de derrotar os exércitos lealistas no campo de político: permitia a autonomia legítima crioula, garantindo, ao mesmo tempo, a
batalha, mas na guerra política e psicológica os separatistas já tinham a vitória. autoridade social com base numa estrutura monárquica e religiosa. Não era,
assim, de admirar que atraísse outras elites regionais. O novo império mexi-
cano convidou a capitania-geral do lucatão, bem como as províncias da Amé-
rica Central, que incluíam o reino da Guatemala (nomeadamente, Chiapas,
A INDEPENDÊNCIA DO MÉXICO
Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e a própria Guatemala) a junta-
Foi no México que a súbita inversão da vantagem política e psicológica* rem-se-lhe segundo os termos de Iguala. Todas concordaram, com exceção de
determinada pelo motim de Cádis teve o efeito mais impressionante. Entre 1815 El Salvador, que foi prontamente obrigado por um exército mexicano a rever a
e 1820, a causa da independência ainda tremeluzia na resistência oferecida por sua posição.

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H I S T Ó R I A D A A M É R I C A LATINA R E F O R M A , CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

Mas a Espanha tentaria destruir o acordo de Iguala recusando-se a aceitar A INDEPENDÊNCIA DA AMÉRICA DO SUL
os factos políticos. O governo liberal da Península negou-se a reconhecer a
independência mexicana. Pior ainda, nem Fernando nem qualquer dos príncipes Na América do Sul, onde as insurreições tinham sido bem mais substanciais
espanhóis se deixava persuadir a aceitar a Coroa mexicana. Esta rejeição de uma do que no México, o efeito imediato da revolta de Cádis foi tirar o tapete aos
monarquia mexicana por parte dos Bourbons privava o Plano de Iguala de um comandantes das forças realistas. Tendo-lhes sido ordenado pelo novo governo
elemento crucial, pois com uma quebra da linha dinástica a legitimidade da liberal em Espanha que propusessem uma trégua aos rebeldes, as autoridades
Coroa mexicana ficava irremediavelmente comprometida. coloniais verificaram que o moral dos seus soldados estava a esmorecer; muitos
Iturbide tentou, ainda assim, salvar a instituição da monarquia no México. oficiais e soldados crioulos dos exércitos realistas começaram a desertar para o
Na noite de 18 de maio de 1822, uma manifestação pública liderada por soldados lado dos rebeldes e até os oficiais da Península estavam divididos entre liberais
do seu próprio regimento proclamou-o Agustín I do México; sucumbindo à pres- e absolutistas.
são popular, o congresso aceitou-o como imperador. Mas Iturbide não consegui- Os acontecimentos de 1820 em Espanha influenciaram as táticas seguidas
ria conjurar a aura sagrada da realeza, e só isso lhe poderia trazer a lealdade de por San Martin na sua campanha para ocupar o Peru. Estabelecendo uma base a
todos os seus súbditos. A aristocracia crioula não lhe perdoaria ser filho de um norte da capital, San Martin não atacou Lima imediatamente, calculando, e bem,
comerciante, os seus oficiais viam-no como um maquinador político, e os Espa- que se esperasse tempo suficiente a confusão política no campo realista lhe daria
nhóis que residiam no México continuavam a querer um verdadeiro príncipe. o apoio de uma parte substancial da opinião crioula peruana. Assim, encetou
Finalmente, os apelos à formação de uma república, que até então haviam sido negociações com a administração colonial para tentar chegar a um acordo. Advo-
praticamente ignorados, começaram a suscitar reações no México. Vendo o con- gou uma solução semelhante ao Plano de Iguala de Iturbide: queria estabelecer
senso que sustivera o Plano de Iguala desmoronar-se, o novo imperador crioulo uma monarquia constitucional inteiramente independente, com um príncipe de
tomou medidas arbitrárias para reforçar a sua autoridade, mas tudo o que conse- sangue no trono. As negociações não foram longe porque os monarquistas esta-
guiu foi gerar mais hostilidade. Em dezembro de 1822, um coronel jovem e vam demasiado divididos; um golpe militar depôs o vice-rei, substituindo-o pelo
ambicioso, António López de Santa Anna, tirou partido da situação e proclamou intransigente José de Ia Serna, que em julho de 1821 decidiu retirar-se de Lima
uma república, conquistando rapidamente o apoio de vários generais desconten- e ir para as terras altas, onde poderiam ser organizadas defesas mais fortes contra
tes. O grosso do Exército colocou-se ao lado dos rebeldes e, a 19 de março de os separatistas.
1823, Agustín I abdicou. Seria executado um ano mais tarde, quando deixou o Então, em julho, San Martin entrou em Lima e declarou a independência do
seu exílio na Europa e regressou ao México, erroneamente convencido de que Peru. Mas não tardou a ver-se em apuros: a aristocracia de Lima, profundamente
poderia recuperar o trono. conservadora, ressentiu-se das suas medidas discriminatórias contra os espa-
Assim, decorridos apenas dois anos da declaração de independência com nhóis peninsulares, e também dos impostos a que sujeitou os crioulos para finan-
base no Plano de Iguala, o princípio da monarquia fora destruído por um golpe ciar o seu exército; e o apoio logístico do Chile tornara-se incerto, uma vez que
de Estado militar, o primeiro de muitos no México independente. Foi declarada o regime de O'Higgins se via também em dificuldades. Em 1822, após um ano
uma república federal, que teve no general Guadalupe Victoria o seu primeiro de adiamento tático, adiamento que começava a parecer falta de determinação
presidente. As províncias da América Central, à exceção de Chiapas, separaram- aos olhos dos exércitos realistas entrincheirados na cordilheira, San Martin par-
-se; depois de uma longa guerra civil, a sua federação dividiu-se em cinco repú- tiu para Guayaquil, para se encontrar com Simón Bolívar.
blicas. Ao longo das cinco décadas seguintes, o próprio México seria repetida- Pela sua parte, Bolívar retirara pleno partido do motim de Cádis. O general
mente dividido por guerras civis, e um dos fatores que mais complicaram os espanhol Morillo, tendo recebido ordens para chegar a uma trégua com os rebel-
assuntos labirínticos da jovem república mexicana foi a obstinada sobrevivência des, demitiu-se do seu posto pouco depois de ser decretado o cessar-fogo.
da esperança conservadora na restauração de uma monarquia mexicana, espe- As hostilidades reiniciaram-se ao fim de alguns meses e em junho de 1821 Bolí-
rança que só morreria muito depois de meados do século. var venceu o sucessor de Morillo na batalha de Carabobo. Quando Caracas caiu,
alguns dias mais tarde, toda a Venezuela foi finalmente libertada. No Congresso
de Cúcuta, Bolívar foi aclamado presidente da Grande Colômbia, um Estado que
compreendia a Venezuela, Nova Granada e Quito (ainda por libertar), e que tinha
a sua capital em Bogotá. Foi aprovada uma constituição que incorporava muitas

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E I N D E P E N D Ê N C I A

das prescrições autoritárias e centralistas do Libertador para a formação de uma elites pernambucanas defenderam o seu poder contra a autoridade central, decla-
república. Em seguida, Bolívar avançou para sul e concluiu a conquista da pro- rando uma república, leva a crer que se a monarquia não tivesse sido transferida
víncia de Quito (atual Equador) juntamente com o seu lugar-tenente António para o Rio de Janeiro, o Brasil teria sofrido a desintegração regional e a violência
José de Sucre. crónica que tomaram conta das índias espanholas.
Assim, quando foi a Guayaquil para dialogar com San Martin, a 27 de julho A transição do Brasil para a independência também teve, no entanto, os seus
de 1822, Bolívar chegou triunfante, como o grande Libertador: tinha uma série riscos de catástrofe política. Embora a ligação à monarquia fosse muito forte, em
de vitórias sonantes que falavam por si e chefiava o imenso novo Estado inde- diversos pontos emergira um considerável interesse pela noção do republica-
pendente da Colômbia. Pelo contrário, a campanha de San Martin arrastara-se no nismo, como prova o episódio da Inconfidência Mineira de 1788-1789 e as
Peru durante os dois anos anteriores, e o seu controlo do Chile era incerto. Bolí- revoltas republicanas intermitentes ocorridas desde então. No cenário de uma
var estava claramente numa posição de superioridade, pelo que depois daquelas grave crise de autoridade real, estas simpatias republicanas poder-se-iam ter
famosas conversações secretas San Martin decidiu abandonar o cenário de conjugado para contestar a monarquia católica de Portugal.
guerra e partir para a Europa, de onde nunca regressou. A vitória política de Esta possibilidade surgiu em 1820, quando os acontecimentos na Península
Bolívar sobre San Martin, em Guayaquil, representou o desaparecimento do deixaram, mais uma vez, a Coroa em dificuldades. Após a derrota de Napoleão,
monarquismo como opção para um acordo pós-independência; os novos Estados em 1814, e na ausência do rei, Portugal fora governado por um Conselho de
da América do Sul teriam constituições republicanas. Regência, mas em finais de 1820 uma série de revoltas liberais conduziu ao
Ao chegar ao Peru, em setembro de 1823, Bolívar começou a preparar-se estabelecimento de um governo empenhado numa monarquia constitucional.
para a última ofensiva contra os realistas. Em meados de 1824, lançou a sua As Cortes reuniram-se em Lisboa para conceber uma constituição que seguisse
campanha, vencendo uma batalha importante em Junín, e a vitória abriu-lhe o o modelo da constituição de Cádis de 1812, e o rei foi chamado a Portugal pelo
caminho para Lima, o derradeiro prémio. Em dezembro, quando Bolívar se governo liberal.
encontrava em Lima, o marechal Sucre derrotou o exército do vice-rei De Ia No Brasil, era grande a simpatia pela revolução liberal e D. João VI acabou
Serna na batalha de Ayacucho. O poder espanhol na América ruíra definitiva- por aceitar o princípio de uma monarquia constitucional, mas hesitava em
mente e as índias eram finalmente livres. regressar a Portugal, receando perder o Brasil se o fizesse ou perder Portugal
se ficasse no Brasil. Por fim, decidiu voltar à Península, mas deixou o seu filho
D. Pedro como príncipe regente no Brasil. Assim, a monarquia portuguesa dei-
A Emancipação do Brasil xou uma ramificação na sua mais importante colónia ultramarina, procurando
fechar a fenda que se abria entre o Brasil e a metrópole.
Enquanto os vice-reinos espanhóis da América do Sul eram assolados pela Essa fenda acabaria por se tornar um abismo intransponível, quando se tor-
guerra civil, o Brasil conservou a sua unidade e gozou de uma situação estável sob nou evidente para os delegados brasileiros às Cortes de Lisboa que os liberais da
a monarquia absoluta de D. João VI, estabelecida no Rio de Janeiro desde 1808. Península tencionavam fazer o Brasil regressar ao seu estatuto colonial anterior
Não houvera uma crise de legitimidade comparável nem uma tendência política a 1808. O governo liberal propunha-se anular a igualdade do Brasil em relação
como a que permitira que os republicanos hispano-americanos tomassem iniciati- a Portugal e a liberdade de comércio que o rei decretara para o Brasil à chegada
vas nos momentos críticos da prolongada intervenção napoleónica na Península. ao Rio de Janeiro. Eram medidas que os Brasileiros não estavam dispostos a
Mas a corte portuguesa trouxera as suas tensões para o Brasil, e havia um tolerar e quando o governo de Lisboa pressionou o príncipe regente, em outubro
certo descontentamento entre as oligarquias regionais, que se ressentiam do cen- de 1821, os Brasileiros instaram-no a ignorar a ordem. Perversamente, Lisboa
tralismo do governo real. A expressão mais séria desse ressentimento foi a empurrava os Brasileiros mais relutantes para uma separação, embora não fosse
revolta republicana que teve lugar no Recife em março de 1817, quando todos os ainda claro que forma assumiria essa separação e como se viria a concretizar.
elementos da oligarquia de Pernambuco -plantadores de açúcar, barões do gado, Nesta encruzilhada, nos últimos meses de 1821 deu-se uma crise política que
comerciantes, clero e funcionários do governo - se sublevaram contra a Coroa e poderia ter originado diversos resultados - até o de uma república, possibilidade
declararam uma república. A rebelião não conseguiu, no entanto, ganhar terreno que reunia um apoio considerável entre os liberais radicais.
fora da capitania de Pernambuco, e ao fim de dois meses já fora reprimida por Foi o primeiro-ministro de D. Pedro, José Bonifácio de Andrada e Silva, um
forças realistas da Bahia e do Rio de Janeiro. Contudo, a prontidão com que as monárquico conservador que passara mais de 30 anos ao serviço da Coroa em

240 24]
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA

Portugal, que encaminhou o Brasil para a independência. D. Pedro declarara, a constituições cada vez mais autoritárias para os territórios que libertava. Na
9 de janeiro, que ficaria no Brasil, afirmando dessa forma a sua autonomia face constituição que concebeu para a Bolívia, em 1826, levou ainda mais longe a
a Lisboa. Após a sua nomeação, uma semana mais tarde, José Bonifácio condu- receita de um governo forte que apresentara no congresso de 1819 em Angos-
ziu o país por um caminho independente, autorizando eleições indiretas para tura: a noção de um «poder moral» foi recuperada na preparação de um conjunto
uma assembleia constituinte e ignorando ordens de Lisboa. A rutura final com de «censores» que salvaguardariam os direitos civis e os princípios da constitui-
Portugal deu-se quando o governo de Lisboa tentou, uma vez mais, afirmar a sua ção; quanto ao presidente, teria um mandato vitalício e nomearia o seu sucessor.
autoridade sobre o Brasil, voltando a chamar o príncipe regente. A 7 de setembro O objetivo de Bolívar era evitar eleições, «que são o maior flagelo das repúblicas
de 1822, nas margens do rio Ipiranga, perto de São Paulo, D. Pedro acabou por e que apenas conduzem à anarquia»; a sua constituição boliviana, declarou com
rejeitar Portugal e proclamou a independência do Brasil. orgulho, teria «toda a força do governo centralizado, toda a estabilidade dos
Depois do seu famoso Grito do Ipiranga, o príncipe regente foi coroado regimes monárquicos» (*).
imperador e a antiga colónia passou a ser uma monarquia constitucional de pleno Mas a estabilidade, com algumas exceções relativas, continuaria a ser uma
direito. Em várias capitanias do Norte e do Nordeste a tropa portuguesa ofereceu miragem na América hispânica. A unidade parecia também impossível de alcan-
uma resistência violenta à independência, mas em 1824 já todo o território estava çar. O grande sonho de Bolívar de uma união pan-americana não deu frutos. Um
nas mãos do regime de D. Pedro. No ano seguinte, pressionado pela Inglaterra, congresso que convocou no Panamá, em 1826, para discutir uma aliança das
Portugal reconheceu o Estado independente do Brasil; a Inglaterra fez o mesmo nações hispano-americanas, teve uma fraca resposta. A ideia de uma confedera-
em troca da promessa do Brasil de abolir o comércio de escravos e de um tratado ção andina que incluísse a Grande Colômbia, o Peru e a Bolívia nunca saiu do
comercial que concedia às importações da Inglaterra uma tarifa preferencial. papel. Até o seu próprio Estado da Grande Colômbia começaria a desintegrar-se,
com a Venezuela e o Equador a libertarem-se da autoridade de Bogotá. A 17 de
dezembro de 1830, Bolívar morreu de tuberculose a caminho do seu exílio
Legitimidade e Ingovernabilidade voluntário na Europa. Tomara-se um homem desiludido; pouco antes de morrer,
fez a sua mais famosa observação sobre as colónias que ajudara a emancipar:
Na sua transição para a independência, o Brasil alcançara, por uma combi- «A América é ingovernável. Os que serviram a revolução lavraram o mar» (**).
nação de sorte e política sensata, uma monarquia constitucional encabeçada por Que correra mal? A América colonial não era, certamente, ingovernável: o
um príncipe da dinastia no poder. Tal fórmula permitia a autonomia ao mesmo império constitucional do Brasil não se desmoronara. Eram as repúblicas his-
tempo que preservava a autoridade real legítima. Foi um triunfo do pragmatismo pano-americanas que, após a independência, pareciam amaldiçoadas com uma
conservador, tendo as elites brasileiras procedido a todos os ajustamentos políti- instabilidade crónica. Isto porque, quando o monopólio de legitimidade da
cos necessários para que, caso não fosse possível mudar para melhor, tudo monarquia católica finalmente se dissolveu, durante a longa crise desencadeada
pudesse continuar como até então. pela invasão napoleónica da Península, o Estado imperial espanhol fragmentou-
A fórmula brasileira era o que a maioria dos crioulos procurara para as índias -se na miríade de regiões e localidades que na realidade constituíam as índias,
espanholas nos anos que se seguiram à invasão napoleónica da Espanha, em sem um mito unificador e sem Estado de direito que apoiassem os líderes dos
1808; todavia, as circunstâncias, e a inflexibilidade da monarquia Bourbon e dos novos Estados nos seus esforços para navegar o mar imenso e em constante
liberais peninsulares, tinham impedido semelhante resultado. Não houvera, por mudança dos interesses particulares. Só em retrospetiva foi possível compreen-
isso, alternativa ao republicanismo como ideologia orientadora dos Estados em der que o pacto colonial que durante séculos garantira a lealdade dos crioulos à
formação. Contudo, em sociedades aristocráticas, profundamente tradicionais, Coroa envolvia a troca de metais preciosos pelos intangíveis, mas igualmente
uma constituição republicana não podia inspirar a mesma lealdade que um preciosos, benefícios de uma autoridade real legítima.
monarca. Os crioulos hispano-americanos não tardaram a compreender que,
apesar de terem conquistado o direito à autonomia, os seus novos Estados esta-
riam constantemente minados pela falta de uma autoridade política legítima e
O Circular Letter to Colômbia, 3 de agosto de 1826. Citado em John Lynch, Simón
aceite por todos.
Bolívar and the Age of Revolution, p. 17.
Simón Bolívar, embora inabalável nas suas convicções republicanas, cedo se
(") Carta ao general Juan José Hores, 9 de novembro de 1830, em Simón Bolívar, Obras
apercebeu do problema da autoridade nas novas nações, pelo que iria optar por Completas, (dir.) Vicente lacuna, 2a ed., 3vols. (Editorial Lex: Havana, 1950), vol. 3, p. 501.

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CAPÍTULO 7

A Demanda pela Ordem:


Conservadores e Liberais no Século XIX

O Rescaldo da Independência

O Fim da Autoridade Real

A emancipação da América Latina na segunda década do século xix ganhou


contornos de revolução política: a monarquia católica fora destruída e substituída
pelo princípio liberal de soberania do povo. No Brasil, a monarquia foi contida
por restrições constitucionais, e aceitou-se um governo representativo como
norma; na América hispânica, o próprio conceito de monarquia fora rejeitado e
o republicanismo liberal, sob diversas formas, fora oficialmente adoptado por
toda a parte.
Esta transformação ocorrera sem uma revolução comparável na economia ou
na sociedade: não havia novas classes no poder e as estruturas oligárquicas do
período colonial permaneciam inalteradas. A América Latina era ainda composta
por sociedades aristocráticas de brancos que empregavam uma massa de mão de
obra não-branca, coagida de diferentes formas, em economias agrárias ou minei-
ras que exportavam bens primários em troca de manufaturas ou artigos de luxo.
Sob este aspeto importante, o ancien regime não desaparecera - o Estado monár-
quico que lhe permitira funcionar eficazmente é que ruíra.
Pode, então, dizer-se que a independência foi, na verdade, a concretização da
antiga aspiração das elites coloniais a tornarem-se classes dirigentes legítimas

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA A D E M A N D A PELA ORDEM: CONSERVADORES E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

nos seus próprios territórios. Porém, tendo alcançado a liberdade de governar política. A divisão não foi motivada por interesses económicos, mas por valores
com pleno direito, e de participai- diretamente no comércio internacional, as eli- políticos. Quando o domínio colonial chegou ao fim, as oligarquias crioulas
tes tinham agora de encontrar um instrumento de Estado alternativo para gover- depararam-se com duas opções: ou reconstruíam a antiga ordem, na medida do
nar as suas sociedades. Aqui, surgia uma contradição: a única ideologia política possível, garantindo a sua autoridade sobre as classes baixas, ou criavam um
coerente disponível era o liberalismo, mas os valores democráticos como a Estado liberal moderno, sem prejuízo dos interesses crioulos vitais. As oligar-
liberdade e a igualdade - já para não mencionar a fraternidade - tendiam a minar quias dividiram-se, então, em facões de conservadores e liberais, tendo cada qual
a autoridade do Estado em sociedades regionalmente dispersas que eram ainda perspetivas diferentes e incompatíveis sobre a forma de alcançar os mesmos
senhoriais, hierárquicas, racialmente divididas e muitas vezes dependentes do objetivos - o poder e a prosperidade dos da sua classe e da sua raça.
trabalho escravo. Os conservadores da América hispânica lamentavam o fim da monarquia
A subsequente história política da América Latina pode definir-se como uma católica e tinham interesse em defender as instituições que haviam sobrevivido
luta para dar uma nova forma à sociedade, partindo dos valores liberais transmi- à queda do império; queriam preservar a riqueza e a influência social da Igreja,
tidos pelos intelectuais que foram os pais fundadores das nações independentes. os privilégios legais do clero e do Exército, a «república» à parte dos índios, as
No período imediatamente após a independência, a desintegração e os conflitos restrições legais e sociais impostas aos castas — em suma, tudo aspetos de uma
entravaram a recuperação económica das novas nações. O Brasil foi uma exce- sociedade hierárquica. Os conservadores também se identificavam com o pas-
ção: a sobrevivência da monarquia numa forma limitada atrasou e moderou o sado hispânico e achavam que eram os herdeiros dos conquistadores. Mas o
impacto do liberalismo, permitindo que, pelo menos, a integridade territorial problema desta posição conservadora era que os valores hierárquicos, aristocrá-
fosse preservada. Havia, assim, uma certa ironia na independência - os crioulos. ticos, só se justificavam na lógica de uma monarquia, e a monarquia já não era
tinham conquistado a liberdade, mas à custa de uma instabilidade perene, que uma opção em aberto, pelo menos não na América hispânica.
frustrava os seus esforços para alcançar um poder e uma prosperidade compará- Nem todos os conservadores crioulos se opunham ao comércio internacional
veis aos dos países europeus avançados. ou ao desenvolvimento económico; os mais esclarecidos mostravam-se favorá-
Mas por volta de 1850, a procura ultramarina começou a arrancar algumas veis ao investimento externo e ao desenvolvimento da indústria. Estes homens
economias latino-americanas da estagnação. Isto permitiu alguma consolidação eram os os herdeiros naturais dos reformadores da Casa de Bourbon; queriam um
política e, em algumas repúblicas, trouxe um período de política constitucional Estado forte que colhesse os benefícios puramente técnicos da vida moderna,
e de primado da lei. Nos anos 80, muitas das maiores nações desenvolviam já rejeitando, ao mesmo tempo, as ideias e os valores modernos que pudessem
uma lucrativa atividade comercial com o mundo exterior e modernizavamrse desestabilizar a cultura tradicional. No México, por exemplo, os mais destacados
rapidamente em alguns setores. Na viragem de século, as elites crioulas pareciam advogados da industrialização foram conservadores como Lucas Alamán e Este-
estar no caminho do progresso económico por que esperavam desde a indepen- van de Antufiano. Alamán fundou um banco estatal destinado a canalizar as
dência. Tinham também encontrado no positivismo científico uma ideologia que, receitas de impostos protecionistas para o investimento nas minas e na meca-
de certo modo, conciliava o liberalismo com o poder oligárquico. Todavia, o nização do setor têxtil. Antufiano foi um incansável defensor da indústria que
progresso económico trouxe mudanças sociais que mais tarde colocariam novos acreditava que o comércio livre arruinaria os artesãos e que, por esse motivo,
desafios políticos à autoridade das elites crioulas. O século xix não traria solução ameaçava converter o México numa dependência económica de potências
para a profunda crise de legitimidade política desencadeada pela independência, estrangeiras. Empenhados no desenvolvimento económico, estes homens sen-
mas apenas o atenuar dessa crise em algumas nações, durante várias décadas. tiam-se consternados perante a ignorância das massas, a ausência de iniciativa da
elite, a ausência, na sociedade, de uma ética de trabalho orientada para a procura
de lucro. Deparavam-se com o dilema básico do conservadorismo - queriam
Uma Classe Dirigente Dividida: preservar uma sociedade tradicional por razões políticas, embora estivessem
Liberais, Conservadores e Caudilhos cientes de que os valores tradicionais impediam a prosperidade económica.
Antufiano viria, mais tarde, a enveredar pelo liberalismo, defendendo a regene-
A crise de legitimidade política surgiu porque a independência foi alcançada ração social ao restringir a influência da Igreja na educação e ao reduzir a sua
mediante termos que dividiram irremediavelmente as classes dirigentes criou- riqueza. Alamán penderia para o tradicionalismo, vendo no poder da Igreja um
las e que impediram a emergência de um consenso quanto às regras básicas da reduto contra a desordem civil que assolava o México.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A D E M A N D A PELA ORDEM: C O N S E R V A D O R E S E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

Os liberais acreditavam na soberania do povo e no direito individual à pro- que preconizavam reformas acabaram por seguir os ministros progressistas dos
priedade, à segurança pessoal e às liberdades de expressão, pensamento, associa- Bourbons, acreditando que o veículo da mudança devia ser um Estado forte.
ção e religião. Os poderes do Estado teriam de ser limitados e o governo passaria Dada a sua tendência para as reformas autoritárias, os liberais estavam
pela consulta dos cidadãos através de eleições periódicas para instituições repre- expostos às poderosas influências do costume e da tradição. Eram atraídos pelos
sentativas. Outra salvaguarda contra a tirania seria a separação de poderes - o mesmos métodos dos seus rivais conservadores. Porque estas repúblicas ostensi-
braço executivo do Estado era vigiado e contrabalançado por uma assembleia vamente liberais eram, na verdade, reinos decapitados, governados pelas mes-
legislativa e por um poder judiciário independente. Não seriam concedidos mas oligarquias do passado. Não era de estranhar que os velhos valores políticos
privilégios hereditários ou legais a quaisquer grupos ou corporações como a fossem ainda dominantes. O desaparecimento do rei apenas destruíra a derra-
aristocracia, o Exército ou o clero - todos os cidadãos seriam iguais perante a lei deira justificação para uma sociedade patriarcal e personalista, mas o persona-
e estariam sujeitos ao mesmo código legal. Na esfera económica, os liberais lismo e a estrutura patriarcal continuavam bem vivos naquelas sociedades ainda
repudiavam a intervenção do Estado, acreditando que o mercado livre teria esmagadoramente senhoriais. O exercício da política era feito através de redes
melhores condições para gerar recursos e subscrever as liberdades políticas do de alianças entre clãs e facões lideradas por indivíduos carismáticos que recom-
indivíduo. pensavam os seus clientes com favores em troca de lealdade e serviços prestados.
Porém, no que tocava a implementar tais convicções, os liberais latino- O liberalismo não obteve avanços significativos nesta cultura tradicional de
-americanos também tinham os seus problemas. Como Bolívar, não tardaram a patronos e clientes. Como seria de esperar, a adoção de uma ideologia política
perceber que a aplicação, em sociedades como as suas, de princípios liberais, resumia-se frequentemente a questões de lealdade familiar ou regional. Em tra-
segundo o modelo francês ou norte-americano, estava condenada ao fracasso. ços gerais, indivíduos e famílias que antes tinham ocupado cargos de influência
O ex-monge e liberal mexicano Servando Teresa de Mier escreveu em 1823: nas principais estruturas de poder da sociedade colonial, especialmente nas
capitais do vice-reino e em cidades onde se estabelecera uma audiência no
Eles [os norte-americanos] são um povo novo, homogéneo, ativo, trabalhador, século xvi, pendiam para o conservadorismo. Crioulos igualmente ricos ou pode-
esclarecido, com todas as virtudes sociais, e educados por uma nação livre. Nós rosos naturais de regiões mais periféricas ou envolvidos nas mais recentes eco-
somos um povo antigo, heterogéneo, sem indústria, inimigos do trabalho, com von- nomias de exportação do século xvm (por exemplo, o negócio do cacau na
tade de viver do funcionalismo público, como os Espanhóis, tão ignorantes, na maio- Venezuela, a criação de gado em Buenos Aires), ou que por alguma razão se
ria, como os nossos pais, e debilitados pelos vícios de três séculos de escravatura (*). viam em desvantagem relativamente à elite conservadora, optavam geralmente
pelo liberalismo. Assim, os ideais liberais, à semelhança, digamos, do apoio
Este pessimismo levou muitos liberais a afastarem-se do igualitarismo, cio conservador à religião, podiam ser usados como camuflagem para interesses
laissez-faire e da doutrina do Estado mínimo. Em vez disso, seguiram os refor- patriarcais ou como bandeira de conveniência para piratas políticos.
madores da monarquia Bourbon e defenderam a mudança a partir de cima, No clima que se instalou após as guerras da independência, eram muitas as
através da ação do Estado com vista a promover a educação secular, a abolir os oportunidades para a pirataria política. A crise económica, o colapso da lei e da
privilégios corporativos e a encorajar o crescimento económico por meio de ordem, a militarização da sociedade, tudo isso contribuiu para o fenómeno do
subsídios, impostos e incentivos fiscais. Assim, foi precisamente a grande preo- caudilho - um líder carismático que fazia valer os seus interesses através de uma
cupação de modernizar a sociedade tradicional que levou muitos liberais a abra- combinação de meios militares e políticos, e que conseguia organizar uma rede
çar uma forma republicana de despotismo esclarecido, que em muitos casos deu de clientes distribuindo favores e aluando como protetor. Os caudilhos eram os
origem a autênticas ditaduras, em que as liberdades democráticas foram suspen- principais intermediários nas relações de poder e quem procurava dominar o
sas em nome do progresso. Tal como os conservadores mais esclarecidos, tam- mundo político; na verdade, tratavam a política como uma forma de empresa
bém os liberais moderados se depararam com um dilema: para preparar as suas económica, adotando o liberalismo ou o conservadorismo conforme fosse mais
sociedades para a liberdade e a igualdade, as liberdades políticas poderiam ter de indicado para a sua estratégia de obter o controlo sobre fundos públicos, de modo
ser suspensas indefinidamente. Assim, tanto os liberais como os conservadores a aumentarem a sua capacidade de oferecer proteção, para alargarem as suas
redes de poder.
Assentando no carisma pessoal e na perícia militar, o caudilhismo era uma
(') Citado em Charles Hale, Aferiam Liberalism in the Age of Mora, 1821-1853 (Yale
das poucas carreiras que realmente premiavam o talento nas repúblicas senho-
University Press: New Haven, 1968), p. 197.

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riais da América Latina e, no período pós-independência, era um caminho que Igreja. Com efeito, de uma perspetiva conservadora, um dos mais perigosos
permitia a ascensão social de homens ambiciosos de sangue misto. Alguns con- atributos do liberalismo residia no potencial ilimitado para a mudança democrá-
seguiram chegar ao topo, como foi o caso do pardo José António Páez, que foi tica. Afinal, os seus ideais de igualdade e liberdade podiam, por princípio, ser
presidente da Venezuela. Mas o caudilhismo estava presente em todos os níveis invocados contra quaisquer restrições ou privilégios, por muito necessários que
da vida nacional, nas províncias periféricas como nas áreas centrais. Alguns estes parecessem para a manutenção da ordem. Assim, os liberais podiam atacar
caudiihos vinham das classes mais altas, outros tinham origens humildes. Sendo a instituição da escravatura, agitar os ânimos em defesa do sufrágio universal e
detentores de poder, os caudiihos eram homens que não podiam ser ignorados, e conceder liberdade de religião - e foi o que fizeram.
as famílias crioulas aristocráticas tinham de os aceitar, independentemente das Este deslizar para a democracia começou a ocorrer em meados do século,
suas origens sociais ou étnicas. Muitas vezes, os caudiihos mantinham com os quando uma nova geração de crioulos, muitos deles profissionais urbanos - advo-
clãs aristocráticos uma relação de dependência mútua: ofereciam aos crioulos gados, professores, funcionários públicos - e alguns de sangue misto, homens
proprietários de terras proteção contra os perigos da anarquia e da desordem- jovens que não tinham conhecido a monarquia católica e que se sentiam inspira-
social (o grande caudilho argentino Juan Manuel de Rosas gostava de ser conhe- dos pelas revoluções europeias de 1848, abraçou um liberalismo mais radical que
cido como «o restaurador das leis»), em troca de poder político e do saque da o da geração anterior, a ponto de despertar receios entre os patrícios liberais do
administração pública. período da independência e levando muitos deles ajuntar-se aos conservadores.
O caudilhismo não podia, no entanto, ser considerado um fenómeno novo, As gerações dos anos 40 e 50 produziriam os grandes edificadores da ordem
visto que os caudiihos simplesmente encarnavam a cultura política de patronos liberal na América Latina na segunda metade do século. Foi o tempo da Asocia-
e clientes no seu estado primitivo. O próprio termo tivera a sua origem no tempo ción de Mayo, na Argentina, que incluiu futuros estadistas e intelectuais como
da Reconquista da península Ibérica aos mouros, quando um caudilho era o chefe Bartolomé Mitre, Domingo Sarmiento e Juan Bautista Alberdi; de Benito Juárez
de um grupo de guerreiros que organizava ataques contra o inimigo e que cons- e dos irmãos Lerdo de Tejada, que seriam os arquitetos de La Reforma no México;
truía para si uma base a partir da qual podia negociar com o rei para obter títulos dos movimentos antiesclavagista e republicano no Brasil, que deram o impulso
e terras. Foi, essencialmente, este o mecanismo através do qual a América foi ideológico para o derrube do imperador. E assim, embora as diferenças entre
conquistada e colonizada por Espanhóis e Portugueses. O aparecimento de cau- liberais e conservadores se esbatessem por vezes em função de ambições pessoais
diihos no século xix sugere um retorno a condições políticas análogas às do e de métodos políticos similares, existiam questões de fundo que os dividiam. A
século xvi. Com efeito, tal como nas décadas que se seguiram à Conquista, a principal consequência da independência foi, então, o intenso conflito ideológico
política na América Latina, após a independência, tornou-se violenta e extrema- que dividiu a classe dirigente branca - e com uma classe dirigente dividida a
mente fluida, e a razão para que assim fosse era a mesma - a ausência de um respeito das questões mais fundamentais do Estado, era de esperar que não se
Estado sólido com autoridade para regular disputas entre grupos de interesse. chegasse a um consenso nem para manter a América hispânica unida nem para
Quando a monarquia católica se institucionalizara na América, o caudilhismo legitimar instituições governativas estáveis no continente.
perdera a sua razão de ser, pois a política de proteção e favor podia ser conduzida
através da burocracia real. Mas quando a monarquia foi derrubada, o caudi-
lhismo voltou a emergir. No Brasil, assistiu-se ao fenómeno equivalente do Motivos de Conflito
«coronelismo», após a queda do império em 1889.
Contudo, se as forças da sociedade tradicional eram fortes e insidiosas na
América Latina pós-independência, o liberalismo era mais do que um rótulo REGIONALISMO E CENTRALISMO

político que os caudiihos pudessem adotar e rejeitar a seu bel-prazer. Era uma
ideologia que postulava um visão do destino humano muito diferente da que A divisão das índias hispânicas em repúblicas distintas tem muitas vezes
oferecia a monarquia católica; introduzia novos conceitos e valores na arena sido atribuída às imensas barreiras geográficas do continente e à debilidade do
política e, por essa razão, era capaz de transformar as estruturas da sociedade comércio inter-regional durante o período colonial. Porém, o exemplo do Brasil,
latino-americana, pois quando os caudiihos e os ditadores liberais chegavam ao onde existiam obstáculos naturais comparáveis e uma falta de integração econó-
poder, mesmo que o fizessem pelas suas próprias razões cínicas, promulgavam mica semelhante, sugere que os fatores decisivos para a fragmentação da Amé-
legislação que corroía a posição das instituições tradicionais, particularmente da rica hispânica foram políticos.

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O problema de submeter regiões diferentes a uma autoridade central foi uma Domingo, que fazia parte do vice-reino da Nova Espanha; em 1739, fora elevada
preocupação crucial para o Estado hispânico desde, pelo menos, o reinado de ao estatuto de capitania-geral do vice-reino de Nova Granada. Pouco depois da
Fernando e Isabel. Com efeito, a importância histórica dos Reis Católicos deve- independência, Caracas separou-se de Bogotá para se tornar a capital da repú-
-se ao facto de terem encontrado uma fórmula política capaz de unificar a penín- blica da Venezuela, e o mesmo sucedeu a Quito, que passou a ser a capital do
sula Ibérica e de manter um vasto império ultramarino. A natureza da conquista Equador. Em Rio de Ia Plata, a cidade de Buenos Aires, que em 1776 obtivera o
e da colonização da América levara ao desenvolvimento de centros populacio- estatuto de vice-reino, não conseguiu exercer autoridade sobre sedes de audiên-
nais muito dispersos e isolados; quando foi removida a estrutura do Estado cias do século xvi como La Paz, no Alto Peru, que se separou para se tornar a
imperial, a diversidade subjacente das índias ficou exposta, e as regiões começa- capital da Bolívia, ou como Asunción, que veio a ser a capital do Paraguai.
ram a afastar-se do centro. Várias outras regiões procederam a tentativas determinadas para se separarem,
Mas estas tendências centrífugas só se tornaram tão fortes porque conserva- mas só Montevideu atingiu este objetivo, tornando-se a capital da república do
dores e liberais não conseguiam chegar a um consenso relativamente à fonte Uruguai em 1828. A América Central também se dissolveu em repúblicas distin-
suprema de autoridade legítima no Estado. Sem um tal acordo, que princípio tas. Santiago da Guatemala fora a sede de uma audiência desde o século xvi, mas
básico determinaria a organização de regiões em unidades de administração mais em 1785 os Bourbons dividiram as províncias sob a sua jurisdição numa série de
vastas? O velho problema hispânico de separatismo regional ressurgiu no pro- intendências semiautónomas, que se tornaram os núcleos de repúblicas indepen-
blema de construir novos Estados-nações e, dentro desses Estados que efetiva- dentes depois de a América Central se separar do México, em 1823, e depois de
mente emergiram, na questão do federalismo, por oposição ao centralismo. Pois uma experiência de união federal ter falhado em 1838.
se numa república a soberania residia na vontade do povo, quanta soberania A desintegração do império espanhol em Estados-nações ocorreu, assim,
popular estaria uma dada região preparada para ceder a um governo nacional? onde as jurisdições coloniais tinham sido enfraquecidas pelas reformas da
Uma vez que as regiões eram, na prática, controladas por redes de famílias monarquia Bourbon. Mesmo onde os Estados-nações se organizavam facilmente
influentes, a criação de uma autoridade nacional era endemoninhada por inúme- em torno de uma capital aceite — como aconteceu no Peru, no México e no Chile
ros interesses regionais e invejas oligárquicas. - a questão da autonomia regional tornou-se um pomo de discórdia entre federa-
Neste caso, o costume imperial pesava mais do que a conceção republicana listas e centralistas. No federalismo, as elites regionais procuraram, na medida
na demarcação de fronteiras nacionais. Os territórios das novas repúblicas his- do possível, disfarçar o seu poder oligárquico sob uma forma republicana, sem
pano-americanas corresponderiam, de um modo geral, às áreas de jurisdição das irem ao ponto de se separar da nação. O federalismo tanto podia agradar a con-
audiências reais criadas no século xvi, e as cidades onde as audiências tinham a servadores como a liberais, dependendo da compleição política das elites da
sua sede tornar-se-iam os centros da autoridade nacional, pois as oligarquias capital nacional contra a qual as províncias estavam a reagir. Nas províncias
estabelecidas nestas cidades podiam contar com a habitual lealdade de grupos argentinas, por exemplo, os federales eram conservadores do interior que se
regionais menos importantes. Assim, o mais natural era que cidades como Lima, ressentiam do domínio dos unitários liberais do porto de Buenos Aires, um porto
México, Santiago do Chile ou Bogotá viessem a ser as capitais das nações que dinâmico e voltado para o exterior. Mas, no México, os federalistas tendiam a ser
nascessem após a independência. liberais, porque as elites da capital eram profundamente conservadoras e centra-
As disputas mais amargas relativamente a fronteiras nacionais, depois da listas - o vale do México fora o foco do poder estatal desde o tempo dos Astecas.
independência, ocorreram precisamente nas áreas referidas - como os antigos A associação do federalismo com a causa conservadora ou com a causa liberal
vice-reinos de Nova Granada e de Rio de Ia Plata e do Reino da Guatemala ~, era, portanto, determinada pela configuração da política oligárquica de um dado
onde as jurisdições do século xvi haviam sido redesenhadas ou substituídas, em país.
meados e finais do século xvm, pelos reformadores da monarquia Bourbon, num
processo que gerara conflitos de lealdade entre os centros mais recentes e os
antigos focos de autoridade. Bogotá, a capital do vice-reino de Nova Granada, IGREJA E ESTADO
revelou-se, enquanto capital da república da Grande Colômbia, incapaz de con-
servar a lealdade de áreas sob a jurisdição de Quito ou de Caracas. Quito cons- * Nenhuma questão suscitou tantas divergências entre liberais e conservadores
tituíra o núcleo de uma audiência desde o século xvi, e até 1739 integrara o como o papel da Igreja na vida das nações independentes. Para os liberais, o
vice-reino do Peru. Caracas ficara sob a jurisdição da audiência de Santo problema era claro: a Igreja devia ser inteiramente dissociada do Estado, para

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que todos os cidadãos pudessem gozar de igualdade perante a lei, independente- ficaram livres após o regresso do clero peninsular a Espanha. A liderança da
mente da sua raça, do seu estatuto ou da sua religião. A enorme riqueza da Igreja, Igreja na América Latina foi gravemente enfraquecida por esta disputa - voca-
na forma de terras, propriedades e capital proveniente do dízimo e de donativos, ções religiosas declinaram; houve paróquias negligenciadas -, o que foi mais um
era vista pelos liberais como um obstáculo à formação de uma economia sintoma da tremenda deslocação provocada pela independência, pois o afrouxar
moderna de mercado livre. O facto de a Igreja controlar escolas e universidades do controlo social tradicionalmente exercido pela Igreja contribuiu para o clima
impedia o Estado de difundir a educação racional, científica e utilitária que os de anarquia dos anos que se seguiram à emancipação.
liberais consideravam necessária ao progresso. Na segunda metade do século, a Igreja empreendeu um esforço determi-
A posição dos conservadores, por outro lado, foi bem expressada por Lucas nado para recuperar a sua força, reformando o clero e reativando o seu trabalho
Alamán, numa famosa carta para o general Santa Anna, escrita em março de pastoral, especialmente nas zonas rurais. Simplesmente, esta renovação eclesiás-
1853. Alamán incita o seu destinatário a assumir poderes ditatoriais no México, tica coincidiu com a radicalização do liberalismo, à medida que a nova geração
em virtude das recorrentes guerras civis e da perda, pouco tempo antes, de. de crioulos entrava na cena política. O conflito Igreja-Estado intensificou-se,
metade do território para os Estados Unidos: então, a partir da década de 50, e se os governos republicanos deixaram de recla-
mar os direitos do Padroado, era porque tencionavam completar a expulsão da
O mais importante é preservar a religião católica, porque acreditamos nela e Igreja dos assuntos públicos. Na maioria dos países latino-americanos, os libe-
porque, mesmo que não a considerássemos divina, pensamos que é o único elo que rais empenharam-se em longas e complexas batalhas - por vezes travadas em
une todos os Mexicanos, quando os restantes foram quebrados; é a única coisa capaz congresso mas, mais frequentemente, através da força das armas - para despojar
de suster a raça hispano-americana e de a salvar dos grandes perigos a que está o clero dos seus privilégios legais, para arrancar a educação do controlo clerical
exposta. Julgamos também necessário conservar o esplendor cerimonial da Igreja, e para expropriar a riqueza da elite eclesiástica. Nessas lutas, a hierarquia da
bem como as suas propriedades temporais, e acordar tudo o que se refere à adminis- Igreja uniu-se aos conservadores, identificando-se desse modo com as forças da
tração eclesiástica com o Papaf). reação e com o passado colonial. Pela sua parte, os dirigentes conservadores, que
queriam recuperar o invejável monopólio de legitimidade outrora detido pela
Independentemente da questão intrínseca da fé, o valor da Igreja residia no monarquia católica, tentariam, de tempos a tempos, incorporar a Igreja no
facto de garantir a coesão social - a base sobre a qual se poderia construir uma Estado.
ordem política estável; a Igreja era, além disso, uma abundante fonte de identi- Assim, no século xrx, a Igreja assumiu uma posição defensiva contra o repu-
dade cultural para um povo heterogéneo e ameaçado de espoliação por parte dos blicanismo liberal e fez os possíveis para resistir ao ataque de que a sua riqueza
Estados Unidos. A defesa da religião apresentada por Lucas Alamán era inteli- era alvo e para evitar a exclusão dos assuntos de Estado. No entanto, por se opor
gente e pragmática, mas estava viciada, pois uma união entre Igreja e Estado aos desenvolvimentos modernos, a longo prazo estava condenada ao fracasso.
parecia, na altura, ser inconciliável com a ideologia do republicanismo. Assim, Nas últimas décadas do século, perdera o apoio das elites governantes, que se
paradoxalmente, os conservadores, visto que apoiavam os privilégios históricos haviam rendido intelectualmente ao positivismo, como veremos. Nas cidades
e a autoridade da Igreja, tornaram-se eles próprios os inimigos da ordem consti- que se expandiam, o clero já não podia contar com a lealdade das massas de
tucional. A Igreja, que antes fora um pilar central da monarquia, tornava-se agora trabalhadores, expostas a ideias anarquistas e socialistas trazidas da Europa pelo
um dos fatores por detrás da instabilidade crónica do sistema republicano. grande influxo de imigrantes. Nos anos 90, respondendo à encíclica Rerum nova-
Só em 1835 o Vaticano começou a reconhecer as novas repúblicas. E mesmo rum promulgada pelo papa Leão XIII, que consagrava os direitos do trabalhador
então continuava por resolver o problema do Padroado Real, o direito histórico na nova era industrial, a Igreja latino-americana começou a abraçar o desafio da
dos monarcas espanhóis e portugueses de procederem a nomeações eclesiásticas secularização do proletariado urbano, organizando clubes e associações para
na América. As autoridades papais recusaram-se a estender este direito aos pre- trabalhadores católicos, c o catolicismo social ganharia importância no novo
sidentes das repúblicas liberais que o reclamavam, pelo que, após a independên- século.
cia, muitos bispados ficaram por preencher, mais a quantidade de dioceses que Ainda assim, a grande maioria do povo, se não era propriamente observante,
partilhava de uma cultura totalmente permeada pelo catolicismo, e essa era uma
realidade da qual a Igreja retirava uma força imensa. Isto era especialmente ver-
(') Miguel León-Portilla et ai. (orgs.), Historia documental de México (Instituto de
Investigaciones Históricas, Universidad Nacional Autónoma de México, 1964), vol. 2, p. 243.
dade nas regiões rurais, onde os camponeses permaneciam firmemente leais à

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Igreja, pouco conhecendo da ideologia republicana e não tendo a noção de per- parte porque não tinham consequências económicas importantes, mas também
tencer a um Estado-nação propriamente dito. Nas regiões rurais, o ethos da porque muitas pessoas de sangue misto tinham subido na hierarquia social no
monarquia católica demorou a desaparecer. Quando o imperador do Brasil foi decurso das guerras da independência, especialmente através do serviço militar.
derrubado, em 1889, foram os camponeses católicos desapossados que se ergue- Embora os crioulos ainda valorizassem a «pureza de sangue», era impossível
ram em nome de Deus e da Coroa contra a república estabelecida pelas elites conciliar esse ideal com as leis republicanas.
liberais brancas. As comunidades índias da América hispânica tinham uma forte Os problemas mais difíceis eram os que diziam respeito aos índios, uma
ligação à liturgia e às devoções católicas, e faziam muitas vezes da causa da Igreja questão que fora também particularmente incómoda para a monarquia católica,
a sua causa, contra as intenções dos governos liberais de as privar das suas terras. que tentara, sem grande sucesso, respeitar os direitos índios aplicando às
Essas raízes tão profundas nas zonas rurais e na cultura popular valeriam à suas comunidades uma jurisdição distinta da dos Hispânicos. Até meados do
Igreja um papel importante quando o liberalismo perdesse a sua hegemonia inte- século xvn, a maior dificuldade fora económica - os crioulos precisavam de mão
lectual, nos anos 20 e 30 do século xx, altura em que um ressurgimento de nacio- de obra índia, pelo que a república de los Índios fora minada pela exploração dos
nalismo levou à procura de valores indígenas. Nessa altura, a ideia liberal de um recursos nativos por parte dos brancos. Numa fase posterior do período colonial
Estado inteiramente secular, cuja soberania assentasse na vontade do povo, fora e até aos anos 50 do século xix, a posição das comunidades índias ganhara esta-
aceite praticamente em toda a parte, mas a clara noção de vulnerabilidade a bilidade porque as exigências económicas a que estavam sujeitas tinham dimi-
influências culturais estrangeiras justificaria, em parte, a convicção de um con- nuído. Foi na segunda metade do século, quando as economias hispano-america-
servador como Lucas Alamán de que era do catolicismo que a América Latina nas começaram a expandir-se, que os índios voltaram a ser pressionados, e então
retirava uma identidade capaz de unir brancos, índios e negros. os governos liberais de vários países criaram legislação que permitisse integrá-
-los como cidadãos iguais numa forma totalmente nova de república de brancos.
Para os liberais, a existência de um corpo de leis especial para os índios era
POVOS DE COR uma aberração cívica semelhante aos privilégios do clero. Os governos liberais
queriam impor a igualdade perante a lei, e por isso aboliram o tributo índio, o
Outro importante legado da monarquia católica que se opunha à ideologia dízimo e a mita. No entanto, em repúblicas com populações índias numerosas
liberal era a diferença de estatuto jurídico dos vários grupos raciais. Eram ainda algumas destas reformas fiscais foram anuladas, porque reduziam dramatica-
muitos os negros escravizados em diversas partes das Américas. Os castas (pes- mente as receitas de um Estado empobrecido ou, onde os impostos eram pagos
soas livres de cor) sofriam de restrições legais e sociais na educação e nos em géneros, porque a escassez de certos produtos agrícolas afetava a economia
empregos do setor público, e pagavam um imposto especial. As comunidades crioula. Em países como a Bolívia, o Peru e a Colômbia, a tributação foi reintro-
índias pertenciam a uma «república» à parte, com leis e governo local próprios, duzida na forma de uma «contribuição» das comunidades índias até finais do
e pagavam impostos ao Estado - outra forma de tributação étnica. Todas estas século, e permitiu-se que serviços de mão de obra como a mita perdurassem
desigualdades foram abolidas pela lei, na maioria dos países, durante a primeira também até essa altura, e em certas regiões mineiras dos Andes até mais tarde,
metade do século xix. Não havia grandes conflitos com os conservadores relati- para manter a produção.
vamente a estas questões; os problemas eram, antes, de natureza prática. A reforma liberal que mais prejudicou os índios foi a conversão legal de terra
No caso da escravidão negra, os proprietários receavam a ruína económica. comunitária em propriedade privada que depois era dividida entre indivíduos
Embora em 1825 o comércio de escravos já tivesse sido abolido nas repúblicas índios. Não estando familiarizados com o funcionamento de uma economia de
hispano-americanas, e apesar de vários países terem aprovado leis de nascimento mercado, muitos índios perderam as suas terras para as fazendas em expansão e
livre (o caso especial do Brasil será abordado mais adiante), a escravatura man- a partir dos anos 60 as terras índias ficaram sujeitas à forte pressão exercida por
tinha-se em repúblicas com economias de plantação importantes, como o Peru, proprietários crioulos, que procuravam responder às exigências das economias
a Venezuela, o Equador e a Colômbia. Gradualmente, a prática foi-se extin- de exportação revitalizadas. Assim, o principal efeito da política agrária foi desa-
guindo, devido à falta de oferta de escravos africanos após o fim do comércio. possar muitas comunidades índias e empurrar os seus membros para o proleta-
Os escravos libertos passaram, então, a constituir uma classe miserável, coqj riado rural, consolidando dessa forma o sistema de latifúndios - as vastas pro-
falta de emprego nas cidades, e paga à jorna nas zonas rurais. As leis que afeta- priedades pertencentes a magnatas crioulos, que já eram os principais atores,
vam os castas foram abolidas sem grande dificuldade na maioria dos países, em liberais ou conservadores, na cena política das novas repúblicas.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA

As rebeliões índias intensificaram-se após a independência, em virtude da no Peru, na Colômbia, na Venezuela, no Equador e nas repúblicas da América
pressão cada vez maior sobre a terra comunitária. No México, por exemplo, as Central, a penetração ou a exploração económica das regiões desérticas e da
grandes revoltas índias que ocorriam de tempos a tempos, no século xix e em floresta através do desbravamento e do povoamento danificaram, onde não des-
princípios do século xx - como a incontrolável guerra racial desencadeada por truíram, a cultura das tribos índias - um processo que ainda hoje decorre em
Miguel Hidalgo no Bajío, em 1810, ou as sangrentas guerras dos castas de 1847, muitos lugares.
no lucatão, e a rebelião de Sierra Gorda, nesse mesmo ano -, podem ser vistas As nações independentes da América Latina herdaram, assim, das auto-
como reações violentas aos avanços de uma economia capitalista de mercado ridades coloniais as terríveis dificuldades culturais e políticas de conciliar os
sobre a sociedade tradicional índia, como uma continuação, e até como intensi- direitos dos tão diversos povos índios com as normas da sociedade dominante.
ficação, da tradição de revoltas defensivas índias contra a sociedade branca que Os conservadores não se opunham à continuação da diferenciação legal colonial,
caracterizou o período colonial. mas os liberais acreditavam que a melhor solução era integrar os índios como
Os novos Estados-nações tiveram também de lidar com os índios bárbaros, cidadãos de pleno direito da república. No século xx, assistiu-se a novas tentati-
as tribos índias nómadas ou «não pacificadas» que haviam ficado mais ou menos vas de preservar as comunidades índias promovendo o seu direito à cultura tra-
entregues a si próprias durante o período colonial, visto que ocupavam territórios dicional: após a Revolução mexicana, foi introduzida uma versão da exploração
aos quais não se atribuía grande valor económico. Essas tribos índias habitavam de terras comuns como um elemento de reforma agrária: no Peru, na década de
as vastas extensões subpovoadas das províncias norte-mexicanas (muitas das 70, a língua quíchua tornou-se a língua oficial do Estado, a par do espanhol.
quais foram anexadas pelos EUA em meados do século, passando a ser conheci- E no entanto, as sociedades índias tradicionais continuaram a desintegrar-se à
das como «Oeste selvagem»); o Sul do Chile, para lá do rio Bío-bío; as pampas medida que as populações e as economias da América Latina moderna cresciam
e consumiam os seus recursos.
da Argentina e a Patagónia. E, claro, encontravam-se muitas tribos de caçadores-
-recoletores, mais primitivas ainda, nas florestas tropicais da Amazónia e d<i
América Central. As monarquias católicas de Espanha e de Portugal tinham
permitido a «guerra justa» contra esses índios apenas se eles recusassem conver-
ter-se ao cristianismo, mas o que se verificou, na prática, foi que os crioulos e os A Luta pela Construção de um Estado
mestiços destas terras fronteiriças decidiram perseguir índios bárbaros para os
Nem todas as nações da América Latina passaram por situações de instabili-
escravizar.
Depois da independência, estas tribos continuaram a ser vistas como índios dade política como Estados independentes. Existem alguns raros exemplos de
bárbaros, e à medida que o progresso económico se acelerava, a partir de mea- países que conseguiram conter as divisões das suas classes dirigentes através de
dos do século, a sociedade crioula avançava pelas suas terras, levando a guerra um sistema de governo constitucional. O Brasil, como vimos, foi um caso único,
aos «bárbaros» em nome da civilização moderna. No Norte do México, o na medida em que conseguiu negociar a transição para a independência sem
governo republicano encorajou a fixação de crioulos e mestiços em colónias perder a continuidade dinástica da casa real legítima, o que garantiu a lealdade
militares, que se tornaram alvo de ataques de Apaches, Comanches, Navajos e de todas as classes. A Costa Rica, uma vez separada da Federação Centro-Ame-
de outras tribos nómadas. Esses ataques levaram até governos liberais a tentar ricana, nos anos 40, fundou um sistema constitucional que lhe permitiu, de 1889
políticas das primeiras fases do período colonial, como a congregación - a con- em diante, evoluir para uma democracia mais sólida, com eleições livres e liber-
centração forçada de índios dispersos - e as missões religiosas, onde os nómadas dades políticas genuínas. Tal deveu-se, em larga, medida, ao seu isolamento
eram obrigados a fixar-se e a adquirir costumes «civilizados». A partir da década geográfico e à sua população homogénea e pouco numerosa de plantadores de
de 60 do século xix, governos liberais progressistas da Argentina enviaram exér- café, entre os quais não havia grandes conflitos de interesses. O Chile foi a única
república de grande dimensão onde o governo constitucional ganhou raízes pro-
citos para as pampas e para a Patagónia, com o objetivo de reclamarem as fron-
teiras para povoamento e para exploração agrícola. No Chile, os territórios dos fundas. As suas elites eram também relativamente unidas, pelo que conseguiram
chegar a um consenso político ao fim de pouco tempo.
Araucanos foram gradualmente ocupados por colonos europeus e por crioulos.
À medida que estes povos índios recuavam e que as suas culturas desapareciam, **
ficava aberto o caminho para ranchos, imigrantes e caminhos de ferro, as bases
da prosperidade de repúblicas modernas como a Argentina e o Chile. No Brasil,
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que as várias facões oligárquicas tivessem uma quota-parte justa dos frutos do
Brasil
governo.
O Brasil precisou de quase três décadas para funcionar como uma monarquia As vantagens de um sistema deste tipo, para um Estado novo como o Brasil,
constitucional devidamente estabelecida. O problema imediato residia na sus- eram múltiplas. Garantia-se a estabilidade satisfazendo os importantes grupos de
peita de que D. Pedro tinha intenções absolutistas e que não cortara por completo interesse numa nação vasta e extremamente fragmentada, do ponto de vista geo-
os laços com a corte portuguesa. As inquietações persistiam porque a relação gráfico como económico. Havia um equilíbrio entre autoridade nacional e ambi-
entre o imperador e as elites brasileiras não era a melhor - o desejo generalizado ção local, uma vez que era o governo central que nomeava os presidentes das
por um governo forte tinha de ser contrabalançado com o interesse das oligar- assembleias regionais e que supervisionava a atribuição de cargos nas burocra-
quias regionais de conservarem alguma forma de autonomia local. cias regionais. Por outro lado, num país onde mais de dois terços da população
Durante o ano que se seguiu ao seu grito de independência junto ao Ipiranga, eram negros e mulatos pobres, e onde mais de um quarto destes eram escravos,
D. Pedro deparou-se com uma forte oposição, que inclusivamente levara à a instituição da monarquia tinha profundas reservas de lealdade no povo, em
demissão do seu primeiro-ministro, José Bonifácio de Andrada e Silva, o arqui- virtude da sua imensa mística, que devia ao apoio da Igreja.
teto da emancipação política, que receava que o imperador estivesse a ser Ainda assim, na fase inicial, D. Pedro, se não mesmo a monarquia enquanto
influenciado negativamente por uma facão da corte constituída por administra- instituição, não conseguiu vencer a desconfiança e a suspeita. Em 1824, deu-se
dores e comerciantes portugueses. Quando, em 1823, D. Pedro dissolveu a uma revolta em Pernambuco, uma região onde o federalismo e o republicanismo
assembleia constituinte, esses receios pareceram fundados. Todavia, a constitui- atraíam sistematicamente uma elite de plantadores que sofria com o declínio
ção que a comissão real do imperador acabou por delinear para o Brasil revelou- da indústria do açúcar. A revolta foi reprimida por soldados imperiais, mas o
-se sólida; manteve-se até à queda da monarquia, em 1889. A constituição de descontentamento voltou a ser atiçado pelo Tratado Anglo-Brasileiro de 1826,
1824 estabelecia um governo parlamentar composto por duas câmaras: um que concedia privilégios comerciais a negociantes britânicos em troca do reco-
senado cujos membros eram escolhidos pelo monarca e tinham mandatos vitalí- nhecimento da independência do Brasil e que, pior ainda, estipulava para daí a
cios, e uma câmara de deputados eleitos indiretamente através de um sufrágio três anos o fim do comércio de escravos. No entender dos plantadores, que não
masculino limitado. O imperador tinha um papel a desempenhar como «poder viam alternativa à mão de obra escrava, esta última concessão era a prova de que
moderador» do sistema parlamentar: tinha o direito de nomear e demitir minis- a Coroa estava pronta a sacrificar um interesse vital do Brasil a uma potência
tros, o direito de veto sobre a legislação, e o de dissolver o parlamento e convo- estrangeira.
car eleições. Um Conselho de Estado aconselhava o monarca relativamente a A disputa pela Banda Oriental, o território na margem esquerda do rio da
estas questões, sendo ainda responsável pela separação entre o poder executivo Prata - que durante mais de um século fora motivo de conflito entre Espanha e
e os poderes legislativo e judiciário, bem como pela observância das liberdades Portugal -, originou, em 1825, uma guerra dispendiosa e impopular contra as
civis. províncias argentinas. Os Brasileiros ressentiram-se amargamente do recruta-
O império do Brasil, como todas as monarquias da época, incluindo a britâ- mento militar e a opinião pública reagiu mal às derrotas sofridas às mãos dos
nica, combinava direitos institucionais com privilégios tradicionais. Nos assun- Argentinos. O conflito ficou finalmente resolvido em 1828, com a criação do
tos públicos, a atribuição de títulos e a nomeação para cargos e gabinetes admi- Estado divisório do Uruguai, mas o prestígio do imperador saiu lesado deste
nistrativos eram da competência da Coroa. Uma vez que o catolicismo continuava episódio, que foi entendido como uma derrota.
a ser a religião oficial, a Coroa conservava os seus direitos de patronagem nas Por fim, a hostilidade para com os comerciantes portugueses, muitos dos
nomeações eclesiásticas, ao abrigo do Padroado Real. Com efeito, a patronagem quais ainda residentes no Brasil, intensificou-se nos anos 20 do século xix,
era crucial para o sistema, até para se obter vitórias nas eleições, visto que a quando a inflação aumentou o custo de vida. Havia quem pedisse a expulsão de
maioria dos eleitores optava pelo candidato apoiado pelo seu patrono local para todos os portugueses, e de novo emergiu a suspeita de que D. Pedro estivesse a
os colégios eleitorais que selecionavam deputados para as assembleias nacio- defender os interesses de Portugal e tivesse tendências absolutistas. Em março
nais e regionais, e esses deputados iriam, por sua vez, tentar recompensar os de 1831, registaram-se confrontos violentos entre brasileiros e portugueses nas
seus apoiantes através de favores e cargos governativos. Graças a estas vastas ruas do Rio de Janeiro: foram arremessadas garrafas, e nessas noites - as Noites
redes de proteção, os governos tendiam a ser reeleitos, e o «poder moderador» das Garrafadas —, o pacto que unia trono e povo estilhaçou-se. O imperador ten-
do imperador era usado para baralhar e recompor gabinetes de modo a permitir tou acalmar os ânimos nomeando um governo aparentemente pró-brasileiro, mas

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passado menos de um mês decidiu subitamente impor a sua vontade e a 5 de abril barões esclavagistas do açúcar; estes aliaram-se, então, às tropas da Regência,
de 1831 anunciou um novo governo, que foi imediatamente considerado pró- que acabaram por reprimir os rebeldes cerca de seis meses mais tarde. Mas no
-português. Na manhã seguinte, uma multidão nervosa reuniu-se no Rio de extremo oposto do país, na província gaúcha de Rio Grande do Sul, cujos caudi-
Janeiro, e o Exército pressionou D. Pedro para que readmitisse o governo ante- Ihos tinham interesses económicos em comum com o Uruguai e com as provín-
rior. O imperador recusou-se a fazê-lo e a 7 de abril decidiu abdicar do trono a cias gaúchas adjacentes da Argentina, os criadores de gado sublevaram-se contra
favor do filho, então com cinco anos. Uma semana mais tarde, D. Pedro partiu a Regência em 1835, e proclamaram uma república, que permaneceu indepen-
do Brasil a bordo de um navio de guerra britânico. dente durante quase uma década (este republicanismo revolucionário foi influen-
Seguiu-se uma regência de dez anos. Foi um período confuso, sem rumo e ciado pela presença de Giuseppe Garibaldi na vizinha Santa Catarina, que pro-
pautado por revoltas, em que a heterogeneidade do Brasil ameaçou extinguir a clamou também uma república).
instituição da monarquia e fragmentar o império, à semelhança do que aconte- A descentralização na ausência de um monarca reinante pôs o Brasil em
cera na América hispânica. A Lei Adicional de 1834 aboliu o Conselho de Estado risco de se desmembrar como a América hispânica. Em 1840, o receio de um tal
como «poder moderador» da constituição e introduziu uma série de reformas resultado, e do caos social que poderia instalar-se num país com percentagens tão
liberais que devolveram poder às assembleias regionais. Isto era o resultado da elevadas de escravos e indivíduos de cor, convenceu tanto elementos liberais
ação de liberais moderados, que tentavam encontrar um caminho algures entre como conservadores das elites - especialmente os das províncias centrais do Rio
os restauradores conservadores e as exigências republicanas de liberais mais de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais - de que o príncipe Pedro, então com 14
radicais. De qualquer forma, a Lei enfraqueceu a autoridade nacional - coincidiu anos, devia subir ao trono tão cedo quanto possível, embora só atingisse a idade
com revoltas graves em diferentes regiões e esteve na origem de alguns dos legal para o efeito daí a quatro anos. Após a coroação, a Lei Adicional de 1834
levantamentos. foi revogada e a administração do país recentralizou-se - os poderes das assem-
Em certas zonas rurais do Norte, a abdicação desencadeou rebeliões com bleias regionais foram diminuídos, estabeleceu-se uma força policial nacional e
objetivos políticos vagos mas muito sangrentas, levadas a cabo por pessoas de o Conselho de Estado foi restaurado.
sangue misto, negros e índios, que aparentemente defendiam o imperador e a O consenso que levara à coroação do jovem D. Pedro chegou ao fim em
religião, mas igualmente alimentadas por um ódio racial e social às elites bran- 1842, devido a ansiedades liberais motivadas pelas proporções da recentraliza-
cas. Em Pernambuco, a Guerra dos Cabanos, um conflito de guerrilha que durou ção. Ocorreram revoltas em São Paulo e em Minas Gerais, onde os plantadores
três anos, eclodiu em 1832 e abalou toda a sociedade de plantação esclavagista mais ricos tentavam evitar perder muito do seu poder para os governos conser-
do Nordeste. Em 1835, uma rebelião semelhante de índios e mestiços livres, que vadores sediados no Rio de Janeiro. Estas rebeliões não tardaram a ser reprimi-
ficou conhecida como a Cabanagem, atravessou o território fronteiriço de Pará, das, e em 1844 chegou-se a um novo consenso, depois de os liberais terem tido
quando uma revolta separatista liberal de brancos locais se estendeu a elementos a oportunidade de formar um governo. Durante os 20 anos seguintes, a monar-
de classes baixas. Os rebeldes proclamavam lealdade ao monarca e à Igreja, ao quia constitucional funcionou sem sobressaltos, pois encontrara-se um equilíbrio
mesmo tempo que exigiam a autonomia regional. O seu jovem líder foi final- entre as elites governantes conservadoras do Rio de Janeiro - o centro tradicional
mente detido em finais de 1836 e a rebelião foi perdendo o fôlego, embora os da administração real no Brasil - e as elites liberais das duas províncias centrais
confrontos tenham prosseguido até 1840. A província vizinha do Maranhão com as economias mais dinâmicas, nomeadamente São Paulo e Minas Gerais,
revoltou-se em 1838, mais uma vez sob a forma vagamente tradicionalista mas ambas concentradas agora na produção de café, que a partir da década de 30
caótica de oprimidos contra brancos, quando os federalistas liberais que haviam substituíra o açúcar e o algodão - cultivados nas províncias costeiras do Nor-
iniciado o levantamento perderam o controlo sobre os seus apoiantes. deste - como principal exportação do Brasil.
O liberalismo era, acima de tudo, a causa das classes média e alta brancas, A excecional estabilidade do II império repousava na coincidência de inte-
que reclamavam um maior poder local sob uma capa de federalismo, ou que até resses das elites das três províncias-chave de São Paulo, Minas Gerais e Rio de
defendiam o republicanismo, onde isso permitisse um controlo oligárquico Janeiro. Mas a sobreposição de interesses não era total: as primeiras duas provín-
acrescido sobre a política regional. Na Bahia, uma revolta federalista, chefiada cias eram economicamente poderosas e constituíam um bloco liberal contra o
por profissionais liberais urbanos, eclodiu em novembro de 1837, conquistando 4 Rio de Janeiro, em tomo do qual tendia a unir-se um bloco mais conservador de
rapidamente o apoio das patentes mais baixas do Exército e da polícia. Mas o províncias economicamente mais débeis. Para que a estabilidade estivesse asse-
movimento ganhou contornos separatistas e até republicanos, o que assustou os gurada, era necessário que as elites produtoras de café de São Paulo e de Minas

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Gerais continuassem a aceitar ser governadas a partir do Rio de Janeiro. Isto a tomar a mão de obra assalariada mais vantajosa para os plantadores do que o
implicava dar-lhes uma parte do saque da administração pública, e o «poder trabalho escravo.
moderador» do imperador foi habilmente utilizado para este fim. Com a extraor- A campanha antiesclavagista ganhou força em muitas partes do Brasil, espe-
dinária prosperidade do negócio do café nos anos 50 e 60, a política parlamentar cialmente nas cidades. Em 1884, um projeto de lei que concedia liberdade a
quase parecia demasiado estável: o imperador utilizou os seus poderes cons- escravos com mais de 60 anos sem compensação para os seus donos provocou
titucionais para afinar o sistema de «conciliação»; os ministérios sofreram uma crise política que agitou tanto governos conservadores como liberais.
mudanças sucessivas para satisfazer os partidos Liberal e Conservador, ambos A política de conciliação não estava a dar resultados, e a questão da escravatura
constituídos por plantadores brancos, senhoriais, com poucas divergências entre, ameaçava fazer os barões do café de São Paulo perder a paciência com o sistema
si para além de invejas pessoais e filiações regionais - desde que, evidentemente, parlamentar. Em 1885, um governo conservador obteve a aprovação do parla-
nada levasse os barões do café a julgar que os seus interesses económicos seriam mento para uma versão alterada do projeto de lei de 1884; o movimento anti-
mais bem servidos de outra forma que não fosse a política de conciliação do -esclavagista ganhou uma força política imparável e, nos três anos seguiates,
tornou-se claro até para os barões do café paulistas que a escravatura estava
imperador.
A atmosfera de estufa da política parlamentar, no tempo de D. Pedro H, condenada. A 13 de maio de 1888, foi aprovada pelo parlamento uma lei que
gerava irritabilidade e desconforto mesmo entre as classes dirigentes brancas que abolia a escravatura sem compensação, apenas com nove votos contra. As con-
tanto lucravam com aquele estado de coisas. Na década de 60, patrícios liberais sequências económicas da abolição não foram, de modo algum, desastrosas:
de uma geração mais jovem começaram a tentar abrir o sistema; atacaram o poder alguns plantadores faliram, mas a grande maioria sobreviveu recorrendo a mão
moderador real e o Conselho de Estado, e propuseram uma série de reformas, de obra imigrante e a escravos libertos que continuaram a trabalhar nas planta-
entre as quais sufrágio mais alargado, mais poder para as assembleias regionais e ções por salários miseráveis. Outros ex-escravos partiram para as cidades, e aí
a abolição da escravatura. Mais uma vez, o espetro do regionalismo aparecera sob viveram numa pobreza abjeta como uma classe servente explorada.
a capa do federalismo, mas era a questão da escravatura que alimentava a frustra- A questão antiesclavagista foi apenas um, mas talvez o mais importante, de
ção da geração mais nova perante a inércia da conciliação parlamentar. vários fatores que contribuíram para a desacreditação da monarquia constitucio-
A importação de escravos de África não cessara, apesar das estipulações do nal no Brasil nos anos 70 e 80 do século xix. A recessão económica, as dificul-
Tratado Anglo-Brasileiro de 1826. Mas após um sucesso reduzido na contenção dades financeiras, as tensões entre a Igreja e o Estado e, mais preocupante ainda,
do comércio, em 1850 a Royal Navy intensificou a pressão sobre os traficantes a desmoralização dos oficiais do Exército após a Guerra do Paraguai alimenta-
brasileiros e passados poucos anos o comércio fora travado. Tal significava, com ram a frustração com um regime parlamentar artrítico articulado pelo «poder
efeito, que a escravatura iria diminuir e desaparecer com o passar do tempo, visto moderador» do imperador, cujo cuidado em conciliar interesses estabelecidos e
que a população escrava no Brasil não se reproduzia a um ritmo natural e os seus em observar a meticulosidade constitucional pareciam asfixiar as forças de pro-
números declinavam rapidamente se não se mantivesse a importação de África. gresso e reforma.
Tendo-se posto fim ao comércio de escravos no Atlântico, a questão resumia-se No começo da década de 70, o republicanismo impôs-se como uma força
à abolição total da escravatura propriamente dita no Brasil. A oposição à escra- intelectual entre a geração política mais jovem. Foi promovido através de peque-
vatura atingiu proporções tais que em 1871 o governo conservador do visconde nos clubes políticos em cidades de todo o Brasil, mas cresceu mais rapidamente
Rio Branco adotou medidas como a «lei do útero livre» - pela qual os filhos em São Paulo. Embora não constituísse, por si só, um desafio sério à monarquia,
recém-nascidos de escravos teriam a sua liberdade reconhecida - e um sistema o republicanismo era um potencial veículo para os ressentimentos dos plantado-
de compensação para proprietários que libertassem os seus escravos. A verda- res de São Paulo, apesar de esta elite ter continuado favorável à escravatura até
deira preocupação tinha a ver com a mão de obra necessária para trabalhar as finais dos anos 80. Com efeito, São Paulo, sendo a província mais rica, tinha
plantações de café, visto que o grosso da população escrava se concentrava em razões para sentir que o império já não servia os seus interesses: estava sub-
São Paulo, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro; sem mão de obra substituta, os -representada no parlamento e noutras instituições nacionais; contribuía mais
pilares da economia brasileira ruiriam. Ao longo da década de 70, os plantadores para o tesouro real do que recebia em troca; não lhe agradava a nomeação de
procuraram, cada vez mais, mão de obra alternativa entre os camponeses livres» não-paulistas para a sua administração regional; e a campanha antiesclavagista
e os imigrantes italianos e portugueses. Chegavam a São Paulo muitos imigran- que percorria a nação apenas adensava a frustração política da sua elite. Em
tes europeus; novas tecnologias e melhores sistemas de transportes começavam suma, à medida que os interesses dos plantadores de São Paulo divergiam dos do

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA A D E M A N D A P E L A O R D E M : C O N S E R V A D O R E S E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

Rio de Janeiro e dos seus aliados mais conservadores, o federalismo republicano porém, a sobrevivência da monarquia permitiu que todos estes problemas ficas-
dos jovens intelectuais começava a atraí-los, parecendo-lhes um modo de dese- sem contidos na estrutura mais vasta da ordem constitucional. Mas acabou por
quilibrar a balança do poder nacional a seu favor. Em 1887, os republicanos ser a influência perturbadora da economia de exportação a infligir o golpe de
tinham também atraído elementos descontentes do Exército, que sentiam que as misericórdia ao império do Brasil. Alimentou as ambições oligárquicas dos plan-
forças militares não estavam a ser devidamente representadas nos círculos gover- tadores de São Paulo, que decidiram pôr um fim abrupto à autoridade legítima da
nativos. O apoio dado por oligarcas de São Paulo e por generais frustrados à Coroa, em vez de a induzirem a responder mais plenamente aos seus interesses.
causa republicana selaria o destino da monarquia: a 15 de novembro de 1889, um
golpe de Estado militar depôs o imperador. Não houve sangue derramado e o
golpe não suscitou oposição ativa entre as classes dirigentes brasileiras. Chile
Com o desmoronamento do império, a estrutura do sistema monárquico foi
_ removida. A constituição liberal aboliu o Conselho de Estado, o poder modera- De entre as principais repúblicas hispano-americanas, só o Chile alcançou
dor e a nomeação de senadores para cargos vitalícios; separou a Igreja do Estado, uma estabilidade equiparável à do Brasil. A constituição de 1833 revelou-se a
introduziu o sufrágio universal para adultos alfabetizados e estabeleceu um sis- mais resistente dos tempos modernos no mundo hispânico e foi, sem dúvida,
tema federal, passando cada província a govemar-se a si própria como um mais duradoura do que muitas das constituições europeias do mesmo período.
Estado de pleno direito. O federalismo favorecia a províncias fortes, e principal- Manteve-se (apenas com uma breve interrupção em 1891) até 1925, e o peso
mente São Paulo. Na verdade, a república assinalou a transição para uma forma que conferiu ao Estado de direito influenciou a prática democrática no Chile
de política mais oligárquica, porque os antigos partidos de dimensão nacional do até 1973.
tempo do império perderam a sua influência quando a nova estrutura federal A democracia do Chile foi fundada por oligarcas conservadores como reação
permitiu devolver poder às elites regionais. à instabilidade das várias ditaduras liberais que se haviam seguido ao derrube de
O regime republicano ficaria profundamente marcado pelas circunstâncias Bernardo O'Higgins, em 1823. Uma poderosa facão de proprietários de terras e
do seu nascimento, pois devia a sua existência a uma intervenção militar na comerciantes, com o apoio de uma secção do Exército, levou a cabo um golpe
política; os primeiros dois presidentes da república eram militares - os marechais de Estado em 1830, depois de uma série de constituições que incorporavam o
Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Assim se habitual repertório de medidas liberais - federalismo, abolição de privilégios
iniciou uma tradição de envolvimento periódico do Exército na política brasileira corporativos, alienação da propriedade da igreja - não ter conseguido impor a
moderna, pois na ausência de uma monarquia o Exército era a única instituição ordem no novo Estado. O génio que dirigiu esta reação conservadora foi Diego
nacional que efetivamente podia cortar caminho através das fronteiras do fede- Portales, um comerciante de Valparaíso, que nunca assumiu a presidência mas
ralismo oligárquico. Mas embora o Exército tenha substituído a Coroa como a que era reconhecido como o responsável máximo até ter sido assassinado em
principal força centralizadora na política, havia uma diferença qualitativa no seu 1837. Apesar da sua simpatia profunda pela monarquia, Portales percebeu clara-
efeito sobre o Estado brasileiro: as intervenções militares seriam inconstitucio- mente que qualquer tentativa de restaurar um sistema monárquico após a inde-
nais, pelo que contribuiriam, em si mesmas, para a instabilidade política da pendência estava votada ao fracasso. Assim, a sua constituição de 1833 assumia
aquela forma de monarquia constitucional sob uma aparência republicana que
república.
A monarquia constitucional do Brasil fora o fator mais determinante, se não Simón Bolívar viria a apreciar. Era fortemente presidencialista e centralizada;
o fator crucial, para a preservação da unidade política da nova nação. A monar- o presidente tinha amplos poderes sobre os órgãos judiciário e legislativo,
quia constitucional também percorrera um longo caminho - embora não suficien- embora o congresso tivesse o direito de sancionar as políticas orçamentais e
temente longo, como se perceberia mais tarde - para a criação de um Estado- fiscais do executivo. O direito de voto estava limitado a homens que cumprissem
-nação capaz de transcender os interesses particulares. A experiência do Brasil no certos requisitos de literacia e propriedade, e a estrutura federal foi substituída
século xix foi, afinal, análoga à da América hispânica: o Brasil também teve de por um sistema de intendentes regionais nomeados pelo poder central para super-
lidar com o separatismo regional, com os conflitos entre conservadores e liberais, visionar os assuntos regionais - um legado do reformismo dos Bourbons.
com as pressões democráticas dos radicais liberais de meados do século par% Era, na realidade, o autoritarismo que caracterizava a prática política. As elei-
democratizar a sua sociedade hierárquica e racialmente estratificada, com o ções eram habitualmente manipuladas por funcionários do governo para garantir
influxo de capital estrangeiro e com o grande salto da economia de exportação; a vitória do partido no poder. Quem levantasse problemas sujeitava-se à prisão

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A D E M A N D A PELA O R D E M : C O N S E R V A D O R E S E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

arbitrária e ao exílio. O Exército era controlado através do saneamento de ofi- O desenvolvimento económico trouxe, no entanto, uma nova diversidade
ciais liberais que mostrassem tendência para o envolvimento na política, e atra- regional: nos anos 50, as elites-emergentes das regiões mineiras do Norte e das
vés de uma guarda nacional conservadora composta por reservistas, que podia províncias do Sul exerceram pressão sobre a oligarquia central e o sistema polí-
ser usada para responder a uma rebelião militar. Finalmente, permitiu-se à Igreja tico sofreu duas breves ruturas. A constituição de Portales foi também posta à
que conservasse a sua grande influência social e económica sobre a sociedade. prova por uma viragem para um liberalismo mais radical operada pela «Geração
Mas a estabilidade do sistema portaliano deve, em última análise, ser atribu- de 1842». Grande parte deste fermento cultural foi estimulado por inovações na
ída à peculiaridade do Chile. O vale central em redor de Santiago constituía o educação. Nos anos 40, o conservador progressista Manuel Montt introduzira um
núcleo demográfico e agrícola deste país estranhamente alongado, delimitado sistema educativo secular, e em 1843 foi fundada a moderna Universidade do
pelos Andes e pelo Pacífico. A sua economia agrária era dominada por uma oli- Chile, que teve o grande sábio venezuelano Andrés Bello como seu primeiro
garquia unida de proprietários de terras e comerciantes crioulos. As divisões reitor. Liberais estrangeiros que se encontravam no Chile, entre os quais se des-
étnicas não eram tão profundas como na maioria dos restantes países da América tacava o argentino Domingo Sarmiento, um futuro presidente do seu país, con-
Latina: as classes mais baixas compreendiam números elevados de brancos e tribuíram para a difusão de ideias liberais, e juntaram-se aos chilenos Francisco
mestiços, a reduzida população escrava negra declinou rapidamente após a inde- Bilbao e José Victorino Lastarria no ataque às tradições hispânicas e ao autorita-
pendência, e foram poucas as comunidades índias isoladas que sobreviveram, rismo político.
embora uma numerosa população de índios araucanos (cerca de 200000) A década de 50 foi, assim, uma fase de teste para a constituição de Portales,
gozasse de uma existência independente à margem da república, nas suas terras que estipulava dois mandatos de cinco anos como tempo máximo para o exercí-
ancestrais a sul do rio Bío-bío. Pode, assim, dizer-se que o Chile era um país cio do cargo de presidente da república. Manuel Montt foi eleito em 1851 como
muito integrado, em comparação com as outras repúblicas hispano-americanas, terceiro presidente neste sistema decenal. A sua eleição foi contestada por uma
e Portales conseguiu encontrar uma fórmula constitucional que reunia o con- coligação de liberais e oligarcas do Sul, seguindo-se uma guerra civil de três
senso da sua elite. A política anárquica do caudilhismo foi, deste modo, evitada, meses, da qual Montt saiu vencedor. No decurso do seu segundo mandato, Montt
uma vez que as divergências entre conservadores e liberais ficaram contidas envolveu-se numa disputa com a hierarquia da Igreja a respeito de um assunto
de jurisdição pouco importante, o que lhe custou o apoio essencial do Partido
numa estrutura institucional aceite.
As recompensas do conservadorismo pragmático de Portales foram conside- Conservador. A difícil questão das relações entre Igreja e Estado estaria presente
ráveis: o Chile tornou-se uma formidável potência militar e económica na região, na política chilena durante o resto do século, mas raramente extrapolaria os limi-
depois de ter sido um dos territórios menos valorizados das índias espanholas. tes da prática constitucional. Ainda assim, este problema determinaria, no final
Entre 1836 e 1839, travou uma guerra breve para impedir que o Peru e a Bolívia da década, um realinhamento complexo dos partidos políticos que enfraqueceu
se unissem numa confederação que poderia tê-lo deixado numa situação de des- a posição do presidente, apesar de Montt ter derrotado um exército rebelde na
vantagem regional. A vitória militar funcionou como um tónico para o orgulho breve guerra civil de 1859.
nacional chileno, e trouxe à nação benefícios económicos significativos. Valpa- O enfraquecimento do poder presidencial tornou-se evidente quando Montt se
raíso substituiu Callao, no Peru, como o porto mais importante na costa sul- viu impedido de nomear o seu sucessor em 1861. O novo presidente, José Joaquín
-americana do Pacífico. O investimento estrangeiro entrou nos territórios do Pérez, chamou os opositores de Montt da Fusão Liberal Conservadora a formar
Norte e em 1840 tinha já transformado o Chile no principal produtor mundial de governo. O mandato decenal de Pérez foi marcado por avanços liberais contra a
cobre e num grande exportador de outros minerais - prata, ouro e carvão come- Igreja (em 1865 foi promulgada uma relativa liberdade religiosa), e uma impor-
çaram a ser facilmente extraídos das minas após a introdução de nova tecnologia. tante emenda à constituição de 1833 proibiu a reeleição imediata do presidente.
A economia de exportação sofreu um novo impulso no começo da década de 50 Ambas as tendências - separação entre Igreja e Estado e limitação do presiden-
do século xix, em virtude da construção de caminhos de ferro que ligavam os cialismo - se acentuaram nas décadas de 70 e 80, período em que os liberais
centros de produção aos principais portos. A partir de finais dos anos 40, foram entraram em rutura com os conservadores (relativamente ao controlo da educação
empreendidas campanhas militares contra os índios a sul do rio Bío-bío, a par de pela Igreja), tornando-se o partido dominante num sistema cada vez mais parla-
uma política de povoamento, de tal modo que no princípio dos anos 80 o territó» mentar e assente num sufrágio alargado pela abolição do requisito da literacia.
rio dos Araucanos fora ocupado e os índios haviam sido convertidos em mão de A crescente indisciplina na arena política foi exacerbada pela recessão dos
obra utilizada nas fazendas produtoras de trigo. anos 70, causada por uma acentuada queda da produção de cobre. Esta quebra

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

crioulo realista Agustín de Iturbide e Vicente Guerrero, o rebelde mestiço que


foi compensada, ainda na década de 70, por um aumento da produção de nitratos
herdara de Miguel Hidalgo a revolta separatista de 1810. Porém, tudo o que o
em territórios do Peru e da Bolívia controlados pelo Chilenos. Um aumento da
Plano conseguiu foi ultrapassar temporariamente as divisões que a crise de inde-
procura mundial de nitratos, para serem usados como fertilizantes, provocou
pendência provocara na sociedade mexicana. As suas três garantias de Indepen-
uma disputa relativamente aos direitos sobre os campos onde decorria a extração.
O problema levou à Guerra do Pacífico (1879-83), na qual o Chile infligiu uma dência, União e Religião não bastavam para resistir às pressões do conflito ide-
esmagadora derrota militar ao Peru e à Bolívia. A anexação das regiões produto- ológico que abalava as classes dirigentes. Ao longo dos 50 anos seguintes, as
lutas entre liberais e conservadores mergulhariam por várias vezes o país na
ras de nitratos deu um enorme impulso à economia chilena (apesar de as compa-
nhias de nitratos estarem agora maioritariamente sob o controlo dos Britânicos, guerra civil, e a ordem só regressaria ao México quando o seu centralismo his-
nomeadamente de John Thomas North, o «Rei dos Nitratos»), e os impostos tórico se pudesse refletir num novo entendimento político entre as elites crioulas;
sobre as exportações trouxeram avultadas receitas aos cofres do Estado. só assim surgiria uma autoridade nacional capaz de trazer estabilidade e prospe-
ridade ao país como um todo.
A guerra civil voltaria, no entanto, a eclodir em 1891. O então presidente,
José Manuel Balmaceda, queria tributar a indústria de nitratos para financiar um O problema residia no facto de os liberais mexicanos serem dogmaticamente
federalistas, vendo na Constituição dos EUA o modelo ideal para o seu país
ambicioso programa de investimento público em infraestruturas, construção,
heterogéneo; eram também profundamente anticlericais, como reação à riqueza
educação pública e assistência social. Os seus planos depararam com uma
e à influência históricas da Igreja mexicana. Quanto aos conservadores mexica-
enorme resistência no parlamento. Foi uma crise política complexa, relacionada
nos, eram extremamente poderosos e centralistas; não só tinham uma forte liga-
com questões de desenvolvimento económico que viriam a ser amplamente
ção à Igreja como não conseguiam ultrapassar a nostalgia pela Coroa - e quanto
debatidas em toda a América Latina no século seguinte, questões como a influ-
mais grave a desordem que os rodeava, mais tentados se sentiam a restaurar uma
ência de investidores estrangeiros na economia e a real capacidade da capital
monarquia. Esta divisão irreconciliável entre as classes dirigentes brancas debi-
chilena de financiar sozinha a modernização económica. No fundo, a crise de
litou seriamente o México, tornando-o vulnerável à rebelião índia, à crise econó-
1891 pôs em causa a natureza do Estado chileno: seria ainda a criação dos inte-
resses oligárquicos, ou adquirira autonomia suficiente para agir em nome da mica e às intenções agressivas de uns EUA expansionistas. Registaram-se várias
tentativas para formar coligações entre centralistas conservadores e federalistas
nação como um todo?
A sangrenta guerra de oito meses terminou com a derrota de Balmaceda, que liberais, mas as contradições internas nunca chegavam a ser ultrapassadas. Em
tais circunstâncias, o Exército tornou-se o principal agente de poder; mas até os
se suicidou passado pouco tempo. A política era agora controlada pelo parla-
generais estavam inclinados a competir pelo poder entre si e contra caudilhos
mento, e o facionalismo prevaleceu, com os partidos a fragmentarem-se em
regionais; o resultado foi uma impressionante sucessão de pronunciamientos,
grupos instáveis e oportunistas. A constituição de Portales não foi formalmente
que em meados do século quase levaram à desintegração da república.
rescrita, mas o poder da presidência foi severamente limitado - o presidente
O Plano de Iguala começara a desabar quando nenhum príncipe espanhol
deixou de poder dissolver o parlamento ou de manipular eleições. A «república
aceitara a Coroa mexicana. Isto porque a garantia de «Independência» do Plano
parlamentar» que se seguiu foi um triunfo de oligarquia (uma «Fronda aristocrá-
levara a crer que o México seria governado por um monarca constitucional
tica», como ficou conhecida), mas duas décadas mais tarde enfrentaria desafios
ligado à legítima casa real de Espanha. O Plano foi ainda enfraquecido pela
inéditos, lançados pelas classes sociais das áreas urbanas e industriais em expan-
queda do «imperador» crioulo substituto, Agustín L Inevitavelmente, quando foi
são. O século seguinte diria se o Estado chileno conseguiria ir além dos interes-
proclamada em 1823 uma república federal, os realistas conservadores e a Igreja
ses económicos das suas elites dirigentes.
sentiram-se traídos, e mostrar-se-iam daí em diante ambivalentes quanto ao novo
Estado.
Quatro anos mais tarde, a segunda garantia de Iguala - a «União» ou igual-
México
dade de estatuto entre crioulos e espanhóis residente no México - começou a
dissolver-se. Sobre os espanhóis peninsulares pairava a suspeita de estarem a
Em nenhuma outra nação foi a luta para transformar a monarquia católica
conspirar para restaurar a autoridade espanhola, e esta desconfiança inflamou as
numa república constitucional tão caótica e tão violenta como no México. O Plano*
tensões entre os federalistas, que dominavam o congresso, e os centralistas con-
de Iguala, que conduzira a Nova Espanha para uma declaração de independência,
servadores, que eram acusados de simpatizar com a Espanha. Uma rebelião de
em 1821, que praticamente não derramara sangue, fora um compromisso entre o

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H I S T Ó R I A DA AMÉRICA LATINA A D E M A N D A PELA ORDEM: CONSERVADORES E L I B E R A I S NO SÉCULO X I X

conservadores foi reprimida e em 1828 as eleições foram anuladas por .um golpe economia dinâmica no México. O liberalismo económico de Mora contava com
liberal, que entregou a presidência a um antigo chefe de guerrilha das lutas pela o apoio de muitos proprietários de terras crioulos, impressionados com a ênfase
independência, Vicente Guerrero, o qual decretou imediatamente a expulsão de dada à sacralidade da propriedade privada e com a perspetiva de privatizar terras
todos os espanhóis residentes na república. Passados meses, em julho de 1829, comuns. Porém, com o tempo, Mora acabou por aceitar algum grau de interven-
uma força expedicionária espanhola desembarcou em Tampico com o objetivo ção do Estado e de protecionismo, enquanto o conservador Alamán veria as
de reconquistar o México, mas foi rapidamente dizimada pela malária e depois virtudes do comércio livre em certas esferas. Na realidade, esta contenda política
vencida por tropas republicanas sob o comando do general António López de entre as elites crioulas centrar-se-ia cada vez mais na questão da riqueza da Igreja
Santa Arma. Herói do momento, Santa Anna conquistou reservas de honra, apa- e das terras índias, e nos fueros (imunidades legais) de que gozavam clero e
rentemente inesgotáveis, como patriota, reservas a que recorreria por várias Exército.
vezes no decurso de uma longa e sinuosa carreira política. O governo conservador de Bustamante caiu em 1832, na sequência de um
«Religião» era a terceira, e última, garantia do Plano de Iguala, e também pronunciamiento liderado pelo general Santa Anna com o apoio dos liberais, que
não escaparia ao ataque dos liberais. Mas seriam precisos ainda 30 anos para que continuavam ressentidos com a execução de Guerrero. No ano seguinte, Santa
a Igreja pudesse ser totalmente apagada da constituição e para que a sua riqueza Anna, homem sem convicções políticas fixas, foi eleito presidente e Valentín
fosse expropriada pelo Estado. Com efeito, sem essa garantia de «Religião» nada Gómez Farias, um discípulo do teórico liberal Mora, assumiu o cargo de vice-
havia que assegurasse ao novo Estado republicano a lealdade dos muitos conser- -presidente. Este último lançou então um ataque determinado contra a riqueza e
vadores do México católico (que incluíam grande parte da classe dos campone- os fueros da Igreja, e tentou ainda reduzir a dimensão do Exército. Apercebendo-
ses e das comunidades índias, bem como da antiga aristocracia). Mais do que -se das complicações que se avizinhavam, Santa Anna, que preferia a paz da sua
qualquer outro tema, a religião dividiria o México em dois campos antagónicos, fazenda em Jalapa às dificuldades diárias do cargo que ocupava, respondeu aos
até muito depois da separação formal de Igreja e Estado, em finais da década de protestos do clero e do Exército demitindo Gómez Farias. O presidente decidiu
60, pois os crioulos católicos só se reconciliariam verdadeiramente com o Estado então reforçar a autoridade nacional dando ao país uma constituição mais centra-
na década de 40 do século xx. Até então, a república liberal do México continu- lista, mas este plano desagradou aos federalistas liberais, e o descontentamento
aria a ser uma construção instável, parcial, sem consenso político e a precisar da que surgiu em vários Estados converteu-se em revolta.
mão de ferro de um ditador que a impedisse de se desmoronar. Quando Zacatecas se sublevou contra o governo nacional, em 1835, Santa
A vitória liberal sobre a Espanha não impediu o derrube de Vicente Guerrero Anna teve de chefiar uma expedição punitiva para pacificar a região. Mal termi-
pelos conservadores em 1830. O novo presidente, Anastasio Bustamante, tentou nara a expedição quando o estado do Texas (onde já se encontravam estabeleci-
impor um governo centralizado à república federal, e quando Guerrero se revol- dos mais de 20 000 rancheiros anglo-americanos, apesar dos avisos de patriotas
tou, foi capturado e executado, ato que suscitaria rancor entre os liberais e que conservadores como Alamán) se rebelou contra a constituição centralista. Na
inquinaria a atmosfera política durante a década seguinte. A força motriz por altura em que o exército de Santa Anna chegou ao Texas, os rebeldes já tinham
detrás do governo conservador foi Lucas Alamán, um aristocrata inteligente e declarado a independência. Ao chegar a San António, em fevereiro de 1836,
capaz que lançou vários projetos para reanimar a economia estagnada e des- Santa Anna esmagou a resistência determinada de um pequeno grupo de colonos
truída pela guerra. Uma tentativa de revitalizar a exploração da prata, o principal anglo-americanos que defendiam a missão de El Álamo. Ultrajados pela derrota
suporte da economia colonial, não vingou; o investimento, através de um banco e pelo subsequente massacre de prisioneiros, os texanos uniram-se sob o grito de
público, na indústria têxtil permitiu a substituição de bens importados, com a «Lembrem-se do Álamo» e acabaram por vencer o exército enfraquecido de
ajuda de medidas protecionistas; mas a agricultura, o setor crucial, à mercê camponeses/servos índios em San Jacinto a 21 de abril. Feito prisioneiro, Santa
de restrições fiscais e de práticas antiquadas, resistiu a mudanças produtivas. Anna reconheceu a independência do Texas e conseguiu a sua libertação, mas
Os conservadores revelaram-se incapazes de regenerar a economia, pois o com- quando regressou à Cidade do México, carregando o fardo da desonra, a nova
promisso político com a tradição impedia reformas económicas de fundo. constituição centralista já entrara em vigor e um governo conservador eleito
Os liberais, por sua vez, encontraram um paladino intelectual em José chefiado por Bustamante recusou-se a aceitar a independência daquele território.
Maria Luis Mora. Padre descontente e defensor do mercado livre, Mora defendia A questão do federalismo mergulhou, então, o México no caos político. Para
que só a desvinculação da propriedade da Igreja e das terras das comunidades tornar a situação ainda pior, soldados franceses ocuparam Veracruz em 1838,
índias, a par da abolição de dízimos, tarifas e outros impostos, poderia criar uma procurando compensações pelos danos causados a propriedades de cidadãos

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HISTÓRIA D A A M É R I C A L A T I N A A D E M A N D A PELA O R D E M : CONSERVADORES E L I B E R A I S NO S É C U L O XIX

franceses residentes no México. Santa Anna aproveitou a oportunidade para se praticamente terminada. Santa Anna partiu para o exílio e em fevereiro de 1848
redimir da desonra expulsando os Franceses. Novamente herói (perdeu a perna foi assinado um tratado de paz que entregava aos EUA metade do território sob
direita ao ser atingido por um tiro de canhão francês), Santa Anna recuperou a soberania mexicana. A hostilidade norte-americana contra um México irremedia-
presidência por um breve período de tempo, enquanto Bustamante tentava, em velmente dividido alcançara resultados generosos: um «destino óbvio» provi-
vão, reprimir as revoltas federalistas. No decorrer dos acontecimentos, formou- denciou aos EUA terras que seriam os futuros estados do Texas, Novo México,
-se em julho de 1840 uma república federal encabeçada por Gómez Farias, mas Arizona, Nevada, Colorado e Califórnia,
durou apenas alguns dias. Depois foi o lucatão que decidiu declarar a sua inde- Por que motivo se deu uma tal catástrofe? Embora severas, as investidas dos
pendência, seguindo o exemplo do Texas. Bustamante não conseguiu contrariar EUA não foram o único desastre que se abateu sobre as classes dirigentes criou-
a maré federalista e foi destituído. Santa Anna foi nomeado presidente interino, ' • las em finais dos anos 40. Sucessivas revoltas índias ameaçaram derrubar o
mas as eleições devolveram uma maioria federalista ao congresso. Um golpe de colonialismo interno que prevalecia no México. O lucatão, cujo pedido de inde-
Estado militar veio, no entanto, inverter a situação, impondo uma constituição pendência em 1840 não fora devidamente tido em conta pelo governo central,
centralista, conservadora, com Santa Anna como presidente. Por esta altura, o viu-se abalado por uma enorme revolta dos índios maias contra a pequena elite
veterano de guerra começara a apreciar as virtudes da monarquia e adotou um branca de plantadores de henequém. Não podendo contar com o Exército mexi-
estilo de governação quase régio. As suas tentativas de recuperar a mística da cano, que se encontrava em combate, os plantadores em pânico ofereceram o seu
realeza chegariam ao extremo de mandar exumar e trasladar a sua perna ampu- estado para anexação a qualquer potência estrangeira capaz de reprimir os
tada para a capital, para ser enterrada, com a realização de uma cerimónia, na índios. Simultaneamente, a revolta conhecida como a Rebelião de Sierra Gorda
catedral. A extravagância financeira do ditador não tardou, contudo, a provocar eclodiu nos vitais estados mineiros de Guanajuato, Querétaro e San Luis Potosí,
outra revolta militar, e em 1844 Santa Anna foi destituído e exilado em Cuba. entre populações rurais de índios e mestiços, que exigiam a redistribuição das
O que não constituiu, de modo algum, o fim da sua carreira. fazendas pelos camponeses sem terra. Entretanto, as propriedades das regiões
Enquanto o México se fragmentava, o problema do Texas arrastava-se, com centrais do país eram pilhadas por grupos de bandidos e, no Norte, vagas de
os EUA a ameaçarem de tempos a tempos anexar o território - o que de facto tribos nómadas ferozes saqueavam povoações e fazendas em impunidade. O país
aconteceu em 1845. Dada a gravidade da situação do México, o presidente, parecia prestes a desintegrar-se, e uma vez que o Exército mexicano estava a ser
general José Joaquín Herrera, tentou negociar um acordo. A opinião pública destruído pelas forças superiores dos EUA, não lhe restava outra opção senão
mexicana reagiu com ultraje a esta perspetiva. O Exército organizou um golpe capitular.
de Estado e o seu líder, o general Mariano Paredes, encorajou a ideia, em tempos Os desastres de meados do século levaram as elites crioulas - do liberal
avançada por Lucas Alamán e outros conservadores, de estabelecer uma monar- Mora ao realista Alamán — a cerrar fileiras em defesa da sua herança hispânica
quia encabeçada por um príncipe europeu. Tratava-se de uma tentativa desespe- comum, pelo menos nos anos imediatamente a seguir à guerra. A indemnização
rada para chegar a um consenso nacional no espírito do Plano de Iguala; o Plano financeira que os EUA pagaram ao México pela sua perda de território ajudou o
resolvera a crise de independência, e algo do género era agora absolutamente governo nacional a reabilitar o Exército, e as revoltas índias foram controladas.
necessário para ultrapassar a crise igualmente grave provocada pela insistente As divisões não tardaram, no entanto, a reaparecer, trazendo novos pronuncia-
pressão dos EUA sobre o Texas. Mas era demasiado tarde: em abril de 1846, um mientos militares.
exército dos EUA entrou no México e a guerra foi declarada. Com a política a encaminhar-se mais uma vez para o caos, tanto liberais
A ocupação de território mexicano por soldados dos EUA, comandados pelo como conservadores começaram a acreditar que só um governo firme poderia
general Zachary Taylor, determinou a queda do general Paredes, um conserva- pôr fim aos males da nação. Mas quem chefiaria esse governo? Não havia nin-
dor. A substituí-lo ficou, imagine-se, Santa Anna, agora aliado ao seu outrora guém à mão - exceto, é claro, o prestável veterano de desastres, o general Santa
inimigo Gómez Farias e aos liberais. Farias propunha-se confiscar propriedade Anna, que foi prontamente chamado do exílio para assumir a presidência, em
da Igreja para financiar o esforço de guerra, mas o clero reagiu, provocando março de 1853. A este messias político algo desgastado ofereciam-se agora
outra revolta militar. Entretanto, um segundo exército, comandado pelo general sugestões contraditórias. Lucas Alamán propunha a sua receita habitual - o fim
Winfield Scott, invadiu o México, apoderou-se de Veracruz e avançou sobre a do federalismo e o fortalecimento da Igreja e do Exército, os tradicionais pilares
capital, onde se deparou com a resistência heróica e desesperada da população da ordem; mas os liberais receavam que esse fosse apenas o primeiro passo para
civil. Quando a Cidade do México caiu, em setembro de 1847, a guerra estava a restauração de uma monarquia. Santa Anna optou por um governo de unidade

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA A D E M A N D A PELA ORDEM: C O N S E R V A D O R E S E L I B E R A I S NO S É C U L O XIX

nacional e formou uma coligação que incluía conservadores como Alamán e de hacendados crioulos aderiu à causa liberal, graças a reformas promovidas por
jovens liberais radicais como Miguel Lerdo de Tejada, que se distinguiria nos razões ideológicas por intelectuais urbanos progressistas. O bloco conservador,
anos seguintes. pelo contrário, foi alargado por índios expropriados, padres de paróquias pobres
Apesar do carácter tão diverso da coligação no poder, e mesmo tendo o e oficiais do Exército descontentes.
realista Alamán falecido poucos meses depois de ocupar o seu cargo, Santa Em 1857, foi aprovada uma nova constituição liberal que incorporava as leis
Arma inclinou-se uma vez mais para a ideia de uma monarquia - mas seria uma Juárez e Lerdo, e que omitia a declaração do México como uma nação católica;
monarquia crioula à Ia Iturbide, com ele no centro. Assumindo o título de Alteza seria um símbolo de união para os liberais mexicanos, como a constituição de
Sereníssima, Santa Anna ressuscitou a Ordem de Guadalupe de Iturbide, come- Cádis de 1812 para os Espanhóis. Seguiu-se uma guerra civil, que a princípio
çando a presidir a uma pseudocorte imperial, onde não faltavam os elementos do correu mal para os liberais. Na verdade, Benito Juárez, o presidente constitucio-
absolutismo hispânico tradicional - a aliança entre trono e altar. Assim, o clero nal da república, tornara-se um mero fugitivo numa carruagem preta, tentando
recuperou alguns dos seus privilégios e os jesuítas foram chamados de volta, escapar aos exércitos conservadores sob a presidência rival de um general insta-
entre outras medidas favoráveis à Igreja. Mas esta paródia caduca e cada vez lado na Cidade do México. Gradualmente, a maré mudou a favor dos liberais e
mais tirânica da monarquia católica não podia ser a receita para a estabilidade, a vitória foi finalmente alcançada em dezembro de 1860, quando a capital foi
muito menos para a legitimidade. Decorrido um ano já um grupo de oficiais do arrancada ao presidente conservador, o general Miguel Miramón.
Exército se sublevara contra Santa Anna, lançando o Plano de Ayutla (1854), que Em 1861, Benito Juárez foi eleito o primeiro presidente civil na história do
exigia uma nova constituição e um retorno aos princípios republicanos. país. Herdou um tesouro na bancarrota e, pressionado por credores estrangeiros,
Assim se iniciou um processo obstinado, conhecido como La Reforma, que viu-se impossibilitado de cumprir os seus compromissos financeiros. Dadas as
ao longo dos 20 anos seguintes estabeleceria finalmente um Estado secular, con- circunstâncias, França, Espanha e Grã-Bretanha uniram forças para enviar uma
sagrando os princípios liberais de soberania popular e igualdade perante a lei. expedição punitiva ao México. Porém, quando se tornou claro que a expedição
Mas o fim do México católico e realista seria extraordinariamente violento e não passava de um pretexto para as intenções colonialistas de Napoleão JJI, Bri-
agonizante, pois antes de a grande reforma liberal se concretizar assistir-se-ia tânicos e Espanhóis retiraram as suas forças do México. Os Franceses insistiram,
ainda a um último esforço dos conservadores para estabelecer uma monarquia foram detidos em Puebla, mas após a chegada de reforços tomaram a Cidade do
constitucional segundo as linhas do Plano de Iguala. México e ocuparam as regiões centrais do país. Juárez fugiu para San Luis
Santa Anna foi finalmente derrubado em agosto de 1855, e o governo liberal Potosí, onde estabeleceu o seu governo.
que lhe sucedeu incluía radicais jovens que seriam os grandes nomes de La Conhecendo o sonho conservador mexicano de uma monarquia constitucio-
Reforma - o advogado índio zapoteca e futuro presidente, Benito Juárez Melchor nal sob a autoridade de um príncipe europeu, o plano de Napoleão III era obter
Ocampo, os irmãos Lerdo de Tejada, Guillermo Prieto, Santos Degollado e para a França um Estado-cliente americano. O príncipe escolhido para tal papel
Ignacio Ramírez. Embora coligados com liberais moderados, estes radicais foi o arquiduque Maximiliano da Áustria, um jovem que pertencia à Casa Real
foram nomeados para ministérios cruciais e apressaram-se a aprovar leis que de Habsburgo e que possuía, assim, excelentes credenciais para um monarca.
reduziam as imunidade do clero e do Exército. A Ley Juárez de 1855 aboliu os Persuadido, por um plebiscito manipulado, de que o povo mexicano o acolheria
privilégios clericais e restringiu os fueros militares. Provocou uma revolta sem reservas, Maximiliano e a sua mulher belga, Carlota, subiram ao trono do
conservadora, sob o grito de religión e fueros, que levou à queda da cidade de México em 1864.
Puebla. Acusando a Igreja de usar a sua fortuna para financiar os rebeldes, o Maximiliano revelou-se um soberano de bom carácter e bem-intencionado,
governo liberal aprovou outra lei, a Ley Lerdo, que previa a desvinculação de mas era um homem de ideias liberais, o que desapontou os seus apoiantes mexi-
toda a terra corporativa, eclesiástica e índia. Esta ofensiva legal contra a Igreja, canos, quase todos conservadores e clericais. Disposto a governar como um bom
o Exército e as comunidades índias atingiu as fundações da ordem tradicional e monarca constitucional, Maximiliano não revogou a legislação anticlerical de
provocou a reação que se esperava da parte dos conservadores. Mas a configu- La Reforma; com efeito, o seu primeiro governo era composto por liberais mexi-
ração da política mexicana estava a transformar-se de modo a garantir a vanta- canos preparados para colaborarem consigo. Demonstrou, além disso, uma genu-
gem a longo prazo dos liberais. Com efeito, a privatização de propriedade índi% ína preocupação em representar o povo mexicano no seu todo: aboliu a peona-
e da Igreja libertou novas terras para o mercado, as quais foram adquiridas por gem nas fazendas, reduziu o número de horas de trabalho e permitiu que os
latifundiários e especuladores financeiros. Deste modo, um número considerável camponeses pudessem deixar os seus empregadores sem terem de os compensar;

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A D E M A N D A P E L A O R D E M : C O N S E R V A D O R E S E L I B E R A I S NO S É C U L O XIX
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA

Tejada. Um liberal mais inflexível do que Juárez, Tejada levou por diante a
restituiu terras comuns a comunidades índias expropriadas pela constituição de
expropriação de terras da Igreja e das comunidades índias, e impulsionou o
1857. Mas Maximiliano devia o seu trono a um exército de ocupação francês, e
desenvolvimento económico ao aprovar a construção dos primeiros caminhos de
isso era algo de que não podia prescindir. As forças republicanas de Juárez não
ferro no México, que ligaram o porto de Veracruz à capital. Quando se apro-
tinham abandonado a guerra de guerrilha contra os Franceses e quando Napo-
ximaram as eleições de 1876, Porfirio Díaz voltou a proclamar o princípio de
leão Dl se viu obrigado a retirar a sua tropa do México para responder à crescente
não-reeleição, apelando a um motim. Desta vez, foi bem-sucedido, e assumiu a
ameaça da Prússia na Europa, Maximiliano ficou numa situação de clara desvan-
presidência.
tagem - sem o apoio da França, não podia fazer frente a Juárez. Abandonado
Porfirio Díaz chegara ao poder pela via clássica do caudilho e, apesar do seu
pelos seus seguidores liberais, Maximiliano voltou-se para os conservadores,,
mas os soldados de Juárez infligiram uma série de derrotas aos realistas, após o princípio de não-reeleição, manter-se-ia no cargo durante mais de 30 anos, tendo
apenas de se servir da presidência simbólica de um fantoche corrupto entre 1880
que cercaram o campo do imperador em Querétaro. Maximiliano acabou por ser
traído por um dos seus próprios comandantes e enfrentou o pelotão de fuzila- e 1884. De 1876 a 1910, o México conheceria um progresso económico inédito
desde a independência. A economia cresceu a um ritmo impressionante - uma
mento num monte perto Querétaro, a 19 de junho de 1867. Com ele foi final-
média de 8% por ano. A população aumentou cerca de 50%, atingindo os 15
mente enterrada a quimera de uma monarquia mexicana.
milhões de habitantes, apesar de a imigração europeia se ter mantido em níveis
A restauração da república sob a presidência de Benito Juárez representou o
muito reduzidos. A modernização da economia de exportação, através do alarga-
triunfo da Reforma liberal: o México tinha agora um Estado secular onde os pri-
mento da rede ferroviária e da introdução de nova tecnologia nos setores mineiro
vilégios da Igreja foram abolidos e onde o poder dos proprietários de terras con-
e agrícola, transformou o México. À medida que os caminhos de ferro substitu-
servadores foi definitivamente enfraquecido. Os principais apoiantes de Juárez
íam os mulos como meio de transporte, a produção mineira registou um aumento
eram profissionais urbanos e comerciantes de classe média, e os hacendados, que
pronunciado: além da tradicional produção de ouro e prata, tornou-se viável a
esperavam enriquecer graças à implementação das provisões da constituição de
extração de cobre, zinco e chumbo, ao mesmo tempo que a produção de prata
1857 relativamente à expropriação de terras da Igreja e das comunidades índias.
cresceu cerca de 150%. Na agricultura, espécies rentáveis para exportação como
Os camponeses, na sua vasta maioria índios, pouco beneficiaram com
sisal, borracha, cochinilha, açúcar e café estimularam a economia rural de muitas
La Reforma: muitas comunidades perderam terra para as fazendas; a peonagem
regiões, levando à consolidação da fazenda e à expropriação mais célere de terras
aumentou, e o fardo da tributação caiu sobretudo sobre os seus ombros, apesar de
serem a classe que menos condições tinha para o suportar. Também por esta razão, índias e da Igreja. Nas décadas de 80 e 90, verificou-se um desenvolvimento
industrial significativo no que se referia aos têxteis e a produtos industriais ligei-
a instabilidade política atormentou o governo de Juárez: revoltas de camponeses,
ros, e também no processamento de minérios. Em 1902, abriu em Monterrey a
revoltas de caudilhos regionais e guerras contra os Apaches, na fronteira norte,
primeira fábrica de aço, mas de um modo geral a indústria pesada não cresceu
impediram a consolidação da autoridade nacional. Ainda assim, Juárez, que pôde
muito rapidamente: o governo, que preconizava o princípio do laissez-faire, não
contar com uma abundante reserva de apoio político depois de ter expulsado os
adotou medidas de proteção e pouco fez para especializar mão de obra para a
Franceses, conseguiu cumprir o seu primeiro mandato e foi reeleito em 1871.
La Reforma podia ter dado ao México a estrutura legal de um Estado indústria.
O liberalismo económico do regime de Díaz era mais evidente na sua aber-
moderno, mas estava longe de livrar o país do caudilhismo. Os caudilhos regio-
tura ao investimento estrangeiro. Na verdade, o capital necessário para transfor-
nais descontentes procuravam continuamente destituir Juárez; alguns eram con-
mar as infraestruturas e a base produtiva do país era esmagadoramente estran-
servadores, mas o verdadeiro perigo vinha das fileiras liberais, e o mais ambi-
geiro; durante todo este período, a maioria dos setores dinâmicos da economia
cioso dos caudilhos liberais era o jovem herói das guerras contra os Franceses,
mexicana foi controlada por companhias estrangeiras. Díaz aceitou de bom
Porfirio Díaz. Díaz já concorrera às eleições de 1867 contra Juárez e saíra ven-
grado capital dos EUA, mas esforçou-se por equilibrar esse investimento enco-
cido; quando voltou a perder as eleições de 1871, organizou um levantamento
rajando fontes europeias, sobretudo da Grã-Bretanha, mas também de França e
nacional para apoiar a sua declaração de que os presidentes não deviam ser
da Alemanha.
reeleitos. Díaz foi derrotado, mas passados alguns anos faria outra tentativa de
Este longo período de progresso e estabilidade política, conhecido como
chegar ao poder.
«Porfiriato», foi possível graças à consolidação da autoridade central do Estado.
Juárez faleceu durante o seu segundo mandato e foi substituído, em 1872,
A modernização e a estabilidade reforçavam-se mutuamente: a Pax Porfiriana
por outra importante figura de La Reforma, o advogado Sebastián Lerdo de
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
A D E M A N D A PELA O R D E M : CONSERVADORES E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

atraía investidores estrangeiros, ao mesmo tempo que os recursos económicos século começara a organizar-se em sindicatos de trabalhadores e a absorver
melhorados fortaleciam o poder do governo central contra o caudilhismo regio- ideologias políticas radicais. Se ocorresse uma crise económica grave ou se
nal. E, todavia, a estabilidade não foi alcançada por meios constitucionais: não algum acidente vitimasse Don Porfirio, o país poderia voltar a afundar-se na
havia um consenso centralizador entre as elites regionais mexicanas, que pode- desordem. Em suma, a modernização económica exigia uma modernização cor-
riam ter produzido algo de semelhante a um regime constitucional, como se respondente do aparelho do Estado.
verificou em repúblicas como o Chile ou a Argentina. Porfirio Díaz era um Este problema era reconhecido por alguns dos principais ministros do dita-
caudilho, e manteve-se no poder através dos bem experimentados métodos per- dor. Eram uma clique de tecnocratas progressistas conhecidos como «científi-
sonalistas do caudilhismo. cos», porque advogavam uma política «científica», que permitia a suspensão de
A repressão militar foi um instrumento importante para a pacificação de um direitos democráticos enquanto o progresso económico transformava um país
país tão turbulento como o México. Um Exército bem financiado e uma força que de outro modo permaneceria viciado por valores obscurantistas e por defici-
paramilitar mais bem paga ainda, os temidos Rurales, impuseram uma certa ências raciais. Os «científicos» pretendiam criar um partido nacional que institu-
ordem nas regiões rurais: a ameaça apache foi contida, o banditismo foi repri- cionalizasse o regime e que criasse condições para uma sucessão pacífica quando
mido e os caudilhos rebeldes foram postos no lugar. A repressão de greves e Don Porfirio abandonasse o poder. A rivalizar com os «científicos» havia ainda
revoltas de camponeses, bem como o controlo da imprensa, encarregavam-se da uma outra clique no círculo próximo de Díaz, composta por oficiais do Exército
oposição política. As instituições democráticas da república não tardaram a ser e por chefes regionais, que não queriam abdicar da base pessoal do poder tradi-
manipuladas por práticas típicas do caudilhismo: eleições fraudulentas baniram cional dos caudilhos. Porfirio Díaz, sendo ele próprio um caudilho, resistiu às
os opositores do congresso e em 1888 esse organismo concordou em emendar a propostas dos «científicos»; porém, na primeira década do novo século, quando
constituição de modo a permitir que Don Porfirio (que por duas vezes tentara estava à beira dos 70 anos e se avizinhavam as eleições de 1910, Díaz parecia
chegar ao poder reivindicando o princípio de não-eleição) cedesse aos desejos do estar ciente dos riscos de construir uma economia moderna sobre as fundações
povo e aceitasse a eleição para a presidência a cada seis anos. políticas da autoridade de um só homem. Quando chegaram as eleições, uma
Ainda assim, o uso da força não foi refreado: Díaz manteve-se no poder combinação de recessão económica, erros políticos e divisões entre os grupos
durante tanto tempo porque conseguiu reunir todas as principais forças do país dirigentes gerou um descontentaraento político que pôs termo ao Porfiriato.
num sistema de patronato à escala nacional. Os oficiais do Exército ficavam As profundas divisões entre as classes dirigentes do México persistiram
satisfeitos com compras de armamento, sinecuras públicas rentáveis e conces- durante a maior parte do século xix porque os termos do Plano de Iguala tinham
sões de terras. Os chefes regionais mantinham a sua influência local, mas eram alimentado, durante 50 anos, a esperança de uma monarquia - de uma solução
encorajados a ver as vantagens de se aliarem a governadores nomeados por brasileira, na verdade, para a crise de independência. Em tais circunstâncias, era
Díaz, que podiam intermediar negócios interessantes com investidores estrangei- praticamente impossível que conservadores e liberais chegassem a um consenso
ros. Os aparelhos burocráticos do Estado e das províncias geravam emprego para pragmático relativamente a uma constituição republicana, à semelhança do que
as classes médias urbanas, de entre as quais emergiu, ainda assim, uma oposição aconteceu no Chile. Mesmo depois de o Liberalismo se impor nos anos 70, o cau-
intelectual, que se manteve ativa apesar de ser importunada pelo governo. dilhismo tradicional continuou a fragmentar as classes dirigentes, e só a mão de
O Porfiriato assentava, assim, sobre a autoridade pessoal e o patronato de um ferro de Porfirio Díaz permitiu criar um período de estabilidade suficientemente
único homem; era uma forma suprema de caudilhismo, liberal e progressista, longo para que a modernização económica seguisse o seu curso. Mas Díaz não foi
sem dúvida, mas não um Estado-nação moderno. E no entanto, o desenvolvi- capaz de resolver o problema crucial da construção das nações, e o preço a pagar
mento económico estava a originar mudanças sociais complexas, às quais o surgiu na forma de uma revolução caótica, que mergulhou o país numa orgia de
regime personalista de Don Porfirio teria de se adaptar para sobreviver. O cres- violência que duraria cerca de 20 anos. A Revolução mexicana revelaria a fragi-
cimento da agricultura de exportação expulsara muitos camponeses índios das lidade intrínseca de um Estado cuja autoridade assentava no poder pessoal, e não
suas terras comuns, condenando-os à peonagem; o descontentamento fervilhava em instituições representativas que gozassem de um amplo consenso político.
em muitos pontos das regiões rurais. Uma seca ou uma recessão podiam desen-
cadear uma conflagração social mais vasta do que as rebeliões de camponeses Ao contrário do que sucedeu no México, a restauração de uma monarquia
que ocorriam de tempos a tempos. A expansão do setor mineiro e das manufatu- estava fora de questão nos restantes países da América espanhola. (À exceção,
ras criara uma classe proletária urbana substancial, que nos últimos anos do por uma única vez, do Equador, onde um indivíduo poderoso, Juan José Flores,
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Buenos Aires tentaram, por várias vezes, sujeitar o Paraguai à sua autoridade
um dos ajudantes de campo que colaborara com Bolívar, organizou uma conspi- .
pela força das armas, e sucessivos governos argentinos recusar-se-iam a reconhe-
ração de grande escala nos anos 40 do século xix, da qual fizeram parte o general
cer a independência deste território. Esta hostilidade gerou na nova nação uma
Andrés Santa Cruz, outro antigo lugar-tenente de Bolívar e primeiro presidente
mentalidade defensiva, isolacionista. Pouco depois da independência, o poder
da república da Bolívia. O seu objetivo era estabelecer monarquias no Equador,
caiu nas mãos do terrível Prof. Francia, que construiu um Estado neotradiciona-
na Bolívia e no Peru. Rores voltou a contactar os Bourbons espanhóis na década
lista idiossincrático que se manteve até três décadas após a sua morte. De um
de 60, na esperança de restaurar uma monarquia que proporcionasse estabilidade
ponto de vista liberal, Francia foi um tirano com as mãos manchadas de sangue
a um país à mercê de caudilhos belicosos.) Ainda assim, o conservadorismo das
que ficou no poder através de uma política de terror. Mas à luz das circunstâncias
elites crioulas era tão vincado que se registaram várias tentativas para enfraque-.
particulares do Paraguai, o seu sistema político não foi, de modo algum, irracio-
cer o liberalismo e estabelecer o equivalente republicano ao statu quo anterior à
nal, nem sequer completamente desumano.
queda da monarquia católica. Os conflitos entre conservadores e liberais assumi-
No período colonial, o Paraguai fora um território remoto, esparsamente
ram, então, a intensidade de guerras religiosas em repúblicas como o Peru, a
povoado por espanhóis e sem produtos de grande valor para a economia imperial
Colômbia, o Equador e a Bolívia, países com elites profundamente tradicionais
no seu todo. Os poucos, em termos relativos, conquistadores que lá se estabele-
que na prática exerciam o poder havia séculos e onde existiam também grandes
ceram casaram, em muitos casos, com mulheres das famílias índias dirigentes e
repúblicas de índios arreigadas ao catolicismo e aos seus costumes. Nestes paí-
adaptaram-se à sociedade dos nativos Guarani. O isolamento deste posto avan-
ses, abstrações liberais como a «soberania do povo» ou a «igualdade de todos os
çado do império era acentuado pela falta de outro acesso ao mar que não o longo
cidadãos perante a lei» eram difíceis de conciliar com a realidade. Era mais
curso do rio Paraná até ao Atlântico Sul. Por essa razão, o Paraguai sempre se
simples agarrar os destroços do passado ou preservar o que fosse possível da
movera ao seu próprio ritmo: estando tão distante dos centros mais importantes,
ordem antiga na construção dos novos Estados.
só muito tarde respondia aos decretos imperiais, se é que chegava a fazê-lo.
Ao longo de todo o século e mesmo mais tarde, caudilhos conservadores
A abolição da encomienda, por exemplo, em finais do século xvi, praticamente
imprimiram uma profunda ingenuidade às suas tentativas de recapturar o ethos
não produziu efeito no Paraguai, onde as tradições de serviço de mão de obra e
do ancien regime. Foi nas regiões circundantes do rio da Prata que a reação
tributo eram anteriores à chegada dos Espanhóis; a escravização de índios de
conservadora assumiu as suas formas mais originais e inventivas. Com efeito, os
tribos da selva continuou, apesar das proibições reais; as reformas dos Bourbons
tradicionalistas do interior estavam a reagir à ideologia que emanava da antiga
quase não se fizeram sentir no Paraguai, com exceção da medida que renomeava
capital do vice-reino, Buenos Aires, que fora o foco da versão mais revolucioná-
o território como uma província sob a jurisdição de Buenos Aires. E assim, com
ria do republicanismo liberal, na América Latina, no período da independência.
a sobrevivência da encomienda e da escravatura dos índios, as relações de traba-
Caudilhos como o Prof. Gaspar Rodríguez de Francia, no Paraguai, e os seus
lho continuaram a ser profundamente servis, e a economia não recebeu um estí-
sucessores, ou Juan Manuel de Rosas, da província rural de Buenos Aires, reagi-
mulo externo suficiente para ultrapassar o nível da subsistência. O objetivo do
ram contra o liberalismo, tentando erigir estruturas tradicionais sobre uma base
governo do Prof. Francia era preservar as estruturas básicas desta sociedade
republicana. Ao fazê-lo, contribuíram, à sua maneira, para a cultura política do
peculiar contra as múltiplas crises desencadeadas pela independência. Do ponto
mundo moderno, uma vez que descobriram técnicas de organização do Estado e
de vista de Francia, num país onde a esmagadora maioria da população era índia
de mobilização de massas que prenunciavam muitos aspetos do autoritarismo
e vivia sobretudo em comunidades agrárias à margem da economia do dinheiro,
populista na América Latina e não só. Este tipo de governo levou, por sua vez, à
as panaceias do liberalismo democrático seriam algo de muito destrutivo para a
reação de uma nova geração de liberais, que fariam da Argentina a mais bem-
vida tradicional dos camponeses nativos (como se verificou, aliás, por toda a
-sucedida de todas as repúblicas liberais da América espanhola.
América Latina). Seguindo a mesma lógica, Francia, decidiu erradicar as ideias
modernas e acabar com o poder da pequena oligarquia de proprietários crioulos
e comerciantes espanhóis. Quando esta elite liberal se revoltou contra ele, em
Paraguai 1820, Francia respondeu com uma campanha de terror que lhe valeu a sinistra
reputação de tirano latino-americano da pior espécie.
A história do Paraguai enquanto nação independente começou em 1814,»
O Estado de Francia, embora oficialmente secular e separado da Igreja,
quando uma junta revolucionária escapou ao controlo de Buenos Aires, à qual
inspirava-se nas formas pré-europeias de organização política e económica, bem
estivera subordinada como parte do vice-reino de Rio de Ia Plata. Os liberais de
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A D E M A N D A PELA ORDEM! CONSERVADORES E L I B E R A I S NO SÉCULO XIX

como nas missões jesuítas, que por sua vez tinham por modelo as utópiceis coló- O primeiro López deu seguimento à política de controlo do Estado, mas
nias do século xvi, criadas por monges espanhóis para índios convertidos no iniciou o desenvolvimento material ao importar tecnologia e mão de obra espe-
México. Na verdade, o Paraguai de Francia pode ser encarado como uma expe- cializada para constituir as forças armadas e modernizar infraestruturas; foram
riência excêntrica em que se pretendia criar uma versão republicana, esclarecida, construídos caminhos de ferro, estaleiros, arsenal e fábricas. Quando a navega-
da Nova Jerusalém que os missionários espanhóis tinham querido construir no ção do Paraná se tornou mais livre, após a queda do ditador argentino Rosas em
Novo Mundo. O austero e incorruptível Prof. Francia, doutorado em teologia, 1852, o comércio externo pôde expandir-se e as importações estrangeiras de
era, na realidade, um admirador de Rousseau, Robespierre e Napoleão, mas fazia algodão e madeira começaram a fazer concorrência aos produtos domésticos,
poucas concessões aos princípios da democracia liberal. perturbando a economia rudimentar.
Tendo livrado o país da sua elite europeizante, Francia instalou a máquina de A nova abertura trouxe também novos perigos ao Paraguai, da parte dos seus
um Estado paternalista, abrangente, e assumiu a sua chefia como uma espécie de vizinhos - o Brasil ainda tinha ambições territoriais na região, e a partir de 1862,
rei-filósofo laico para os Guarani iguais entre si. O seu princípio orientador era quando os liberais já tinham consolidado o seu poder ern Buenos Aires, a nova
o de que o Estado devia ordenar e controlar as vidas das pessoas. Grande pane república da Argentina também se voltaria contra a «tirania» paraguaia. Ao assu-
da terra já estava nas mãos do Estado, tendo anteriormente pertencido à Coroa mir a presidência em 1862, o López mais jovem investiu na defesa do país: o
ou à Igreja; a este património foram acrescentadas as propriedades confiscadas à Exército foi equipado e reforçado, tornando-se o mais poderoso na América do
elite banida. A terra pública ou era arrendada a pequenos agricultores ou conver- Sul. A superioridade militar tentou López a desempenhar um papel mais agres-
tida em quintas do Estado, para ser trabalhada coletivamente por camponeses e, sivo na complexa geopolítica da região do rio da Prata. Procurou apoiar ativa-
em alguns casos, por escravos supervisionados por funcionários públicos. Parte mente o governo do Partido Blanco tradicionalista no Uruguai, um Estado divi-
da produção destas quintas estatais destinava-se à exportação, mas a maior parte sório instável e importunado pela Argentina e pelo Brasil.
era utilizada no consumo interno, ou para alimentar o Exército ou para armaze- Em 1864, as manobras políticas de López envolveram o Paraguai numa
nar comida para dar aos pobres em tempos difíceis. Os agricultores privados guerra contra o Brasil, a Argentina e o Partido Colorado, liberal, do Uruguai.
tinham de cumprir quotas estipuladas pelo Estado em troca de bens importados. Esta Guerra da Tripla Aliança foi tanto uma guerra ideológica como uma luta por
Os principais produtos desta economia simples eram yerba mate, madeira, poder; um conflito entre modernidade e tradição, entre «civilização» e «barbá-
tabaco, açúcar e peles. O comércio de exportação era rigorosamente controlado rie», segundo a propaganda da Argentina e do Brasil. Quando a guerra terminou,
através de dois pontos de saída autorizados, prática que lembrava o monopólio em 1870, depois de López ter sido morto em batalha, o Paraguai estava pratica-
de comércio colonial. O dinheiro e as forças de mercado pouco intervinham na mente destruído como nação: a população fora reduzida a metade pela guerra e
economia; o objetivo era, antes, a autonomia, dada a permanente ameaça política pela doença, restando sobretudo mulheres, crianças e idosos; Argentina e Brasil
de Buenos Aires e os obstáculos colocados ao comércio paraguaio pelos caudi- anexaram grandes extensões de território, pois tinham protocolos secretos com
Ihos das províncias ribeirinhas do Paraná. esse fim em vista, no tratado de aliança.
Apesar de o regime de Francia ser residualmente republicano, e de o seu O Estado neotradicionalista fundado pelo Prof. Francia caiu e nunca foi res-
poder advir, em teoria, da vontade do povo, o Estado altamente personalista que taurado. Ao regressarem do exílio, os liberais paraguaios tentaram implementar
Francia criou sobreviveu à sua morte, e o seu sucessor, Carlos António López, os programas políticos dos seus mentores de Buenos Aires, mas a república
um advogado mestiço, governaria do mesmo modo ainda durante 22 anos. Foi arcaica, mutilada, do Paraguai afundou-se num pântano de ditaduras e de um
López que deu o passo lógico seguinte para garantir a estabilidade do Estado ao caudilhismo interminável, condenada a ser um peão económico da Argentina e
iniciar uma dinastia familiar: o seu filho, Francisco Solano López, sucedeu-lhe do Brasil. A guerra destruiu o Paraguai, e a guerra voltaria a destruí-lo nos anos
em 1862, e governou até 1870. O poder absoluto estabelecido pelo Prof. Francia 30 do século xx, quando o país combateu a vizinha Bolívia até ficar num estado
assegurou no Paraguai uma estabilidade como não existiu nem em repúblicas de paralisação, perdendo mais de 50 000 vidas numa competição totalmente
constitucionais bem-sucedidas como a do Chile ou da Costa Rica. Apesar da sua infrutífera por campos de petróleo que, devido a um erro de cartografia, se jul-
fundação secular, republicana, o Paraguai esteve muito perto de conseguir a gava existirem nas terras ermas do Chaco.
continuidade dinástica de uma monarquia. E todavia, em última análise, havia0
uma contradição subjacente entre o absolutismo personalista e o republicanismo
- o Paraguai não poderia ficar isolado para sempre do mundo moderno.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
A D E M A N D A PELA O R D E M ! CONSERVADORES E LIBERAIS NO SÉCULO XIX

Argentina regada de organizar um movimento de massas a favor da sua «restauração» ao


poder; o movimento ficou conhecido como La Mazorca, porque o seu símbolo
Os primeiros anos de independência trouxeram lutas caóticas entre liberais e ' era uma espiga de trigo, que pretendia representar a unidade do povo, do mesmo
conservadores ao antigo vice-reino de Rio de Ia Plata; os centralistas unitários modo que os fasces romanos ou o jugo e as flechas foram adotados em Itália e
da cidade portuária de Buenos Aires entraram em conflito com caudilnos regio- em Espanha, respetivamente, um século mais tarde. Criou-se um culto de perso-
nais que tencionavam estabelecer os seus próprios feudos, com a sua cavalaria nalidade para identificar a causa do federalismo com a pessoa do seu líder - o
gaúcha privada, cujos elementos eram conhecidos como montoneros. O repre- vermelho, a cor do Partido Federal, tornou-se o símbolo da lealdade a Rosas.
sentante da posição liberal era o intelectual Bernardino Rivadavia, que integrou Foram encorajadas as denúncias rituais dos unitários: nas escolas, nas igrejas e
governos dos anos 20 do século xrx, tornando-se presidente das Províncias Uni- nos salões, ressoava o lema «Viva a Federação! Morte aos unitários imundos e
das em 1826, até ser derrubado por interesses conservadores no ano seguinte. selvagens!». A linguagem da religião infiltrou-se no culto de Rosas; durante a
Rivadavia acreditava num Estado liberal unitário que devia modernizar-se sua ausência, o Partido Federal dividiu-se entre os apoiantes de Rosas, autointi-
rapidamente encorajando o investimento externo, a imigração europeia e o tulados «apostólicos», e os moderados, que foram pejorativamente rotulados de
comércio livre. Mas os liberais da cidade de Buenos Aires não detinham grande «cismáticos». O clero pregava a lealdade a Rosas, permitindo que o seu retrato
poder económico; esse poder estava nas mãos dos grandes rancheiros, que diri- estivesse exposto nas igrejas. Quando Rosas finalmente regressou a Buenos
giam uma economia de exportação primitiva, assente nas peles e na carne de Aires, em 1835, os cidadãos, gratos, depositaram-lhe nas mãos plenos poderes
vaca salgada. Estes estancieros eram tradicionalistas e xenófobos: desagradava- para governar a província, e ele assim fez durante mais 17 anos. Expulsou a opo-
-Ihes o anticlericalismo dos unitários liberais e eram firmes defensores da Igreja; sição liberal para o exílio e a sua Mazorca tornou-se um órgão de terror estatal,
os estancieros das províncias a montante, Santa Fé, Entre Rios e Comentes, servindo-se de espiões e esquadrões de morte para manter o ditador no poder.
estavam descontentes com o controlo exclusivo das receitas aduaneiras prove- Contudo, por detrás do aparato populista do seu regime, Rosas tinha pouco
nientes do comércio com o estrangeiro, e queriam direitos de comércio para os para oferecer aos grupos desfavorecidos que recrutara para o seu movimento.
seus próprios portos fluviais; do ponto de vista constitucional, apoiavam a ideia Os gaúchos e os negros, dos quais tanto precisava para as suas campanhas mili-
de uma federação flexível de províncias que lhes permitisse ter o poder nas suas tares e para os seus comícios públicos, não passavam de servos pobres dos
regiões. Como se pode imaginar, as províncias argentinas eram um terreno fértil estancieros ou de trabalhadores mal pagos nas cidades. No tempo de Rosas, o
para os caudilhos, de entre os quais rapidamente de distinguiu Juan Manuel de
comércio de escravos reanimou-se, em parte devido à escassez de mão de obra
Rosas, dono de grandes propriedades na província - distinta da cidade - de Bue- na fronteira que se expandia. Na verdade, Rosas representava os interesses dos
nos Aires. grandes proprietários e o seu objetivo era explorar as pampas para uma economia
Eleito governador da província de Buenos Aires dois anos depois de Rivada- de exportação assente na criação de gado. De um sistema destes só beneficiava
via ter deixado o poder, Rosas foi investido de plenos poderes como ditador pelo
uma elite pouco numerosa, a qual detinha ainda o controlo sobre a lucrativa
Partido Federal e empenhou-se em restaurar a ordem à sua maneira. Na perspe- alfândega do porto de Buenos Aires.
tiva dos seus inimigos liberais, Rosas dirigia a província como uma grande A grande ironia desse período, como observou o liberal Domingo Sarmiento,
estancia, onde ele era o chefe e os cidadãos pouco mais eram do que servos. residiu no facto de Rosas, apesar de ser um federalista, ter contribuído mais
Consolidou o seu poder à maneira tradicional dos reis conquistadores - através
do que qualquer outra pessoa para garantir o domínio económico e político de
de concessões de terra aos seus clientes. Tais concessões foram possíveis graças Buenos Aires sobre as restantes províncias, preparando dessa forma, inadverti-
à Campanha do Deserto de 1833, que retirou enormes extensões aos índios damente, o terreno para a futura unificação da Argentina. Ainda assim, Rosas
nómadas das pampas a sudoeste de Buenos Aires. Opondo-se com veemência ao
pouco fez para que as Províncias Unidas se tornassem um Estado enquanto tal.
liberalismo e a todas as suas obras, Rosas manipulava a lei a seu bel-prazer e Foi o mais influente dos caudilhos, mas preferiu um sistema de pactos com che-
intitulava-se campeão das classes mais desfavorecidas contra os liberais sofisti-
fes como Estanislao López, de Santa Fé, ou como Facundo Quiroga, de La Rioja,
cados da cidade de Buenos Aires. a quaisquer arranjos constitucionais formais.
Rosas era um déspota inventivo que sabia qual o valor da mística e da propa^
Porém, para todos os efeitos, Rosas agiu a favor das Províncias Unidas
ganda. Quando o seu mandato de governador expirou em 1833, partiu de Buenos
contra inimigos estrangeiros: combateu a Bolívia para a impedir de se fundir
Aires para uma campanha militar contra os índios, deixando a sua mulher encar-
com o Peru; interveio sistematicamente na política dos caudilhos do Uruguai,
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frustrando os seus propósitos independentistas; recorrendo a um bloqueio, pro- Deserto, que provocou o extermínio ou a subjugação substancia] das tribos
curou forçar o Paraguai a juntar-se às Províncias Unidas. Estas ações levaram-no índias nómadas das pampas, libertando muitos hectares para povoamento e
a entrar em conflito com o Brasil, e também com a França e a Grã-Bretanha, uma cultivo.
vez que todas estas nações tinham interesse em abrir o rio da Prata e os seus A partir de 1880, o ano em que Buenos Aires foi constitucionalmente reco-
afluentes ao comércio internacional. Mas Rosas envolveu-se em demasiadas nhecida como a capital federal da nação, a Argentina apresentou uma impressio-
guerras contra demasiados inimigos internos e externos, e a própria turbulência nante taxa de crescimento - com uma média anual de pelo menos 5% até 1914 -,
do regime contribuiu para a sua ruína. A partir dos anos 40, a economia das tornando-se uma das nações mais ricas do mundo. As aquisições territoriais dos
pampas de Buenos Aires, baseada na exportação de peles e carne de vaca curada, anos 70 estimularam a economia, que assentava na criação de gado bovino e
estava a ser suplantada pela criação de gado ovino para produzir lã, em resposta ovino e, cada vez mais, no cultivo de cereais. Como sempre, havia na Argentina
à procura da indústria têxtil na Europa; os estancieros, o principal eleitorado de uma grande necessidade de mão de obra, necessidade que agora se tomava ainda
Rosas, precisavam de estabilidade para o investimento e a restruturação, e o mais premente - mão de obra para trabalhar a terra, erguer vedações e converter
ditador beligerante foi deixando de ser útil a este grupo. Por fim, os inimigos de as pampas áridas em campos de trigo, e também para construir a via férrea que
Rosas uniram-se para o derrotar. Com o apoio do Brasil, do Uruguai e dos uni- ligaria as províncias e uniria regiões muito diversas numa nação moderna, inte-
tários liberais exilados, o caudilho da província ribeirinha de Entre Rios, Justo grada. Encorajou-se, então, a imigração europeia, e começaram a chegar àquele
José de Urquiza, marchou contra Rosas e venceu-o na batalha de Monte Caseros, país vasto e deserto vagas de trabalhadores - sobretudo de Itália e de Espanha.
em fevereiro de 1852. Rosas fugiu da Argentina e terminou os seus dias em Em 1870, a população não chegava aos 2 milhões de habitantes; nos 50 anos
Inglaterra. seguintes, iriam estabelecer-se na Argentina cerca de 3,5 milhões de imigrantes.
A queda de Rosas não pôs fim aos conflitos entre províncias, que se suce- O capital e os recursos técnicos necessários para uma transformação econó-
diam desde a independência. Mas Urquiza estava mais preocupado do que Rosas mica desta envergadura estavam para além das possibilidade de um país que fora
em criar uma estrutura nacional coerente para as Províncias Unidas, e na consti- continuamente esgotado por conflitos militares e cuja economia se centrava
tuição de 1853 garantiu o estabelecimento de uma república federal, sob um numa rudimentar criação de gado. Os meios necessários foram, em larga medida,
regime presidencialista forte. Mas os unitários de Buenos Aires recusaram-se a providenciados pelos Britânicos, que se tornaram os principais clientes do trigo
aceitar o federalismo até serem obrigados a tal por Urquiza, que derrotou as suas e da carne argentinos; a carne podia agora ser exportada para a Europa, graças a
forças em 1859. Passados dois anos, a província de Buenos Aires voltou a navios a vapor mais rápidos e à introdução dos frigoríficos. Emergiu um padrão
revoltar-se contra a federação, e desta vez o seu líder, Bartolomé Mitre, conse- bilateral de comércio: a Argentina importava bens manufaturados da Grã-Breta-
guiu impor a sua vontade aosfederales. De 1862 em diante, Buenos Aires foi nha, em troca das suas exportações de géneros alimentícios para o operariado
aceite como capital de uma república argentina unida sob a presidência do liberal industrial britânico. No entanto, os negócios britânicos também assumiram uma
Mitre. Alguns caudilhos das províncias interiores resistiram à nova ordem unitá- posição de comando na estrutura interna da economia argentina: as empresas
ria, mas as rebeliões foram contidas por Mitre e pelo seu sucessor, Domingo britânicas eram donas dos caminhos de ferro, do telégrafo, das novas fábricas de
Sarmiento. processamento de carne e de muitos dos bancos e das casas de comércio que
Liderada por Buenos Aires, a nova Argentina encetou o caminho para a esta- operavam em Buenos Aires; isto tomou a Argentina vulnerável a pressões eco-
bilidade e para a modernização. Ao longo dos anos 60 e 70, os presidentes libe- nómicas externas, embora nenhuma força política do país tenha, na altura, enca-
rais Mitre, Sarmiento e Nicolás Avellaneda criaram as instituições de um Estado- rado a situação como um problema. Formou-se uma importante comunidade
-nação centralizado: um Exército profissional, um sistema judicial integrado, um anglo-argentina, cujas classes altas ditaram o padrão social para a nova elite
banco nacional, um sistema de ensino público, bibliotecas públicas, uma acade- plutocrática de estancieros.
mia das ciências e outras instituições técnicas. Os caminhos de ferro e as comu- Havia outros desequilíbrios estruturais. A abertura dos novos territórios, na
nicações telegráficas começaram a ligar as províncias conservadoras, até então sequência da «Conquista do Deserto», não propiciou o desenvolvimento de
turbulentas, a Buenos Aires e, através desta, ao mundo exterior. A década de 70 uma classe média rural de agricultores de média dimensão, como acontecera no
foi também a altura para expandir fronteiras e absorver novos territórios. A vitó- Midwest dos EUA e corno os reformadores sociais argentinos haviam defendido.
ria na Guerra do Paraguai (1865-70) permitiu anexar território no Norte e no O volume de terra era simplesmente excessivo para o número de compradores
Noroeste. Depois, no Sul, o general Júlio Roca conduziu outra Campanha do disponíveis; o excesso de oferta manteve os preços baixos até ao final do século

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e esta terra nova e barata foi arrecadada por proprietários de terras e pôr comer- formaram a Union Cívica e pegaram nas armas em julho, derrubando o presi-
ciantes, que assim puderam expandir os seus terrenos. Já os imigrantes europeus dente Miguel Juárez Celman. Mas Carlos Pellegrini, o novo presidente, conse-
pobres não podiam, de início, comprar extensões consideráveis; começavam por guiu dividir a Union Cívica incluindo alguns dos seus dirigentes na distribuição
arrendar terra, pagando-a, muitas vezes, com parte da sua produção, na espe- do saque público. Os caudilhos políticos que continuaram de fora fundaram,
rança de virem mais tarde a comprar os seus próprios lotes e a alargar as suas então, aquilo que viria a ser o Partido Radical, que incluía novos grupos de inte-
propriedades, como muitos conseguiram fazer. Porém, dada a grande procura resse como as classes médias urbanas. Os Radicais, liderados por Leandro Alem
mundial dos géneros alimentícios argentinos, a exportação encorajou a concen- e pelos seus sobrinhos, Hipólito e Bernardo Yrigoyen, organizaram uma série de
tração sistemática de recursos, de tal modo que o padrão de distribuição da nova revoltas armadas com vista a abrir o sistema eleitoral, mas não tiveram êxito
terra acabou por se assemelhar ao dos clássicos latifúndios, as enormes proprie- (Alem suicidou-se em 1896). Por fim, em 1912, o direito de voto foi alargado e
dades características dos regimes senhoriais hispânicos, estabelecidos na Amé- o Partido Radical conseguiu pelo menos entrar no jogo da democracia oligár-
quica.
rica desde o século xvi.
Os imigrantes preenchiam vagas na indústria e nas obras públicas, e traba- No final do século, a Argentina tinha alcançado um nível elevado de integra-
lhavam sazonalmente como assalariados nas zonas rurais, regressando às cidades ção nacional; a sua economia crescera a ponto de rivalizar com as dos países
para lá passar o resto do ano. As remunerações no campo eram geralmente boas europeus avançados; a política, em tempos tão anárquica, parecia, de um modo
- suficientemente boas para atraírem golondrinas, as «andorinhas», que vinham geral, ter cedido às normas constitucionais. Os liberais argentinos tinham, em
de Itália e de Espanha para as colheitas e que depois regressavam aos seus países. suma, derrotado as forças do tradicionalismo hispânico. Para empregar os termos
Mas a maioria dos imigrantes ficou e estabeleceu-se nas cidades, especialmente do liberal Domingo Sarmiento, uma das figuras que mais contribuíram para a
em Buenos Aires, onde sofreu as vicissitudes da inflação e da recessão. Perto do edificação do Estado, foi um triunfo da «civilização» europeia moderna sobre a
final do século, o mercado ficou saturado de mão de obra e os salários começa- «barbárie» da política caudilhista representada por Rosas. E no entanto, quão
ram a baixar, exacerbando as tensões sociais. A transformação da Argentina no sólido era o consenso político que sustentava a prosperidade? Ter-se-ia a Argen-
último quarto do século deu origem a uma estrutura económica estranhamente tina efetivamente transformado num Estado-nação moderno? As classes urbanas
oblíqua: a economia rural estava nas mãos de uma elite crioula de estancieros tinham ainda de ser plenamente incorporadas no sistema político. A economia
relativamente pequena, as cidades eram habitadas por um proletariado cada vez estava exposta às flutuações dos mercados mundiais e, em tempo de crise, iriam
mais numeroso, em grande parte vindo do estrangeiro, enquanto a economia de os interesses britânicos dar a devida atenção às necessidades argentinas? Eram
'exportação, em crescimento acelerado, era dominada por interesses comerciais e questões ainda sem resposta, mas que nas décadas de 20 e 30 do século xx esta-
riam no centro da vida pública argentina.
financeiros britânicos.
A riqueza e o poder dos estancieros de Buenos Aires permitiu que um país
que durante tanto tempo fora atormentado pelo facionalismo dos caudilhos
adquirisse um sistema constitucional ao estilo chileno, assente no Estado de
direito, na realização de eleições e no respeito pelas liberdades clássicas propos- O Triunfo do Liberalismo
tas pelo liberalismo. Mas os liberais da «Geração de 1880» tinham um tal receio
de que o país voltasse a cair no caos que, na prática, exerciam um monopólio de As guerras da independência tinham sido o resultado de uma complexa crise
partido único, manipulando as eleições de modo a excluir a oposição. Júlio Roca, constitucional causada pela invasão napoleónica da península Ibérica em 1808.
o homem que concluíra a Conquista do Deserto, formou o PAN (Partido Auto- Mas na medida em que as elites crioulas tinham objetivos coerentes ao procurar
nomista Nacional), que monopolizou o poder durante as três décadas seguintes a independência, os seus propósitos eram essencialmente dois: tornarem-se uma
após a eleição de Roca para presidente, em 1880. O caudilhismo não desapare- classe dirigente legítima e obter acesso direto ao comércio internacional. Foram
cera por completo; fora, antes, domesticado por um sistema político em que os precisos 50 ou 60 anos para que estes objetivos se concretizassem, e isso só
dirigentes partidários protegiam os interesses de clientelas regionais em troca aconteceu em alguns países. Em muitas repúblicas, a nostalgia pela monarquia
católica era ainda muito forte, e as elites crioulas não se entendiam quanto à
dos seus votos. *
A oposição também queria uma oportunidade para oferecer o patronato do natureza dos Estados que queriam construir. O liberalismo era a ideologia oficial
governo aos seus próprios clientes. Então, em 1890, os políticos excluídos da maioria das repúblicas, mas tinha raízes pouco profundas, tratando-se de

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sociedades imbuídas dos valores da cultura tradicional ibérica e da cultura índia: O traço dominante de uma economia de exportação é os principais recursos
autoridade pessoal, patronato e clientelismo eram os meios através dos quais o produtivos de um país serem utilizados para fornecer mercados externos. Porque
poder era conquistado e distribuído - as formas exteriores da cultura política o leque de exportações é muito limitado, e geralmente se resume a bens primá-
tinham mudado, mas a substância era a mesma e até ganhara força em virtude do rios e matérias-primas, as economias deste tipo são extremamente vulneráveis a
colapso da lei e da ordem. Por fim, um estado de guerra crónico provocou a ruína mudanças dos preços à escala global, e seguem ciclos de expansão e recessão
financeira, que por sua vez atrasou a estabilidade política dos novos Estados. imprevisíveis. Outras características das economias de exportação latino-ameri-
Que permitira, então, que algumas das nações independentes saíssem do pântano canas levaram alguns historiadores a classificá-las de «neocoloniais». São países
em que haviam sido deixadas pela crise das monarquias católicas de Espanha e que dependem em larga medida de uma grande variedade de importações, espe-
de Portugal, e que progredissem economicamente? cialmente de bens manufaturados. Quando os preços de exportação estão baixos,
Como demonstram os exemplos do Brasil, do Chile, da Costa Rica e da as importações necessárias só podem ser compradas contraindo emprésti-
Argentina, foi o consenso relativamente a princípios constitucionais básicos que mos estrangeiros ou cunhando moeda; assim, as economias tendem para o endi-
consolidou a autoridade do Estado e que facilitou o rápido progresso económico. vidamento externo e para uma inflação elevada. Além disso, são geralmente
A maioria das repúblicas não obteve semelhante consenso, mas na segunda empresários estrangeiros que detêm e controlam os recursos básicos para a
metade do século xix o liberalismo ganhou terreno, quando uma geração mais exportação; em alguns países, este tipo de economia foi descrita como uma espé-
jovem de crioulos atacou os regimes conservadores com nova determinação, e cie de «enclave» dirigido por estrangeiros. Durante a maior parte do século xix,
quando um conjunto de medidas para liquidar diretamente terras da Igreja bene- os Britânicos substituíram as casas comerciais espanholas e portuguesas como
ficiou muitos crioulos, levando-os a empenhar-se no sucesso do liberalismo. intermediários nas transações do comércio internacional. Na viragem de século,
Estes desenvolvimentos internos foram ainda acelerados, a partir da década de comerciantes norte-americanos tinham começado a tomar o lugar dos Britânicos
60, pela procura cada vez maior de minérios e alimentos na Europa, produtos que em algumas regiões, sobretudo no México e na América Central.
os países da América Latina estavam em condições de fornecer. Os efeitos das economias de exportação latino-americanas foram objeto de
A consolidação política foi, assim, encorajada pela perspetiva de progresso controvérsia durante várias décadas, a partir dos anos 50 do século xx. Segundo
económico através do comércio internacional. Como os países latino-americanos alguns observadores, as economias de exportação dependiam excessivamente
foram atraídos para a economia mundial pela crescente procura dos seus bens, as dos países mais desenvolvidos da Europa e da América cio Norte. Essa depen-
normas básicas do Estado liberal obtiveram, em teoria, a aceitação generalizada dência condenava a América Latina a um «atraso» ou «subdesenvolvimento»
das elites crioulas. Todavia, na maioria dos países, o regionalismo e o facciona- económico, porque eram estrangeiros que controlavam as principais alavancas
lismo caudilhista revelaram-se extraordinariamente difíceis de ultrapassar; rara- económicas, impedindo dessa forma os governos nacionais de implementar polí-
mente se conseguia estabilidade, a não ser em períodos de ditadura. Em algumas ticas que trariam benefícios à nação como um todo. Os países latino-americanos
repúblicas, os conflitos entre liberais e caudilhos conservadores continuariam não conseguiam iniciar o processo de industrialização porque interesses estran-
ainda durante várias décadas no século seguinte - na Colômbia, por exemplo, geiros lhes retiravam o potencial capital de investimento ao transferirem os
guerras civis deste tipo desenrolavam-se ainda nos anos 60 do século xx. lucros para a Europa. As profundas desigualdades na sociedade e os desequilí-
A segunda metade do século xix assistiu à formação das economias moder- brios regionais que acompanharam o desenvolvimento da América Latina foram
nas de exportação na América Latina. Na realidade, isto foi apenas o retomar da causadas pelo facto de o setor moderno da economia explorar os recursos do
estrutura de comércio internacional estabelecida por Espanhóis e Portugueses setor rural tradicional, ao mesmo tempo que o impedia de se desenvolver.
após a Conquista, e que se interrompera durante o meio século de desordem polí- Estas perspetivas têm, contudo, sido contestadas e, provavelmente, a maioria
tica que se seguiu à independência. Mas havia dois elementos novos: primeiro, dos historiadores económicos não as subscreveria. Isto porque é irrealista pensar
o comércio já não tinha de passar por um intermediário colonial como Espanha que a América Latina poderia ter seguido um caminho diferente para a moderni-
ou Portugal; e segundo, muitas características do comércio tinham mudado - os zação económica. Nenhuma das repúblicas possuía capital, sistema de ensino ou
metais preciosos e o açúcar haviam dado lugar a outros minérios e bens de con- estrutura social que lhe permitissem competir com a indústria britânica, alemã
sumo como principais exportações, e regiões outrora marginais como o Chile, o» ou francesa. E a América Latina não poderia ter desenvolvido os seus recursos
países do rio da Prata, o Norte do México, a Venezuela e a região de São Paulo, naturais sem apoio externo, pois precisava de criar as infraestruturas de cami-
no Brasil, tinham-se tornado as regiões de exportação mais dinâmicas. nhos de ferro, estradas e docas, e de adquirir os conhecimentos técnicos neces-

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sários à exploração mineira e ao processamento alimentar. Os indícios não e prédios de apartamentos para as prósperas classes média e alta. Os jornais
sugerem que tenham sido os capitalistas estrangeiros a impor a estrutura de noticiavam as últimas invenções científicas ou as modas de Paris, Londres e
exportação a uma América Latina relutante; a orientação externa da economia Nova Iorque. Os muito ricos podiam sonhar ser recebidos pela alta sociedade
era, de um modo geral, vista como sendo benéfica - na Argentina, por exemplo, europeia - Paris conheceu a figura de rastaqouère, o plutocrata latino-americano
mesmo os partidos que não representavam as elites, como o Partido Radical e o que esbanjava dinheiro nos luxos da Europa. Quanto aos menos ricos, importa-
Partido Socialista, davam como aceite o facto de a economia de exportação ser vam a belle époque - convidando companhias de teatro, cantores, músicos e
altamente desejável. prostitutas francesas para apimentar e dar estilo às suas cidades espantosamente
Hoje, é também possível verificar que em finais do século xix ocorreu transformadas.
«espontaneamente» no setor privado um considerável desenvolvimento indus- Nas últimas duas décadas do século xix, as classes instruídas estavam a
trial, o que resultou diretamente da nova prosperidade gerada pelo crescimento absorver uma cultura verdadeiramente secular e materialista; por outras palavras,
das exportações. Por outro lado, tudo leva a crer que o desenvolvimento indus- o liberalismo já não era apenas um conjunto de palavras de ordem para derrubar
trial era estimulado de forma positiva pelas ligações à economia internacional, os conservadores. A influência intelectual dominante era o positivismo, segundo
visto que os ganhos flutuantes das exportações aumentavam os rendimentos, o qual só as proposições cientificamente demonstráveis podiam ser aceites como
fazendo crescer a procura de produtos manufaturados nacionais e providen- verdadeiras. Mas, na América Latina, o positivismo foi mais do que uma dou-
ciando o capital para importar maquinaria essencial para a indústria doméstica. trina; refletia a determinação das elites liberais governantes de perseguir o pro-
(Segundo alguns defensores da teoria da dependência, as ligações externas terão gresso independentemente de obstáculos como religião, superstições e outras
atrasado o desenvolvimento industrial, e só a interrupção dessas ligações - em manifestações culturais «primitivas». Os positivistas defendiam uma forma de
tempos de guerra ou de recessão global - terá permitido que a indústria latino- tecnocracia: era necessário um governo forte, uma ditadura até, para conter as
-americana crescesse, dando-lhe a oportunidade de abastecer o mercado interno forças de regressão enquanto as condições materiais eram transformadas para
sem a concorrência injusta de rivais estrangeiros mais fortes.) Também não é abrir caminho para uma democracia liberal genuína; o lema destes edificadores
certo que tenha havido uma perda de riqueza líquida na região em consequência de nações era «ordem e progresso». No México, os positivistas eram conhecidos
da deterioração dos termos de comércio. Os desequilíbrios gerados pelas econo- como científicos e exerceram uma influência cada vez mais evidente nos altos
mias de exportação, a sua vulnerabilidade a pressões externas e o facto de serem quadros da ditadura de Porfirio Díaz; na Argentina, o receio de que o país vol-
dominadas por interesses estrangeiros foram os resultados inevitáveis de mudan- tasse a cair na desordem do caudilhismo serviu de pretexto à «Geração de 1880»
ças socioeconómicas rápidas e profundas, e foram compensados pelo extraordi- para a fraude eleitoral; os positivistas do Brasil contribuíram para a justificação
nário progresso material alcançado na América Latina a partir dos anos 70 do intelectual para o derrube da monarquia, condenando-a como instituição ultra-
século xix. passada que asfixiava o desenvolvimento.
Esses grandes avanços materiais e técnicos foram, na época, encarados como O positivismo latino-americano também absorveu as ideias do darwinismo
triunfos da civilização liberal moderna e como indicadores da tão desejada euro- social, que apresentava uma hierarquia racial em que a raça branca era conside-
peização da América Latina. A expansão dos caminhos de ferro, a construção de rada superior às restantes. Na América Latina, tais doutrinas relegaram a maioria
grandes pontes de aço, os navios a vapor que ligavam regiões até então isoladas da população para um estatuto de inferioridade e foram, em parte, responsáveis
ou que permitiam as viagens para o estrangeiro, a mecanização de tantas ativida- pelo encorajamento à imigração europeia, em muitos países, para clarear a popu-
des quotidianas, a chegada da iluminação a gás às cidades - todas estas maravi- lação e aumentar as hipóteses de progresso. O positivismo científico providen-
lhas foram recebidas com o mesmo entusiasmo e o mesmo orgulho a que se ciou, desta forma, uma justificação moderna para o grande objetivo histórico das
assistiu na Europa ou na América do Norte. elites crioulas brancas - o direito a tornarem-se uma genuína classe dirigente.
Foram tempos de otimismo, marcados pela crença no progresso e nos bene- No final do século, o liberalismo latino-americano tornara-se complacente e
fícios infinitos da ciência. Nas várias cidades capitais foram fundados academias voltara-se para os seus próprios interesses. Embora consciente da fragilidade do
de arte e literatura, óperas, institutos científicos, jardins zoológicos e botânicos. estado da nação, contribuiu para a sua fraqueza intrínseca ao aceitar as divisões
A aparência dessas cidades alterou-se: Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo» raciais como insuperáveis e ao não conseguir gerar um sentido nacional verdadei-
Lima, Cidade do México, Caracas - todas estas cidades ganharam as suas aveni- ramente inclusivo. Por outro lado, ao justificar a preponderância das minorias
das e os seus bulevares parisienses inspirados por Haussmann, villasfin de siècle brancas sobre outras classes e raças, encobriu falhas graves dessas mesmas elites.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

A verdade é que a mentalidade senhorial tradicional das elites crioulas não


desapareceu com as economias de exportação. Isto porque os magnatas crioulos
não foram obrigados a assumir o papel de capitalistas e a correr riscos; puderam
dar-se ao luxo de manter uma visão económica de mercantilistas ou de quem
vivia dos rendimentos, porque se limitavam a explorar bens em que possuíam
um quase monopólio nos mercados mundiais, bens que podiam ser produzidos
com relativa facilidade em virtude da abundância de terra, minerais e mão de
obra escrava. E assim, apesar dos enormes progressos materiais do último
quartel do século xix, o capitalismo latino-americano continuou essencialmente
frágil: «A necessidade iminente de revolucionar continuamente as forças de pro-
dução, que era talvez a principal força motriz do capitalismo metropolitano,
tendia, por isso, a ser bastante deficiente na América Latina» (*). Não seria,
então, de espantar, que as estruturas comparativamente inertes da economia e da CAPÍTULO 8
sociedade da América Latina fossem incapazes de resistir à pressão quando, nas
primeiras décadas do século xx, novas forças sociais articularam exigências «Civilização e Barbárie»:
políticas e os mercados mundiais foram perturbados por crises económicas.
Desenvolvimentos Literários e Culturais I

A agitação que tomou conta das sociedades hispano-americanos, muito


depois de as guerras da independência terem terminado, deixaria a sua marca na
cultura das novas repúblicas. Havia, entre os crioulos cultos, a perceção de que
a anarquia ameaçava tornar-se endémica e frustrar a criação das nações livres e
prósperas ambicionadas pelos Libertadores. Foi o receio dessa «barbárie», desse
aterrador colapso da ordem social e política, que inspirou muita da literatura que
seria produzida no século xix e mesmo mais tarde.
Era evidente que esse barbarismo teria de ser contido pela «civilização», mas
a pergunta que se impunha era: que forma de civilização seria mais indicada para
tal objetivo? Os tradicionalistas inclinavam-se para a herança católica da Espa-
nha, devidamente modificada para levar em conta o advento da independência.
Os liberais pendiam para os valores modernos do Iluminismo - o primado da
razão, da soberania dos povos e da igualdade perante a lei. A inexistência de um
consenso entre os líderes ideológicos das novas nações era, em si mesma, um
fator determinante para a perpetuação da «barbárie». Na realidade, nenhum dos
campos oferecia uma posição convincente. A receita política dos tradicionalistas
era minada pela ausência de uma monarquia, ingrediente indispensável. Os libe-
rais, por outro lado, podiam ter vencido a disputa constitucional a favor de uma
república, mas enquanto não conseguissem mudar os costumes do povo continu-
ariam a ser uma minoria urbana em sociedades esmagadoramente rurais e domi-
(") Bill Albert, South America and the World Econorny from Independence to 1930,
Studies in Economic and Social History (Macmillan: Londres, 1983), p. 40.
nadas pela tradição.

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H I S T Ó R I A D A A M É R I C A LATINA «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : D E S E N V O L V I M E N T O S LITERÁRIOS E CULTURAIS I

Assim, tanto conservadores como liberais sentiam a dificuldade de definir O Neoclassicismo e a Revolta Romântica
uma identidade cultural para as novas nações. Se exaltavam as virtudes da tradi-
ção hispânica, como podiam os conservadores justificar a rutura com a Espanha? Em finais do século xvm, a França praticamente substituíra a Espanha como
Os liberais, pelo contrário, gostavam de afirmar uma identidade americana dis- a estrela polar da América Latina, e os estilos e gostos neoclássicos de inspiração
tinta, por oposição a Espanha, mas as suas ideias eram claramente herdadas do francesa tinham tomado o lugar das tradições barrocas ibéricas, que se impu-
Huminismo europeu e estavam muito distantes da gente comum de todos os gru- nham desde o início do século xvn. Impulsionado pelo triunfo político do repu-
pos étnicos; este facto tornava os liberais vulneráveis à acusação de serem agentes blicanismo Liberal, o neoclassicismo dominou as artes durante o período das
de influências estrangeiras que iam contra o verdadeiro espírito do povo. Pode, guerras de independência e até aos anos 40 do século xix. Com efeito, os homens
então, dizer-se que os dois grandes temas da literatura latino-americana moderna que primeiro agarraram a oportunidade, criada pela crise napoleónica de 1808,
tiveram a sua origem na experiência da independência: em primeiro lugar, a aspi- de romper com a monarquia espanhola eram motivados por atitudes seculares,
ração a encontrar uma ordem social justa, fosse de acordo com princípios conser-. radicais, inspiradas pelas revoluções francesa e americana: António Narino,
vadores ou com princípios liberais; em segundo lugar, a procura de uma identi- Francisco de Miranda, Simón Rodríguez e Simón Bolívar, em Nova Granada, e
dade americana autêntica. Um e outro tema são hoje tão vitais como no começo os argentinos Mariano Moreno, Manuel Belgrano e Bernardino Rivadavia, todos
do século xix, apesar de as circunstâncias políticas terem, obviamente, mudado os eles sonhavam construir repúblicas liberais racionais modernas sobre as ruínas
termos em que foram apresentados nos diferentes períodos e nos diferentes países. da «tirania hispânica».
Um exemplo fundamental desta variação é a divergência evidente no desen- O impulso crucial desta cultura iluminista neoclássica é evidente no primeiro
volvimento cultural do Brasil e da América hispânica. O que distinguiu o Brasil grande romance a aparecer na América hispânica, Elperiquillo sarmento (1816),
foi a sua transição relativamente suave para a independência, no contexto de uma da autoria do jornalista mexicano reformador Fernández de Lizardi. Escrito para
monarquia constitucional. Porque as ligações ao passado colonial não foram escapar à censura do governo do vice-reino, o texto era um ataque à corrupção e
cortadas de um modo tão abrupto, e porque foi possível um consenso generali- à injustiça da sociedade colonial, e defendia valores liberais - Uberdade de pen-
zado entre as classes dirigentes, a cultura brasileira pôde evoluir sem passar pelas samento e de expressão, em particular. E se o romance de Lizardi antecipava o
convulsões que os seus vizinhos sentiram. A continuidade e a estabilidade per- tema da fundação de uma sociedade justa, a questão da identidade cultural seria
mitiram que os artistas produzissem as suas obras sem as pressões de conflitos suscitada pelo poeta equatoriano José Joaquín de Olmedo, mesmo no momento
ideológicos constantes. Logo, os resultados artísticos do Brasil no século xix em que celebrava a heróica emancipação das colónias no seu cântico de louvor
foram consideravelmente superiores aos da América hispânica: em finais do a Bolívar, La vlctoria de Junín (1825). Ao louvar os heróis crioulos da guerra, na
século, o Brasil podia gabar-se de dois romancistas de primeiro plano, e de pelo sua sonora poesia neoclássica, Olmedo introduz um elemento conscientemente
menos um dos seus melhores poetas de sempre. indígena: o espírito do inça Huayna Capac prevê a vitória final contra os Espa-
Na América espanhola, pelo contrário, a vida cultural foi enfraquecida pela nhóis em Ayacucho. Encontramos, desta forma, crioulos liberais a experimentar
turbulência política e pela incerteza económica. A polémica asfixiou a criativi- um novo americanismo - repudiando a herança da Espanha ao evocar uma visão
dade e, em tais circunstâncias, não emergiu nenhum grande escritor ou, para ideal do passado índio.
todos os efeitos, nenhum escritor capaz de produzir um conjunto substancial de Contudo, nos anos que se seguiram à independência, a maioria das repúbli-
obras de qualidade sistematicamente elevada. Surgiram alguns trabalhos literá- cas conheceu uma reação conservadora perante o cenário de desintegração polí-
rios de grande nível, mas foram fenómenos isolados que conseguiram condensar tica. Os próprios liberais temperaram o seu fervor revolucionário, apercebendo-
as confusões da época em formas memoráveis. Perto do final do século, quando -se da necessidade de estabilidade e de uma qualquer relação de continuidade
as principais repúblicas se encontravam integradas na economia mundial e as com as tradições ibéricas. Na verdade, o liberalismo pós-independência acabou
suas classes dirigentes tinham começado a unir-se e a prosperar, a criação literá- por ter mais em comum com o cauteloso reformismo dos Bourbons e dos funcio-
ria teve melhores condições para florescer - as últimas três décadas, aproxi- nários pombalinos do que com o radicalismo dos Libertadores e dos seus «pre-
madamente, assistiram ao aparecimento de algumas obras-primas da literatura. cursores». A figura exemplar, a este respeito, foi o arquiteto da transição brasi-
Na viragem de século, uma nova recetividade à cultura europeia, especialmente leira para a independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, um homem de
no que respeitava à poesia, preparou o caminho para a grande desabrochar lite- saber enciclopédico - advogado, estadista, ensaísta e poeta neoclássico. O seu
rário dos anos 20. equivalente mais próximo na América hispânica foi o venezuelano Andrés Bello,

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

que foi tutor de Bolívar mas veio a ser exilado no Chile, possivelmente por acre- socialista (1837) era considerado o manifesto deste grupo e, apesar do título,
ditar numa solução monárquica para a crise de independência. estabelecia os princípios do liberalismo clássico; o termo «socialismo» referia-se
As suas principais obras inscreviam-se nas áreas de filologia, direito, filoso- a um consenso de valores que providenciaria a base para uma ordem social
fia e educação - foi ele o fundador da moderna Universidade do Chile -,. mas coesa. Outro notável escritor liberal e membro da Asociación de Mayo foi o
Bello foi também um poeta talentoso, e é na poesia que podemos observar a poeta José Mármol. Posto na prisão pelo regime de Rosas, Mármol encontrou aí
verdadeira orientação do seu pensamento: defendia uma reconciliação cultural o ímpeto criativo para escrever poesia e peças de teatro, além de Amalia (1851),
com a Espanha e a criação de pontes para o passado europeu, por forma a civi- o seu famoso romance vincadamente anti-Rosas.
lizar a barbárie da América. A estética neoclássica, preocupada com a harmonia Bartolomé Mitre, o general que finalmente destruiu o poder dos caudilhos
e a métrica, combinava bem com o liberalismo conservador que o poeta advo- conservadores e que assumiu a presidência da república em 1862, fundou, pas-
gava. Mas Bello não renunciou ao americanismo, e até produziu a primeira obra sados oito anos, o jornal La Nación, que se tornou um dos principais órgãos da
importante com um tema americano. Na sua Alocución a Ia poesia (1823), exorta imprensa argentina, e escreveu uma narrativa romântica, Soledad (1847). Mitre
o espírito da poesia a deixar a Europa, estando esta velha e exausta, e a ir procu- partilhava da ambivalência dos românticos argentinos relativamente às pessoas
rar um novo vigor nas terras virginais da América. A complementar este texto, comuns: eram, por vezes, retratadas como agentes da barbárie (assim acontece
Silva a Ia agricultura de Ia zona tórrida (1826) foi concebido como uma Geór- em El matadero de EcheveiTÍa e em Amalia de Mármol), e noutras ocasiões eram
gicas do Novo Mundo, em que se aconselha um tratamento delicado do solo e idealizadas, por via da sua cultura popular, como a base de uma identidade ame-
dos seus copiosos frutos com vista a fundar uma sociedade racionalmente estru- ricana autêntica. Apesar de ser um aristocrata e um liberal europeizante, Mitre
turada. Para Bello, a independência não implicava uma negação da civilização foi o primeiro a compor um poema sobre um gaúcho lendário, Santos Vega
do Velho Mundo; o seu objetivo era rodear as repúblicas recém-formadas das (1838), um dos temas favoritos dos poetas dos gauchescos, que surgiriam mais
tradições clássicas da Grécia e de Roma. tarde.
Mas nos anos 30 e 40, o ideal virgiliano de Bello de uma parceria frutuosa A literatura gauchesca teve a sua origem nas guerras da independência na
entre homem e natureza, entre passado e presente, já não convencia uma nova região do rio da Prata. Foi influenciada pela tradição espanhola do cuadro de
geração de intelectuais, a quem o poder de caudilhos violentos causava horror. costumbres, um esboço espirituoso de costumes populares cuja linhagem literá-
Com o liberalismo a ganhar um novo ímpeto radical, o comedimento do neoclas- ria remontava, pelo menos, ao século xv. O costumbrismo gaúcho agradava aos
sicismo deu lugar a um romantismo apaixonado, que surgiu pela primeira vez na românticos porque lhes parecia refletir um modo de vida genuinamente ameri-
Argentina, na década de 30, no decurso da longa luta contra o tirano Juan Manuel cano. Esta literatura era, de facto, como Jorge Luis Borges gostava de salientar,
de Rosas, o qual personificava para os liberais os piores vícios da herança espa- privilegiada por homens citadinos cultos que escreviam personificações dos
nhola. modos e idiomas do gaúcho. Os poemas mais bem conseguidos foram os delitos
O homem a quem se atribui, convencionalmente, a introdução do roman- e os diálogos do uruguaio Bartolomé Hidalgo, que serviam para comentar assun-
tismo na América hispânica foi Esteban Echeverría, que passou cinco anos em tos públicos no tempo das lutas pela independência. Os liberais da Asociación de
Paris antes de regressar a Buenos Aires em 1830, onde aliaria a carreira de Mayo adotaram esta tradição de sátira popular como veículo de propaganda
homem de letras à de agitador político empenhado em derrubar Rosas. Como contra Rosas e contra os federales conservadores. Hilário Ascasubi foi muito
poeta, Echeverría tornou-se popular, embora não fosse especialmente talentoso: aclamado entre 1850 e 1872 pelos seus retratos mordazes escritos em nome do
é recordado, sobretudo, pela sua balada narrativa La cautiva (1837), a história da gaúcho Santos Vega. Estanislao dei Campo é recordado pelo seu clássico Fausto
fuga de uma rapariga branca que fora feita escrava por índios nómadas. Echever- (1866), que transpunha a velha temática gauchesca de um duelo com o diabo
ría inaugurou o tema das pampas como uma paisagem arquetípica - um lugar de para a cidade de Buenos Aires, no estranho conto de um gaúcho simples que
barbárie, mas também o cadinho da identidade nacional da Argentina. Escreveu narra a sua experiência de assistir a uma representação do Fausto de Gounod no
também El matadero (1838), um pequeno texto satírico em prosa, no qual o elegante Teatro Cólon. A obra permitia duas leituras, pois os modos rudes, pro-
matadouro se toma um poderoso símbolo da opressão de Rosas sobre os liberais vincianos, do gaúcho faziam rir as classes sofisticadas de Buenos Aires; mas, ao
de Buenos Aires. Em 1839, Echeverría ajudou a fundar a Asociación de Mayo,,,, mesmo tempo, a perplexidade do gaúcho, numa ópera francesa importada sobre
um grupo de jovens ativistas anti-Rosas, muitos dos quais viriam a tornar-se o tema de Fausto, não trairia o receio generalizado de que a Argentina pudesse
importantes escritores e futuros dirigentes liberais da Argentina. O seu Dogma perder a sua alma para o diabo do comércio europeu?

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»! DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

Esta ambivalência romântica para com o gaúcho está subjacente naquela que descreve a vitalidade de Buenos Aires, situada na foz do grande sistema fluvial
pode ser considerada a obra literária mais influente da cultura hispano-americana do rio da Prata e aberta às correntes do Atlântico, um porto florescente e prepa-
moderna - o longo e polémico ensaio de Domingo Sarmiento, Facundo o Ia rado para o comércio de bens e ideias com o mundo em geral.
civilización y Ia barbárie (1845), em que o projeto liberal para a América Latina O ensaio seminal de Sarmiento gerou uma controvérsia interminável (ainda
é expresso de modo mais completo e apaixonado. O texto assume a forma de bem acesa nos dias de hoje) porque ele permitiu que o seu ódio por Rosas dis-
uma biografia do caudilho federalista Facundo Quiroga, que chegou ao poder torcesse a análise da condição da Argentina pós-independência. A grande falha
na província de San Juan, no interior, e que teve uma carreira de violência na da sua argumentação reside na identificação das pampas com a fonte da barbárie
sangrenta política nacional, até ser traído e assassinado, provavelmente por e do gaúcho como seu agente. A este respeito, foi mais influenciado pelo seu
ordem do seu rival Rosas. Facundo, de Sarmiento, é importante porque aborda amigo Echeverrfa e pelos estereótipos da literatura gauchesca do que pela obser-
frontalmente o problema da formação das nações numa altura em que o libera- vação direta — Sarmiento era um homem da cidade, com uma experiência
lismo latino-americano vinha perdendo a força, depois da cruel deceção que. mínima da vida nas pampas na altura em que escreveu Facundo. Contudo, nem
se abatera sobre a geração de Bolívar e de San Martin, no rescaldo da indepen- Facundo nem Quiroga ou Rosas eram gaúchos; eles simplesmente usaram os
dência. gaúchos e outros grupos desfavorecidos para concretizarem as suas ambições.
Uma visão crua e tendenciosa do ensaio de Sarmiento defende que o autor Sarmiento podia ter argumentado que aqueles caudilhos reacionários tinham
associava a América à barbárie e a civilização à Europa. Mas esta leitura resulta explorado os gaúchos e corrompido os seus valores. Dessa forma, teria evitado
de um equívoco. Para Sarmiento, barbárie significava simplesmente a falta de a controversa associação do gaúcho à «barbárie» que tinha de ser vencida. Como
um bom governo baseado numa autoridade legítima, uma anarquia catastró- viria a suceder com o cowboy nos EUA, ou com o bandeirante de São Paulo no
fica, resultante das lutas pelo poder, à margem da lei, entre tiranos regionais. Brasil, o gaúcho podia ter sido convertido pelos liberais argentinos numa figura
Sarmiento compreendia bem a fraqueza intrínseca do Estado latino-americano mítica de progresso, um filho autêntico da terra argentina, alguém cujo rude
após a independência, e a consequente vulnerabilidade da sociedade a abusos individualismo e o amor pela liberdade prenunciavam a cultura de iniciativa que
contra os direitos civis. O seu ensaio era uma análise profética das caracterís- levaria a jovem república ao caminho da grandeza e da prosperidade. Em vez
ticas das ditaduras populistas, que se tornariam endémicas na América Latina. disso, o gaúcho foi representado em Facundo como a personificação da barbárie
Sarmiento mostra como Rosas se mantinha no poder através de um culto de e do atraso cultural.
personalidade histérico - manipulando os medos e as superstições das classes Esta oportunidade ideológica desperdiçada paira sobre as páginas de Facundo
mais baixas, recorrendo a palavras de ordem irresponsáveis e a uma espionagem na ambivalência com que Sarmiento descreve a vida e os costumes dos gaúchos.
de bairro, controlando a imprensa e até utilizando esquadrões da morte. Era esse Sendo um romântico, não pode deixar de admirar a força da sua cultura autóc-
o tipo de barbárie que precisava de ser civilizado por meio de leis justas e de tone — o conhecimento íntimo que tinham das pampas, os seus saberes rústicos,
instituições democráticas. A barbárie não era um problema da América Latina a destreza com que manejavam a faca e a guitarra; e todavia, pela forma como
em si, mas um risco constante a que todas as sociedades humanas estavam constrói a sua argumentação, Sarmiento rejeita o modo de vida gaúcho como
sujeitas. modelo para a Argentina moderna. Depois de Facundo, a ideia de progresso na
Para Sarmiento, as jovens repúblicas da América hispânica teriam de ultra- Argentina pareceria sempre em conflito com o tão frágil sentido de identidade
passar os perigos da barbárie apoiando-se na teoria política e nas instituições que do campo.
vinham sendo desenvolvidas na Europa desde o Huminismo, como os EUA Este conflito derrotista revestir-se-ia de uma ressonância mítica em El gaú-
tinham conseguido fazer com êxito. Sarmiento fazia uma distinção entre duas cho Martin Fierro (parte I, 1872; parte II, 1879), de José Hernández, um poema
formas de civilização disponíveis para os governantes da América espanhola: narrativo escrito muito depois da queda do caudilho Rosas em 1852, quando o
havia a civilização clerical da Espanha católica e a civilização liberal moderna próprio Sarmiento se tomara presidente da república e a vida desordeira das
do Iluminismo. A primeira, no entender do autor, era incapaz de contrariar a pampas dava rapidamente lugar a uma economia moderna assente em direitos de
maré de barbarismo, vinda de regiões remotas, que praticamente submergira as propriedade bem definidos, em estancias onde se cultivava trigo, em povoações
cidades. Sarmiento retraia a cidade interior de Córdoba como uma relíquia sono- de imigrantes estrangeiros e numa rede ferroviária.
lenta do tradicionalismo hispânico, com os seus veneráveis edifícios refletidos José Hernández deu conta, numa única obra de arte, do enorme potencial
nas águas estagnadas de um lago ornamental. Estabelecendo um contraste, mítico do gaúcho, quando o seu modo de vida tradicional estava em risco de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

desaparecer. A primeira parte de Martin Fierro conta a história da conscrição das pampas como «bárbaras». Num tal contexto, nem as classes conservadoras
forçada de um gaúcho inocente no exército, para combater numa guarnição de do país apreciavam as virtudes políticas da monarquia católica como, por exem-
fronteira contra os índios das pampas. Explorado e vítima de maus-tratos cons- plo, as suas homólogas do México ou do Peru. O liberalismo era a única resposta
tantes às mãos das autoridades, o gaúcho deserta e tem de procurar refúgio entre inteligente à anarquia dos caudilhos, mas o liberalismo ameaçava também privar
os índios. Esta primeira parte é um lamento comovente por um modo de vida a jovem nação de uma identidade específica. Noutras partes, a rivalidade ideoló-
condenado, em que o gaúcho desfrutava da liberdade das pampas e de um senti- gica entre liberalismo e conservadorismo era menos pronunciada e, por isso, o
mento de camaradagem com os seus companheiros, sob a autoridade patriarcal problema da identidade não ganhou o mesmo relevo, porque a causa intelectual
do pafrón benevolente. Trata-se do protesto de um conservador hispânico contra do tradicionalismo católico era tão mais convincente.
um governo apostado na modernização que perde a confiança dos gaúchos, os A intensidade dos conflitos entre conservadores e liberais, e a consequente
representantes autênticos do povo argentino. instabilidade sentida na maioria das repúblicas da América espanhola explicam,
A sequela é, no entanto, confusa; foi escrita sete anos mais tarde, depois de em parte, a ausência de uma cultura literária substancial como a que se desenvol-
o autor conquistar a popularidade e se tornar apoiante do novo presidente liberal, veu no Brasil e entre os liberais na Argentina. As contendas ferozes no seio das
Avellaneda. De qualquer modo, as diferenças revelam, em si mesmas, os proble- classes dirigentes crioulas e a rápida sucessão de regimes políticos impediram
mas ideológicos da construção da nação argentina. Martin Fierro rejeita o barba- que a vida artística evoluísse ao seu próprio ritmo e segundo os seus próprios
rismo dos índios, mas, quando regressa à civilização, verifica que nada mudou: termos. Naqueles tempos conturbados, o público procurava temas sem polémica.
tudo o que a sociedade tem para lhe oferecer é o trabalho temporário numa Numa arte de cariz tão social como o teatro, nenhum dramaturgo foi capaz de se
estancia. Uma vez que Hernández não conseguiu dar ao seu gaúcho perseguido evidenciar. O público sabia do que gostava: zarzuelas espanholas, ópera italiana,
um destino que não o humilhasse, a narrativa central ramifica-se numa série de recitais de canções e por vezes uma comédia de costumes ou um melodrama
histórias algo incoerentes, centradas em diferentes personagens, até chegar a um histórico. Na pintura, na arquitetura e na música, as academias continuaram
final inconclusivo em que Fierro dá aos seus filhos os conselhos de um pai fiéis a estilos ultrapassados ou derivados e, na maioria dos casos, prevaleceu
errante, após o que todos eles partem uma vez mais para o desconhecido. um neoclassicismo pálido. A estagnação económica também contribuiu para
Considerando a totalidade do poema, o seu poder imaginativo reside na des- a mediocridade geral da produção artística; o mercado para a literatura e para a
crição da queda de uma ordem patriarcal tradicional, cujos membros são desar- arte em geral era limitado e cingia-se, regra geral, às maiores cidades, onde ins-
reigados da sua terra natal, acabando por ter de viver como fugitivos anónimos tituições como universidades, academias, editoras e jornais conseguiam reunir
à mercê da sorte. O poeta Leopoldo Lugones apontou Martin Fierro como a um público para os artistas ou os homens de letras. O patrocínio da Igreja, que
epopeia nacional da Argentina, mas é, na verdade, uma estranha epopeia, pois fora um estímulo tão importante nos tempos coloniais, estava em declínio,
em vez de celebrar as façanhas de um herói mítico da nação, associa uma ideia devido tanto aos ataques fiscais contra a riqueza eclesiástica por parte dos gover-
de traição à autoimagem argentina: o Estado liberal moderno está implicitamente nos liberais como ao processo de secularização da cultura nacional.
personificado num patrón desonroso disposto a sacrificar antigos laços de leal- Na literatura, o romantismo dominou aproximadamente até à última década
dade em nome do progresso material. do século. Ao contrário do que se verificou na Europa, inclusive em Espanha, a
Ao transformar o gaúcho num símbolo nacional ambíguo, Hernández crista- evolução do romance para o realismo foi pouco sensível, não se sabe ao certo
lizou o problema da identidade nacional com que todas as repúblicas latino- porquê. Talvez fosse ainda escasso o público urbano e de classe média preparado
-americanas se veriam confrontadas. E isso ocorreu na Argentina porque o pro- para os extensos romances de personagem e de análise social que se tornariam
blema aí foi sentido mais cedo, e com maior severidade, do que noutras partes tão populares no Velho Mundo. A crítica social estava presente, mas, como
das índias. De entre todas as repúblicas, foi na Argentina que a cultura liberal se vimos, assumia na Argentina a tradicional forma hispânica do cuadro de costum-
tornou mais forte, em larga medida devido à cidade de Buenos Aires; e esse bres, o retrato humorístico de tipos sociais, apresentado em prosa ou em peque-
liberalismo foi tão vigoroso precisamente porque a região tinha apenas ligações nas peças dramáticas. Outro subgénero hispânico menor que agradava ao público
frágeis às instituições coloniais, inclusivamente à Igreja, tendo sido um posto americano era a leyenda, um poema curto em prosa sobre um tema histórico,
avançado do império negligenciado e pouco povoado até às últimas décadas do criado por românticos espanhóis como o duque de Rivas ou Gustavo Adolfo
século anterior. Por outro lado, uma vez que não tinha comunidades antigas de Bécquer. No Peru, a leyenda e o cuadro de costumbres fundir-se-iam na tradi-
índios sedentários no seu território, a Argentina podia rejeitar as tribos nómadas ción, um subgénero criado por Ricardo Palma nos anos 50 do século xix, e que

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E C U L T U R A I S I

assumiu a forma de uma série regular de textos em prosa entre os anos 70 d teiras raciais ou sociais era o tema preferencial destes romances, cujas intrigas
mesmo século e 1915. envolviam, habitualmente, uma rapariga de raça mista ou de um meio não orto-
As classes altas peruanas mantinham viva a herança espanhola. Graças doxo que se apaixonava por um crioulo branco. Os escritores liberais retratavam
riqueza improvável gerada pelo guano, Lima conseguiu recuperar, em meados os obstáculos à felicidade como resultantes de um legado injusto do poder colo-
do século, um resquício do brilho social de que gozara no apogeu do período nial. Os romances liberais argentinos Amalia e Soledad já foram mencionados.
colonial. Os homens de letras peruanos mostravam-se inclinados a cantar «urna Cirilo Villaverde, um patriota cubano que por pouco não foi executado por
serenata sob a varanda do vice-reino»(*). Dramaturgos talentosos como Felipe estrangulamento pelos Espanhóis, escreveu Cecília Valdés (parte I, 1839; parte
Pardo e Manuel Ascensio Segura utilizavam o costumbrismo para satirizar a H, 1882), um romance clássico antiesclavagista, no qual uma rapariga mulata se
rudeza do regime republicano; alguns autores, como José António Lavai lê, apaixona por um homem branco sem se aperceber de que ele é o filho legítimo
demonstravam abertamente a sua admiração pelo período colonial. Ricardo do seu próprio pai biológico. Uma história de exploração racial leva, assim, à
Palma distinguiu-se por ter introduzido nesta nostalgia colonialista a perspicácia frustração pessoal e social.
mordaz dos limenos. As suas tradiciones evidenciam um equilíbrio irónico entre Mais interessantes ainda como documentos culturais são os romances escri-
passado e presente. Com o pretexto de ter encontrado o seu material em arqui- tos por católicos conservadores. Invocam, sistematicamente, o patriarcado hispâ-
vos, Palma elaborou fantasias pungentes que lhe permitiram troçar dos eternos nico tradicional (muitas vezes ligado à sociedade da fazenda) como a única
vícios hispânicos e tecer críticas à sua própria sociedade usando a capa de outra ordem social capaz de integrar as raças e as classes sob uma autoridade justa e
época. Algo esquecido nos nossos dias, Ricardo Palma foi, indiscutivelmente, benevolente. Implicitamente, pelo menos, anseia-se pelas tradições católicas da
uma figura importante, cuja obra, segundo um crítico moderno, «lançou as fun- Espanha. Cumandá (1879), de Juan León Mera, um fervoroso apoiante do dita-
dações de uma literatura nacional» ( f ). dor ultracatólico do Equador, Gabriel Garcia Moreno, conta a história de uma
De entre os principais subgéneros da ficção narrativa, predominaram os jovem criada numa comunidade de índios que não consegue render-se ao seu
romances históricos e sentimentais. O romance histórico, seguindo os moldes amor pelo filho de um proprietário de terras branco. Embora as raças não se
das obras de Sir Walter Scott, Victor Hugo e Chateaubriand, era especialmente reconciliem, Mera retrata o amor cristão como a única força capaz de as unir.
popular em nações novas que procuravam uma identidade histórica. Mas sendo Enriquillo (1882), de Manuel Galván, cuja ação se desenrola em Santo Domingo,
o passado um tema tão controverso na América espanhola, os romances históri- nos primeiros tempos da colónia, fala do amor de um jovem índio por uma rapa-
cos tendiam a reproduzir as divisões da política: os liberais, regra geral, acusa- riga meio espanhola, e apresenta Bartolomé de Ias Casas, o monge que se tornou
vam a Espanha e, por estranho que pudesse parecer, idealizavam as antigas popular pela defesa dos direitos índios, como uma personagem da história, de
civilizações índias, enquanto olhavam nostalgicamente para o período colonial. modo a sugerir que só a tutela cristã pode criar relações justas entre as raças.
No México, os autores de ficção histórica que se distinguiram estavam associa- Maria (1867), do colombiano Jorge Isaacs foi, de longe, o romance mais
dos ao movimento liberal de reforma de meados do século. Manuel Payno pro- conseguido do século xix. Continua a ser uma das mais apreciadas obras de fic-
duziu os primeiros romances por fascículos que apareceram no México; Vicente ção alguma vez produzidas na América Latina. A narrativa flui subtilmente a um
Riva Palácio, um amigo de Benito Juárez, escreveu romances que atacavam a ritmo que desencadeia uma intensa resposta emocional por parte do leitor, a sua
Inquisição espanhola, além de melodramas e contos; Eligio Ancona pegou em prosa evoca admiravelmente um retraio vigoroso e idílico do mundo natural, e
temas da Conquista, apresentando os Astecas a uma luz heróica. as personagens são caracterizadas com uma invulgar sensibilidade psicológica.
Também os romances sentimentais refletiam as alianças políticas. Corno Embora apresente uma perspetiva idealizada das relações sociais e étnicas numa
modo literário, o romance sentimental descreve uma busca pela plenitude pes- sociedade de fazenda sob a autoridade de um patriarca benigno, Maria insinua
soal numa ordem idealmente integrada. O facto de estas histórias de amor terem uma crise misteriosa que impede que o amor do filho do hacendado pela sua
finais infelizes revela, simultaneamente, o desejo intenso de uma sociedade frágil prima se concretize e seja devidamente socializado através do casamento.
unificada e a noção fatídica do seu caráter esquivo. O amor que transpunha fron- E, desta forma, o romance permite que os leitores sonhem com uma ordem his-
pano-americana tradicional intocada pela mudança histórica, enquanto um fata-
lismo subtil aponta para a iminente dissolução dessa delicada fantasia e para as
(') José Carlos Mariátegui, «El proceso de Ia literatura», Siete ensayos de interpretación *
trevas e a violência que lhe estão subjacentes.
de Ia realidadperuana (Biblioteca Amauta: Lima, 1975 [1928]), p. 245.
C) Gerald Martin, Cambridge History ofLatin America, vol. 3, p. 832.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

Brasil: O Romantismo e o índio voo de um condor - e alcançou grande reconhecimento pelos seus fascinantes
recitais em defesa da causa da abolição da escravatura. O seu poema «O Navio
A noção de uma independência cultural de Portugal tardou a aparecer no Negreiro» é um clássico. Castro Alves chamou a atenção para as dificuldades em
Brasil, pois a separação das duas Coroas foi muito gradual. Só a partir de 1838, que vivia o negro contemporâneo, cuja presença em toda a sociedade brasileira
data em que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado, é que a fora praticamente ignorada pelos românticos nas suas reflexões sobre as origens
procura de uma identidade nacional distinta ganhou verdadeira importância. da nação.
Foi por essa altura que os intelectuais começaram a considerar o índio - há A visão otimista das origens do Brasil foi expressada de modo poderoso pelo
muito desaparecido das principais áreas de colonização europeia e africana - romancista romântico José de Alencar, que nasceu em 1829 numa distinta famí-
como o protótipo indígena do novo brasileiro. O historiador Francisco Adolfo de lia de Pernambuco. Alencar levou a sério O problema da fundação de uma litera-
Vamhagen encorajou o estabelecimento de escolas de línguas nativas para esti- tura nacional, e em 1856 ganhou popularidade ao atacar, pelo estilo e pela forma
mular uma literatura nacional que constituísse a base da independência cultural demasiado europeus, as tentativas de Gonçalves de Magalhães, o fundador do
e da unidade. O outro grande estímulo ao desenvolvimento de um movimento romantismo brasileiro, de escrever uma epopeia com tema indianista. Mas essa
indianista foi o romantismo, cujas origens, no caso do Brasil, coincidem com a epopeia genuinamente americana também escapou a Alencar: a sua tentativa,
publicação, em 1836, de uma antologia de poemas, Suspiros Poéticos e Sauda- Os Filhos de Tupan (1867), ficou por concluir. O autor continuou, ainda assim,
des, de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Aristocrático e conservador, o a escrever romances cujos temas iam do indianismo e da história colonial à vida
romantismo brasileiro tentou unir uma pré-história nativa idealizada a reflexões contemporânea na cidade e no campo. Estes romances, como Alencar se aperce-
sentimentais sobre a vida colonial. Até aos anos 70, o indianismo romântico beria mais tarde, constituíram a base da literatura nacional que ele queria ver
dominou as letras brasileiras e inspirou uma torrente de romances, peças de tea- estabelecida.
tro, canções e poesia narrativa. Não há dúvida de que nenhum escritor antes de Alencar produziu obras
O maior poeta romântico, e que conseguiu dar à sua obra um registo brasi- com tanta qualidade e tão abrangentes. O primeiro romancista romântico,
leiro autêntico, foi António Gonçalves Dias, filho ilegítimo de um imigrante por- Manoel de Macedo, escreveu enfastiosas histórias sentimentais; de entre estas,
tuguês e de uma mãe afro-indiana, que se distinguiu como funcionário público, A Moreninha (1844) ainda é recordada. Outros romances de registo semelhante
etnógrafo e amigo do imperador Pedro II. Os seus poemas sobrevivem como foram A Escrava Isaura (1875) de Bernardo Guimarães, Inocência (1872), de
elegias a tempos passados, dias de heroísmo e de felicidade idílica; a famosa Escragnolle de Tunay, e a ficção histórica de António Gonçalves Teixeira e Sousa.
«Canção do Exílio» é um dos textos mais apreciados de toda a literatura brasi- Trata-se de obras semelhantes aos romances hispano-americanos sobre amantes
leira. Gonçalves Dias caracterizou, em vários poemas, o índio Tupi como um condenados de meios sociais ou raciais diferentes. Exceção à regra foi o romance
símbolo valoroso do espírito nacional, e em 1857 publicou quatro cantos de uma Memórias de um Sargento de Milícias (1853) de Manuel António de Almeida,
epopeia indianista - Os Tambiras - que ficou por concluir. No entanto, ao mesmo que evocava a vida no Rio de Janeiro no período que se seguiu à chegada do rei
tempo, procurou acomodar os Portugueses e os desprezados africanos no seu português ao Brasil. A sua preocupação com os tipos sociais e o seu estilo depu-
retraio idealizado das origens brasileiras. As suas idiossincráticas Sextilhas de rado, irónico, prenunciam os romances realistas de finais do século xix.
Frei Antão (1848), por exemplo, são um poema heróico, escrito em português José de Alencar foi o autor que se destacou, pela pujança da sua imaginação,
medieval, sobre as cruzadas de Portugal no Norte de África. O poema mostra pela qualidade da sua prosa e pelo seu talento para a construção de mitos. Abar-
como as realidades da mistura racial no Brasil estavam, na verdade, tão carrega- cando a maioria dos aspetos da vida e da história brasileiras, a sua ficção respon-
das de culpa que tinham de ser tratadas à distância segura da fantasia histórica. dia, nas palavras de António Cândido, ao «profundo desejo brasileiro de perpe-
A agonia romântica do poete maudit manifestou-se bem mais cedo no Brasil tuar uma convenção que dê a uma nação de indivíduos de sangue misto o álibi
do que na América hispânica, onde não teria impacto digno de nota até à década de um passado racial heróico, e que providencie à jovem nação a ressonância de
de 80. Alvares de Azevedo, o «poeta da dúvida», perseguido pela morte, faleceu uma história lendária» (*). O tema fundamental das construções mitológicas de
em 1852, aos 21 anos de idade. As apaixonadas letras de canções de Casimira de Alencar é a fusão de inocência e pureza índia com a coragem portuguesa, o que
Abreu, que morreu com a mesma idade, em 1860, ainda hoje despertam interesse
aos jovens. António de Castro Alves, apesar da sua morte prematura depois de
(') Citado em David Haberly, Three Sad Races: Racial Identity and National Cons-
uma vida libertina, possuía uma imaginação mais fértil - que foi comparada ao ciousness in Brazilian Literature (Cambridge Univcrsity Press: Cambridge, 1983), p. 17.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : DESENVOLVIMENTOS L I T E R Á R I O S E CULTURAIS I

teria resultado no nascimento do Brasil. Os seus romances mais famosos, como retrógrados, onde «o povo» fora viciado pela superstição e por hábitos não pro-
O Guarani (1857) e Iracema (1865), descrevem relações românticas entre índios dutivos.
e brancos, nas quais Alencar invariavelmente sacrifica o mundo índio em bene- Em repúblicas com populações não-brancas numerosas, este tipo de «polí-
fício do português, embora se trate de um processo que, à semelhança do parto, tica científica» aproximou-se muito de um racismo sancionado pelas autoridades
é doloroso mas necessário à vida - por exemplo, Moacir, o filho que a jovem - índios, mestiços e negros eram quase sempre encarados como irremediavel-
índia Iracema tem do conquistador Martim, reúne as qualidades de ambas as mente incapazes e até como obstáculos ao progresso da nação. Em tais circuns-
raças: é ele o primeiro brasileiro autêntico. tâncias, como observou o positivista mexicano Justo Sierra, podia ser necessário
Notável na obra de Alencar é o seu desejo de incorporar a experiência colo- «experimentar um pouco de tirania» em nome do progresso. Científicos mexica-
nial na autoimagem histórica da nova nação. Na América hispânica, pelo contrá- nos como Sierra deram, com efeito, uma lógica modernizante aos 40 anos de
rio, o período colonial tomou-se um campo de batalhas ideológicas entre liberais ditadura do caudilho liberal Porfirio Díaz. No Brasil, os positivistas encontra-
e conservadores, com os autores a sublinharem a ideia de divisão e rutura ao vam-se na primeira linha do ataque à monarquia, e era a sua influência sobre o
enaltecerem os feitos de uma raça e a excluírem a outra. E no entanto, como alto comando que encorajava o Exército a interferir na política: o golpe de Estado
mitologista das elites brasileiras brancas, Alencar não conseguiu, ou não quis, que introduziu a república em 1889 inaugurou uma longa tradição de tecnocracia
encontrar um lugar para o africano escravizado na sua versão das origens nacio- subscrita por governos militares.
nais, pois este era um problema que poderia fazer ruir o mundo de sonho que A atitude dos positivistas latino-americanos relativamente à questão da dife-
concebera de modo tão brilhante. A obra de Alencar reflete o profundo otimismo rença racial foi condicionada pelas teorias de Herbert Spencer de desenvolvi-
das classes dirigentes brasileiras, o seu interesse na preservação da unidade mento social e determinismo racial. Excessivamente simplificadas, estas ideias
nacional e o seu apetite pelo progresso. Esta atitude seria um traço constante na deram origem a um darwinismo social em estado bruto, segundo o qual certas
história independente do Brasil, algo que distinguiria o país da maioria das repú- raças estavam mais bem adaptadas à luta pela sobrevivência do que outras.
blicas da América hispânica, onde as elites crioulas revelavam tendência para As raças nórdicas eram as mais aptas, os latinos eram menos capazes; mais
acessos recorrentes de pessimismo histórico. abaixo na escala surgiam povos de cor como os ameríndios; em último lugar
estavam os negros. As pessoas de sangue misto, em número tão elevado na Amé-
rica Latina, eram irremediavelmente degeneradas. O darwinismo social provi-
O Domínio do Positivismo denciou, desta forma, uma justificação «científica» para o domínio branco. Em
muitos países, conduziu a uma política de encorajamento da imigração em massa
A partir dos anos 70 do século xix, as elites brancas tanto da América hispâ- de brancos, com o objetivo de melhorar o património genético da população e
nica como do Brasil puderam desfrutar dos crescentes benefícios do comércio assim aumentar as hipóteses de um desenvolvimento moderno. Infelizmente, a
com a Europa. À medida que as economias de exportação floresciam nas princi- maioria desses imigrantes não era da melhor qualidade, segundo os critérios dos
pais nações, os conflitos ideológicos iam-se atenuando e, de um modo geral, os darwinistas sociais: havia demasiados italianos do Sul, portugueses e judeus da
liberais assumiam o controlo do Estado, através de meios constitucionais ou Europa de Leste, em vez dos agricultores louros nórdicos que poderiam ter trans-
estabelecendo ditaduras progressistas. O liberalismo romântico que inspirara as formado a América Latina num outro Midwest.
lutas pela liberdade e pelos direitos políticos, em meados do século, deu lugar a O positivismo reforçou irremediavelmente a tendência para admirar os movi-
uma doutrina mais severa que recorria à ciência para justificar a liderança polí- mentos modernos na Europa e nos EUA. À medida que o comércio de exporta-
tica das elites brancas nas nações multirraciais da América Latina. ção enriquecia as grandes cidades, os seus centros desenhavam-se segundo o
Esta nova versão de ideologia liberal advinha do positivismo do filósofo planeamento urbano da Paris de Haussmann - estradas em linha reta e avenidas
francês Auguste Comte. Era uma doutrina que encarava o método científico largas, flanqueadas por imponentes blocos de apartamentos e outros grandes
como único meio para alcançar a verdade: através da observação e da experi- edifícios públicos. No início do século xx, o apetite pelo modo de vida moderno
mentação, era possível chegar a um conhecimento dos factos e às leis básicas tornara-se insaciável nas cidades: surgiram bicicletas, carros elétricos e auto-
da natureza e da sociedade. Porque só uma minoria esclarecida era capaz, móveis, e também a eletricidade, o telefone e outras invenções técnicas. Emer-
de adquirir esta perspetiva científica, a governação devia ficar a cargo de uma giu uma cultura popular urbana, alimentada por jornais baratos, espetáculos
elite preparada para aplicar as medidas necessárias à modernização de países musicais, teatro de variedades e circos. Foram estas as primeiras formas de

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

entretenimento de massas na América Latina, e o seu público seria, em devido Tendo-lhe sido recusada a entrada no Parnasso, morreu na miséria, e a sua obra
tempo, conquistado pelo cinema e pela rádio. foi negligenciada até aos anos 40 do século xx.
Nada disto era muito diferente do que estava a acontecer na Europa ou Na ficção narrativa, a objetividade parnasiana encontrou expressão através
na América do Norte. O grande fosso que se abria era entre a vida nas grandes do naturalismo, que no Brasil tendia a refletir o determinismo do pensamento
cidades da América Latina e os costumes tradicionais que perduravam no campo. positivista. O primeiro romance naturalista, O Mulato (1881), de Aluízio de
A um habitante da cidade, fosse ele rico ou da classe proletária, a Europa urbana Azevedo, chocou o público ao expor os obstáculos com que um homem de cor
causaria menos estranheza do que as regiões rurais latino-americanas, onde urna deparava na sociedade. Azevedo retratou meios urbanos carenciados nos seus
massa de camponeses maioritariamente de cor trabalhava em fazendas semifeu- outros romances, e com O Homem (1887) tornou-se célebre pela sua análise da
dais ou nas comunidades índias. De tal modo que, nas primeiras décadas do personagem de uma mulher histérica. Júlio Ribeiro também causou escândalo
século xx, escritores da cidade viajavam pelas regiões rurais e apreciavam o pela frontalidade com que abordou o sexo em A Carne (1888). Mas talvez o mais
mundo natural com um misto de espanto e receio. Essas tentativas de aproximar sensacional destes romances naturalistas tenha sido Bom Crioulo (1895), de
o campo e a cidade dariam origem a um movimento «regionalista» na literatura Adolfo Caminha, que descrevia o amor de um marinheiro negro por um criado
e nas artes em geral. de bordo angélico. O melhor dos romances naturalistas foi, possivelmente,
O positivismo encorajou uma reação contra a paixão romântica na literatura. O Ateneu (1888), que apresentava um quadro psicologicamente convincente do
O parnasianismo na poesia e o naturalismo na ficção aspiravam a uma espécie dia a dia num colégio interno. Estes seguidores de Zola deitaram por terra quais-
de objetividade científica, temperando a emoção através de um formalismo rigo- quer ilusões românticas sobre a realidade social, mas as suas obras pareciam
roso ou de uma análise social distanciada. O Brasil absorveria estas influências agravar o pessimismo relativamente a um país tão viciado pela mistura de raças.
francesas mais cedo e de um modo mais completo do que a América hispânica. Assim, a observação social degenerava, muitas vezes, numa mera morbidez.
Joaquim Maria Machado de Assis, um mulato cujos pais trabalhavam para
proprietários de terras abastados, transcendeu por completo o naturalismo e foi
Brasil: Parnasianismo, Simbolismo e Naturalismo um dos melhores e mais originais romancistas da América Latina. Epilético,
gago e míope, iniciou a sua vida profissional a desempenhar atividades clericais
O parnasianismo começou a fazer-se sentir na década de 70 do século xix, menores, mas acabaria por se tornar um membro proeminente da elite cultural,
na poesia de Luís Guimarães e de Joaquim Maria Machado de Assis (este último casado com uma mulher branca de boas famílias. Os seus romances e contos
é, hoje em dia, mais apreciado como romancista, conforme veremos adiante). nada têm, no entanto, de complacentes: revelam uma visão profundamente
Após a implantação da república, os parnasianos dominaram o meio literário e desencantada do mundo, uma visão expressada, ainda assim, numa prosa reful-
fundaram a Academia de Letras Brasileira em 1897, com Machado de Assis gente de humor irónico. Nos seus três maiores romances, Memórias Póstumas
como seu primeiro presidente. Para poetas como Raimundo Correia, Alberto de de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), as difi-
Oliveira e Olavo Bilac, a arte era um domínio autónomo, capaz de destilar a culdades da consciência individual são equilibradas com as exigências da ordem
experiência para obter formas controladas e imutáveis. " social, mas o realismo literário é questionado, em jeito de brincadeira, por uma
Todavia, quando o parnasianismo atingiu o seu apogeu no Brasil, já fora experiência de ilusões narrativas (Machado de Assis tinha uma profunda admi-
ultrapassado pelo simbolismo em Paris. O simbolismo, que implicava um ., ração por Tristram Shandy, de Laurence Sterne).
retorno comedido ao subjetivismo romântico, não teve grande progresso no Bra- Alguns críticos consideram os romances de Assis precursores da ficção
sil, apesar de ter produzido um poeta de qualidade excecional, João da Cruz e experimental autoconsciente dos escritores latino-americanos do século xx.
Sousa, um negro puro filho de escravos e instruído pelos donos dos seus pais, Como a deles, a obra de Assis é uma reação ao racionalismo científico dos posi-
mas tratado como um pária durante toda a sua breve existência. A amargura cora tivistas. Mas Machado de Assis estava, é claro, a responder a uma ideologia em
que Cruz e Sousa encarava a sua condição rompeu o formalismo parnasiano e percurso ascendente, enquanto aqueles autores posteriores assistiram ao declínio
emergiu em poemas vigorosos, blasfemos, que exploravam as dolorosas contra- do positivismo. Este facto é, só por si, revelador da importância e da originali-
dições entre a cultura branca e as suas raízes africanas. Conhecido como o «cisj(e dade do escritor. Mas Assis era mais um cético conservador do que um progres-
negro do simbolismo», desmentiu tanto os mitos românticos das origens indo- sista: apesar das suas origens humildes, via na monarquia uma ficção necessária
-portuguesas do Brasil como as fantasias positivistas de supremacia branca. para unificar uma nação cujas divisões intrínsecas ele conhecia sobejamente,

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

pela sua própria experiência. A sua posição estética é, por esse motivo, com- foram Manuel Gutiérrez Nájera (México), Julián dei Casal (Cuba) e José Asun-
plexa: um distanciamento parnasiano libertou-o do tormento romântico, embora sión Silva (Colômbia). O facto de Rubén Darío ter residido em Buenos Aires
conseguisse ver através da falsa modernidade dos positivistas. Era uma comple- $ nos últimos anos do século xix estimulou o crescimento do «modernismo» nas

xidade que convinha ao cronista de uma sociedade em transição da monarquia repúblicas do rio da Prata. Dois poetas que se distinguiram na região foram Júlio
para a república. Herrera y Reissig (Uruguai), que cultivou um estilo refinado, altamente metafó-
rico, e Leopoldo Lugones (Argentina) - para alguns, um poeta do mesmo nível
de Darío -, que experimentou toda uma série de subgéneros e que seria uma
«Modernismo», Realismo e Naturalismo Hispano-Americano figura dominante nas letras argentinas durante cerca de três décadas.
Os efeitos estilísticos do «modernismo» são também evidentes na prosa e
O parnasianismo e o simbolismo influenciaram a América hispânica através na ficção. Na sua maioria, os «modernistas» dedicaram-se sobretudo ao poema
do movimento literário peculiarmente hispânico que foi o «modernismo», inau- em prosa, ao conto e ao ensaio; alguns escreveram romances poéticos. De resto,
gurado com a publicação da coleção Azul (1888), do poeta nicaraguano Rubén na viragem do século a ficção ficou sob a influência do naturalismo francês,
Darío. (Este «modernismo» não deve ser confundido com o movimento do embora de modo muito menos evidente do que no Brasil. Havia a tendência para
mesmo nome que surgiu na Europa e na América do Norte nas primeiras décadas enfatizar a hereditariedade e o ambiente como determinantes para o comporta-
do século xx, e que só produziu o seu impacto na América Latina nos anos 20 do mento social, mas os romancistas caíam muitas vezes nas tradições hispânicas de
mesmo século.) A corrente foi sentida como «moderna» pelo seu cariz francês, moralidade e costumbrismo. Alberto Blest Gana escreveu romances acerca da
pelo seu «galicismo mental», nas palavras de um crítico espanhol. Isto referia-se sociedade chilena contemporânea e é por vezes comparado a Balzac pela ampli-
à noção totalmente nova de «arte pela arte» e à pose decadente,^ de siècle, do tude da sua observação social, mas a sociedade de Santiago não tinha ainda
poeta maldito que os «modernistas» afetavam. dimensão suficiente para fornecer material para uma verdadeira comédia
O «modernismo» foi, na realidade, um movimento eclético. Em certos aspe- humana. A influência de Zola está presente nas histórias de Baldomero Lillo
tos, foi um desenvolvimento do romantismo, pondo em evidência os elementos sobre o sofrimento dos mineiros chilenos nas coleções Sub terra (1904) e Sub
mais sombrios e mais perversos, que haviam sido ignorados pelos liberais sole (1901).
românticos de meados do século, que privilegiavam a esfera pública. Mas Em Buenos Aires, que se ia tornando uma verdadeira metrópole à medida
embora tenham descoberto a agonia romântica, Darío e os seus discípulos herda- que a economia liberal de exportação florescia, os romancistas voltavam-se para
ram do parnasianismo uma preocupação estética com a perfeição formal, e fize- o realismo social e, ocasionalmente, para o naturalismo, de modo a captarem as
ram experiências no âmbito da prosódia, da versificação e da dicção. A teoria do espantosas transformações sociais. La gran aldeã (1884) de Lúcio Vicente
simbolismo não foi totalmente assimilada: foi o Verlaine de Fêtes Galantes, mais López, uma das mais célebres obras do realismo na Argentina, condena a perda
do que Mallarmé, que exerceu a maior influência. Verlaine era admirado pela sua dos valores tradicionais à medida que o comercialismo se apodera da cidade.
musicalidade e pela ambiência poética de elegância aristocrática, que Darío cap Os romances de Eugênio Cambaceres, que surgiram nos anos 80 do século xix,
tou com sucesso nas suas Prosas Profanas (1896). Dario acreditava que o artista eram de um naturalismo mais consistente e debruçavam-se sobre temas pensados
era um aristocrata de espírito, enobrecido pela sua dolorosa busca do ideal atra- para chocar - entre os quais a vaga de imigrantes, que o autor apontava como
vés da criação da poesia propriamente dita, e através da sacralização do amor agentes de corrupção na Argentina. Roberto Payró aliou as tradições do pica-
sexual. Com efeito, a rápida difusão do «modernismo» indica que o catolicismo resco ao realismo contemporâneo. Uma série de romances publicados entre
estava a perder o seu lugar central na cultura dos crioulos cultos. 1906 e 1910 atacava a corrupção política nas províncias e na capital. O prolífico
Isto talvez explique por que razão os radicais políticos se sentiam atraídos Manuel Gálvez, influenciado por Galdós, Flaubert e Zola, apesar de ele próprio
por um movimento que era essencialmente elitista - o seu antitradicionalismo ser profundamente católico, elaborou uma crónica da vida de Buenos Aires e das
aliava-se a um desdém pelo materialismo burguês e pela ciência positivista. José províncias argentinas numa série de romances inteligentes; a sua obra mais
Marti, o grande líder da luta de Cuba pela independência, foi também um poeta importante apareceu na segunda década do século xx.
de primeira água, cuja obra prenuncia e se sobrepõe à de Darío. O peruano i Mais do que nunca, a França era a influência dominante na cultura hispano-
Manuel González Prada foi outro importante ativista político que escreveu num -americana. Como os pródigos rastaquouères (os milionários latino-americanos
registo «modernista». Outras figuras mais exclusivamente ligadas à literatura que exibiam a sua riqueza em Paris, na esperança de conseguirem entrar no beau

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E C U L T U R A I S I

monde), escritores e intelectuais gostavam de se dar ares cosmopolitas depois de último está associado aos EUA e representa um Estado onde a ética utilitarista,
visitarem a capital francesa - tinham deixado a sua remota terra hispânica e combinada com os apetites descontrolados das massas, origina uma nova bar-
podiam então nadar na corrente da vida moderna. Com efeito, a forma que bárie em que a sociedade já não é regida por valores morais e por ideais espiri-
melhor revela o significado histórico do «modernismo» é a crónica, um ensaio tuais. Ariel, pelo contrário, representa a civilização, que se caracteriza pela lide-
jornalístico que podia abordar desde temas de atualidade à última maravilha da rança de uma elite capaz de subordinar desejos materiais à razão e às preocupa-
tecnologia. Tornou-se uma forma de arte menor, na qual se distinguiram «moder- ções espirituais. Embora expressasse a sua admiração pelo dinamismo dos EUA
nistas» como Darío e Marti. O mestre da crónica foi o guatemalteco Enrique e reconhecesse a necessidade de modernização, Rodo acreditava que a América
Gómez Camilo, que durante cerca de 30 anos escreveu, em Paris, textos que Latina devia preservar o espírito nobre de Ariel, herança da Grécia e de Roma,
depois eram publicados em jornais de todo o continente. Através da crónica, as e lidar com a democracia de massas e com o capitalismo moderno de forma
classes médias das cidades da América Latina recebiam notícias das modas e cautelosa.
invenções das grandes metrópoles culturais europeias. E embora os escritores Ariel teve um tremendo impacto em toda a América hispânica nos anos 10 e
«modernistas» apregoassem o seu desprezo pelos burgueses grosseiros, as ideias 20 do século xx. Despertou um desejo generalizado de afirmação cultural, que
literárias do «modernismo» foram também produto dessa grande abertura da assumiu, no entanto, formas diversas - uma defesa da «latinidade», uma busca
América espanhola ao mundo moderno que ocorreu em finais do século, depois de «essências» nacionais, uma preocupação renovada com o americanismo. Mais
do triunfo político do liberalismo. especificamente, esta obra suscitou descontentamento relativamente à influência
cultural dos EUA. Mas foi nos jovens que deixou a sua marca mais profunda; por
exemplo, o Movimento de Reforma Universitária, na Argentina, em 1918, invo-
Primeiras Reações contra o Positivismo cou o espírito de Ariel no seu ataque ao positivismo e aos privilégios instituídos
na universidades. A obra de Rodo também inspirou jovens intelectuais do
Na primeira década do século xx, assistiu-se a uma primeira reação contra as México a fundarem o «Ateneu da Juventude», em 1907, um fórum para escrito-
ideias positivistas, a qual levaria ao descrédito do liberalismo em finais dos anos res antipositivistas, que animaram vários proeminentes apoiantes da primeira
20. Três acontecimentos históricos estimularam esta reação. Em primeiro lugar, fase da revolução. Este «arielismo» até persuadiu alguns positivistas a rever as
a derrota da Espanha pelos EUA na guerra pela independência cubana em 1898. suas posições: Justo Sierra, um dos mais ilustres figurões científicos do México
A humilhação da Espanha trouxe ao mundo de expressão espanhola em geral e ministro da Educação de Porfirio Díaz, deu uma famosa palestra, a 22 de março
receios de uma ameaça «anglo-saxónica», e suscitou a reavaliação das tradições de 1908, em que exortou os intelectuais positivistas a atreverem-se «a duvidar»
«espirituais» hispânicas para fazer face ao materialismo da civilização moderna. das verdades da ciência.
Segundo, em 1896, em Canudos, no Nordeste brasileiro, ocorreu uma revolta de A revolta em Canudos tornou-se um marco cultural, porque originou um dos
camponeses católicos contra a república liberal. Esta rebelião traria à superfície clássicos da literatura brasileira: Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, um
as desigualdades do progresso: existia um fosso profundo entre regiões como jornalista de convicções positivistas que foi enviado para cobrir a história para
São Paulo, em processo de modernização acelerado, e regiões estagnadas, onde um jornal do Rio de Janeiro. Ao testemunhar a resistência heróica dos campone-
a sociedade tradicional estava profundamente enraizada. Finalmente, em 1910, ses realistas contra as investidas cada vez mais brutais das tropas republicanas,
uma contestação eleitoral ao ditador Porfirio Díaz e aos seus «científicos» posi- Euclides da Cunha ficou dividido entre a sua adesão intelectual ao liberalismo e
tivistas resultou no cataclismo da Revolução Mexicana. Estes três acontecimen- um respeito solidário para com pessoas miseráveis que os positivistas teriam
tos colocariam em causa os objetivos modernizantes das elites liberais, e a cada rejeitado como fanáticas degeneradas. Esta ambiguidade do autor confere à obra
um deles está associado um texto literário que reflete as novas preocupações dos Os Sertões uma tremenda força emocional. As certezas do determinismo racial
intelectuais quanto ao valor da civilização moderna. ruíram perante a humanidade dos rebeldes, deixando a nu as complexas realida-
A derrota espanhola em Cuba, em 1898, foi uma demonstração do poder e des do Brasil. Da Cunha não renuncia ao progresso, mas começa a compreender
da vocação imperialista dos EUA. Inspirou a publicação, em 1900, de Ariel, um que os seus frutos não podem ser monopolizados por uma elite. Ainda assim, não
ensaio da autoria do jornalista uruguaio José Enrique Rodo. Ariel é uma meditam sabe como incorporar as pessoas do sertão na vida de uma nação moderna sem
cão sobre a natureza da civilização, e Rodo estabelece um contraste entre duas destruir a sua integridade. Os dilemas apontados pelo livro continuam por resol-
formas de sociedade, respetivamente simbolizadas por Ariel e por Caliban. Este ver na América Latina dos nossos dias.

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HISTÓRIA D A A M É R I C A L A T I N A «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

A revolução de 1910 destruiu a autoconfiança dos positivistas tio México: quase sempre criados na cidade, que observavam a vida em lugares remotos ou
um violento turbilhão social ergueu-se e derrubou a ditadura progressista de em áreas rurais tradicionais, e que desesperavam pela criação de uma sociedade
Porfirio Díaz. E o turbilhão não se acalmou após a realização de eleições; pros- civilizada moderna. O novo grande tema literário era o implacável poder da
seguiu, deixando um rasto de caos e barbárie na maior parte do país. Este fenó- natureza na América, contra o qual os diminutos esforços do homem estavam
meno alarmante é o tema de Los de abajo (1916), o romance clássico da Revo- condenados a fracassar. Era uma postura bem distante da fé clássica na genero-
lução mexicana, de Mariano Azuela, um médico liberal que se juntou às força de sidade da natureza de que Andrés Bello falava nos anos 20 do século xix; e a
Pancho Villa. Azuela mostra como a revolução não consegue cumprir a sua diferença indica até que ponto a moral dos intelectuais liberais tinha declinado
promessa de reforma e justiça. Em vez disso, os rebeldes camponeses são apa- na viragem do século.
nhados numa espiral de anarquia violenta que não traz nada de bom a ninguém O sucesso de Os Sertões desencadeou uma forte tendência regionalista na
(à exceção de um intelectual cínico, que está preparado para explorar a confusão literatura brasileira. Na realidade, podemos observar uma bifurcação no curso da
de modo a obter benefícios materiais). O outro grande cronista da Revolução cultura brasileira a partir do início do século xx: uma via prosseguiria com o
mexicana, Martin Luis Gusmán, autor de romances excelentes, como El águila projeto de modernização e continuaria recetiva às influências internacionais; a
y Ia serpiente (1926) e La sombra dei caudillo (1929), constituem também um outra voltar-se-ia para as áreas aonde o progresso não chegara - para a região das
testemunho desiludido da sua experiência. Mas Los de abajo é a obra que ques- plantações de açúcar no Nordeste, ou para os sertões, as vastas extensões remo-
tiona de modo mais acutilante a noção de progresso, e é o primeiro romance a tas de savana e selva, o lugar da barbárie por excelência. O declínio do positi-
apresentar a realidade social da América Latina como um enigma. vismo originou, assim, uma rica dialética literária de cidade e sertão, com o
impulso para a modernidade em São Paulo e no Rio de Janeiro a ser acompa-
nhado de críticas contínuas às bases da sociedade moderna.
Novamente, «Civilização e Barbárie» A vida árdua do sertão minaria a confiança dos primeiros regionalistas bra-
sileiros no futuro da nação. Um dos melhores romances regionalistas, Chanaan
Se na primeira década do novo século a realidade da América Latina era um (1902), de José Pereira de Graça Aranha, descrevia o espanto de dois imigrantes
enigma, isso devia-se ao facto de as apreensões em torno do positivismo terem alemães ao viverem o fermento multirracial do Brasil. José Bento Monteiro
suscitado dúvidas mais gerais relativamente ao esquema liberal para compreen- Lobato inventou nas suas histórias um camponês cómico, Jeca Tatu, que perso-
der os objetivos históricos das repúblicas independentes. Este esquema remonta nificava a atitude recalcitrante dos habitantes do interior perante a perspetiva de
aos «precursores» do movimento pela independência, mas, como vimos, foi desenvolvimento. A vida urbana foi também tratada com pessimismo pelo
expresso com maior clareza pelo liberal romântico argentino Domingo Sar- mulato Afonso Henriques de Lima Barreto, hoje recordado por um bom romance
miento, na sua obra Facundo (1845) - a «barbárie» da anarquia e da violência só passado no Rio de Janeiro, Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915).
poderia ser controlada pela «civilização» moderna assente no Estado de direito Na América hispânica registou-se uma preocupação semelhante com os
e num sistema de ensino inspirado no humanismo racionalista do Huminismo habitantes das regiões rurais e da áreas remotas despovoadas. O indianismo ide-
europeu. Contudo, os três textos acima referidos obrigaram a uma revisão dos alizante dos romances do século xix daria lugar a uma preocupação com a situ-
termos-chave apresentados por Sarmiento: Ariel alertava para uma nova barbárie ação das comunidades índias contemporâneas. Esta atitude foi prenunciada num
latente em sociedades modernas como os EUA; Os Sertões lançava a dúvida notável romance da peruana Clorinda Matto de Turner, Aves sin nido (1889), que
sobre a benevolência das forças de civilização liberal; e Los de abajo questio- descreve a degradação dos índios, sem no entanto vislumbrar uma forma de lhes
nava a possibilidade de a civilização se estabelecer, dada a endémica tendência devolver a dignidade e o bem-estar. Na Bolívia, Alcides Arguedas, um historia-
para a violência na América Latina e a corruptibilidade dos homens de educação dor positivista que escrevera um ensaio desiludido sobre a sociedade boliviana,
liberal. Pueblo enfermo (1909), foi também autor de um romance sobre as tribos índias
Uma vez que lidava com aquilo que se percebia agora ser o enigma da reali- do lago Titicaca, Raia de Bronce (1919), onde demonstra compaixão pelo estado
dade social latino-americana, o grosso da literatura dos anos 10 e 20 do século xx de degeneração social destas comunidades, apesar de as encarar como um obstá-
debateu-se, inevitavelmente, com a dicotomia oitocentista de Sarmiento entie culo ao progresso da nação no seu todo.
civilização e barbárie. Na sua maior parte, tratava-se de uma literatura pessi- O uruguaio Horacio Quiroga é uma figura importante, quer como pioneiro
mista, no Brasil como na América hispânica: era a literatura de escritores cultos, do conto quer como um dos autores que melhor escreveram sobre o tema da

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te-
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA «CIVILIZAÇÃO E B A R B Á R I E » : DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

fraqueza do homem perante as forças naturais. Citadino e, inicialmente, poeta uma vez de partir para o exílio, na sequência de um golpe militar, ao fim de
«modernista», viveu durante longos períodos no Chaco e na região tropical de apenas nove meses no cargo. Enquanto escritor, Gallegos foi sempre sensível à
Misiones. A ficção de Quiroga, que foi influenciada por Põe e por Kipling, põe beleza natural do seu país e mostrou-se solidário para com os índios e os pardos
em cena personagens «civilizadas» que têm fins terríveis na selva e noutras regi- das zonas isoladas em romances de grande qualidade, como Cantaclaro (1934)
ões despovoadas. As histórias começaram a ser publicadas em 1904 e continua- e Canaima (1935), referindo-se este último a uma situação semelhante à de La
ram a aparecer até ao suicídio do autor em 1937. \oragine; simplesmente, neste caso o homem da cidade sobrevive à sua luta
Subjacente aos contos de Quiroga está a conhecida dicotomia entre civiliza- contra a selva e acredita que virá o tempo em que natureza e sociedade possam
ção e barbárie, que se prolonga pelos anos 20 do século xx com uma categoria coexistir em harmonia na América.
de romance a que os críticos chamaram Ia novela de Ia tierra. Apesar de abran- Outro clássico da novela de Ia tierra, Don Segundo Sombra (1926), de
ger obras muito diferentes, este é um rótulo útil, na medida em que enfatiza o Ricardo Giiraldes, tenta também alcançar um equilíbrio entre civilização e bar-
grande tema da natureza como uma força hostil ao homem. Uma das obras-pri- bárie. Conta a história de um jovem filho ilegítimo que fica sob a proteção de um
mas desta literatura é La vorágine (1924), do colombiano José Eustasio Rivera, gaúcho experiente, com quem aprende as técnicas do cowboy. Depois de uma
uma obra de ficção notável cuja qualidade literária só recentemente começou a série de provações na vastidão das pampas, o rapaz descobre a sua verda-
ser apreciada. Trata-se de um romance sobre uma tentativa fracassada de concre- deira identidade ao herdar uma propriedade que o seu pai biológico lhe deixou.
tizar o idílio pastoral - tal como André Bellos, por exemplo, o concebia - nas A partir de então, já não pode continuar a viver como gaúcho, vendo-se obrigado
planícies e nas selvas da Colômbia. Um poeta «modernista» foge da cidade com a receber uma educação moderna e a assumir novas responsabilidades.
uma rapariga grávida que desonrou, na esperança de estabelecer um novo lar Num momento em que os latino-americanos começavam a recear que influ-
longe dos odiosos preconceitos da sociedade tradicional. Em vez disso, vê-se ências estrangeiras ameaçassem o seu sentido de identidade nacional, Giiraldes
atraído para um vórtice de brutalidade e escravidão, em que a perversidade da pegou na rica tradição da literatura gauchesca e, contextualizando o seu romance
vida nas plantações de borracha da Amazónia só é excedida pela crueldade do na disputa entre Facundo de Sarmiento e Martin Fierro de Hernández, concebe
próprio mundo natural, que acaba por destruir o protagonista. A narrativa deli- uma inteligente conciliação ficcional entre civilização e barbárie. Adota o padrão
rantemente heterogénea oscila abruptamente entre uma autocomiseração amar- narrativo do Bildungsroman [romance de formação], por forma a sugerir uma
gurada e assomos de retórica poética num estilo «modernista» exaltado que analogia entre o processo de crescimento de um rapaz e a evolução da nação, de
muitas vezes roça o ridículo. Em tempos considerada um defeito, esta brilhante um contacto elementar com a terra nativa para um envolvimento mais complexo
instabilidade de tom traduz a confusão mental de um narrador histérico e é, na com o mundo exterior. Mas o toque de génio de Giiraldes foi converter o gaúcho
realidade, um veículo extraordinariamente eloquente para tratar o fracasso do tradicional num mestre íntegro, e as pampas num campo de ensaio espiritual: o
sonho liberal do século xix de civilizar o barbárie na América. confronto com a barbárie da natureza, em que o gaúcho é perito, é, deste modo,
A contrastar com o romance de Rivera, outra famosa novela de Ia tierra retratado como uma preparação necessária para a sociedade moderna.
invoca a dicotomia «civilização»/«barbárie» de Sarmiento, e opta explicitamente No centro das preocupações de Giiraldes figura a questão de identidade
pelo clássico objetivo liberal de civilizar o lugar remoto. A ação de Dona Bár- nacional. Em Don Segundo Sombra, o autor regressa à velha oposição entre
bara (1929), de Rómulo Gallegos, desenrola-se nas planícies da Venezuela, num civilização e barbárie para encontrar uma solução para o problema. E fá-lo evi-
ambiente semelhante ao de La vorágine. Narra a luta de um jovem advogado tando o erro que saíra tão caro a Sarmiento - o gaúcho adquire qualidades posi-
educado na cidade, que reivindica uma fazenda, contra Dona Bárbara, o caudilho tivas e é apresentado como um protótipo da Argentina moderna. Mas a solução
da região, uma mulher violenta, de sangue misto, que enfeitiça e corrompe os airosa de Giiraldes chegou demasiado tarde: o delicado equilíbrio sugerido em
homens. Neste romance de tese, Gallegos procura mostrar como o herói conse- Don Segundo Sombra não resistiu ao descrédito generalizado das ideias liberais,
gue vencer o poder sinistro de Dona Bárbara e introduzir o Estado de direito, após o expansionismo dos EUA e a crise económica. Na terceira década do
direitos de propriedade bem definidos e uma produção eficiente nas zonas atra- século xx, a dialética entre civilização e barbárie, que moldara o debate sobre a
sadas da Venezuela. construção das nações no século xrx, estava já a ser substituída por um novo
Tendo estado exilado por se opor ao ditador Juan Vicente Gómez, Gallego* tema, que lançaria a demanda por uma identidade cultural autêntica contra as
manteve-se ativo na política como liberal; em 1947, como o seu grande mentor tentações da modernidade.
argentino Sarmiento em 1868, foi eleito presidente da república, mas teve mais

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Terceira Parte

O Século XX
AMERICA LATINA EM 1830
América do Norte Britânica

OCEANO ATLÂNTICO
aias
.(Ilhas Bahamas) (BR.',

CAPÍTULO 9
H A I T I Porto Rico (Sp.)

rJamaica (Bt.)
- britânicos, dinamarqueses
e holandeses
Nacionalismo e Desenvolvimento:
PROVÍNCIAS UNIDAS .
DA A M É R I C A CENTRALT
(união dissolvida cm 1839)
uma Análise Global
Caracas X?Trindade (Br.;

G R A N O U COLÔMBIA
1819 v-,
(dissolvida em 1830)
Tradição e Mudança

No começo do século xx, os objetivos dos defensores liberais da indepen-


dência haviam, em larga medida, sido alcançados: as elites crioulas brancas eram
OCEANO PACIFICO
senhoras da sua própria casa, e tinham uma participação direta e lucrativa na
economia mundial. Mas as sociedades latino-americanas continuavam essencial-
mente tradicionais; não se dera qualquer revolução capitalista burguesa. O modo
de atuação dos crioulos brancos nos seus países era em tudo semelhante ao dos
seus antepassados desde os tempos da Conquista: a política assentava na patro-
nagem e em negociações informais entre os detentores do poder e os seus clien-
tes. A fazenda, com as suas vastas terras e mão de obra cativa, dominava, mais
do que nunca, a economia, e continuava a ser a principal fonte de estatuto. Por
URUCU
^ 1828
tudo isto, a sociedade permanecia rigidamente patriarcal, estratificada segundo
Buenos Aire;
ontevideu linhas raciais e económicas.
(PROVÍNCIAS UNTDAS DE RIO Dlí LA PLATA, 1816
CONFEDERAÇÃO ARGENTINA, J825 A exposição à economia mundial não produzira alterações significativas
no comportamento das elites. Como sempre, estas procuravam obter lucros
vendendo a um mercado, e nessa medida eram capitalistas, mas, em virtude
dos seus privilégios e do seu poder de monopolizar mercados através de acor-
dos políticos, faltava-lhes o incentivo para competir e inovar. Prosperavam na
As datas indicam a independência
dos Estados da América Latina economia mundial sempre que conseguiam explorar uma situação de exclusivi-
dade no fornecimento de produtos que na altura fossem objeto de grande procura

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HISTORIA DA AMERICA LATINA
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA A N Á L I S E GLOBAL

no estrangeiro. Além disso, a riqueza acumulada por via do comércio inter- Onde conquistaram poder, essas forças sociais procuraram substituir o libe-
nacional era gasta à maneira tradicional das aristocracias proprietárias de ralismo oligárquico por uma qualquer forma de Estado corporativo, cujos diri-
terra: no consumo de luxos que acentuavam o prestígio social. O investimento * gentes iniciaram programas de desenvolvimento industrial. Na década de 60,
em obras públicas ou no desenvolvimento técnico e industrial era deixado ai estas revoluções industriais tinham já mudado o aspeto de países como o México,
capitalistas estrangeiros, a empresários imigrantes ou ao Estado, que fina o Brasil, o Chile ou a Argentina. A industrialização fez-se, no entanto, acompa-
ciava tais projetos através dos impostos alfandegários. As recompensas materiais nhar de uma grave instabilidade política, gerada por tensões entre uma oligarquia
do progresso permaneceram, deste modo, muito concentradas, e não alteraram terratenente desestabilizada e os novos caudilhos das classes médias urbanas.
substancialmente os valores e os costumes dos magnatas crioulos e dos seus Após 1945, e apesar da ação persuasiva dos EUA, que agora exerciam uma pode-
clientes. rosa influência económica sobre a América Latina, revelou-se impossível chegar
O crescimento económico não dera origem aos Estados democráticos libe-* a novo consenso relativamente à democracia constitucional: as pressões da indus-
rais que libertadores como Bolívar tinham idealizado. Apenas algumas repúbli- trialização rápida eram demasiado fortes. A partir de meados dos anos 60, quase
cas, como a Argentina, o Brasil, o Uruguai, o Chile e a Costa Rica, tinham criado todos os países avançados da América Latina atravessaram períodos de guerras
constituições que lhes permitiram proceder a uma transferência ordeira de poder; intestinas e de despotismo militar. Na década de 80, as suas economias - ainda
de um modo geral, as rivalidades entre os caudilhos das diversas regiões conti- não totalmente industrializadas — encontravam-se enfraquecidas, devido ao
nuaram a arrastar os Estados para conflitos periódicos. Constitucionais ou des- enorme fardo da dívida externa, o que obrigou a uma reavaliação dos princípios
póticas, as políticas eram ainda inteiramente oligárquicas: o poder era alcançado nos quais os seus programas de modernização económica se tinham baseado.
e mantido através de elaboradas teias de proteção e negociações entre grupos de Estes desenvolvimentos gerais afetaram as várias repúblicas latino-america-
interesse com direitos adquiridos. nas de modos diferentes e em ritmos diferentes, consoante as suas características
Embora as economias de exportação não tivessem alterado o modelo básico internas e os respetivos graus^de interação com a economia global. Até aos anos
da sociedade, algumas das suas características haviam sofrido mudanças. Devido 70, pequenas repúblicas agrárias como o Equador, o Paraguai ou os Estados da
ao crescimento regular das exportações a partir dos anos 70 do século xix, as América Central foram governados à maneira tradicional por oligarquias pro-
cidades tinham-se expandido, assim como a rede de estradas e de caminho de prietárias de terras ou por caudilhos despóticos. Noutros países substancial-
ferro, e emergira uma economia secundária assente na indústria ligeira. A riqueza mente agrários, com numerosas populações de cor mas com um importante
proveniente do comércio fortalecera os governos centrais, o que originara apare- comércio de exportação e alguma indústria ligeira - países como o Peru, a Bolí-
lhos burocráticos alargados, padrões mais elevados de ensino, saúde e habitação, via, a Colômbia ou a Venezuela -, os desafios à ordem tradicional ganharam
e na maioria dos países intensificara-se a imigração de trabalhadores europeus. forma mais cedo, com o aparecimento de novos tipos de caudilhos, sediados na
A abertura da economia mundial imprimira, assim, alguns elementos de moder- cidade, que, em alguns casos, atacaram os barões rurais logo na década de 20;
nidade na sociedade tradicional: formaram-se populações urbanas de dimensão mas nesses países os conflitos insolúveis entre os interesses rurais e os interesses
considerável, com profissionais de classe média, funcionários administrativos urbanos adiaram a industrialização conduzida pelo Estado até aos anos 50 - e
e um operariado industrial cada vez mais numeroso. Ao longo do século xx, no Peru até 1968. As peculiares circunstâncias de Cuba desencadeariam, em
registar-se-ia uma tensão constante entre campo e cidade, e dentro da própria 1959, a mais profunda revolução política na América Latina desde o início do
cidade surgiria um novo tipo de fricção entre as classes. século xix; a situação não levou, no entanto, ao desmantelamento da economia
O comércio ultramarino também deixou a região exposta aos caprichos de exportação de açúcar do país.
dos mercados internacionais. O novo século assistiria a perturbações violentas, As primeiras mudanças ocorreram em repúblicas como o Chile, a Argentina,
que iriam impor mudanças de vulto a todos os países da América Latina. Até à o Uruguai, o Brasil e o México, que possuíam as economias mais abertas e mais
I Guerra Mundial, as economias de exportação continuaram a funcionar de modo dinâmicas, e elites liberais muito europeizadas. Nestes países, as democra-
rentável. No entanto, a partir de 1918, os reajustes estruturais nos mercados cias oligárquicas funcionavam bem havia décadas (o Porfiriato no México é a
mundiais desestabilizaram o comércio latino-americano e reduziram o poder das exceção à regra). Todavia, a partir dos anos 20, assistiu-se a golpes de Estado
elites brancas sobre as suas sociedades. O crash de Wall Street em outubro j|e militares e revisões drásticas de constituições nominalmente democráticas, e, no
1929, e a crise que se lhe seguiu, nos anos 30, chamaram novas forças sociais, início da década de 40, a indústria manufatureira foi subsidiada por Estados
especialmente as classes urbanas, para a cena política nacional. autoritários no Brasil, na Argentina e no México.
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N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Perante esta diversidade, torna-se muito difícil tecer generalizações sobre o comércio internacional, visco que não conseguiam recorrer a uma agricultura de
desenvolvimento latino-americano no século xx, mas o percurso histórico dos subsistência - plantar milho num pequeno lote de terra e criar galinhas ou porcos
países maiores e mais avançados da América Latina revela algumas tendências - para se alimentarem em tempos difíceis. Assim, as populações urbanas eram
económicas, políticas e sociais que as repúblicas mais tradicionais seguiram ou mais voláteis e mais agressivas do que as comunidades rurais.
irão provavelmente seguir mais tarde. O ponto de viragem na história moderna No início do século, novos partidos que representavam as classes médias e
da América Latina é, desta forma, identificado pelos historiadores com a década proletárias das cidades tinham começado a lutar por direitos políticos e benefí-
de 30, quando a crise mundial estimulou os países mais avançados a levarem a cios sociais. Sindicatos de trabalhadores recém-formados reivindicavam melho-
res condições de trabalho - um horário mais reduzido, mais segurança no local
cabo a transformação fundamental de estruturas tradicionais para estruturas
de trabalho, direito a segurança social e cuidados de saúde. Nas organizações da
modernas de economia e sociedade.
classe operária circulavam ideias socialistas e anarcossindicalistas, amiúde trazi-
das da Europa por italianos e espanhóis. O anarquismo foi, inicialmente, a dou-
trina mais influente; porém, com a sua ênfase na ação direta e na greve gerai
O Impacto Social e Político do Progresso (J 900-1930)
revolucionária, era quase sempre uma expressão da frustração da classe operária,
e não constituía uma ameaça séria à ordem estabelecida. Até finais dos anos 30,
A força histórica das oligarquias crioulas residia no seu domínio sobre a
a classe operária urbana, mesmo em países como o Brasil, a Argentina e o
sociedade rural, poder que exerciam através de uma autoridade paternalista sobre
México, não tinha dimensão suficiente para produzir um efeito direto na política
os camponeses que trabalhavam nas suas fazendas. Enquanto a economia se
nacional.
mantivesse essencialmente agrária, os velhos costumes prevaleceriam. Mas o
Contudo, a crescente incidência da ação grevista nas cidades nas décadas
comércio de exportação que tanto enriqueceu as elites crioulas trouxe mudanças
de 10 e de 20 alarmou os políticos tradicionais. A sua primeira resposta foi a
que iriam, progressivamente, minar a sua autoridade patriarcal sobre as restantes
repressão: as greves foram vergadas recorrendo à violência policial e a numero-
classes sociais.
sas detenções, com dirigentes sindicalistas presos e trabalhadores estrangeiros
Um próspero comércio de exportação estimulou o crescimento de vilas e
deportados. Em 1917-20 registou-se uma intensa agitação do proletariado por
cidades. Nas zonas urbanas, empresas industriais de pequena dimensão abaste-
toda a América Latina, numa reação tardia à inflação e aos salários baixos que
ciam de vestuário, calçado, mobiliário, alimentos embalados e outros pequenos
atingiram as classes urbanas durante a I Guerra Mundial. À medida que as hosti-
bens de consumo populações cada vez mais numerosas. A natureza da rnão de
lidades internacionais iam cessando, a indústria reanimava-se e a crescente pro-
obra mudou em conformidade: surgiu um proletariado urbano empregado nas
cura de mão de obra colocava os sindicatos numa situação mais forte: os traba-
docas, nos caminhos de ferro, nas fábricas e na indústria transformadora, para
lhadores reivindicavam salários mais elevados e melhores condições de trabalho,
além das tradicionais classes trabalhadoras urbanas que compreendiam artesãos,
de certo modo inspirados pelos exemplos das revoluções russa e mexicana.
artífices e pequenos comerciantes. Os funcionários administrativos também se
A agressividade destas greves exigiu dos patrões uma resposta mais sofisti-
multiplicaram à medida que as atividades do Estado se tornavam mais comple-
cada aos conflitos laborais do que a mera repressão. Vendo nos trabalhadores
xas e que as firmas comerciais se expandiam.
urbanos uma ameaça à ordem social, as oligarquias tradicionais aperceberam-se
Embora indiretamente ligadas à economia de exportação, estas novas classes
da necessidade de incluir o proletariado no sistema político. Na década de 20, nos
urbanas não estavam sujeitas aos tradicionais vínculos de autoridade e subservi-
países mais industrializados, promulgou-se legislação social para melhorar as
ência que outrora haviam garantido a passividade dos camponeses. Nas cidades,
condições de trabalho, de modo a acalmar o descontentamento das classes prole-
os trabalhadores que iam chegando das zonas rurais tinham efetivamente que-
tárias. Um fator que contribuiu decisivamente para as «revoluções» dos anos 30
brado os laços de lealdade que noutros tempos os ligavam às hierarquias rurais.
e 40 foi o desejo de incorporar o proletariado organizado no aparelho de Estado.
Outro fator que contribuiu para que as classes urbanas se afastassem da autori-
O México dera o exemplo: a sua constituição de 1917 garantiu alguns direitos
dade tradicional foi a imigração em massa da Europa, que afetou precisamente
aos trabalhadores e estabeleceu a base para a inclusão dos sindicatos na máquina
as cidades em processo de expansão mais acelerado - nos anos 20, um número
do governo revolucionário. Tentativas semelhantes de absorção do operariado
muito significativo de trabalhadores industriais de Buenos Aires ou São Ptulo
pelo sistema seriam levadas a cabo noutros países durante o resto do século, mas
mantinha a sua nacionalidade espanhola, portuguesa ou italiana. De resto, as
nenhuma foi capaz de repetir o sucesso duradouro do Estado mexicano.
classes urbanas estavam mais vulneráveis do que os camponeses aos ciclos do
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO! UMA ANÁLISE GLOBAL

O maior desafio político às oligarquias crioulas viria, no entanto, dos paniJ A causa das classes médias deu os seus primeiros frutos no Uruguai, quando
dos de classe média, cujas exigências se expressavam na linguagem do l a liderança do velho Partido Colorado passou para as mãos de José B atile y
lismo radical: sufrágio alargado, eleições não fraudulentas, respeito pelos direi-' • Ordónez. O novo líder procurou ampliar a sua plataforma de poder alargando o
tos civis e fim dos privilégios e monopólios. Embora nenhum destes partid ' sufrágio e a função pública, e introduzindo legislação social durante os seus dois
radicais questionasse a filosofia de comércio livre que sustentava as economias^ mandatos (1903-7 e 1911-15). Foi a riqueza gerada pela economia de exportação
de exportação, todos defendiam uma maior intervenção do Estado sobre os uruguaia que permitiu esta primeira experiência de uma forma de social-demo-
recursos primários, como habitação, assistência social, obras públicas, e mais cracia na América Latina. Bastante idêntico foi o caso da Argentina, onde um
empregos públicos para a população das cidades. acentuado crescimento económico persuadiu os oligarcas crioulos a responder à
Outro ponto enfatizado pela retórica dos partidos urbanos da classe média inquietude da classe média com a liberalização da lei eleitoral, em 1912. Isso
era a xenofobia - o ressentimento contra a vaga de trabalhadores imigrantes permitiu a vitória do Partido Radical nas eleições de 1916, e o caudilho dos
comerciantes estrangeiros, capitalistas protestantes e, em lugares como Buenos radicais, Hipólito Yrigoyen, encarregou-se de criar um lugar permanente para os
Aires ou São Paulo, contra os judeus da Europa de Leste. Aqui germinou o interesses urbanos na política argentina.
nacionalismo que tão forte se tornaria a partir de meados dos anos 20 e que mol- Em alguns países, só a intervenção do Exército conseguiu derrubar o sistema
daria a autoperceção da América Latina até ao fim do século. O Movimento de oligárquico. No Chile, foi necessário um golpe militar em 1925 para que o antigo
Reforma Universitária, que em 1918 alastrou de Córdoba, na Argentina, para a liberal Arturo Alessandri rescrevesse a constituição de modo a permitir que as
maioria das universidades da América espanhola, exigia reformas democráticas classes médias entrassem na cena política. No Brasil, nem o descontentamento
e a promoção do «espírito indígena», por oposição à atitude «materialista» de intelectuais e de membros do essencialmente urbano Partido Democrático,
incentivada pela economia de exportação dirigida pelas elites liberais. Foi o cri nem uma série de revoltas de oficiais militares subalternos, no início da década
de coeur da juventude urbana de classe média, afligida tanto pela inflação do de 30, foram suficientes para afastar os oligarcas, até uma rebelião militar ter
tempo de guerra como pela agitação da classe operária. Deste movimento emer- precipitado a «revolução» de 1930.
giriam os políticos nacionalistas antioligárquicos das décadas de 30 e de 40. A entrada dos partidos da classe média na política nacional entre 1900 e
As reivindicações dos radicais de classe média não podiam ser simplesmente • 1930 em pouco contribuiu para alterar a estrutura das economias de exportação;
rejeitadas pelos oligarcas, uma vez que, ao contrário das dos militantes da classe o objetivo destes países era canalizar parte das receitas nacionais para um
operária, não questionavam as fundações do Estado liberal e não implicavam aumento dos salários e para um maior investimento do Estado em serviços
mais do que a extensão dos princípios democráticos em que se baseavam as cons- sociais e obras públicas. Como se tornou evidente, o sucesso destas políticas
tituições republicanas. Ainda assim, houve resistência, pois os partidos oligárqui- dependia da saúde do comércio externo. Quando as receitas das exportações
cos conseguiam manipular as eleições de modo a excluir os radicais do governo. caíam, surgiam conflitos entre as classes urbanas e os interesses agrícolas e
A persistente fraude eleitoral originou nos anos 20 e 30 uma frustração política mineiros relativamente à distribuição de um produto nacional mais reduzido.
cada vez maior, que teve expressão na violência de rua e em protestos estudantis. A partir de 1918, o padrão do comércio mundial começou a alterar-se em preju-
Isolados, os radicais urbanos não tinham força suficiente para reformar o ízo das exportações latino-americanas, e as fricções entre cidade e campo ganha-
sistema. Só quando alguns elementos descontentes das elites crioulas viram a ram contornos mais graves. Mas nos anos 20 o comércio manteve-se num nível
oportunidade de conquistar poder através de uma aliança tática com as classes satisfatório, pelo que o modelo de exportação não foi questionado. Só com o
médias é que os partidos radicais entraram efetivamente na arena política. Foi o colapso da economia mundial, no começo da década seguinte, surgiram as críti-
que aconteceu no México, em 1910, quando Francisco Madero e o seu clã aris- cas à relação da América Latina com os países industrializados. Isto levou às
tocrático apelaram a uma reforma democrática limitada (a sua principal reivindi- primeiras tentativas no sentido de uma industrialização planificada, com vista a
cação era a de que não houvesse reeleição para a presidência), e procuraram o garantir o controlo nacional sobre os recursos económicos.
apoio da classe média, e até da classe operária, no seu ataque ao poderoso Por-
firio Díaz, na altura já em idade avançada. O resultado foi o cataclismo da Revo-
lução mexicana, para cujo resultado as classes urbanas pouco contribuíram,
embora o acordo pós-revolucionário tenha contemplado algumas das suas aspi-
rações económicas e nacionalistas.

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA A N Á L I S E GLOBAL

Mudanças Externas (1914-30) A vantagem comparativa esbateu-se ainda mais após a I Guerra Mundial,
quando a Grã-Bretanha perdeu a sua hegemonia internacional para os EUA. Até
O extraordinário crescimento das economias latino-americanas a partir dos 1914, a Grã-Bretanha fora o principal parceiro comercial da América Latina: os
anos 70 do século xix deveu-se ao aumento da procura, na Europa, de matérias- produtos latino-americanos eram trocados pelos bens industriais britânicos e por
-primas destinadas à indústria manufatureira e de géneros alimentícios para empréstimos financeiros britânicos. Tendo os EUA substituído a Grã-Bretanha
abastecer cidades cada vez mais populosas. Dispondo de mão de obra cativa e de como a principal potência industrial no mundo, a América Latina podia com-
terra em abundância, os grandes proprietários latino-americanos podiam vender prar bens manufaturados à América do Norte em condições mais vantajosas.
os seus produtos a preços inferiores aos dos pequenos agricultores europeus, que O comércio bilateral com a Grã-Bretanha deu lugar a um padrão de trocas
durante este período viram o seu nível de vida baixar consideravelmente. Nesta comerciais mais complexo, assente em três vias: os países latino-americanos
perspetiva, a fazenda latino-americana foi um dos vários flagelos que assolaram dependiam cada vez mais dos bens industriais de valor acrescentado que adqui-
a agricultura europeia em finais do século xix e que contribuíram para a Grande riam aos EUA, mas tinham de os pagar exportando produtos de baixo valor para
Depressão que atingiu a maioria das áreas rurais da Europa Ocidental na década os mercados em declínio da Grã-Bretanha e da Europa.
de 90 do século xix. Aos problemas económicos aliou-se uma grave instabilidade Este padrão deixou o comércio latino-americano à mercê de novas pressões:
política, com os governos a tentarem conciliar as exigências dos agricultores as exportações agrícolas não podiam ser transferidas do mercado britânico para
europeus, que queriam medidas protecionistas contra as importações de alimen- o norte-americano, porque muitas dessas mercadorias - cereais, algodão, açúcar
tos baratos, e a insistência dos patrões da indústria numa política de comércio e carne - eram já produzidas nos EUA e estavam protegidas por elevadas taxas
livre, que garantiria comida a preços baixos para os trabalhadores das fábricas aduaneiras. Ao mesmo tempo, os produtores coloniais do império britânico,
nas cidades. deparando-se com um ambiente internacional mais competitivo, tinham come-
Durante cerca de 50 anos, o comércio mundial favoreceu claramente a Amé- çado a pressionar o governo da Grã-Bretanha para dar preferência às importa-
rica Latina. Por esse motivo, todos os grupos políticos com peso na região apoia- ções dos seus domínios imperiais, de modo a afastar a concorrência, por exem-
vam o comércio livre, que era justificado através da doutrina de «vantagem plo, da América Latina. O abandono do padrão-ouro por volta de 1930 causou
comparativa»: um país teria uma economia próspera se exportasse os bens que uma instabilidade geral nas taxas de câmbio internacionais, o que tornou o
melhor sabia produzir. Era um ponto de vista que convinha às elites crioulas, comércio entre a América Latina, a Grã-Bretanha e os EUA muito mais difícil de
dado que as circunstâncias as tinham colocado numa posição de quase monopólio gerir do que antes da guerra. Com as moedas de todo o mundo a sofrerem osci-
no mercado mundial, sem que para isso tivessem precisado de alterar no essen- lações entre si e em relação ao poderoso dólar, o valor do câmbio estrangeiro que
cial as técnicas tradicionais de produção dos bens primários. Mas a vantagem os países da América Latina obtinham nos mercados europeus podia subir ou
comparativa não é estática: pode ser reduzida pela mudança das circunstâncias. baixar imprevisivelmente na altura em que era preciso pagar as importações dos
E as circunstâncias tinham começado a mudar ainda antes da I Guerra Mundial. bens industriais norte-americanos em dólares.
A perda gradual da vantagem comparativa da América Latina pode ser atri- A própria natureza da ascendência económica dos EUA agravava o descon-
buída, basicamente, a duas causas. Primeiro, deu-se um declínio a longo prazo tentamento dos latino-americanos com o modelo de crescimento baseado na
da procura de alimentos por parte da Europa, à medida que as famílias urbanas exportação. Nos anos 20, o capital e as iniciativas de negócios norte-americanos
se tornavam menos numerosas e que os salários da indústria deixavam mais começaram a substituir interesses britânicos estabelecidos. Mas a participação
dinheiro disponível para comprar produtos transformados, cujos preços subiram dos EUA nas economias de exportação latino-americanas era diferente da britâ-
em consonância. Segundo, a procura europeia de bens primários caiu precisa- nica, que consistira sobretudo em serviços públicos, infraestruturas e capital
mente quando a oferta estava a aumentar. O excesso de oferta na economia financeiro. As empresas norte-americanas investiam mais diretamente na produ-
mundial estimulou a concorrência entre os produtores: os preços dos minerais e ção, sobretudo de minérios e petróleo, de tal modo que grande parte das expor-
dos bens agrícolas começaram a cair, enquanto os preços dos produtos indus- tações dos países latino-americanos passou a ser controlada por interesses dos
triais foram subindo sistematicamente. Os termos do comércio iam-se aos pou- EUA. Este tipo de investimento não era uma novidade: a partir dos anos 80 do
cos voltando contra as economias de exportação da América Latina: o valor reaj^ século xix, empresas norte-americanas tinham assumido o controlo de planta-
dos seus produtos tradicionais diminuía ao mesmo tempo que as suas importa- ções e refinarias de açúcar em Cuba, processo que se acelerara nas primeiras
ções de bens industriais se tornavam mais caras. décadas do século xx. Algo semelhante ocorrera na América Central, onde a

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

oómico, e os EUA passaram a ser encarados como uma potência neoimperialista


United Fruit Company tinha, já em 1899, convertido pequenos Estados como as
apostada na exploração da América Latina.
Honduras e a Nicarágua em «repúblicas das bananas». Depois de 1918, este tipo
de absorção de grandes setores produtivos por parte de empresas dos EUA tor-
nou-se mais sistemático. No início da década de 20, a indústria do cobre era
A Emergência do Imperialismo dos EUA
dominada por filiais dos consórcios Anaconda e Kennecott. Na Bolívia, compa-
nhias americanas tornaram-se grandes acionistas da indústria do estanho, o prin-
Durante a maior parte do século xix, a república norte-americana fora
cipal esteio da economia, que, para todos efeitos, fora até então monopolizado
apontada, pelas elites progressistas latino-americanas, como um exemplo de
por apenas três barões do estanho, Patino, Hochschild e Aramayo; em 1922, a
modernidade esclarecida. As jovens repúblicas do Norte e do Sul também tinham
Standard Oil adquiriu várias companhias petrolíferas locais. No Peru, a explora-
interesses comuns, na medida em que eram, todas elas, antigas colónias de
ção de cobre era dominada por companhias norte-americanas, e uma filial da
monarquias europeias - receavam uma nova interferência da Europa que com-
Standard Oil controlava os campos de petróleo. Grande parte da indústria mexi-
prometesse a sua soberania enquanto nações livres. Receios deste tipo viriam a
cana do petróleo pertencia também a empresas dos EUA, que tinham ocupado o
agravar-se no decorrer do século, devido ao crescente poder económico exercido
lugar dos Britânicos após a revolução.
pela Grã-Bretanha sobre a América Latina. Ao longo do período colonial, os
O investimento na América Latina era um excelente negócio para as compa-
Britânicos tinham revelado a tendência para se apoderar de extensões territoriais
nhias dos EUA. Em troca dos meios técnicos e do capital de que a América
num ou outro lugar, como fora o caso do Belize e da Costa do Mosquito na
Latina precisava, os homens de negócios norte-americanos conseguiam levar
Nicarágua, embora afirmassem agora não ter grandes ambições territoriais na
governos nacionais com escasso poder na cena internacional a conceder-lhes
América Latina. Os receios latino-americanos eram também motivados pelos
generosos benefícios fiscais e margens de lucro muito elevadas. Assim, no
desígnios expansionistas da Rússia no Alasca e noutras áreas do noroeste do
decorrer dos anos 20, a presença estrangeira nas economias de exportação da
hemisfério; pelas tentativas algo hesitantes da Espanha de invadir o México e o
América Latina tornou-se mais visível do que antes da guerra, e a transferência
Peru, e também pela breve reocupação de Santo Domingo pelos Espanhóis nos
dos avultados lucros destas empresas para os seus países de origem abrandou o
anos 60 do século xix (Cuba e Porto Rico ainda lhes pertenciam); e, claro, pela
ritmo de crescimento da América Latina, num momento em que os mercados
ideia de Napoleão III de converter o México num Estado-cliente da França,
habituais para as suas exportações se tomavam difíceis de manter.
ambição que o levara a colocar um jovem príncipe da casa de Habsburgo num
As mudanças na economia mundial tinham, desta forma, começado a afetar
trono mexicano restaurado. Já em 1823 o presidente Monroe dos EUA avisara
a rentabilidade das economias de exportação latino-americanas muito antes da
que «os continentes americanos, pelo estado de liberdade e independência que
crise dos anos 30. A crescente concorrência à escala mundial exigia maior efici-
assumiram e mantiveram, não deverão, de futuro, ser considerados como alvos
ência e novas técnicas de produção; a queda da procura europeia e as dificulda-
de colonização por quaisquer potências europeias», e prometera apoiar qual-
des de acesso aos mercados ultramarinos deviam ter encorajado a procura de
quer país americano cuja soberania fosse ameaçada por nações exteriores ao
novos mercados e de novos produtos; os efeitos adversos da instabilidade cam-
hemisfério.
bial podiam ter sido contidos através de uma menor exposição ao comércio
A Doutrina Monroe, como ficaria conhecida, foi, de certa forma, fruto da
externo. Mas estas tendências não eram claras para os governos latino-america-
gabarolice de um país jovem ainda bastante débil dos pontos de vista económico
nos da época. E mesmo que o fossem, é pouco provável que as elites crioulas,
e militar. Mas a verdade é que articulava a noção de segurança coletiva e coope-
sendo produtoras monopolistas, se tivessem mostrado suficientemente dinâmicas
ração entre países americanos contra ameaças externas. Esta noção continuaria a
e flexíveis para se adaptarem às novas condições. Então, à medida que se agra-
influenciar a formulação da política dos EUA para com os seus vizinhos latino-
vavam os conflitos motivados pela distribuição de um produto nacional em
-americanos ao longo dos séculos xix e xx. Tornou-se a pedra angular conceptual
queda, as classes urbanas começaram a questionar o liberalismo económico que
de várias iniciativas apoiadas pelos EUA - tratados de defesa mútua, programas
sustentava o comércio de exportação.
de ajuda económica regional e conferências pan-americanas -, e acabou por ser
A presença cada vez mais forte dos negócios norte-americanos nas econo-
institucionalizada na Organização dos Estados Americanos, fundada em 1948.
mias de exportação acentuou a consciência nacionalista. Os sentimentos anti*
No entanto, durante o século xix, com os EUA a tornarem-se cada vez mais
-EUA não eram inéditos, mas até aos 30 a sua causa fora, em larga medida, de
poderosos e a estenderem as suas fronteiras à custa da América espanhola, e a
natureza política e cultural. A Grande Depressão precipitou o nacionalismo eco-
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E D E S E N V O L V I M E N !O : L' M => A N A L I S E C i l O B A L

começarem a exercer influência económica no estrangeiro, as repúblicas latino- instabilidade política prejudicasse o negócio em expansão da United Fruit Com-
-americanas tiveram a oportunidade de ver como a Doutrina Monroe podia ser pany na Nicarágua. Quando, em 1928, um acordo nacional conseguido pelos
facilmente usada para justificar a interferência dos EUA nos assuntos internos de EUA permitiu a eleição de um presidente liberal maleável, um caudilho liberal,
países mais fracos, em benefício dos seus próprios interesses. A noção calculista César Augusto Sandino, recusou-se a aceitar a solução e inicou uma campanha
de «destino óbvio», que garantira o acordo relativo às grandes planícies e à aber- de guerrilha contra o governo central e a tropa americana. No clima nacionalista
tura do «Oeste Selvagem», seria usada para justificar a conquista militar de de finais da década de 20, Sandino tornou-se um herói da resistência ao imperia-
metade do território mexicano na guerra de 1845. A existência de grandes inte lismo norte-americano. Os fuzileiros partiram, finalmente, em 1933, mas no ano
resses dos EUA na indústria do açúcar em Cuba encorajou Washington a enviar seguinte Sandino foi morto à traição por membros da Guarda Nacional da Nica-
as suas forças para «libertar» a ilha do domínio espanhol em 1898, e tanto Cuba rágua, que fora criada e treinada pelos EUA. O comandante da Guarda, Anasta-
como Porto Rico se tornaram protetorados dos EUA após negociações diretas sio Somoza, assumiu o governo em 1937 e converteu a Nicarágua num feudo
com a Espanha. A província do Panamá separar-se-ia da Colômbia em 1903, pessoal sob a égide dos EUA. Uma dinastia presidencial de caudilhos da família
graças à intervenção crucial de canhoneiras norte-americanas - havia alguns Somoza governaria o país até 1979, ano em que foi derrubada por um movi-
anos que os EUA acalentavam a ambição de construir um canal que atravessasse mento de guerrilha, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, cujo nome
o istmo, para disporem de uma passagem naval mais curta da sua costa atlântica homenageava Sandino.
para a Califórnia, região que fora, por sua vez, tomada ao México pela força O exemplo da ação dos EUA em Cuba, no Panamá ou na Nicarágua impu-
algumas décadas antes. O canal foi aberto em 1914, após o que a república do nha-se como um aviso terrível do que poderia acontecer a outras repúblicas
Panamá se tornou completamente dependente dos EUA. que contrariassem o «Colosso do Norte». Porém, na verdade, as relações dos
Tendo traçado um arco de interesse estratégico vital em redor das Caraíbas EUA com a América Latina nem sempre foram tão agressivas como sugere a
e da América Central, os EUA passaram a sentir-se na obrigação de recorrer à «diplomacia do bastão» de Theodore Roosevelt: houve períodos em que preva-
ameaça militar de tempos a tempo, para manterem os seus Estados-clientes na leceu uma genuína boa vontade. Em 1933, Franklin D. Roosevelt proclamou o
linha. Na viragem de século, era Theodore Roosevelt quem personificava a ati- desejo dos Estados Unidos de agirem como um «bom vizinho» para com a
tude farisaica dos EUA para com os seus vizinhos latino-americanos. O potencial América Latina, e esta política da Boa Vizinhança resultou na memorável deci-
imperialista da Doutrina Monroe tornou-se claro quando lhe foi acrescentado o são de Washington de não intervir no México quando em 1938 Lázaro Cárdenas
famoso Corolário Roosevelt, em 1904, que reclamava para os EUA o direito de nacionalizou a indústria petrolífera, que era controlada pelos EUA; também
agir como uma «força policial internacional» onde quer que «um mal crónico, ou lançou as fundações para a cooperação entre os EUA e a América Latina durante
uma impotência que resulte num afrouxamento geral dos atilhos da sociedade a H Guerra Mundial e nos anos seguintes.
civilizada» exigisse a intervenção de «qualquer nação civilizada». Esta postura Porém, quando a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética dominava a
justificou a intervenção do Exército norte-americano em vários países da Amé- cena mundial, em finais dos anos 40 e na década de 50, registaram-se lapsos
rica Central e das Caraíbas, levou ao derrube de governos considerados hostis estratégicos na política de Boa Vizinhança: o «bastão» seria usado na América
aos interesses dos EUA e esteve na origem da instalação de ditadores-fantoches Central e nas Caraíbas sempre que Washington suspeitasse que agentes soviéti-
que se esperava que favorecessem os investidores norte-americanos. cos estavam a tentar usar comunistas ou radicais locais para instalar regimes
Entre 1912 e 1933, por exemplo, a Nicarágua foi por várias vezes ocupada inimigos. O exemplo mais famoso foi o derrube do governo reformista de Jacobo
por fuzileiros dos EUA, encarregados de reprimir as sucessivas guerras civis que Arbenz, na Guatemala, por um exército mandatário financiado pelos EUA, em
se seguiram à queda do liberal corrupto José Santos Zelaya. Zelaya despojou o 1954. Alguns anos mais tarde, em Cuba, quando Fidel Castro derrotou o ditador
país, deixando as suas finanças caóticas nas mãos de um cobrador de impostos Fulgencio Batista, os EUA começaram por se mostrar cautelosos, mas tornaram-
alfandegários norte-americano, que tinha por missão saldar a dívida externa da -se extremamente hostis depois de Castro tentar implementar uma política eco-
Nicarágua, e de um consórcio de banqueiros nova-iorquinos, que concede- nómica radicalmente nacionalista na ilha. Em 1961, Castro autoproclamou-se
ram uma série de empréstimos tomando como garantia o sistema de caminhos marxista e aliado da União Soviética, o adversário dos EUA na cena internacio-
de ferro do país e o controlo do seu banco nacional. O vazio deixado por Zelaya nal, o que causou um profundo alarme em Washington, e foi então imposto um
foi tal que as violentas lutas pelo poder, entre caudilhos liberais e conservado- bloqueio com vista a asfixiar a economia cubana. Durante o resto da década de
res, ressurgiam sempre que os fuzileiros retiravam. Os EUA receavam que a 60, a CIA fez o que pôde para se livrar de Castro, apoiando a desastrosa invasão

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANALISE GLOBAL

da baía dos Porcos, levada a cabo por exilados cubanos, e empreendendo urna
interesses importantes, do ponto de vista da segurança, na bacia das Caraíbas e
série de tentativas, por vezes caricatas, de o assassinar (entre as quais se incluiu
no istmo da América Central. A Aiiança para o Progresso do presidente Kennedy
um plano para o fazer explodir por meio de um charuto armadilhado).
foi muito mais do que um exercício cínico de calculismo imperialista; represen-
A ansiedade dos Norte-americanos quanto à possibilidade de surgir «urna
tou uma tentativa de promover na América Latina, mediante um processo pací-
outra Cuba» dominou a política dos EUA para com a América Latina durante três
fico de reforma, os valores democráticos que os EUA afirmavam seguir. E em
décadas. Washington adotou uma abordagem de «cenoura e bastão», cortejando
finais dos anos 70, quando a maioria das repúblicas latino-americanas era gover-
governos amigáveis com empréstimos e ajuda — como foi o caso da Aliança para
nada por juntas militares determinadas a suprimir a ação das guerrilhas, o presi-
o Progresso do presidente Kennedy, nos anos 60 (ver p. 362) -, ao mesmo tempo
dente Cárter seguiu a política de fazer a ajuda à América Latina depender do
que castigava, onde fosse possível, os países que davam sinais de simpatia para
respeito pelos direitos humanos. O facto de Cárter ter retkado o apoio financeiro
com o seu grande inimigo comunista. Os Cubanos, por sua vez, compraziam-se
e militar ao regime de Somoza, na Nicarágua, foi decisivo para o sucesso dos
em provocar o «Colosso do Norte»: em 1967, por exemplo, quando os EUA
sandinistas no derrube do ditador e na criação de um governo revolucionário, que
estavam envolvidos numa guerra sangrenta contra os comunistas no Vietname,
Cárter auxiliou com um pacote de ajuda de mais de $80 milhões.
Che Guevara, que se encontrava escondido na Bolívia, declarou a sua intenção
A atitude imperialista dos EUA relativamente à América Latina era moti-
de «criar um Segundo ou Terceiro Vietname» no continente americano iniciando
vada, essencialmente, por dois fatores. Em primeiro lugar, a vontade de defender
uma guerra de guerrilha. Não tardou a ser perseguido e morto por soldados boli-
os seus investimentos cada vez mais avultados na região, e de salvaguardar
vianos treinados pelos EUA. A partir de então, os EUA investiram mais nos
passagens marítimas para os seus navios nas Caraíbas e através do canal do
programas de treino e apoio militar a governos anticomunistas na América
Panamá; era esta a principal preocupação de Theodore Roosevelt nos primeiros
Latina, com o objetivo de ajudar a suprimir ou a conter os muitos movimentos
anos do século. Em segundo lugar, o receio de infiltração comunista nas Améri-
de guerrilha - muitos dos quais inspirados pelo exemplo de Che e da Revolução
cas; este sentimento resultava, sobretudo, da Guerra Fria, mas foi agravado pela
Cubana - que surgiram por todo o continente em finais dos anos 60 e na década
Revolução Cubana e pelas lutas de guerrilha que depois serviram de inspiração
seguinte.
ao continente.
Este receio profundo de «uma outra Cuba» motivou intervenções diretas e
Contudo, em finais da década de 80, ambos os fatores tinham perdido muita
indiretas dos EUA nos assuntos internos de países do seu «quintal» das Caraíbas
da sua relevância. Nos anos 50, a América Latina fora uma região privilegiada
e da América Central: em 1965, enviaram fuzileiros para a República Domini-
do investimento norte-americano no estrangeiro; nos anos 80, o investimento dos
cana, para pôr fim a uma rebelião de oficiais reformistas (que poderiam ter apoio
Estados Unidos na América Latina era bastante inferior ao que se registava no
comunista) contra os herdeiros políticos corruptos do poderoso Rafael Trujillo,
Canadá e menos de metade do destinado à Europa Ocidental. Além disso, as
que presidira a uma grotesca tirania de 30 anos, até ser assassinado em 1961; nos
principais áreas-alvo dos investidores norte-americanos na década de 90 seriam
anos 70, apoiaram uma série de ditadores repulsivos e de juntas militares na
provavelmente as novas democracias da Europa de Leste, já para não falar da
América Central, com vista a conter guerras de guerrilha na Nicarágua, em
União Soviética propriamente dita, que, liderada pelo seu presidente reformista
El Salvador e na Guatemala; a tradicional diplomacia do bastão inspirou a polí-
Mikhail Gorbachev, procurava ativamente seduzir o capital e a tecnologia norte -
tica do presidente Reagan para com os sandinistas da Nicarágua, nos anos 80,
-americanos. Com o colapso do comunismo na Europa de Leste, em 1989, e
quando insistiu em financiar um exército mandatário numa guerra de desgaste
dadas as dificuldades da União Soviética em desmantelar a sua economia de
contra o governo nicaraguano marxista, a partir de bases nas Honduras e na
planeamento central, a ameaça comunista internacional esvaneceu-se rapida-
Costa Rica, apesar da frequente oposição no Congresso dos EUA.
mente e a década que se avizinhava parecia prometer o fim da rivalidade entre
A par destes exemplos de comportamento imperialista, convém referir outros
as duas potências. Os dois principais motivos para o «imperialismo» norte-
exemplos de atitudes mais positivas e construtivas relativamente à América
-americano haviam desaparecido ou tinham, pelo menos, perdido grande parte
Latina. Os EUA viam-se, afinal, como os porta-estandartes da liberdade e
da sua razão de ser, e era agora possível conceber uma nova era de boa vontade
da democracia no mundo, e é compreensível que quisessem defender esses valo-
mútua entre os EUA e os países da América Latina.
res quando os viam ameaçados por um inimigo ideológico declaradamente hos-
De qualquer forma, no começo do século xx, a diplomacia do bastão de
til, como a União Soviética - especialmente no hemisfério norte, onde desde
Theodore Roosevelt contribuiu para o fim do liberalismo como ideologia
1823 se declaravam empenhados em resistir a ameaças externas e onde tinham
política e económica na América Latina. Após a guerra em que EUA e Espanha
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HISTORIA DA AMERICA LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA ANALISE GLOBAL

disputaram Cuba, em 1898, até as elites crioulas começaram a ver os seus vizi- América Latina que se encontravam em mãos estrangeiras; a rejeição da perspe-
nhos mais como uma ameaça à sua herança cultural do que como um modelo a tiva materialista e utilitária do capitalismo em favor de uma cultura nacional
emular. Tratou-se de um fenómeno pan-hispânico, que teve o seu paralelo em autêntica assente em valores humanos e espirituais.
Espanha no meio intelectual da «Geração de 1898», cuja reflexão sobre o desafio Entre as classes urbanas, o nacionalismo e a antipatia pelos EUA foram con-
da modernidade fez fermentar ideias, revolucionárias e reacionárias, que torna vertidos em armas políticas contra as oligarquias tradicionais dos proprietários
ram a política espanhola do início do século xx extraordinariamente instável e de terras e dos comerciantes de importação-exportação. Com efeito, os políticos
que conduziram, indiretamente, à guerra civil de 1936. da classe média urbana encontraram nas elites proprietárias de terras e nos capi-
As ansiedades culturais da América Latina foram, em 1900, articuladas pelo talistas estrangeiros inimigos bem visíveis, a quem podiam culpar pelo desem-
ensaísta político uruguaio José Enrique Rodo em Ariel, um livro que teria uma prego e pela inflação, que se haviam generalizado na conturbada economia
considerável influência em todo o mundo hispânico (ver p. 316-317). A obra de mundial após a Guerra de 1914-18. Do mesmo modo, ideólogos de esquerda e
Rodo foi, na verdade, uma tentativa desesperada de defesa do espírito senhorial de direita recomendavam a divisão das grandes propriedades, bem como a nacio-
crioulo perante a ascensão dos EUA, nação descrita como uma potência vigorosa nalização das companhias mineiras e petrolíferas. A carga emotiva de vendepa-
e, todavia, bárbara, caracterizada por um liberalismo individualista extremo que tria tendia a ser usada por políticos nacionalistas contra compatriotas que acusa-
levara ao desaparecimento das hierarquias sociais e que produzira uma inútil vam de ter abdicado da sua herança a troco de dinheiro estrangeiro.
democracia de massas e um capitalismo industrial amoral. (Em 1929, o espanhol Algumas destas ideologias eminentemente urbanas tinham, como o próprio
José Ortega y Gasset daria expressão a uma inquietação análoga, motivada pelo liberalismo, sido importadas da Europa. À esquerda, o socialismo e, cada vez
impacto do homem comum sobre a condução da política, no seu famoso ensaio mais, o comunismo, atraíam intelectuais da classe média. Com o eclipse do anar-
La rebelión de Ias masas.) cossindicalismo, depois da derrota das grandes greves dos anos 1917-20, estas
ideologias começaram a propagar-se entre a classe operária organizada — em
muitas repúblicas, em finais da década de 20 formaram-se partidos comunistas.
Reações Nacionalistas contra o Liberalismo Mas dada a pequena dimensão do operariado industrial e a amorfia das classes
mais baixas nas cidades, as ideologias de esquerda não teriam grande impacto
Semelhantes preocupações com a rudeza da sociedade dos EUA assinalaram até depois dos anos 40; só conseguiriam impor-se quando a indústria estivesse
o início da dúvida entre as elites liberais governantes. Porém, duvidar do valor mais desenvolvida e quando o fascismo tivesse perdido a credibilidade, após a
do liberalismo era pôr em questão o percurso histórico seguido pelos moderni- derrota das potências do Eixo na II Guerra Mundial. De um modo geral, as clas-
zadores da América Latina desde a independência. Com efeito, os ideais de ses médias-baixas, a população rural que migrava para as cidades, e os muitos
liberalismo e democracia, frutos do pensamento iluminista europeu, tinham imigrantes europeus que não tinham sido bem-sucedidos no Novo Mundo foram
inspirado os líderes das guerras da independência contra a Espanha. Tinham sido atraídos pelos movimentos próximos do fascismo que entre os anos 20 e os 40
precisos mais 40 ou 50 anos para que o liberalismo finalmente substituísse o surgiram, sob diferentes capas, em todos os países da América Latina; a sua
conservadorismo católico hispânico como a ideologia orientadora das novas ideologia corporativista, autoritária, coincidia frequentemente - como se verifi-
repúblicas; no entanto, apesar de tudo isto, o consenso da elite em torno dos cou em Espanha e em Portugal no mesmo período - com o catolicismo social.
princípios liberais começou a fraturar-se no começo do século xx. Nos anos 30, Em países com populações índias e mestiças numerosas, as ideologias anti-
o liberalismo estava intelectualmente desacreditado, embora não existisse uma liberais teriam um carácter mais original, na medida em que apelavam à recupe-
ideologia capaz de o substituir efetivamente. As repúblicas latino-americanas ração da cultura tradicional das comunidades indígenas. O indigenismo podia
ficaram, em suma, desprovidas de um leme ideológico, e o resultado seria uma assumir formas de esquerda ou de direita, e encontrava-se também imbuído de
instabilidade política crónica, pois deixou de existir a base para um consenso a ideias corporativistas e autoritárias. A Revolução Mexicana - e, em particular, a
partir do qual o Estado pudesse construir a sua autoridade. luta dos camponeses índios de Emiliano Zapata para reaverem as suas terras
As muitas ideologias que competiam para ocupar o vazio resultante da comunitárias ancestrais - impulsionou a defesa dos direitos índios por toda a
estranha morte do liberalismo latino-americano convergiam numa série de pooj, América Latina. O primeiro ministro da Cultura após a revolução, José Vascon-
tos: a substituição do individualismo por uma comunidade socialmente integrada celos, um homem profundamente influenciado por Ariel, de Rodo, levou o indi-
e conduzida pelo Estado; a necessidade de recuperar os recursos naturais da genismo para o centro da política dos anos 20, ao instigar uma campanha do

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

governo para integrar o índio e o mestiço na cultura nacional. Mas os vencedores refletidas nas forças armadas, e a natureza da intervenção militar no governo era
da Revolução Mexicana hesitavam entre a retórica socialista e a mobilização determinada tanto pela dinâmica das convicções políticas da casta dos oficiais
política ao estilo fascista. Quando o presidente Calles estava no poder, usaram-se como por pressões externas. O Exército podia apoiar os nacionalistas urbanos ou
grupos de rufiões para intimidar os opositores ao regime, e foram lançadas as as elites da economia de exportação, recaindo a sua escolha sobre o grupo de
fundações de um Estado corporativo de partido único. Em finais dos anos 30, o interesses que lhe parecesse reunir melhores condições para garantir um pro-
sucessor de Calles, Lázaro Cárdenas, prosseguiu com a institucionalização do gresso ordeiro.
Estado corporativo, mas imprimiu ao seu nacionalismo um cunho mais socialista Em países como o Brasil, o Chile ou a Argentina, onde as populações urbanas
e estruturou a sua reforma agrária com base nos moldes tradicionais índios de eram relativamente numerosas e politicamente ativas, nos anos 20 o nacionalismo
posse da terra. começou a influenciar os oficiais de baixa patente, embora as figuras de alta
No Peru surgiram vários talentosos ideólogos do indigenismo, como Manuel patente continuassem leais à ordem liberal. Mas quando as economias de expor-
González Prada, Luis Valcárcel, José Carlos Mariátegui e Víctor Raul Haya de tação começaram a vacilar na década de 20, e especialmente após o crash de Wall
Ia Torre, que partilhavam uma visão da cultura índia como a fonte dos verdadei- Street, as forças armadas passaram a intervir na política. Em alguns casos, o seu
ros valores nacionais. Mariátegui e Haya de Ia Torre conseguiram traduzir as objetivo era escorar a economia de exportação, mas, na maioria das vezes, o
suas ideias em movimentos políticos duradouros. Em 1929, Mariátegui fun- Exército repudiava o liberalismo e levava a cabo uma revolução nacionalista.
dou um partido socialista, que mais tarde se filiou na Internacional Comunista. De entre os países mais importantes, o Chile foi o primeiro a ter uma revo-
Este marxismo era, no entanto, permeado por preocupações arielistas quanto à lução nacionalista liderada pelo Exército. Em 1924, um golpe de Estado pôs fim
integridade cultural. Inspirava-se no carácter comunal do Estado inça e acredi- à política bafienta da república parlamentar oligárquica e instaurou uma ditadura
tava na revitalização das comunidades índias através da redistribuição de terra. ao estilo fascista, encabeçada por Carlos Ibánez. No entanto, em 1931, o ditador
O Indigenismo de Haya de Ia Torre corporizou-se na APRA (Alianza Popular foi vítima da perturbação económica originada pela Depressão. Seguiu-se um
Revolucionaria Americana), originalmente concebida como uma aliança de toda período de instabilidade, durante o qual se registou uma nova tentativa de revo-
a «Indo-América» contra o imperialismo dos EUA, mas que, na verdade, só lução nacionalista, e depois outra intervenção militar chefiada por Marmaduke
ganhou raízes no Peru, como partido predominantemente de classe média que Grove, que por um breve período instaurou uma república socialista.
defendia a regeneração nacional através da expropriação de grandes terras e de Na Argentina, a política eleitoral sucumbiu a um golpe de Estado em 1930,
companhias estrangeiras, e através da socialização da economia. mas a junta militar não conseguiu chegar a um consenso quanto à política a
seguir e a revolução nacionalista teve de esperar até 1943, quando outra revolta
militar abriu caminho para um Estado corporativo pleno liderado por Juan
Revoluções Nacionalistas Domingo Perón. Em 1930, as forças armadas brasileiras entregaram a presidên-
cia a Getúlio Vargas, que se dedicou à construção de um Estado com as típicas
Os políticos nacionalistas não tinham, em parte alguma, força suficiente para características corporativas do fascismo. Até Cuba, que possuía uma das econo-
conquistar o poder pelas urnas, visto que o processo eleitoral era controlado mias de exportação mais abrangentes, assistiu, em 1933, a uma revolução nacio-
pelos partidos oligárquicos, que conseguiam manipular os votos através de redes nalista falhada levada a cabo por oficiais subalternos. Caso bem diferente foi o
abrangentes de clientela política, especialmente nas regiões rurais. Foram, então, do Peru, onde nos anos 30 e 40 sucessivos caudilhos militares se serviram da
as forças armadas que se tornaram determinantes para o acesso dos movimentos força e da fraude para afastar do poder a APRA, nacionalista, liderada por Haya
nacionalistas ao poder, a partir de meados da década de 20. de Ia Torre, e onde o recurso periódico a homens fortes do Exército permitiu que
As forças armadas latino-americanas eram bastante autónomas relativa- as elites liberais mantivessem uma economia de exportação aberta até 1968,
mente à sociedade civil. Os oficiais do Exército, embora predominantemente da altura em que as próprias forças armadas optaram inesperadamente por uma
classe média, possuíam uma mentalidade de casta que os mantinha à parte dos revolução nacionalista radical.
restantes grupos sociais. Ainda assim, as forças armadas viam-se como as guar-
diãs da honra da nação, e, nessa medida, estavam recetivas às ideias nacionalis- *
tas, mas preocupavam-se igualmente com «a ordem e o progresso», o lema das * *
elites liberais. Com efeito, as divisões ideológicas da sociedade civil estavam

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

Nacionalismo Económico lecimento da indústria do aço e da indústria elétrica, pelo que, a partir dos anos
40, as forças armadas do Brasil e da Argentina pressionaram os seus governos
O choque da Depressão convenceu os nacionalistas de que a América Latina
para criarem uma base industrial. Simultaneamente, a eclosão da guerra gerou
se encontrava numa situação de permanente desvantagem relativamente aos
uma intensa procura internacional de matérias-primas e géneros alimentícios, o
países industrializados. Os preços de exportação dependiam excessivamente da
que Impulsionou as economias de exportação da América Latina. Por outro lado,
procura ultramarina e, em qualquer dos casos, o valor das exportações latino-
com a guerra no estrangeiro a reduzir o fluxo de importações, especialmente
-americanas entrara num longo processo de declínio. Isto tornava a região extre-
artigos de luxo, os países latino-americanos tiveram a oportunidade de criar
mamente vulnerável às curvas descendentes do comércio mundial, quando os
grandes excedentes na sua balança de pagamentos: isto permitiu que as dívidas
lucros obtidos na exportação registavam uma queda acentuada e os bens indus-
fossem saldadas e que se acumulasse capital nacional para investimento em pro-
triais eram importados a preços muito elevados. Por outro lado, a dificuldade de
jetos industriais.
acesso aos mercados da Europa e dos EUA levou os nacionalistas a apercebe-
Em todo este período, os EUA desempenharam um papel decisivo no incen-
rem-se de como as economias latino-americanas estavam sujeitas a decisões
tivo ao desenvolvimento industrial. Necessitando das matérias-primas latino-
políticas tomadas no estrangeiro.
-americanas para o seu esforço de guerra, os EUA facultaram empréstimos,
Até finais dos anos 30, o nacionalismo manteve um carácter essencialmente
apoio técnico especializado e equipamento para auxiliar os países da América
cultural e político. A hostilidade aos interesses estrangeiros tornara-se mais uma
Latina nos seus programas de industrialização. Nos primeiros anos da década de
arma tática nas incessantes lutas pelo poder entre as várias facões políticas, e era
40, foram muitas as missões dos EUA enviadas à região para assinar acordos de
essencialmente um orgulho nacional ferido que estava por detrás da vontade de
comércio. As principais repúblicas declararam obedientemente guerra às potên-
expropriar os recursos minerais e agrários controlados pelo capital estrangeiro.
cias do Eixo e abasteceram os Aliados de minérios e bens de consumo. A exceção
Mas depois da experiência da Grande Depressão, em países como o Brasil e a
digna de nota foi a Argentina, cuja simpatia, no seio da junta militar, pela Itália
Argentina os nacionalistas começaram a defender que era a própria estrutura
e pela Alemanha a levou a adotar uma neutralidade incómoda, prescindindo,
agrária da economia que gerava a subserviência aos interesses estrangeiros.
assim, do apoio técnico e financeiro dos EUA que Getúlio Vargas obteve para o
O desenvolvimento da indústria manufatureira começou a ser visto como uma
Brasil. A falta do apoio norte-americano foi um dos motivos para as dificuldades
saída para estas dificuldades, visto que as economias nacionais ficariam menos
económicas com que o general Perón se debateu nos anos do pós-guerra e que
dependentes das importações, podendo mais facilmente bastar-se a si próprias
contribuíram para a sua queda em 1955. Contudo, apesar de os EUA terem aju-
em tempos de recessão global.
dado os países latino-americanos a iniciarem o seu desenvolvimento industrial,
Embora os principais países tivessem já um setor industrial de dimensão
a política de industrialização propriamente dita foi o produto tardio do naciona-
considerável, o crescimento da indústria não fora planeado e a sua importância
lismo que vinha evoluindo desde a viragem de século e que se intensificara nos
era secundária relativamente à da economia de exportação, uma vez que estava
anos 20 e 30.
praticamente confinado a manufaturas ligeiras como têxteis, artigos de pele e
Esta evolução prosseguiu após a II Guerra Mundial, quando a industrializa-
equipamentos domésticos. Mas os nacionalistas propunham-se agora lançar um
ção foi incorporada numa abrangente teoria nacionalista das relações da América
programa de industrialização estabelecido pelo Estado e concebido para desen-
Latina com o mundo exterior. A teoria foi formulada pelos economistas da
volver a capacidade de produzir internamente toda a gama de produtos indus-
Comissão Económica para a América Latina (ECLA), fundada em Santiago do
triais que tinham de ser importados do estrangeiro. Tratava-se de um naciona-
Chile pelas Nações Unidas em 1948. O mais distinto destes teóricos da ECLA
lismo económico, e o seu objetivo era alcançar uma verdadeira soberania
foi o argentino Raul Prebisch, que fora o diretor-geral do Banco Central da
nacional através da autossuficiência industrial.
Argentina após a sua fundação em 1934.
A II Guerra Mundial seria um ponto de viragem para a industrialização
A teoria de Prebisch-ECLA dividia o mundo entre um «centro» ou «metró-
latino-americana. O agravamento da situação internacional exacerbara a rivali-
pole» de nações industrializadas desenvolvidas e uma «periferia» constituída
dade histórica entre as forças armadas do Brasil e da Argentina. Apercebendo-se
pelos países que apenas produziam matérias-primas e bens agrícolas. Tendo os
de que se avizinhava um conflito na Europa, as elites militares de ambos os
produtos industriais um valor mais elevado do que os agrícolas, os países perifé-
países quiseram desenvolver as suas próprias indústrias de armamento, em vez
ricos ficavam estruturalmente dependentes do centro industrializado, onde eram
de contarem com as importações. Mas a produção de armas dependia do estabe-
tomadas as decisões cruciais relativas ao comércio internacional. Por essa razão,
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO! UMA ANÁLISE GLOBAL

os países periféricos não conseguiam vencer a sua dependência económica e importação elevadas sobre as rnanufaturas estrangeiras que planeava substituir
alcançar o crescimento económico sem recorrer a terceiros. A solução era refor- por produtos locais. Ao mesmo tempo, as indústrias nacionais protegidas eram
mar a estrutura da economia mundial através de acordos internacionais destina- estimuladas através do crédito concedido por bancos públicos e através de preços
dos a suportar os preços dos bens primários, ao mesmo tempo que se estimulava garantidos. Para incentivar a procura destes bens industriais de produção dispen-
o desenvolvimento industrial nos países periféricos através de concessões e diosa, procedia-se ao controlo de salários e de preços, e manipulava-se as taxas
crédito a longo prazo facultados pelo centro. Nos países periféricos propriamente de tributação e de câmbio. O Estado tinha também de investir substancialmente
ditos, o Estado deveria proceder a reformas estruturais que criassem condições na criação de infraestruturas de transporte e energia. A ISI implicava, assim, um
económicas adequadas ao desenvolvimento industrial: o mercado interno devia enorme acréscimo dos compromissos do Estado e um correspondente aumento
ser alargado através da reforma agrária, e as receitas deviam ser redistribuídas da despesa pública.
por forma a aumentar o poder de compra da maioria da população. Embora o objetivo final deste modelo fosse a autossuficiência económica, o
A teoria da dependência estrutural modificaria a perceção latino-americana processo envolvia necessariamente múltiplos contactos com os mercados mun-
da sua posição no mundo, pois contestava a doutrina liberal clássica da vantagem diais. A tecnologia e a mão de obra especializada tinham de ser importadas do
comparativa, que durante tanto tempo servira para justificar as economias de estrangeiro para equipar e pôr em funcionamento as fábricas; e os avultados
exportação. Complacentemente apoiada por elites agromercantilistas que dela investimentos de capital necessários à implementação da ISI só podiam vir de
retiravam grande proveito, a doutrina da vantagem comparativa parecia ignorar duas fontes - lucros obtidos através da economia de exportação e empréstimos
a possibilidade de se proceder ativamente à mudança do destino económico de estrangeiros. Na realidade, a tendência do desenvolvimento ISI era a de que as
um país. Mas os teóricos da ECLA, em sintonia com o keynesianismo, que foi importações excedessem as exportações, uma vez que a indústria interna depen-
tão influente nos anos do pós-guerra na Europa, acreditavam que o Estado devia dia da tecnologia estrangeira. Os governos procuravam aliviar o fardo que recaía
desempenhar um papel orientador na transformação da economia, tanto no plano sobre os industriais mantendo as taxas de câmbio artificialmente elevadas, de
interno como através da cooperação internacional. (Afinal, a ECLA era uma modo a conter o preço das importações. Mas esta política originava défices sis-
agência das Nações Unidas.) temáticos na balança de pagamentos, pois as taxas cambiais elevadas faziam
O estatismo da ECLA tomava-se evidente, por exemplo, na sua convicção subir o preço das exportações latino-americanas nos mercados mundiais, redu-
de que os influxos de capital do exterior deviam provir de governos estrangeiros zindo desse modo os lucros obtidos no exterior. Estes défices da balança de
na forma de empréstimos e de subsídios, e não de fontes privadas. A esta pers- pagamentos só podiam ser suportados de duas formas: contraindo empréstimos
petiva opunham-se os EUA, que não apreciavam o controlo do Estado e que no estrangeiro ou cunhando moeda. Daqui resultavam dívidas externas cada vez
queriam um papel mais relevante para a iniciativa privada. Uma vez que os EUA mais avultadas e uma inflação crónica - os dois flagelos de todos os países
seriam a principal influência económica na América Latina após a guerra, o facto latino-americanos em processo de industrialização, independentemente da natu-
de as suas posições divergirem das da ECLA teve um efeito desestabilizador na reza política do regime.
condução da política e na gestão económica, pois os governos latino-americanos Ao longo das décadas de 40 e 50, a política económica foi dominada pelo
tinham de lidar com a opinião nacionalista influenciada pela ECLA e, ao mesmo impulso para a industrialização. Em vários países latino-americanos, a indústria
tempo, com a exigência de um mercado livre por parte de empresas e investido- manufatureira cresceu a um ritmo muito mais rápido do que a agricultura. Entre
res privados norte-americanos. 1945 e 1960, a taxa de crescimento industrial anual do Brasil foi, em média, de
9,4%, enquanto a taxa de crescimento agrícola foi de apenas 4%. Os números
correspondentes na Venezuela foram de 8,5% para 4,7%; na Colômbia, 7,2%
Industrialização por Substituição de Importações (757) para 2,1%; no Peru, 6,6% para 3%. Até nas repúblicas do café e da banana da
América Central a produção industrial ultrapassou a agricultura: na Nicarágua,
Terminada a II Guerra Mundial, muitos governos, seguindo o exemplo do os números foram de 7,8% para 5,5%: em El Salvador, 7,3% para 2,5%: nas
Brasil, da Argentina e do México, e com o apoio dos EUA, decidiram industria- Honduras, 8,5% para 1,7%.
lizar as suas economias através da substituição de importações. A Industrializa- O desenvolvimento industrial trouxe muitas vantagens. Os salários pratica-
ção por Substituição de Importações (ISI) requeria a intervenção do Estado na dos na indústria eram até 4 ou 5% mais altos do que os praticados na agricultura.
economia em diversas frentes. Em primeiro lugar, o Estado cobrava taxas de O nível de vida de um trabalhador industrial era, portanto, superior ao de um

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO! UMA ANÁLISE GLOBAL

camponês: o primeiro tinha uma melhor alimentação, acesso facilitado à educa- de tecnologia originava défices comerciais e preços mais elevados, o que cau-
ção, à habitação e aos cuidados de saúde, gozava de mais tempo livre e de maior sava agitação entre o operariado. Os governos viam-se, então, obrigados a satis-
liberdade pessoal, dispondo ainda de um leque mais vasto de bens de consumo. fazer as exigências salariais sem aumentarem a inflação. O legado nacionalista
A atração exercida pela cidade — onde invariavelmente se concentrava a indústria do período entre as guerras introduziu também algumas distorções no processo
- tornou-se, assim, bastante mais forte, em virtude do desenvolvimento deste de ISI. Procurando a autossuficiência, os governos tendiam a proteger excessi-
setor. As cidades latino-americanas podiam oferecer toda uma série de dispositi- vamente a indústria nacional, reduzindo inadvertidamente a sua eficácia produ-
vos sociais e de serviços técnicos - hospitais, escolas, lojas, eletricidade, água tiva ao privá-la do estímulo da concorrência. O protecionismo em excesso tornou
canalizada e rede de esgotos — que faltavam nas áreas rurais. as manufaturas internas muito caras e manteve os bens de consumo fora do
Ao longo da década de 50, a população da América Latina cresceu a um alcance da maioria da população; ironicamente, este limite autoimposto ao cres-
ritmo anual de 4,5% nas cidades, e de apenas 1,5% nas regiões rurais. Em 1950, cimento do mercado interno conteve a expansão da indústria interna propria-
61 % da população latino-americana vivia no campo; em 1960, este número caíra mente dita.
para 53,8%. Na Venezuela e no México, os anos 50 viram a população da cidade A eficácia do setor industrial foi também comprometida pelos laços de
ultrapassar a população do campo. Na Argentina, no Uruguai e no Chile, onde a grande proximidade estabelecidos entre o Estado e a indústria interna. As rela-
população urbana era já numericamente superior à rural, as cidades continuaram ções tradicionais de patrocínio e clientelismo foram reforçadas nas situações era
a crescer, enquanto a população rural passou a situar-se abaixo dos 40% (no que os funcionários públicos eram responsáveis pela adjudicação de contratos,
Uruguai era de apenas 29,1% em 1960) (*). subsídios e licenças a empresários; as oportunidades para suborno e corrupção
Durante e após a II Guerra Mundial, os principais países latino-americanos eram, obviamente, frequentes. Talvez o fator político mais importante tenha sido
sofreram uma profunda revolução industrial. Como todas as revoluções indus- o preconceito contra as exportações, que, de um modo geral, caracterizava os
triais, também esta causou deslocaiizações de monta e uma enorme ansiedade governos nacionalistas. Uma vez que a ISI fora adotada pelas juntas militares e
social. Registaram-se, no entanto, fatores históricos e políticos que tornaram a pelos grupos de interesse urbanos como uma alternativa à economia de exporta-
ISI excecionalmente traumática. Os países da América Latina tiveram de se ção oligárquica, os estrategos do governo contrariaram as exportações impondo-
industrializar numa economia internacional onde havia já concorrentes indus- -Ihes uma pesada carga fiscal e canalizando recursos para a indústria manufatu-
triais em fase de maturidade e extraordinariamente poderosos. Para criarem uma reira em detrimento da agricultura. Este preconceito antiexportação originou
base industrial, os países latino-americanos tiveram de acumular capital para programas de desenvolvimento que padeciam de unia combinação fatal: fraca
investimento, construir infraestruturas e adquirir tecnologia e mão de obra espe- produtividade industrial e setores de exportação em declínio.
cializada. Não podiam fazer nada disto sozinhos, e viram-se em larga medida
dependentes de recursos estrangeiros.
Não havia, de resto, alternativa, pois só o Estado podia desempenhar o papel A Crise Rural
principal no desenvolvimento da indústria. As elites económicas tradicionais
estavam envolvidas no comércio e na agricultura, e não viam incentivo para O efeito mais negativo da ISI, tal como foi aplicada nas décadas que se
correr riscos em iniciativas do seíor industrial. Contudo, as divisas obtidas por seguiram à II Guerra Mundial, foi a grave crise que provocou nas regiões rurais.
estas elites através do comércio de exportação constituíam a principal fonte de A agricultura tinha uma importância vital para a América Latina, porque, para
capital interno para o programa estatal de investimento na indústria. Em suma, o além de providenciar alimentos baratos para as crescentes massas urbanas, cons-
desenvolvimento latino-americano implicava necessariamente uma inter-relação tituía, de longe, a maior fonte de moeda estrangeira. Simplesmente, o problema
muito delicada entre o Estado, o capital estrangeiro, as elites de exportação e, da economia agrária era ser tão ineficaz quanto socialmente injusta. Era domi-
naturalmente, o setor industrial emergente. nada pela fazenda, onde muitos hectares de terra ficavam por cultivar, onde os
Embora estas relações tivessem um cariz económico, o facto de serem essen- métodos de cultivo eram antiquados e onde os proprietários não investiam o
cialmente mediadas pelo Estado significava que a ISI era particularmente vulne- suficiente. Historicamente, a fazenda expandira-se invadindo as terras de peque-
rável a pressões políticas. Como vimos, a extrema dependência das importações nos proprietários e de comunidades índias, e esta tendência tão antiga acelerara-
-se após a dissolução de propriedades da Igreja e de terras comunitárias índias
(') Para mais dados sobre urbanização, ver Anexo Estatístico, quadro l.
pelos governos liberais em finais do século xix. Havia, assim, nas zonas rurais,

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

um problema enraizado de indisponibilidade de terras e de distribuição desigual


índios do que os hacendados; outra consequência foi a queda das remunerações
das mesmas.
praticadas na agricultura, que tornou a vida dos assalariados ainda mais difícil.
Os modernizadores estavam há muito cientes da necessidade de uma reforma
À medida que os habitantes das regiões rurais partiam para as cidades em
agrária, tanto por uma questão de produtividade como de justiça social. Mas
busca de melhores condições de vida, a fazenda expandia-se e consolidava-se.
depararam com a dificuldade de reorganizar a agricultura sem provocar urna
A mecanização, com que se pretendia tomar a agricultura mais lucrativa, reduziu
desastrosa queda da produção: como poderiam proceder à divisão das fazen-
a mão de obra rural, intensificando o fluxo migratório para as zonas urbanas. Foi
das quando era delas que dependia a vitalidade da economia? Os economistas
destinada mais terra ao cultivo de espécies rentáveis para exportação, o que
nacionalistas do século xx defendiam a reforma agrária como pré-requisito para
reduziu progressivamente a área dispensada a produtos como o milho ou a
uma sociedade justa, mas sempre que se redistribuía terra, a produção diminuía
batata, que tradicionalmente alimentavam o grosso da população. Nos anos 60,
e as exportações caíam, o que gerava problemas sérios em toda a «conomia,
países como o México tinham atingido um ponto em que já não conseguiam
inclusive entre as massas urbanas. No México, por exemplo, a reforma agrária
produzir alimento suficiente para abastecer convenientemente as suas popula-
implementada após a revolução ficou, de um modo geral, confinada às áreas de
ções em rápido crescimento. Tendo sido autossuficientes, ou até exportadores de
grandes comunidades índias, e, ainda assim, começou a abrandar no início dos
géneros alimentícios, muitos países da América Latina tomaram-se importado-
anos 40, até se tornar um mero símbolo da política de aparências do partido no
res, vendo-se obrigados a canalizar para este fim uma parte dos preciosos, e cada
poder. Em países como a Bolívia e a Guatemala, na década de 50, ou como o
vez mais reduzidos, lucros que obtinham com as exportações (*).
Chile e o Peru, nas décadas de 60 e 70, a redistribuição de terras causou conflitos
políticos graves e fortes perturbações económicas, levando a uma queda da pro-
dução de alimentos e das exportações de bens agrícolas. O Brasil tentou contor-
A Crise Geral do Desenvolvimento
nar a oposição dos proprietários à reforma agrária encorajando os camponeses a
desbravar as florestas tropicais do vasto interior do país, com vista a libertar
A crise rural deixou as cidades saturadas de camponeses pobres à procura de
novas extensões para povoamento. Contudo, a partir dos anos 80, esta política
trabalho. Em qualquer processo normal de desenvolvimento da indústria, estas
foi alvo de censura por parte da comunidade internacional, uma vez que amea-
pessoas vindas do campo constituiriam mão de obra para as fábricas. No entanto,
çava de extinção as últimas tribos nómadas, ao mesmo tempo que colocava
em finais dos anos 50 - e possivelmente mais cedo no Brasil e na Argentina -,
sérios riscos ao equilíbrio ecológico de que o planeta depende. Também no
a crise no mundo rural coincidiu com uma crise da produção industrial. Assim,
Panamá a intensa procura de terra levou à destruição progressiva da floresta
o fluxo humano proveniente das regiões rurais não podia ser absorvido pela
tropical pelos colonos, e a consequente redução da pluviosidade ameaçou a
mão de obra industrial, o que originou problemas terríveis de desemprego e de
navegabilidade do canal - a artéria fundamental para a economia do país. Só em
subemprego nas cidades.
Cuba, no início dos anos 60, e na Nicarágua, duas décadas mais tarde, as grandes
A que se devia esta crise simultânea na produção industrial? Em finais dos
propriedades privadas foram divididas em cooperativas ou quintas estatais, mas
anos 50, os países mais desenvolvidos tinham atingido o limite do seu mercado
essa redistribuição só foi possível porque o poder fora previamente conquistado
interno, naquilo que geralmente se designa por fase «fácil» da substituição de
por forças revolucionárias. Mas também nestes casos a reforma agrária se fez
importações: a produção de bens de consumo não-duráveis, como têxteis e arti-
acompanhar de acentuadas quedas de produtividade. À exceção destes dois paí-
gos em pele. Requerendo estas manufaturas mão de obra em abundância e baixa
ses, nenhum governo nacionalista conseguiu levar por diante as reformas no
tecnologia, as fábricas conseguiram, com relativa facilidade, absorver os migran-
mundo rural.
tes do campo enquanto o mercado interno se expandia. Quando esta fase de
O que se verificou, na realidade, foi a transferência de capital da agricultura
expansão do mercado interno chegou ao fim, os governos podiam ter evitado o
para a indústria, devido à elevada tributação imposta pelos governos e aos preços
desemprego de duas formas. Em primeiro lugar, o mercado interno poderia ter
baixos dos bens agrícolas. Esta política teve o efeito duplamente negativo de
sido ainda mais alargado se se tivesse investido na agricultura, de modo a
minar a produtividade agrícola deixando intactas as injustiças estruturais da
aumentar o poder de compra nas zonas rurais e a estancar o fluxo de migrantes
posse de terra. Como consequência, o abandono do mundo rural transformou-se
numa verdadeira hemorragia de recursos humanos. Isto porque os maus preços
e o fraco retorno afetavam muito mais os pequenos agricultores e os aldeões (*) Para dados exemplificatívos sobre importações de géneros alimentícios, ver Anexo
Estatístico, quadro 9.
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351
HISTORIA DA AMERICA LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO! UMA ANALISE GLOBAL

rurais para as cidades. Segundo, a produção industrial poderia ter sido aumen- observaram Stephany Griffith-Jones e Oswaldo Sunkel, «a importação de capital
tada vendendo manufaturas ligeiras no estrangeiro e estabelecendo uma posição e bens intermédios necessários para produzir bens de consumo foi substituída
competitiva para os produtos latino-americanos nos mercados mundiais - urna pela importação dos próprios bens de consumo», e aí residiu o «principal fra-
estratégia de desenvolvimento que os países em processo de industrialização do casso» da política de substituição de importações. Esta foi uma das razões pelas
Extremo Oriente, como Taiwan, Hong Kong, Singapura e a Coreia do Sul, segui- quais o processo de desenvolvimento se tornou, do ponto de vista estrutural,
ram neste período. Semelhante estratégia teria, no entanto, exigido a revisão «cada vez mais dependente, vulnerável e instável» (f).
pragmática de certos aspetos da visão económica nacionalista herdada das déca- Com efeito, por volta de 1960 era já evidente que a ISI, tal como vinha sendo
das de 30 e 40. implementada desde os anos 40, não resolvera os problemas estruturais subja-
Não se procedeu, na altura, às necessárias adaptações à ISI porque estas iam centes com que as economias latino-americanas se defrontavam desde a década
contra o cerne do pensamento vigente sobre o desenvolvimento da América de 20. As exportações da região encontravam-se ainda largamente confinadas a
Latina: considerava-se que investir mais recursos no campo seria agravar a matérias-primas e géneros alimentícios, e a sua participação no comércio mun-
dependência da economia nacional das exportações, e uma política de vender dial estava em constante declínio. Entre 1948 e 1960, o volume total do comércio
manufaturas ao estrangeiro daria a ideia de se querer estender essa dependên- mundial duplicara, mas a participação da América Latina nesse comércio
cia das exportações aos produtos industriais. De qualquer forma, semelhante (excluindo o inesperado petróleo da Venezuela) caíra de 10,3% para 4,8%. Além
política não poderia ter sido implementada sem uma redução seletiva das taxas disso, esta participação em rápido declínio no comércio internacional compunha-
de importação, por forma a melhorar a eficácia das indústrias nacionais excessi- -se, em larga medida, de produtos tradicionais - algodão, açúcar, café, petróleo
vamente protegidas, para que estas se tornassem competitivas nos mercados e minerais (*) -, apesar de a procura internacional destes bens estar, de um modo
internacionais. Estes ajustamentos à ISI teriam merecido a oposição política dos geral, a decair, e de a concorrência vir cada vez mais de países africanos, asiáti-
industriais, para quem a substituição de importações significava um mercado cos e do Médio Oriente (que em muitos casos beneficiavam de um estatuto
interno cativo, subsídios governamentais e lucros elevados garantidos. Em vez preferencial para as suas exportações atribuído pela Comunidade Económica
disso, os países da América Latina decidiram intensificar o processo de substi- Europeia).
tuição de importações passando das manufaturas ligeiras diretamente à produção Os nacionalistas militares e essencialmente urbanos que vinham conquis-
de bens de consumo duráveis, como automóveis, aviões, aparelhos elétricos e tando o poder desde as décadas de 30 e de 40 não tinham, portanto, conseguido
maquinaria. eliminar as deficiências estruturais com que os oligarcas liberais e essencial-
Este processo, conhecido como a «intensificação» da substituição de impor- mente rurais se haviam batido. A posição da América Latina na economia mun-
tações, que ocorreu na América Latina entre finais dos anos 50 e princípios dos dial parecia ser ainda pior nos anos 60 do que fora nos anos 20. Os termos em
anos 70, agravou todos os problemas sociais e económicos descritos até agora. que decorria o comércio não lhe eram favoráveis: as suas exportações continua-
Isto porque a referida intensificação implicou uma mudança qualitativa na pro- vam a perder valor, ao mesmo tempo que o valor das importações sofria uma
dução da fase «fácil» da ISI, assente em mão de obra intensiva e não especiali- subida acentuada, em particular após a intensificação da ISI. Enquanto as econo-
zada e em baixa tecnologia, para a fase «difícil», com indústrias de capital mias de exportação perdiam a sua capacidade de obter lucros, o crescimento da
intensivo, mão de obra altamente especializada e alta tecnologia. Como resul- indústria nacional permanecia anémico e sem capacidade para absorver o
tado, o fluxo crescente de fugitivos da crise rural não pôde ser absorvido pela enorme excedente de mão de obra que ia chegando do campo. E assim, os países
indústria nas cidades, pelo que, na década de 60, o desemprego urbano aumentou da América Latina perceberam, de um modo geral, que o seu bolo nacional
significativamente. Além do mais, as novas indústrias exigiam importações estava a encolher precisamente quando a população aumentava mais rapida-
muito mais substanciais de equipamentos mecânicos e de capital de investi- mente do que nunca: o valor das exportações per capita era, aliás, mais baixo em
mento. A política de substituição de importações acabou por se minar a si pró- 1960 do que em 1948, e a balança de pagamentos com países estrangeiros
pria, visto que a dependência de certos bens de consumo só podia ser vencida encontrava-se em défice constante.
criando uma dependência ainda maior, em alguns casos, da importação das
máquinas e do capital necessários para a produção interna desses bens (*). Como*
(') Debt and Development Crises in Latin America: The End ofan lllusion (Oxford Uni-
versity Press: Oxford, 1986), p. 24.
(*) Para dados exemplificativos, ver Anexo Estatístico, quadro 9. ts •- (*) Para dados exemplificativos, ver Anexo Estatístico, quadro 9.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA NACIONALISMO E D E S E N V O L V I M E N T O : UMA ANÁLISE GLOBAL

Mas a força destruidora do desenvolvimento industrial avançava descon período de aproximadamente 60 anos, entre a década de 70 do século xix e os
ladamente, consumindo recursos escassos e deixando um rasto de conflitos, anos 30 do século xx, em que algumas das maiores repúblicas haviam encon-
prossecução do objetivo inalcançável da autossuficiência económica. O foi trado uma certa ordem constitucional por meio de um entendimento entre as
crescimento global dos anos 60 permitiu que as exportações fossem relativa- elites liberais e conservadoras.
mente bem-sucedidas, o que justificou o prosseguimento da ISI, apesar das suas Foi por esse consentimento oligárquico ter sido posto em causa que ocorre-
falhas. No começo da década de 70, também a fase «difícil» da ISI se esgotara ram as revoluções nacionalistas dos anos 30 e 40 nos países avançados. O resul-
nas economias avançadas da Argentina, do Brasil e do México: a produção tado dessas revoluções nacionalistas - e convém lembrar que tais revoluções
interna de bens de consumo duráveis atingira o limite de expansão na estrutura continuariam a ocorrer noutros países, ao longo das décadas seguintes - foi a
existente do mercado interno. Mais uma vez, tomava-se necessária uma nova fragmentação do poder no Estado. Embora continuassem a gerir as economias de
estratégia para o desenvolvimento industrial: enveredar pela exportação compe- exportação, as elites tradicionais tiveram de prescindir do seu controlo exclu-
titiva de manufaturas, e investir nas áreas rurais para aumentar o poder de com- sivo das instituições políticas, o que provocou uma clivagem, no Estado, entre
pra no mercado interno. poder político e influência económica. Não seria possível um novo consenso
Na realidade, a profunda crise mundial que se instalou a partir de 1973 talvez enquanto política e interesses económicos vitais estivessem em conflito.
tenha providenciado o choque externo necessário para forçar uma adaptação Também contribuiu para a fragmentação do poder o facto de as coligações
estrutural da ISI, mas os governos da América Latina mantiveram a sua linha de nacionalistas serem elas próprias compostas por grupos rivais: proprietários de
atuação durante toda a década, cobrindo défices cada vez mais elevados com terras e comerciantes, cujos interesses fundamentais continuavam Kgados à econo-
empréstimos estrangeiros, até que as taxas de juro internacionais começaram a mia de exportação; as classes médias urbanas, que eram particularmente heterogé-
subir em finais dos anos 70 e uma nova recessão mundial tornou o fardo da neas e que incluíam industriais, empresários e profissionais liberais, mas também
dívida externa insuportável. proprietários de lojas, funcionários administrativos e artesãos; o operariado indus-
trial organizado, e uma grande massa de empregados do setor dos serviços e da
burocracia do Estado. Por outro lado, à medida que o processo de industrialização
O Estado e a Política da Revolução Industrial avançava, esboçava-se uma nova divisão de interesses entre os novos capitalistas
da indústria e os sindicatos de trabalhadores. A vertente social do nacionalismo
As revoluções industriais da América Latina tinham ocorrido em virtude de tomava-o, assim, demasiado heterogéneo para evoluir no sentido de uma ideologia
uma transferência do poder estatal, que passara das elites da terra e do setor política coesa: agradava a diferentes classes por diferentes razões e em diferentes
mercantil para coligações nacionais de proprietários de terra dissidentes, para as momentos, e nem mesmo um Getúlio Vargas no Brasil ou um Juan Perón na
classes médias e para o operariado industrial organizado. Esta transferência Argentina - ambos com simpatia pelo fascismo - conseguiram converter esse con-
envolveu o uso de força inconstitucional, que na maioria dos casos assumiu a junto disperso de interesses antagónicos numa realidade revolucionária duradoura.
forma de um golpe de Estado levado a cabo pelo Exército. Não se tratou apenas Em vez disso, o nacionalismo agravou a debilidade estrutural do historica-
de uma mudança de poder, mas também de ideologia e de interesse económico: mente frágil Estado latino-americano. Do ponto de vista político, criou uma
do liberalismo para o nacionalismo económico, de uma economia de exportação situação análoga à que se verificara no início e em meados do século xix,
agrária e mineira para um desenvolvimento industrial centrado na cidade e vol- quando, depois do colapso da monarquia católica, as repúblicas independentes
tado sobre si próprio. se viram sem uma autoridade legítima que regulasse as disputas entre elites
Como vimos, o programa industrial de substituição de importações dependia regionais conservadoras e elites liberais. Nos países avançados, como Argentina,
de um delicado equilíbrio entre o setor das exportações, o capital e os grupos de Brasil, Uruguai e Chile, que tinham conhecido longos períodos de governo cons-
interesse urbanos. Em semelhante interação, era fundamental que o Estado titucional estável, o nacionalismo e os traumas associados ao desenvolvimento
desempenhasse o papel de mediador entre os diferentes setores. Para tal, tinha de pela ISI determinaram o retorno a uma política descentrada e conflituosa, com
haver autoridade política, algo que só podia ser alcançado através de uma legiti- novos caudilhos urbanos a liderarem os seus grupos-clientes em batalhas contra
midade reconhecida e baseada num vasto consentimento relativamente às insti* os velhos oligarcas rurais.
tuições do Estado. Mas legitimidade e consentimento era precisamente o que A política da maioria das repúblicas latino-americanas tornou-se tão extraor-
escapava aos Estados latino-americanos desde a independência, à exceção de um dinariamente complexa a partir de meados do século xx porque os tradicionais

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA A N Á L I S E GLOBAL

conflitos do século xix, entre oligarcas conservadores e liberais, não tinham coes ao estilo da máfia. Em finais dos anos 80, estes narcotraficantes constituíam
ainda dado lugar a uma qualquer forma de ordem constitucional (como sucedera uma ameaça séria à autoridade do Estado; desencadearam campanhas de terror,
na Argentina ou no Chile), quando surgiram o nacionalismo e os problemas da com bombardeamentos e assassínios, procurando intimidar o governo para o
industrialização e da urbanização. No Peru, por exemplo, a rivalidade histórica forçar a legalizar a cocaína e a rejeitar as exigências dos EUA para a extradição
entre a elite rural conservadora, das regiões montanhosas interiores, e as elites dos traficantes de droga.
liberais da costa, ligadas à exportação -já dificultada pela presença de numero- No entanto, ironicamente, talvez a turbulência da política colombiana justi-
sas comunidades tradicionais índias -, foi ainda agravada por conflitos com os fique o pragmatismo que caracterizou o desenvolvimento económico do país,
nacionalistas da classe média, aos quais se somaram as divergências entre capi- uma vez que nenhum grupo de influência conseguiu, por si só, manter-se no
talistas industriais e as classes trabalhadoras urbanas. Um regime de tal modo poder por muito tempo sem chegar a uma qualquer espécie de compromisso com
fragmentado só podia manter-se unido à custa de recorrentes ditaduras. Figuras os seus rivais. Embora sem lei nem ordem, a oposição endémica entre liberais e
militares proeminentes conseguiram manter os nacionalistas afastados do poder conservadores serviu para conter os novos interesses económicos gerados pelo
até 1968; o Exército impôs, então, uma revolução nacionalista, que durou sete nacionalismo no histórico modelo bipartidário. Sempre que as lideranças dos
anos, até um novo golpe de Estado em 1975 abrir caminho para um retorno à dois partidos chegavam a um acordo prático para prosseguirem com a governa-
autoridade civil, estabelecendo-se urn sistema democrático que nos anos 80 não ção - como aconteceu nos anos 30 e no início dos anos 40, e também desde finais
conseguira ainda conter as explosivas tensões sociais do país. da década de 50 até aos anos 80 -, o impulso para o desenvolvimento económico
A Colômbia era outro país de grande dimensão mas profundamente divi- podia ser assegurado, apesar das perturbações da vida quotidiana. Assim, a polí-
dido. Também aí o governo constitucional fora incapaz de criar raízes; só a auto- tica de ISI foi prosseguida sem dogmatismo, sem preconceitos contra a econo-
ridade temporária de um líder forte trouxe uma pausa às disputas violentas entre mia de exportação e sem penalizar indevidamente as áreas rurais. Nos anos 60,
conservadores católicos e liberais anticlericais a propósito da autonomia regional a Colômbia era já a quarta maior nação industrial da América Latina, e na década
e do papel da Igreja. Estes conflitos persistiram até o século xx ir já bem adian- seguinte o seu crescimento económico foi um dos mais altos da região (*). Desta
tado. De 1899 a 1903, a «Guerra dos Mil Dias», entre conservadores e liberais, forma, uma longa história de hostilidade bipartidária levou, indiretamente, a uma
custou cerca de 100 000 vidas. Nos anos 30 e 40, o nacionalismo introduziu-se espécie de consenso alinhavado entre as velhas oligarquias da terra e as novas
tanto no Partido Liberal como no Partido Conservador, com tendência para se elites do mundo dos negócios, o que, uma vez iniciado o desenvolvimento indus-
polarizar na ala extrema de cada campo: no Partido Conservador assumiu a trial, impediu uma clivagem demasiado profunda entre os poderes económico e
forma de um conservadorismo religioso fascista - o líder do partido, Laureano político. Na Colômbia, a indústria conseguiu desenvolver-se com êxito, apesar
Gómez, era um fervoroso admirador do general Franco de Espanha -, enquanto da extrema debilidade do Estado, pois neste caso as circunstâncias permitiram
no Partido Liberal o esquerdismo demagógico de Jorge Eliécer Gaitán con- uma flexibilidade que noutras partes foi inviabilizada por um nacionalismo eco-
quistou um apoio imenso. As hostilidades políticas atingiram um auge sangrento nómico dogmático.
a 9 de abril de 1948, quando os motins tomaram conta da cidade de Bogotá O México, cuja história fora de tal modo caótica no século xix, foi, todavia,
depois de Gaitán ter sido assassinado. O bogotazo, nome por que ficou conhe- o país onde se formou o Estado mais resistente e autoritário. Em virtude da sua
cida a revolta, deu origem a uma guerra civil entre conservadores e liberais - revolução, o México foi capaz de consolidar um consenso nacional sem prece-
chamada, simplesmente, La Violência - que perdurou, especialmente nas regiões dentes nos anos 30 do século xx — mesmo antes de iniciar o processo de indus-
rurais, até à década de 60. Ceifou entre 200 000 e 300 000 vidas e instituiu uma trialização. Uma vez que as elites terratenentes que criaram esse consenso foram
tradição de guerra e banditismo naquelas regiões. A situação prolongou-se também responsáveis pelo início do desenvolvimento industrial, não se assistiu
devido aos problemas sociais que se agravaram ao longo dos anos 70 e 80, à separação entre poder económico e poder político. Pelo contrário, a Revolução
quando se formaram vários movimentos de guerrilha marxistas que declararam Mexicana deu origem a um Estado corporativo onde o capital, a mão de obra, as
guerra ao Estado. Esta anarquia crónica que se vivia nas zonas remotas da classes médias e até as forças armadas obtiveram uma função na máquina do
Colômbia contribuiu para o aparecimento de uma indústria ilícita assente no governo. As tensões sociais produzidas por um rápido desenvolvimento indus-
cultivo, no processamento e na exportação de cocaína. O contrabando internado-^ trial foram, deste modo, incluídas no aparelho do Estado: depois dos anos 30,
nal levou à formação, em Medellín e em Cali, dos famosos cartéis de barões da
droga extraordinariamente ricos, que exerciam o seu poder através de organiza-
(*) Ver Anexo Estatístico, quadro 3.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANALISE GLOBAL

o México não passou por golpes de Estado ou por conflitos civis graves; nern por Os Anos Pós-Guerra: O Estado Promotor de Desenvolvimento,
mudanças violentas de governo. Este clima de estabilidade permitiu-lhe tornar- Corporativismo Natural e Política Eleitoral
-se a segunda economia mais dinâmica da região, ultrapassando a Argentina nos
anos 50 (*). O nacionalismo latino-americano sofreu um processo de transformação após
Por que razão pôde o Estado corporativo prosperar no México e não na a II Guerra Mundial, quando os EUA finalmente substituíram a Grã-Bretanha
Argentina ou no Brasil, onde o corporativismo também foi experimentado entre como a potência suprema no globo. Tendo derrotado os países do Eixo fascista,
os anos 30 e os 50?.Basicamente, porque o Estado corporativo nestes últimos e envolvidos numa Guerra Fria contra a União Soviética, os Estados Unidos
países não incluiu os detentores do poder económico mais relevantes, nomeada- estavam empenhados em consolidar as suas esferas de influência e em difundir
mente as elites agrárias do comércio de exportação. Os Estados criados por os seus valores liberais democráticos no estrangeiro. Na América Latina, os EUA
Getúlio Vargas e por Juan Perón eram, em larga medida, veículos das .classes opunham-se às ditaduras, mas, como em qualquer outro lugar, também receavam
médias e dos sindicatos, e não conseguiram incorporar as elites que acediam ao a influência comunista (o número de membros dos partidos comunistas latino-
capital estrangeiro necessário para financiar a industrialização. Assim, em vez de -americanos aumentara cinco vezes durante a guerra). Deste modo, em 1948 os
se basear num consenso, como no México, o corporativismo de Vargas e de EUA tomaram a iniciativa de fundar a Organização dos Estados Americanos,
Perón limitou-se a institucionalizar a separação entre autoridade política e poder com o objetivo de promover a cooperação regional e proteger os países-membros
económico, separação que a rápida industrialização apenas agravou. Por outro contra agressões externas. Nos primeiros anos da década de 50, os EUA assina-
lado, nem Perón nem Vargas tiveram força suficiente para destruir as elites tra- ram pactos de defesa mútua com vários governos latino-americanos (à seme-
dicionais e assumir o controlo do setor da exportação. Os resultados foram con- lhança do que haviam feito com os Estados da Europa Ocidental), de modo a
flitos sociais graves, hiperinflação, endividamento e golpes militares. Assim, integrar a América Latina na estrutura de defesa estratégica global contra uma
com a exceção do México, o nacionalismo aliou-se à substituição de importações União Soviética cada vez mais forte. Estes pactos representaram uma extensão
para destruir o consenso liberal onde este fora possível, como no Brasil e na para a Guerra Fria das alianças militares estabelecidas durante o conflito mundial
Argentina, ou para acentuar divisões políticas em países onde o consenso oligár- que terminara pouco antes; o armamento, o treino militar e a ajuda económica
quico não fora ainda alcançado, como era o caso do Peru e da Colômbia. Os dos EUA à industrialização latino-americana eram trocados por matérias-primas
conflitos sociais agravaram-se progressivamente, impossibilitando o estabeleci- e por lealdade geopolítica.
mento de Estados de direito e de governos genuinamente democráticos. Por sua vez, os governos latino-americanos dos anos pós-guerra estavam
As forças armadas continuariam a ser o intermediário decisivo para a con- ansiosos por mostrar boas credenciais democráticas, para continuarem a benefi-
quista do poder ao longo de todo o século xx. Fora, afinal, o Exército que abrira ciar dos empréstimos e dos investimentos norte-americanos de que necessitavam
a porta do governo aos nacionalistas urbanos nas décadas de 20 e 30, e fora tam- para financiar a industrialização por substituição de importações (ISI). Os parti-
bém o Exército, no Brasil e na Argentina, que começara a associar a ideologia dos comunistas foram banidos ou excluídos do poder; os ditadores abandonaram
nacionalista a um programa de industrialização conduzido pelo Estado. O rápido «St --
os seus adereços fascistas e permitiram que se realizassem eleições. No Chile, o
desenvolvimento industrial viria a sujeitar a autoridade do Estado a uma enorme governo radical ilegalizou o Partido Comunista pouco tempo depois de ter sido
pressão; e, na ausência de um consenso político generalizado que lhes conferisse seu parceiro na Frente Popular que governara o país na década de 40. Getúlio
uma legitimidade duradoura, os Estados latino-americanos tendiam a ser supor- Vargas no Brasil, Fulgencio Batista em Cuba e Juan Perón na Argentina, todos
tados, se não mesmo substituídos, em tempos de crise, pela violência institucio- se sujeitaram às urnas. Apesar de o nacionalismo ter surgido como uma reação
nalizada das forças armadas. ao liberalismo clássico das elites crioulas, os governos nacionalistas tentavam
agora acomodar-se ao liberalismo democrático mais igualitário defendido pelos
* EUA.
* * A política nacionalista de industrialização liderada pelo Estado continuou a
ser implementada depois da guerra, mas os EUA ofereceram, ainda assim, assis-
tência financeira e técnica, embora desaprovassem a intervenção do Estado na
economia. Mas à medida que a fase «fácil» da ISI se aproximava do fim, nos
(*) Ver Anexo Estatístico, quadro 3. últimos anos da década de 50, os conflitos sociais que esta política gerava come-

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H I S T Ó R I A DA AMÉRICA LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA ANALISE GLOBAL

cavam a tornar-se demasiado explosivos para ser controlados: as divergências tentam manipular o sistema existente, esbanjando favores junto dos setores des-
entre industriais protegidos e exportadores tradicionais, e entre industriais e tra- favorecidos em troca do seu apoio. Um dos líderes populistas mais bem-sucedi-
balhadores, minavam a autoridade dos governos eleitos. Ao enfrentar todos estes dos na América Latina foi Eva Perón, que conquistou uma devoção idólatra entre
conflitos, a democracia liberal mostrava a sua tendência para se desmoronar. as massas urbanas da Argentina em finais dos anos 40 e princípios dos anos 50,
De que modo podiam as democracias latino-americanas compensar a falta sobretudo depois de ter estabelecido uma fundação semiestatal para a qual
de um verdadeiro consenso político onde se escorarem? Os governos recorriam empresários e outros grupos de interesse eram convidados a contribuir com
às práticas das sociedades tradicionais, patrocínio e clienteiismo, embora adap- verbas.
tadas, conforme necessário, às condições das economias em desenvolvimento. O corporativismo natural era, assim, o meio através do qual Estados histori-
Os politólogos chamaram a este fenómeno «corporativismo natural», pois camente fracos pagavam para afastarem a possibilidade de desordem e para
embora as tentativas revolucionárias dos anos 30 e 40 tivessem, em larga manterem uma certa estabilidade que lhes permitisse prosseguir com as suas
medida, falhado, os Estados do pós-guerra, nominalmente democráticos, conti- revoluções industriais. No entanto, a partir de finais dos anos 50, quando, nos
nuavam a tentar conciliar grupos de interesse rivais absorvendo os seus líderes países avançados, a ISI entrava na fase «difícil», a fase da indústria pesada com
num sistema de trocas mútuas de privilégios e benefícios. necessidade de capital intensivo, a elevada taxa de inflação e o desemprego tor-
A extensão das atividades do Estado através da ISI facilitou este processo. naram os conflitos sociais entre os diversos interesses cada vez mais difíceis de
Onde antes a monarquia católica fora a fonte de favores por excelência, o Estado remediar através do patrocínio ou da absorção. Na Argentina, tornou-se impos-
promotor de desenvolvimento tinha agora o papel central no exercício do patro- sível aliciai" os sindicatos peronistas de modo a incluí-los num sistema eleitoral
cínio, oferecendo concessões, licenças e subsídios em troca de cooperação polí- dirigido por governos radicais. No Brasil, o governo democrático de Getúlio
tica. E a intervenção do Estado na economia originava novas teias de intereses Vargas foi destruído pela incapacidade de conciliar as exigências de salários
- homens de negócios, industriais, associações profissionais, sindicatos - cuja mais elevados por parte dos sindicatos dos trabalhadores e as medidas anti-
prosperidade dependia muitas vezes de decisões tomadas por burocratas e por -inflacionárias defendidas por industriais e exportadores. E a democracia chilena
políticos. O objetivo destes grupos de interesse era, então, influenciar as políticas dos anos 60 exibia perigosas fraturas, com os partidos da direita, do centro e da
públicas de modo a conseguir para si o melhor resultado possível na distribuição esquerda a empurrarem a economia em direções diferentes.
do rendimento nacional. O governo, por sua vez, procurava satisfazer tantos Entre as décadas de 50 e de 80, o grande problema político que se impunha
interesses quantos pudesse, inserindo-os numa teia de favores e recompensas que aos governos latino-americanos era controlar a inflação sem sacrificar a proteção
impedisse a ordem social de se desmoronar. social. Como a autoridade política tendia a não coincidir com o poder econó-
As eleições eram apenas um dos meios através dos quais as clientelas tenta- mico, a generosidade corporativista do Estado tinha os seus limites: os governos
vam reivindicar a proteção do Estado. Alguns grupos podiam recorrer a compor- democráticos revelaram-se incapazes de assumir um controlo efetivo sobre a
tamentos ameaçadores como greves, manifestações e até motins. No caso de economia de exportação e eram demasiado fracos para acabar com a ineficiência
elites melindradas, estas podiam conspirar com outros interesses excluídos para e as injustiças das grandes fazendas através da redistribuição de terra. Nestas
provocarem um golpe de Estado. Sempre que um grupo de interesse demons- circunstâncias, o corporativismo natural intensificou as pressões inflacionárias
trava potencial suficiente para causar desordem, o governo procurava consolidar geradas pela própria industrialização (*). E os governos democráticos viram-se,
a sua posição absorvendo os líderes do grupo em causa na teia informal de patro- assim, divididos entre duas opções: aumentar a despesa para melhorar o nível de
cínio. Por exemplo, na sequência das graves revoltas estudantis que abalaram a vida das populações ou aplicar os programas anti-inflação para deter a subida de
Cidade do México em 1968, as verbas atribuídas pelo Estado às universidades preços que alimentava as exigências de aumentos salariais e que minava o poten-
aumentaram consideravelmente e o governo adotou uma retórica vincadamente cial lucrativo das exportações.
de esquerda, de modo a neutralizar a ameaça vinda daquele quadrante. Apesar da profunda influência dos EUA nos anos do pós-guerra, o debate
O corporativismo natural tendia a encorajar o populismo, fenómeno mediante político era ainda dominado por temas nacionalistas. Até 1959, esse naciona-
o qual um político tenta alcançar o poder obtendo popularidade junto das massas lismo tinha uma aparência essencialmente reformista, procurando ampliar os
através de promessas de benefícios e concessões a vários grupos de interesse*
geralmente das classes mais baixas. Os líderes populistas não possuem um pro- (*) Para dados ilustrativos relativamente à inflação ao longo de três décadas, ver Anexo
grama coerente com vista a mudanças sociais ou a reformas económicas, mas Estatístico, quadro 4.

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HISTORIA DA AMERICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANALISE GLOBAL

poderes do Estado sobre a economia sem comprometer o pluralismo democrá- Pode, ainda assim, considerar-se que a Colômbia foi um caso de sucesso
tico. Mas depois da Revolução Cubana o reformismo foi posto à prova por um parcial dos princípios orientadores da Aliança. Em 1958, um acordo nacional
nacionalismo socialista revolucionário que defendia a destruição da economia entre as lideranças liberal e conservadora, que permitiu uma alternância rigorosa,
capitalista como única forma de integrar o poder político e económico num no governo, dos dois partidos, afastou um pouco o país do seu histórico pântano
Estado legítimo suficientemente forte para conduzir um desenvolvimento indus- de lutas políticas, possibilitando algum consenso e uma certa estabilidade, pon-
trial equilibrado. tuados por eleições periódicas. O governo de Alberto Lleras Camargo acolheu a
O desejo de estabelecer um Estado forte não estava confinado à esquerda Aliança para o Progresso com entusiasmo e recebeu generosos fundos para o
revolucionária. As elites tradicionais da exportação, tendo perdido o controlo desenvolvimento e a implementação de reformas. Apesar do fracasso da redis-
sobre o processo eleitoral, e vendo os seus interesses ameaçados tanto pela infla- tribuição de terras — projeto a que se opuseram tanto proprietários como guerri-
ção como pelos economistas nacionalistas, recorriam muitas vezes à intervenção lhas rurais -, Lleras Camargo lançou as fundações de uma política económica
militar, procurando um escape para a política eleitoral turbulenta. Isto porque, tal prudente e não dogmática. Como observaram Rosemary Thorp e Laurence
como no período de entre as guerras, eram ainda as forças armadas que, em Whitehead, a «impressionante força do desenvolvimento da Colômbia» ao longo
última instância, detinham a possibilidade de vetar a conduta do governo, inde- de três décadas tornou-se possível, em parte, graças à «natureza consociativista
pendentemente da fachada de democracia liberal que muitos países haviam do sistema que uniu os dois principais partidos da estrutura democrática»; isto
assumido para atrair o dólar americano. «ajudou a preservar um consenso social bastante alargado que (...) beneficiou os
dirigentes económicos e (...) que manteve as suas divergências num nível prag-
mático e prudente». Os contínuos testes eleitorais contribuíram para que o
A Aliança para o Progresso (1961-1970) Estado demonstrasse «flexibilidade e relativa reatividade às pressões sociais».
Deste modo, a Colômbia «conseguiu combinar um ajustamento a curto prazo
A debilidade da democracia liberal na América Latina dos anos pós-guerra com a sua estratégia de desenvolvimento a longo prazo». Neste aspeto, teve um
tomou-se bem patente no destino da Aliança para o Progresso, um programa comportamento semelhante ao do Brasil, «mas sem a inflação» (os preços
norte-americano de ajuda e reforma concebido em 1961 pela administração Ken- colombianos cresceram, de um modo geral, a uma taxa anual não superior a
nedy. O seu objetivo era impedir revoluções ao estilo cubano promovendo as 20-25%), e distinguiu-se claramente de «países divididos por conflitos, como a
reformas sociais e o desenvolvimento económico no continente. O mecanismo Guatemala, El Salvador e a Nicarágua» (*). Nas décadas de 60 e 70, a Colômbia
essencial consistia em canalizai' capital público e privado para eleger governos apresentou o maior crescimento económico a seguir ao Brasil e ao México (').
cujas propostas de reformas merecessem a aprovação dos EUA. Uma série de A Colômbia foi, todavia, uma exceção na América Latina, e o seu desempe-
reformadores democráticos foi sancionada pelos EUA: Rómulo Betancourt na nho passou quase despercebido, visto que, ao longo da década de 60, o naciona-
Venezuela (1959-64), Jânio Quadros no Brasil (1961), Arturo Frondizi na Argen- lismo reformista foi encarado como uma opção condenada ao fracasso. Tanto a
tina (1958-62), Fernando Belaúnde Terry no Peru (1963-8), Eduardo Frei no esquerda como a direita consideravam o Estado democrático demasiado fraco
Chile (1964-70), Alberto Lleras Camargo (1958-62) e Carlos Lleras Restrepo quer para operar uma mudança social, quer para garantir um progresso ordeiro.
(1966-70) na Colômbia. O programa representava, na verdade, o apoio dos De meados dos anos 60 e até à década de 80, a maioria dos países passou por
EUA a um nacionalismo económico moderado - política de ISI liderada pelo uma crise de autoridade grave e prolongada, com o centro político a ruir, e a
Estado aliada a uma reforma agrária e à redução das desigualdades de rendi- esquerda revolucionária a lutar contra a direita modernizadora pela oportunidade
mento. de dar uma nova forma tanto ao Estado como à economia.
A Aliança para o Progresso poderia ter resultado se os governos centristas Tal como acontecera nos anos 20 e 30, foram as forças armadas que se sen-
tivessem conseguido exercer uma maior autoridade. Mas convinha tanto à direita tiram chamadas a determinar o curso da nação. O Brasil sofreu, em 1964, um
como à esquerda desacreditar a opção reformista, e essa hostilidade impediu o golpe de Estado que abriu caminho para o domínio contínuo de juntas militares
controlo da inflação e protelou a reforma agrária e outras reformas sociais. Em
1970, a Aliança para o Progresso já soçobrara: os governos democráticos aos
quais dera o seu apoio tinham sido derrubados ou por regimes militares ou por (") Latin American Debt and the Adjustment Crisis, Macmillan Press Series (Macmillan:
London, 1987), pp. 330-3.
perturbações sociais, a que se haviam somado guerras de guerrilha.
O Ver Anexo Estatístico, quadros 3 e 4.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO! UMA ANÁLISE GLOBAL

até 1985. AArgentina foi palco de um golpe ern 1966 e, após ura breve interlúdio No caso bem diferente do Peru, o Exército procedeu a um golpe e decidiu,
neoperonista no começo da década de 70, foi governada por juntas militares até inusitadamente, adotar as políticas nacionalistas radicais da esquerda revolucio-
1984. No Peru, as forças armadas estiveram no poder de 1968 a 1980. O Uru- nária, pois no início da década de 70, quando as forças armadas foram chamadas
guai, onde a política eleitoral se mantivera, sem interrupção, desde 1903, sucum- para esmagar uma insurreição de guerrilha nos Andes, muitos oficiais tinham
biu a uma intervenção armada em 1973 e só voltou a ter um governo civil pas- ficado horrorizados com a pobreza dos camponeses índios. Em 1968, os generais
sada mais de uma década. Quanto ao Chile, que fora outro «modelo» de peruanos nacionalizaram os vetores estratégicos da economia de exportação: as
democracia na América Latina, sofreu um golpe terrivelmente sangrento em grandes terras e plantações foram expropriadas e convertidas em cooperativas,
1973 e foi governado por um homem forte do Exército até 1989. de modo a destruir o poder económico das elites agrárias. O governo militar
mobilizou, então, trabalhadores, camponeses e habitantes de zonas degradadas
das cidades, integrando-os numa organização protetora dirigida pelo regime.
As Ditaduras Militares e o Estado Esta estratégia representava, em certa medida, um regresso ao corporativismo
dos anos 40, como no México de Cárdenas ou na Argentina de Perón, mas a
O aparecimento de regimes militares em alguns dos países mais avançados, reforma agrária e a socialização da produção foram levadas muito mais longe,
no espaço de uma década, foi a consequência do colapso do Estado sob a pressão tomando como modelo a Cuba comunista da década de 60.
do desenvolvimento industrial. O fosso entre o setor da exportação e a indústria A estratégia falhou: a inflação disparou, com os preços da exportação a cair
interna protegida, e entre o capital e o proletariado, tornara-se de tal modo pro- e a produção a estagnar. Quando, a partir de 1973, a recessão mundial originou
fundo que a possibilidade de consenso e legitimidade praticamente se esvane- uma descida do nível de vida, a pressão industrial com vista a salários mais ele-
cera, deixando a força militar como resíduo de um estatismo infrutífero. vados intensificou-se, apesar das estruturas corporativas. Em 1975, um novo
Claro que a intervenção militar na política nada tinha de novo; ocorrera inú- chefe da junta militar começou a desmantelar esta experiência de nacionalismo
meras vezes na América Latina, embora essas intrusões frequentes tivessem, na económico radical, preparando um regresso à política eleitoral em 1980. O pre-
maioria dos casos, tido uma natureza instrumental - tratava-se então de substituir sidente civil eleito, Fernando Belaúnde Terry, introduziu uma política de livre
um governo ou um caudilho por outro. Contudo, nos anos 60 e 70, as forças arma- iniciativa e privatização, mas deparou com fortes protestos do proletariado e com
das entraram na política como um bloco institucional determinado a preencher o uma nova onda de violência de guerrilha. Os conflitos que haviam dividido o
vazio deixado pelo desmoronamento do Estado democrático. O objetivo era pros- Estado do Peru em finais dos anos 60 não estavam mais perto da resolução
seguir com a modernização suspendendo por completo a política e recorrendo aos depois de 12 anos de domínio militar.
serviços de tecnocratas, que tinham por função reorganizar a economia enquanto No Chile, as forças armadas escolheram um percurso diametralmente oposto
as forças armadas impunham a lei e a ordem. Com efeito, estes «regimes burocrá- ao dos Peruanos. Depois de uma tentativa, levada a cabo pelo governo marxista
ticos autoritários», como eram designados, tentavam criar um Estado forte através eleito de Salvador Allende (1970-73), de operar uma transformação socialista na
de processos muito diferentes, e as suas políticas sofriam, além disso, mudanças economia, as forças armadas, chefiadas pelo general Pinochet, deram início à
radicais, à medida que era preciso lidar com crises de desenvolvimento. destruição da esquerda e à restauração do mercado livre. Tratava-se do primeiro
No Brasil e na Argentina, as juntas militares dos anos 60 optaram por dar abandono sistemático, na América Latina, das ortodoxias do nacionalismo eco-
seguimento à política de ISI conduzida pelo Estado, procurando gerir as tensões nómico e da ISI conduzida pelo Estado, que haviam dominado a política de
entre as elites da exportação e as novas elites de industriais protegidos, ao desenvolvimento desde os anos 30. O afastamento entre capital e proletariado,
mesmo tempo que recorriam à força para reprimir as exigências salariais dos que já se agravara desastrosamente em virtude das medidas de Allende, tornar-
sindicatos. No início da década de 70, ambos os países atravessavam uma guerra -se-ia, com Pinochet, um verdadeiro abismo, com a repressão selvagem dos
interna entre soldados e guerrilhas marxistas. Uma inflação de três dígitos, sindicatos e os elevadíssimos níveis de desemprego causados por medidas anti-
impulsionada por uma política intensiva de ISI e por despesa pública sem con- -inflação draconianas. As exigências antagónicas da indústria nacional protegida
trolo, levou à implementação de medidas orçamentais rígidas na segunda metade e do setor da exportação foram, no entanto, resolvidas, não através de uma qual-
da década; mas o custo social foi tão elevado que as políticas de contenção quer forma do habitual corporativismo, mas levantando as barreiras dos impos-
monetária tiveram de ser alteradas, quando não abandonadas, e a inflação voltou tos protecionistas e permitindo que o mercado livre distribuísse os recursos
a ficar descontrolada. entre os dois setores. O severo regime ditatorial de Pinochet resistiu até finais

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NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL
H I S T O R I A DA AMERICA LATINA

dos anos 80, e embora a produtividade económica tenha melhorado e a hiperin- financiada pela CIA. Estes acontecimentos foram testemunhados por am jovem
flação sido controlada, os custos sociais foram de uma gravidade sem prece- médico argentino, Ernesto «Che» Guevara, que se tomaria a personificação dos
dentes (*). Até Pinochet ser afastado do poder, não se tornaria claro se uma cirur- piores receios norte-americanos de penetração marxista nas Américas, depois de
gia militar de tal modo drástica fizera, de facto, algo para resolver o problema se aliar ao rebelde nacionalista Fidel Castro, em 1956, numa tentativa para der-
fundamental da autoridade no Estado. rubar a ditadura apoiada pelos EUA em Cuba.
O sucesso da Revolução Cubana, em 1959, alterou as perspetivas do mar-
xismo na América Latina. Depois de Fidel Castro se declarar marxista em 1961,
O Desafio Marxista toda uma geração de socialistas latino-americanos se voltou para Havana, e já
não para Moscovo, em busca de inspiração revolucionária. Isso deveu-se ao
Até à década de 60, o marxismo desempenhou apenas um papel marginal na facto de a Revolução Cubana ter desacreditado o reformismo cauteloso dos par-
política latino-americana. Antes do processo de industrialização por substituição tidos comunistas, identificando o socialismo com antigas tradições latino-ameri-
de importações, a classe operária era pouco numerosa. Tinham-se formado canas de rebelião armada. A revolução continha em si também a esperança de
partidos comunistas na segunda metade da década de 20, mas permaneceram concretizar as mais nobres aspirações do nacionalismo: a formação de uma
insignificantes até finais dos anos 40. Em Cuba, porém, onde existiam grandes identidade cultural autêntica, depois de os imperialistas e os seus agentes terem
plantações de açúcar industrializadas dirigidas por empresas norte-americanas, e sido expulsos do país. A luta de guerrilha cubana serviria de exemplo a outras
também no Chile, onde a exploração do cobre produzira um proletariado de guerras de libertação no continente, bem como em África e na Ásia. De um
dimensão considerável, o Partido Comunista criou raízes profundas entre a ponto de vista mais geral, a revolução, tendo ocorrido num país agrário e sem a
classe trabalhadora. ajuda da União Soviética, renovou o interesse pela teoria marxista e desempe-
Outra razão para o sucesso limitado dos partidos comunistas era a sua subor- nhou um papel importante na ascensão de uma «Nova Esquerda» intelectual na
dinação à Internacional Comunista de Estaline. No esquema do Comintern, a América Latina, assim como na Europa e nos EUA.
América Latina não tinha grande relevância, visto ser esmagadoramente agrária. Os teóricos da Nova Esquerda pegaram nas noções reformistas de dependên-
Segundo a teoria marxista ortodoxa, o socialismo só se tornava possível depois cia económica, que haviam sido elaboradas por economistas da ECLA nos anos
de ter tido lugar uma revolução industrial burguesa. Assim, o papel conferido por 50, e usaram-nas para reconfigurar a teoria leninista de imperialismo. Na pers-
Moscovo aos partidos latino-americanos consistia em ganharem o apoio do petiva da Nova Esquerda, o comércio internacional era intrinsecamente imperia-
proletariado industrial emergente e unirem-se aos defensores do nacionalismo lista, dado que as potências europeias tinham conseguido acumular o capital
económico, exercendo pressão a favor do protecionismo e da industrialização necessário para o seu próprio desenvolvimento explorando os recursos humanos
liderada pelo Estado. O exemplo mais bem-sucedido desta política foi a coliga- e materiais da América Latina desde a Conquista. Depois da independência polí-
ção entre comunistas e radicais numa frente popular no Chile, a qual foi respon- tica, este padrão imperialista não mudou; foi reforçado por uma divisão interna-
sável, no início dos anos 40, pela criação de empresas estatais com vista a enco- cional do proletariado que integrou os países latino-americanos da «periferia» no
rajar o desenvolvimento industrial. mundo da economia, canalizando os seus recursos agrícolas e mineiros para
A Guerra Fria anticomunista dos EUA traduziu-se, na América Latina, na exportação para a «metrópole» em troca de bens industriais de valor mais ele-
exclusão dos comunistas do governo, e até da vida política, em alguns países. vado. Para além de tornar toda a economia dos países periféricos excessivamente
Mas a ameaça comunista era muito mais uma figura de retórica política do que vulnerável a flutuações dos preços mundiais, este comércio desigual permitiu
uma realidade, e tendia a ser invocada pelos EUA sempre que lhes interessava que se acumulasse capital nos países industriais para novos investimentos no seu
recorrer à sua «diplomacia do bastão». Na Guatemala, o governo nacionalista desenvolvimento tecnológico. Como consequência, quando os países periféricos
radical de Jacobo Arbenz foi acusado pelo governo norte-americano de ser uma tentaram industrializar-se, viram-se dependentes do apoio financeiro e técnico da
metrópole. Assim, o seu desenvolvimento industrial seria retardado e continuaria
capa para o Partido Comunista, quando os EUA ficaram descontentes com pro-
postas de reforma agrária que afetavam as imensas propriedades da United Fruit numa posição de subserviência relativamente às potências neocolonialistas, as
Company. Arbenz foi oportunamente derrubado em 1954 por uma força invasora^ quais tinham interesse em manter a divisão do proletariado que condenava a
periferia a produzir bens de valor reduzido ou, na melhor das hipóteses, manufa-
turas industriais menos sofisticadas.
(*) Para dados comparativos sobre a inflação, ver Anexo Estatístico, quadro 4.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

O imperialismo económico das potências industriais era, no entanto, susten- contra alvos «burgueses», como empresários, diplomatas estrangeiros e solda-
tado, em última instância, por um sistema de relações de classe, tanto na metró- dos, a até contra camponeses ou trabalhadores julgados merecedores de «justiça
pole como na periferia. Os capitalistas metropolitanos dominavam os países da revolucionária». A ação da guerrilha contribuiu, deste modo, para o enfraqueci-
América Latina porque as elites locais colaboravam com eles na gestão de eco- mento do primado da lei em Estados que eram já extremamente frágeis, e deu às
nomias de exportação assentes em mão de obra barata, em troca da importação forças armadas um pretexto para ignorar direitos políticos e humanos para repri-
de artigos de luxo e de produtos industriais acabados. Desta forma, o velho e o mir os «subversivos». A década de 70 assistiu a um grave colapso da lei e da
novo estavam inextricavelmente ligados na América Latina: as relações de tra- ordem nos países economicamente mais avançados do continente, como o Brasil,
balho paternalistas da fazenda tradicional eram parte integrante da ordem capi- a Argentina, o Uruguai e o Chile. Determinadas a esmagar as rebiliões da guer-
talista internacional, tanto quanto a linha de montagem de uma fábrica. Dada a rilha, as forças armadas levaram a cabo detenções sem julgamento, tortura,
cumplicidade das elites latino-americanas no imperialismo económico, os com- raptos e execução de suspeitos por esquadrões da morte.
plexos laços de dependência só podiam ser quebrados através da mobilização da Em países altamente urbanizados, como a Argentina e o Uruguai, surgiu um
classe proletária e dos camponeses para alcançar o poder no Estado. A revolução novo tipo de revoltoso latino-americano - o guerrilheiro urbano, que escolhia a
socialista era o pré-requisito para uma verdadeira soberania nacional e para um grande cidade, com o seu vasto anonimato, como campo de batalha contra as
desenvolvimento equilibrado. classes dirigentes. Essencialmente produto da Nova Esquerda nas universidades,
A Revolução Cubana teve tamanho impacto no movimento socialista inter- estas guerrilhas definiam-se, todavia, no âmbito de uma tradição nativa de
nacional porque estimulou uma nova reflexão para explicar o «subdesenvolvi- revolta contra opressores coloniais. Daí os seus nomes: os Tupamaros do Uru-,
mento» e forneceu um modo de lhe pôr fim. A Revolução coincidiu com o guai invocavam Tupac Amaru, o chefe índio que no século xvm liderou uma
«intensificação» da política de substituição de importações nas nações mais revolta de comunidades andinas contra espanhóis e crioulos brancos; os Monto-
industrializadas da região. Teve, por isso, como pano de fundo uma terrível misé- neros da Argentina, urna ramificação marxista do movimento peronista, relem-
ria rural, o crescimento de bairros de lata imensos e desumanos em redor das bravam o fenómeno das montoneras, rebeliões de cavaleiros gaúchos, chefiadas
principais cidades, profundas disparidades de rendimento, uma taxa de desem- por caudilhos regionais, contra as forças dos liberais cosmopolitas de Buenos
prego desesperante e uma inflação incontrolável. Ao mesmo tempo, o ensino Aires.
universitário expandira-se, pelo que uma nova e mais numerosa geração de As guerrilhas urbanas revelararn-se difíceis de derrotar. Atuavam através de
estudantes - na sua maioria provenientes da classe média - viu na guerrilha uma rede de pequenas células em que a identidade dos membros de uma célula
cubana um modelo para pôr fim às terríveis desigualdades sociais do continente. não era conhecida pelos outros. Semelhante estrutura foi concebida para impedir
A vaga de socialismo revolucionário dos anos 60 ocorreu à margem dos que a polícia e o Exército descobrissem a dimensão e a composição da organiza-
partidos comunistas. Resultou na libertação de novas energias políticas, que os ção no seu todo. Os guerrilheiros urbanos conseguiam, de resto, dissolver-se na
organizadores comunistas e os dirigentes sindicais não conseguiram controlar. vida civil após os ataques, 'e aprendiam a manipular os meios de comunicação
Por outro lado, os novos revolucionários não tinham uma base social ampla entre social sensacionalistas através de façanhas heróicas contra as autoridades, reves-
o proletariado industrial, e teriam ainda menos sucesso junto dos camponeses, tindo-se de uma mística romântica aos olhos do público. Os guerrilheiros urba-
que eram, na sua maioria, índios que trabalhavam em fazendas ou viviam, como nos acabaram por ser vencidos em finais dos anos 70, mas à custa de «guerras
sempre tinham vivido, de uma agricultura de subsistência e por vezes completa- sujas» ilegais, que dividiram a sociedade civil e que desacreditaram por com-
mente à margem da economia monetária. pleto a imagem das forças armadas como guardiãs da honra da nação.
Os guerrilheiros marxistas dos anos 60 e 70 continuaram, em larga medida, A experiência da Argentina e do Uruguai sugere que os países mais indus-
isolados das massas. Escolheram para si o papel de vanguarda revolucionária, trializados tinham já desenvolvido sociedades demasiado complexas e diversas
com a tarefa de induzir uma crise terminal do Estado capitalista através da vio- para que uma estratégia de violência armada por parte de uma vanguarda revo-
lência direta. Esse papel levou-os, muitas vezes, a entrar em conflito com as lucionária tivesse êxito. No Chile, experimentou-se uma via diferente para o
organizações estabelecidas da classe trabalhadora. Na Argentina, por exemplo, socialismo, após a eleição para a presidência, em 1970, do marxista Salvador
jovens guerrilheiros peronistas envolveram-se numa longa luta sangrenta contra Allende, à cabeça de uma coligação de socialistas, comunistas e radicais católi-
a máquina peronista oficial pelo controlo dos sindicatos. A estratégia da luta cos. O governo de Allende propunha-se criar uma sociedade socialista por meios
armada esteve, por vezes, na origem de uma violência terrorista esporádica constitucionais. Tratava-se de uma estratégia semelhante à advogada, na época,

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por vários partidos comunistas da Europa Ocidental, e foi Uma das razões pelas muitos nicaraguanos, incluindo camponeses, ao exílio. Em 1988, o regime sandi-
quais a experiência chilena de uma revolução pacífica atraiu imenso interesse nista parecia à beira do colapso económico, embora os escândalos e a pressão do
internacional. O governo de Allende, acabou, no entanto, por ser derrubado pelas Congresso dos EUA tivessem forçado a administração Reagan a suspender o
forças armadas. apoio militar (mas não o «humanitário») às forças guerrilheiras dos Contras.
As insurreições da guerrilha marxista tiveram melhores resultados em Na realidade, chegara-se a uma situação de impasse no conflito entre os
pequenos países agrários onde havia um legado de nacionalismo frustrado e onde sandinistas e os seus inimigos. A guerra de guerrilha no vizinho El Salvador
o governo era excecionalmente corrupto e tirânico. Cuba é o paradigma, mas, encontrava-se também num beco sem saída. Este estado de coisas permitiu que
nos anos 70 e 80, a América Central assistiu ao desenvolvimento de importan- os governos da América Central aceitassem, em 1986-7, um plano de paz pro-
tes movimentos de guerrilha na Nicarágua, em El Salvador e na Guatemala. posto pelo presidente costa-riquenho, Oscar Árias (que lhe valeu o Prémio Nobel
A impressionante vitória de Fidel Castro em 1959 tornara-se, no entanto, difícil da Paz), plano que previa a suspensão das hostilidades por todos os combatentes
de repetir duas décadas mais tarde. Os EUA receavam as consequências geopp- na região, a realização de eleições livres, garantias de liberdade política aos par-
líticas de uma revolução socialista no seu «quintal», dada a proximidade do canal tidos da oposição, e início do processo de formação de um parlamento centro-
do Panamá e a crise dos mísseis cubanos, ocorrida em 1962. O governo dos EUA -americano. O plano de Árias assentava no princípio de que os centro-americanos
atuou de modo a vencer, ou pelo menos a conter, as guerrilhas, equipando e deviam resolver os seus problemas através de negociações. Os EUA continua-
treinando as forças armadas da América Central e injetando dólares para apoiar vam a ser parte interessada, embora a eleição de George Bush para a presidência,
governos não-marxistas na região - preferencialmente, governos democráticos, em 1989, prenunciasse a transição da política de agressão militar indireta de
mas também juntas militares e ditadores personalistas. Reagan para uma política de desgaste económico contínuo. No início de 1990,
Em 1979, as guerrilhas nicaraguanas conseguiram derrubar a infame dita- esta política de bloqueio económico e isolamento político já tinha dado frutos:
dura de Somoza. O presidente dos EUA, Jimmy Cárter, retirara o apoio a Somoza quando os sandinistas permitiram a realização de eleições livres, para demons-
por causa das suas violações dos direitos humanos. Depois da vitória da Frente trarem a sua boa fé democrática no espírito do plano de Árias, perderam inespe-
Sandinista de Libertação Nacional, Cárter ofereceu ajuda económica para incen- radamente com os seus opositores, que se haviam unido numa turbulenta coliga-
tivar a fundação de um sistema democrático liberal no país. Mas os partidos ção eleitoral sob a liderança de Violeta Chamorro. A Revolução Nicaraguana não
marxistas que integravam a Frente Sandinista queriam seguir o exemplo cubano conseguira sobreviver na sua forma marxista.
e criar um Estado socialista revolucionário. Deu-se, então, uma rutura na Frente, Nos anos 80, a contestação marxista ao processo traumático de industrializa-
o que levou os sandinistas não-marxistas a recorrerem mais uma vez às armas ção capitalista parecia estar em regressão. Embora os nacionalistas marxistas
contra o novo regime. A maioria destes rebeldes, agora antissandinistas, uniu vissem na luta de classes a chave para acabar com o imperialismo e a dependên-
forças a antigos membros da guarda nacional de Somoza para formar um exér- cia, tornara-se claro que não poderia haver um projeto para uma revolução na
cito de guerrilha com bases nas Honduras e na Costa Rica. As guerrilhas foram América Latina. A violência política da esquerda e da direita, a experiência do
financiadas e treinadas pelos EUA, pois o sucessor de Cárter, Ronald Reagan, terror da luta de guerrilha e do contraterror militar tinham deixado exaustas as
via estes Contras (de contra-revolucionários) como uma força mandatária que populações dos diversos países. Nem o colossal problema do endividamento na
poderia minar o governo sandinista sem os EUA terem de usar diretamente a sua década de 80 - que causou uma crise mais grave do que a dos anos 30 - melho-
tropa na América Central. rou imediatamente as perspetivas da esquerda revolucionária. Para tal contribuiu
Uma característica que distinguiu a Revolução Nicaraguana da Cubana foi a a perda do prestígio político de Cuba ao longo da década de 70, quando revela-
participação de religiosos católicos progressistas no governo pós-revolucionário. ções sobre repressão de dissidentes, autoritarismo institucional e estagnação
A Nicarágua era um país com raízes católicas mais profundas do que Cuba, e os económica arrefeceram o entusiasmo da juventude latino-americana por Fidel
sandinistas estavam cientes da necessidade de conquistar, em vez de antagonizar, Castro. Nos anos 80, prevalecia a convicção de que os direitos humanos e as
a Igreja, para garantirem a lealdade do povo. Mas a hierarquia católica e o Vati- liberdades básicas tinham de ser respeitados, e que o Estado, que estivera à beira
cano não deram a sua aprovação ao governo revolucionário. E, para todos os efei- da rutura em vários países importantes, devia ser fortalecido não pela força mas
tos, os problemas cada vez mais graves - escassez de alimentos, hiperinflação, pela aceitação do primado da lei. Havia um desejo generalizado e cada vez
um bloqueio económico dos EUA, a destruição causada pela guerra dos Contra e mais forte de regressar aos valores democráticos liberais que tinham inspirado os
a má gestão do governo - afastaram grandes setores da população e levaram criadores das constituições latino-americanas no tempo da independência.

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Isso não significa que o marxismo tivesse deixado de ser uma ideologia liberalismo. Nas primeiras décadas do século xx, eram poucas as repúblicas que
poderosa. Importantes movimentos de guerrilha mantiveram-se ativos em El não tinham separado efetivamente os assuntos de Igreja e de Estado. Ainda assim,
Salvador, na Guatemala e na Colômbia. No Chile, o Partido Comunista conti- a Igreja exercia uma enorme influência social e cultural. Embora em larga medida
nuou a ser uma força digna de nota, embora clandestina, e nos anos 80 incluiu a privado de um papel constitucional, o catolicismo oferecia às comunidades tradi-
luta de guerrilha na sua estratégia global para derrubar o regime militar. Mais
** cionais um reduto contra as incursões da vida moderna. Por exemplo, a implan-
significativo ainda foi o surgimento, no começo da década de 80, de um idios- tação da república no Brasil, em finais do século xix, foi acompanhada de revoltas
sincrático movimento de guerrilha na região centro-andina do Peru, o qual dava de camponeses católicos contra o Estado liberal. Durante a Revolução Mexicana,
pelo nome místico de «Sendero Luminoso», e cuja ideologia, apesar de nebu- a rebelião liderada por Zapata foi tanto uma defesa das comunidades tradicionais
losa, parecia consistir numa síntese de maoísmo e do indianismo de José Carlos imbuídas de catolicismo como um ataque revolucionário ao capitalismo. Na ver-
Mariátegui, o mentor intelectual do marxismo peruano. dade, a seguir à expropriação das suas terras nada levava tão facilmente os cam-
Fundado por Abimael Guzmán, professor de Filosofia da Universidade de poneses à rebelião como a tentativa de interferir na sua prática religiosa - foi o
Ayacucho, o Sendero Luminoso permaneceu uma força obscura. Repudiava os que se verificou, no México, com a Guerra Cristera contra o governo revolucio-
meios de comunicação social e preferia contactar com a sociedade em geral nário dos anos 20. Isto porque, apesar dos triunfos do liberalismo, ou talvez pre-
através de uma série de sinais apocalípticos, como provocar cortes de eletrici- cisamente por causa desses triunfos, a Igreja era, de longe, a guardiã mais eficaz
dade das cidades, explodir comboios e colocar enormes cruzes em chamas no das fontes vitais de identidade cultural das pessoas comuns. O catolicismo tradi-
cimo de montes. O movimento utilizava os métodos de guerrilha dos anos 60 cional era mais apelativo para os mestiços, que sempre se tinham visto entre a
para pôr em prática os ideais do indigenismo dos anos 20; rejeitava a influência sociedade branca e os índios, e, embora muitas vezes combinada com elementos
europeia para forjar uma identidade nacional com base na herança cultural dos pré-cristãos, a cultura religiosa das próprias comunidades índias dificilmente
povos índios. O Sendero Luminoso foi a expressão mais radical que o naciona- sobreviveria à destruição da devoção católica na América Latina.
lismo marxista assumiu na América Latina e, à semelhança de outros movimen- Assim, quando o liberalismo começou a ser alvo de ataques no começo do
tos de guerrilha, as suas hipóteses de sucesso pareciam depender da profundidade século xx, o catolicismo atraiu muitos intelectuais nacionalistas, em virtude da
e da duração da crise económica provocada pela grave crise de endividamento sua resistência histórica a ideias liberais vindas de fora e das suas raízes profun-
externo dos anos 80. das na cultura popular. Este tipo de nacionalismo tendia, no entanto, a ser con-
servador, se não mesmo reacionário: equacionava, simplesmente, autenticidade
cultural com uma rejeição do mundo moderno. Na verdade, era o herdeiro do
A Igreja Católica tradicionalismo clerical do século anterior e, com efeito, na maioria dos países
- apesar de muitas vezes os padres das paróquias rurais se identificarem profun-
O progresso económico no período de rápido crescimento capitalista entre os damente com os interesses do povo -, a hierarquia da Igreja permanecia asso-
anos 70 do século xix e os anos 20 do século xx afetara profundamente o papel ciada aos interesses dos proprietários de terras conservadores. O catolicismo não
da Igreja Católica na América Latina. Com efeito, enquanto a sociedade fosse vingou à esquerda, onde era identificado com a ideologia do opressor colonial
esmagadoramente rural, a influência da Igreja continuaria a ser forte. No entanto, espanhol. Os nacionalistas da ala esquerda procuravam, quase sempre, as suas
como a experiência da Europa mostrara, não havia maiores diluentes da crença raízes culturais nas civilizações índias pré-colombianas ou na cultura dos escra-
religiosa do que aquele par de indicadores de modernidade - urbanização e vos africanos.
industrialização. À medida que cada vez mais camponeses deixavam as aldeias A Igreja Católica viu-se, assim, ameaçada em duas frentes distintas. Em pri-
para se instalarem nas grandes cidades, os laços de obediência que os ligavam meiro lugar, o avanço perturbador do capitalismo liberal propriamente dito, uma
aos seus padres perdiam força na massa urbana amorfa. A imigração também ideologia cuja confiança no mercado e na iniciativa privada minava o ethos
distendeu os recursos da Igreja e agravou os seus problemas pastorais. E quando paternalista, hierárquico, que a Igreja tanto se esforçara por preservar no Novo
governos de finais dos anos 30 começaram a adotar uma política de rápido Mundo. Depois, era o nacionalismo secular, muitas vezes aliado ao fascismo ou
desenvolvimento industrial, a Igreja enfrentou o maior desafio à sua autoridade. ao socialismo, que desafiava a autoridade religiosa e que alastrava nas cidades,
A Igreja, que em tempos fora um elemento integrante da monarquia católica, precisamente onde a Igreja mais rapidamente estava a perder terreno entre as
vinha, desde a independência, perdendo terreno intelectual para os princípios do massas. Por estas razões, a Igreja Católica procurava um caminho intermédio

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

para a sociedade latino-americana, algures entre o capitalismo liberal e as ideo- A sorte do reformismo democrata-cristão ficou, no entanto, tipificada no
destino do partido em El Salvador, fundado no começo da década de 60. O seu
logias revolucionárias ateístas.
líder, José Napoleón Duarte, chegou à presidência em 1972, mas foi expulso e
Esta busca tinha a sua origem na resposta da Igreja aos problemas da indus-
torturado pelas forças armadas, que eram extremamente conservadoras. Em
trialização na Europa em meados do século xix. O enquadramento do pensa-
1979, na sequência de um golpe levado a cabo por oficiais liberais de baixa
mento social católico sobre os direitos do proletariado e as obrigações do capital
patente, Duarte fez parte de um governo que procurou introduzir medidas eco-
acabou por surgir na encíclica papal Rerutn Novarum, em 1891. Na América
nómicas nacionalistas, incluindo uma reforma agrária profunda, naquele país
Latina, como na Europa, esta exortação papal destinada a promover a justiça
pequeno mas sobrepovoado. As reformas foram travadas pelo Exército, que
social levou alguns setores da Igreja a estabelecer organizações para as classes
intensificou a repressão feroz dos líderes do proletariado. Como consequência,
trabalhadoras - sindicatos, cooperativas, centros educativos, associações de
camponeses e jornais. O catolicismo social era reformista: rejeitava a luta de El Salvador foi abalado por uma luta de guerrilha revolucionária. Duarte teve
ocasião de reafirmar o seu ideal de reformismo democrático (foi eleito presidente
classes em favor de uma intervenção do Estado que providenciasse o bem-estar
em 1984), mas em finais dos anos 80 ficaria prisioneiro de chefes militares
dos mais desfavorecidos. Estava, assim, em sintonia com o corporativismo e
intransigentes. O governo democrata-cristão perdeu, assim, a sua coesão ao ten-
com o nacionalismo económico em ascensão nos anos 30, mas encontrou inimi-
tar manter uma posição central num conflito cada vez mais polarizado pelas
gos no número cada vez maior de socialistas e comunistas, que o consideravam
atividades de esquadrões da morte militares e da guerrilha marxista. (A ala radi-
um poderoso rival no campo da mobilização social.
cal do Partido Democrata-Cristão optara pela luta armada ao lado das forças da
Num país como o Chile, onde a Igreja era forte e tinha toda uma tradição de
ação social, o catolicismo social competia com o florescente movimento comu- esquerda.)
A radicalização política do catolicismo foi um fenómeno dos anos 60.
nista pela liderança dos operários e dos camponeses. A política seguida pela
Deveu-se, em parte, à enorme influência da Revolução Cubana. Mas foi, sobre-
Igreja consistiu em fomentar a organização dos trabalhadores em congregações
tudo, uma consequência do Concílio Vaticano fl (1962-5), que reavaliou o papel
católicas, preparando, ao mesmo tempo, uma elite política, segundo os seus
da Igreja Católica no mundo moderno, encorajando a inovação teológica e sen-
princípios sociais, em instituições como a Universidade Católica de Santiago.
sibilizando o clero para questões do foro social e económico. Num continente
Surgiu no Chile uma geração de jovens políticos, homens como Eduardo Frei,
sujeito às fortes pressões sociais causadas pela industrialização, o resultado mais
Radomiro Tomic e Bernardo Leighton, que em finais dos anos 30 formaram um
importante daquele aggiornamento ou atualização do catolicismo foi uma «teo-
partido social-católico que se opunha tanto aos conservadores como à esquerda.
logia da libertação», que se afastou da ortodoxia ao alegar que a caridade cristã
Isto porque o objetivo destes movimentos católicos progressistas, no Chile e
devia ser interpretada como o compromisso de trabalhar para a libertação dcs
noutras partes da América Latina, era chegar a uma forma de capitalismo demo-
oprimidos e dos pobres, mesmo que isso implicasse o uso da violência. A teolo-
crático e socialmente responsável, que garantisse direitos aos trabalhadores e que
gia da libertação estava, claramente, permeada de conceitos marxistas de luta de
promovesse uma reforma agrária.
classes, exploração e imperialismo, e dividiu as opiniões na Igreja Católica. Mas
A oportunidade política para este tipo de reformismo surgiu em finais dos
a convergência intelectual com as ideias marxistas permitiu que católicos radi-
anos 50, quando a industrialização estava já bem avançada e os EUA continua-
cais se unissem aos socialistas revolucionários no combate ao capitalismo.
vam a dar um apoio contínuo ao desenvolvimento, impondo como condição um
Nas décadas de 60 e 70, uma parte do clero apoiou a insurreição armada.
governo democrático. O catolicismo progressista encontrou expressão em parti-
Alguns padres juntaram-se, inclusive, a guerrilhas marxistas que operavam em
dos democratas-cristãos, nomeadamente no Chile, na Venezuela, no Peru e em
zonas rurais. O mais célebre de entre eles foi Camilo Torres, um colombiano de
El Salvador, embora em alguns países o catolicismo social tenha inspirado outros
uma família da classe alta de Bogotá, que incorreu no desagrado da hierarquia
partidos, como foi o caso do Partido Conservador na Colômbia ou do PAN no
conservadora quando emitiu um manifesto político radical em 1965. Optando
México. Na década de 60, os partidos democratas-cristãos começaram a partici-
pela laicização, juntou-se a uma força de guerrilha ao estilo cubano e foi morto
par na governação. Eduardo Frei foi eleito presidente do Chile em 1964, mas o
em ação, em fevereiro de 1966, conquistando uma fama mundial que só foi
seu ambicioso programa de reformas soçobrou devido à oposição da direita e da
ensombrada pelo assassínio de Che Guevara, na Bolívia, no ano seguinte.
esquerda. O democrata-cristão Rafael Caldera foi presidente da Venezuela entre
Num registo menos dramático, muitos padres radicais foram trabalhar em
1969 e 1974. No Peru, os democratas-cristãos deram um apoio estratégico ao
fábricas nas zonas industriais das grandes cidades, onde podiam viver entre os
governo reformista de Belaúnde Terry entre 1963 e 1968.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

trabalhadores descristianizados. Outros organizavam atividades religiosas e dade civil nos anos 70. Mas na Nicarágua, durante a década de 80, tornou-se um
sociais nos bairros degradados. Missionários que trabalhavam nas comunidades foco de oposição a uma monopolização do poder idêntica levada a cabo pela
índias encorajaram a ação política no sentido de concretizar a reforma agrária. Frente Sandinista, embora o governo revolucionário aí abrangesse uma série de
A teologia da libertação inspirou uma nova forma de organização pastoral, a proeminentes jesuítas e padres, e tivesse o apoio do clero partidário da teologia
«comunidade de base», uma comunidade de pessoas comuns, laicas, que tenta- da libertação. No vizinho El Salvador, que sofreu com uma guerra de guerrilha
vam transpor a liturgia e os ensinamentos da Igreja para um contexto de ação inconclusiva ao longo da década de 80, o clero denunciou sistematicamente as
com vista a melhores condições sociais. Esta revitalização das energias missio- atividades dos esquadrões da morte e a prática de tortura por parte da direita.
nárias da Igreja no hemisfério ocidental ficou assinalada na Conferência dos Esta oposição esteve na origem do assassínio, em março de 1980, do arcebispo
Bispos Latino-Americanos, que se realizou em 1968 em Medellín, na Colômbia de São Salvador, Oscar Romero, nos degraus da sua própria catedral, quando
(foi inaugurada pelo papa Paulo VI, o primeiro pontífice romano a visitar a Amé- celebrava a missa diante de uma numerosa congregação. Quando a crise do
rica Latina). Foi declarado que a Igreja tomara uma «opção pelos pobres», Estado se agudizou em muitos países da América Latina, a Igreja Católica afas-
expressão que parecia sancionar a teologia da libertação. Tal impressão foi refor- tou-se de qualquer associação direta quer com a esquerda quer com a direita, e
çada quando vários prelados distintos, como Dom Helder Câmara, do Recife, no manteve uma posição de independência crítica dos interesses políticos. Essa
Brasil, atraíram a atenção de todo o mundo ao apoiar trabalhadores em greve e posição foi explicitamente reforçada pelo papa João Paulo II, que durante uma
ao denunciar a dependência económica. visita ao Brasil em julho de 1980 proibiu o clero de ocupar cargos políticos e
Apesar de um setor do clero ter claramente adotado posições que revelavam condenou o uso da violência como meio de mudança social.
aceitação da necessidade de mudança revolucionária, a vasta maioria da laici- No decurso do século xx, a Igreja latino-americana abdicou finalmente da
dade e do clero não se revia na teologia da libertação. A «opção pelos pobres» sua aspiração a uma posição oficial no Estado. Ainda assim, recuperou duas das
da Igreja deve, antes, ser entendida como mais um desenvolvimento do catoli- suas funções históricas, num momento em que a América Latina sofria a trans-
cismo social na resposta às dolorosas revoluções industriais que decorreram na formação económica e social mais profunda desde a Conquista. Recuperando o
América Latina após a II Guerra Mundial. Os anos 60 e 70, em particular, assis- espírito de Bartolomé de Ias Casas, vários sacerdotes criticaram o abuso do poder
tiram a um maior empenho da Igreja na justiça social (especialmente no que se estatal por parte de elites despóticas, enquanto a energia que muitos clérigos
referia à privação de terra e à reforma agrária), e a instituição teceu criticas ao dedicavam à «opção pelos pobres» lembrava o empenho dos primeiros missio-
desenvolvimento capitalista, embora o capitalismo propriamente dito não fosse nários na criação de uma sociedade justa no Novo Mundo. Em muitos países, a
condenado. Igreja funcionou como a consciência de uma sociedade que de outra forma aca-
Ao longo da década de 70, enquanto a industrialização tinha o seu custo em baria embrutecida, dando testemunho de um sentido do bem comum como a
crises políticas e guerras intestinas, a Igreja Católica viu-se investida de outra semente vital de uma identidade nacional autêntica.
função: a defesa dos direitos humanos do cidadão individual contra os abusos de
poder por parte de regimes autoritários, especialmente em países onde as forças
armadas estavam envolvidas na repressão de guerrilhas. Com o colapso das ins- A Crise da Dívida dos Anos 80
tituições democráticas, na ausência do Estado de direito a Igreja funcionava
como um santuário político, um refúgio de último recurso para cidadãos despro- Os problemas cada vez mais graves causados pelas distorções económicas
tegidos em países onde a ordem legal dera lugar à guerra social. da industrialização por substituição de importações e o consequente enfraqueci-
Semelhante papel já se vislumbrara em meados dos anos 50, quando a Igreja mento do Estado atingiram o seu auge na década de 80. A crise fora adiada nos
da Argentina, nos últimos anos da governação de Perón, atuou como última bar- anos 60 pelo acentuado crescimento mundial, e nos anos 70, quando a procura
reira institucional contra a «peronização» em grande escala da sociedade civil. internacional abrandara, pelos empréstimos externos. Mas uma mudança súbita
No Chile, após a queda de Salvador Allende em 1973, a Igreja foi uma das pou- no sistema financeiro mundial cortou o fluxo de capitais para a América Latina.
cas instituições autónomas capazes de criticar a ditadura militar e de socorrer as Em agosto de 1982, o governo mexicano declarou-se impossibilitado de
cada vez mais pessoas que empobreciam em virtude das políticas económicas.,, pagar os juros sobre a sua dívida a bancos estrangeiros. Ao México não tarda-
Em Cuba, onde, historicamente, a religião tinha um papel pouco relevante, a ram a seguir-se todos os países latino-americanos, incluindo Cuba. (A suspensão
Igreja não conseguiu resistir ao apertar da malha do Partido Comunista na socie- dos pagamentos da dívida ocorreu também em países africanos e asiáticos, mas

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HISTÓRIA DA A M É R I C A L A T I N A NACIONALISMO E D E S E N V O L V I M E N T O : UMA A N A L I S E GLOBAL

a dimensão da dívida da América Latina concentrou a atenção internacional no ignorar as implicações de recorrer a tais empréstimos com taxas de juro «flutu-
continente.) O total da dívida latino-americana em 1982 era estimado em $315,3 antes», e não fixas. Porém, depois do choque da segunda subida do preço do
mil milhões, sendo que mais de $270 mil mihões diziam respeito à dívida de ape- petróleo, em 1979, as administrações conservadoras dos EUA e de outros países
nas cinco países - precisamente aqueles que tinham apresentado o crescimento industrializados, como a Grã-Bretanha, decidiram controlar a sua inflação
ISI mais rápido nas década de 60 e de 70. O Brasil era o primeiro da lista, com interna restringido a oferta de dinheiro e de crédito; esta política económica
uma dívida $87,5 mil milhões; o México devia $85,5 mil milhões; a Argentina, asfixiou a procura no Ocidente e provocou uma nova recessão mundial. As taxas
$43,6 mil milhões; a Venezuela, $31 mil milhões; e o Chile, $17 mil milhões (*) de juro internacionais sobre a dívida externa começaram subitamente a registar
A que se devia esta crise? A causa imediata foi a subida abrupta das taxa de subidas sucessivas, até que, em meados de 1982, a maioria dos países do Ter-
juro dos EUA em 1979-82. Esta subida foi determinada pelas elevadas taxas de ceiro Mundo se viu incapaz de cumprir os seus pagamentos.
inflação e pela consequente queda do dólar, quando a OPEP aumentou brusca- O endividamento e a inflação elevada não eram, no entanto, peculiaridades
mente o preço do petróleo em 1973 e depois em 1979. Seguiu-se uma recessão da América Latina. De facto, a maioria dos governos dos países industrializados
mundial, que teve um efeito devastador nas economias da América Latina: os vira a sua dívida aumentar sistematicamente durante a década de 70. O défice
preços dos bens de consumo entraram em queda nos mercados mundiais, preci- orçamental dos EUA em 1982 era, na realidade, superior ao dos piores devedores
samente quando eram necessários lucros mais avultados para fazer face à rápida latino-americanos e nos anos 80 a administração Reagan, receando a impopula-
subida das taxas de juro da dívida externa. tí ridade eleitoral, não procedera à redução do défice aumentando os impostos ou
O aliciante sistema de concessão e pedido de empréstimos que, respetiva- cortando nas importações. Mas foi a dívida latino-americana, e não o défice dos
mente, os bancos ocidentais e os governos latino-americanos haviam levado a EUA, que causou alarme internacional, porque a saúde económica de um país
cabo durante os anos 70 tivera a sua origem no mesmo fenómeno que havia de era avaliada de acordo com a capacidade que se lhe reconhecia de superar as
lhe pôr um fim abrupto uma década mais tarde: a subida dos preços do petróleo, suas dificuldades financeiras, um fator que se expressava nos termos da relação
determinada pelo cartel de produtores da OPEP, em 1973 e em 1979. Os eleva- entre o pagamento de juros e os lucros das exportações. Numa tal avaliação, os
dos preços do petróleo permitiram que os países produtores, especialmente os países da América Latina obtinham maus resultados, dado que tinham, de certo
Estados árabes do Médio Oriente, obtivessem enormes excedentes na sua modo, negligenciado o setor das exportações, ao perseguirem o objetivo da subs-
balança de pagamentos. Os lucros da exportação de petróleo eram demasiado tituição de importações. Em 1982, a maioria apresentava pagamentos de juros
avultados para serem totalmente absorvidos pelo investimento nas suas econo- que ultrapassavam em 20% as exportações; o Brasil e a Argentina foram os que
mias internas e, por isso, estes países da OPEP depositaram um vasto capital em se saíram pior, com uma razão de 57,1% e de 54,6%, respetivamente, enquanto
bancos europeus e norte-americanos. Os banqueiros ocidentais procuraram, o México, apesar de ser um importante exportador de petróleo, apresentava uma
então, formas de conseguir um bom retorno por estes depósitos caídos do céu, e razão de 39,9% (*)• Por outras palavras, as economias que tinham registado um
os seus clientes mais ansiosos eram os países do Terceiro Mundo, que, como crescimento mais rápido nos anos 70 eram as mais endividadas na década
sempre, se mostravam ávidos por capital de desenvolvimento. seguinte.
A América Latina mostrou-se especialmente vulnerável à persuasão dos Onde falhara o desenvolvimento pela ISI? Basicamente, não conseguira
bancos ocidentais, pois no início da década de 70 os mais avançados dos países curar o mal subjacente à economia latino-americana, que se fazia notar desde os
em processo de industrialização tinham, como vimos, chegado ao limite da fase anos 20 - falta de produtividade. Tendo por meta a autossuficiência, os estrate-
«difícil» da substituição de importações; o desenvolvimento voltado para dentro, gos económicos concentraram-se na substituição das importações industriais
subsidiado pelo Estado, só podia ser mantido à custa de empréstimos contraídos criando indústrias nacionais e protegendo-as através de tarifas elevadas, em
no estrangeiro, para cobrir os défices cada vez mais elevados entre o rendimento detrimento da agricultura e do setor das exportações. (O Brasil era uma exceção
nacional e a despesa. Seguiu-se uma espiral louca de empréstimos irresponsá- parcial, visto que a partir de meados da década de 70 começara a subsidiar as
veis, movidos pela sede de lucro, e de endividamento insensato, em que tanto os exportações industriais - um exercício dispendioso e que não resolvia o pro-
banqueiros ocidentais como as autoridades latino-americanas pareciam querer blema fulcral da produtividade.) A indústria nacional fora excessivamente prote-
gida durante demasiado tempo, e não conseguira tornar-se eficaz e competitiva:

f) Ver Anexo Estatístico, quadro 5. (') Ver Anexo Estatístico, quadro 6.

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO: UMA A N A L I S E GLOBAL

o preço das suas manufaturas chegava a ser três vezes superior ao preço mundial Obtiveram, então, financiamento adicional junto de bancos estrangeiros, com-
As economias latino-americanas ficaram, assim, não apenas com um setor prometendo-se para tal a implementar medidas de austeridade com vista a redu-
exportador não produtivo, ainda dominado por bens de consumo primário de zir a inflação e a equilibrar a balança de pagamentos. Para equilibrar as contas
baixo valor, mas também com um setor industrial não produtivo, que ainda assim internas e externas, as importações tinham de ser drasticamente reduzidas e as
consumia dispendiosas importações de tecnologia(f). O défice crónico entre as exportações aumentadas. Mas semelhante tarefa colocou um fardo esmagador e
exportações e as importações originava uma inflação elevada e a acumulação de por vezes destrutivo sobre o povo latino-americano: o corte nas importações
dívidas. levou a que muitos bens de consumo diário, incluindo alimentos, ficassem indis-
Para tornar a situação ainda mais difícil, o problema da dívida fora severa- poníveis ou proibitivamente caros, ao mesmo tempo que as fábricas deixavam de
mente agravado pela instabilidade financeira causada pela hiperinflação dos anos conseguir adquirir as peças e a maquinaria necessárias para aumentarem a pro-
70. Quando a confiança na economia se evaporou em finais da década, deu-se dução e melhorarem o seu desempenho. A exportação de manufaturas tornou-se,
uma enorme fuga de capitais. Em vez de investirem no seu país - onde a moeda assim, cada vez mais difícil, precisamente quando o aumento das tradicionais
praticamente não tinha valor e onde as indústrias davam prejuízos sistemáticos exportações de minérios e produtos agrícolas era limitado pelos baixos preços
-, os latino-americanos ricos compraram propriedades no estrangeiro ou deposi- •*e dos produtos nos mercados mundiais.
taram o seu dinheiro nos mesmos bancos que estavam a conceder empréstimos Ao longo da década de 80, o crescimento económico manteve-se anémico ou
aos seus governos e empresas. Quantias avultadas saíram destes países: segundo até negativo (*). Com o nível de vida tão baixo, os mercados negros e o crime
a estimativa do Banco Mundial, entre 1979 e 1982, $27 mil milhões terão dei- eram os únicos setores a prosperar: nos países andinos, o cultivo da folha da coca
xado o México, o correspondente a quase um terço da sua dívida externa era e de marijuana permitia a subsistência dos camponeses, mas o contrabando de
1982, e $19 mil milhões da Argentina, cuja dívida em 1982 era de $43,6 mil droga para os EUA e para a Europa Ocidental, organizado por redes mafiosas,
milhões. (Brasil e Colômbia não foram muito afetados devido ao seu cresci- deixava um rasto de corrupção e ausência de lei em todos os países afetados pelo
mento sustentado e às suas elevadas taxas de juro internas.) Os EUA e os ban- tráfico. De um modo geral, a extrema pobreza de grandes setores da população
queiros europeus pactuaram plenamente com este ciclo financeiro louco, tornou o risco de conflagrações sociais preocupantemente elevado: em grandes
impondo empréstimos a juros elevados aos governos latino-americanos, ao cidades como Buenos Aires, Rio de Janeiro e Caracas os pobres dos bairros de
mesmo tempo que fechavam os olhos aos lucrativos depósitos provenientes de lata viam-se por vezes reduzidos à necessidade de pilhar supermercados para
fontes latino-americanas privadas (que na maioria das vezes eram os beneficiá- arranjarem alimento.
rios indiretos desses mesmos empréstimos). As condições impostas pelos bancos estrangeiros geraram, compreensivel-
Quando o sistema entrou em rutura, foram os assalariados e os pobres que mente, ressentimentos em todos os países latino-americanos, mas todos aceita-
mais sentiram a crise: a inflação atingiu nos anos 80 níveis ainda mais elevados ram a disciplina financeira, embora com diferentes graus de entusiasmo, devido
do que nos anos 70, os salários reais caíram e a despesa pública em subsídios de aos tremendos custos sociais envolvidos e às consequentes dificuldades políti-
alimentação, transporte, saúde e educação sofreu um corte abrupto. Entre 1980 e cas. Durante o resto da década, os governos latino-americanos desenvolveram
1984, o crescimento global da América Latina caiu quase 9%. O consumo per complexas negociações com os bancos credores quanto aos termos para a restru-
capita diminuiu 17% na Argentina e no Chile, 14% no Peru, 8% no México e no turação das suas dívidas. Visto que iam contraindo novos empréstimos para
Brasil. O desemprego urbano duplicou na Argentina, no Uruguai e na Venezuela cumprirem o pagamento de juros, o fardo total do endividamento continuou a
entre 1979 e 1984, atingindo proporções sem precedentes nos restantes países. acumular-se a uma taxa anual de cerca de 9%. Em 1987, segundo alguns cálcu-
Esta subida a pique ocorreu, além disso, em países onde o desemprego já era los, a América Latina era um exportador líquido de capital para o mundo desen-
endémico, e onde o apoio da segurança social aos desempregados era reduzido volvido, tendo já remetido para os bancos uma importância ($121,l mil milhões)
ou inexistente. superior ao montante que recebera no período de 1974-81 ($100,7 mil milhões).
Para evitarem um colapso económico total, os governos precisaram de con- Alguns países tentaram libertar-se da espiral de dívida incessantemente
trair novos empréstimos para pagar as suas dívidas e retomar o investimento. acumulada procurando limitar os pagamentos de juros. No Peru, o governo

(*) Para dados ilustrativos sobre a estrutura de importações e exportações, ver Anexo
Estatístico, quadro 9. rr (*) Ver Anexo Estatístico, quadro 3.

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATIM A NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO! UMA ANALISE GLOBAL

A.PRA de Alan Garcia, ao ser eleito em 1985, declarou que iria limitar os paga- receberiam um novo financiamento através do Banco Mundial ao longo dos três
mentos a 10% dos lucros da exportação, para que a despesa do Estado no apoio anos seguintes se aceitassem implementar um programa de reforma económica
social não tivesse de sofrer cortes tão drásticos. Mas o que se ganhou através do concebido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que exigia a redução da
não pagamento perdeu-se numa inflação galopante e na ausência de novos despesa pública, a privatização do grande setor público da economia, o levanta-
empréstimos dos bancos, que se recusaram a restruturar as dívidas peruanas mento dos obstáculos ao comércio e ao investimento estrangeiro, e estimular as
Desesperado por crédito, Garcia propôs-se nacionalizar o setor bancário do país, exportações. Os países devedores não tinham grande opção além de negociar
mas esta opção gerou uma enorme onda de protesto e dividiu profundamente a estes acordos com o FMI, mas o plano não alcançou o objetivo pretendido por-
nação. No final do mandato de Garcia, o país encontrava-se à beira do colapso que a maior parte do novo dinheiro que ficou disponível tinha taxas de juro
social e económico, com a hiperinflação a uma taxa anual de 2700%. Também o variáveis, o que aumentava o fardo da dívida.
Brasil receava a perda de soberania para entidades externas, e, com José Sarney Em março de 1989, após a eleição do presidente George Bush, o novo secre-
na presidência, declarou uma moratória para o pagamento de juros em fevereiro tário do Tesouro norte-americano, Nicholas Brady, introduziu um plano que
de 1987; mas, mais uma vez, o resultado foi a hiperinflação, a falta de crédito envolvia a redução da dívida pelos bancos, bem como a troca de empréstimos
estrangeiro e uma intensa agitação social. A moratória foi, então, abandonada no antigos por títulos de dívida de longo prazo comprados com desconto ou conver-
início de 1988. Só o medo de provocar crises internas incontroláveis dissuadiu tidos para uma taxa de juro fixa, e a concessão de novos empréstimos durante
os países devedores de se unirem e de formarem um cartel de devedores contra um período de quatro anos a taxas de juro mais estáveis. Estas propostas revela-
a banca ou de repudiarem a dívida, pura e simplesmente, como Fidel Castro vam um certo reconhecimento, por parte dos EUA, da impossibilidade de a
sugeriu na altura. América Latina alguma vez conseguir pagar toda a dívida acumulada e respeti-
Parecia não haver outra saída para a crise de endividamento senão através de vos juros, e eram também a aceitação dos intoleráveis fardos económicos e
um qualquer esforço internacional coordenado com vista a perdoar toda ou parte sociais que o problema da dívida representava para a população da região.
da dívida e a relançar as economias em crise da América Latina, concedendo- O plano ficou, no entanto, aquém do nível de redução dos juros necessário para
-Ihes novo capital para investimento produtivo, e já não para pagar dívidas anti- permitir que os países devedores retomassem um crescimento significativo, e
gas. Mas as nações credoras não conseguiram chegar a acordo relativamente a não se considerou provável que resultasse em muitos novos empréstimos ou até
semelhante estratégia, embora um relançamento económico no Terceiro Mundo na redução do volume global de dívida. Como observou o Wall Street Journal a
tivesse estimulado a procura mundial e recuperado a saúde da economia interna- respeito do Plano Brady: «Procurava, em primeiro lugar, responder à vontade
cional, que continuou em recessão até finais da década de 80. Os governos das dos bancos de saírem da América Latina e de outros grandes devedores do Ter-
nações credoras estavam relutantes em comprar dívida aos bancos privados, e os ceiro Mundo, pouco se preocupando em satisfazer a necessidade que essas
bancos não estavam preparados para suportar quaisquer perdas relativamente aos nações tinham de financiamento internacional» (*). Os banqueiros ocidentais
empréstimos que tinham concedido ao Terceiro Mundo durante os prósperos estavam agora mais interessados nos países da Europa de Leste, onde a queda
anos 70. Alguns dos maiores bancos reduziram a sua exposição a um possível dos regimes comunistas abrira um mercado potencialmente vasto para novo
incumprimento no pagamento pondo de parte um parcela dos seus lucros recor- crédito.
des, como forma de compensação pelo risco; esta estratégia colocou a banca Era evidente que a crise da dívida só podia ser resolvida num contexto inter-
numa posição ainda mais forte para negociar com os devedores latino-america- nacional. Porém, na década de 80, o panorama mundial era extremamente desfa-
nos, uma vez que o incumprimento já não representava uma ameaça grave para vorável à América Latina e impediu a região de vencer a crise à custa das expor-
o sistema financeiro. tações, apesar dos seus esforços tremendos: os preços dos minérios e dos bens
Para além da procura de lucro por parte dos bancos, o que impedia o alívio agrícolas estavam muito desvalorizados no mercado mundial, enquanto as
ou o perdão das dívidas era o receio de que novos empréstimos encorajassem um exportações de manufaturas industriais se retraíram devido à falta de capital para
retomo ao velho modelo fechado de desenvolvimento com base na substituição importar a tecnologia necessária, e também devido a algum protecionismo contra
das importações, e temia-se que este comportamento levasse a novas crises de manufaturas do Terceiro Mundo nos países desenvolvidos. Segundo o banqueiro
endividamento no futuro. Todavia, em 1985, o secretário do Tesouro dos EUA, e ex-ministro peruano Pedro-Pablo Kuczynski, a solução para o problema surgi-
James Baker, anunciou um plano que tentava combinar algum alívio da dívida
com uma restruturação económica. Segundo o Plano Baker, os países devedores
(') 23 de janeiro de 1990.
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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

ria através de «uma mistura de políticas e acontecimentos - como reformas nos enfatizava o mercado interno, assumindo a impossibilidade das exportações
países devedores, renovação de influxos de capita! e uma economia internacional industriais» O- Os novos presidentes latino-americanos puseram de parte esta
mais flexível» (f). inclinação para a autossuficiência e para a regulação, e aceitaram os princípios
Em finais dos anos 80, havia um consenso cada vez mais alargado entre uma básicos de uma economia de mercado, propondo, com uma certa cautela, dadas
nova geração de políticos e estrategos latino-americanos quanto à necessidade de as imensas dificuldades, abrir as suas economias ao comércio externo e ao inves-
uma reforma estrutural interna da economia. Prevalecia a ideia de que o setor timento. Em 1988, Carlos Salinas de Gortari foi eleito presidente do México. Em
público crescera demasiado e que as indústrias internas tinham sido sobre-prote- 1989, o peronista Carlos Menem conquistou a presidência da Argentina, e o
gidas durante muito tempo. O controlo da inflação, a redução dos défices orça- democrata-cristão Patricio Aylwin tornou-se o primeiro presidente do Chile
mentais e uma transição para taxas de câmbio realistas eram pontos conside- escolhido através de eleições livres desde 1970. Em 1990, o Brasil elegeu
rados prioritários. Havia, além do mais, a noção de que a industrialização ocor- Fernando Collor de Mello, então com 40 anos; a liberal Violeta Chamorro der-
rera com excessiva rapidez, com demasiados erros de planeamento e projetos rotou o sandinista Daniel Ortega na Nicarágua; o reformista Luis Lacalle foi
esbanjadores, ao mesmo tempo que o desinteresse pela economia rural resultara eleito no Uruguai; e no Peru, Alberto Fujimori, um agrónomo de ascendência
numa terrível desorganização económica e num clima de instabilidade política. japonesa que não tinha ligações a nenhum dos partidos estabelecidos mas que
O aumento da produção agrícola, especialmente para consumo interno, ajudaria defendia a mudança, venceu as eleições contra o romancista Mário Vargas Llosa,
a conter o êxodo rural e a alargar o mercado interno para a indústria. outro independente, que defendeu na sua campanha políticas neoliberais de
E se tais reformas tinham como finalidade restaurar o funcionamento de um mercado livre.
mercado livre para empregar os recursos de modo mais eficaz, era também con- Tal como na década de 60, surgira na América Latina uma geração de diri-
sensual que as circunstâncias dos países em vias de desenvolvimento exigiam gentes políticos empenhados na democracia e na reforma. Depois, os EUA
alguma regulação por parte do Estado para providenciar os serviços básicos. Na tinham dado início à Aliança para o Progresso, um ambicioso programa de coo-
maioria dos países da América Latina, verificou-se um enorme crescimento peração económica e política, mas os tempos não haviam sido favoráveis ao
populacional - um aumento de cerca de 32 milhões, em toda a região, entre projeto. Nos anos 90, as circunstâncias foram, contudo, mais propícias: as posi-
1979-1982, um total equivalente ao número de desempregados (*). A reforma da ções económicas e políticas na América Latina estavam bastante mais em sinto-
agricultura também carecia da intervenção do Estado: mantinha-se a questão da nia com as dos EUA e a probabilidade de penetração comunista diminuíra, com
grande fazenda sobredimensionada e improdutiva, e o problema que lhe estava a União Soviética a enfrentar cada vez mais dificuldades internas. Era também
associado, a falta de terra. Uma vez que a redistribuição de terra em grande uma questão de interesse próprio, visto que Washington estava profundamente
escala seria uma medida explosiva do ponto de vista político e infrutífera numa preocupado com o comércio internacional de estupefacientes e já oferecera aos
perspetiva económica - pelo menos a médio prazo -, a reforma agrária exigiria países andinos algum apoio militar e económico para combater o tráfico. Mas o
um equilíbrio delicado entre crescimento económico e justiça social. Em suma, melhor remédio a longo prazo era o desenvolvimento económico da região, e os
se o mercado livre era necessário para corrigir os erros do passado, seria neces- EUA e outros países desenvolvidos estavam em posição de contribuir para a
sária alguma mediação do Estado, uma vez que se tratava de sociedades profun- estabilização das revoluções industriais latino-americanas e para a consolidação
damente divididas. do Estado democrático. Esta seria uma tarefa de significado histórico, pois a
Nos últimos anos da década de 70, em países importantes foram eleitos América Latina 'chegara, nos anos 90, a uma fase do seu desenvolvimento em
vários novos líderes que estavam preparados para rever o nacionalismo econó- que se deparava com a melhor oportunidade desde a independência para concre-
mico dogmático herdado da década de 30. Na opinião do argentino Guido di tizar os ideais democráticos dos seus grandes libertadores.
Telia, economista e político peronista, esse nacionalismo originara um modelo
de desenvolvimento industrial com base numa «estratégia económica que (...)

C) Latin American Debt, A Twentieth Century FundBook (The Johns Hopkins University
Press: Baltimore e Londres, 1988), p. 176.
(*) Para dados ilustrativos sobre a dimensão da população em países selecionados, ver
Anexo Estatístico, quadro 1. C) Thorp e Whitehead, Latin American Debt and the Adjustment Crisis, p. 162.

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N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA

hiperinflação. Na Argentina, por exemplo, o governo radical de Raul Alfonsín


Desenvolvimento e Identidade Nacional em Perspetiva Histórica
viu-se pressionado por oficiais militares rebeldes, de um lado, e sindicatos pero-
A década de 80 do século xx foi «a década da democracia» na América nistas intransigentes, do outro, enquanto a inflação prosseguia a sua escalada,
Latina, em contraste com os anos 60 e 70, que tinham sido abalados por guerras tendo atingido uma taxa de cerca de 1500% ao ano em 1989. Em 1985, o pri-
de guerrilha contra o Estado e ditaduras militares reacionárias. Em meados dos meiro político da APRA nacionalista a ser eleito para a presidência do Peru
anos 70, só a Colômbia, a Venezuela e a Costa Rica tinham elegido governos. viu-se a braços com uma inflação de quatro dígitos no final da década, depois de
Passado pouco mais de dez anos, a democracia era a regra, e as exceções eram ter incorrido na hostilidade das classes médias urbanas e do setor dos negócios
Cuba, as nações conturbadas da América Central, o Chile e o Paraguai, embora ao tentar apoderar-se dos bancos e ao insistir em medidas expansionistas apesar
até nestes dois últimos países se tenham realizado eleições nos últimos anos da da dívida externa.
'•** -V Os países que melhor conseguiram restruturar as suas economias foram os
década, como preparação para um retorno a um governo constitucional. Que
significado se pode atribuir a este fenómeno? governados por elites tecnocráticas unidas e pragmáticas, que gozavam de algum
O problema da dívida pusera de facto a nu a crise subjacente, de longa data, consentimento baseado na responsabilidade social: México, Brasil, Colômbia e
do Estado, tanto quanto a crise do modelo de desenvolvimento económico. Venezuela conseguiram, até certo ponto, controlar a inflação, diversificaram e
A restauração da democracia nos anos 80 refietia um desejo generalizado de aumentaram as suas exportações, e cumpriram, com maior ou menor rigor, os
regressar aos princípios sobre os quais se haviam fundado as repúblicas latino- pagamentos das suas dívidas. O Chile do general Pinochet também se saiu muito
-americanas, princípios que desde o tempo da independência tinham sido mais bem; vinha liberalizando à força a sua economia desde os anos 70 do século xx
vezes violados do que observados. A experiência dos anos 70 mostrara que um e apesar do seu péssimo desempenho no que respeitava a dkeitos humanos, con-
Estado forte, duradouro, não podia ser alcançado apenas através do poder militar tou com o apoio tácito das classes médias até enfrentar problemas irremediáveis
ou da violência revolucionária. Neste aspeto, a restauração democrática dos anos de consentimento político em meados dos anos 80. Em 1989, o Chile tivera, pelo
80 pode ser vista como uma afirmação, pela grande massa da população da Amé- menos, eleições presidenciais livres, e elegera um democrata-cristão que estava
rica Latina, da necessidade de um Estado legítimo que reunisse o consentimento empenhado no controlo da inflação e no prosseguimento de uma economia de
do povo enquanto unidade: o regresso à democracia refietia, em suma, a aspira- mercado livre; as eleições iriam provavelmente fortalecer a legitimidade política
ção generalizada a uma genuína identidade nacional. do Estado chileno e melhorar as suas hipóteses de ultrapassar a crise de endivi-
O descrédito das forças armadas como agentes políticos indicava que a era damento. Apesar de tudo, o Estado continuou frágil mesmo nestes países, porque
do nacionalismo voltado para dentro, que começara nos anos 20 e que se conso- não assentava numa lealdade popular inequívoca. (No México, a eleição de
lidara durante a Depressão da década de 30, se aproximava do fim. Este tipo de Carlos Salinas, do PRI, partido que estava no poder, fizera-se acompanhar de
nacionalismo autárcico fora introduzido e mantido, de uma forma ou de outra, protestos veementes contra a manipulação dos votos.)
pelas forças armadas; as ditaduras militares tecnocráticas dos anos 70 podem
ser vistas como o resultado final político deste processo de desenvolvimento. Pode argumentar-se que o factor que repetidamente viciou a modernização
Na década de 80, o nacionalismo dogmático enfrentava uma crise terminal: as da América Latina foi a fraqueza do Estado. Era uma fraqueza que remontava,
realidades económicas e sociais tinham-se tornado demasiado complexas para antes de mais, às circunstâncias da independência, àquela crise profunda de auto-
ser vencidas através das soluções impostas pelos oficiais militares. Antes pelo ridade real que conduzira, por atalhos tortuosos e arriscados, a uma secessão
contrário, o «Estado forte» a que o Exército aspirava revelara-se inalcançável, política que poucos crioulos tinham inicialmente contemplado e cuja derradeira
porque as juntas militares não conseguiam criar uma autoridade legítima com forma constitucional satisfazia menos crioulos ainda. Isto porque as oligarquias
base no consentimento popular. crioulas brancas, cujo poder advinha do modelo de concessões e prémios
Ao longo dos anos 80, foi a autoridade relativa do Estado que determinou a do tempo da Conquista, se viram, depois da independência, constrangidas por
capacidade dos governos de lidarem com as consequências da dívida externa. constituições republicanas elaboradas segundo as prescrições estrangeiras do
Nos primeiros anos da década, sucessivas ditaduras militares viram-se obriga- liberalismo iluminado. Os edificadores das novas nações viram-se, assim, con-
das a demitir-se do poder, tendo esgotado as possibilidades de gestão económi» frontados com a perspetiva de acomodar uma ordem patriarcal estratificada,
pela força e pela lei. Por outro lado, os governos civis eleitos que eram incapazes fragmentada em inúmeras unidades regionais de poder, no seio das estruturas
de se sobrepor a interesses setoriais marcavam passo na desordem gerada pela racionalmente concebidas de uma república liberal. O resultado foi uma confli-

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA N A C I O N A L I S M O E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE GLOBAL

tuosidade crónica entre facões oligárquicas, com intervalos de ordem instituídos, crioulas. Assim, o nacionalismo nunca se libertou do caudilhismo e da política
por líderes fortes. de patrocínio, uma vez que tendia a operar através de grupos de interesse seto-
Mas esta fraqueza do Estado tinha origens ainda mais remotas: provinha das riais, de máquinas eleitorais populistas e de sindicatos geridos por dirigentes
deficiências peculiares do Estado no Novo Mundo. A estabilidade quase preter- políticos. E desta forma, o processo de industrialização conduzido pelo Estado
natural dos impérios ibéricos ao longo de mais de três séculos não deve levar-nos que os nacionalistas puseram em marcha nos anos 40 foi também perturbado
a presumir que os Estados imperiais fossem particularmente fortes: eram resi- •*-: pelo faccionalismo caudilhista e por violentos confrontos sociais, já para não
lientes e adaptáveis, mas o poder efetivo da Coroa estava circunscrito pelos falar dos muitos erros e distorções que agravaram a turbulência destas rápidas
interesses oligárquicos de proprietários terratenentes e comerciantes da América. revoluções industriais.
Nas índias espanholas, concretamente, os esforços determinados da Coroa O desenvolvimento conduzido pelo Estado contribuiu em larga medida para
para consolidar a autoridade do Estado tinham já soçobrado em princípios do as pressões sofridas por um Estado endemicamente fraco, desgastando-o a tal
século xvii, em virtude da indigência real e da despopulação índia. O que restou ponto que, nos anos 70, as forças armadas intervieram para tentar escorá-lo. Esta
foi o monopólio de legitimidade da monarquia católica, um valor não desprezá- intervenção produziu, contudo, o efeito inverso: o Estado quase se desmoronou,
vel, que ligava as colónias à metrópole mais estreitamente do que o exercício com a maioria dos países mergulhada em guerras internas, e com a sociedade
direto de poder teria conseguido fazer. Esse monopólio de legitimidade mais do civil aterrorizada por guerrilhas e esquadrões da morte. Ainda assim, dos despo-
que compensava o estado de nervosismo dos crioulos enquanto classe dirigente jos do Estado latino-americano nominalmente democrático surgiu, em meados
frustrada: munia-os de uma instituição mediadora para as suas disputas oligár- da década de 80, uma nova aspiração popular a uma democracia constitucional
quicas, reunia os focos dispersos de poder regional sob um regime unificado genuína; e as condições para a sua concretização nunca haviam sido tão favo-
flexível e, acima de tudo, mantinha as populações de cor tranquilas. Com efeito, ráveis.
o verdadeiro «pacto colonial» não era, como vimos, económico, mas político: as Nos anos 80, os grupos de interesse sociais que haviam sido inicialmente
elites crioulas aquiesciam à aparente autoridade da Coroa em troca da sua pre- apoiados pelo nacionalismo eram já dominantes nos principais países da Amé-
ciosa justificação para o colonialismo interno, que tanto lhes convinha. rica Latina: as classes médias urbanas eram numerosas e influentes; industriais,
O que mantinha os domínios das índias unidos não era a força, mas os fios empresários e tecnocratas constituíam as elites económicas mais poderosas; e as
de prata da legitimidade real. Porém, quando Napoleão invadiu a Península em classes trabalhadoras organizadas tinham adquirido um papel fundamenta] na

fl 1808, esses fios quase invisíveis enlearam-se e acabaram por se romper — a fra-
queza intrínseca do Estado imperial levou a que as índias se fragmentassem.
cena política. Do ponto de vista sociológico, por assim dizer, os países avança-
dos tinham atingido um ponto do seu desenvolvimento em que se tornara final-
As muitas divisões que sempre tinham, na realidade, fraturado aquelas socieda- mente possível alcançar um sentido de identidade nacional moderno, abrangente.
des americanas emergiram no jogo violento dos caudilhos, uma espécie de facio- O desenvolvimento industrial nacionalista, e a rápida expansão urbana que lhe
nalismo baronial dos tempos modernos, que de tempos a tempos era reprimido estava associada, propiciaram uma transformação dos valores e práticas tradicio-
pelo absolutismo degradante de tiranos carismáticos. Apenas algumas repúblicas nais. As principais repúblicas latino-americanas já não eram dominadas por
conseguiram dominar o caudilhismo através da manipulação ou da redução do economias agrárias controladas por oligarcas senhoriais. Entre a década de 40 e
processo eleitoral, de modo a permitir que os interesses das elites crioulas obti- a de 80, tinham evoluído para sociedades de consumo dinâmicas e socialmente
vessem resposta em instituições políticas. diversificadas, com uma miríade de interesses envolvidos no mercado. Nestas
Até aos anos 20, o grosso da população - brancos pobres, pessoas de sangue circunstâncias, as práticas tradicionais com origem em sociedades aristocráticas
misto, índios e negros - estava excluído do sistema político. O nacionalismo foi rurais foram-se tornando ineficazes, não podendo satisfazer as necessidades
o veículo da libertação para as massas; difundiu a noção de direitos civis e do políticas e económicas das grandes populações urbanas.
bem comum para além dos limites das elites crioulas brancas; e, por fim, pro- As formas tradicionais de patriarcado - a proteção e o clientelismo, a pro-
moveu a democratização da cultura latino-americana. No entanto, os políticos cura de estatuto pessoal e a defesa da honra, o tecer de lealdades próprias de um
nacionalistas chegaram ao poder através de esquemas caudilhistas e de intrigas clã através de favores e recompensas - tinham permeado a sociedade tanto na era
militares. Tinham, além disso, na sua maioria, a mácula do fascismo europeu o$ pré-colombíana como na era colonial, e tinham marcado a cultura política dos
do autoritarismo católico, de tal modo que a mera noção de democracia liberal caudilhos liberais e conservadores do século xix. No século xx, estes valores
merecia tanta desconfiança como a sua perversão oligárquica por parte das elites tradicionais haviam sido recuperados pelo «corporativismo natural» de Estados

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HISTÓRIA DA A M E R I C A LATINA

burocráticos motivados por um nacionalismo económico dogmático e vokado ,S


sobre si mesmo. Porém, do mesmo modo que os caudilhos rurais foram substi-
tuídos por caudilhos urbanos no começo do desenvolvimento da indústria, tam-
bém o crescimento da economia industrial viria, com o tempo, a tornar supérfluo
um conjunto de valores patriarcais com origem nas sociedades agrárias oligár-
quicas. A literatura e as artes dos anos 80 davam sinais de que semelhante trans-
formação estivesse, com efeito, a decorrer (ver capítulo 15). Apesar da terrível
recessão induzida pela dívida externa, tornou-se então possível conceber urn
consenso entre grupos de interesse urbanos fundamentais em favor dos princí-
pios de um Estado pluralista moderno, um Estado de direito baseado em institui-
ções representativas e responsáveis - um Estado como o que Bolívar ou San '
Martin terão possivelmente desejado.
Este otimismo qualificado só era possível numa visão muito distante. A gra- CAPÍTULO 10
vidade da crise de endividamento fazia da agitação social, das revoltas populares
e de novas aventuras militares cenários altamente prováveis, em especial nas México: Revolução e Estabilidade
repúblicas mais pequenas com muitas comunidades índias tradicionais, onde a
industrialização e a urbanização estavam ainda numa primeira fase. Mas nas
repúblicas onde a modernização económica ia já bem avançada e onde existia
uma certa tradição de política eleitoral - repúblicas como Brasil, México, Chile,
Uruguai, Colômbia, Venezuela, talvez também a Argentina e, possivelmente, o O Fim do Porfiriato
Peru - os efeitos catastróficos da dívida externa, aliados à memória das terríveis
guerras intestinas dos anos 70, poderão ter engendrado um consenso popular No último quartel do século xix, o México, à semelhança da Argentina e do
embrionário capaz de sustentar as instituições de um Estado democrático legí- Chile, desfrutara de estabilidade política e de progresso económico. Porém, ao
timo. contrário daquelas repúblicas, não conseguira reunir condições para uma demo-
Os líderes latino-americanos dos anos 80 tomaram como modelo para os cracia constitucional. Longe disso, fora governado, em todo o referido período,
seus países a transição da ditadura tradicionalista para uma democracia pluralista por um ditador liberal, Porfirio Díaz, cuja lealdade à grande constituição liberal
que ocorrera em Espanha e em Portugal em meados da década de 70. Estas tran- de 1857 se ficava pelas palavras.
sições democráticas na Península eram, na verdade, prova de que a herança O Porfiriato ficou a dever o seu sucesso à perícia do velho ditador na arte
ibérica, tantas vezes apontada pelos latino-americanos progressistas como a
• * í} bem difícil de agradar a todos os grupos de interesse relevantes no México.
causa para o atraso dos seus países, não impedira eternamente as antigas potên- Numa nação nominalmente federal e ainda altamente diversificada, Díaz alcan-
cias coloniais de criarem uma economia e uma sociedade modernas. çara o centralismo necessário para permitir um rápido desenvolvimento econó-
mico sem hostilizar os muitos interesses locais que tinham de ser mantidos no
lugar para que o país não voltasse a cair na desordem por que passara sucessivas
vezes desde a independência. Uma vasta teia de patrocínio ligava todos os
grupos e instituições que de outra forma poderiam entrar em conflito entre si
pelo saque da administração pública. Nessa teia estavam enredados as grandes
oligarquias regionais, os potencialmente rebeldes generais do Exército, a Igreja,
os comerciantes e as classes profissionais urbanas. Mas esta organização tinha
um defeito: para se manter, dependia da sobrevivência do seu grande artífice.
E em 1900 Don Porfirio completou 70 anos - durante quanto tempo poderia
continuar?
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

O México precisava ainda de resolver o seu problema político de base: como «científicos» foi Morelos, a sudoeste da Cidade do México. Aí, foram as comu-
gerir a transferência de poder de um governante para o próximo sem o risco de nidades índias que se sentiram mais afastadas, ao verem as suas terras ameaçadas
sofrer uma catástrofe. Uma solução evidente seria a criação de um partido nacio- por barões do açúcar que procuravam retirar proveito da substituição do tradicio-
nal. Um partido do género preservaria a fonte central de patrocínio, algo de nal caudilho por um simpatizante dos «científicos».
essencial para governar o país, mas despersonalizá-la-ia ao definir regras para a A contestação «científica» das elites regionais consistia na tentativa de cen-
sucessão presidencial. Um sistema deste tipo surgiria em 1929, mas não antes de tralizar a autoridade política, objetivo que sucessivos modernizadores, desde o
o México passar por duas décadas de guerra civil. É que o verdadeiro obstáculo tempo dos Bourbons, não tinham conseguido alcançar. Fora esse tipo de centra-
à institucionalização do patrocínio do Estado era a falta de legitimidade, esse lização, levado a cabo por unia elite dominante, que permitira que repúblicas
elixir do prolongamento da vida que escapara a todos os responsáveis pela cons- como o Chile e a Argentina superassem o problema do separatismo regional e
trução do Estado mexicano, incluindo Don Porfirio, desde a independência. avançassem rapidamente para a prosperidade e um governo constitucional está-
À medida que o problema da sucessão de Díaz se tornava mais premente, vel. Todavia, no México, o regionalismo estava demasiado enraizado, e os «cien-
aumentava a tensão entre as duas facões mais poderosas do regime. De um lado tíficos» não possuíam nem a legitimidade nem o poder militar necessários para
estavam os «científicos», tecnocratas liberais progressistas ligados à elite dos expulsar as famílias locais dos seus bastiões de poder. Assim, nos últimos anos
negócios da Cidade do México, embora com contactos nas províncias. Este do Porfiriato, a teia de patrocínio de que o velho ditador se rodeara começava a
grupo defendia a criação de um partido governante. Do outro lado, uma facão romper-se em certos pontos, mas não havia caudilho ou facão política que pare-
mais tradicional de caudilhos com raízes profundas nas regiões, que viam na cesse capaz de reparar os danos.
institucionalização uma ameaça à base pessoal de poder que detinham no seu Para além da luta pelo poder no topo da pirâmide, havia um desconten-
território. Estes homens preferiam o jogo de poder à moda antiga, entre barões tamento cada vez maior entre a população geral. Isto porque, em 1907, a pior
regionais e os seus clãs. Eram liderados pelo general Bernardo Reyes, o ministro crise económica do Porfiriaío, desencadeada pela recessão nos EUA, afetou o
da Guerra, pelo que gozavam de uma forte influência no Exército. Como sempre nível de vida de todas as classes sociais. A recessão foi agravada por sucessivas
acontecera no México, a causa subjacente da tensão política era o conflito entre más colheitas, que perturbaram o fornecimento de alimentos e determinaram a
regionalismo e centralização. subida dos preços dos bens essenciais. A inflação, a queda dos salários e o
Na primeira década do novo século, o talento político do velho ditador pare- desemprego geraram uma miséria sem precedentes entre os camponeses e os
cia estar a abandoná-lo. Ao mostrar preferência pelos «científicos», gerou res- trabalhadores da indústria. Ainda antes da crise, os trabalhadores tinham come-
sentimentos no campo de Reyes. Em 1903, nomeou um «científico» para seu çado a reagir à inflação com grandes paralisações - sobretudo em Veracruz,
vice-presidente, e pouco depois demitiu Bernardo Reyes do Ministério da Chihuahua e Sonora -, que em alguns casos foram reprimidas com brutalidade.
Guerra. Estas decisões foram vistas como indícios de que Díaz se preparava para Esta repressão radicalizou setores da classe operária e deu um novo impulso ao
formar um partido nacional, como pretendiam os «científicos». Esta facão pro- Partido Liberal Mexicano (PLM), liderado pelos revolucionários irmãos Flores
curou, então, estender e consolidar a sua influência política nas regiões, colo- Magón, que absorveram ideias anarcossindicalistas e inspiraram uma onda de
cando os seus próprios homens em cargos cruciais dos governos das províncias greves em resposta à recessão.
ou forjando novas alianças com interesses locais emergentes. Perante o desenro- Também as classes médias foram afetadas pela inflação, bem como pelo
lar dos acontecimentos, muitas elites estabelecidas nas regiões começaram a aumento de impostos e pelas severas condições de crédito exigidas pelos bancos,
sentir-se afastadas do poder central, especialmente nos estados junto à fron- maioritariamente em mãos estrangeiras. Uma nova geração de mexicanos cultos
teira norte, como Sonora, Chihuahua e Coahuila, onde a influência de Bernardo de classe média, que se sentia excluída dos empregos numa burocracia rigida-
Reyes era particularmente forte. Em Coahuila, por exemplo, o latifundiário mente controlada pela elite porfirista, aproximou-se do PLM e exigiu a abertura
Venustiano Carranza foi impedido, através de eleições fraudulentas, de se tomar do sistema político, através de uma democracia mais sólida e do debate livre. Até
governador do estado, apesar de ter o apoio das famílias mais importantes da os hacendados da classe alta, que não pertenciam à elite nacional, sentiram os
região. O estado de Chihuahua foi palco de conflitos quando a poderosa famí- efeitos da recessão na dificuldade de acesso ao crédito e nas exigências de paga-
lia Terrazas fez uma aliança com os «científicos» e assumiu o monopólio do * mento de dívidas por parte dos bancos.
poder local, expropriando terras de camponeses para construir uma nova linha Esta insatisfação generalizada adquiriu um cunho nacionalista. A ascensão
férrea. Sem ser no Norte, o Estado mais afetado pela política centralizadora dos da elite tecnocrática, aliada ao grande influxo de investimento estrangeiro a

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HISTORIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

partir de 1900, criou a impressão de que os «científicos» estavam dispostos a • A Revolução Mexicana
vender a nação a estrangeiros, em particular aos EUA. Nos estados fronteiriços
do Norte, os trabalhadores que estavam a construir a linha férrea de Chihuahua A REVOLUÇÃO LIBERAL DE MADERO (1910-13)
e também os mineiros de Sonora, protestavam contra os salários bem mais ele-
vados e contra as melhores condições reservadas aos cidadãos americanos que Porfirio Díaz respondeu ao desafio de Madero pondo o «apóstolo da demo-
trabalhavam ao seu lado. O nervosismo quanto às intenções dos EUA relativa- cracia» na prisão por sedição. Depois, foi reeleito com a habitual vitória esma-
mente ao México era ainda adensado por artigos da imprensa americana que gadora. De novo ao leme, Díaz sentiu-se suficientemente confiante para libertar
advogavam uma nova anexação de território mexicano. Madero sob caução, mas daí em diante não teria a vida tão facilitada: Madero
Era, contudo, o afastamento dos oligarcas do Norte que representava o maior fugiu para o Texas e planeou uma revolta. A 20 de novembro de 1910, publicou
perigo para Don Porfirio. Esse afastamento podia vir a expressar-se num pronun- o Plano de San Luis Potosí, no qual denunciava as eleições realizadas pouco
ciamento militar em favor da luta de Bernardo Reyes contra os «científicos», oy antes como fraudulentas e assumia o título de presidente provisório, incitando os
numa contestação à legitimidade do próprio regime, lançada por um caudilho do Mexicanos a rebelarem-se contra Díaz. A revolta esmoreceu e Madero regressou
Norte que quisesse aproveitar-se do descontentamento popular gerado pela ao Texas, mas o seu apelo às armas trouxe à tona as frustrações dos camponeses
recessão económica. e dos operários de várias regiões. Em Chihuahua, trabalhadores das quintas e
Quando se aproximavam as eleições presidenciais previstas para 1910, Ber- colonos agrícolas sublevaram-se sob a liderança de Pascual Orozco e do antigo
nardo Reyes iniciou as suas manobras formando o Partido Democrático, para fora da lei Francisco «Pancho» Villa. Nos estados Norte formaram-se outros
concorrer à vice-presidência contra o candidato «científico» escolhido por Díaz. grupos revolucionários e começaram a atacar e a ocupar cidades. Mais a sul, no
O seu projeto parecia bem encaminhado quando Díaz declarou, numa entrevista estado de Morelos, liderados por Emiliano Zapata os pueblos índios insurgi-
dada ao jornalista americano James Creelman, em 1908, que não seria candidato ram-se para reclamar as suas terras ancestrais. Nestas regiões, a revolução
às eleições e que chegara a altura de os grupos da oposição intervirem mais ati- democrático-liberal de Madero ganhou os perigosos contornos de uma guerra de
vamente no processo democrático. Díaz não tardou, no entanto, a mudar de camponeses que reclamavam terra. Em fevereiro de 1911, Madero entrou em
ideias quanto à questão da democracia, e enviou Reyes para a Europa. Reyes - Chihuahua e assumiu a liderança dos revoltosos; a 10 de maio, a cidade frontei-
que era, afinal, urn membro da elite governante - recuou da sua posição de riça de Juárez foi capturada por Orozco e Madero estabeleceu aí um governo
desafio e obedeceu. provisório. Os EUA, que tinham, por sua vez, decidido dar um apoio tácito a
O mesmo não fez outro opositor ao regime, Francisco Madero. Em 1908, Madero, mobilizaram 20 000 soldados junto à fronteira e enviaram navios de
Madero publicou a obra La sucesión presidencial en 1910, na qual invocava os guerra para os portos mais importantes.
princípios democráticos da constituição de 1857 para denunciar a ilegalidade do Perante a ameaça de uma revolta incontrolável vinda das camadas mais bai-
regime, tecendo ainda uma boa dose de censuras à política agrária de Díaz e à xas, e confrontados com o óbvio desagrado dos EUA, os «científicos» apercebe-
repressão das greves dos trabalhadores. Madero vinha de uma das famílias mais ram-se de que era tempo de reorganizar os assuntos de Estado - Don Porfirio
poderosas do estado de Coahuila, com negócios no setor dos cereais, no setor tinha de ser afastado, e o jovem Madero devia receber os louros. A 21 de maio
têxtil, na criação de gado e na exploração de minas. E todavia, na sua corrida ao de 1911, os «científicos» e o clã Madero chegaram a um entendimento. Porfirio
poder conseguiu apresentar-se às classes média e baixa como o «apóstolo da Díaz deixaria o país e Francisco Madero convocaria eleições livres; em contra-
democracia». Começou a percorrer o país e em 1910 fundou o Partido Antirree- partida, Madero colaboraria com o governo provisório no desarmamento dos
leição, apresentando a candidatura à presidência. rebeldes. O plano foi bem-sucedido, exceto no estado de Morelos, onde Zapata
A contestação a Porfirio Díaz viera de fora da elite política, mas as facões e os seus índios continuaram a lutar contra os proprietários de terras brancos,
porfiristas rivais também não tinham desistido de chegar ao poder. Dada a sua apesar das tentativas de Madero de mediar negociações.
influência no exército, o exilado Bernardo Reyes viria mais tarde a tentar um As novas eleições presidenciais, realizadas em outubro de 1911, foram pre-
golpe de Estado. Mas antes os «científicos» procurariam absorver o arrivista cedidas de manobras extremamente complexas, nas quais novas e velhas facões
Madero e o seu clã numa nova estrutura de poder anti-Reyes. procuraram ganhar vantagem na construção da estrutura de poder pós-Porfírio.
Os «científicos» ofereceram ao clã Madero apoio condicional para neutralizar os
seus rivais da clique de Reyes. Francisco Madero foi eleito por esmagadora

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HISTÓRIA DA A M É R I C A L A T I N A MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

maioria, em eleições livres e transparentes. O seu primeiro governo incluiu sim- nomear presidente provisório e formou um governo que incluía «científicos»
patizantes dos «científicos», como o seu tio Ernesto Madero, que ficou com a distintos e membros da facão de Bernardo Reyes (o seu filho Rodolfo Reyes foi
pasta das Finanças, depois de ter servido no governo anterior. Mas o triunfo de nomeado ministro da Justiça). As cliques do Porfiriato tinham-se reagrupado
Madero nas urnas não pôs fim às revoltas armadas. Uma vitória das eleições não para expulsar os usurpadores Maderos, e pareciam ter encontrado em Huerta um
bastava para conferir legitimidade a um governo. Havia demasiadas reclamações digno sucessor do próprio Don Porfirio.
contra o poder central, e Madero não conseguira ainda apaziguar os ânimos ou
reprimir os vários reivindicadores.
Com seria de esperar, Bernardo Reyes, que se vira excluído, tentou orques- HUERTA NO PODER (1913-14)
trar um golpe de Estado. Mas era demasiado tarde: a política tornara-se dema-
siado fluida e a sua influência no Exército já não era a de outros tempos; a revolta Apesar de a oposição liberal ao Porfiriato ter sido derrotada, não havia como
militar fracassou e Reyes viu-se na prisão. As hipóteses de sobrevivência de regressar à estabilidade do passado. Madero abrira na estrutura da política nacio-
Madero dependiam agora da sua capacidade de manter a ordem. Mas isso reve- nal uma fenda suficientemente espaçosa para encorajar outra forças periféricas a
lou-se impossível. Em novembro, Zapata proclamou o revolucionário Plano de competir pelo poder central. O que se seguiu foi, afinal, uma guerra civil entre
Ayala, exigindo uma devolução em grande escala de terra às comunidades as oligarquias da Cidade do México e das regiões centrais - as tradicionais elites
índias; nova revolta eclodiu em Chihuahua, e havia também agitação entre o governantes - e novas facões dos estados fronteiriços do Norte. À exceção das
operariado industrial, que aproveitou as liberdades democráticas para organizar forças de Pancho Villa e Emiliano Zapata, que lutavam por objetivos sociais
sindicatos e convocar greves. Por fim, Madero perdeu a simpatia dos EUA radicais, e em particular por terra, poucas diferenças havia entre os propósitos
quando introduziu um imposto sobre a produção de petróleo, medida que agudi- dos caudilhos do Norte e os das elites tradicionais. As circunstâncias dariam,
zou a rivalidade entre interesses petrolíferos britânicos e norte-americanos pelas contudo, às facões do Norte uma série pretextos para a rebelião.
concessões das autoridades mexicanas. O pretexto mais óbvio era o de que o golpe de Huerta contra Madero fora
Em 1912, registaram-se novas lutas entre facões com vista a dominai' o inconstitucional. Em março de 1913, Venustiano Carranza, o governador de
Estado. Os Maderos - Francisco, o seu irmão Gustavo e o seu tio Ernesto - pro- Coahuila, que em tempos fora porfirista e que, numa reação contra os «científi-
curaram cortar as suas ligações aos «científicos», que reagiram com um golpe de cos», se virara para Madero em 1911, proclamou o Plano de Guadalupe, que
Estado, em outubro, liderado por Félix Díaz, sobrinho de Porfirio. Quando a apelava ao derrube de Huerta e ao retorno ao governo constitucional. Em outu-
tentativa foi reprimida, teve lugar um novo golpe em fevereiro de 1913, desta bro, as forças anti-Huerta do Norte estavam já organizadas num «Exército Cons-
vez conduzido por um general «científico». Este segundo golpe também falhou, titucionalista», composto por três ramos principais: o Exército do Nordeste,
mas foi derramado muito sangue, num episódio de dez dias que ficou conhecido comandado pelo primo de Carranza, Pablo Gomález; o Exército do Noroeste,
como La Decena Trágica. (Bernardo Reyes foi morto em combate; Félix Díaz e chefiado por um jovem rancheiro de Sonora, Álvaro Obregón, e a Divisão do
outros dirigentes rebeldes resistiram em La Ciudadela, um arsenal no centro da Norte, que abrangia os estados centro-norte de Chihuahua, Durango e Zacatecas,
Cidade do México, onde foram bombardeados pelo Exército. Houve muitas bai- cujo líder era Pancho Villa. Os primeiros dois exércitos eram essencialmente
xas civis.) constituídos por milícias estatais que já existiam e por trabalhadores das fazen-
As facões antigas tinham perdido terreno; nenhuma conseguira envolver o das dos caudilhos rebeldes e dos seus amigos. Mas Pancho Villa, que em tempos
Exército. Mas, na verdade, os Maderos também não haviam sido capazes de o fora um marginal, atraiu os mais variados recrutas: milicianos, trabalhadores
fazer. O único homem que dera provas de conseguir manter a ordem era Victo- desempregados, camponeses sem terra, delinquentes e cowboys. Villa era, pois,
riano Huerta, o general que suprimira as várias revoltas e os golpes de Estado. potencialmente mais refratário à autoridade de Carranza do que os outros coman-
Era ele, claramente, o novo homem forte do México, e a 18 de fevereiro de 1913, dantes, e a sua luta tinha um pendor social mais radical do que a preconizada por
confiante no apoio do Exército e dos EUA, levou a cabo o seu próprio golpe Carranza: nas regiões que conquistou, Villa fez experiências de distribuição de
contra os Maderos. Os irmãos Francisco e Gustavo foram presos. No dia terras, ensino público e outras medidas de apoio social.
seguinte, Gustavo foi assassinado; quatro dias mais tarde, Francisco, o presi- A necessidade de reformas sociais viria, por fim, a dar aos caudilhos
dente constitucional, e o seu vice-presidente, Pino Suárez, foram também assas- do Norte, politicamente mais agressivos, e especialmente a Álvaro Obregón,
sinados quando estavam sob custódia das autoridades. O general Huerta fez-se um novo pretexto para a revolta. Obregón acabaria por suplantar Carranza,

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HISTORIA DA AMÉRICA LATINA
MÉXICO: REVOLUÇÃO E E S T A B I L I D A D E

defendendo um programa político que atraiu trabalhadores e camponeses, tanto fornecimento de armas e verbas a determinadas facões mexicanas de modo a
influenciar o resultado daquele conflito labiríntico para vantagem dos EUA. No
para minar o antigo regime como para retirar o apoio das classes mais baixas a
fim de contas, a interferência dos Norte-Americanos revelar-se-ia um fator de
Villa e a Zapata - especialmente a este último, que agia à margem dos constitu-
somenos para a resolução do conflito, que foi decidido no campo de batalha. Em
cionalistas, e que era tão receado pelos oligarcas do Norte como pelos do Centro
qualquer dos casos, todas as facões que dividiam o México sabiam que teriam de
As sucessivas concessões de Huerta à Igreja deram aos rebeldes outro pre-
se entender com Washington se quisessem ter alguma hipótese de se estabelecer
texto ainda: os rebeldes do Norte aproveitaram a oportunidade para denunciar os
no poder. Nessa medida, os EUA foram um importante participante na guerra,
seus inimigos como reacionários antiliberais, acusações que, remontando aos
tempos da colónia espanhola, faziam pensar numa ordem imutável de privilégio ainda que secundário.
Victoriano Huerta conseguiu consolidar o seu poder no ano de 1913. Forta-
aristocrático e clerical. Na verdade, a Igreja tinha raízes muito mais profundas
leceu o Exército Federal e a Polícia Rural, e mostrou-se capaz de recuperar a
no Centro e no Sul do México do que no Norte, onde a presença índia era pouco
maior parte do território que perdera no Norte e no Nordeste, embora não em
significativa e onde, por isso mesmo, o colonialismo espanhol fora bastante
fraco. Assim, por razões de geografia e de história, os caudilhos do Norte não Sonora. Em Morelos, as forças do governo estiveram perto de vencer Zapata.
Huerta também sobreviveu a uma crise económica causada pela descida dos
tinham grande ligação à hierarquia eclesiástica, pelo que eram mais facilmente
preços da prata e pelas fracas colheitas. No outono de 1913, sentiu-se suficien-
atraídos pelo anticlericalismo. As suas campanhas militares caracterizar-se-iam
temente forte para se livrar de Félix Díaz e de outros notáveis «científicos».
por um veneno contra a Igreja que levaria, por vezes, a que fossem cometidas
Huerta impunha-se pelos seus próprios meios, construindo para si uma nova base
atrocidades contra padres e ordens religiosas. Este anticlericalismo seria um
elemento intrínseco do Estado pós-revolucionário, e motivaria novos conflitos de poder sobre as ruínas da antiga ordem.
Porém, em abril de 1914, o curso da guerra começou a voltar-se contra ele,
civis. Contrastava com o catolicismo de Zapata e dos seus seguidores índios,
e a sua capacidade de reagir foi seriamente comprometida pela ocupação de
oriundos de áreas centrais, onde a Igreja missionária sempre tivera uma posição
forte. Veracruz pelos EUA. Zapata dominou o estado de Guerrero, produtor de prata, e
em maio já recuperara o seu estado natal de Morelos; em seguida, invadiu o
Entre as forças que se opunham a Huerta e aos sobreviventes do Porfiriato
estado do México e Puebla, aproximando-se perigosamente da capital. No Norte,
há que incluir os EUA. Washington teria um papel contínuo no curso flutuante
cidades importantes começaram a cair nas mãos dos constitucionalistas. Villa
da revolução. O seu principal objetivo em todo este período era restabelecer a
apoderou-se de Torreón, o crucial centro dos caminhos de ferro, bloqueando a
normalidade nos negócios com um governo mexicano estável, mas as vicissitu-
passagem das forças do governo para norte. Pablo González apoderou-se da
des do conflito levaram os EUA a apoiar diferentes facões em diferentes fases.
cidade industrial de Monterrey, e de Tampico, um porto de grande importância
O novo presidente dos EUA, Woodrow Wilson, não aprovava Huerta por causa
para a indústria petrolífera. Obregón avançou pela costa oeste e, a 7 de julho,
da sua associação aos «científicos», que se julgava favorecerem os interesses
derrotou um numeroso exército federal em Guadalajara. Huerta perdera o con-
petrolíferos britânicos em detrimento dos americanos. Wilson tentou por vários
trolo sobre o país; uma semana mais tarde, demitiu-se e partiu para o exílio.
meios afastar Huerta do poder: levantou o embargo de armas a Carranza; per-
suadiu o governo britânico a retirar o seu apoio a Huerta; e quando Huerta se
recusou a satisfazer uma exigência ultrajante - fazer pessoalmente continência à
A LUTA DOS REVOLTOSOS PELO PODER (1914-15)
bandeira dos EUA como reparação por um incidente em que oficiais mexicanos
tinham detido marinheiros norte-americanos em Tampico -, Wilson enviou uma
Os revolucionários tinham frustrado as tentativas das velhas elites de encon-
frota para ocupar o principal porto mexicano, Veracruz.
trar um substituto para Porfirio Díaz. O antigo regime fora efetivamente destru-
A 21 de abril de 1914, soldados dos EUA ocuparam a cidade e a sua alfân-
ído, mas a guerra não estava ainda terminada. Era preciso erguer uma nova
dega, que constituía a principal fonte de rendimento do governo mexicano.
estrutura de poder, e as forças revoltosas lutariam entre si para a construírem.
Dadas as circunstâncias, todas as facões mexicanas em guerra se uniram na
Ainda os exércitos constitucionalistas combatiam as forças de Huerta, e já o seu
condenação desta violação da soberania nacional, mas Wilson usou a ocupa-
Primeiro Chefe, Venustiano Carranza, iniciava manobras destinadas a impedir
ção de Veracruz como forma de manipular o conflito, primeiro contra Huerta, *
que Pancho Villa, cuja radical política agrária não lhe agradava, chegasse pri-
depois contra Carranza, até os soldados americanos finalmente se retirarem a
meiro à cidade do México. Villa, por seu rumo, concebera o Pacto de Torreón,
23 de novembro de 1914. Depois do episódio de Veracruz, Wilson recorreu ao
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HISTORIA DA A M E R I C A L A T I N A MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

um acordo entre dirigentes constitucionalistas que teria levado à desqualificação ridade nacional Carranza teve de resistir a sucessivas crises. Não só Villa e
de Carranza na corrida ao cargo supremo. Acabou por ser o lugar-tenente de Zapata lhe davam problemas no Norte e no Sudoeste, respetivamente, como os
Carranza, Obrégon, o primeiro a entrar na capital a 15 de agosto, após a rendição seus próprios comandantes começavam a tentar ganhar poder no campo consti-
oficial do Exército Federal. Seis dias mais tarde, Carranza instalou-se no Palácio tucionalista. Para agravar as suas dificuldades, Woodrow Wilson procurava mais
Nacional como presidente interino. uma vez influenciar os acontecimentos no México, exercendo pressão diplomá-
A preparação de um tratado que permitisse um novo acordo político envol- tica, financeira e militar sobre Carranza. Uma expedição liderada pelo general
veu longas negociações entre as diversas facões. Carranza queria excluir Villa e John Pershing entrou no México, aparentemente para castigar os grupos de
Zapata. Por esta altura, Villa gozava do favor de Washington, o que tornou a sua guerrilha de Villa pelo seu ataque destrutivo à cidade de Colombus, no Novo
posição suficientemente forte para atrair, além do também radical Zapata, alguns México. A situação obrigou Carranza a encetar uma série de negociações com
dos lugar-tenentes do próprio Carranza, entre os quais Obregón, para uma con- Wilson em defesa da soberania do México. Wilson manteve Carranza sob pres-
venção na cidade de Aguascalientes, perto da sua base em Tbrreón. A dita con- são ao ameaçá-lo periodicamente com novas punições militares.
venção aprovou por princípio o radical Plano de Ayala, com a sua exigência de Quando a convenção de Querétaro ficou finalmente concluída, o esboço de
uma redistribuição em grande escala de terra pelos camponeses. Carranza viu-se constituição apresentado por Carranza poucas mudanças sociais introduzia,
afastado do cargo de Primeiro Chefe e foi eleito um novo presidente interino. além de um passo discreto no sentido da distribuição de terra e de algumas
Mas Carranza conseguiu recuperar a lealdade de comandantes erráticos como concessões nominais no âmbito da segurança social às classes trabalhadoras.
Obregón e, em novembro de 1914, pouco depois de os soldados dos EUA terem As únicas inovações relativamente à grande constituição liberal de 1857 eram
partido de Veracruz, estabeleceu um governo constitucionalista naquele porto, estritamente políticas: uma presidência executiva mais forte (mas sem reeleição),
onde podia controlar a alfândega. Pancho Villa e Emiliano Zapata entraram na um sistema judiciário independente e um governo mais centralizado, a par de
Cidade do México. Seguiu-se uma guerra civil entre os apoiantes da revolucioná- certas garantias de autonomia municipal. Mas Álvaro Obregón - um rancheiro
ria Convenção de Aguascalientes e os exércitos constitucionalistas do Norte. que subira praticamente à sua custa e que ganhara uma influência considerável
Nos avanços e recuos de uma guerra turbulenta travada simultaneamente em durante a guerra - compreendia bem a necessidade de ir além da mera concerta-
vários palcos, as forças da Convenção de Aguascalientes, chefiadas por Villa e ção política, se se quisesse impedir rebeldes como Zapata e Villa de recuperarem
por Zapata, perderam terreno para Carranza. A Cidade do México mudou de terreno perdido. Os seus apoiantes na convenção conseguiram alterar as propos-
mãos por várias vezes. Mas o ponto de viragem ocorreu quando Obregón derro- tas de Carranza, e a constituição que daí resultou era um modelo de liberalismo
tou Villa a 15 de abril de 1915 em Celaya, uma cidade próxima da capital. Villa radical, a fundação legal do novo Estado que emergiria da longa revolta antipor-
foi empurrado para norte numa longa e dura campanha, até se ver confinado ao firista.
seu território natal de Chihuahua, onde manteria a insurreição viva durante A constituição de 1917 estipulava a completa separação entre Igreja e
vários anos ainda, apesar de ter perdido definitivamente o seu papel no poder Estado; o artigo 3° abolia a educação religiosa, enquanto o artigo 130° definia
nacional. Nas regiões centrais, Pablo González expulsou os zapatistas da Cidade limites para o culto religioso e proibia a interferência do clero nos assuntos polí-
do México e. ocupou a capital em agosto de 1915. Em setembro, também Zapata ticos. Os trabalhadores viam reconhecidos direitos importantes: um dia de traba-
fora já obrigado a recuar para o seu território natal de Morelos. Com Villa e lho de oito horas, o direito a organizar sindicatos e a convocar greves, bem como
Zapata em retirada, o verdadeiro desafio revolucionário lançado pelas ordens mediação obrigatória em disputas laborais. Aos camponeses das fazendas, a nova
inferiores perdeu a força; o perigo de uma guerra dos camponeses, que poderia constituição prometia o fim da peonagem e do entreposto da firma. Relativa-
ter originado uma redistribuição fundamental da terra, fora controlado. Em outu- mente à questão da terra, autorizava a expropriação de latifúndios onde necessá-
bro, os EUA reconheceram o governo de Carranza. rio e previa a devolução de terras e propriedades comunais usurpadas às comu-
nidades índias. O artigo 27° reclamava para o Estado mexicano todos os direitos
fundamentais sobre o subsolo e a terra, reclamação que originaria vários atritos
CARRANZA NO PODER (1916-20) com companhias petrolíferas dos EUA, embora se tratasse, na realidade, de um
direito histórico que a Coroa espanhola se reservara desde a Idade Média.
No ano seguinte, antes de conseguir estabelecer uma assembleia constitucio- Se a constituição de 1917 tivesse sido rigorosamente implementada, as
nal em Querétaro em novembro de 1916, no seu esforço para consolidar a auto- guerras que destruíram o Porfiriato poderiam ter desencadeado uma genuína

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

revolução social. Mas 1917 não levou a uma transferência de poder entre classes;
A CONSTRUÇÃO DO ESTADO PÓS-REVOLUCIONÁRIO
em vez disso, assinalou a chegada ao governo nacional de novas elites do Norte,
constituídas por proprietários terratenentes. Durante o seu mandato como presi- No rescaldo da queda de Porfirio Díaz em 1910, Madero, Huerta e Carranza
dente (1917-20), Carranza não conseguiu tomar-se um líder verdadeiramente tinham sucessivamente tentado erguer um novo sistema de poder, e todos haviam
nacional. Apesar de ter devolvido terra a velhos hacendados e de ter atribuído falhado. Os chefes de Sonora, apesar das suas origens na província, consegui-
fazendas aos seus próprios clientes, não foi capaz de conter os tradicionais con- riam, e de um modo admirável, construir uma autoridade de dimensão nacional.
flitos de interesses entre caudilhos rivais. E também não conseguiu restaurar a O Estado que criaram revelou-se o mais duradouro e estável da história indepen-
ordem nacional - uma falha crucial para quem aspira a ser líder. Era evidente que dente da América Latina.
o estado da política no México exigia novas remodelações. A reconstrução do Estado mexicano foi levada a cabo através de métodos
A iminência das eleições presidenciais de 1920, às quais Carranza estava inteiramente tradicionais - claro que ajudou o facto de os chefes de Sonora terem
impedido de concorrer pela regra constitucional da não-reeleição, originou uma derrotado todos os seus adversários militares. Os vencedores recompensaram,
situação semelhante à de 1910. Carranza tencionava manipular a votação em então, os vários grupos de interesse que estavam preparados para os apoiar,
favor do candidato que apoiava, mas esta manobra dividiu a sua facão do Nor- começando pelos seus próprios comandantes. Os instrumentos imediatos de
deste, pois o seu primo Pablo González abandonou-o para formar uma Liga patrocínio tinham sido criados pela própria guerra. As instituições de emergência
Democrática e declarou-se candidato à presidência. Os caudilhos do Noroeste como os gabinetes de propriedade requisitada e agências reguladoras do comér-
uniram-se para apoiar Álvaro Obregón, de Sonora, que decidiu apresentar uma cio foram usadas para redistribuir terra, riqueza e privilégios dos oligarcas ven-
candidatura mais radical do que a dos seus rivais, fundando um Partido Traba- cidos aos caudilhos vitoriosos e seus parentes, amigos e clientes políticos. Assim
lhista, ligado à confederação sindical CROM. Desta forma, aliciou os zapatistas se formou uma «família revolucionária», com poucas ou nenhumas ligações às
de Morelos (Zapata fora traiçoeiramente assassinado pelas forças de González elites porfiristas derrotadas.
numa emboscada, a 10 de abril de 1919), e acabou por conseguir também o apoio Se não mudaram as estruturas sociais e económicas do México, estes novos
do seu antigo inimigo Pancho Villa. dirigentes introduziram, ainda assim, disposições inéditas que asseguraram a
A violência começou quando Carranza tentou prender Obregón. O estado longevidade política. No fundo, acolheram no amplo manto de proteção estatal
natal deste último, Sonora, cujas forças eram agora lideradas por Plutarco Elias a liderança de novas forças sociais até então negligenciadas - o operariado
Calles, declarou a independência. Calles e o governador de Sonora, Adolfo de Ia industrial e os camponeses. Assim, o acordo forjado nas décadas de 20 e de 30
Huerta, divulgaram o Plano de Agua Prieta, no qual Carranza era acusado de ter não chamou novos valores «burgueses» para a política; em vez disso, adaptou
violado a constituição de 1917; reuniram as forças rebeldes num Exército Cons- métodos antigos de patrocínio e clientelismo aos requisitos de um Estado em
titucionalista Liberal, que, de um modo geral, apoiava Obregón. Perante este processo de modernização: a política oligárquica passou a incluir novos caudi-
desafio militar à sua autoridade, Carranza tentou remediar as divergências com lhos — os patrões dos sindicatos e das cooperativas agrárias - que se tornaram os
o seu primo, mas as tentativas para chegar a um acordo fracassaram, e González parceiros de dirigentes políticos e de generais revolucionários no exercício da
avançou para um golpe de Estado. Carranza foi obrigado a fugir da Cidade do governação. Em suma, a constituição liberal radical de 1917 foi imbuída do
México, e mais uma vez foi para Veracruz, onde esperava reagrupar as suas for- espírito do corporativismo.
ças, mas pelo caminho teve morte violenta, em circunstâncias misteriosas. Mas o corporativismo não explica, por si só, a extraordinária resistência do
Quando os constitucionalistas liberais de Obregón ficaram em vantagem nos Estado no México moderno. A chave para a estabilidade reside no êxito dos
combates, Pablo González abandonou à corrida a presidência, e Álvaro Obregón chefes de Sonora na legitimação do seu poder. Ao contrário de todos os grupos
pôde obter uma vitória expressiva a 5 de setembro de 1920. Os caudilhos do que antes detiveram o poder - monarquistas, republicanos liberais, caudilhos
estado de Sonora, no Noroeste, tinham finalmente emergido como os verdadei- personalistas ou «científicos» tecnocráticos -, os de Sonora criaram uma ideolo-
ros vencedores da muito complexa e terrivelmente violenta luta desencadeada gia suficientemente persuasiva para obterem o consentimento da maioria dos
pelo apelo de Francisco Madero a eleições livres em 1910.
grupos de interesse do país.
A nova ideologia legitimadora assentava numa exploração astuta da noção
de revolução. A 20 de novembro de 1920, o presidente interino Adolfo de Ia
Huerta inaugurou a primeira celebração da revolta de Francisco Madero contra
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA M É X I C O : R E V O L U Ç Ã O E ESTABILIDADE

Porfirio Díaz em 1910; essa rebelião e as guerras entre facões que se haviam transcendente era algo que só poderia ser criado depois de mais uma década de
seguido passaram a ser oficialmente designadas como a «Revolução Mexicana». lutas sangrentas.
Tratava-se de um conceito proveitoso, tornado fecundo pela associação com
outros grandes momentos de mudança progressista, como a Revolução Francesa
e a então recente Revolução Bolchevique na Rússia. O conceito de revolução A Presidência de Obregón (1920-24)
implicava uma rutura irrevogável com urn passado corrupto e a consequente
abertura a um futuro melhor. Na mesma linha de raciocínio, a tecnocracia pro- Durante o mandato de Álvaro Obregón, foram lançadas algumas das funda-
gressista que fora o Porfiriato tinha de ser caricaturada como um ancien regime ções do novo sistema. Protegidos do presidente foram nomeados para cargos das
reacionário que vendera os ideais nobres de Benito Juárez e de La Reforma à administrações federal e pública. O controlo do movimento operário foi assu-
ganância de aristocratas pró-estrangeiro e a uma Igreja obscurantista. mido pela confederação sindical CROM, e pelo seu braço político, o Partido
Mais explicitamente, a noção de Revolução obrigava a nova classe dirigente Trabalhista. Os camponeses foram organizados em Cooperativas Agrárias, que
mexicana a esforçar-se, pela primeira vez desde a independência, por criar uma eram politicamente representadas pelo Partido Agrário Nacional, liderado por
ideia da nação que unisse o povo sob uma identidade comum. A Revolução iria um dos antigos colegas de Zapata. Para que os dirigentes destas organizações
recuperar a herança dos Astecas e dos Maias, que durante tanto tempo havia sido permanecessem leais ao Estado, era-lhes dado acesso a cargos públicos e a fun-
pervertida pela Espanha e pelos seus defensores, antes e depois da independên- dos estatais, com todas as oportunidades de patrocínio que isso implicava. Estes
cia. Neste aspeto, a nova ordem era anti-Espanha e anticlerical. Agora, a verda- líderes da mão de obra tinham, assim, interesse em impedir que trabalhadores e
deira identidade mexicana seria forjada a partir da fusão de tradições índias e camponeses levassem as suas exigências demasiado longe. As cláusulas sociais
espanholas. Chegara o tempo do mestiço e do índio: também eles deviam encon- da constituição de 1917 tinham de ser implementadas, mas não de uma forma tão
trar um lugar digno, como cidadãos de pleno direito, no novo México. enérgica que perturbasse o equilíbrio de forças no país. A reforma agrária foi
A Revolução passou a ser a fonte suprema da autoridade governamental. hesitante: não foi de modo algum ao ponto de dividir os latifúndios, e os 10%
Com efeito, o apelo ao espírito da Revolução podia funcionar como uma sanção dos camponeses que de facto receberam terra não obtiveram o crédito e o apoio
transcendente para o poder político, um equivalente moderno da vontade divina técnico necessários para tornar a reforma agrária economicamente produtiva.
que teoricamente subscrevera os desígnios da monarquia católica. O Estado Quanto aos trabalhadores industriais, o CROM, que tinha Luis Morones como
adquiriu, desta forma, uma mística que era mais fácil de compreender pelas mas- dirigente, optou por uma política de cooperação com os empregadores, política
sas iletradas do que abstrações liberais frias como a «soberania do povo». Mas que foi bem-sucedida na medida em que elevou o nível de vida dos trabalha-
para alcançar um monopólio de legitimidade que rivalizasse com o da monarquia dores, mas que também impediu a ação perturbadora de sindicatos não reconhe-
católica, os novos governantes tinham de converter a Revolução numa realidade cidos.
permanente. A autoridade não podia estar demasiado tempo investida numa Na realidade, o que Obregón e a sua «família revolucionária» estavam a criar
mesma pessoa, porque isso dissiparia a mística que legitimava o Estado. A Revo- era um sistema capitalista sob a direção coiporativa do Estado. Semelhante sis-
lução tinha ser um processo impessoal e capaz de se autoperpetuar. tema assentava numa ambiguidade elementar, com que o Estado mexicano teve
Na prática, isto significava que o problema da sucessão legítima tinha de ser se debater desde então. A retórica e a ideologia oficiais eram nacionalistas e
resolvido - um problema que escapara a todos os anteriores governantes mexi- socialistas, como ditava a noção da Revolução libertadora, mas as realidades
canos. Determinara a queda de Porfirio Díaz ao fim de 30 anos, porque ele não económicas não eram qualitativamente distintas das do Porfiriato: um desenvol-
encontrara forma de transferir as rédeas do poder para um sucessor. A solução vimento capitalista financiado pela exportação de matérias-primas e pelo inves-
para o problema, como os «científicos» de Díaz tinham compreendido, residia timento de capital estrangeiro. Obregón e os seus sucessores viram-se, assim, na
num Estado unipartidário onde o poder pudesse passar de um líder para o necessidade de satisfazer as aspirações nacionalistas do seu eleitorado sem
seguinte de acordo com convenções aceites. Mas os «científicos» tinham-se tor- afastarem companhias e investidores estrangeiros.
nado uma clique desacreditada e contestada no início do século xx; faltaram-lhes A educação e a cultura foram intensivamente promovidas, com vista a difun-
os meios de criar uma visão política unificadora, e foi precisamente isso que os dir a nova visão revolucionária do México. O grande instigador do nacionalismo
caudilhos de Sonora foram buscar à noção de Revolução. Ainda assim, um cultural foi José Vasconcelos, o ministro da Educação de Obregón, que acredi-
Estado unipartidário capaz de se autoperpetuar e legitimado por uma Revolução tava que o futuro residia da formação de uma «raça cósmica» criada através da

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

eventual fusão de todos os grupos étnicos da América. Foi esta crença que inspi- instituições nacionais de crédito encorajaram o investimento interno em irriga-
rou o tremendo esforço empreendido nos aiios 20 para reabilitar o índio e o ção, infraestruturas e agricultura, especialmente no Noroeste, o território natal
ísfiSí dos caudilhos revolucionários.
mestiço segundo a autoimagem cultural do México. Esta campanha foi, sem
dúvida, um dos triunfos da Revolução; representou a primeira e mais duradoura O obstáculo a relações harmoniosas com o mundo dos negócios estrangeiros
tentativa de ultrapassar as divisões raciais que tinham sido o pior legado da Con- era o artigo 27° da constituição de 1917, que conferia ao Estado os direitos sobre
quista espanhola, e de forjar um sentido coerente de identidade nacional. A esta- todos, os depósitos minerais. As companhias petrolíferas dos EUA persuadiram
bilidade política alcançada pelo México no século xx deveu-se em larga medida Washington a não reconhecer o governo de Obregón até que este aceitasse
ao sucesso desta política de incorporar a herança índia na ideia de nação. excluir desta lei todas as concessões petrolíferas anteriores a 1917. Obregón,
Vasconcelos foi responsável pelo primeiro grande impulso destinado a pro- que, como veremos, tinha de lidar com uma série de desafios políticos internos,
mover a literacia entre as massas rurais. Construíram-se escolas, fundaram-se fez estas concessões em 1923, em troca do reconhecimento e das armas que lhe
bibliotecas e enviaram-se jovens voluntários para ensinar nas aldeias e nos estavam associadas. Mas esta seria apenas a primeira ronda de uma prolongada
pueblos. Esta campanha fez-se acompanhar de um extenso patrocínio oficial das disputa pelos direitos sobre os minérios que só terminaria em 1938, com a nacio-
artes e do artesanato indígenas, para estimular o orgulho nas realizações do povo. nalização da indústria petrolífera.
Foi também neste período que nasceu o movimento muralista, sob os auspícios À medida que se aproximavam as eleições de 1924, aumentava a tensão no
do Estado. Vasconcelos, o «caudilho da cultura», tornou-se patrono de pintores seio da família revolucionária. O facto de Obregón ter escolhido o seu conterrâ-
como Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco, contra- neo Plutarco Elias Calles para lhe suceder no cargo motivou o descontentamento
tando-os para pintarem, nas paredes de ministérios e edifícios públicos, frescos de importantes generais, que se revoltaram e persuadiram o terceiro membro do
ilustrativos de temas revolucionários e indígenas. Pouco importava ao governo triunvirato de Sonora, Adolfo de Ia Cuesta, ajuntar-se-lhes. Com dois terços do
mexicano que alguns destes pintores de murais fossem marxistas; desde que exército revolucionário a apoiar os dissidentes, Obregón precisava do reconhe-
os temas fossem apropriadamente «revolucionários», as nuances ideológicas cimento dos EUA para reforçar a sua autoridade no México. Assinou, então, o
podiam ficar para os pintores, que depois guerreavam entre si. (As suas diver- Tratado de Bucareli, fazendo concessões a companhias petrolíferas americanas
gências atingiram o auge a 24 de maio de 1940, quando Siqueiros, que era esta- para obter as armas de que precisava para fazer face à emergência. Na guerra
linista, metralhou a casa de Coyoacán de um outro pintor, Diego Rivera, e por civil que a seguir se travou, Obregón conseguiu derrotar os rebeldes. Depois,
pouco não assassinou Leon Trotsky, que lá estava hospedado na altura.) teve lugar uma purga exaustiva, que custou a vida de muitos antigos revolucio-
A profusão de imagens e temas pictóricos provenientes do movimento mura- nários (Pancho Viila fora preventivamente assassinado em agosto de 1923, ainda
lista disseminaram entre as massas iletradas a noção de Revolução legitima- antes do início das hostilidades). Em 1924, um Obregón vitorioso colocou o seu
dora, e serviu para consolidar uma ideologia estatal de cidadania comum e de amigo Calles na presidência graças a eleições fraudulentas. O princípio da não-
nacionalismo progressista. Depois de Vasconcelos abandonar o cargo em 1924, -reeleição, o grito de guerra da revolução contra Porfirio Díaz, fora observado na
a política cultural e educativa do Estado centrou-se no objetivo mais estritamente letra, mas não exatamente no espírito.
político de afastar os camponeses da influência da Igreja, e esta secularização
levaria a uma nova onda de violência nas zonas rurais do México, marcadas por
uma intensa religiosidade. Calles e o Max.ima.to (1924-34)
A política económica, pelo contrário, foi concebida para recuperar a saúde
financeira do México e para desenvolver uma vigorosa agricultura capitalista. Ao longo dos dez anos seguintes, o protegido de Obregón, Plutarco Elias
Um aumento muito significativo das exportações de petróleo a partir de 1920- Calles, esforçar-se-ia por se tornar o novo homem forte do México. Tinha dois
-26, um programa de cortes na despesa pública (que incluiu reduções salariais no obstáculos no seu caminho: as cláusulas da constituição de 1917 e a autoridade
setor público e a privatização dos caminhos de ferro), juntamente com a introdu- ideológica da Igreja Católica. Como ambas se revelaram insuperáveis, Calles
ção de um imposto sobre o rendimento, aumentou as receitas do governo e per- viu-se obrigado a institucionalizar o poder da nova elite revolucionária num par-
mitiu retomar os pagamentos da colossal dívida pública resultante da guerra. tido nacional, formulando regras para a sucessão presidencial que preservassem
Estas medidas fiscais restauraram a confiança nos negócios e atraíram novos a governação oligárquica por detrás de uma fachada democrática. O resultado
empréstimos e investimentos estrangeiros. A criação do Banco do México e de fora chamado Maximato (uma palavra formada por analogia com Porfiriato),

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO! REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

que significava a continuidade do poder através de fantoches presidenciais do Foi então que Calles tomou a decisão histórica de institucionalizar a Revo-
jefe máximo, como Calles era conhecido, depois de o seu mandato oficia] ter lução e de consagrar o princípio da não-reeleição como a pedra basilar do
terminado em 1928. sistema político. Fundou o Partido Nacional Revolucionário e resistiu à tentação
A presidência de Calles foi ensombrada pela insurreição em massa cios cam- de concorrer à presidência, escolhendo, em vez disso, um diplomata sem posi-
poneses católicos, que ficou conhecida como a Guerra Cristera, em virtude do ções próprias para candidato oficial. As eleições teriam, contudo, de ser mani-
seu grito de guerra «Viva Cristo Rey!». O México rural - especialmente as regi- puladas, pois o antigo ministro da Educação de Obregón - o tão respeitado José
ões centrais e ocidentais - era esmagadoramente católico, e as tentativas por de Vasconcelos, agora na oposição — avançara como candidato do Partido
parte dos caudilhos anticlericais do Norte de substituírem o ensino da Igreja pelo Antirreeleição, e percorria o país invocando abertamente a memória de Fran-
ensino secular gerou um profundo descontentamento entre os camponeses cisco Madero e granjeando um vasto apoio.
A causa imediata da guerra foi uma disputa entre Calles e os bispos relativa- Havia o sério risco de que simpatizantes dos Cristeros e seguidores de Vas-
mente a uma lei promulgada em 1926 que reforçava e ampliava as restrições, concelos se unissem na votação e derrotassem o candidato da Revolução «insti-
impostas à religião pela constituição de 1917. A hierarquia católica reagiu sus- tucionalizada». E se isso acontecesse, os rebeldes cristeros teriam boas hipóteses
pendendo todas as missas no país inteiro. A par de uma virulenta propaganda de derrubai" a família revolucionária. De modo a evitar semelhante resultado,
antirreligiosa, que passou pela criação de uma Igreja rival pelo CROM, esta Calles decidiu reconciliar-se com a Igreja. O embaixador americano atuou como
ameaça à mera existência da vida religiosa indignou a população laica católica. mediador (os EUA, como sempre, queriam um governo estável no México), e
Nos estados do centro-oeste de Jalisco, Michoacán, Guanajuato, Colima e Zaca- chegou-se a um acordo, que previa a anulação das leis anticlericais de 1926 em
tecas, houve grandes motins de camponeses. troca do recomeço da missa. Nas eleições manipuladas de novembro de 1929, o
A política dura de Calles para com a Igreja pretendia reforçar a sua autori- candidato de Calles venceu por uma maioria esmagadora. Vasconcelos optou por
dade internamente, ao mesmo tempo que travava um confronto nacionalista com fugir do país.
os EUA a respeito de direitos petrolíferos (Calles recusara-se a implementar o Ao longo dos cinco anos seguintes - o Maximato propriamente dito -,
Tratado de Bucareli, assinado por Obregón em 1923). Mas esta política produziu Calles continuou a ser o homem forte do México, governando através de presi-
efeitos indesejados: em janeiro de 1927, Calles viu-se a braços com uma revolta dentes nominais. À medida que a Depressão mundial começava a afetar a eco-
de camponeses, que em poucos meses alastraria a 13 estados. Medidas repressi- nomia mexicana e que a produção caía, o governo do jefe máximo, na sombra,
vas severas - como disparar sobre campesinos desarmados, destruição de terras tornava-se mais repressivo. O anticlericalismo voltou à tona, e Camisas Doura-
através da queima e relocalização forçada de comunidades índias - não conse- das ao estilo fascista aterrorizavam católicos e outros opositores ao regime.
guiram subjugar as guerrilhas de camponeses católicos. Passado um ano, o O governador do estado de Tabasco reanimou a revolta dos Cristeros ao promul-
número de revoltosos aumentara para aproximadamente 35 000, além de vários gar leis anticatólicas extremistas, que foram brutalmente aplicadas por pistoleros
milhares de simpatizantes, e em 1929 eram já cerca de 50 000. As forças armadas encarregados de incendiar igrejas. (Os conflitos em Tabasco constituíram o cená-
pareciam incapazes de controlar os rebeldes. rio para o romance The Power and the Glory, de Graham Greene.)
Enquanto prosseguia a Guerra Cristera, o problema da sucessão presidencial Calles estava convencido de que a reforma agrária fora um fracasso e negli-
ressurgiu e tornou-se outra ameaça à sobrevivência do novo Estado. Álvaro genciara-a a favor do investimento na irrigação e na agricultura de exportação
Obregón, que nesta altura era ainda o homem mais influente do México, desa- em grandes propriedade privadas, especialmente no Norte, mas a agitação cau-
provava tanto a atuação de Calles em relação à Igreja como a disputa com os sada pela crise económica obrigou-o a voltar ao programa de redistribuição de
EUA a respeito do petróleo; assim, forçou Calles a aceitar uma reforma consti- terras. Isto verificou-se sobretudo nos estados centrais e do Sudoeste, onde his-
tucional que lhe permitisse voltar a concorrer à presidência para um mandato toricamente a ânsia por terra era mais intensa, mas a implementação irregular das
alargado de seis anos. A manobra de Obregón era altamente arriscada e aproxi- reformas gerou corrupção e disputas criminosas nas zonas rurais. A reforma
mava-se do personalismo porfirista. Foi descoberta uma conspiração militar e agrária tinha uma grande importância simbólica para o prestígio moral da Revo-
houve novos saneamentos de oficiais descontentes em 1927. Obregón acabou lução, e, todavia, os conflitos que a sua implementação provocou entre os cam-
por ser eleito, a 16 de julho de 1928, mas foi assassinado por um militante cató- poneses ameaçavam dar-lhe má reputação.
lico no dia seguinte. (Suspeitou-se que Calles tivesse algo a ver com a elimina- Calles e o seu círculo tinham-se tornado uma clique incestuosa de milioná-
ção do homem que entretanto se tornara seu rival.) rios enriquecidos à custa do suborno e do saque, mas o partido da Revolução
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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

revelou-se, ironicamente, mais forte do que o personalismo do seu fundador. apesar de o tribunal arbitrai ter dado razão aos trabalhadores. Depois de o
Havia sinais de descontentamento entre as bases, e Calles, na esperança de resol- Supremo Tribunal ter confirmado a decisão, e recusando-se as companhias a
ver a crise interna, designou um elemento das bases, Lázaro Cárdenas, para alterar a sua posição, Cárdenas nacionalizou a indústria a 18 de março de 1938.
candidato oficial às eleições presidenciais de 1934. Mas Cárdenas decidiu não Apear da pressão do lobby do petróleo, Franklin D. Roosevelt decidiu respeitar
tratar a sua candidatura como sinecura, e começou a fazer campanha pelo país a sua política de Boa Vizinhança relativamente à América Latina e recusou-se a
fora, construindo uma base política entre as camadas populares. intervir nos assuntos internos do México. As companhias petrolíferas organiza-
ram, então, um boicote ao petróleo mexicano, que se manteve durante três déca-
das e que só foi levantado quando a procura mundial aumentou consideravel-
Lázaro Cárdenas e a Renovação da Revolução (1934-40) mente no início dos anos 70. A nacionalização da indústria petrolífera fez de
Cárdenas um herói da Revolução. Como a redistribuição de terra e o sistema de
Depois de ter vencido as eleições, Cárdenas recusou-se a perpetuar o Maxi- ejido, a nacionalização do petróleo mexicano foi tomada como prova de que a
mato tornando-se mais um fantoche político. O novo presidente agiu cautelosa- Revolução não chegara ao fim; era um processo contínuo, capaz de transcender
mente e, nos dois anos seguintes, foi afastando os homens de Calles do governo. os desvios de indivíduos como Calles e os do seu círculo.
Em seguida, de modo a evitar um golpe de Estado, obrigou o jefe máximo e os Cárdenas também deixou a sua marca como edificador do Estado: deu uma
seus amigos a partirem para o exílio em 1936. forma definitiva ao Estado unipartidário capaz de se perpetuar. O Partido Revo-
Tendo assumido as rédeas do poder, Cárdenas esforçou-se por recuperar a lucionário Nacional fundado por Calles foi reorganizado em quatro ramos prin-
credibilidade revolucionária que Calles quase destruíra por completo. O pilar cipais: o ramo agrário, o do trabalho, o militar e o «popular», abrangendo este
central da sua política interna foi a renovação da reforma agrária. Ao longo do último organizações de funcionários do Estado. Os conflitos de interesse seriam
seu mandato de seis anos, 44 milhões de hectares de terra passaram para as mãos incluídos no aparelho do Estado e geridos pelos dirigentes do partido e pelo
dos camponeses, o dobro da área distribuída pelos governos anteriores. A terra governo. Tratava-se de uma forma de estrutura corporativista análoga às criadas
foi redistribuída na forma de pequenas propriedades, de quintas cooperativas em Espanha, Portugal e Itália no mesmo período. A diferença residia no facto de
com lucros repartidos ou de ejido, uma versão moderna da tradicional terra o documento fundador do Estado, a constituição de 1917, ser democrática e
comunitária índia, em que o direito à terra era concedido à comunidade, que liberal, com elementos socialistas, o que impediu que o corporativismo mexi-
depois arrendava lotes, individualmente, a chefes de família. Crédito, equipa- cano se tornasse totalitário. Tinha de se tolerar algum pluralismo; permitiu-se a
mento e apoio técnico eram providenciados por um banco e por agências agrárias existência de imprensa livre, com reduzida censura explícita, a liberdade de
estatais. Apesar das boas intenções de Cárdenas, os resultados foram mistos: os expressão e de associação, e partidos políticos rivais. Além disso, o discurso
camponeses ressentiam-se da sua dependência dos funcionários do Estado, e oficial no tempo de Cárdenas ganhou um cunho ligeiro de socialismo revolucio-
tendiam a regressar à tradicional agricultura de subsistência. Também se regista- nário, e o presidente gostava de acenar à esquerda internacional: deu-se asilo
ram falhas na aplicação das medidas. A terra distribuída era muitas vezes de fraca político aTrotsky em 1937 (que acabaria por ser assassinado em Coyoacán, em
qualidade; muitos lotes eram demasiado pequenos; a concessão de crédito e de 1940, por Ramón Mercader, um agente espanhol de Estaline), e em 1939, no
maquinaria era inadequada, em parte devido à pequena corrupção entre funcio- final da Guerra Civil de Espanha, milhares de republicanos tiveram autorização
nários do Estado. De um modo geral, a produção agrícola caiu. Mas Cárdenas foi para se estabelecer no México.
bastante longe no seu esforço para apaziguar a terrível fome de terra dos campo- Por outro lado, um importante objetivo do governo foi o de sarar as feridas
neses mexicanos nos difíceis anos 30, e isso valeu à Revolução um fundo de boa da nação traumatizada. Cárdenas deu início a uma reconciliação pragmática com
vontade popular. a Igreja, reafirmada pelo seu sucessor, Ávila Camacho, um católico praticante.
Nos primeiros anos da sua administração, Cárdenas enfrentou a agitação dos Todavia, as leis anticlericais de Calles não foram revogadas; seriam uma garantia
trabalhadores devido aos salários e ao desemprego crescente, mas com Vicente contra qualquer intervenção da Igreja em assuntos do Estado. Isto porque a tole-
Lombardo Toledano, o seu ministro do Trabalho, as relações industriais tende- rância do sistema tinha limites; as diferenças de opinião eram permitidas apenas
ram a favorecer os sindicatos, e o nível de vida dos trabalhadores aumentou. Esta • na medida em que não comprometessem seriamente os interesses do Partido
orientação favorável ao operariado motivou confrontos com empresas petrolífe- Revolucionário. O partido tinha de se manter no poder a todo o custo, o que
ras, que em 1937 se recusaram a satisfazer as exigências salariais dos sindicatos, significava que as eleições, em todos os níveis, tinham de ser repetidamente

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manipuladas, de modo a garantir maiorias confortáveis para os seus candidatos Estabilidade e Crescimento (1940-82)
Qualquer ameaça séria teria se ser neutralizada através do patrocínio e da
máquina da corrupção, ou então reprimida pela força. Ao longo das quatro décadas seguintes, o crescimento da economia mexi-
O sistema assentava numa alternância entre responsabilidade social e con- cana foi prodigioso. O México deixou de ser um país agrícola para se tornar uma
trolo a partir de cima. O seu epítome era a presidência. Cárdenas aperfeiçoou sociedade predominantemente urbana e industrial. Nos anos 60 e 70, atingiu uma
finalmente o mecanismo para a transferência de poder no ápice do Estado, insti- taxa média de crescimento anual na ordem dos 6%. O crescimento da indústria
tucionalizando a função essencial do homem forte: o presidente mexicano seria manufatureira foi ainda mais elevado, com uma taxa média anual de 9%. Em
todo-poderoso - mas por seis anos apenas. Cárdenas compreendeu que o princí- 1960, pouco mais de metade da população vivia em áreas urbanas; em 1980, a
pio da não-reeleição tinha de permanecer intocado para que a legitimidade da população urbana era já de 69%. Na década de 70, o México tornara-se a
Revolução fosse preservada. Nem sequer o exercício do poder por procuração, segunda maior economia da América Latina, depois do Brasil. A reatividade
através de governantes-fantoches - a tentação, sucessivamente, de Carranza,' social do sistema político mexicano determinava uma elevada despesa pública
Obregón e Calles —, poderia ser tolerada. Terminado o seu sexenio, o presidente nas áreas da segurança social, da saúde e da educação, enquanto o seu abran-
teria de abandonar o cargo de vez. O presidente cessante podia, ainda assim, gente mecanismo de controlo impedia que o descontentamento se manifestasse
indicar o seu sucessor, embora a sua escolha tivesse de levar em conta a opinião através da violência, como aconteceu noutras partes.
dos dirigentes dos vários ramos do partido, para que se chegasse a um consenso O estímulo à industrialização surgiu com a II Guerra Mundial, quando os
interno e, igualmente importante, para auscultar a vontade do povo e do país EUA ofereceram apoio técnico e financeiro para a exploração industrial da
como um todo. riqueza mineral do país, com vista a contribuírem para o esforço de guerra
Em 1940, estava estabelecida uma ordem política suficientemente estável contra a Alemanha e o Japão. A indústria manufatureira foi também desenvol-
para substituir o Porfiriato; tinham sido precisos 30 anos e inúmeras mortes. Essa vida para compensar o declínio nas importações. O México declarou guerra às
ordem consistia num Estado unipartidário dirigido por um autocrata estritamente potências do Eixo em 1942 e mais tarde enviou uma esquadra aérea para as
temporário, comprometido com uma ideologia de nacionalismo revolucionário Filipinas, em 1945, para combater ao lado da Força Aérea dos Estados Unidos.
mas empenhado num desenvolvimento capitalista intensivo. O sistema duraria A nova era de amizade ficou marcada pelo encontro, em 1943, na fronteira entre
mais de 50 anos. Obregón e Calles tinham lançado as fundações políticas e eco- os EUA e o México, dos presidentes dos dois países, Ávila Camacho e Franklin
nómicas. Acreditavam no desenvolvimento conduzido pelo Estado, assente D. Roosevelt.
numa produção agrícola moderna e financiado por uma combinação de investi- O padrão de desenvolvimento económico intensivo que caracterizou as
mento público e investimento privado estrangeiro. Esta orientação foi seguida décadas do pós-guerra estabeleceu-se durante a administração ambiciosa e
pelos seus sucessores; simplesmente, depois de Cárdenas, o motor do desenvol- empreendedora de Miguel Alemán (1946-52). O seu elemento dominante foi a
vimento seria a indústria manufatureira, não a agricultura. A partir de 1940, a rápida industrialização por substituição de importações. Alemán sabia que era
elite revolucionária, operando através do Partido Revolucionário Institucional preciso acumular capital para investimento em infraestruturas, tecnologia e edu-
(PRI), como viria a ser designado em 1946, iniciou uma política de industriali- cação. Agindo em conformidade, criou incentivos fiscais para que investidores
zação conduzida pelo Estado com base na substituição de importações e na privados, nacionais e estrangeiros, injetassem dinheiro na economia mexicana.
proteção de empresas nacionais. Foi este o padrão de desenvolvimento seguido Também promoveu o turismo, como forma de obter capital estrangeiro; o porto
por todos os principais países da América Latina da década de 40 em diante. Mas de Acapulco, no Pacífico, foi convertido numa moderna estância balnear de luxo
é ilustrativo do mérito político do PRI que, enquanto outros países latino-ameri- destinada ao mercado norte-americano (projetos semelhantes em lugares como
canos foram abalados pela violência e pela repressão brutal, as graves crises Cancún e Cozumel foram iniciados nos anos seguintes). As exportações agríco-
geradas pela industrialização no México tenham sido suavizadas, quando não las foram igualmente incrementadas, com vista à obtenção de dinheiro estran-
contidas, pela abrangência do Estado corporativo. geiro. Verificou-se um investimento substancial em sistemas de irrigação nos
estados do Noroeste e, com a participação de companhias dos EUA, foi estabe-
* lecido um negócio agroalimentar assente no algodão e em legumes de inverno.
* *
A estratégia, na indústria como na agricultura, foi promover o desenvol-
vimento criando uma parceria entre setor privado e setor público. O Estado

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

providenciava as infraestruturas e os serviços básicos através das suas empresas, fiscal foi seguido, em regra, nos 15 anos seguintes, e manteve a inflação mexi-
enquanto o setor privado seguia as linhas gerais de desenvolvimento indicadas cana excecionalmente baixa, pelos padrões da região, até à década de 70 (*). Mas
pelos estrategos do governo, num ambiente de negócios protegido da concorrên- o presidente que se seguiu, López Mateos (1958-64), virou à esquerda - em parte
cia externa por tarifas elevadas e estimulado pelo fácil acesso ao crédito dos para neutralizar a atividade militante do operariado (em 1959 vergou uma greve
bancos públicos. As companhias multinacionais estrangeiras, e em particular as dos caminhos de ferro que ameaçava o controlo dos sindicatos por parte do PRI),
dos EUA, tiveram permissão para estabelecer sucursais no México, apesar da mas também para reclamar a herança revolucionária do partido em face do
legislação anterior que exigia 49% de representação de cidadãos mexicanos em triunfo de Fidel Castro em Cuba. O programa de reforma agrária foi relançado e
qualquer empresa. O controlo exercido pelo PRI sobre os sindicatos garantia à foram redistribuídos aproximadamente 30 milhões de hectares, apenas cerca de
iniciativa privada uma mão de obra cooperante remunerada através de acordos um quarto menos do que o resultado alcançado por Cárdenas; foram nacionali-
salariais aprovados pelo Estado. zadas empresas norte-americanas das indústrias do cinema e da eletricidade;
Alemán levou, assim, por diante o pragmatismo económico dos pais funda- construiu-se um elevado número de escolas rurais; manteve-se relações diplomá-
dores da Revolução e adaptou-o ao modelo de desenvolvimento que, de um ticas com uma Cuba revolucionária, contrariamente aos desejos dos EUA.
modo geral, prevaleceu na América Latina após a guerra. O poder no PRI passou Gustavo Díaz Ordaz (1964-70) encaminhou-se mais uma vez para a direita,
das mãos de caudilhos e militares para uma elite de tecnocratas civis, recrutado procurando reafirmar o controlo do PRI sobre o sistema eleitoral, depois de o
através da Universidade Nacional e do Colégio de México, e em muitos casos partido de direita PAN ter beneficiado de uma relativa abertura permitida em
formados em economia e gestão em prestigiadas instituições dos EUA. Os fun- 1964 por López Mateos. Mas Díaz Ordaz é lembrado sobretudo pela repressão
cionários dos níveis mais elevados da burocracia tinham família e contactos da esquerda estudantil em 1968. Como em muitos outros países, 1968 foi um ano
sociais no setor dos negócios e da indústria. A família Alemán, por exemplo, de violentos protestos contra a autoridade estabelecida; foi também o ano em que
possuía grandes propriedades na nova estância turística de Acapulco, e teve um o México devia ser o anfitrião dos Jogos Olímpicos. O PRI estava ansioso por
papel preponderante no estabelecimento de uma poderosa rede de meios de dar ao mundo uma imagem lisonjeira do país. No entanto, o movimento radical
comunicação de massas, que, juntamente com o império de Emílio Azcárraga-, de estudantes viu na presença dos meios de comunicação social internacionais
monopolizava praticamente o cinema, a rádio, a televisão e a imprensa do uma oportunidade para denunciar o governo. Uma série de confrontos entre
México, dando ao PRI uma influência ideológica informal mas muito forte sobre estudantes e militares culminou num episódio sangrento, a 2 de outubro, na Plaza
a sociedade urbana de massas em formação nas décadas que se seguiram à de Ias Três Culturas em Tlatelolco, um bairro da Cidade do México.
guerra.
O massacre de Tlatelolco manchou gravemente a credibilidade revolucioná-
O PRI conseguiu, então, com êxito, transformar as estruturas corporativas ria do PRI, expondo a profunda frustração sentida no país, e a obstinação do PRI
dos anos 20 e 30 numa máquina de governação paternalista capaz de liderar um em manter-se no poder. Em 1971, o socialismo revolucionário voltou a aflorar,
desenvolvimento intenso, precisamente porque o controlo abrangente exercido a na forma de movimentos de guerrilha semelhantes aos que tinham emergido na
partir do topo era, em larga medida, indireto, e sempre temperado por uma aber- Argentina, no Uruguai e no Brasil por volta da mesma altura. Nestes últimos
tura às influências vindas de baixo. O sistema dificilmente poderia ser conside- países, os governos civis foram derrubados por juntas militares aquando das
rado uma democracia liberal - as eleições continuavam a ser manipuladas - mas revoltas de guerrilha. Mas no México não havia necessidade de golpes de
estava longe de ser uma ditadura. Durante as duas décadas seguintes, aproxima- Estado, pois os chefes militares eram uma parte integrante do Estado corporativo
damente, sucessivos presidentes traçaram um percurso a meio caminho entre o desde que este fora fundado nos anos 20, juntamente com os dirigentes da classe
capitalismo de mercado livre preconizado pelos EUA e o social-nacionalismo operária organizada. O Exército mexicano conteve e destruiu as guerrilhas antes
ainda consagrado na ideologia oficial do partido. Consoante sopravam os ventos, que estas pudessem representar qualquer ameaça credível para o Estado.
rumavam à esquerda ou à direita, mas certificando-se de que o navio do Estado Que estava por detrás desta oposição ao monopólio de poder do PRI, oposi-
se mantinha firmemente sob a direção do PRI. ção que vinha sobretudo da esquerda, mas também da direita? Em finais dos
O sucessor de Alemán, Adolfo Ruiz Cortines (1952-8) instituiu um regime de anos 60, as elevadas taxas de industrialização e urbanização tinham produzido
moeda estável e despesa pública cautelosa. Em 1954, o peso foi desvalorizado, tensões sociais que até a máquina do PRI estava com dificuldade em gerir.
o que incrementou as exportações, e a taxa de câmbio foi fixada tendo o dólar
como referência, o que atraiu investimento estrangeiro. Este conservadorismo
(') Ver Anexo Estatístico, quadro 4.
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Na raiz do problema estava o facto de o processo industria! de substituição de excessivamente protegido, e encontrar-se-iam novos mercados estrangeiros pro-
importações ter saturado a procura interna, de tal modo que a indústria mexicana movendo as exportações industriais.
não podia continuar a crescer sem encontrar novos mercados no estrangeiro ou Mas em 1973, as classes médias mexicanas e o lobby dos negócios já o
sem alargar o mercado nacional. O setor industrial não podia, desta forma, absor- tinham persuadido a abandonai' tais propostas; em alternativa, Echeverría ia con-
ver muito mais mão de obra. Por outro lado, a expansão da agricultura de capital traindo empréstimos para cobrir os crescentes défices nos orçamentos de Estado
intensivo, com vista à exportação, intensificara a migração de camponeses para e na balança de pagamentos, situação que se agravou em 1974, quando os preços
as cidades, e este excedente de mão de obra foi ainda agravado por uma explosão do petróleo no mercado internacional subiram abruptamente. O resultado foi um
demográfica, provocada por uma combinação de baixas taxas de mortalidade e salto na taxa de inflação, que passou de uma média anual de 3,5% nos anos 60
taxas de natalidade tradicionalmente elevadas. O resultado foi, por um lado, uma para 20% em 1974 e para 27% em 1976. No mandato de Echeverría, a política
sociedade rural em óbvio declínio e, por outro, populações cada vez mais nume- mexicana de moeda estável como pedra basilar do desenvolvimento caiu por
rosas em cidades desfiguradas por grandes bairros de lata, onde os benefícios do terra; o peso começou a perder valor em termos reais, mas como se manteve a
milagre económico mexicano não tinham conseguido chegar. A distribuição de taxa de câmbio de 1954 - 12,5 pesos para o dólar-, as exportações mexicanas
riqueza era brutalmente desigual, com a camada social mais elevada, cerca de sofreram um aumento excessivo (os preços dos géneros de consumo corrente
10% da população, a deter cerca de 40% do rendimento nacional. estavam, de qualquer forma, em baixa no mercado internacional), ao mesmo
A situação do México em finais dos anos 60 contradizia a ideologia revolu- tempo que as importações entravam em grande quantidade no país. Assim, a
cionária de nacionalismo socialista que o PRI supostamente defendia; que fora situação da balança de pagamentos agravou-se ainda mais, criando um ciclo de
feito da justiça agrária, da igualdade social, da soberania económica? A esquerda dívida externa crescente e inflação cada vez mais elevada, que sabotou ainda mais
estudantil do México ia agora buscar inspiração revolucionária à Cuba marxista; o peso e que levou os investidores a retirarem grande parte de capital do país.
os intelectuais começavam a escrever sobre a «traição» da Revolução Mexicana. Echeverría viu-se entre a espada e a parede: tinha de encontrar soluções para
À direita, o partido rival PAN atraía homens de negócios e industriais - especial- a economia sem perder demasiado apoio popular à esquerda. À medida que o seu
mente dos mais dinâmicos estados do Norte - advogando as virtudes de um sexenio se aproximava do fim, fez uma tentativa desastrada de desvalorização da
mercado mais livre que estimulasse a produção. Assistia-se também a um renas- moeda para favorecer as exportações - 60% em setembro de 1976, o que acabou
cer dos princípios liberais democráticos que haviam morrido com Madero, mas por se revelar insuficiente, e mais 40% passado um mês. Depois, em novembro,
que conservavam, ainda assim, um lugar de honra na tradição intelectual mexi- tentou compensar este choque fiscal com um gesto «revolucionário», redistri-
cana. Os liberais criticavam o PRI por não prestar contas ao povo e denunciavam buindo terra privada a camponeses em Sonora - medida que não conseguiu
a arrogância do seu poder. Octavio Paz, o maior poeta mexicano do século, satisfazer a esquerda e que, todavia, ultrajou a direita. Nos anos 70, o milagre
demitiu-se do seu cargo de embaixador na índia após o massacre de Tlatelolco. mexicano de rápida expansão abrandou um pouco, situando-se numa média
De regresso ao México, elaborou uma crítica do Estado unipartidário e que se anual de 5,4%, e esta expansão estava, além disso, a ser cada vez mais alimen-
autoperpetuava dirigido pelo PRI, que descrevia como um «ogre filantrópico». tada por empréstimos estrangeiros.
A filantropia populista era, com efeito, a tática utilizada pelo PRI para man- Quando o ministro das Finanças de Echeverría, José López Portillo (1976-
ter a sua presença dominadora na vida pública. O novo presidente, Luis Echever- -82), chegou à presidência, parecia condenado a lutar para reter o monopólio de
ría (1970-76) - ministro do Interior na altura do massacre de Tlatelolco -, poder do PRI. Um programa de austeridade do FMI estabilizou o peso, mas à
tentou lidar com as tensões sociais e com o estado crítico da economia recor- custa de uma queda dos salários reais e de um aumento do desemprego. Como o
rendo à habitual fórmula do PRI, uma combinação de apoio social e discurso seu sucessor, López Portillo esperava estimular a produção industrial reduzindo
socialista com rápido crescimento económico. Para mitigar os efeitos da explo- o protecionismo e encorajando exportações não tradicionais. Porém, esta restru-
são demográfica e da miséria rural, aumentou substancialmente a despesa do turação foi novamente adiada; desta vez não em virtude de pressões políticas,
Estado em subsídios de alimentação, educação, habitação e saúde, visitando mas por causa de uma extraordinária descoberta económica - reservas de petró-
aldeias nas regiões rurais e distribuindo favores com uma generosidade patriar- leo que podiam ir até 70 mil milhões de barris (e potenciais reservas de aproxi-
cal. Propunha-se pagar o agravamento da despesa através de impostos mais altos madamente 200 mil milhões, que durariam cerca de 65 anos), o suficiente para
e de um aumento da produtividade industrial - os impostos sobre a importa- colocar o México entre os principais produtores mundiais, e tudo isto numa
ção seriam reduzidos para encorajar a competitividade no mercado mexicano altura em que o cartel da OPEP estava a manter os preços elevados.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

O súbito acesso à riqueza dava ao México a oportunidade de conseguir urna A Dívida Eterna e a Erosão do Estado Corporativo (1982-90)
genuína independência económica: a balança de pagamentos poderia ter sido
corrigida sem esforço, as dívidas públicas poderiam ter sido pagas, o desenvol- Mais uma vez, coube a um novo presidente, Miguel de Ia Madrid (1982-8),
vimento, combinado com uma política social, poderia ter sido financiado sem lidar com uma economia em estado crítico. Havia a possibilidade de alterar a
recorrer a empréstimos estrangeiros. Contudo, a dinâmica do Estado corporativo calendarização do pagamento da dívida à custa de um severo programa de aus-
do PRI, com as suas redes sobrepostas de políticos, burocratas e homens de teridade prescrito pelo FMI. O governo tentou obter a compreensão do povo para
negócios, e com a sua cultura política de favores e patrocínio, foi fortemente o apertar do cinto culpando a corrupção de elementos da administração de López
estimulada pelo dinheiro do petróleo. O enorme influxo de capital levou, em Portillo por grande parte do problema. O novo governo levou a cabo uma cam-
muitos casos, a projetos esbanjadores ou mal concebidos. Organismos públicos panha de «moralidade pública», e a divulgação de escândalos financeiros envol-
semiautónomos obtiveram empréstimos escandalosos: a petrolífera Pemex con- vendo anteriores funcionários do Estado tornou-se, com a sanção oficial, o pas-
traiu uma dívida de $10 mil milhões só em 1981, quando o seu endividamento satempo dos jornais. O anterior dirigente da Pemex, Jorge Díaz Serrano, foi
total não ultrapassara, até à data, os $5 mil milhões. Por outro lado, a intensa acusado por corrupção num problema que podia ser considerado menor, mas fora
pressão demográfica levou o governo a incorrer numa elevada despesa ele o responsável pelo próspero negócio do petróleo, e a sua queda, na tão ritua-
com assistência social, investimento agrícola e subsídios de alimentação: em lizada vida pública do México, serviu o propósito de criar um bode expiatório
1980, os gastos públicos ascenderam a 61,5%, em comparação com os 36% do para a crise económica. O caso mais famoso foi o que envolveu o comandante
ano anterior. da polícia da Cidade do México, indiciado por acusações de desvio de fundos.
Financiada pelas receitas do petróleo e por sucessivos empréstimos estran- A sua esplêndida propriedade na periferia da capital, com o seu hipódromo pri-
geiros, a economia mexicana regressou a «milagrosas» taxas de crescimento vado e uma residência que copiava o Pártenon, tornou-se uma atração de fim de
anual, acima dos 7%. Mas a descoberta do petróleo disfarçava os problemas semana para cidadãos curiosos a respeito dos proventos que se obtinham no
estruturais contínuos. Os lucros provenientes da exportação foram, em 1980, serviço público.
bastante mais do dobro do que haviam sido dois anos antes, mas o petróleo cons- O fardo da austeridade recaiu, escusado será dizer, sobre os pobres e as clas-
tituía agora 67% do total das exportações. Entretanto, o setor das manufaturas ses trabalhadoras. Os salários aumentaram, em média, 40%, quando a inflação
era negligenciado: no mesmo período, a taxa de crescimento caiu 3% e as expor- atingia os 100%; as reduções dos subsídios de alimentação e transporte elevaram
tações industriais cresceram menos de 4%, devido à falta de competitividade o custo de vida para a esmagadora maioria da população. As suas dificuldades
nacional. Mas o volume das importações sofreu um aumento, em virtude da foram ainda agravadas, em 1985, por um terrível sismo que abalou a Cidade do
necessidade de tecnologia industrial, da enorme procura de bens de consumo por México e zonas ocidentais do país; foi nos bairros de lata e nos subúrbios da
parte da classe média, e da compra de alimentos ao estrangeiro para satisfazer as classe operária que as baixas mortais atingiram o número mais elevado. A inefi-
necessidades internas (isto num país tradicionalmente agrário). ciência do governo perante o desastre alimentou a raiva popular. As classes
O resultado destas deficiências estruturais foi um défice persistente da médias foram afetadas por cortes na despesa pública e na importação de bens de
balança de pagamentos, que originou que se pedissem mais empréstimos no consumo. Isto porque se previa um crescimento económico pouco significativo,
estrangeiro e que acelerou a inflação (35% em 1980); e quando o preço do petró- já que a maior parte dos lucros obtidos com a exportação teriam de servir para
leo caiu a pique, em 1981, tornou-se inevitável recorrer novamente ao crédito amortizar a dívida externa, em vez de serem canalizados para investimento.
externo. A situação poderia ter sido tolerada se as taxas de juro dos EUA não A situação punha em risco a estratégia histórica do PRI de resposta rápida e
tivessem subido repentinamente, causando uma profunda recessão mundial. controlo. Com a austeridade imposta pelo FMI, era difícil conservar a lealdade
A inflação mexicana voltou a disparar, atingido os 100% em 1982. Por fim, dos trabalhadores e dos camponeses, mas a repressão declarada jogaria a favor
em agosto desse ano, o México tornou-se o primeiro país da América Latina a de uma oposição já combativa. Começavam a surgir fissuras no monopólio do
anunciar uma suspensão do pagamento de juros sobre a sua dívida externa de partido no poder. Em 1986, a impaciência com a habitual manipulação do pro-
$85,5 mil milhões (correspondendo os pagamentos de juro a 40% dos lucros da cesso eleitoral levou candidatos do PAN a fazerem greves de fome na Cidade do
exportação). México; afirmavam ter sido derrotados por fraude nos estados nortenhos de
Chihuahua e Durango. Simplesmente, os partidos da oposição não podiam fazer
grandes progressos enquanto o PRI exercesse um controlo indireto mas eficaz

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE

sobre todas as instituições do Estado, sobre a televisão e as principais estações seu vizinho a sul. O México foi a primeira nação latino-americana a responder
de rádio, e até sobre a maior parte da imprensa. de modo positivo ao Plano Brady e em janeiro de 1990 concluiu um acordo de
Mas o descontentamento público era tão forte que se fez sentir no seio do restruturação da dívida, subscrito pelo Tesouro dos EUA, com os bancos credo-
próprio PRI, ameaçando a pedra basilar do Estado revolucionário mexicano - o res. Alguns meses mais tarde, o governo mexicano propunha-se negociar com os
direito inquestionável do presidente cessante a escolher o seu sucessor. O candi- EUA e com o Canadá um acordo de comércio livre para abolir as barreiras adu-
dato designado pelo PRI para as eleições presidenciais de 1988, Carlos Salinas aneiras entre os três países.
de Gortari, um tecnocrata formado em Harvard que fora ministro do Orçamento Estas estratégias económicas tornaram-se viáveis porque Salinas seguira, no
de De Ia Madrid, deparou com a oposição de um autointitulado «movimento plano interno, uma política liberal ortodoxa: em 1989, foi possível alcançar uma
democrático» entre as fileiras do partido. O que tornava este movimento parti- taxa de crescimento de 3% procedendo a cortes na despesa pública e à abertura
cularmente ameaçador aos olhos dos dirigentes do PRI era o facto de ser liderado da economia ao comércio externo. Em fevereiro de 1990, Salinas anunciou pla-
por Cuauhtemoc Cárdenas, filho de Lázaro Cárdenas, um dos mais venerados- nos para privatizar as principais companhias produtoras de aço dirigidas pelo
heróis da Revolução e o homem que desafiara o imperialismo ianque ao nacio- Estado; em maio, autorizou a privatização dos bancos que López Portillo nacio-
nalizar a indústria petrolífera em 1938. Num momento em que o México lutava nalizara repentinamente em 1982. A estratégia de fundo era liberalizar a econo-
em vão por pagar quantias fabulosas aos banqueiros de Wall Street e da City de mia para vencer o problema da dívida através do crescimento.
Londres, a vontade de fazer frente aos credores estrangeiros garantia um enorme O controlo que o PRI exercia a partir de cima dependia, em última instância,
apoio a Cárdenas. Cuauhtemoc apresentou-se como candidato rival e firmou um da capacidade da máquina do partido para responder às pressões vindas de baixo.
pacto eleitoral com o PAN e com os partidos socialistas, pretendendo denunciar O governo manteve o seu programa de subsídios básicos aos setores mais
as alegadas falhas da máquina do PRI. O candidato do PRI acabou por ganhar as pobres, mas o controlo rígido dos salários ameaçava agravar ainda mais o des-
eleições, embora sem a habitual maioria esmagadora. Os partidos da oposição contentamento popular com o PRI. O problema refletia-se nas criticas cada vez
uniram-se para contestar as eleições, afirmando que fora a «alquimia eleitoral» mais audíveis à fraude eleitoral que repetidamente sustinha a máquina do PRI.
que dera a vitória a Salinas, e houve grandes protestos de rua aquando da sua Os partidos da oposição, como o PAN e o Partido da Revolução Democrática
tomada de posse. (PRD) de Cuauhtemoc Cárdenas, continuavam a atrair um vasto apoio popular,
Salinas assumiu, ainda assim, as rédeas do poder e não tardou a exercer a de tal modo que a manipulação das urnas já não parecia uma opção exequível em
intimidante autoridade que se esperava de um presidente mexicano. Enveredou eleições futuras. Em 1990, a máquina corporativista do partido no poder come-
pela estratégia ortodoxa de contenção monetária e privatização de partes signifi- çara a ruir: a Confederação dos Camponeses separara-se do PRI para se aliar ao
cativas do vasto setor público. Em janeiro de 1989 atreveu-se até a desafiar e a PRD de Cárdenas, ao mesmo tempo que a Confederação dos Sindicatos (CTM),
derrotar - num confronto entre a polícia e guarda-costas armados - o temível que o PRI dominava, se viu a competir contra outros sindicatos independentes.
dirigente sindical Hemández Galicia, um homem que dirigia o extraordinaria- Não havia dúvida de que a política de liberalização económica de Salinas viria
mente rico sindicato dos trabalhadores do petróleo como um feudo pessoal. mais cedo ou mais tarde a minar o Estado corporativo que os vencedores da
A sua detenção por fuga ao fisco constituiu um forte indício de que o novo pre- Revolução haviam criado para o México nos anos 30. Restava saber se a estabi-
sidente se preparava para exercer controlo financeiro sobre a indústria do petró- lidade que o corporativismo proporcionara ao México daria lugar a uma desor-
leo. A Pemex, a mais intocável das vacas sagradas do Estado revolucionário dem crónica ou se a genuína democratização da política fortaleceria a legitimi-
- criada por Lázaro Cárdenas - não ficaria imune ao esforço de relançar a eco- dade do Estado mexicano, tornando-o mais capaz de lidar com os imensos
nomia. Tratava-se de um risco calculado, pois o jogo de poder de Salinas só problemas económicos e sociais que o país enfrentava.
poderia ser bem-sucedido durante um período de tempo limitado: sem a retoma
do crescimento, todo o sistema mexicano, que se mantivera firme durante 60 A Revolução Mexicana não mudou, por si só, a sociedade mexicana. Levou,
anos, poderia desmoronar-se. isso sim, à formação de uma elite nacionalista dinâmica, que conseguiu centrali-
Salinas tomou, então, a iniciativa de pedir aos EUA, a principal nação cre- zar o poder na forma de um singular sistema uaipartidário em que a política cau-
dora, que sancionasse a redução do fardo da dívida dos países da América dilhista foi adaptada à tarefa de modernização económica acelerada. O Estado
Latina. Era, na verdade, uma forma de apelar aos EUA para que reconhecessem corporativo, gradualmente construído pela «família revolucionária», permitiu
o seu próprio interesse na continuação da extraordinária estabilidade política do que o México usufruísse de uma estabilidade sem paralelo. E graças à sua ênfase

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

revolucionária no igualitarismo e na cidadania comum de todos os grupos étni-


cos, empenhou-se em assegurar o bem-estar básico dos pobres, especialmente
durante a profunda revolução industrial que transformou a aparência do México
em apenas duas ou três décadas.
Porém, a descoberta de petróleo em finais dos anos 70 e a crise da dívida que
se seguiu revelaram as fraquezas do corporativismo. O monopólio de poder por
parte do PRI neutralizou a oposição com uma tal eficácia que os presidentes
quase omnipotentes deixaram de prestar contas ao eleitorado. No ambiente
fechado do partido do poder, a cultura de patrocínio e favores florescia com
demasiada facilidade, debilitando a estrutura da economia e encorajando a cor-
rupção na vida pública. Acontece que o número muito elevado de desemprega-
dos numa população em rápido crescimento não podia ser absorvido por um
setor industrial que se desenvolvera à custa de recursos vitais das regiões rurais.
CAPÍTULO 11
Em finais do século xx, o México, debilitado pela sua dívida externa, tinha pela
frente a difícil tarefa de recuperar a economia sem renunciar ao seu compromisso Brasil: Ordem e Progresso
histórico para com o Estado social.

A Primeira República (1889-1930)

No Brasil, o Estado republicano nasceu com surpreendente facilidade a 16


de novembro de 1889. A sua parteira foi o Exército, e o Exército continuou a ser
o seu espírito tutelar, imprimindo à nação os ideais inscritos na bandeira republi-
cana — «ordem e progresso». Inevitavelmente, a tarefa de equilibrar ordem e
progresso introduziu o Exército na política como o árbitro supremo da vontade
da nação, mas o que caracterizava a vontade das forças armadas era a profunda
determinação de converter o Brasil numa grande potência do mundo moderno.
Devido a este entusiasmo pelo progresso, as forças armadas conservaram a sua
independência de todas as classes e de todos os interesses políticos. O seu desejo
de ordem levava-as muitas vezes a apoiar instituições conservadoras, mas, do
mesmo modo, não deixavam de impor a mudança sempre que o conservado-
rismo parecia estar a bloquear a modernização.
As tensões entre o velho e o novo surgiram nos primeiros tempos da repú-
blica. A constituição democrática aprovada em 1891 fora obra de Rui Barbosa,
um advogado do estado da Bahia, no Nordeste, e um republicano liberal radical
que se tornara um dos grandes defensores da abolição da escravatura. Em larga
medida inspirada na constituição dos EUA, a constituição do Brasil consagrava
uma estrutura federal composta por dois estados autónomos, com um governo
nacional chefiado por um presidente eleito por sufrágio direto, que respondia
perante um senado e uma câmara de deputados.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
B R A S I L : O R D E M E PROGRESSO

Contudo, por detrás desta constituição republicana exemplar, persistia a era necessário regatear para obter o apoio das máquinas políticas das regiões nas
política tradicional de uma sociedade oiigárquica e desigual. Como sempre acon- eleições federais. O governo federal era, assim, determinado por uma «política
tecera, a política brasileira, no plano nacional, era ditada pelas rivalidades entre dos governadores» e não por um verdadeiro escrutínio da opinião pública.
elites regionais. Em teoria, o federalismo pretendia beneficiar os estados mais A política dos governadores favorecia, obviamente, os estados mais ricos, que
fracos, permitindo-lhes uma maior autonomia relativamente ao centro; na reali- eram os mais eficazes no exercício do patrocínio, e aqui São Paulo tinha, é claro,
dade, era um sistema que favorecia os fortes. O estado natal de Rui Barbosa, a um papel preponderante.
Bahia, encontrava-se em declínio económico, como todos os estados plantadores Na realidade, a república brasileira devia a sua estabilidade a um entendi-
de açúcar do Nordeste. Em finais do século xix, o café era o motor da economia mento entre os patrões de São Paulo e os de Minas Gerais (um estado não tão
brasileira, e o estado de São Paulo era a central energética da nação. São Paulo rico mas bastante populoso), segundo o qual os dois estados partilhariam alter-
era responsável por cerca de 40% do PIB; a sua dívida externa era superior à do nadamente a presidência. Dos onze presidentes da república entre 1889 e 1930,
governo nacional; entre 1890 e 1920, a sua população triplicaria, com a chegada seis eram naturais de São Paulo e três de Minas Gerais. Os restantes estados não
de imigrantes vindos de outros estados e da Europa para beneficiar do próspero conseguiam quebrar este duopólio, à exceção de Rio Grande do Sul, para o qual,
negócio do café. a partir de 1909, se tornou possível eleger um presidente em determinadas cir-
Os plantadores de café de São Paulo tinham defendido o império nas suas cunstâncias. Isso deveu-se em parte ao vigor da sua economia gaúcha de criação
últimas décadas porque a escravatura lhes parecera a única resposta para a sua de gado (semelhante à da Argentina e do Uruguai), mas sobretudo às ligações
necessidade de mão de obra. Mas quando o imperador aprovara o ato final da que mantinha com o Exército. Situado na fronteira sempre instável com a Amé-
abolição, em maio de 1888, os paulistas tinham deixado de ter uma razão política rica espanhola, Rio Grande do Sul era de uma importância especial para as forças
válida para continuarem leais ao governo imperial do Rio de Janeiro; com efeito, armadas e tendia a produzir militares de alta patente, fator que dava aos chefes
do ponto de vista económico, São Paulo dava ao governo imperial muito mais do políticos rio-grandenses um peso acrescido junto do poder federa!.
que recebia. E por isso o império tivera de se extinguir, para impedir que São Assim, embora a política da primeira república brasileira se tenha tornado
Paulo, a sua província mais rica, avançasse para a autonomia. aquilo que ficou conhecido como a aliança «café com leite» entre as elites do
Com efeito, a república federal só conseguia manter o Brasil unido dando a café de São Paulo e os barões do gado de Minas Gerais, em última instância,
São Paulo a sua chefia: a nova estrutura federal permitia que os diferentes esta- as forças armadas presidiam a este entendimento profundamente oligárquico.
dos cobrassem os seus próprios impostos, contraíssem empréstimos no estran- Os outros estados dificilmente se podiam rebelar contra o sistema. O Exército
geiro, estabelecessem as suas próprias tarifas sobre as importações e até que gostava de ordem, e a ordem podia mais facilmente ser garantida através de um
impusessem tarifas sobre o comércio com outros estados brasileiros. E, no caso controlo centralizado, o que na prática significava apoiar o eixo São Paulo-
de São Paulo, estes poderes equivaliam à independência económica. Se contri- -Minas Gerais.
buía abundantemente para o orçamento federal, era porque isso lhe dava uma Mas a república não foi criada sem derramamento de sangue, e a sua política
influência preponderante sobre a política nacional. não sobreviveu sem ser posta à prova. Uma violenta oposição à república pro-
A implantação da república não pôs fim à oligarquia. Em primeiro lugar, só priamente dita veio das populações rurais pobres das províncias mais atrasadas.
Nos estados produtores de açúcar, que haviam entrado em declínio, os campone-
os homens adultos alfabetizados podiam votar. O eleitorado encontrava-se,
ses desapossados ressentiam-se das incursões do capitalismo moderno, em par-
assim, restringido a cerca de 3% da população, uma faixa em que a esmagadora
ticular da chegada dos caminhos de ferro. Apesar das suas difíceis condições de
maioria dos indivíduos eram brancos. As eleições federais eram, para todos os
vida, tentaram proteger o seu mundo tradicional, familiar, sublevando-se em
efeitos, formalidades destinadas a sancionar acordos entre oligarquias regionais.
defesa de Deus e do império. A mais famosa das várias revoltas milenaristas
No universo de cada estado, a política continuava a ser uma competição entre
contra a república teve lugar em Canudos, no estado da Bahia, onde um visioná-
clãs, tendo cada província a sua própria pirâmide de poder, que se estendia até
rio católico, António, o Conselheiro, liderou em 1893 um movimento de apro-
às localidades através de uma hierarquia de chefes políticos conhecidos como
ximadamente 30 000 pessoas, que se opunha à autoridade da república secular.
coronéis, que correspondiam aos caudilhos da América espanhola.
Os rebeldes de Canudos resistiram durante quatro anos e só foram reprimidos
Para o povo, a democracia republicana era, em larga medida, uma questão
após uma série de ataques cada vez mais brutais levados a cabo pela tropa gover-
de regatear com os coronéis para aceder ao patrocínio do Estado - uma promessa
namental. Em 1911, deu-se uma rebelião semelhante a favor da monarquia,
de fundos, empregos e licenças comerciais em troca de votos. Entre os estados,
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA BRASIL: ORDEM E P R O G R E S S O

levada a cabo pelos pobres dos estados de Paraná e de Santa Catarina, no sul. Intelectuais e artistas assumiram um papel fundamental no desafio que se
Liderado por outro católico visionário, José Maria, que foi venerado como santo apresentava à economia de exportação de café, contribuindo para o fermentar do
depois de ter sido morto no início da luta, o movimento de Contestado resistiu nacionalismo com as suas explorações do problema de identidade cultural. Na
até 1915, ano em que foi finalmente extinto pelo exército republicano. Semana da Arte Moderna, que teve lugar em São Paulo em fevereiro de 1922,
Outra forma de violência rural foi o fenómeno do banditismo, que se gene- jovens artistas plásticos, músicos e escritores exibiram o seu trabalho nos novos
ralizou no sertão, o árido interior dos estados do Nordeste. Neste caso, não se estilos da vanguarda europeia. Este acontecimento assinala o início do moder-
tratava propriamente de uma manifestação antirrepublicana - surgira ainda no nismo brasileiro, um fenómeno artístico multifacetado, que nas suas manifesta-
tempo do império -, mas sobretudo de um sinal de indiferença relativamente à ções políticas amiúde contraditórias exibia uma comum impaciência revolucio-
sociedade organizada. Os chamados «cangaços», grupos de criminosos armados nária com a ordem estabelecida (ver capítulo 15). Por exemplo, um dos líderes
que atacavam quintas e pilhavam cidades rurais, têm, no entanto, sido conside- do modernismo, o poeta Oswald de Andrade, inclinava-se para o marxismo,
rados rebeldes sociais. Não há dúvida de que o cangaceiro mais famoso, Lam- enquanto outra grande figura do movimento modernista, o escritor Plínio Sal-
pião, ativo desde o início da década de 20 e até ter sido morto em 1938, entre os gado, fundou um partido fascista que conseguiu uma força considerável nos anos
pobres do sertão ganhou a reputação de um Robin dos Bosques. 30 e que por pouco não levou a cabo um golpe cie Estado em 1937.
Mas o mais inquietante eram os sinais de descontentamento no Exército. Em
1922, em 1924 e depois em 1926, oficiais de baixa patente de diferentes guarni-
A CRISE DOS ANOS 20 ções organizaram revoltas contra Bernardes. As chamadas «revoltas dos tenen-
tes» foram desencadeadas por insultos à honra das forças armadas publicados na
Uma ameaça à ordem republicana bem mais séria do que a rebelião social imprensa, em 1921, sob o falso de nome de Bernardes. Escusado será dizer que
veio dos conflitos no seio da aliança «café com leite». Um desses episódios o orgulho ferido era agravado pela frustração relativamente a promoções e a
ocorreu durante os preparativos para as eleições de 1910, quando o candidato condições de trabalho. Os tenentes não se reviam numa ideologia política em
presidencial aprovado e o presidente em exercício morreram ambos no espaço de particular, mas queriam livrar-se da «política dos governadores», que era oligár-
meses. Tendo a situação levado à rutura entre os dois principais estados, Rio quica, e pôr fim ao domínio dos exportadores de café paulistas. No entanto,
Grande do Sul alinhou com Minas Gerais para apoiar um candidato militar, o depois da revolta de 1924, muitos tenentes penderam para a esquerda; isto foi,
marechal Hermes da Fonseca. O candidato de São Paulo era Rui Barbosa, o de certa forma, o resultado da sua experiência de percorrer o interior do país
campeão liberal do federalismo, que se declarava contra as práticas oligárquicas durante mais de dois anos como uma força de guerrilha, que ficou conhecida
e contra a interferência militar na política. O marechal venceu as eleições, e, no como Coluna Prestes - por ter sido comandada por Luís Carlos Prestes, que seria
decorrer do seu mandato confuso, o Exército intrometeu-se nos assuntos de o líder do Partido Comunista Brasileiro durante mais de três décadas. Em vários
vários estados, procurando reforçar o controlo central. aspetos, a atmosfera dos anos 20 lembrava os últimos tempos do império brasi-
Nas eleições seguintes, o eixo São Paulo- Minas Gerais funcionou bastante leiro, quando a insatisfação regional, a fermentação intelectual e o mal-estar
bem, mas em 1922 surgiu uma crise mais grave, quando o candidato da aliança, sentido nas forças armadas se haviam combinado para minar a ordem oligárquica
Arturo Bernardes, defrontou uma nova coligação de estados menores liderada dominante.
por Rio Grande do Sul e apoiada pelo Exército. Durante o mandato de Bernar-
des, tornou-se evidente que havia correntes subterrâneas de descontentamento na
república. O poder dos plantadores de café de São Paulo, orientados para a CRISE ECONÓMICA
exportação, gerava ressentimentos noutros estados, especialmente em Rio
Grande do Sul. As classes médias urbanas também não estavam satisfeitas com Como nos anos 80 do século xix, uma das principais razões para a agitação
a economia de exportação; em 1926, foi fundado em São Paulo um Partido política foi o facto de a indústria do café de São Paulo estar em crise. Desde a
Democrático antioligárquico nacionalista, que apelava ao fim das eleições mani- I Guerra Mundial, o preço internacional do café vinha caindo sistematicamente:
puladas e que prometia ficar com o Brasil para os Brasileiros, numa época mar- o Brasil estava a produzir demasiado café, com métodos ultrapassados e que
cada pelo investimento estrangeiro e pela imigração em massa proveniente da geravam desperdício. Para manter os preços em alta, os plantadores tinham per-
Europa. suadido o governo a introduzir um esquema de «valorização», que passava pelo

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HISTORIA DA AMERICA LATINA B R A S I L : ORDEM E PROGRESSO

armazenamento do café excedente por agências estatais e pela libertação gradual questão de semanas, as reservas brasileiras de moeda estrangeira estavam esgo-
do produto acumulado para os mercados mundiais. Em troca, os plantadores tadas.
recebiam empréstimos de bancos britânicos e norte-americanos, que podiam ir Por altura das eleições presidenciais de 1930, a aliança «café com leite»
até 30% do valor do café armazenado. tornara-se inviável. A elite do café de São Paulo já não conseguia fazer-se acom-
Como a valorização mantinha os preços artificialmente elevados, os produ- panhar por outros grupos com interesses a defender. O presidente cessante,
tores estavam protegidos contra a procura real, e a sobreprodução continuava a Washington Luís, nomeou para seu sucessor Júlio Prestes, que, como ele, era
ser encorajada. A flutuação dos preços no mercado mundial funcionou também paulista; esta decisão violava um entendimento anterior com Minas Gerais,
como um estímulo à produção dos concorrentes do Brasil no plano internacional, segundo o qual o presidente seguinte seria um mineiro. A escolha de Prestes
como a Colômbia e os países da América Central. Enquanto as forças reais do dividiu a oligarquia de Minas Gerais em função dos seus alinhamentos económi-
mercado determinavam a descida do preço mundial, o governo brasileiro tinha cos. Os produtores de café mineiros estavam satisfeitos com Prestes, mas os
de contrair mais empréstimos para subsidiar os plantadores pelas cada vez maio- rancheiros apoiaram uma coligação rival liderada pelos barões de Rio Grande do
res quantidades de café que iam ficando em armazém. Esta prática criou um Sul e que incluía diversos grupos de interesse nacionalistas - homens de negó-
problema de endividamento, que enfraqueceu a moeda e alimentou a inflação. cios, industriais, as classes médias e os tenentes.
Em 1930, um terço do orçamento nacional era canalizado para o pagamento da As forças coligadas da oposição formaram uma Aliança Liberal para disputar
dívida externa. as eleições, escolhendo para seu candidato o governador de Rio Grande do Sul,
Como seria de esperar, outros estados e outros grupos de interesse econó- Getúlio Vargas, um rancheiro abastado. Porém, as eleições de 1930 foram ainda
mico brasileiros sentiam-se prejudicados pelo esquema da valorização, que se uma competição entre duas máquinas oligárquicas, e foi a máquina de São Paulo
destinava a garantir lucros para a elite do café do estado de São Paulo. Daí a nova que venceu. Desta vez, a oposição recusou-se a aceitar o resultado. Seguiram-se
proeminência de Rio Grande do Sul na política nacional: a sua economia de vários meses de perturbações e crescente tensão: o vice de Getúlio Vargas na
criação de gado assentava na produção de carne bovina curada para o mercado corrida à presidência foi assassinado e os tenentes avançaram com revoltas em
interno, e a inflação gerada pela valorização do esquema do café reduzia o poder várias capitais de Estado.
de compra dos seus clientes. Os industriais brasileiros - cada vez mais numero- Os conflitos convenceram o alto comando do Exército a depor o presidente
sos e maioritariamente concentrados na cidade de São Paulo, e cuja produção se cessante. Na verdade, as forças armadas tinham decidido pôr fim à república que
destinava também ao mercado interno - ressentiam-se dos recursos que o estado haviam criado em 1889: era novamente tempo de transformar a nação, no inte-
esbanjava com os plantadores de café. Também as classes urbanas sofriam com resse do progresso. A junta.militar nomeou presidente interino o candidato rio-
a inflação gerada pelo esquema de valorização. Por fim, o Exército impacientou- -grandense, Getúlio Vargas; mas a sua governação nada teria de provisória: entre
-se com um sistema que empregava uma parte tão significativa da riqueza do 1930 e 1954, chefiou o Brasil, num total de 19 anos, tendo aberto mão do cargo
país na proteção de um comércio de exportação dominado por um único estado apenas no período de 1945-50.
e pelos seus parceiros de negócio estrangeiros. Tal como o império, politica-
mente favorável aos barões do açúcar do Rio de Janeiro e do Nordeste, se vira
ameaçado quando os plantadores de café de São Paulo se tinham tornado prepon- Getúlio Vargas e o Estado Novo (1930-45)
derantes, também agora a república federal, que privilegiava a elite paulista do
café, começou a estalar sob a pressão de novas forças sociais e económicas. A era de Getúlio Vargas assinalou uma viragem na história brasileira. Assis-
Fora o crash de Wall Street a infligir o golpe fatal à velha república. A elite tiu ao fim da hegemonia dos interesses paulistas do café e alterou o rumo da
paulista do café conseguira dominar a política nacional porque era quem trazia economia, que passou do crescimento conduzido pela exportação a uma indus-
para o país a maior parte de capital estrangeiro. Mas o crash levou ao colapso da trialização por substituição de importações orientada pelo Estado.
procura internacional de café. Por outro lado, os empréstimos necessários para As transformações surgiram gradualmente, de um modo quase fortuito,
manter o esquema de valorização e para pagar a enorme dívida nacional torna- pois Vargas não chegou ao poder com uma nova ideologia, nem sequer com um
ram-se quase impossíveis de obter nos mercados financeiros dos EUA, em * programa específico com vista à mudança. Era um veterano da oligarquia
crise. A situação foi ainda agravada pelo esforço insensato de proteger a moeda rio-grandense de grandes criadores de gado, e o seu verdadeiro interesse consis-
brasileira mantendo a sua conversibilidade em ouro ou libras esterlinas — numa tia em rever o equilíbrio de forças na «política dos governadores» por forma a

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beneficiar o seu próprio estado. O seu principal objetivo era, então, destruir a o presidente aproveitou a oportunidade para neutralizar a Aliança, detendo o
aliança «café com leite» para privar São Paulo do seu domínio político. Com este líder do Partido Comunista, Luís Carlos Prestes, além de muitos militantes de
fim em vista, os patrões rio-grandenses tinham-se aliado a interesses urbanos e a esquerda.
grupos nacionalistas. O fracasso da ALN deixou terreno livre para os fascistas. Estes viram uma
Durante os primeiros cinco anos, aproximadamente, Vargas empenhou-se excelente oportunidade para assumir o controlo do Estado em 1938, pois era esse
em retirar poder a São Paulo. Governando por decreto, substituiu todos os gover- o ano em que Vargas estava constitucionalmente obrigado a convocar eleições
nadores dos estados por «interventores». Estes últimos estavam incumbidos de presidenciais às quais não poderia concorrer. Mas Getúlio Vargas levou a melhor
reduzir a dimensão das milícias estatais e de reorganizar a máquina política de sobre os Camisas Verdes de Salgado. Em outubro de 1937, foi declarado o estado
cada estado, construindo uma rede de patrocínio para apoio de Vargas. Seme- de sítio, para defender o Estado contra uma alegada conspiração comunista. A I O
lhante reordenação da maquinaria de patrocínio federal trouxe novos grupos de novembro, Vargas suspendeu a constituição de 1934, que o impedia de conti-
sociais para a arena da política nacional, em especial a relativamente pequena nuar no cargo. Para a substituir, proclamou uma constituição diferente, que daria
classe de industriais e empresários, assalariados de classe média e, até certo lugar a um Estado Novo não liberal. Ofereceu um cargo no governo ao líder
ponto, a classe trabalhadora organizada. fascista, Plínio Salgado, que o recusou. Depois, Salgado cometeu o erro de tentar
Como era de prever, os patrões de São Paulo não aceitaram de bom grado expulsar Vargas por meio de um golpe súbito. Em maio, liderou algumas cente-
esta reorganização da «política dos governadores» que tanto lhes convinha. Pro- nas de Camisas Verdes num ataque ao palácio presidencial, mas foi rechaçado
vocados pelas manobras pouco hábeis do interventor de Vargas, recorreram à até o Exército chegar para reprimir o seu malogrado golpe fascista. Vargas
milícia paulista para uma insurreição que ocorreu a 9 de julho de 1932. A resis- viu-se, então, sem oposição organizada ao seu Estado Novo.
tência de São Paulo à centralização durou cerca de três meses, mas a rebelião A criação do Estado Novo no Brasil resultou tanto da crise económica como
acabou por ser esmagada por soldados federais, e Vargas viu a principal ameaça de um plano político. No final de 1937, os preços do café tinham sofrido uma
à sua autoridade ultrapassada. A 16 de julho de 1934, uma assembleia consti- queda acentuada, e Vargas pouco fizera para controlar a torrente de importações.
tuinte aprovou uma nova constituição, que reforçava o poder do presidente e O governo via-se a braços com um enorme défice na balança de pagamentos,
reduzia a autonomia dos estados: São Paulo fora posto na ordem. A assembleia com uma dívida externa insuportável e com uma inflação terrivelmente elevada.
constituinte elegeu, então, Getúlio Vargas para a presidência por um mandato de Para lidar rapidamente com a crise, Vargas assumiu poderes ditatoriais, usando
quatro anos. o pretexto da subversão comunista para substituir a constituição de 1934 por uma
O novo regime centralizado existia, contudo, num vácuo ideológico. Aparen- da sua autoria. Foi também a crise que convenceu Vargas da necessidade de
temente, a velha república liberal fora destruída, mas a «Revolução de 1930» encorajar a industrialização como forma de compensar as flutuações da econo-
fora, na realidade, uma manobra oligárquica que São Paulo não conseguira ven- mia de exportação baseada no café.
cer. E agora os vencedores precisavam de justificar o seu poder agraciando-o O Estado Novo de Getúlio Vargas foi um dos vários Estados corporativos
com um conjunto de ideais políticos. Dois grupos se mostraram disponíveis para autoritários que nos anos 30 se formaram em vários países da América Latina.
providenciar um tal instrumento, e defrontaram-se nas ruas pela oportunidade de Os direitos civis foram severamente limitados, a imprensa censurada, os partidos
o fazer: os integralistas eram um movimento fascista, fundado pelo escritor políticos banidos e as restrições impostas à polícia afrouxaram a ponto de tolerar
modernista Plínio Salgado em 1932; os seus rivais formavam a Aliança Liberta- a tortura. O governo, como guardião do interesse nacional, estava autorizado a
dora Nacional (ALN), uma frente popular - que incluía socialistas e liberais intervir na economia e na sociedade. A representação política fazia-se através da
radicais - formada em 1935 pelo Partido Comunista Brasileiro, segundo instru- organização de interesses económicos num Conselho Económico Nacional,
ções da Internacional Comunista de Estaline. fórum onde os conflitos eram harmonizados para bern da nação no seu todo. Uma
Em novembro de 1935, a ALN fez uma primeira tentativa precipitada de tal estrutura agradava particularmente à burocracia, aos industriais e às forças
chegar ao poder, pressionando Vargas através de uma série de revoltas de caserna armadas. Aos burocratas, prometia poderes acrescidos para planear o desenvol-
levadas a cabo por apoiantes da ALN das fileiras militares de baixa patente. vimento da economia. Aos industriais, acenava com a proteção do Estado, que
Este pronunciamento não conseguiu ir além do Rio de Janeiro e de algumas significava um mercado interno cativo e bons preços pelas manufaturas brasilei-
cidades do Nordeste. Também não cumpriu o seu principal objetivo de conven- ras subsidiadas. E aos militares, dava uma maior margem de manobra para desen-
cer Vargas a negociar a paz chamando a ALN para o seu governo. Pelo contrário, volver uma indústria de armamento dirigida pelas próprias forças armadas.

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Assim, o Estado Novo estabeleceu a industrialização como urn dos seus enviando em 1944 uma força de 25 000 homens para combater em Itália ao lado
principais objeíivos estratégicos. O Estado teria um papel ativo no fomento da do 5° Exército dos EUA.
indústria mineira, petrolífera, química, automóvel, do aço, da eletricidade e da Quando já se adivinhava a derrota da Alemanha nazi, Vargas apercebeu-se
aviação ligeira, entre outros setores. Agências do governo regulavam a venda de que precisava de credenciais democráticas para sobreviver; o Estado Novo
ultramarina de café e de outros produtos, ajustando a estrutura de preços de tinha de pôr de lado o seu aspeto semifascista. Mas, para vencer as eleições - as
modo a maximizar as receitas para o Estado. O contributo do capital estrangeiro que deviam ter-se realizado em 1943 haviam sido adiadas por causa da guerra -,
e de firmas transnacionais era bem-vindo, em certas condições, ao processo de Vargas necessitava de uma base política. Permitiu, então, a formação de novos
modernização. partidos políticos, e ele próprio criou dois - o Partido Social-Democrata (PSD),
A política de estatismo de Vargas não trazia grandes vantagens aos assalaria- que atraiu industriais e patrões rurais, e um Partido Trabalhista (PTB), cujo prin-
dos urbanos, que tinham de pagar bens de consumo produzidos no Brasil a pre- cipal apoio vinha dos sindicatos pró-Vargas. Os defensores da economia liberal
ços elevados, nem aos agricultores, que recebiam empréstimos e subsídios do e as tradicionais elites da exportação fundaram a União Democrática Nacional
Estado mas que se deparavam com a intervenção do governo nos preços e na (UDN), que se opunha a Vargas. O Partido Comunista foi legalizado e o seu líder
produção. Os trabalhadores organizados também ficavam a perder, embora a veterano, Luís Carlos Prestes, foi libertado.
«tranquilidade social» fosse um objetivo declarado do governo. As leis laborais Como se não bastassem dois partidos pró-Vargas, apareceu um misterioso
conferiam numerosos benefícios aos trabalhadores, como oito horas diárias de movimento que ficaria conhecido como os «queremistas», por causa do seu lema
trabalho, férias pagas, segurança no emprego, o direito à greve, um salário omnipresente, «Queremos Getúlio». Para os opositores ao regime, tudo isto era
mínimo e bons níveis de saúde e segurança. Mas em troca desta legislação (que sinal de que Getúlio não tinha vontade de que o país fosse às urnas a 2 de dezem-
nem sempre era observada na prática) os sindicatos perderam a sua independên- bro de 1945, conforme prometido. Parecia que o presidente estava mais uma vez
cia do Estado e o direito à negociação coletiva livre. As finanças dos sindicatos, a tentar esquivar-se às eleições, lançando um movimento como o dos queremis-
e até as suas eleições, eram controladas pelo Ministério do Trabalho. Tribunais tas, que poderia criar uma ideia de apoio popular generalizado e dar-lhe uma
especiais julgavam reivindicações salariais, e, nos anos 40, os salários reais não desculpa para se manter no poder. Os EUA, cujo contributo era agora essencial
acompanharam o aumento do custo de vida. O novo código do trabalho só afe- para a industrialização do Brasil, manifestaram desagrado pelo rumo que a polí-
tava verdadeiramente os trabalhadores industriais urbanos; nas fazendas, as tica brasileira estava a tomar. O Exército começou a temer que a ambição pessoal
velhas formas de trabalho coercivo sobreviviam, na maioria das vezes intactas. de Vargas pusesse em risco a lucrativa aliança com os EUA. Quando o presidente
Apesar de ter enveredado resolutamente pelo nacionalismo económico, Var- nomeou, inesperadamente, o seu irmão para chefe da polícia do Rio de Janeiro,
gas era um pragmático, e estava bem ciente de que a maioria dos recursos neces- o alto comando do Exército interveio e pediu ao ditador que se demitisse, pois
sários para criar uma plataforma industrial no Brasil teria de vir do estrangeiro. caso contrário seria destituído.
Na cada vez mais difícil situação internacional de finais dos anos 30, Vargas A 29 de outubro de 1945, Vargas apresentou a sua demissão e regressou ao
começou a explorar as tensões entre os EUA e a Alemanha nazi, procurando seu estado natal. As eleições realizaram-se a 2 de dezembro, como previsto, e
extrair das potências rivais todos os benefícios que conseguisse para o desenvol- Eurico Dutra, um dos generais que tinham pressionado Vargas para se afastar,
vimento do Brasil. Quando a guerra eclodiu na Europa, foram os EUA que se venceu como candidato do PSD, um partido que contava com a bênção de Var-
revelaram o melhor mercado para as exportações brasileiras, bem como uma gas. O general Dutra fora, afinal, um dos pilares do Estado Novo.
fonte disponível de empréstimos e assistência técnica para o radical programa de
industrialização. Vargas permitiu que os EUA construíssem bases militares no
Norte do Brasil, para serem usadas contra os submarinos alemães em águas A Segunda República (1946-64)
atlânticas e também para a coordenação das invasões dos Aliados no Norte de
África. Em troca, conseguiu apoio para a construção da gigantesca fábrica de aço A eleição do novo presidente permitiu a restauração da democracia liberal
de Volta Redonda, obra emblemática do programa industrial brasileiro, a par de sob uma constituição esboçada por uma assembleia constituinte em 1946.
um crédito generoso para outros investimentos em infraestruturas. Tendo adiado A Segunda República baseava-se nos princípios liberais da constituição de 1891,
a decisão, para precaver os seus interesses, até a guerra ir já bem adiantada, Var- mas incorporava grande parte da legislação social e do código do trabalho do
gas acabou por apostar nos Norte-Americanos e declarou guerra à Alemanha, Estado Novo.

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Eurico Dutra também deu continuidade ao empenho de Vargas no desenvol- rapidamente o problema da escassez energética do país criando uma parceria
vimento industrial através do planeamento de Estado. Mas os anos de governa- entre o Estado e empresas petrolíferas dos EUA que pudessem investir o capital
ção de Vargas tinham assistido a uma inflação muito elevada e a um endivida- e a técnica necessários para levar a cabo operações de perfuração em grande
mento excessivo. Dutra viu-se, assim, forçado a deflacionar a economia para escala e rentáveis. Contudo, depois de uma longa disputa com o congresso, o
conter a despesa e fazer descer os preços. Ao mesmo tempo, afrouxou o controlo presidente viu-se obrigado a enveredar por um monopólio estatal subcapitalizado
sobre a importação e o câmbio, de modo a atrair capital estrangeiro e a manter o para acalmar os receios quanto a ambições imperialistas dos EUA.
ritmo da industrialização. No campo político, adotou medidas severas contra o O ano de 1953 foi um ponto de viragem para Vargas. Uma comissão con-
Partido Comunista - que foi novamente ilegalizado em 1947 - e tentou abafar a junta dos EUA e do Brasil, formada por Dutra em 1949, recomendara um pro-
reação dos sindicatos às medidas de austeridade, substituindo os líderes sindicais grama de desenvolvimento cuja implementação requeria crédito e empréstimos
militantes por homens mais maleáveis. dos EUA. Mas a inflação galopante e a deterioração da posição comercial do
Embora parecesse mais favorável à iniciativa privada do que Vargas, Dutra Brasil levaram o presidente dos EUA, Eisenhower, a questionar a conveniência
não renunciou, de todo, ao nacionalismo económico. Pelo contrário, expandiu o da ajuda financeira. Atormentado pelas críticas da direita, Vargas reagiu nome-
setor público, nacionalizando a maior parte dos caminhos de ferro, antes em ando Oswaldo de Aranha, um colaborador de longa data, para o Ministério das
mãos estrangeiras; perseguiu a autossuficiência na indústria pesada, aumentando Finanças, com o objetivo de controlar a inflação e de estabilizar a economia.
a produção de Volta Redonda e avançando com um ambicioso projeto de energia Aranha conseguiu reduzir o desequilíbrio comercial e o nível de endividamento,
hidroelétrica; e levou por diante a dinâmica de modernização abrindo uma nova mas mostrou-se incapaz de baixar a inflação. As suas medidas anti-inflação pro-
fronteira de desenvolvimento nos vastos territórios da Amazónia. vocaram uma onda de greves e, no começo de 1954, fizeram-no entrar em con-
Entretanto, Getúlio Vargas mantinha-se politicamente ativo. Fora eleito para flito com o ministro do Trabalho, João Goulart. Aranha recusava-se a aumentar
o senado em dois estados e optou pelo Rio Grande do Sul. Continuava a ser uma o salário mínimo, que se mantinha inalterado havia vários anos, apesar da inflação
grande figura da política nacional e apresentou-se como candidato do PSD e do elevada. A divisão ilustrava o problema de Vargas em torno do desenvolvimento:
PTB às eleições de 1950, concorrendo com um programa de forte cunho nacio- tinha de decidir se estava disposto a sacrificar o seu apoio político por uma eco-
nalista e ostensivamente pró-trabalhista, que nem por isso o impediu de se fazer nomia financeiramente sã, em que os investidores estrangeiros se sentissem segu-
apoiar pelos políticos da máquina de Rio Grande e de Minas Gerais. A vitória de ros para aplicar o seu dinheiro. Vargas hesitou e vacilou: em fevereiro de 1954,
Vargas, com uma maioria de 48,7% dos votos, levou-o pela terceira vez à presi- demitiu Goulart, mas despertou a ira dos sindicatos e da esquerda. Depois, num
dência, embora fosse a sua primeira eleição por sufrágio direto. comício de trabalhadores a l de maio, deu razão a Goulart e anunciou inespera-
De volta ao cargo, Vargas assumiu a sua habitual atitude pragmática relati- damente que o salário mínimo seria duplicado. Foi, então, atacado pelos indus-
vamente ao desenvolvimento e procurou dar continuidade às linhas gerais da triais, que o acusavam de irresponsabilidade na condução da economia.
política de Dutra, incluindo a nova benevolência para com o investimento pri- Estas disputas políticas decorriam sobre um fundo de rumores de corrupção
vado estrangeiro. Mas deparou com um problema que era em larga medida no círculo de Vargas. Um dos seus principais críticos era Carlos Lacerda, editor
político e que ele próprio criara: não podia conciliar a retórica nacionalista e de um jornal do Rio de Janeiro que publicou acusações de irregularidades finan-
populista que cativara os seus apoiantes nas urnas com uma economia grave- ceiras. Sem o conhecimento de Vargas, o chefe da sua guarda pessoal contratou
mente ameaçada pela inflação e pelo endividamento. A rápida industrialização um atirador para assassinar Lacerda. Na ocorrência, a bala do assassino não
defendida pelos nacionalistas exigia um investimento avultado, que o Estado só atingiu o jornalista, mas matou um oficial da Força Aérea que se oferecera para
podia financiar recorrendo a capital estrangeiro - algo que os nacionalistas desa- o proteger. O incidente provocou um escândalo nacional. Quando os guarda-
provavam em absoluto — ou cunhando moeda, o que gerava uma inflação ainda -costas do presidente foram claramente implicados no homicídio do oficial, as
mais elevada e ia contra o planeamento económico e as relações industriais. forças armadas deram a Vargas um ultimato para se demitir do cargo. Na noite
Ao longo dos cinco anos seguintes, Vargas lutou em vão com este dilema, de 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas suicidou-se com um tiro. Foi encontrada
que lhe valeu uma série de conflitos tanto com os EUA como com os nacio- uma carta em que denunciava o «saque do Brasil» por traidores do país e por
nalistas, especialmente no que tocava às transferências de lucros de empresas capitalistas estrangeiros. Esta carta valeu-lhe, postumamente, a recuperação da
estrangeiras e aos direitos sobre a exploração petrolífera. Relativamente a esta simpatia popular, que deu vantagem aos políticos nacionalistas nas eleições que
última questão, Vargas incompatibilizou-se com o congresso. Queria resolver se seguiram.

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DESENVOLVIMENTO E INFLAÇÃO seu estado, onde o seu cunhado Leonel Brizola era, na altura, governador.
Quando o comandante do 3° Exército, que tinha a sua base em Rio Grande, se
O sucessor de Vargas na presidência foi um antigo governador de Minas recusou a participar na conspiração militar contra Goulart, o alto comando
Gerais de ascendência checa, Juscelino Kubitschek, que foi eleito por uma recuou, abstendo-se de lançar um golpe que poderia ter dividido as forças arma-
estreita margem, com um programa nacionalista, tendo João Goulart como seu das. Em vez disso, chegou-se a um compromisso que manteria Goulart sob
vice. Ao tomar posse, em janeiro de 1956, Kubitschek herdou uma situação eco- controlo, obrigando-o a partilhar o poder com um primeiro-ministro e um
nómica caótica. Ainda assim, decidiu não implementar um programa de deflação governo que seriam coletivamente responsáveis perante o congresso.
e optou, em vez disso, por expandir a economia, ignorando a inflação crescente João Goulart foi então, de forma controversa, transferido para a Presidência
e um endividamento sinistro, e prometendo «cinquenta anos de desenvolvimento da República em setembro de 1961 e incumbido de lidar com as dificuldades de
em apenas cinco». gerir a economia brasileira. Como o seu grande mentor, Getúlio Vargas, deparou-
O elemento central dos seus planos de desenvolvimento era a construção, a. -se com o dilema de corrigir as finanças da nação sem afastar os seus apoiantes
partir do nada, de uma nova cidade capital quase 1000 km a noroeste do Rio de nacionalistas à esquerda. Os tempos não podiam ser menos propícios à imple-
Janeiro, no estado quase deserto de Goiás. Brasília, como se viria a chamar a mentação de um programa de austeridade económica: nas universidades, o socia-
nova capital, foi pensada para estimular a exploração do interior, essa imensidão lismo revolucionário fermentava devido ao êxito da revolução de Fidel Castro
de recursos por quantificar que permanecera virgem desde o tempo da descoberta em Cuba; ativistas trotskistas e comunistas organizavam camponeses em sindi-
europeia. A cidade seria um símbolo da apetência do Brasil por progresso e poder catos rivais e encorajavam a ocupação ilegal de terras, o que enfurecia os pro-
económico. Nesta linha de ideias, a sua arquitetura seria ultramoderna e tornar- prietários reacionários; corn a inflação a corroer os salários reais, eram frequen-
-se-ia famosa em todo o mundo pela ousadia do projeto. Em 1960, apenas quatro tes as greves no setor industrial; os revolucionários lançavam uma campanha
anos depois de a sua construção ter sido iniciada, a deslumbrante capital foi para conferir direitos sindicais aos soldados rasos das forças armadas, uma
inaugurada. Com o tempo, Brasília justificaria a visão de Kubitschek, na medida estratégia perigosamente provocatória, tendo em conta a preponderância política
em que estimulou o crescimento económico e demográfico nos até então negli- dos oficiais brasileiros.
genciados estados de Goiás e Mato Grosso, mas, a curto prazo, agravou terrivel- A princípio, Goulart teve o cuidado de não alarmar os EUA. Estava ciente
mente o enorme fardo da dívida contraída por sucessivos governos brasileiros. da necessidade de ajuda externa e de investimento para financiar o rápido cres-
O dilúvio de problemas económicos deixados por Kubitschek determinaram cimento económico, o único fator que poderia impedir que a política se conver-
o afastamento do seu sucessor ao fim de sete meses no exercício do cargo. Jânio tesse em violência revolucionária. Mas Goulart chegara ao poder pela mão
Quadros, que concorrera às eleições como o homem munido da «nova vassoura» dos sindicatos e dos nacionalistas, e a sua dívida para com os seus apoiantes não
que varreria a corrupção endémica do governo e da administração pública, não seria facilmente reduzida. Como sucedera a Vargas e a Quadros, Goulart viu-se
foi longe no combate à inflação. Conseguiu fazer aprovar um pacote de medidas impossibilitado de agir na política económica por uma ampla maioria naciona-
de austeridade por um congresso hostil, e contrabalançou-as com uma política lista no congresso, que em agosto de 1962 aprovou uma lei que limitava as
externa que desagradou aos EUA, em virtude do apoio dado a Cuba e da reno- transferências de lucros das empresas estrangeiras (para os seus países) a .10%
vação das ligações à URSS e à China. Quando a oposição do congresso o deixou do capital investido. Esta medida provocou uma queda drástica do investimento,
finalmente num beco sem saída, Quadros apresentou a sua demissão, provavel- com as empresas e os investidores estrangeiros a retirarem-se rapidamente do
mente na expectativa de ser chamado de volta por uma assembleia arrependida. Brasil. Sem conseguir outros meios de financiamento, Goulart teve de cunhar
Mas o congresso frustrou o seu bluff, se é que disso se tratava, limitando-se a moeda para alimentar o já impressionante motor do desenvolvimento brasileiro.
aceitar a demissão. Em 1962, a taxa de inflação atingiu o nível inédito de 65%; houve uma corrida
A inesperada partida de Quadros criou uma perigosa crise política. De acordo à moeda e o país assistiu a uma nova onda de violentas greves e motins pela
com a constituição, o poder passaria para o vice-presidente, que era o famoso obtenção de alimentos, pois a subida drástica dos preços produziu um efeito
populista João Goulart, antigo ministro do Trabalho de Vargas e um homem que devastador no nível de vida dos trabalhadores e dos pobres das cidades. No ano
suscitava a desconfiança das forças armadas e dos partidos de direita. Um golpe seguinte, os EUA reduziram para metade a sua ajuda ao Brasil, de $355 milhões
militar parecia desenhar-se no horizonte. Mas Goulart era um rancheiro abastado em 1962: o país estava a sofrer as consequências da sua postura nacionalista
de Rio Grande do Sul e gozava de uma forte influência na máquina política do agressiva.

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Goulart viu-se debaixo de intensa pressão de todos os quadrantes para nista. Na realidade, o populismo estridente de Goulart estava a corroer o seu
encontrar uma solução para a economia. Em 1963, conseguiu uma posição polí- apoio entre as classes médias, em vez de o fortalecer. De qualquer forma,
tica mais forte. Um plebiscito apoiara de modo convincente a restauração de Goulart estava longe de ser um líder revolucionário com a coragem necessária
plenos poderes presidenciais, e Goulart chamou então dois homens muito com- para transformar um país tão vasto e diverso como o Brasil. Era, na realidade,
petentes, ambos influenciados pelas teorias económicas da ECLA, para concebe- um grande proprietário e um calculista, que fizera a sua carreira na máquina
rem um plano de estabilização: Santiago Dantas, um nacionalista moderado, e política oligárquica de Rio Grande do Sul.
Celso Furtado, um economista muito respeitado pelo seu trabalho com vista à No começo de 1964, a vida política tornara-se perigosamente polarizada.
revitalização do Nordeste em crise. Elaboraram um programa que combinava Os governadores de alguns estados apelavam a uma intervenção militar. Havia
medidas anti-inflação convencionais com reformas políticas e económicas. Para fortes suspeitas de que o Exército conspirava contra o presidente. Goulart
baixar a inflação, recomendavam um controlo severo dos salários e cortes no respondia organizando comícios de massas. Numa dessas ocasiões, no Rio de
crédito e na despesa pública. Mas estas medidas deflacionárias eram compensa- Janeiro, a 13 de março, abandonou a prudência e provocou um confronto com os
das por uma série de reformas estruturais concebidas para redistribuir a riqueza. seus inimigos assinando, diante de um público exultante, uma série de decretos
A política agrária seria revista de modo a dividir os latifúndios improdutivos e que nacionalizavam a indústria petrolífera e expropriavam grandes terras. Passa-
distribuir terra pelos camponeses; o imposto sobre o rendimento seria aumentado dos dias, apresentou ao congresso uma série de projetos de lei reformistas, que
para os que possuíam ordenados elevados; e o direito de voto seria alargado aos incluíam o alargamento do direito de voto aos soldados e a legalização do Partido
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analfabetos, por forma a minar as máquinas oligárquicas que controlavam o Comunista. No Rio de Janeiro, deu-se um motim de marinheiros, e Goulart
sistema eleitoral nas áreas rurais. A implementação do plano requeria um pacote enfureceu as força armadas concedendo o perdão aos revoltosos.
de ajuda financeira de aproximadamente $1,5 mil milhões, a ser facultado pelos Em meados de março, os conspiradores estavam prontos a agir. Os governa-
EUA, pelo FMI e por outras fontes. A administração Kennedy concordou em dores de São Paulo e de outros estados importantes planeavam formar urn
apoiar o plano ao abrigo do programa Aliança para o Progresso, através de um governo alternativo e pedir aos EUA ajuda militar. A embaixada dos Estados
empréstimo, concedido em várias tranches, no valor total de $400 milhões, sem Unidos estava preparada para fornecer armas e combustível aos rebeldes no
no entanto ter deixado de expressar as suas reservas quanto às hipóteses de conflito que se avizinhava. A 31 de março, uma revolta militar eclodiu em Minas
sucesso das novas medidas. Gerais e alastrou a vários outros estados. Marcharam tropas sobre o Rio de
O Plano Dantas-Furtado era um programa reformista, democratizante, cujo Janeiro, mas, para surpresa geral, o apoio a Goulart esvaneceu-se e o Exército
principal defeito era não agradar a ninguém. Tinha a oposição da esquerda assumiu o governo a l de abril, naquilo que acabou por ser um golpe de Estado
devido aos seus elementos deflacionários, e tinha a oposição da direita por causa sem derramamento de sangue. A revolução esperada não se materializou e João
das suas reformas progressistas. O congresso não podia aprová-lo porque os três Goulart refugiou-se no Uruguai.
principais partidos tinham razões para o rejeitar. O PSD pró-Goulart, que repre-
sentava os industriais nacionais e as classes médias, uniu-se ao oligárquico UDN
na oposição às reformas radicais. E juntou-se ao outro partido pró-Goulart, o Governo Militar (1964-84)
trabalhista PTB, para votar contra os cortes na despesa e contra a limitação do
crédito. Assistiu-se a um impasse político entre presidente e congresso: Goulart O que fez do golpe de 1964 um novo ponto de partida na história do Brasil
não podia levar por diante o Plano Dantas-Furtado, mas o congresso não conse- não foi a intervenção das forças armadas na política, mas o facto de assim se
guia uma maioria para impugnar o presidente. terem iniciado duas décadas de governo militar direto. Na prática, as forças
Goulart não tinha apoio político suficiente no país para dissolver o con- armadas possuíam o direito de veto sobre a política desde que haviam deposto
gresso. Assim, abandonou o Plano Dantas-Furtado e empenhou-se em criar para D. Pedro II em 1889. A legitimidade monárquica fora destruída e criada uma
si uma ampla base de poder, adotando as posições da esquerda nacionalista radi- república constitucional mas, como se verificava noutros países latino-america-
cal. À medida que a retórica de Goulart assumia um registo revolucionário, os nos, a legitimidade da ordem republicana revelara-se difícil de sustentar. Quanto
assalariados de classe média e a burguesia industrial - a plataforma de apoio ao ao Exército, embora encarasse a democracia constitucional como a norma, recor-
nacionalismo como veículo de desenvolvimento, preconizado por Vargas - ria à intervenção política de tempos a tempos para livrar o corpo político de
foram levados a acreditar nos avisos da direita, que falava de subversão comu- elementos nocivos que pusessem em causa o princípio de «ordem e progresso».

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O golpe contra Goulart não foi diferente: com o país à beira dá insolvência e um
deu início às operações, sobretudo nas grandes cidades, e o ponto alto da sua
presidente civil que dava margem de manobra a forças que mal conseguia con-
atividade ocorreu em setembro de 1969, depois de o general no poder, Artur da
trolar, os generais entenderam que era necessária uma nova intervenção.
Costa e Silva, ter sofrido um AVC no mês anterior. Os guerrilheiros aproveitaram
O líder da junta, o general Humberto Castello Branco, era, com efeito, um
o temporário vácuo de poder para raptarem nada mais nada menos do que o
moderado e um constitucionalista entre os seus pares; era um homem de grande
embaixador dos EUA. Foi uma proeza brilhante, que os raptores usaram para
prestígio que, em 1961, após a inesperada demissão de Quadros, encorajara
negociar a libertação de 15 companheiros da prisão e para verem um manifesto
uma solução constitucional para a crise através da aceitação do vice-presidente
revolucionário divulgado pela comunicação social. Mas este ato impressionante
Goulart para lhe suceder. Em 1964, as forças armadas estavam divididas quanto
mereceu uma resposta determinada por parte das forças armadas. Em novembro,
ao período em que a constituição deveria ficar suspensa. O próprio Castello
o mais carismático dos líderes de guerrilha, Carlos Marighella, foi morto numa
Branco defendia o retorno tão breve quanto possível ao governo constitucional,
emboscada. A partir de então, os movimentos de guerrilha foram esmagados com
logo que as finanças da nação estivessem em ordem. Outros oficiais queriam um
duros métodos repressivos, que envolviam a tortura sistemática de suspeitos pela
período mais longo de regime militar, para que fosse possível reconstruir a eco-
polícia secreta e a ação de sinistros esquadrões da morte paramilitares, com vista
nomia. As circunstâncias jogariam a favor deste último grupo: a economia não
a neutralizar «subversivos». Em 1973, a rebelião terminara: a guerrilha não con-
deu sinais de saúde durante vários anos, e quando tal aconteceu, a retoma coin-
seguira desencadeai" a onda revolucionária que fora o seu objetivo, apesar das
cidiu com uma preocupante vaga de terrorismo político, que desencorajou as
crescentes desigualdades na distribuição da riqueza, nurn país onde o grosso da
forças armadas de devolverem o poder a políticos civis.
população continuava a viver numa pobreza abjeta.
A principal preocupação de Castello Branco era restaurai" a disciplina finan-
As razões para o fracasso da guerrilha são complexas. Corn os seus dirigen-
ceira. Isso implicava rever as medidas corporativas herdadas do Estado Novo de
tes predominantemente da classe média e com formação superior, não foram
Getúlio Vargas e abrir a economia a forças do mercado, onde quer que fosse
capazes de vencer o isolamento político - o Partido Comunista, então clandes-
vantajoso fazê-lo. O homem incumbido da tarefa foi Roberto Campos, um antigo
tino, reprovava a estratégia da guerrilha e bloqueou o seu acesso às organizações
embaixador nos EUA que se demitira do seu cargo em protesto contra o que con-
de trabalhadores. Os ataques terroristas a alvos militares impediam a formação
siderava ser a política financeira irresponsável de Goulart. Campos introduziu
de núcleos simpatizantes no seio das forças armadas, grupos que poderiam ter
medidas deflacionárias, reduziu as importações, deu incentivos à exportação e
levado a cabo um golpe de Estado, sendo esse o habitual atalho para o poder
aceitou de bom grado o investimento estrangeiro. Em particular, criou instituições
seguido pelos movimentos progressistas na América Latina. Mas o fator decisivo
capitalistas, como uma bolsa de valores e um banco central, para que a economia
foi a campanha da guerrilha ter coincidido com a tão esperada retoma da econo-
começasse a reagir mais ao mercado do que às decisões de políticos e estrategos.
mia. A partir de 1968, enquanto os guerrilheiros assaltavam bancos e bombarde-
Foram, contudo, precisos vários anos para que a economia recuperasse dos
avam casernas, as condições de vida melhoravam para as classes médias e para
graves efeitos recessivos das medidas de Campos. Houve uma forte oposição
os trabalhadores especializados das cidades, e seria aí, num país em processo de
política ajunta, pois, como seria de esperar, os beneficiários do Estado Novo de
urbanização acelerado, que se decidiria o destino da nação. Em suma, o que
Vargas e dos subsequentes governos corporativos reagiram violentamente à dose
finalmente deitou por terra os planos da guerrilha urbana foi a chegada do «mila-
de capitalismo liberal administrada por Campos. Homens de negócios e indus-
gre económico» brasileiro.
triais ressentiram-se da concorrência de rivais estrangeiros e de empresas multi-
nacionais mais poderosas, que começaram a introduzir-se no mercado interno,
causando a falência de muitas empresas nacionais que antes eram protegidas.
O MILAGRE ECONÓMICO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS
Os sindicatos viram as suas ligações ao Estado enfraquecidas por legislação
que deu às empresas uma maior liberdade para contratar e despedir trabalhado-
No entender dos generais, o «milagre» punha em evidência a necessidade de
res. Os assalariados das classes média e trabalhadora foram seriamente afetados
uma ideologia política explícita que guiasse o Estado. O tremendo entusiasmo
pelo aumento do desemprego e do custo de vida. Nas principais cidades prolife-
popular pela ideia de um milagre económico foi manipulado peia junta, por
raram as greves e as manifestações.
forma a justificar a persistente suspensão dos direitos democráticos plenos.
Em 1968, surgiu no Brasil o fenómeno das lutas de guerrilha urbana, como
A retoma económica foi «milagrosa» na medida em que pareceu uma súbita
aconteceu também na Argentina e no Uruguai. Uma série de grupos de guerrilha
descolagem para um crescimento industrial autossustentável, a marca de uma
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA B R A S I L : ORDEM E PROGRESSO

economia moderna. O Brasil estava finalmente no caminho para o estatuto de íeito; este fracasso revelou-se fatal para a autoridade de sucessivos governos
potência mundial depois da estagnação em que mergulhara na maior parte da eleitos. O Estado não conseguia, simplesmente, reunir capital suficiente para
década de 60. financiar uma industrialização tão intensiva e, ao mesmo tempo, proteger toda a
A taxa de crescimento económico do país era, na verdade, impressionante- população dos seus efeitos adversos; o resultado inevitável foi uma inflação
em 1968-74 a economia cresceu a uma taxa anual média algures entre os 10 e os galopante.
11%. Mesmo após o súbito aumento do preço internacional do petróleo em 1973 A verdade é que a ideologia de nacionalismo económico herdada de finais
que prejudicou seriamente todas as economias industriais, a taxa de crescimento dos anos 30 era incompatível com as realidades do desenvolvimento industrial
brasileira manteve-se entre os 4 e os 7% ao ano. Em meados dos anos 70, o 'f das décadas de 50 e 60. Em 1964, o país estava à beira da insolvência. Então, as
volume das exportações quadruplicara em relação a 1967. Mas mais importante forças armadas intervieram, procurando abolir a contradição entre nacionalismo
era, de longe, o facto de os bens manufaturados terem substituído o café como í e desenvolvimento: suspenderam a política constitucional, dando a tecnocratas a
principal componente das exportações: o persistente problema latino-americano : oportunidade de modernizar a economia sem pressões nacionalistas ou exigên-
da monocultura - a dependência da exportação de um único bem de consumo cias de sindicatos. Paradoxalmente, o milagre económico tornou-se possível
primário - fora finalmente resolvido (*). • criando um regime autoritário idêntico ao de Getúlio Vargas antes da guerra,
Não restavam dúvidas de que ocorrera no Brasil uma impressionante revo- quando a oposição política fora reprimida e o Estado pudera seguir um caminho
lução industrial; e o processo fora em larga medida concebido por tecnocratas . de rápida industrialização com o apoio das forças armadas.
apoiados pelas forças armadas. Mas o sucesso assentava no programa de indus- Durante os anos do milagre económico, a industrialização avançou muito
trialização desenvolvido ao longo de muitos anos desde a fundação do Estado rapidamente, com grandes injeções de capital estrangeiro. Porém, os frutos desse
Novo de Getúlio Vargas, em 1937. Sob os conflitos da política parlamentar, desenvolvimento tiveram uma distribuição muito menos equitativa do que nas
prevalecera uma notável continuidade no curso do desenvolvimento brasi- décadas anteriores. O fosso entre ricos e pobres - que sempre caracterizou o
leiro desde a era de Getúlio Vargas até aos governos militares dos anos 60 e 70. Brasil - tornou-se ainda mais profundo. Em 1960, os 10% mais ricos da popula-
O desenvolvimento continuava a basear-se numa tendência sistemática para o ção recebiam 39,6% do rendimento nacional; em 1980, recebiam 50, 9%,
crescimento industrial financiado, em larga medida, por investimentos e emprés- enquanto os 50% mais pobres obtinham apenas 12,6%. Em São Paulo, que cons-
timos estrangeiros, mas conduzido pelo Estado. Os governos militares das déca- tituía o centro do milagre económico, a subnutrição, a doença e uma elevada taxa
das de 60 e 70 mantiveram todas as indústrias e serviços públicos básicos sob a de mortalidade atingiam a maior parte dos habitantes. Nas favelas, que rodeavam
alçada do Estado; prosseguiram, em regra, com a política nacionalista de indus- as principais cidades, numerosas populações pobres viviam em barracas de
trialização por substituição de importações, aplicando tarifas seletivas; e preser- chapa sem esgotos, água canalizada ou eletricidade. Negros e mulatos, em parti-
varam o essencial da legislação do Estado Novo no que respeitava ao trabalho e cular, sofriam com estas privações, pois o Brasil continuava a ser uma sociedade
à assistência social. onde classe social coincidia com estratificação racial.
Se o golpe militar de 1964 representou uma rutura com o passado, isso acon- Uma boa parte desta miséria era causada por forças de mudança industrial
teceu na esfera política. Desde a II Guerra Mundial, todos os presidentes brasi- que o Estado tinha muita dificuldade em controlar. Como em todas as revoluções
leiros se tinham deparado com a impossibilidade de controlar a inflação ou de industriais, o crescimento da produção fabril atraía muitos camponeses para as
atrair investimento estrangeiro sem retaliação dos nacionalistas e sem vagas de cidades. Mas por muito rápida que fosse a expansão da indústria, a cada vez mais
agitação no setor industrial. Depois da guerra, quando Getúlio Vargas optara pelo numerosa população brasileira não podia ser inteiramente absorvida pelo mer-
populismo democrático, nem ele nem nenhum dos seus sucessores - Dutra, cado de trabalho. Na verdade, o desejo de fazer a economia crescer suficiente-
Kubitschek, Quadros ou Goulart - tinham sido capazes de conciliar o desenvol- mente depressa para reduzir o desemprego era um forte incentivo para prosseguir
vimento conduzido pelo Estado, que dependia do investimento e da tecnologia com o desenvolvimento: a bacia do Amazonas foi aberta à exploração económica
estrangeiros, com a política eleitoral. As exigências do patrocínio do Estado e ao estabelecimento de camponeses, em prejuízo do ambiente e das muitas tri-
eram excessivas e demasiado diversas para serem satisfeitas por um presidente bos índias nómadas que ainda habitavam as vastas florestas tropicais e que viram
a sua existência ameaçada. O preço a pagar por este forte impulso para a moder-
nização foi uma dívida externa cada vez mais avultada e uma inflação galopante,
(') Para dados ilustrativos sobre a estrutura das importações, ver Anexo Estatístico,
quadro 9. que no início da década de 80 excedera os 100% ao ano.

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HISTÓRIA DA AMERICA LATINA BRASIL: ORDEM E PROGRESSO

O problema da inflação era, ao que parecia, insuperável. Os governos mili- abandonada, apenas seguiu um percurso errático. Em 1979, o sucessor de Geisel
tares não queriam deflacionar demasiado a economia, pois temiam uma recessão foi escolhido de entre dois candidatos militares em eleições indiretas, que envol-
grave e o abrandamento do crescimento económico. Assim, os Brasileiros opta- veram o congresso pela primeira vez desde 1964. O vencedor, o general João
ram por viver com uma inflação alta: os salários eram indexados ao ritmo da Baptista Figueiredo, prosseguiu a política de abertura. Os exilados políticos
subida de preços, e recorria-se a todo um conjunto de dispositivos fiscais para tiveram permissão para regressar ao país. Em novembro de 1979, os dois parti-
travar o aumento do custo de vida. Este sistema trazia instabilidade à economia dos aprovados pelas forças armadas foram dissolvidos e a formação de novos
e produzia enormes tensões e distorções. Em finais dos anos 70, o centro indus- partidos independentes foi autorizada (o Partido Comunista continuou proscrito).
tria] de São Paulo era um viveiro de greves e agitação laborai. À medida que a A censura de livros e jornais foi abolida, mas não a de rádio nem a da televisão.
moeda desvalorizava, a especulação, a fuga de capital e a corrupção abundavam Os sindicatos livres e as greves passaram a ser tolerados, mas não propriamente
nas classes possidentes. Depois, em 1982, o aumento das taxas de juro interna- autorizados.
cionais tomou o fardo da dívida externa insustentável; o Brasil teve de suspender Mas o processo de «redemocratização» foi arriscado tanto para as forças
o pagamento de juros sobre aquela que se tomara a maior dívida do mundo, armadas como para a oposição civil. O grande receio dos governantes militares
estimada em mais de $87 mil milhões. era que um retorno às eleições livres representasse simplesmente o regresso dos
O Exército brasileiro tornara-se vítima da força destruidora do desenvolvi- maus velhos tempos do populismo, com políticos profissionais a competirem
mento. Em 1964 interviera na política para restaurar as finanças da nação; em pelo poder fazendo promessas extravagantes ao eleitorado, sem terem em conta
1982 presidia à maior desordem financeira em que o Brasil alguma vez se encon- as consequências para a economia. Os políticos civis, por sua vez, estavam cons-
trara. Todavia, por essa altura, o preço de vencer a inflação e de eliminar a dívida cientes de que não podiam insistir demasiado nas reformas políticas sem se
externa seria uma recessão económica de uma escala inaceitável até para oficiais arriscarem a uma reação de militares da linha dura. Contudo, a gravidade do
das forças armadas. Não querendo dar início a um regime de repressão social problema da dívida em 1982 empurrou ambas as partes para uma espécie de
como o que tomara conta do Chile após a queda de Salvador Allende em 1973, consenso: as forças armadas queriam o consentimento popular para as austeras
os generais brasileiros decidiram, em vez disso, procurar uma forma de governo medidas deflacionárias que teriam de ser adotadas, enquanto os partidos civis
legítima, cuja autoridade assentasse num consenso social alargado. reconheciam a necessidade de reconstrução económica.
Em novembro de 1982, realizaram-se eleições diretas livres a nível munici-
pal, estatal e federal. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),
A PROCURA DA LEGITIMIDADE (1974-83) na oposição, obteve 44% dos votos, a votação mais elevada, tendo-se saído
especialmente bem nas cidades e nos estados economicamente avançados. No
Os governos militares brasileiros procuravam, de facto, um tal consenso entanto, com 41,5% dos votos, o partido apoiado pelo governo, o Partido Demo-
desde meados dos anos 70, quando a subida do preço mundial do petróleo origi- crático Social (PDS) obteve o maior número de lugares, apesar de não ter con-
nara uma recessão. Mas fora sempre muito difícil chegar a um consenso político seguido controlar a Câmara Baixa e o governo de estados decisivos como São
genuíno na América Latina. Os generais brasileiros depararam com a dificuldade Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O PDS conseguiu também uma maioria
até de criar semelhante ilusão no decorrer da década de 70. O que pretendiam era de lugares no colégio eleitoral, que iria eleger um novo presidente em janeiro de
alguma credibilidade democrática para o seu regime; o que na realidade conse- 1985.
guiram foi um apoio persistente à oposição civil. Contudo, as eleições presidenciais por sufrágio indireto não tiveram os resul-
Quando se tornou presidente, em março de 1974, o general Ernesto Geisel tados esperados. Divergências entre a maioria PDS levaram à saída de um grupo
introduziu uma fase de «abertura», um caminho para uma sociedade mais livre: de eleitores do colégio e, ao contrário do que desejavam as forças armadas,
a censura da imprensa afrouxou; a tortura foi suspensa, depois de as guerrilhas venceu o candidato do PMDB, Tancredo Neves (que fora primeiro-ministro do
terem sido derrotadas; e realizaram-se eleições livres para o congresso, em outu- governo de Goulart em 1961). Este resultado inesperado impulsionou o processo
bro de 1974. Porém, nestas eleições, como nos posteriores escrutínios munici- de redemocratização, evitando que o sistema parlamentar que então se formava
pais, a oposição infligiu uma dura derrota ao partido apoiado pelo governo. Em fosse manchado pela manipulação. As forças armadas tinham de aceitar o resul-
1977, Geisel introduziu eleições indiretas e outros dispositivos capazes de garan- tado, pois de outra forma arriscar-se-iam a quebrar o ainda frágil consenso que
tir maiorias ao partido pró-governo. Ainda assim, a política de abertura não foi era necessário para lidar com o problema da dívida externa.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA B R A S I L : ORDEM E P R O G R E S S O

O clima de euforia pública em que foi celebrada a vitória de Neves, no conseguia cumprir os seus deveres de assistência social incorrendo em défice
ano de 1985, reforçou a vontade política geral de proceder a reformas políticas financeiro, o que alimentava a inflação.
e económicas. Mas Neves, então com 74 anos, faleceu antes da sua tomada A austeridade contínua, aliada a uma inflação cada vez mais elevada, minou
de posse, e foi substituído pelo seu vice-presidente, José Sarney, uma figura a autoridade da administração Sarney. As tentativas de redistribuir terra para
mais conservadora, que herdou a tremenda popularidade do falecido presidente ajudar 10 milhões de camponeses depararam com uma resistência violenta por
eleito. parte dos grandes proprietários, e o governo viu-se obrigado a recuar numa ques-
tão que fora encarada como um teste à eficácia democrática. Como alternativa,
o governo encorajou a relocalização de populações pobres do Nordeste na Ama-
O Regresso à Democracia (1985-9) zónia. Mas esta válvula de segurança originou novos conflitos, porque a queima
•:* praticada nas florestas tropicais do Amazonas, com vista a conquistar espaço
Ao assumir as funções de presidente, José Samey procurou traçar um cami-
3s
."*! para a criação de gado ou para a agricultura de subsistência, constituía uma ame-
nho para a reconstrução económica sem perder o apoio do eleitorado. A sua aça tanto para a sobrevivência de tribos índias como para o equilíbrio ecológico
recusa inicial em solicitar a ajuda do Fundo Monetário Internacional para lidar do próprio planeta.
com a dívida externa agradou aos nacionalistas; em alternativa, Sarney deci- Em finais dos anos 80, motins pela obtenção de comida e greves de grande
diu negociar diretamente com os bancos credores. Na frente interna, lançou o magnitude davam sinal de que o consenso social na base da restauração demo-
Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, para reduzir a taxa de inflação, situada nos crática de 1985 estava em risco. Os vários esforços de Sarney para fazer cumprir
230% ao ano. A moeda foi reformada e os preços foram congelados; a despesa o congelamento de salários e preços, de modo a controlar a inflação, não produ-
pública foi reduzida em algumas áreas e procedeu-se à extinção de postos de ziram resultados, devido à oposição dos sindicatos e dos industriais. As tentati-
trabalho no setor público da economia, excessivamente pesado. Para compen- vas de criar um pacto social entre governo, sindicatos e empregadores também
sar estas medidas de disciplina - estavam previstas eleições federais e estatais não tiveram grande sucesso. Nas eleições municipais de novembro de 1988, o
para novembro -, Sarney permitiu uma subida dos salários reais entre 15 e 34%. partido de Sarney, o PMDB, perdeu posições cruciais nas principais cidades para
O aumento do consumo que daí resultou estimulou a produção industrial e ate- partidos da esquerda liderados por um carismático dirigente sindical, Lula da
nuou a recessão provocada pela dívida - pelo menos para as classes médias. Silva, e para o veterano populista Leonel Brizola, um antigo governador de Rio
A popularidade de Sarney nas sondagens de opinião chegou aos 80%. Nas Grande do Sul, que apelara à resistência popular ao golpe de 1964 que depusera
eleições de novembro, o seu partido, em coligação com os liberais, obteve uma o seu cunhado, o presidente João Goulart.
vitória esmagadora. Com um sólido apoio no congresso, Sarney introduziu, duas O PMDB não tinha grandes hipóteses de vencer as primeiras eleições presi-
semanas mais tarde, a segunda fase do Plano Cruzado: foram aumentados os denciais por sufrágio direto que se realizariam em novembro de 1989: o país
impostos indiretos numa série de bens de consumo, com o objetivo de refrear a sofria com a hiperinflação (que ascendera a mais de 1000% ao ano), e nem assim
procura e de reduzir as importações, e extinguiram-se mais alguns milhares de o governo conseguia reunir apoio para uma «economia de guerra» que permitisse
postos de trabalho no setor público. Os subsídios para géneros alimentares bási- vencer a inflação, apesar dos apelos de José Sarney aos Brasileiros para que se
cos foram, no entanto, mantidos, para ajudar os mais pobres. unissem numa «tarefa comum de salvação nacional». O peso dos problemas
Gerir uma economia sobrecarregada pela dívida sem causar terríveis proble- económicos parecia ter esmagado o governo, mas toda a classe política parti-
mas sociais revelou-se uma tarefa impossível. Apesar da implementação de lhava o descrédito. Nas eleições presidenciais, o candidato do PMDB foi derro-
medidas de austeridade severas e da privatização de parte considerável do setor tado, mas o mesmo sucedeu ao populista pré-1964 Brizola e ao dirigente sindi-
público - políticas que estavam a ser seguidas desde 1982 - a inflação continuou calista radical Lula da Silva, que advogava medidas expansionistas e resistência
a acelerar ao longo de toda a década. As prestações de pagamento da dívida eram aos credores estrangeiros.
um fardo que o país não podia suportar. Embora o setor da exportação tivesse O novo presidente foi um independente de 40 anos, Fernando Collor de
sido revitalizado, e sendo as exportações industriais para novos mercados res- Mello, que prometera «matar o tigre da inflação com um único tiro». Poucas
ponsáveis pelo principal impulso para a recuperação, os pagamentos anuais da horas depois de ter tomado posse, a 15 de março de 1990, Collor de Mello anun-
dívida consumiam cerca de um quarto dos ganhos obtidos com a exportação. ciou um programa «de choque» para curar o país da inflação - que no mês ante-
Dada a dificuldade de negociar novos empréstimos, o governo democrático só rior atingira uma taxa anual de 2700% - e para pôr fim ao défice orçamental do

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

país. A medida central do plano consistia em retirar liquidez do mercado, com o


que se pretendia livrai" a economia do excesso de dinheiro - por um período de
18 meses os bens das empresas ficariam congelados, haveria um teto para os
levantamentos de todas as contas bancárias privadas, e os salários e os preços
estariam sujeitos a um controlo rigoroso. Para além destas medidas, seriam efe-
tuados cortes na despesa pública, as companhias do Estado seriam privatizadas
e o emprego no setor público drasticamente reduzido. Collor procurou apoio
popular para estas medidas draconianas lançando uma persuasiva campanha de
propaganda contra os «marajás» calculistas da burocracia e contra os «crimes
económicos» de homens de negócios e especuladores. Esta tática populista des-
tinava-se a manter o apoio do público ao presidente, de modo a permitir-lhe
contornar a oposição de uma maioria hostil no congresso. Por outro lado, existia
o risco de o apoio popular secar devido à profunda recessão induzida pelas refor- CAPÍTULO 12
mas do mercado livre. O êxito da estratégia de Collor parecia depender excessi-
vamente do acaso e das circunstâncias, mas as consequências do fracasso seriam Cuba:
excecionalmente graves, pois a histórica procura brasileira pelo progresso redun-
daria em estagnação e numa desordem financeira incontrolável.
Dependência, Nacionalismo e Revolução
O extraordinário impulso para a modernização que o Brasil teve no século xx
permitiu construir uma poderosa economia industrial no espaço de pouco mais
de três décadas. Os custos foram tremendos: grandes deslocações de economias O Passado Colonial
regionais, destruição de terras virgens, desequilíbrio entre o campo e a cidade, e
um fosso profundo entre o operariado, os capitalistas da indústria e as classes A história de Cuba foi uma exceção à regra na América Latina, tanto no
médias. E, apesar de tudo, a indústria não se tornou suficientemente produtiva século xix como no século xx. A maior ilha das Caraíbas, e uma das primeiras a
para absorver a mão de obra potencial, ao mesmo tempo que o campo permane- serem povoadas pelos Espanhóis, continuou a ser uma colónia da Espanha até
cia subprodutivo e socialmente dividido. Sucessivos governos procuraram forçar 1898. O que tornou o percurso de Cuba invulgar foi o estabelecimento e o domí-
o ritmo da industrialização, e também aumentar a despesa com programas de nio da sua indústria do açúcar. Até finais do século xvm, a ilha foi relativamente
assistência social, para aliviar a miséria de grande parte da população. O resul- pobre, constituindo sobretudo um ponto de encontro e um posto de reabasteci-
tado foram círculos viciosos de inflação e défices orçamentais, que se converte- mento para as frotas do Atlântico. Uma pequena classe de proprietários crioulos
ram numa espiral incontrolável, privando os governos da sua autoridade. Em criava gado e cultivava alguns produtos para exportação, essencialmente tabaco,
1964, as forças armadas intervieram para tentar restaurar a ordem, mas em finais café e cana de açúcar, mas não desempenhava qualquer papel de relevo na
dos anos 70 viram-se também arrastadas para a espiral de inflação e dívida; a sua economia do império.
histórica procura de «ordem e progresso» conduzira, paradoxalmente, a uma O primeiro grande impulso à economia ocorreu durante os 11 meses de
situação em que o progresso económico se tornara o inimigo da ordem social. ocupação de Havana pelos Britânicos em 1762-3, quando as restrições espanho-
A crise brasileira dos anos 80 foi tanto uma crise do Estado como da econo- las foram temporariamente levantadas e o comércio com a Inglaterra e a América
mia. A médio prazo, a recuperação económica do Brasil poderia chegar por meio do Norte abriu os olhos dos crioulos para o potencial económico da sua ilha
de uma retoma da economia mundial, aliada a um programa anti-inflação bem- como produtora de bens de consumo para o mercado internacional. Mas o
-sucedido e à ajuda internacional, traduzida numa redução da dívida. Mas uma momento decisivo para o desenvolvimento da ilha como grande exportadora de
solução duradoura para a crise não dispensaria a constituição de um Estado açúcar surgiu na última década do século, quando as revoltas de escravos na ilha
democrático legítimo, cujas instituições representativas merecessem a confiança do Haiti, nas Caraíbas francesas, na sequência da Revolução Francesa, desloca-
da nação no seu todo. ram aquela que fora a mais produtiva indústria do açúcar nas Américas, e levou

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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A L A T I N A CUBA: D E P E N D Ê N C I A , N A C I O N A L I S M O E REVOLC-ÇAO

os plantadores franceses a estabelecerem-se em Cuba, que ficava perto. As res- de fábricas e plantações de açúcar por interesses norte-americanos. Do mesmo
trições espanholas impostas ao comércio afrouxaram e deixou de haver limites modo, o aumento da produção de açúcar de beterraba na Europa, por esta altura,
para a importação de escravos africanos. A partir de 1793, Cuba foi-se transfor- fez dos EUA o maior e mais acessível mercado para o açúcar cubano. Assim, nos
mando numa sociedade esclavagista em grande escala, com uma economia de anos 80 do século xix, Cuba viu-se numa situação contraditória, à qual lhe seria
plantação fortemente impulsionada pela exportação de açúcar. praticamente impossível escapar: estava a tornar-se economicamente dependente
O considerável, embora tardio, crescimento da economia cubana tornou a dos EUA, ao mesmo tempo que desenvolvia uma poderosa tradição de patrio-
elite crioula bastante indiferente à questão da independência política de Espanha, tismo revolucionário.
e o grande influxo de escravos africanos desencorajava o radicalismo político
entre os brancos. Isto porque o Haiti dera um terrível exemplo do que poderia
acontecer se a autoridade estabelecida fosse desafiada numa sociedade esclava- A Guerra da Independência e a Intervenção dos EUA
gista como a de Cuba, onde nos anos 20 do século xix a população negra corres-
pondia já a cerca de um quarto da população. Depois de uma série de tentativas falhadas para ganhar autonomia no seio do
Mas existia, ainda assim, descontentamento com o domínio colonial espa- império espanhol, a causa da independência ressurgiu e, desta vez, a líderes
nhol, e esse desconforto ganhou expressão na década de 40, entre uma minoria veteranos como Maceo e Gómez juntaram-se outros homens mais jovens, entre
de plantadores favoráveis à anexação de Cuba pelos EUA; a perspetiva também os quais o poeta liberal radical José Marti, que seria a principal inspiração dos
agradava a influentes políticos dos EUA, país que já iniciara o processo de ane- nacionalistas cubanos das gerações seguintes. Na sua abundante produção
xação do Texas e de outros territórios na república do México. Havia duas razões escrita, Marti, um grande mestre da palavra e uma voz artística poderosa, deu
a favor da anexação: por um lado, os EUA tinham-se tornado o mais importante expressão às aspirações nacionais dos Cubanos e alertou para os perigos de
parceiro comercial de Cuba; por outro, com a pressão da Grã-Bretanha no sen- absorção pelos EUA. Marti liderou a segunda grande revolta contra a Espanha
tido da abolição da escravatura, os proprietários de escravos cubanos, preocupa- em 1895, mas pouco depois morreu em combate. António Maceo (que foi morto
dos com a fraca posição política da Espanha, aperceberam-se dos interesses que em 1896) e Máximo Gómez prosseguiram com a luta de guerrilha pela indepen-
tinham em comum com os estados esclavagistas do Sul americano. As revoltas dência, mas mais uma vez se viram num sangrento impasse contra um numeroso
anexacionistas contra a Espanha fracassaram, mas foi a derrota do Sul na Guerra exército espanhol, comandado pelo competente e implacável Valeriano Weyler.
Civil americana que finalmente acabou com o apoio à anexação. Abolida a escra- O tumulto incessante em Cuba alarmou os EUA, não só porque temiam
vatura nos EUA, os proprietários de escravos cubanos procuraram reformas pelos seus investimentos económicos na ilha, mas também porque, com os seus
políticas que lhes proporcionassem uma maior autonomia no seio do império planos para um canal interoceânico no Panamá, tinham já definido as Caraíbas e
espanhol; mas à medida que a intransigência dos governos metropolitanos enfra- a América Central como uma esfera de interesse estratégico. Os EUA declara-
quecia a lealdade crioula, e estando a perspetiva de autonomia constitucional ram guerra à Espanha em 1898, quando o seu navio de guerra Maine explodiu
dentro do império cada vez mais distante, a independência passou a ser vista por misteriosamente em Havana, tendo o incidente custado a vida a 260 tripulantes.
muitos como a única forma de dar resposta aos interesses crioulos. A Espanha propôs uma trégua aos cubanos revoltosos, mas estes optaram por
A 10 de outubro de 1868, um proprietário de terras crioulo, Carlos Manuel ajudar os EUA a derrotar a potência colonial. A guerra chegou rapidamente ao
de Céspedes, lançou o «Grito de Yara», uma proclamação de independência e um fim quando a superior marinha norte-americana afundou uma frota espanhola
apelo às armas. A guerra que se seguiu foi devastadora; no entanto, a duração e que tentava escapar a um bloqueio do porto de Santiago.
a violência do conflito serviram para forjar uma perceção heróica de patriotismo Em breve se tornou claro que os EUA tinham entrado na guerra não tanto
cubano, e surgiram heróis revolucionários como Máximo Gómez e como o para libertar Cuba como para salvaguardar os seus objetivos, como potência
comandante mulato António Maceo, cuja memória continuaria a inspirar gera- mundial emergente que eram. Os revoltosos cubanos ficaram inteiramente exclu-
ções de patriotas cubanos. Mas os Cubanos não conseguiram vencer o exército ídos das negociações de paz, pelo que Cuba teve de aceitar a independência em
espanhol, e a Guerra dos Dez Anos foi terminada pelo Tratado de Zanjón, em termos que lhe foram impostos por um acordo entre uma potência estrangeira e
1878. , os seus senhores coloniais. A propriedade e o capital espanhóis na ilha foram
Uma das principais consequências económicas da guerra foi a ruína de mui- protegidos, e os EUA tiveram permissão para estabelecer um governo militar que
tos plantadores de açúcar cubanos, o que facilitou a aquisição em grande escala supervisionaria a reconstrução da economia devastada.

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HISTÓRIA DA AMERICA LATINA CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO

A ocupação de Cuba pelos EUA durou de 1891 a 1903 e levou à ilha unia mas o seu povo estava dividido pelo legado da escravidão africana, em fun-
administração eficiente, que conseguiu eliminar a fome e reduzir substancial- ção de raça, cultura e religião; e embora se tratasse de uma nação nominal-
mente a incidência de doenças, através de uma melhoria das condições sanitárias mente independente, a primeira fonte de riqueza das suas classes média e alta
(a temida febre amarela foi erradicada graças às descobertas científicas de um residia na participação numa economia de exportação cada vez mais controlada
médico cubano, Carlos Finlay). Foi estabelecido um sistema de educação pública por capital norte-americano. Em suma, Cuba nem era politicamente soberana
e a universidade foi modernizada. Restruturou-se o poder judiciário, por forma a nem constituía parte integrante do país do qual a sua economia dependia crucial-
garantir a sua independência, e entrou em funcionamento um sistema de eleições mente.
para os governos local e nacional. Em 1901, uma assembleia eleita aprovou uma Não havia uma saída óbvia para semelhante impasse. A anexação pelos EUA
constituição liberal que garantia a separação entre Igreja e Estado, e que reco- - a solução pretendida pelos plantadores de açúcar cubanos em meados do
nhecia o sufrágio masculino universal. Quando Tomás Estrada Palma, o candi- século xix - deixara de ser viável, em virtude da forte tradição patriótica forjada
dato do Partido Revolucionário Cubano de Marti, ganhou as eleições presiden- durante as guerras contra a Espanha. Por outro lado, a criação de uma verdadeira
ciais em 1902, a tropa dos EUA saiu da ilha; Cuba era agora, oficialmente, um consciência nacional não vingaria enquanto o açúcar fosse o centro da vida eco-
Estado soberano. nómica. Uma identidade nacional parecia um sonho utópico, mas a alternativa
Os EUA conservaram, ainda assim, um papel tutelar em Cuba, através da era uma espécie de suicídio cultural.
controversa Emenda Platt à constituição, que lhes dava o direito de intervir nos A sensação de impotência gerada por este impasse fazia germinar o cinismo
assuntos internos da nova república para «a manutenção de um governo ade- entre a classe política cubana. A democracia constitucional degenerou rapida-
quado à proteção da vida, da propriedade e das liberdades individuais». Os EUA mente num espetáculo venal em que caudilhos populistas competiam entre si
também se reservavam certas prerrogativas relativamente à conduta da política pela oportunidade de dividir o saque da administração pública pelas respetivas
externa cubana, e obtiveram uma concessão de terra para construírem as suas clientelas. As eleições tornaram-se rotineiramente fraudulentas, e davam azo a
próprias bases navais (foi construída uma base importante em Guantánamo). revoltas da parte de caudilhos frustrados, o que por sua vez levava à intervenção
Além do mais, a reconstrução da economia cubana ficara em grande medida a dos EUA segundo os termos da Emenda Platt. Em 1906-9, Cuba voltou a ser
dever-se a um substancial influxo de capital norte-americano; empresas dos EUA governada diretamente por procônsules norte-americanos; entre 1909 e 1921, a
passaram a deter o controlo de partes significativas das indústrias do açúcar, do tropa dos EUA, ocupou a ilha por quatro vezes, após tumultos ocasionados por
tabaco e outras. eleições viciadas. Na prática, a política era manipulada por embaixadores norte-
-americanos que conspiravam com políticos locais. As tentativas dos próprios
cubanos no sentido de tornarem a vida pública transparente não iam mais longe,
Os Limites da Independência pois quando o negócio do açúcar prosperava, as recompensas dos cargos públi-
cos revelavam-se demasiado tentadoras até para que os reformadores políticos
Os meios pelos quais Cuba conquistara a sua independência não auguravam lhes resistissem. A vulnerabilidade da economia do açúcar às flutuações dos
um bom futuro para a nova república. A intervenção dos EUA na guerra, seguida preços internacionais gerava ainda mais instabilidade na política. Em 1903, Cuba
da Emenda Platt, comprometiam o sentido de identidade nacional de que um passou a gozar de um acesso privilegiado ao mercado dos EUA, através de um
Estado pós-colonial necessita para construir uma autoridade legítima. O domínio acordo de comércio recíproco que reduzia em 20% as tarifas sobre a exportação
dos EUA sobre a ilha resultava da fraqueza da elite cubana de proprietários de de açúcar para os EUA, em troca de reduções que podiam ir até 40% num con-
terra, muitos dos quais haviam ficado arruinados com a longa guerra fracassada junto de importações dos EUA para a ilha. Até 1920, o preço do açúcar manteve-
contra a Espanha, em 1868-78. O conflito permitira a invasão económica da -se favorável e a ilha desfrutou de um período de crescente prosperidade. Outros
agricultura cubana por companhias norte-americanas produtoras de açúcar. bens cubanos, como o tabaco, o rum e o níquel, encontravam bons mercados nos
A abolição da escravatura, decretada pela Espanha em 1886, minara ainda mais EUA, ao mesmo tempo que o investimento norte-americano na economia da ilha
a base tradicional da autoridade branca, num país em que cerca de um terço da aumentava. A época de ouro dos benefícios recíprocos atingiu o seu auge entre
população era negra. Assim, a sociedade cubana era curiosamente fluida e fevereiro e maio de 1920, quando o preço do açúcar no mercado internacional
amorfa: Cuba era um país agrário, mas os seus líderes sociais tradicionais não atingiu o valor recorde de 49,6 cêntimos o quilo, e se fizeram fortunas de um dia
tinham raízes profundas na terra; formara-se como uma república democrática, para o outro numa Cuba exultante. Esta «dança dos milhões» encorajou muitos

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA C U B A : DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO

plantadores cubanos a endividarem-se para se expandirem, mas a sobreprodução polícia brutal de Machado. Os desacatos alastraram, com os sindicatos a junta-
no mercado mundial provocou uma descida a pique do preço do açúcar, para rem-se à oposição ao ditador.
cerca de 6,6 cêntimos o quilo em finais de 1920, e muitos cubanos ficaram arrui- Relutante em enviar tropas, como no passado, para conter a agitação nacio-
nados. Empresas dos EUA puderam, então, comprar fábricas e plantações fali- nalista, Washington serviu-se do seu embaixador, Sumner Welles, para negociar
das, estendendo ainda mais o seu domínio sobre a indústria do açúcar cubana. o afastamento de Machado do poder. Mas os nacionalistas não gostaram da
Em 1914-23, o investimento total dos EUA na economia cubana aumentou seis intervenção de Welles e convocaram uma greve geral em agosto de 1933 (o Par-
vezes, e até ao fim da década de 20 o comportamento errático dos preços mun- tido Comunista, receando uma invasão dos EUA, retirou o seu apoio à greve a
diais gerou uma incerteza contínua; depois do crash de Wall Street de 1929, o procurou chegar a um acordo com Machado, o que, aos olhos de estudantes e
preço do açúcar caiu ainda mais, situando-se abaixo dos dois cêntimos o quilo nacionalistas, lhe retirou a credibilidade). Machado acabou por ceder à pressão
em 1932. e partiu para o exílio. Seguiu-se uma vaga de atividade revolucionária - ocupa-
A economia vacilante dos anos 20 e a penetração de capital norte-americano ções de fábricas e refinarias de açúcar por trabalhadores, saque de zonas ricas,
na ilha criaram condições para a reanimação do nacionalismo, especialmente ataques de multidões a colaboradores da ditadura.
entre os estudantes e os intelectuais, que invocavam a memória de José Marti e O governo moderado de Carlos Manuel de Céspedes, empossado pelo Exér-
denunciavam a monocultura do açúcar e a dependência dos EUA. O centro da cito com o acordo de Sumner Welles, revelou-se incapaz de controlar a situação.
cultura nacionalista era a Universidade de Havana, onde os estudantes seguiram Em setembro de 1933, uma revolta de oficiais subalternos - entre cujos líderes
o exemplo do Movimento Universitário Reformista iniciado em Córdoba, na se encontrava um tal sargento Fulgencio Batista - destituiu Céspedes e entregou
Argentina, e exigiram reformas no ensino; gradualmente, os protestos estudantis o poder a uma comissão de cinco homens escolhidos pelo Directório Estudiantil.
passaram a incluir reivindicações políticas e económicas, como a nacionalização Os estudantes de Havana tinham conseguido fazer uma revolução nacionalista e,
da indústria do açúcar e a divisão das grandes propriedades. Uma exigência essen- depois de alguma confusão, escolheram para presidente interino um dos seus
cial para todos os nacionalistas cubanos era o repúdio da Emenda Platt. O protesto professores, o aristocrata Prof. Dr. Ramón Grau San Martin. Os trabalhadores
estudantil fez-se acompanhar de uma preocupação artística e cultural com temas estavam agora a ocupar fábricas de açúcar e, em alguns casos, a exigir aumentos
nacionais cubanos, e do aparecimento de um movimento cultural afro-cubano. Foi salariais de arma em punho; greves, motins e lutas armadas tomaram conta de
nesta ambiência que surgiu um pequeno Partido Comunista ern 1925. toda a ilha. O governo de Grau aprovou uma série de medidas radicais, como a
expropriação de um pequeno número de fábricas de açúcar pertencentes aos
EUA, alguma redistribuição de terra, a limitação do dia de trabalho a oito horas,
A Ditadura de Machado e a Revolução de 1933 restrições ao emprego de mão de obra barata proveniente de outras ilhas das
Caraíbas e a extensão do sufrágio às mulheres.
A eleição para a presidência do liberal Gerardo Machado, em 1924, prometia A revolução de 1933 foi, sobretudo, obra da agitação estudantil, e para além
pôr fim à desonestidade da administração anterior. Gozando de uma enorme da esperada hostilidade dos EUA e dos empresários cubanos, teve a oposição dos
popularidade, Machado deu início a programa de obras públicas e medidas des- comunistas, dos nacionalistas da ABC e de oficiais do Exército rejeitados, que
tinadas a diversificar a economia. Mas a queda dos preços do açúcar em finais levaram a cabo uma série de revoltas. Quatro meses mais tarde, o governo de Grau
dos anos 20 levou-o a reprimir greves e protestos, e quando conseguiu que um foi derrubado por um golpe chefiado por Fulgencio Batista, que seria, para todos
congresso manipulado lhe concedesse, em 1928, mais um mandato de seis anos, os efeitos, o homem forte de Cuba durante a década seguinte, governando a prin-
deparou com a oposição explosiva do movimento estudantil. Quando a governa- cípio através de presidentes-fantoches e depois, a partir de 1940, de pleno direito.
ção de Machado se tornou mais repressiva, os estudantes e os intelectuais de
classe média começaram a recorrer à violência e ao terrorismo. Os estudantes
formaram um Directório Estudiantil, que viria a desempenhar um constante O Primeiro Período Batista (1933-44)
papel de oposição na política da ilha. Em 1931, apareceu uma organiza-
ção secreta autointitulada ABC, cujos membros eram jovens nacionalistas das Batista era um populista militar, um mulato de origens muito humildes
classes média e alta inspirados pelo movimento peruano de Haya de Ia Torre. que viera do Exército e cujo eleitorado nuclear era constituído pelos soldados das
Os pistoleros da ABC levavam a cabo assassínios e tiroteios, nas ruas, contra a forças armadas. Como era próprio de um líder latino-americano dos anos 30,

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CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A L A T I N A

A tremenda degeneração da vida pública causou uma divisão no Partido


apresentava-se como um benfeitor do povo, usando os recursos do Estado para
Autêntico: em 1947, Eddy Chibas, um jovem e carismático ativista, separou-se
fins nacionalistas e redistributivos. Em 1934 a Emenda Platt foi finalmente revo-
para formar o Partido Ortodoxo, alinhado com os ideias de Marti e da revolução
gada, e uma maior quota dos EUA na indústria do açúcar ajudou a aumentar a
de 1933. Chibas perdeu as eleições de 1948 para o protegido de Grau, Carlos
produção, que estagnara nos anos 20 e no começo dos anos 30. Embora contasse
Prío Socorras, outro revolucionário da geração de 1933 que estava agora, como
com o apoio dos EUA e dos homens de negócios cubanos, Batista procurou
tantos outros, envolvido em intrigas e ilegalidades, e cujo governo não tardou a
agradar aos sindicatos, aprovando legislação de assistência social, construindo
superar o de Grau no que tocava a corrupção. Chibas começou a denunciar Prío
casas para trabalhadores e criando emprego através de grandes programas de
na rádio todos os domingos à noite até que, em desespero, se atingiu fatalmente
obras públicas. Uma nova confederação sindical, controlada por uma liderança
com um tiro no estômago, depois de uma transmissão a 5 de agosto de 1951.
comunista, foi incorporada na máquina política do homem forte. Nas regiões
Com o sensacional desaparecimento de Chibas, as hipóteses de uma regeneração
rurais, Batista redistribuiu alguma terra e, seguindo o exemplo da Revolução
nacional cubana pareciam ter morrido também. Estando a moralidade política
Mexicana, iniciou um programa de educação rural, no qual muitas vezes traba-
cada vez mais afundada na lama, e aproximando-se as eleições de 1952, um
lhava pessoal do Exército.
golpe de Estado perpetrado por Fulgencio Batista foi recebido com um alívio
Dececionados com o fracasso da revolução de 1933, estudantes e nacionalis-
generalizado.
tas radicais formaram um novo partido em memória de José Marti, o Partido
O segundo Batistato (1952-9) pôs fim à política constitucional na ilha.
Revolucionário Cubano-Auténtico, que se tornou o principal foco de oposição a
Apresentando-se como o guardião da lei e da ordem, o ditador implementou,
Batista. O terrorismo continuou a ser um traço habitual da vida política, mas em
com algum sucesso, um programa de obras públicas, diversificação económica e
finais da década de 30 Batista sentiu-se suficientemente seguro para permitir a
«cubanização» - uma tentativa de levar o capital cubano a investir na indústria
realização de eleições para uma assembleia constituinte. Em 1940, uma nova
do açúcar e noutros setores fundamentais da economia. Apesar do crescimento
constituição social-democrática, nacionalista, foi aprovada por uma assembleia
vagaroso, em finais da década havia sinais de aumento do investimento. Cuba
dominada por Batista. O documento incluía sufrágio universal, direitos do Estado
estava entre os primeiros três ou quatro países latino-americanos nas áreas da
sobre o subsolo, «orientação» estatal da economia, e direitos laborais como salá-
educação (tinha uma taxa de literacia na ordem dos 80%), saúde pública e assis-
rio mínimo, pensões, segurança social e limite de oito horas de trabalho diárias.
tência social. A porção do rendimento nacional que ia para os assalariados era
A constituição de 1940 deu início a um período de governos democráticos
de 65%, um número que, na época, só era superado por EUA, Grã-Bretanha e
legítimos, embora a tradição cubana de corrupção e banditismo político se tenha
Canadá.
mantido vigorosa. Batista venceu eleições transparentes em 1940 e continuou a
Ainda assim, este impressionante estado de desenvolvimento disfarçava
implementar o seu programa populista num clima económico mais favorável,
desequilíbrios estruturais, na sua maioria resultantes da predominância do açúcar
para o qual tinham contribuído a guerra e a ajuda dos EUA. Mas o nacionalismo
na economia. Em 1952 o açúcar era ainda responsável por cerca de um terço do
radical voltou a impor-se em 1944; Batista perdeu as eleições - resistira à tenta-
produto interno (a proporção caiu para cerca de um quarto em finais da década
ção de as manipular - para o Prof. Grau, dos Autênticos, e, já um homem rico,
de 50), e representava mais de 80% das exportações. Embora o capital cubano
retirou-se para os EUA.
na indústria do açúcar ultrapassasse os 55%, os EUA eram ainda, de longe, o seu
maior mercado, e as exportações de açúcar continuavam à mercê dos preços no
mercado mundial e das quotas de importação fixadas pelo congresso norte -
Os Autênticos no Governo (1944-52) e o Segundo Batistato
-americano. O padrão de cultivo de açúcar, aliado a uma procura externa geral-
mente fraca, originava níveis elevados de subemprego e desemprego sazonal.
Muitos acalentavam a esperança de que o regresso de Grau à presidência,
As condições de vida no campo eram, assim, bastante inferiores às proporciona-
através de eleições legítimas, restaurasse os ideais de identidade nacional e jus-
das pelas cidades, onde vivia 56% da população. Estes desequilíbrios eram sufi-
tiça social associados à revolução frustrada de 1933. Mas quando a n Guerra
cientes para manter as aspirações económicas nacionalistas vivas entre os grupos
Mundial se aproximava do fim, a indústria do açúcar voltou a entrar numa fase
de estudantes e os ortodoxos, que se ressentiam do facto de Batista ter rejeitado
de prosperidade e as expectativas quanto a reformas e diversificação económica
a constituição de 1940, deixando o desenvolvimento da pátria num beco sem
afundaram-se uma vez mais numa orgia de corrupção e violência praticada por
saída político.
grupos revolucionários que Grau tratava com deferência.
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Foi deste meio de nacionalismo estudantil frustrado que emergiu .a figura no sudeste - um tradicional ponto de partida para as insurreições cubanas -,
inconstante e determinada de Fidel Castro, no começo da década de 50. Membro perto das montanhas da Sierra Maestra. Não tardaram a ser denunciados por
da ala esquerda dos ortodoxos de Eddy Chibas, estudante de direito na Univer- camponeses e a sofrer uma emboscada de soldados de Batista. Apenas 12
sidade de Havana, e um fervoroso admirador de José Marti, o jovem Casto tinha homens sobreviveram a este recontro militar. Tendo fugido para as montanhas,
um apetite por liderança que se tornou evidente no seu plano revolucionário para os sobreviventes reagruparam-se para formar o núcleo de uma força de guerrilha,
derrubar Batista atacando a caserna militar de La Moncada, em Santiago. A 26 que foi gradualmente somando pequenas mas significativas vitórias contra a
de julho de 1953, uma força de aproximadamente 160 jovens na casa dos 20 anos tropa do governo, e que se expandiu, à medida que se lhe juntavam camponeses
atacou a caserna. Como seria de prever, a ação falhou: a maioria dos revoltosos e membros do Movimento 26 de Julho.
foi atingida a tiro ou presa. Fidel Castro, então com 26 anos, e o seu irmão Raul A rebelião de Castro tinha duas frentes: a ação de guerrilha na Sierra Maes-
conseguiram fugir, mas acabaram por ser detidos. O que os salvou da tortura e tra, e a resistência urbana liderada por Frank País em El Llano (a planície), onde
do assassínio foram os protestos públicos que se seguiram ao tratamento brutal a luta era conduzida por meio de propaganda, bombas, ataques armados contra a
dado por soldados vingativos aos primeiros revoltosos a serem feitos prisionei- polícia e greves. Ainda assim, durante todo o ano de 1957 e até meados de 1958,
ros. O quixotesco ataque de La Moncada e o terror oficial que provocou serviram nenhuma frente parecia capaz de abrir caminho contra a ditadura. Na Sierra, os
para converter Fidel Castro num herói nacionalista. guerrilheiros, cerca de 160 homens, não conseguiam estabelecer uma base per-
No seu julgamento, Castro defendeu-se com um discurso hoje famoso manente. Nas cidades, a ação era extremamente perturbadora, mas tornara-se
- conhecido pela sua frase final, «A história absolver-me-á» -, no qual denun- confusa e ineficaz desde que fora reprimida uma revolta em Santiago de Cuba,
ciava as cliques corruptas que governavam Cuba e em que proclamava a neces- que pretendia coincidir com o desembarque do Granma.
sidade de restaurar a liberdade política e a independência económica. Um com- Os militantes do Movimento 26 de Julho constituíam, para todos os efeitos,
pósito de valores liberais democráticos e aspirações patrióticas herdadas de apenas uma das várias forças anti-Batista. Havia a organização estudantil Direc-
José Marti, este discurso ia ao encontro de um vasto espetro da opinião cubana. tório Revolucionário, que lançara um ataque ao palácio presidencial e que por
Na versão reconstruída enviada furtivamente da prisão, era apresentado um pro- pouco não assassinara Batista. Esta organização também abriu frentes de guerri-
grama de reforma que ecoava os objetivos de movimentos progressistas de toda lha na Sierra de Escambray e na Sierra de Trinidad. Depois, havia os partidos
a América Latina: industrialização, redistribuição de terra, pleno emprego e estabelecidos da oposição, como os Autênticos e os Ortodoxos, que pressiona-
modernização da educação. vam Batista para convocar eleições e que acabaram por formar uma aliança
O texto de A História Absolver-me-á tornou-se o documento fundador do tática com o Movimento 26 de Julho, na oposição a Batista. Por fim, o Partido
Movimento 26 de Julho - cujo nome se devia à data do ataque à caserna de La Comunista, que estava ativamente empenhado na mobilização de trabalhadores
Moncada -, movimento que Castro liderou após ser libertado da prisão em maio contra o ditador, mas que se manteve distante do Movimento 26 de Julho - cuja
de 1955. Passados alguns meses partiu para o México, onde, juntamente com luta armada lhe inspirava sérias reservas - até meados de 1958, altura em que
outros exilados cubanos, começou a conspirar para o derrube de Batista. Quem enviou o veterano Carlos Rafael Rodríguez para se juntar a Castro nas monta-
se lhe juntou no México foi Ernesto «Che» Guevara, um jovem médico argentino nhas. Estas campanhas em El Llano sofreram duros reveses. A 5 de setembro de
que realizara pouco antes uma odisseia pessoal pela América Latina para teste- 1957, Batista esmagou um motim da Marinha, levado a cabo por oficiais de
munhar o estado do seu povo, e que vira confirmado o seu nacionalismo revolu- baixa patente no porto de Cienfuegos. Em abril de 1958, uma greve geral convo-
cionário em 1954, quando assistira ao derrube do governo radical de Jacobo cada pela oposição - um teste decisivo à sua força - teve uma fraca adesão.
Arbenz, na Guatemala, por uma força invasora de rebeldes apoiados pelos EUA. Todavia, embora o exército de Batista estivesse a controlar a rebelião, o
ditador estava a perder a guerra da propaganda. A brutalidade das suas forças ia
afastando o público cubano e horrorizava a Igreja Católica, que em fevereiro de
A Revolução Cubana (1956-9) 1958 foi levada a exigir um governo de unidade nacional. Mas mais relevante
ainda era a imagem romântica de Fidel Castro projetada pela comunicação social
A 2 de dezembro de 1956, depois de terem recebido treino militar no internacional, depois de um correspondente americano do The New York Times,
México, Castro e uma companhia de 82 homens atravessaram o golfo a bordo do Herbert Matthews, ter começado, em 1957, a publicar uma série de relatos dos
iate Granma, rumo a Cuba. Desembarcaram numa praia na província de Oriente, seus encontros com Castro na Sierra Maestra. A opinião pública americana

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foi-se tomando favorável àquele jovem idealista que combatia urna ti ranta obvia- donara igualmente os seus princípios depois de assumir funções. A guerrilha,
mente corrupta. Em março de 1958, Washington, que encarava com preocupação pelo contrário, distanciara-se da velha classe política em virtude da luta solitária
os métodos repressivos utilizados por Batista, decretou um embargo de armas a na Sierra Maestra. Embora a liderança rebelde fosse de origem burguesa, as
Cuba. privações da guerra tinham-na «proletarizado», segundo Castro e Guevara. A
Um ponto de viragem crítico para ambos os lados foi o fracasso da greve aliança com os políticos das cidades era, assim, encarada como uma mera neces-
geral convocada para abril de 1958. Foi então que Castro se apercebeu de que a sidade tática e, no entender de Guevara, não poderia manter-se a partir do
luta seria decidida sobretudo pela força das armas. Batista, por sua vez, sabia que momento em que se tornasse um travão ao progresso revolucionário.
tinha de alcançar uma vitória inequívoca sobre os rebeldes na Sierra Maestra se A experiência da Sierra Maestra transformara as ideias dos guerrilheiros
queria recuperar alguma credibilidade junto do povo cubano e do governo dos quanto ao que a revolução devia alcançar. O pensamento dos revolucionários
EUA. A 24 de maio de 1958, Batista lançou uma ofensiva de grande envergadura ganhara um cariz otimista e utópico: os seus objetivos deviam ser a soberania
contra a força de Castro, constituída por cerca de 300 guerrilheiros. Violentos, política e a reforma social, mas, além disso, era preciso criar uma nova sociedade
combates prolongaram-se por três meses, mas a extraordinária competência de e um Novo Homem - um homem desprovido de ganância material e de ambição
Castro como líder militar, o seu conhecimento profundo do terreno e a estratégia individual, um homem pronto a partilhar, de igual para igual, com os demais,
ágil da guerrilha foram desgastando a tropa de Batista. Em meados de agosto, a numa comunidade justa. O fervor puritano destes ideais pode explicar-se, até
ofensiva falhara. Castro enviou, então, Che Guevara e Camilo Cienfuegos com certo ponto, como uma reação à venalidade crónica da política cubana. Mas
duas colunas à província de Lãs Villas, no centro da ilha. Depois de as colunas lembrava também o zelo milenarista dos missionários ascéticos de Espanha, que
da guerrilha terem dominado Lãs Villas, a ilha foi dividida em duas, isolando o queriam evangelizar os índios para construírem um Novo Mundo livre dos peca-
grosso do exército de Batista na extremidade leste. dos do velho. Esse ímpeto milenarista nunca se perdera por completo; reemergira
A maré voltara-se contra Batista. Numa última tentativa de conservar o apoio na missão jesuíta no Paraguai, no século xvm, e também estava presente
dos EUA, o ditador decidiu avançar para as eleições presidenciais de novembro. nos ideais dos movimentos de independência. E renascia agora na declaração
O seu candidato venceu, mas a abstenção foi muito elevada. Na verdade, o povo inflamada, voluntariosa de Guevara: «Faremos o homem do século xxi: nós
cubano oferecera a sua lealdade a um novo líder carismático, Fidel Castro. Em mesmos.»
dezembro, com Guevara e Cienfuegos a combaterem a caminho da capital, o A convicção de que os guerrilheiros eram os protótipos do Novo Homem
ditador admitiu a derrota. A l de janeiro de 1959, fugiu, com o seu círculo pró- conferiu à revolução de Castro um sentido de legitimidade primordial. Pouco
ximo, para a República Dominicana. Che Guevara e os seus guerrilheiros chega- depois da vitória, os líderes da guerrilha começaram a concentrar poder nas suas
ram à cidade, assumiram posições cruciais e convocaram uma paralisação geral próprias mãos. Funcionários do regime de Batista foram julgados em «tribunais
para apoiar a revolução vitoriosa. Uma semana mais tarde, Fidel Castro entrou, do povo» e executados. As instituições de democracia liberal ou foram imedia-
triunfante, em Havana. tamente abolidas ou deixadas ao abandono. Ao contrário do que fora prometido,
não se realizaram novas eleições; a independência constitucional do poder judi-
ciário foi limitada quando Castro assumiu o direito de nomear juizes. Parte da
O Rescaldo da Revolução (1959-62) imprensa livre foi encerrada e outra parte passou a ser controlada por sindicatos
ligados ao Partido Comunista. Os próprios sindicatos perderam a sua indepen-
Castro alcançara uma impressionante vitória militar e derrubara o ditador. dência do governo. Associações profissionais e organizações privadas viram-se
Mas, apesar de tudo, a influência política do seu Movimento 26 de Julho sobre igualmente desprovidas de autonomia, como aconteceu com a Universidade de
a sociedade cubana era muito limitada. Por forma a construir uma plataforma Havana, o centro da oposição a ditaduras anteriores.
política sólida, Castro começara, na fase final da guerra, a criar uma aliança Estas medidas suscitaram oposição da parte de políticos liberais e até de
ampla com partidos estabelecidos da oposição, desde o Partido Autêntico ao destacados comandantes de guerrilha, que tinham visto na revolta a promessa
Partido Comunista, o que lhe valera o apoio crucial das classes médias e das de restaurar a constituição democrática de 1940. O presidente escolhido por
organizações laborais. Mas Castro desconfiava dos políticos profissionais. Castro, um antigo juiz anti-Batista, Manuel Urrutia, demitiu-se das suas funções
Demasiados projetos de reforma tinham fracassado em Cuba - afinal, o próprio de chefe de Estado em julho de 1959, em protesto contra o adiamento das elei-
Batista surgira como um revolucionário em 1933, e Grau, dos Autênticos, aban- ções. Uma figura proeminente da guerra revolucionária, o comandante Hubert

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Matos, atacou aquilo que viu como um descambar para o comunismo, e foi total às exportações dos EUA para Cuba. Na atmosfera da Guerra Fria entre os
detido e encarcerado por traição em novembro do mesmo ano. Muitos outros Estados Unidos e a União Soviética, estes confrontos, aliados à virulenta retó-
cubanos começaram a sair da ilha rumo a Miami, no que se tomaria um êxodo rica anti-ianque de Castro, ameaçavam transpor uma revolução essencialmente
contínuo. Tratava-se sobretudo de profissionais da classe média e de donos de nacionalista numa pequena ilha das Caraíbas para a esfera da geopolítica inter-
propriedades, e tinham em comum a desilusão com as mudanças radicais que continental — com consequências imprevisíveis.
estavam a ser introduzidas pelos revolucionários. Na verdade, Castro parecia não O embargo comercial dos EUA alimentou a suspeita, em Cuba, de que esta-
ter ainda definido, naquela fase, uma ideologia política precisa, mas o seu nacio- ria para breve uma invasão. Este receio intensificou a militarização do país, pois
nalismo intenso levava-o a querer arrancar as alavancas económicas de mãos no vácuo que se instalou após a suspensão da constituição liberal democrática, a
estrangeiras; ao mesmo tempo, a miséria rural que testemunhara durante a sua organização social fora providenciada pelo Exército Rebelde. Foram mobiliza-
experiência na Sierra convencera-o da necessidade de deslocar a base da riqueza dos civis para constituir milícias e organizados em «Comités para a Defesa da
e do poder do país em proveito dos camponeses e da classe trabalhadora. Revolução», que funcionavam como unidades de bairro para a defesa civil e
Castro sabia que aqueles dois objetivos eram interdependentes. O histórico também como agências para supervisão da população.
impasse entre a subordinação aos interesses dos EUA na indústria do açúcar e as Os EUA estavam, com efeito, a preparar uma invasão de Cuba, mas em vez
aspirações cubanas a construir uma verdadeira pátria só poderia ser vencido de usarem os seus próprios soldados, como nos tempos da Emenda Platt, tinham
através de profundas mudanças económicas e sociais no país. Isto porque, se a optado por treinar, secretamente, uma força de exilados cubanos na Guatemala,
democracia liberal fosse restaurada sem que a indústria do açúcar estivesse sob e tencionavam usar essa força para desencadear uma rebelião geral anti-Castro
controlo cubano, a política voltaria a deteriorar-se devido a uma sensação de na ilha. Tratava-se de uma estratégia mal concebida, pois subestimava a popula-
impotência, e era essa a origem da corrupção que se obstinava em invadir a vida ridade de Castro e a sua prontidão militar, e representava graves riscos políticos
pública cubana. Simplesmente, para controlar a economia de exportação e cortar para a tensa atmosfera internacional da Guerra Fria. Por esta razão, o novo pre-
os laços entre a burguesia cubana e os interesses norte-americanos, era preciso sidente, John F. Kennedy, recusou-se a apoiar oficialmente os invasores. Quando
uma nova visão da sociedade e o apoio das massas. Castro era ainda, acima de a força invasora desembarcou na Baía dos Porcos, a 15 de abril de 1961, sofreu
tudo, um patriota, mas os meios com que perseguia a pátria estavam a levá-lo na uma dura derrota às mãos dos soldados revolucionários cubanos. Esta humilha-
direção do socialismo. ção dos EUA reforçou o estatuto de Fidel Castro como patriota: o líder de Cuba
De qualquer forma, no rescaldo da vitória a Revolução obedeceu mais ao expusera de modo convincente as ambições neocolonialistas dos Americanos.
entusiasmo do que à ideologia. O congelamento dos preços e consideráveis O episódio da Baía dos Porcos agravou a tensão entre as superpotências, visto
aumentos salariais para os trabalhadores deram uma enorme popularidade ao que a União Soviética já anteriormente ameaçara defender Cuba de ataques dos
governo revolucionário. Em maio de 1959, foi aprovada uma lei de reforma EUA. Os Soviéticos cumpriram, então, o prometido, e enviaram armamento a
agrária que autorizava a expropriação de grandes terras e de quintas em mãos Castro.
estrangeiras, e a sua conversão em cooperativas. Grandes empresas, indústrias, Em outubro de 1962, um avião-espião norte-americano deu conta da existên-
bancos e serviços foram nacionalizados. Estes esforços para libertar a economia cia, na ilha, de mísseis nucleares capazes de atingir alvos em todo o continente
da sua dependência dos EUA motivaram confrontos com Washington, o que por americano. Segundo o líder soviético, Nikita Kruschev, os mísseis destinavam-se
sua vez encorajou Castro a procurar mercados e parceiros comerciais alternati- a ser usados apenas para fins defensivos. Mas a presença daquelas armas em
vos. Em fevereiro de 1960, a União Soviética concordou em comprar 5 milhões território que ficava a apenas 150 quilómetros da costa dos EUA era uma provo-
de toneladas de açúcar ao longo de cinco anos e concedeu a Cuba um crédito de cação óbvia: a 22 de outubro, Kennedy ordenou um embargo a todos os sistemas
$100 milhões para comprar tecnologia soviética. Nos meses seguintes, foram militares com envio previsto para Cuba e exigiu que os mísseis fossem retirados.
assinados outros acordos comerciais com a Polónia e com a China. Nos dias que se seguiram, o mundo pareceu estar na iminência de uma guerra
A crise com os EUA ganhou novas proporções quando Castro nacionalizou nuclear, até que Kruschev aceitou desmantelar as instalações de mísseis em Cuba
refinarias de petróleo norte-americanas que se recusaram a processar petróleo da em troca do compromisso dos EUA de não invadir a ilha. Como consequência
União Soviética. O governo dos EUA retaliou retirando a sua quota na importa- desta crise internacional, Cuba incorreu na hostilidade permanente dos EUA, o
ção de açúcar cubano; Castro reagiu expropriando toda a propriedade norte- seu vizinho mais próximo e mais poderoso, e passou a estar plenamente inte-
-americana; em outubro de 1960, o presidente Eisenhower impôs um embargo grada na esfera de influência da União Soviética.

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HISTORIA DA AMERICA LATINA C U B A : DEPENDÊNCIA, N A C I O N A L I S M O E REVOLUÇÃO

A Construção do Estado Revolucionário (1962-70) quotas de produção. Foram também cometidos muitos erros de carácter prático,
que causaram problemas de escassez e deslocação: foi enviado demasiado gado
O objetivo económico fundamental da Revolução era pôr fim à dependência para o matadouro, para se satisfazer a maior procura de carne gerada pelos
da economia de exportação de açúcar, diversificando a agricultura e iniciando aumentos salariais pós-revolução; não se apostou na diversificação de culturas,
um processo de industrialização por substituição de importações. Relativamente por falta de investimento; procedimentos básicos como semear, plantar e fertili-
a este aspeto, os revolucionários cubanos partilhavam dos objetivos de outras zar foram negligenciados ou mal feitos. O resultado inevitável foi a incapacidade
elites progressistas da América Latina. Propunham-se, contudo, atingir os seus, de fornecer alimentos à população no seu todo.
fins recorrendo a métodos socialistas. Sob a orientação de Che Guevara, que se Estas deficiências óbvias, a par das criticas da União Soviética relativamente
tornou diretor do Banco Nacional e, mais tarde, ministro da Indústria, foi conce- à qualidade do planeamento e da tomada decisões, gerou um debate, na lide-
bido um Plano de Quatro Anos destinado a restruturar a economia através do rança, sobre o rumo da política económica. As tentativas de Che Guevara de criar
planeamento central. Os trabalhadores seriam motivados através de «incentivos o Novo Homem subordinando toda a atividade económica às decisões dos líde-
morais» e não através de benefícios materiais. res da guerrilha depararam com a oposição dos estrategos comunistas, que
Mas a Revolução Cubana não conseguiu escapar ao dilema intrínseco do defendiam um retorno aos incentivos materiais, diferenciação de salários e uma
desenvolvimento com que as outras economias agrárias de exportação também dependência parcial das forças do mercado para a distribuição de recursos. Em
se depararam: como canalizar recursos para a indústria manufatureira sem preju- 1963, Fidel Castro aceitou a perspetiva comunista elementar sobre a política
dicar a agricultura de exportação, que gerava o capital necessário ao financia- económica: a industrialização ficaria subordinada à produção de açúcar. O plano
mento do setor industrial? No rescaldo da vitória, recorrera-se às reservas de era agora desenvolver a indústria do açúcar como nunca se fizera ainda: Fidel
moeda estrangeira para proceder a grandes aumentos salariais. A economia de anunciou que o objetivo para 1970 seria uma colheita de 10 milhões de toneladas
exportação de açúcar fora negligenciada e em 1962 a produção tinha caído de açúcar - a maior na história de Cuba. O que se pretendia era fazer de Cuba o
desastrosamente. Sem reservas estrangeiras e com lucros cada vez mais reduzi- maior produtor de açúcar do mundo, para que a ilha estivesse em posição de ditar
dos na exportação, havia pouco capital disponível para investk no desenvolvi- os termos da sua participação na economia internacional. Mas as perspetivas não
mento da indústria. Outro problema residia no embargo comercial dos EUA, que eram as melhores: a economia não cresceu suficientemente depressa para com-
cortara o fornecimento de tecnologia e capital à ilha. Em alternativa, Cuba teve pensar o aumento demográfico; as colheitas de açúcar não atingiram as metas
de recorrer ao apoio técnico e financeiro da União Soviética. A ineficácia e estabelecidas; os salários mantiveram-se baixos e o consumo foi reduzido, de
a baixa produtividade também prejudicavam o processo de industrialização: modo a maximizar o investimento para chegar à colheita de l O milhões de tone-
a insistência de Guevara nos incentivos morais implicava uma direção intensiva ladas em 1970.
da mão de obra por parte do Estado, mas o empenho revolucionário não bastava, Em face dos graves problemas gerados pela restruturação radical da econo-
por si só, para gerai' as taxas de produtividade exigidas pelos objetivos do plane- mia, como reagiu o povo cubano aos seus novos líderes? Milhares de cubanos da
amento. O próprio planeamento central era errático, uma vez que as decisões classe média optaram por abandonar o país, fixando-se sobretudo em Miami, que
estavam amiúde sujeitas às mudanças de política súbitas de uma liderança sem se tornou um centro de conspirações e propaganda anti-Castro. Castro permitiu
grande competência na área de economia. Em 1962, os consultores soviéticos a sua partida porque era uma forma indolor de eliminar oposição interna à Revo-
recomendavam a suspensão do processo de industrialização e o restabelecimento lução, apesar do elevado preço a pagar na substituição de mão de obra profissio-
da economia de exportação de açúcar. nal e técnica. Apesar das muitas dificuldades, a maioria dos camponeses e do
No setor agrícola, a produção sofrera tanto com a incompetência como com operariado deu o seu apoio ao regime. Nos primeiros três anos da Revolução, os
a reforma estrutural. Dada a probabilidade de expropriação, os agricultores pri- salários aumentaram aproximadamente 40%, mas a procura gerada por este
vados reduziram a sua produção, e o Instituto de Reforma Agrária agravou o enorme aumento do poder de compra esgotou os recursos produtivos do país,
problema ao não estabelecer uma política clara: a princípio, organizou e admi- pelo que teve de se proceder ao racionamento de bens. O racionamento tornar-
nistrou cooperativas de camponeses, mas a natureza da economia de açúcar, -se-ia uma característica permanente da vida diária. Mas o que garantiu o apoio
baseada em plantações de grande dimensão, ditou uma estrutura mais centrali- generalizado à Revolução foi a melhoria das condições de vida das massas.
zada; assim, a política de cooperativas foi substituída pela coletivização em O povo tinha acesso a uma alimentação regular, vestuário condigno e habitação
quintas estatais, onde os camponeses recebiam salários e viam estabelecidas adequada. O desemprego e o subemprego, que eram os flagelos de outros países

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HISTORIA DA AMÉRICA LATINA CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO

latino-americanos, foram eliminados através de um programa de obras públicas. com os seus líderes a serem derrubados em 1964, e tentou repetir a experiência
Foi também criado um sistema gratuito de saúde e de segurança social. Ensino e cubana da Sierra Maestra. Mas também aí viu os seus objetivos fracassarem.
formação profissional gratuitos deram oportunidades educativas aos filhos dos O seu núcleo de guerrilha não prosperou na teia de comunidades índias do alti-
camponeses e dos trabalhadores. A taxa de iliteracia caiu de 20% para cerca de plano andino, e faltou-lhe o apoio total do Partido Comunista Boliviano, que
12% em dois anos, graças a uma campanha de jovens voluntários que foram para permanecia cético quanto aos métodos voluntariosos de Guevara. Em outubro de
as aldeias ensinar os camponeses. O ensino superior passou a estar ao alcance de 1967, foi capturado e morto por forças bolivianas contrainsurgência. A sua morte
todos os setores da sociedade. ecoou por todo o mundo, e Che Guevara tornou-se um símbolo heróico do idea-
Ocorreu também uma revolução nas atitudes e nos valores. A igualdade lismo revolucionário que no ano seguinte eclodiria em revoltas contra a ordem
racial foi consistentemente promovida num país onde 75% da população era estabelecida, levadas a cabo por jovens intelectuais e estudantes, em muitos
negra ou de raça mista. As mulheres adquiriram direitos iguais no trabalho e países diferentes.
enquanto cidadãs. Através da educação e da propaganda, o governo combateu os Entretanto, Fidel Castro encorajava os Cubanos a darem tudo por tudo para
preconceitos do machismo numa sociedade claramente dominada por homens. se chegar à colheita de 10 milhões de toneladas de açúcar em 1970. No ano em
Acima de tudo, a Revolução inspirou ao Cubano comum um profundo sentido causa, chegou-se aos 8,5 milhões de toneladas, o que era, para todos os efeitos,
de orgulho nacional, a convicção de que Cuba não estava em dívida para com um recorde, mas não o suficiente para impedir a desmoralização geral, dada a
nação alguma - e de que já não estava sujeita ao desprezo de americanos anglo- importância que Castro atribuíra ao número de 10 milhões de toneladas. Não só
-saxões. Neste aspeto, Fidel Castro tocou profundamente o povo cubano. As suas a estrutura da economia fora seriamente prejudicada devido à concentração
habituais provocações aos ianques, a par da óbvia impotência destes últimos para obsessiva no açúcar, como a colheita deficitária indicava que o país era incapaz
o derrubarem, tornaram-se demonstrações recorrentes e preciosas de indepen- de vencer a estagnação produtiva que o perseguia desde os anos 20. Isto porque
dência nacional. o objetivo económico central da Revolução não se cumprira: a industrialização
Estes feitos deviam-se, em parte, ao idealismo revolucionário de líderes tivera de ser abandonada, e a economia cubana continuava dependente da expor-
como Fidel Castro e Che Guevara. O facto de acreditarem na exequibilidade da tação de um único produto agrícola, numa conjuntura internacional em que a
criação de um Novo Homem permitiu que a Revolução sobrevivesse às correntes procura de açúcar atravessava um longo período de declínio. Os principais par-
traiçoeiras da luta política na década que se seguiu à sua vitória. Fidel Castro ceiros comerciais de Cuba erarn agora a União Soviética e os países do bloco
compreendeu a necessidade de manter o ímpeto de mudança expondo constante - comunista. Em troca das suas exportações de açúcar, Cuba importava a maior
mente o seu idealismo moral às massas, e mesmo a partir de 1963, quando os parte dos bens de que necessitava. O país estava excessivamente dependente da
erros económicos o obrigaram a ouvir os conselhos pragmáticos dos estrategos boa vontade soviética; a União Soviética, de onde Cuba importava todo o seu
comunistas, continuou a apoiar o empenho de Guevara numa revolução moral e petróleo, podia, se quisesse, paralisar a ilha.
na exportação do modelo cubano de desenvolvimento social para outros países
da América Latina e do Terceiro Mundo. As estações de rádio cubanas trans-
mitiam para o resto do continente, e chegavam a Cuba jovens revolucionários Pragmatismo e Institucionalização (1970-90)
para serem treinados nas técnicas da luta de guerrilha. Este internacionalismo
gerava incómodo entre os governos da América Latina. Cuba foi expulsa da Após o fracasso da colheita de açúcar de 1970, o Partido Comunista assumiu
Organização dos Estados Americanos, e as repúblicas latino-americanas segui- um papel central na condução do Estado e da economia. Todavia, o Partido
ram o exemplo dos EUA e romperam as relações diplomáticas com o governo de Socialista Popular, o velho e bastante desacreditado Partido Comunista pré-
Castro (à exceção do México, que, como sempre, se preocupava em preservar a -revolucionário, dissolvera-se em 1961, e os seus militantes tinham-se juntado a
sua imagem revolucionária). organizações castristas, onde exerciam a sua influência ideológica. Em 1965,
Depois de se demitir, em 1963, do seu cargo oficial no governo, Che Gue- formou-se um novo Partido Comunista Cubano, com os castristas como força
vara optou por levar a tocha da revolução a outros países. Liderou uma expedi- dominante no Comité Central e tendo Fidel como líder. Mas o Partido enquanto
ção que pretendia ajudar forças revolucionárias no Congo, mas acabou por se tal não desempenhou um papel preponderante na vida nacional nos anos 60, pois
retirar, desiludido, do labirinto que era a política centro-africana. Partiu depois Castro continuava a governar de modo direto, pessoal, e a luta de guerrilha da
para a Bolívia, onde a revolução socialista de 1952 fora gradualmente minada, Sierra Maestra era ainda a fonte de legitimidade do novo Estado. Foi só no

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO

começo da década de 70 que se iniciou um processo de «construção de legali- Grenada. Em 1983, fuzileiros dos EUA invadiram Grenada e derrubaram Bishop,
dade socialista» e que a Revolução foi institucionalizada segundo o modelo expulsando os Cubanos da ilha. Apesar do revés sofrido, Cuba continuou a afir-
soviético. O Partido Comunista passou a ser o órgão supremo da sociedade, e os mar o seu direito de apoiar Estados revolucionários estrangeiros. Por exemplo,
Comités de Defesa da Revolução, a burocracia, o poder judiciário e as assem- cerca de 20 000 soldados combateram em Angola até 1989 e 15 000 permanece-
bleias locais de «poder do povo», bem como a assembleia nacional, ficaram sob ram na Etiópia depois desse ano.
a sua direção. As milícias revolucionárias foram desmembradas e introduziu-se Alguns intelectuais cubanos e latino-americanos desencantaram-se com os
uma hierarquia militar no Exército Rebelde, que viria a ser uma das melhores e novos métodos políticos e burocráticos comunistas dos anos 70. Em 1971, o
mais bem equipadas forças de combate da América Latina. Em 1976, foi apro- poeta Heberto Padilla foi preso por subversão cultural e alegadamente forçado a
vada por plebiscito uma constituição redigida por dirigentes comunistas vetera- confessar os seus crimes contra a Revolução perante outros escritores. Elemen-
nos e baseada na constituição da União Soviética. tos do círculo de Padilla foram ostracizados. Nos anos seguintes, vários escrito-
A gestão económica ficou, então, a cargo de estrategos comunistas. Os tra-. res e artistas cubanos proeminentes optaram por partir para o exílio, e criticaram
balhadores foram organizados em sindicatos controlados pelo Estado e regulados a intolerância da elite cultural oficial.
por tribunais de trabalho. Foram introduzidos diferenciações salariais, bónus de A questão Padilla dividiu o mundo cultural hispânico. Escritores de estatuto
desempenho e quotas de trabalho, para estimular a produtividade. Em 1972, a internacional como Octavio Paz e Carlos Fuentes (México), Mário Vargas Llosa
produtividade aumentou 20%, e em 1971-5 o PNB cresceu a um ritmo anual de (Peru) e Juan Goytisolo (Espanha), que haviam dado o seu apoio à Revolução,
aproximadamente 16% (embora no final da década tenha caído para 4% e começaram a denunciar aquilo que viam como um processo de estalinização.
nos anos 80 não tenha conseguido recuperar os seus melhores desempenhos). Outros autores não menos ilustres, como Gabriel Garcia Márquez (Colômbia) e
Na agricultura e nos serviços, tolerou-se um pequeno setor privado, com vista a Júlio Cortázar (Argentina) reafirmaram a sua lealdade aos ideais revolucioná-
aumentar a oferta ao mercado interno. Apostou-se na exportação de açúcar, rios. A polémica em torno do carácter da Revolução Cubana ganhou uma certa
tabaco e outros bens para países capitalistas, com vista a obter a moeda estran- importância nos países de expressão espanhola porque, nos anos 60, a vitória de
geira necessária para comprar tecnologia avançada. Posteriormente, o turismo Fidel Castro trouxera uma nova esperança de vencer a pobreza, a ditadura e a
foi também promovido, como forma de adquirir a valiosa moeda forte. Foram corrupção. Mas estaria o futuro do mundo hispânico destinado a ser marxista ou
contraídos empréstimos junto de bancos estrangeiros para financiar projetos de a democracia liberal era ainda uma opção viável? Ao longo da década de 70, o
desenvolvimento. Em suma, Cuba começou uma vez mais a participar na econo- grau de liberdade política e os direitos civis admitidos em Cuba passaram a estar
mia capitalista internacional (exceção feita ao comércio com os EUA, que man- presentes no debate sobre liberdade artística. Os críticos de Castro acusaram-no
tiveram o seu embargo), apesar de depender do apoio e dos mercados da União de ser um caudilho ditatorial que não tolerava dissidentes. Num país envolto em
Soviética e dos países comunistas. secretismo, era difícil apurar informação rigorosa quanto ao número de prisio-
Nos anos 70 e 80, Cuba adotou uma nova forma de internacionalismo revo- neiros políticos, maus-tratos infligidos a transgressores, perseguição religiosa ou
lucionário. Após a morte de Guevara na Bolívia e a queda do governo marxista punição de homossexuais.
de Allende no Chile, em 1973, o encorajamento das lutas de guerrilha na Amé- Contudo, o descontentamento cada vez maior do povo cubano relativamente
rica Latina perdeu a ênfase anterior. A nova política consistia em enviar unidades ao rígido controlo político e ao racionamento constante tornou-se patente em
militares de combate ou conselheiros técnicos para apoiar Estados marxistas em 1980, quando o complexo da embaixada do Peru em Havana foi invadido por
guerra, como era o caso de Angola, onde o governo se via ameaçado por uma cerca de 11 000 pessoas que procuravam asilo político. As autoridades cubanas
revolta de guerrilha apoiada pela África do Sul, ou da Etiópia, em guerra com a tentaram contornar a situação abrindo o porto de Mariel e permitindo que aque-
Somália e que mais tarde enfrentou uma rebelião separatista na Eritreia. Depois les que desejassem emigrar saíssem da ilha por mar. Cerca de 125 000 pessoas
da vitória sandinista na Nicarágua, em 1979, conselheiros e profissionais médi- partiram para Miami em pequenas embarcações; este número incluía delinquen-
cos cubanos foram enviados para ajudar o novo regime. Como consequência tes e doentes mentais que Castro permitiu que partissem para embaraçar o
deste tipo de internacionalismo, Castro foi acusado de agir como instrumento da governo dos EUA e fazer crer que só os inadaptados tinham voluntariamente
política externa soviética. Os EUA mostraram-se preocupados quando Cuba escolhido o exílio. Para compensar a má publicidade dos órgãos de comunicação
enviou conselheiros e trabalhadores para colaborar com o governo socialista de internacionais, foram organizadas grandes manifestações em Havana, para pro-
Michael Manley na Jamaica e com o governo marxista de Maurice Bishop em clamar lealdade a Fidel e à Revolução. Ainda assim, o êxodo em massa produziu

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO

os seus efeitos na vida quotidiana: os Cubanos obtiveram permissão para gastar dade de apurar os números relativos ao desemprego, Fidel Castro declarara já em
o seu dinheiro extra em alimentos e vestuário nos «mercados livres», que passa- 1980 que a economia sofria de um excesso de mão de obra. Este excedente de
ram a poder realizar-se a par do sistema de racionamento oficial. mão de obra foi reduzido expandindo as forças armadas e enviando soldados,
Aquando das celebrações do 20° aniversário da Revolução, em 1979, Fidel técnicos e operariado para prestar assistência a outros países socialistas do
Castro, alertou aquela geração de Cubanos de que seriam necessários mais sacri- Terceiro Mundo.
fícios para que as gerações futuras pudessem viver melhor. Na realidade, o Ao fim de três décadas, a Revolução Cubana alcançara feitos dignos de nota.
desempenho económico do país continuou a deteriorar-se nos anos 80. Os seus Eliminara as graves desigualdades sociais e económicas que caracterizavam
problemas fundamentais eram, como sempre, os resultantes de uma esmagadora todos os outros países da América Latina. Apesar da austeridade e da falta de
dependência económica de uma potência estrangeira e da monocultura de açúcar liberdades individuais, a população no seu todo não passava fome nem sofria de
A União Soviética continuava a ser o principal parceiro comercial de Cuba; sub- insegurança material: as rendas eram baixas, os serviços de saúde excelentes e
sidiava a sua economia de exportação comprando açúcar a preços fixos, bem gratuitos; a educação também era gratiiita e acessível a todas as camadas da
acima do preço internacional, e fornecia a Cuba cerca de 98% do petróleo de que sociedade. Mas talvez o maior feito da Revolução tivesse sido o forjar de um
a ilha necessitava e praticamente todos os seus bens industriais e tecnológicos espírito nacional comum, algo que a maioria das repúblicas latino-americanas
Com o embargo dos EUA ainda em vigor, Cuba só podia manter relações comer- não conseguira. Este feito tornava-se ainda mais notável se se levasse em conta
ciais com um número limitado de países capitalistas, como M.éxico, Espanha, que antes da Revolução de 1959 o sentido de identidade nacional era um dos
França, Canadá e Japão, e este comércio era bastante deficitário, dado não haver mais frágeis da América latina.
grande procura de açúcar nos países em questão. A Revolução pode ter salvo Cuba da absorção por parte dos EUA, mas
À semelhança de outros Estados latino-americanos em finais dos anos 70, conseguiria libertar o país do seu impasse histórico? Enquanto o açúcar - um
Cuba começou a financiar os seus projetos de desenvolvimento e a cobrir os seus bem de consumo primário cujo valor declinava - continuasse a dominar a
défices recorrendo a empréstimos de petrodólares de bancos ocidentais a taxas economia, Cuba precisaria de acordos de comércio preferenciais com uma
de juro favoráveis (isto para além da considerável ajuda e dos subsídios que já potência estrangeira, o que inevitavelmente colocaria limites à sua independên-
obtinha da União Soviética). Em 1982, estando as taxas de juro mais elevadas, cia. Desde 1960, a União Soviética e os países comunistas da Europa de Leste
Cuba não conseguiu cumprir os pagamentos aos bancos ocidentais sobre a sua tinham substituído os Estados Unidos como principal mercado ultramarino da
dívida externa, que atingia os $3,5 mil milhões, e viu-se obrigada a negociar a ilha, providenciando-lhe uma estrutura de comércio subsidiado. Contudo, em
restruturação de parte da dívida com os seus credores capitalistas. Para além 1989, estes países viram-se confrontados com uma imprevisível vaga de revoltas
deste montante, devia mais de $7 mil milhões à União Soviética e a partir de anticomunistas, que em poucos meses conseguiram derrubar os regimes comu-
1986 teve igualmente de renegociar o pagamento desta dívida. nistas de todos os Estados da Europa de Leste e eleger governos democráticos
Estas pressões financeiras obrigaram o Partido a exercer um controlo ainda para os substituir; a própria União Soviética começou rapidamente a desmantelar
mais apertado sobre a gestão económica e a despesa do Estado. Os «mercados o seu sistema de planeamento central e a introduzir elementos de democracia
livres» que funcionavam paralelamente ao sistema público foram descontinua- política.
dos. O regime de austeridade que desde o início marcara a Revolução não podia No início de 1990, Fidel Castro parecia politicamente isolado e economica-
afrouxar, pois os custos salariais tinham de ser reduzidos ao mesmo tempo que mente vulnerável: as suas parcerias comerciais socialistas tinham-se desinte-
a produtividade da mão de obra aumentava. Assim, na década de 80, Castro grado e a União Soviética anunciara que Cuba teria de pagar ao custo real o
relançou o ideal de Che Guevara de incentivos morais ao trabalho, em detri- petróleo e a tecnologia que recebia, e que os preços subsidiados pelas exporta-
mento das recompensas materiais; exortou uma vez mais as massas a trabalha- ções de açúcar teriam de ser gradualmente anulados. Sem estes apoios económi-
rem voluntariamente sem remuneração, em nome do Estado revolucionário. cos, poderia a Cuba socialista sobreviver? Embora Castro reafirmasse o seu
As escassas receitas provenientes do comércio externo, o lento crescimento compromisso para com os ideais da Revolução, havia indícios de uma luta de
económico e um aumento demográfico agravaram os problemas do desemprego poder nos círculos mais altos do Partido Comunista Cubano: em 1989, o general
e de inflação que Cuba enfrentava desde os anos 70, embora em nenhum dós Arnaldo Ochoa, um herói da campanha angolana, fora inesperadamente acusado
casos se aproximasse dos níveis apresentados pela maioria dos restantes países de tráfico de droga, julgado em público e executado juntamente com outros mili-
latino-americanos. A inflação oscilava entre os 20 e os 30% e, apesar da dificul- tares alegadamente implicados em corrupção.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

O colapso relativamente súbito do comunismo na Europa pôs a nu o facto de


a Revolução Cubana não ter resolvido o histórico impasse da ilha entre a depen-
dência profunda de uma potência estrangeira para a exportação de açúcar e o seu
forte desejo de soberania nacional. Alcançar a autonomia económica era ainda
um desafio por vencer.

CAPÍTULO 13

Argentina: O Longo Declínio

Nas primeiras décadas do século xx, a Argentina atingira uma prosperidade e


uma estabilidade política comparáveis às dos EUA e dos principais países euro-
peus. O seu sucesso económico - que se refletiu numa taxa de crescimento anual
da ordem dos 5%, em média, entre 1880 e 1914 - assentava na exportação de
carne e cereais para a Europa. A riqueza gerada pelo referido comércio permitira
um consenso entre as elites crioulas de proprietários de terras e comerciantes: o
caudilhismo regional fora ultrapassado e o país centralizara-se mediante um sis-
tema de democracia constitucional, que garantia as liberdades políticas caras ao
republicanismo liberal clássico. A Argentina parecia ter cumprido os objetivos dos
líderes das suas guerras da independência - o «barbarismo» dos caudilhos, e tam-
bém o obscurantismo da Espanha, haviam dado lugar à «civilização» moderna.
As aparências eram, todavia, enganadoras. O progresso lavrara grandes
mudanças económicas e demográficas na Argentina, mas não modificara na
essência a cultura tradicional do país. Ao contrário de outras sociedades pós-
-coloniais bem-sucedidas, como os EUA, o Canadá e a Austrália, as raízes da
sociedade argentina estavam ainda no século xvi. O sistema de concessão de
terras adotado após a conquista das pampas às tribos índias nómadas, na década
de 70 do século xix, não conseguira criar a classe de pequenos agricultores inde-
pendentes idealizada pelos reformadores liberais. Em vez disso, as pampas
tinham sido convertidas em estancias, vastas propriedades pertencentes a criado-
res de gado e produtores de cereais, que perpetuavam os valores senhoriais da
nobreza hispânica.
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Assim, a maioria de imigrantes pobres, oriundos de Itália, de Espanha e da Concedeu crédito e subsídios generosos a pequenos agricultores; cortejou os
Europa de Leste, não conseguia viver apenas do trabalho no campo; via-se obri- sindicatos, decidindo disputas laborais a seu favor; apoiou o Movimento de
gada a ficar nas cidades, principalmente em Buenos Aires, trabalhando nas gran- Reforma Universitária, iniciado na cidade de Córdoba em 1918; e ganhou segui-
des fábricas de transformação de carne, nas docas ou nos caminhos de ferro, no dores entre a elite intelectual e os profissionais liberais. Mas a tentativa de coli-
comércio, nos serviços ou na indústria ligeira, e na burocracia que se expandia. gar estes grupos de interesse das classes média e trabalhadora ficou comprome-
Deste modo, o que a imigração europeia originou não foi uma revolução agrária, tida quando a Grande Guerra na Europa interferiu com os mercados para onde a
mas um proletariado urbano inquieto e uma classe média-baixa insegura, e Argentina exportava a sua carne e os seus cereais. A subida de preços e o
nenhuma destas camadas sociais sentia qualquer lealdade para com os poderosos aumento do desemprego provocaram uma onda de protestos entre a classe operá-
senhores das pampas, em cujas mãos residia o poder económico e político que ria, e Yrígoyen viu-se obrigado a tomar medidas severas contra os trabalhadores.
fizera da Argentina um país rico. O conflito que se adensava entre os aristocratas Os sindicatos argentinos eram liderados por anarquistas e sindicalistas, mui-
das regiões rurais e as massas das cidades viria a pôr fim ao sonho dos liberais tos deles imigrantes espanhóis ou italianos que tinham trazido da Europa a con-
crioulos do século xix. vicção de que a ação direta e a greve geral revolucionária eram os instrumentos
Na viragem de século, a democracia oligárquica argentina enfrentava o desa- indicados para derrubar o Estado burguês. Em 1918, uma série de violentas
fio de incorporar as novas classes urbanas no sistema político. Revoltas armadas paralisações culminou numa greve geral dos sindicatos em janeiro de 1919.
do Partido Radical - uma coligação entre proprietários de terras dissidentes e as Numa «semana trágica», a repressão sangrenta - a par de confrontos entre anar-
classes médias urbanas, com algum apoio da classe trabalhadora - acabaram quistas e militantes da Liga Patriótica Argentina, de direita - pôs fim à greve, e
por levar à promulgação, em 1912. da lei da reforma eleitoral de Sáenz Pena, também à liderança anarcossindicalista. Nos anos 20, terminada a guerra na
que consagrava o sufrágio masculino universal, e o voto secreto e obrigatório. As Europa, a subida dos salários manteve a classe trabalhadora tranquila, e a lide-
massas urbanas conseguiram, assim, em pouco tempo, retirar poder à classe de rança dos sindicatos passou para as mãos de socialistas e comunistas, que não
estancieros: o Partido Radical foi eleito em 1916 e governou o país por um perí- eram tão combativos. Mas a memória da Semana Trágica de 1919 não se esva-
odo de 14 anos, até 1930. neceu: naqueles anos anarcossindicalistas, estabelecera-se uma tradição de mlli-
O resultado foi, no entanto, uma sociedade profundamente desarticulada, em tância operária, que se tornaria um fator recorrente nas lutas políticas das déca-
que a autoridade política já não coincidia com o poder económico. Isto porque a das seguintes.
prosperidade da Argentina continuava a depender da exportação da carne e dos Os conflitos laborais colocavam os radicais numa posição intermédia incó-
cereais produzidos nas estancias, enquanto a esmagadora maioria da população moda, entre uma elite agromercantil intransigente e urna classe trabalhadora com
urbana se dedicava a atividades secundárias. Após a reforma eleitoral de 1912, a aspirações revolucionárias. Após a crise de 1919, Yrigoyen tentou reconstruir a
política argentina ficou reduzida ao problema de uma clamorosa maioria de con- coligação entre as classes média e trabalhadora, aumentando a despesa pública e
sumidores urbanos que usava o sistema democrático para extrair benefícios a expandindo a burocracia para apaziguar o seu eleitorado urbano. Mas a melhoria
uma elite estabelecida de monopolistas rurais. Longe de produzir um consenso do nível de vida das populações urbanas deu-se à custa da inflação, o que teve
nacional que consolidasse as instituições do Estado liberal, o alargamento da efeitos nocivos para a economia de exportação. E os radicais viram-se, então,
democracia gerou, no desequilíbrio peculiar da sociedade argentina, um conflito pressionados pelos estancieros para restaurar a disciplina financeira. Nas elei-
insolúvel, que acabaria por dividir o Estado. ções de 1922, os radicais voltaram a vencer, mas o seu novo presidente, Manuel
Alvear, um aristocrata terratenente, vinha da ala direita do partido e reprovava o
populismo de Yrigoyen. A administração de Alvear deu prioridade ao combate à
O Governo dos Radicais (1916-30) inflação e procedeu ao corte da despesa do Estado e ao aumento dos impostos
sobre a importação. O Partido Radical estava, na realidade, a passar pelas primei-
O percurso político do Partido Radical no tempo do seu grande líder Hipó- ras fases de um conflito entre a transferência de riqueza para as classes urbanas
lito Yrigoyen refletiu as dificuldades que a Argentina enfrentou nas duas primei- e a necessidade de manter a economia agrária de exportação internacionalmente
ras décadas do século xx. Eleito presidente em 1916, Yrigoyen procurou trans- competitiva. Tratava-se de um conflito que ressurgiria por várias vezes ao longo
formar o seu partido numa máquina nacional dominante, reunindo o apoio de do século xx, e que mergulharia o país numa espiral descendente, rumo ao caos
grupos de interesse especiais, opostos aos partidos oligárquicos estabelecidos. económico e ao colapso político.

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Sendo essencialmente um partido da classe média urbana, os radicais não entidade profissional autorregulada, que não era diretamente influenciada pelos
conseguiram sobreviver ilesos ao problema da inflação. Yrigoyen saiu em 1924, interesses de qualquer grupo social em particular. A preocupação fundamen-
levando consigo o grosso dos membros da classe média, para formar os Radicais tal dos oficiais militares era garantir que a Argentina seguia ordeiramente o
Yrigoyenistas, e deixando para trás a ala aristocrática do velho partido, cujos caminho para a sua suposta grandeza. Porém, apesar das suas várias intervenções
membros passaram, então, a ser conhecidos como Radicais Antipessoalistas. na política, a característica que definiria o comportamento das forças armadas ao
Para as eleições de l928, Yrigoyen fez uma campanha populista, prometendo um longo do século seria a indecisão. Faltava-lhes uma visão coerente do destino da
retorno à bonança dos grandes gastos e da criação de empregos do início dos nação, e por isso, embora detivessem o poder das armas e se mostrassem empe-
anos 20. Também jogou com o sentimento nacionalista, defendendo a nacionali- nhadas em manter a ordem, acabaram por se deixar arrastar para as oscilações e
zação da indústria petrolífera. Venceu as eleições, mas as suas políticas não tar- as vias tortuosas da política argentina, aliando-se uma vez aos exportadores
daram a agravar o défice orçamental e a inflação. Quando se deu o crash de Wall estancieros, outra vez às classes médias, e até, durante algum tempo, ao proleta-
Street, em 1929, a sua administração estava condenada. Uma seca acentuou os riado urbano.
efeitos da crise financeira sobre a economia de exportação e os números do Em 1930, as forças armadas estavam unidas apenas pela sua aversão a Yri-
desemprego dispararam. Não havia despesa pública que compensasse a perda de goyen, a quem culpavam por ter posto em risco a prosperidade da nação com a
empregos. Mais uma vez, Yrigoyen, o grande líder populista, viu-se obrigado a sua demagogia. Mas quando substituíram Yrigoyen, ficaram sem saber ao certo
lidar com o proletariado. Houve ecos perturbadores da Semana Trágica de 1919 o que fazer com o poder. Uma facão nacionalista liderada pelo general José F.
nos confrontos que tomaram conta das ruas, entre yrigoyenistas e os seus opo- Uriburu queria estabelecer um Estado corporativo semelhante ao de Mussolini
sitores - uma mistura de trabalhadores militantes, estudantes universitários em Itália, ao de Primo de Rivera em Espanha e ao de Salazar em Portugal.
nacionalistas e, do outro lado do espetro político, os rufias de direita da Liga A ideia era criar um Estado em que a política de classes fosse assimilada por uma
Patriótica. autoridade política forte, capaz de implementar as reformas estruturais necessá-
A situação do Partido Radical em 1930 sintetiza o problema político com que rias à regeneração da economia. Uma facão mais influente mostrou-se, todavia,
a Argentina se deparava. Não havia como sair do impasse causado pela divergên- relutante em romper por completo com as tradições liberais da Argentina; estes
cia entre o poder económico da elite de estancieros e o peso eleitoral do bloco oficiais queriam recuar no tempo, até aos dias felizes da prosperidade civilizada,
urbano, uma vez que as classes médias oscilavam constantemente entre aquela antes de a reforma eleitoral de Sáenz Pena ter aberto caminho aos radicais. Mas
elite e a classe trabalhadora. Quando o vento corria de feição, as classes médias sem riscar a lei de 1912, a única forma de restabelecer a política de acordos de
respondiam aos apelos populistas e alinhavam com os trabalhadores para obte- cavalheireiros entre partidos de estancieros era a manipulação sistemática do
rem concessões dos estancieros. Mas sempre que a economia de exportação processo eleitoral, de modo a excluir as classes mais baixas. A partir de 1932 e
atravessava dificuldades, afastavam-se dos trabalhadores e aceitavam a receita durante toda uma década, a Argentina seria dominada por uma coligação de
dos estancieros para corrigir as finanças do país. Estas oscilações do pêndulo conservadores e radicais anti-Yrigoyen, conhecida como Concordância. O remé-
político significavam, por um lado, que a economia de exportação continuava a dio corporativista, nacionalista, para os males da Argentina foi adiado até 1943,
ser minada por excessivas exigências urbanas e, por outro, que não poderia haver altura em que outro golpe militar levou ao poder Juan Domingo Perón.
mudanças radicais no monopólio dos estancieros enquanto as classes médias
quebrassem a sua aliança com o proletariado, enfraquecendo dessa forma o
poder do bloco urbano. Em suma, nem a revolução nem o statu quo anterior a Os Governos da Concordância (1932-43)
1912 eram cenários possíveis; apenas convulsões periódicas, num sistema de
outra forma paralisado. As eleições fraudulentas de 1932 colocaram o general Agustín P. Justo à
Quando o governo de Yrigoyen se viu a braços com uma crescente desordem frente do primeiro governo da coligação Concordância, que tinha como princi-
económica e social, a elite conservadora de estancieros aproveitou a oportuni- pais elementos o Partido Democrata Nacional, conservador, o Partido Socialista
dade para se lhe opor. Em setembro de 1930, Yrigoyen foi derrubado pelas forças Independente e os Radicais Antipessoalistas. A prioridade era estabilizar a eco-
armadas, naquele que foi o primeiro golpe de Estado do século. Com efeito, o nomia - que sofria tanto com as consequências da governação esbanjadora de
Exército começava agora a agir como uma força independente na política. Yrigoyen como com os efeitos da crise mundial -, equilibrando o orçamento,
Embora predominantemente de classe média, o corpo de oficiais tomara-se uma reduzindo a dívida externa e invertendo o défice comercial. Mas havia também

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a preocupação de modernizar os instrumentos da gestão económica, e proce- media, a empleomanía - o desejo de empregos administrativos do setor público.
deu-se a importantes reformas nesta área, como a introdução do imposto sobre o Assim, nas cidades, considerava-se que o liberalismo económico e a ortodoxia
rendimento e a fundação de um banco central (o seu diretor-geral foi Raul financeira serviam, acima de tudo, os interesses da elite de estancieros, ligada à
Prebisch, que mais tarde se tomaria um influente teórico da dependência econó- exportação, e dos homens de negócios estrangeiros. O resultado foi que se inten-
mica latino-americana). sificou o sentimento nacionalista entre as classes média e trabalhadora.
Dada a crise da procura internacional, havia a necessidade urgente de preser- Até finais dos anos 30, o nacionalismo fora em larga medida um fenómeno
var os mercados ultramarinos de uma economia de tal modo dependente das da ala direita. Advinha de uma ansiedade relativamente ao sempre frágil sentido
exportações. Numa situação em particular, a Argentina viu-se em risco de perder de identidade argentino, e era dirigido contra ameaças putativas provenientes de
o seu maior mercado, quando, em 1932, a Grã-Bretanha adotou uma política de influências estrangeiras, como o protestantismo dos comerciantes britânicos ou
Preferência Imperial - um acordo de comércio que concedia aos produtores de o igualitarismo corrupto intrínseco à democracia. A imigração em massa alimen-
carne da Austrália e da África do Sul preferência sobre os seus concorrentes, em tara tais receios. Durante a semana trágica de 1919, jovens rufias da Liga Patri-
troca de acesso privilegiado da Grã-Bretanha aos seus mercados. O governo ótica tinham perseguido judeus, anarquistas e bolcheviques. Em 1933, foi, no
argentino conseguiu proteger as suas exportações para a Grã-Bretanha assinando entanto, o Tratado de Roca-Runciman que se tornou o foco de um profundo
com este país um acordo semelhante em 1933. Ao abrigo do Tratado de Roca- ressentimento popular contra o «imperialismo» britânico. Surgiu uma escola de
-Runciman, as exportações de carne de vaca da Argentina para o mercado britâ- historiadores nacionalistas que denunciava a constante intervenção da Grã-Bre-
nico manter-se-iam ao nível de 1932; como contrapartida, haveria uma redução tanha nos assuntos argentinos desde os primeiros tempos da república, em parti-
das tarifas sobre a importação de produtos britânicos e uma série de concessões cular o seu papel na secessão da província que se tomou o Uruguai e a tomada,
a empresas britânicas com negócios na Argentina. em 1833, das Ilhas Malvinas (ou ilhas Falkland). Estes historiadores escolheram
No período dos governos Concordância, a indústria ligeira interna expandiu- para seu herói Juan Manuel Rosas, o ditador do começo do século xix que era o
-se e substituiu certas importações, sobretudo nos têxteis, nos artigos elétricos e demónio dos liberais argentinos, e viam nele alguém que defendera o modo de
nos alimentos transformados. Mas este crescimento industrial não foi o resultado vida tradicional contra as incursões europeias.
de planeamento económico; foi estimulado pelo aumento da procura resultante O novo nacionalismo cultural dos intelectuais encontrou, em Buenos Aires,
da recuperação da economia de exportação. As políticas económicas e fiscais da uma reação favorável entre os cidadãos comuns, que na altura estavam revolta-
coligação Concordância seguiram prescrições liberais ortodoxas - a exploração dos com o escândalo do monopólio dos transportes por parte de companhias
da «vantagem comparativa» do país na agricultura, e a criação de um clima britânicas. Estas companhias tornaram-se impopulares quando começaram a
financeiro saudável, capaz de atrair capital estrangeiro para compensar a relativa pressionar o governo argentino, ao abrigo dos termos do Tratado de Roca-Run-
falta de interesse dos capitalistas argentinos em investir na indústria. Estas polí- ciman, para banir pequenos autocarros pertencentes a particulares, que faziam
ticas tinham como base a noção do papel da Argentina na economia mundial, concorrência aos seus elétricos espantosamente ineficientes. A indignação do
noção que era partilhada por todos os principais partidos políticos, incluindo os público devia-se ainda às práticas monopolistas de empresas estrangeiras de
radicais e os socialistas, e esta linha de atuação proporcionou ao país um consi- transformação de carne - acusações de fuga ao fisco e irregularidades na super-
derável bem-estar ao longo da década de 30, num momento em que a crise mun- visão das taxas de câmbio provocaram discussões acesas no senado (a ponto de .
dial causava sérias dificuldades à maioria das repúblicas latino-americanas. um membro ter sido morto a tiro durante um debate). Com o Tratado de Roca-
Mas os anos 30 viriam a ficar conhecidos como a Década Infame. Com -Runciman e outras questões, como o protecionismo dos EUA, por exemplo, a
efeito, mais uma vez, economia e política ficaram desfasadas e por muito bem- porem em evidência as restrições com que o comércio de exportação argentino
-sucedidos que os governos Concordância possam ter sido na condução da se debatia na economia mundial em crise dos anos 30, o nacionalismo exacer-
economia, só conseguiam sobreviver politicamente recorrendo à fraude eleitoral. bou-se e estendeu-se aos assuntos económicos, minando o consenso político
A longo prazo, o êxito económico tem de se basear na legitimidade política, e os relativamente ao comércio livre, que todos os principais partidos subscreviam
governos Concordância não conquistaram a lealdade das classes urbanas. Estas havia mais de meio século.
camadas estavam descontentes com a situação política do país, pois o cresci-. A eclosão da H Guerra Mundial deu um novo impulso ao nacionalismo.
mento económico dera força aos sindicatos e tornara-os mais combativos, ao Os mercados da Argentina na Europa continental ficaram, na sua maioria, ina-
mesmo tempo que os cortes na despesa tinham intensificado, entre a classe cessíveis, e o fluxo de importação de tecnologia e combustíveis necessários à

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sua indústria foi drasticamente reduzido. Os nacionalistas advogavam agora uma O Governo de Perón (1946-55)
política de industrialização conduzida pelo Estado, para produzir os bens que já
não podiam ser importados e assim diminuírem a dependência das exportações No período de 1943-5, a estratégia básica de Perón para conquistar poder
O impulso decisivo viria, no entanto, da conversão das forças armadas ao nacio- consistiu em dirigir-se às classes urbanas, especialmente ao proletariado, ata-
nalismo económico, em virtude da disputa com os EUA relativamente à criação cando os estancieros e os interesses estrangeiros. Mas o intenso nacionalismo do
de uma aliança pan-americana contra as potências do Eixo. Ao abrigo de um movimento de Perón atraiu o apoio de grupos tanto da extrema direita como da
tratado de 1941, os EUA começaram a fornecer armas a várias nações latino- extrema esquerda do espetro político da Argentina, o que conferiu ao peronismo
-americanas, mas excluíram a Argentina, visto que esta se recusava a renunciar um carácter híbrido, para não dizer esquizoide, que contribuiria para a incoerên-
à sua neutralidade e ajuntar-se à aliança anti-Eixo. A exclusão motivou o receio cia política e para conflitos destrutivos, impedindo o movimento de gerar uma
das forças armadas de que a Argentina ficasse numa posição de vulnerabilidade visão verdadeiramente unificadora do destino nacional.
militar em relação ao Brasil, o seu rival histórico na região, que recebeu arma- De modo a reforçar o seu ataque retórico aos dois pilares da economia de
mento dos EUA. Assim, em 1941, foi criada a Dirección General de Fabricacio- exportação de comércio livre, Perón usou o seu cargo de ministro do Trabalho
nes Militares, uma indústria de armamento pertencente ao Estado e gerida pelas para decidir disputas na indústria a favor dos sindicatos, desde que as respetivas
próprias forças armadas, que se tornou a primeira das empresas dirigidas pelo lideranças lhe dessem a sua lealdade política. Também ganhou uma enorme
Estado que viriam a proliferar nas décadas subsequentes. popularidade introduzindo toda uma série de benefícios de assistência social para
Em 1943, a autoridade política da Concordância estava ameaçada, embora a os membros dos sindicatos. Ciente do crescente poder de Perón, os partidos da
coligação conservadora tivesse sido bastante bem-sucedida na condução da oposição, que receavam aquilo que lhes parecia ser uma ameaça fascista à cons-
economia durante a crise mundial dos anos 30. O governo, chefiado por Ramón tituição e à liberdade, pressionaram os hesitantes líderes da junta militar, que
Castillo, da ala direita, fora abandonado pelos conservadores moderados; per- acabaram por destituir Perón e pô-lo na cadeia.
dera o controlo do congresso para os radicais, que vinham denunciando a mani- Porém, a 17 de outubro de 1945, os sindicatos organizaram grandes manifes-
pulação dos atos eleitorais; e grupos sociais de importância crucial - as classes tações em Buenos Aires e marcharam até ao palácio presidencial para exigir a
médias e o operariado organizado - sentiam-se frustrados com a política de libertação de Perón. A junta militar cedeu, e Perón retomou o seu cargo no
comércio livre, que, para todos os efeitos, sofrera a pressão de fatores externos governo. Era agora apoiado por um movimento de massas, e esse movimento,
na economia mundial. Mas, acima de tudo, e como acontecera em 1930, o Exér- por incrível que pudesse parecer, conseguira impor a sua vontade ao alto
cito acreditava que era chegada a hora de outra revolução que regenerasse o comando das forças armadas. Nas eleições presidenciais de fevereiro de 1946,
destino do país. A 4 de junho de 1943, Castillo foi deposto. Perón saiu vencedor, com 54% dos votos. Uma vez no poder, saneou a liderança
Porém, como sucedera anteriormente, as forças armadas foram incapazes de do Exército, aumentou os salários dos oficiais e atribuiu cargos políticos aos seus
decidir como proceder à regeneração nacional: se deveriam estabelecer uma apoiantes militares. Os dois pilares do seu poder estavam agora devidamente
versão mais eficaz da política oligárquica pré-1912 - uma possibilidade dúbia, posicionados: os sindicatos e uma instituição militar privilegiada. Através destas
após a experiência da Concordância - ou instaurar o Estado corporativo autori- bases, poderia combinar um amplo apoio popular com a força executiva, para
tário, tal como Uriburu o concebera em 1930 e como era então defendido pelo impor a mudança económica.
Grupo de Oficiales Unidos, uma facão nacionalista de linha dura composta por Perón tinha outra mais-valia política em Eva Duarte, uma mulher jovem e
oficiais de baixa patente. Foi esta última opção que acabou por prevalecer. Um bonita, oriunda de um meio pobre, que era atriz quando se tomou amante de
dos seus principais proponentes era um jovem coronel, Juan Domingo Perón, Perón, mas que mais tarde o apoiou na sua subida ao poder, casando com ele em
que, na qualidade de ministro do Trabalho e, mais tarde, como vice-presidente 1945. Evita revelou-se uma populista de raro génio. Em breve se tomou objeto
do governo militar, construiu rapidamente uma base de poder de onde lançar o de uma devoção histérica para os descamisados, a massa de trabalhadores urba-
projeto nacionalista para uma nova Argentina. nos «sem camisa», que a viam como a «Madonna de América», a sua defensora
e protetora especial, o símbolo encarnado do desejo de «justiça social» em que
o peronismo se centrava. A perícia com que Eva cultivou a sua mística valeu-lhe
um enorme poder pessoal, apesar de não ter desempenhado qualquer cargo
oficial no Estado. A sua Fundação Eva Perón, financiada por contribuições de

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sindicatos e da esfera dos negócios, bem como por subsídios estatais, tornou-se • • preços baixos e fixos para os vender a preços elevados no estrangeiro. Os lucros
um Estado-providência paralelo, que mantinha em funcionamento hospitais eram usados para financiar projetos de apoio social e para subsidiar industriais
clínicas, escolas e muitas formas de caridade destinadas a pobres e doentes. Eva do país, cujos produtos eram protegidos da concorrência estrangeira através de
também desempenhou um papel importante na ligação do movimento sindica- tarifas elevadas e de um severo controlo cambial. A procura interna foi estimu-
lista ao peronismo, contribuindo para a eliminação de dirigentes sindicais recal- lada mediante aumentos salariais consideráveis, medida que determinou o
citrantes e colocando partidários de Perón em cargos cruciais. Foi também atra- aumento da produção industrial. Assim, até 1948 o poder político de Perón pare-
vés dos seus esforços que as mulheres argentinas obtiveram o direito ao voto em ceu inabalável, mas, a partir de então, toda a estratégia de canalizar recursos da
1947. Em suma, Eva Perón personificou a tradicional cultura política de patrocí- economia de exportação para investir na industrialização interna começou a
nio e clientelismo, habilmente transposta para as circunstâncias modernas da desintegrar-se.
política de massas. A principal causa da crise foi uma queda acentuada dos lucros da exportação,
O peronismo pode ser encarado como uma forma de caudilhismo da socie- devido à concorrência estrangeira e a erros políticos de Perón. As exportações de
dade industrial; os seus clientes eram, sobretudo, trabalhadores que aceitavam cereais para a Europa estavam a diminuir, pressionadas por uma agricultura
ser organizados pelo Estado em sindicatos leais, em troca de benefícios sociais e europeia em recuperação e pelos cereais norte-americanos. Estes últimos esta-
económicos relevantes. A lealdade ao seu «Líder» revestia-se, assim, de uma vam a ser subsidiados, conforme previsto pelo Plano Marshall de 1947, que fora,
espécie de ferocidade feudal. Perón optou por conduzir a política explorando a em parte, concebido para estimular as exportações agrárias de EUA e Canadá
sua carismática autoridade em comícios de massas, junto ao palácio presidencial para mercados europeus apoiados pelo dólar, em detrimento da Argentina e de
na Plaza de Mayo. A sua ideologia dejusticialismo, um credo vago e eclético que outros concorrentes mundiais. Dado que para a indústria argentina a maioria das
apelava mais às emoções do que ao intelecto, era, de urn modo geral, corporati- importações eram compradas aos EUA, Perón viu-se a braços com uma crise
vista, contendo aspetos fascistas no seu culto de personalidade e na ênfase auto- aguda da balança de pagamentos, sem dólares com que pagar a tecnologia ame-
ritária que dava à supremacia do Estado sobre a sociedade civil, e apresentando ricana de que a indústria argentina precisava, e com fracas perspetivas de os
ecos nativos dos apelos populistas de Yrigoyen à harmonia entre as classes. obter num mercado de cereais internacional dominado pelos Norte-Americanos.
Os princípios do justicialismo foram codificados na constituição de 1949, Ern 1949, os EUA concederam a Perón um «crédito» de $125 milhões (Perón
que consagrava um «decálogo» de direitos dos trabalhadores e que conferia ao recusou-se a usar o termo «empréstimo», que comprometeria a sua tão gabada
Estado direitos sobre a propriedade privada, a terra e os recursos naturais, bem independência económica).
como o direito a intervir na economia. Permitia a reeleição de um presidente por Mas o declínio da exportação de carne de vaca devia-se principalmente a
um número indeterminado de mandatos de seis anos; centralizava o poder, per- decisões da política interna. Continuava a haver uma forte procura desta carne
mitindo eleições diretas independentemente do peso das diferentes regiões fede- por parte da Grã-Bretanha, o tradicional mercado para as exportações argentinas,
rais, e dava um maior alcance à intervenção presidencial nos assuntos das pro- mas os grandes aumentos salariais aumentaram consideravelmente o consumo de
víncias. Mas havia uma falha grave no Estado corporativo peronista: não incluía carne de vaca na própria Argentina, o que reduziu as exportações e diminuiu os
a elite de estancieros, em cujas mãos se encontravam as alavancas cruciais da lucros obtidos no estrangeiro. Os problemas da economia de exportação foram
economia; e assim, longe de promover a harmonia entre as classes, o justicia- agravados por uma seca grave em 1948, e por uma queda da produção, com os
lismo veio apenas aprofundar o fosso que separava a autoridade política do poder agricultores a reagirem aos preços artificialmente baixos impostos pelo governo.
económico na Argentina. Por fim, a Argentina deparou-se ainda com a escassez de energia, quando as
Em 1946-8, tudo parecia correr de feição a Perón. As abundantes exporta- necessidades energéticas excederam a capacidade de importação de petróleo e
ções de alimentos para a Europa devastada do pós-guerra garantiam um cresci- carvão.
mento económico saudável e boas receitas para o Estado. Durante este período, Em 1949, a economia atravessava uma crise grave: os lucros provenientes
o governo nacionalizou o banco central, a companhia telefónica, os caminhos de da exportação tinham caído cerca de 30% relativamente ao ano anterior, as reser-
ferro e as docas. Em 1947, a dívida pública foi toda amortizada, após o que se vas de dólar tinham-se esgotado, a produção industrial estava estagnada, o
proclamou uma Declaração de Independência Económica. A economia de expor- * desemprego aumentou, e a inflação disparou para os 33%. Perón viu-se então
tacão ficou, até certo ponto, sujeita ao controlo do Estado, depois da criação de obrigado a rever a sua política económica nacionalista. Aumentou os recursos e
um monopólio de governo, o IAPI, que comprava produtos agrícolas nacionais a o investimento na agricultura, procurando reanimar a economia de exportação.

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Para reduzir a inflação, implementou um pacote de medidas de austeridade, que 1952, aos 33 anos de idade, o peronismo ganhou um mito cujas associações
U
incluía dois anos de congelamento de salários e um pacto social relativamente a trágicas lhe conferiam um poder quase hipnótico sobre as massas urbanas.
preços e remunerações, negociado entre sindicatos e empregadores. Queria, ao Decorrido menos de um ano, em abril de 1953, com as sombras do desastre a
mesmo tempo, prosseguir com a industrialização, mas os cortes efetuados na abaterem-se sobre a economia, a frustração peronista converteu-se numa
despesa pública, para combater a inflação, deixaram-no com menos capital para hedionda violência de rua: o Jockey Club de Buenos Aires, o reduto da elite de
investir na indústria. Para compensar esta falta de verbas, Perón voltou-se para estáncieros, foi incendiado, e o mesmo aconteceu com as sedes dos partidos
os investidores estrangeiros. Em 1952, tinham-se aberto as portas às empresas Radical e Socialista.
multinacionais. Perón precisava que essas empresas reduzissem os números do Este crescente mal-estar gerou inquietação entre as forças armadas, apesar
desemprego e que ajudassem a equilibrar a balança de pagamentos com as suas dos esforços de Perón para aplacar o corpo de oficiais com várias formas de
exportações. Por outro lado, a sua presença ajudaria a modernizar a base indus- patrocínio. À parte uma tentativa hesitante de golpe de Estado em 1951, os mili-
trial com nova tecnologia e novos métodos comerciais. Em 1954, assinou um tares continuavam divididos, como sempre, relativamente às questões políticas,
famoso acordo com a Standard Oil, que conferia à empresa norte-americana o e abstiveram-se de intervir. Porém, quando Perón se voltou contra a Igreja Cató-
direito de desenvolver os campos petrolíferos da Patagónia. Perón procurava um lica, o Exército perdeu a paciência. A Igreja, que começara por ser favorável ao
modo rápido e eficaz de resolver o problema da energia, que estava a atrasar a peronismo, tornou-se hostil quando o regime começou a invadir os seus domí-
indústria argentina, mas desde o tempo de Yrigoyen que a indústria petrolífera nios tradicionais da educação, da assistência social e da moral pública. Encarava
era um símbolo de soberania económica para os nacionalistas. As novas medidas com desagrado a capa pseudorreligiosa do culto de personalidade peronista,
de Perón corriam, assim, o risco de aborrecer dois dos seus principais eleitora- recusando-se, por exemplo, a apoiar os apelos dos «descamisados» para que a
dos: a mão de obra organizada e os industriais nacionais. falecida Evita fosse canonizada pelo Vaticano. Quando, em 1954, Perón legali-
Durante algum tempo, a situação melhorou, mas os problemas subjacentes zou o divórcio e secularizou a educação, as relações com a Igreja atingiram um
persistiram. As exportações agrícolas não cresceram o suficiente para inverter o ponto de rutura.
défice da balança de pagamentos; as indústrias protegidas pelo Estado conti- Sendo uma das últimas e a maior das instituições autónomas numa Argentina
nuaram estagnadas, debilitadas pelo aumento dos custos da importação e pela peronizada, a Igreja Católica tornou-se o foco da resistência a Perón. As procis-
escassez energética; a inflação aumentou, obrigando ao controlo dos salários. sões religiosas atraíam multidões, tendo muito maior adesão do que qualquer
À medida que a economia de deteriorava e que as políticas seguidas se afastavam contramanifestação que os peronistas conseguissem organizar. Os confrontos
dos ideais tão ruidosamente proclamados, Perón foi tomando medidas para refor- levaram à violência aberta em junho de 1955, quando aviões militares, numa
çar o seu poder sobre o país. tentativa de golpe de Estado, bombardearam o palácio presidencial durante um
A partir de 1950, quando a crise económica começou a produzir impacto comício de peronistas, matando várias centenas de pessoas. Este ultraje inflamou
sobre grandes grupos da sociedade, assistiu-se à tendência de «peronizar» a atmosfera política: os peronistas reagiram incendiando muitas das igrejas de
a Argentina. Direitos individuais, liberdades políticas e as instituições livres Buenos Akes; a violência e a contraviolência tomaram conta das ruas; finalmente,
da sociedade civil foram progressivamente eliminados pelo Estado peronista. num comício realizado a 31 de agosto, Perón exortou os seus seguidores a pega-
Os opositores, como o líder radical Ricardo Balbín e os sindicalistas dissidentes, rem em armas e a matarem cinco oponentes por cada peronista assassinado: a
foram perseguidos ou presos ao abrigo de uma nova lei de desacato às autorida- guerra civil parecia iminente. Duas semanas mais tarde, uma série de revoltas
des; a imprensa crítica foi asfixiada através de um racionamento seletivo do militares conseguiu derrubar Perón, a quem foi permitida a fuga para o Paraguai.
papel de jornal, enquanto as publicações peronistas floresciam; em 1951, o
grande jornal liberal La Prensa foi expropriado e entregue à CGT, a confedera-
ção do trabalho peronista. O corporativismo avançava a passo rápido para o O Regresso a uma Democracia Limitada:
totalitarismo, em nome de La Comunidad Organizada, que envolvia a extensão Governos Radicais depois de Perón (1955-66)
do controlo do governo sobre sindicatos independentes, organizações patronais,
associações profissionais, escolas e universidades. * Escusado será dizer que a expulsão da pessoa de Juan Domingo Perón da
Uma propaganda fervorosa e toda uma encenação política acompanharam cena política da Argentina não pôs fim ao peronismo. Ao longo das duas
este impulso para peronizar a nação. Quando Eva Perón morreu, em julho de décadas seguintes, El Líder exerceu uma influência perniciosa sobre a política

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argentina a partir do seu exílio em Madrid. Tinha ao seu dispor poderosos recur- por ser destruído pela oposição peronista ao seu programa anti-inflação, pelos
sós: um partido de massas das classes urbanas média-baixa e trabalhadora; ataques nacionalistas às concessões ao capital estrangeiro, e pela hostilidade dos
a CGT, uma confederação sindical que dominava por completo a mão de obra industriais, melindrados com os altos preços dos produtos importados, resultan-
do setor industria] argentino; o mito sagrado da falecida Evita, em tempos ado- tes da desvalorização do peso. Por fim, Frondizi procurou apaziguar os peronis-
rada como a «Chefe Espiritual da Nação»; e, não menos importante, a promessa tas legalizando o seu partido, mas em 1962 estes obtiveram o maior número de
messiânica da sua segunda vinda, o incentivo supremo à ação política dos que o lugares no congresso, para além do governo de várias províncias, e então os
apoiavam. chefes militares forçaram Frondizi a anular as eleições. Passados dias, o presi-
Perón deixou ainda outro legado, uma influência diluída na própria estrutura dente foi derrubado por um golpe militar.
do Estado e da economia da Argentina: a burocracia estatal servia um vasto leque Mais uma vez, as forças armadas procuraram estabelecer um governo civil.
de monopólios governamentais e indústrias nacionalizadas, que consumiam uma Em 1962, a ala yrigoyenista do Partido Radical formou um governo liderado por
enorme fatia de dinheiros públicos e que estavam politicamente programados Arturo Illia; contudo, apesar de ter aumentado os salários e de ter mantido os
para satisfazer interesses urbanos sem olhar ao desempenho económico global preços reduzidos, Illia não conseguiu ir longe, dada a implacável campanha de
da nação. Na realidade, Perón convertera o Estado numa máquina geradora de greves e ocupações organizada pela CGT peronista. À semelhança de Frondizi,
défices orçamentais, desequilíbrios comerciais e inflação crónica. Illia tentou conciliar os peronistas legalizando o seu partido, e mais uma vez cies
O principal problema com que se depararam aos seus sucessores, civis como venceram os radicais nas eleições para o congresso, em 1965. Por esta altura, a
militares, era como controlar financeiramente aquele setor público em expansão economia estava num estado caótico, com uma inflação cada vez mais elevada e
sem induzir uma catastrófica recessão urbana, adotando, ao mesmo tempo, medi- um défice público insustentável. Tornara-se claro que a política democrática não
das que invertessem o longo declínio da produção agrícola e industrial. Para podia dispensar os peronistas - que pura e simplesmente dominavam quaisquer
tomar o problema ainda mais grave, o aparelho peronista prestava-se a ser usado eleições a que concorressem -, e no entanto, na perspetiva das forças armadas, a
como um instrumento político que frustrava as sucessivas tentativas de recons- economia não podia ser radicalmente reformada estando os peronistas no poder.
trução económica. E, deste modo, a divisão entre poder político e poder econó- Confrontado com este dilema, o Exército decidiu-se pela segunda hipótese para
mico continuava, na Argentina, tão vincada como sempre: era preciso controlar governar o país sem Perón - a suspensão por tempo indeterminado da política
a inflação e o défice público para evitar que a base produtiva da economia se eleitoral e o estabelecimento de um regime militar tecnocrático. A 28 de junho
deteriorasse ainda mais, mas todo e qualquer plano para resolver estes problemas de 1966, Dlia foi afastado do poder e o general Juan Carlos Onganía anunciou a
deparava com a violenta oposição dos peronistas. chegada de mais uma Revolución argentina.
Após a expulsão de Perón, às forças armadas apresentavam-se, essencial-
mente, duas hipóteses para a regeneração do país. A primeira consistia em ali-
nhar tanto quanto possível as realidades política e económica - o que podia ser O Onganiato (1966-70)
feito admitindo o partido peronista e os sindicatos no sistema político, para
garantir a sua aquiescência à gestão da economia, ou excluindo por completo os A intenção de Onganía era criar um sistema que, como o que se instalara no
peronistas e permitindo que outros partidos, como o Partido Radical, formassem Brasil após o golpe militar de 1964 e o que tivera lugar na Espanha de Franco
governos com o apoio público que conseguissem reunir. A segunda hipótese era nos anos 60, contasse com as forças armadas para manter a ordem social
suspender simplesmente a política eleitoral e instaurar uma ditadura militar tec- enquanto técnicos competentes se dedicavam à tarefa de modernizar a economia.
nocrática que pudesse atacar os problemas enraizados da economia sem a inter- Sob a orientação do seu ministro das Finanças, Adalberto Krieger Vasena, foi
ferência de partidos políticos ou de civis com interesses a defender. implementado um plano para a estabilização financeira, a par da recuperação das
Em 1955-66, foram feitos esforços no sentido de relançar a política eleitoral, exportações. Este programa diferia dos anteriores planos de estabilização intro-
embora com o aparelho peronista algo limitado. Entre 1955 e 1958, as tentativas duzidos, quer por Perón quer por Frondizi, na medida em que fora concebido
do Exército de organizar o «peronismo sem Perón» falharam, pois os peronistas para estimular o crescimento agrícola sem criar uma recessão urbana. A inflação
recusaram-se a ser integrados no sistema estando o seu líder no exílio. Depois,* baixou para 7,6% em 1969, mas as exportações mantiveram-se estáveis e o
foi permitido aos radicais que formassem um governo, e este executivo, chefiado investimento na energia e nas infraestruturas aumentou a um ritmo de 22%
por Arturo Erondizi, conseguiu manter-se no poder entre 1958 e 1962, acabando ao ano entre 1966 e 1969. O «milagre económico» argentino parecia estar ao

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alcance. Além do mais, na esfera política Onganía parecia ter levado os partidos aumentavam cada vez mais e em 1972 a taxa de inflação aproximou-se dos 60%.
políticos a uma rara submissão: depois do fracasso de uma greve geral ern 1967, Lanusse concluiu que as opções militares para a governação do país se tinham
até a CGT, a confederação peronista dos sindicatos, começou a fragmentar-se. esgotado; o governo controlado, semirrepresentativo, falhara, mas o mesmo
A serenidade política revelou-se, todavia, superficial. Em maio de 1969, acontecera com a tecnocracia militar absoluta; ao que parecia, a nação era ingo-
ocorreu na cidade industrial de Córdoba, sede de uma nova indústria automóvel, vemável sem Perón, e só ele poderia pôr fim à escalada do terrorismo e unir as
uma extraordinária sublevação. Foi levada a cabo por estudantes universitários e forças políticas para implementar a disciplina económica.
trabalhadores da indústria automóvel, em protesto contra os cortes no financia-
mento às universidades, contra a perda de empregos e outras consequências do
programa de austeridade de Onganía. Durante dois dias, as ruas da cidade foram Uma Segunda Hipótese para o Peronismo (1973-6)
invadidas por civis revoltosos. O cordobazo, nome por que ficou conhecida a
rebelião, originou uma nova vaga de atividade sindica] peronista, que alastrou a- Juan Perón revelara-se, efetivamente, indispensável. Mas quase duas déca-
toda a nação. Também levou os estudantes marxistas e a juventude peronista a das de exílio tinham deixado a sua marca. El Conductor era agora um homem
acreditarem na eficácia da violência revolucionária direta como meio para der- doente com 77 anos de idade; a sua mulher, Isabel, uma antiga dançarina de
rubar o Estado capitalista. Neste sentido, o cordobazo estava em sintonia com o clube noturno que ele conhecera no Panamá, não possuía o magnetismo de Evita.
espírito da época: pode ser considerado o equivalente argentino aos événements O movimento peronista, por sua vez, também mudara, e estava dividido em
de Paris em 1968, ou ao movimento de protesto estudantil no México, que esteve facões: num extremo, os militantes inalterados, ainda empenhados no naciona-
na origem do massacre de Tlatelolco. Mas quando o consideramos neste con- lismo fascista dos anos 40; no centro, o peronismo amadurecera e convertera-se
texto, o cordobazo atesta a fragilidade do Estado argentino em comparação com em algo de semelhante à social-democracia; já à esquerda, o movimento dera
a França gaullista ou com o México do Partido Revolucionário Institucional. rebentos guevaristas, no começo da década de 60, entre os estudantes universi-
Após os traumas do peronismo e o triste fracasso do governo democrático dos tários de classe média, que pretendiam transformar a luta numa guerra de «liber-
radicais, ajunta militar de Onganía não obtivera o consentimento político neces- tação nacional». A juventude peronista criara, com efeito, uma poderosa força de
sário aos seus planos para regenerar a nação. guerrilha, os Montoneros, que entrava sistematicamente em choque com a velha
Mas a falta de consentimento não justifica só por si a rapidez da queda de guarda de dirigentes peronistas pelo controlo dos sindicatos.
Onganía após a revolta de Córdoba. Ela deveu-se também à falta endémica de A oportunidade para o regresso de Perón foi criada pela eleição para a presi-
unidade das forças armadas argentinas, que desde o seu primeiro golpe, em 1930, dência, em março de 1973, de Héctor Cámpora, um homem da ala direita tradi-
tinham estado divididas quando ao rumo a dar ao país. Em momentos críticos, cionalista do movimento. O facto de Perón ter escolhido Cárnpora como substi-
como 1943, 1946 e 1955, não tinham sabido ao certo o que fazer com o poder tuto foi um sinal, tanto para as guerrilhas como para as forças armadas, de que o
que haviam conquistado. Esta desorientação permitira a Perón assumir a lide- peronismo não pretendia instalar a ditadura do proletariado. Com efeito, Cám-
rança do país em 1946, pois ele pelo menos apresentava uma ideologia inspira- pora concebeu um plano anti-inflacionário que foi ratificado por um pacto social
dora. Onganía, pelo contrário, não fora capaz de unir o Exército em torno de uma entre patrões e sindicatos. Um vasto espetro da opinião argentina, desde os
visão convincente do futuro da Argentina. Depois de 1969, desencorajados pelos conservadores aos peronistas tradicionais, via neste plano uma última tentativa
protestos contínuos dos trabalhadores da indústria, pelos motins em cidades de para impedir o caos. Mas o pacto social assentava num consenso de desespero,
província, pelo mau desempenho económico, e ainda pelo aparecimento de gru- e os guerrilheiros urbanos não aceitavam tal coisa. Tanto os Montoneros peronis-
pos de guerrilha urbanos, os generais vacilaram uma vez mais. Quando, em tas como o ERP (Exército Revolucionário do Povo), trotskisía, prosseguiram a
março de 1970, guerrilheiros peronistas raptaram e assassinaram o general sua campanha de bombas, raptos e assassínios.
Aramburu, um antigo presidente e membro da junta que expulsara Perón em A situação agravou-se de tal modo que Perón decidiu regressar de imediato
1955, Onganía foi derrubado. O general Roberto Levingston, que o substituiu, à Argentina. A receção que teve no aeroporto de Ezeiza, em junho de 1973,
também não conseguiu impor a ordem no país, e foi deposto um ano mais tarde demonstrou bem o estado de perturbação do movimento que tinha o seu nome.
pelo general Alejandro Lanusse. A reunião de cerca de 500 000 apoiantes degenerou em confusão e violência,
Entretanto, a economia afastara-se do curso previsto pelo plano de estabili- com montoneros a lutar contra sindicalistas armados, e várias centenas de
zação de Krieger Vasena e parecia votada ao desastre: os défices orçamentais pessoas foram feridas ou mortas. Cerca de um mês após o incidente, Cámpora

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demitiu-se e foram convocadas eleições para setembro. Como se esperava, Perón clandestinas para pôr fim ao terrorismo. Nesta chamada «guerra suja», que con-
venceu com 62% dos votos. A sua mulher, Isabel, foi eleita vice-presidente. tinuou praticamente até ao final da década, os exércitos de guerrilha foram
Com o regresso de Perón, a história como que se repetiu. Apesar da agitação esmagados através de uma estratégia de violência à margem da lei. A rede antis-
política, o comércio externo atravessava um período de grande prosperidade, subversiva ampliou-se arbitrariamente, de modo a deter estudantes, advogados,
com os altos preços nos mercados internacionais a encorajar as exportações de jornalistas, sindicalistas e todos os que fossem suspeitos de apoiar as guerrilhas.
carne e cereais argentinos. O pacto social de Cámpora, que Perón manteve, con- Estes supostos subversivos eram levados em carros Ford Falcon descaracteriza-
seguira, no final de 1973, reduzir a inflação para 30% e aumentar o valor dos dos, por esquadrões da morte ilícitos. «Desapareceram» desta forma entre
salários reais em 13,3%. Estes sinais de sucesso económico iminente reforçaram 10 000 e 20 000 pessoas. Os desaparecidos eram transportados para centros de
a popularidade de Perón e encorajaram-no a aplicar o tipo de medidas naciona- detenção secretos, onde eram torturados ou executados. Entretanto, a infeliz
listas e próprias do estatismo que experimentara na década de 40. Nacionalizou Isabel Perón e o seu governo tiveram a permissão do Exército para se manterem
bancos e indústrias, subsidiou negócios nacionais e consumidores urbanos, taxou no cargo até março de 1976, tempo suficiente para que a segunda experiência do
e regulou o setor agrícola, restabeleceu o IAPI, e restringiu o investimento peronismo na Argentina se autodestruísse com as suas próprias brutais con-
estrangeiro. tradições.
Enquanto consolidava a sua posição seguindo estas linhas já conhecidas,
Perón começou a lidar com o problema das guerrilhas. Os Montoneros conti-
nuavam a assumir uma postura rebelde no seio do movimento peronista: a sua Governo Militar (1976-84)
luta sangrenta contra a liderança sindical não dava sinais de abrandar. Em setem-
bro de 1973, tinham ido ao ponto de assassinar José Rucei, o secretário-geral da Quando as forças armadas assumiram a liderança do país em 1976, a única
CGT, a confederação do trabalho peronista. O ERP, por sua vez, intensificara os opção em aberto parecia ser restaurar a ditadura tecnocrática de Onganía para se
seus ataques contra as forças armadas e prosseguia com a extorsão através de proceder a uma restruturação radical da economia. Foram nomeados oficiais
raptos e assaltos a bancos. Com o apoio do Exército e dos sindicatos, Perón militares para chefiar ministérios, empresas estatais e organismos públicos.
empenhou-se em reprimir as guerrilhas. Repudiou abertamente os Montoneros e O principal objetivo era restabelecer uma economia sã, vencendo a inflação e
promulgou leis mais severas contra a subversão política. E, todavia, parecia eliminando o défice orçamental. Para atingir este fim, parecia necessário recorrer
querer ignorar as atividades de uma organização secreta autointitulada Aliança ao tipo de «cirurgia de ferro» a que o general Pinochet estava na altura a sujeitar
Anticomunista Argentina — popularmente referida como Triplo A -, que desde o vizinho Chile: repressão sem trégua da esquerda, combinada com medidas
o início de 1974 levava a cabo operações contra a esquerda revolucionária, económicas neoliberais. No entanto, Perón criara uma rede de intervenção e
raptando e matando militantes conhecidos. subsídios do Estado de tal modo abrangente que. em finais da década de 70, um
A segunda tentativa de Perón de regenerar a Argentina foi interrompida pela programa de liberalização económica equivalia a uma declaração de guerra à
sua morte, a l de julho de 1974. Por essa altura, as perspetivas não eram muito sociedade urbana.
favoráveis. Em 1974 registara-se uma queda particularmente acentuada da eco- O programa económico do novo ministro das Finanças, José Martínez de
nomia, e em 1975 a Argentina parecia estar novamente a encaminhar-se para a Hoz, destinava-se, em teoria, a fazer recuar as fronteiras do Estado e a restabe-
catástrofe: a inflação, por exemplo, disparara para os 183% e continuava a subir lecer o mercado livre como força motriz da economia. O que ocorreu, na prática,
a um ritmo de 30% ao mês. Após a morte de Perón, a presidência passou para a foi uma transferência súbita e em grande escala de recursos do setor industrial
sua mulher, Isabel, que rapidamente mostrou não estar à altura da tarefa de gerir urbano para o setor de exportação agrário, numa violenta inversão da tendência
uma economia em estado grave e de lidar, em simultâneo, com uma feroz revolta que dominara a economia argentina durante mais de 30 anos. Em 1976-1977, os
de guerrilha. O pacto social desmoronou-se e não foi possível tomar mais medi- salários reais na indústria desceram cerca de 50%, a maior queda de sempre; os
das de estabilização que prevalecessem sobre as greves organizadas pelos sindi- preços dos alimentos sofreram um aumento e os subsídios sociais foram retira-
catos contra o seu próprio governo peronista. dos. Estas medidas foram acompanhadas da tentativa de destruição do movi-
Em novembro de 1974, foi declarado o estado de emergência, que deu ao , mento trabalhista. A CGT peronista foi abolida, as greves passaram a ser ilegais
Exército toda a liberdade para levar a cabo uma ofensiva contra as guerrilhas. e os esquadrões da morte encarregavam-se do «desaparecimento» de ativistas da
E foi o que fez, com uma determinação implacável, montando operações classe operária (um relatório sobre direitos humanos de 1978 revelou que cerca

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HISTORIA DA AMERICA LATINA A R G E N T I N A : o LONGO D E C L Í N I O

de 37% dos desaparecidos eram delegados ou funcionários sindicais). A indústria A dívida externa da Argentina aumentara para $35,6 mil milhões, com pagamen-
manufatureira contraiu-se substancialmente durante o ano de 1976, quando a tos de juros a equivalerem a 31,7% dos lucros da exportações.
proteção aduaneira foi retirada, e a violenta quebra da procura interna ditou um Estas crises múltiplas semearam a discórdia entre as forças armadas. Em
decréscimo da produção e a perda de emprego para cerca de 10% da mão.de março de 1981, o líder da junta, o general Jorge Videla, entregou a presidência a
obra. Por outro lado, as forças do mercado e os incentivos do governo estimula- outro relativo moderado, o general Roberto Viola; o ministro das Finanças, Mar-
ram a resistente economia de exportação, produzindo um excedente de $900 tínez de Hoz, demitiu-se. Viola contemplou a hipótese de estabelecer diálogo
milhões na balança comercial em 1976, depois de um défice de $1000 milhões com políticos civis, e até de fazer um acordo com os peronistas, para conseguir
no ano anterior. algum apoio político para a junta. Mas havia uma facão de linha dura, liderada
Este programa de regeneração nacional foi mais unia tentativa para remediar pelo general Leopoldo Galtieri, para quem qualquer entendimento com os pero-
o fosso entre poder económico e poder político na Argentina; só que, desta vez, nistas estava fora de questão. Com a crise económica a agravar-se, Galtieri levou
o Exército estava a recorrer à força para destruir as organizações políticas das. a cabo um golpe bem-sucedido em dezembro de 1981. Retomou, então, a ten-
classes urbanas, com o propósito de lhes retirar os benefícios que elas haviam dência inicial para corrigir a economia privatizando o setor público e refreando
obtido da economia de exportação ao longo de várias décadas. Mas apesar de ter a despesa pública (com exceção dos gastos em armamento, que continuaram a
anulado o poder político da sociedade urbana, o Exército não conseguiria criar aumentar).
um Estado que não assentasse na violência. O fosso persistia: o sucesso da eco- Galtieri compreendeu que precisava de alargar o apoio popular à junta para
nomia de exportação não perduraria sem legitimidade política, e o consenti- que a sua política tivesse alguma hipótese de êxito, e então decidiu jogai' o trunfo
mento da maioria urbana era indispensável para legitimar o Estado. Obter o nacionalista. Para começar, em janeiro de 1982, retomou uma antiga disputa
consentimento das classes urbanas era um problema que se colocaria aos dirigen- territorial com o Chile a respeito do canal Beagle. Em seguida, estando a econo-
tes militares em finais dos anos 70. mia cada vez mais enterrada na crise e a oposição à junta cada vez mais forte,
Em 1978, a facão militar dominante liderada pelo general Jorge Videla teve a ideia de invadir as ilhas Falkland, esparsamente habitadas, no Atlântico
estava descontente com os baixos salários urbanos e com a crise da indústria; não Sul, cuja soberania a Argentina reclamava desde que a Grã-Bretanha as ocupara
aceitava a perspetiva de contínua «pauperização», nas palavras de David Rock, em 1833. Perón insistira na reivindicação das Malvinas nos anos 40, e desde
das classes urbanas (*). Martínez de Hoz não pôde prosseguir com a privatização então o problema mantivera-se na agenda da política externa argentina. Pensou-
do gigantesco setor público - grande parte do qual estava, para todos os efeitos, -se que uma ocupação bem-sucedida das ilhas - que, situadas a 12 800 quilóme-
a ser gerido lucrativamente por militares -, pelo que não foi possível cortar os tros da Grã-Bretanha, talvez não valessem uma tentativa de recuperação por
subsídios a empresas estatais e reduzir suficientemente a despesa pública para parte dos Britânicos - seria uma forma espetacular de roubar o traje nacionalista
reduzir a inflação durante muito tempo; a inflação mantinha-se na casa dos aos peronistas e distrair uma população descontente das tribulações de um novo
150%, depois de ter caído de quase 400% em 1976. Por outro lado, as elevadas ataque neoliberal à economia nacionalizada. Mas, ao contrário do que se espe-
taxas de juro estavam a atrair um fluxo substancial de capital estrangeiro espe- rava, o governo britânico reagiu à invasão argentina das ilhas a 2 de abril de
culativo. Isto ditou uma sobrevalorização da moeda, prejudicando as exporta- 1982, enviando uma força especial para o Atlântico Sul. Três meses mais tarde,
ções, e criou dificuldades de acesso ao crédito para a indústria nacional, man- os Britânicos tinham recuperado as Falklands, obrigando à rendição os 10 000
tendo a produção em níveis muito baixos. Com o agravar da situação da balança soldados argentinos, na sua maioria recrutas, que a junta enviara para defender
comercial, o crescimento tornou-se hesitante. Em 1980, o comércio externo as ilhas.
entrou abruptamente em défice e houve uma série de crises financeiras, a par de O desaire das Malvinas destruiu a credibilidade do Exército como guardião
uma espetacular fuga de capitais, à medida que os investidores perdiam a con- supremo dos interesses da nação. Por esta altura, a economia estava num estado
fiança na economia. Em fevereiro de 1981, uma súbita desvalorização, com que lastimoso: a inflação ultrapassava os 200%, o peso caíra a pique, e os pagamen-
se pretendia favorecer as exportações, desencadeou uma nova corrida ao peso, o tos de juros sobre a dívida externa eram superiores a 54% dos lucros da expor-
que levou a uma saída de capitais do país na ordem dos $4,8 mil milhões. tação. À semelhança de outros países latino-americanos, a Argentina teve de
suspender os pagamentos aos seus credores estrangeiros. Quando a incompetên-
cia do governo militar já não podia ser ocultada, Galtieri demitiu-se e os seus
sucessores prometeram um retorno faseado à democracia constitucional.
O Argentina: 1516-1982 (1. B. Tauris: Londres, 1986), p. 369.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA ARGENTINA: o LONGO DECLÍNIO

A Restauração da Democracia (1983-9) e acreditavam que & sua honra estava a ser insultada por acusações injustas de
brutalidade.
A restauração da democracia em 1983 foi motivo de euforia; assinalou um Em junho de 1985, Alfonsín divulgou um pacote de reformas com vista a
regresso aos princípios sobre os quais se fundara a república. Era necessária uma reduzir a inflação e a restaurai" o crescimento. A medida essencial consistia na
reconstrução tanto política como económica, pois se a manipulação eleitoral fora criação de uma nova moeda, o austral, que substituiria o peso, e partia da reso-
comum no tempo da coligação da Concordância dos anos 30, e depois na década lução do governo de não cunhar moeda para financiar os défices públicos. Para
de 50 e no começo da década de 60, o próprio princípio da democracia represen- reforçar a política anti-inflacionária, salários e preços foram congelados por
tativa, baseada no consentimento e no Estado de direito, sofrera repetidos ata- tempo indeterminado e a despesa pública seria reduzida para eliminar o desper-
ques, quer do populismo quase fascista de Perón, quer dos regimes militares dício. Este novo começo para a nação foi simbolizado pelo anúncio de que a
autoritários, quer dos revolucionários marxistas. Todas estas alternativas antili- capital argentina deixaria de ser Buenos Aires para passar a ser a pequena cidade
berais tinham surgido como resposta ao problema fundamental da economia patagónia de Viedma. Além disso, o governo decidiu privatizar indústrias do
argentina em processo de modernização. Todas elas haviam falhado por causa Estado e promover a exportação de bens rnanufaturados para complementar a
dos conflitos de interesse que dividiam a sociedade argentina. Esperava-se agora economia de exportação agrícola tradicional. O Plano Austral pretendia induzir
que a dimensão da catástrofe que se abatera sobre a Argentina permitisse um uma rutura psicológica com o passado, e Alfonsín conseguiu, com efeito, obter
novo acordo político, ao abrigo do qual um governo democraticamente eleito o consentimento popular, afirmando que a sobrevivência da democracia depen-
tivesse o apoio popular suficiente para restruturar a economia. dia do sucesso do seu programa de reformas.
Em dezembro de 1983, Raul Alfonsín, do Partido Radical, foi eleito presi- O Plano Austral pareceu funcionar durante algum tempo, mas criou uma
dente com a promessa de pôr fim às divisões daquela sociedade tão traumatizada. profunda recessão, com a produção a cair mais de 4% em 1985. Apesar de o
Mas Alfonsín tinha de iniciar o seu programa de reformas sob o espetro de uma crescimento ter sido retomado no ano seguinte e de a inflação ter descido para
dívida externa debilitante, que excedia os $45 mil milhões e que consumia mais cerca de 50%, a austeridade económica revelou-se demasiado difícil de manter:
de 50% dos ganhos da exportação em pagamento de juros. Não tinha grande as pressões sociais obrigaram a um aumento da despesa, não obstante os vários
opção senão aceitar um plano de austeridade do FMI, em troca de mais emprés- esforços para agilizar o setor público e evitar o financiamento do défice. Em
timos para pagar os juros. Por outro lado, precisava de garantir um consenso 1987, o sucesso do Plano Austral era incerto. Alfonsín precisava de consolidar a
relativamente às suas políticas, especialmente por parte da mão de obra organi- sua autoridade para que o programa de reformas não fosse abandonado; esperava
zada, que, como sempre, era controlada pelos peronistas, os velhos inimigos do conseguir firmar um pacto social com os empregadores e com os sindicatos
Partido Radical. A sobrevivência da democracia dependia, assim, do sucesso de peronistas, para melhorar a posição dos assalariados sem alimentar a inflação.
Alfonsín em conciliar interesses políticos e económicos. Era preciso reduzir a Mas havia já indícios sinistros de que a sua autoridade estava minada.
inflação, que ultrapassara os 1000%, mas o crescimento da sociedade urbana O desafio mais flagrante à autoridade do governo democrático veio, como
teria de ser retomado estimulando a produtividade tanto da indústria como da era de prever, do Exército, ofendido pelos julgamentos de antigos membros das
agricultura. juntas militares e de outros oficiais envolvidos na guerra suja, bem como pelos
Uma ameaça mais direta às instituições democráticas vinha da oposição das cortes nos orçamentos da defesa. Durante o fim de semana da Páscoa de 1987,
forças armadas ao julgamento de oficiais militares acusados de violações dos um pronunciamiento chefiado por um coronel da principal base militar na peri-
direitos humanos durante a guerra suja contra as guerrilhas urbanas, nos anos 70. feria de Buenos Aires foi gorado por Alfonsín, que conseguiu o apoio do alto
A preocupação pública com a alegada tortura sistemática de detidos fora lançada comando, embora este desfecho tenha suscitado receios entre a população de que
por manifestações semanais na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, onde, num o presidente pudesse ter cedido a exigências do Exército no sentido de acabar
silêncio digno, compareciam as mães dos muitos milhares de jovens desapareci- com os julgamentos relativos aos direitos humanos.
dos na década anterior. A causa dos desaparecidos tornou-se uma espécie de teste Mas mais grave ainda era o facto de o governo estar a perder o apoio do
à eficácia do Estado de direito na nova democracia. Alfonsín estava ansioso por público em geral, que estava cansado dos constantes apelos para apertar o cinto
levar os criminosos à justiça, mas tinha de considerar o risco de provocar um e que se sentia frustrado com a erosão dos salários devido à persistente inflação.
golpe de Estado, já que as forças armadas insistiam em justificar que os seus Até 1987, existira um consenso entre radicais e peronistas quanto à necessidade
métodos de contrainsurgência eram necessários numa situação de guerra interna, imperativa de preservar a democracia, e isso permitira a Alfonsín tomar medidas

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E : DESENVOLVIMENTOS L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

a desenvolver um entendimento mais pessoal com o mundo e uma preocupação claramente fracassado no que tocava à modernização, deu-se um retomo às pre-
autorreflexiva com a própria poesia. João Cabral de Melo Neto representa a ocupações dos modernistas de 1922, e uma convergência tardia, embora parei ai,
última fase do modernismo brasileiro - a «Geração de 1945», que procurou com os escritores hispano-americanos, em particular no que se referia ao anti-
alcançar uma nova sobriedade de tom, regressando cautelosamente à métrica e a -imperialismo e à procura de identidade cultural. A poesia de Ferreira Gullar
uma maior atenção às texturas da linguagem poética. Traçava-se, aqui, um afastou-se da experimentação concretista, encaminhando-se para o compromisso
paralelo com os progressos hispano-americanos dos anos 50 — a antipoesia de social e político, e Lindolf Bell procurou sintetizar os elementos Pop Art do
Nicanor Parra e o exteriorismo de Ernesto Cardenal -, mas a influência de concretismo com a poesia pública característica de Neruda e dos poetas folk da
Carlos Drummond de Andrade também foi importante. América hispânica. Até os irmãos Campos tentaram conferir uma vertente polí-
Desta preocupação com a forma e a textura, a poesia brasileira da década de tica ao experimentalismo concreto; parafraseando Mallarmé, Haroldo declarou,
50 evoluiu, em parte graças à escrita teórica do jovem poeta e crítico Mário numa observação célebre, que a tarefa do poeta era dar «un sens plus POUR au
Faustino, para o concretismo. Os precursores da poesia concreta no Brasil foram mots de Ia tribu». Este compromisso tornou-se evidente no trabalho de poetas
Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, os três associados à mais jovens, como Leonardo Froes, Torquato Neto, Wally Salomão, Isabel
revista Noigandres (1952). Inspiraram-se nos ideogramas orientais e em Calli- Câmara e Paulo Leminski, que revelava desconfiança relativamente à tecnologia
grames de Apollinaire, bem como no trabalho de Ezra Pound e de e. e. cum- moderna e um desejo de criar raízes na terra brasileira.
mings; o seu objetivo geral era criar uma poesia minimalista, condensada, explo-
rando os recursos materiais da linguagem impressa no papel. Hostil à retórica, a
poesia concreta assimilava e reagia à comunicação não-verbal noutros meios de O Prelúdio do Modernismo na Ficção
comunicação — publicidade, computadores, pintura abstraía e música atonal.
Exibia um fascínio quase místico pelo espaço sideral, a alta tecnologia e a efe- Na ficção narrativa, os efeitos do modernismo europeu não foram, de um
meridade do capitalismo de consumo, prenunciando, nesse aspeto, a Pop Art dos modo geral, evidentes até aos anos 40. A reação adversa inicial ao modernismo
anos 60. hispânico empurrou os escritores para o regionalisrno e para uma representação
A poesia concreta brasileira produziu, por sua vez, um considerável impacto naturalista da realidade social. Este último ponto era um desenvolvimento bas-
no estrangeiro, tendo estimulado experiências análogas na Grã-Bretanha e nos tante novo, uma vez que o romance realista de personagem e de análise social
EUA. A sua influência foi muito menor na América espanhola (apesar dos efeitos não teve grande impacto no século xix.
na obra de Octavio Paz, nos anos 60), o que reflete uma diferença constante entre A opção do realismo foi vincada pelo alinhamento político de muitos escri-
as duas esferas culturais: o Brasil dos tempos coloniais interagiu mais livremente tores na década de 30, para quem o realismo social (ou, para todos os efeitos,
com o mundo externo e revelou um apetite mais consistente pela modernização. socialista) era a forma correta de lidar artisticamente com os problemas da Amé-
Existem traços comuns entre a poesia concreta e o parnasianismo da viragem de rica Latina. Por exemplo, César Vallejo, que praticamente inventara para si uma
século (um movimento literário que também produziu uma influência mais dura- poética modernista, publicou, em 1931, Tungsteno, um notável romance realista-
doura no Brasil do que na América hispânica): ambos eram antirromânticos e -socialista sobre a vida difícil dos trabalhadores das minas de estanho no Peru.
aspiravam à modernidade. O parnasianismo estivera associado ao republica- A exploração dos mineiros de estanho da Bolívia foi tema de romances de
nismo liberal progressista que determinou a queda da monarquia brasileira; a Augusto Céspedes, que também escreveu sobre a calamidade da Guerra do
poesia concreta emergiu no começo da década de 50, quando decorria o rápido Chaco. No México, realistas-sociais de destaque foram José Mancisidor e
processo de modernização que acompanhou os mandatos de Getúlio Vargas e de Gregorio López y Fuentes. Escritores anarquistas e marxistas da cena literária de
Juscelino Kubitschek, no período em que a nova cidade capital, Brasília, foi Buenos Aires - Leónidas Barletta, Max Dickman, Enrique Amorim - ficaram
concebida e construída segundo o estilo moderno internacional. conhecidos como o grupo Boedo, nome que herdaram de uma zona da cidade
O florescer da arquitetura modernista e da poesia concreta nas décadas de habitada pela classe trabalhadora, mas viram a sua obra obscurecida pelos seus
50 e 60 constituiu outro exemplo ainda do perene gosto brasileiro pelo forma- rivais modernistas. A exceção foi o excêntrico Roberto Arlt, um escritor do grupo
lismo impassível - ao contrário da arte hispano-americana, com todo o seu emo- Boedo de grande talento imaginativo e ainda hoje admirado por muitos, que
cionalismo e a sua complexidade barroca. Porém, nos anos 70 e 80, quando escreveu sobre as frustrações de personagens urbanas de classe baixa, num estilo
o milagre económico brasileiro começou a falhar e depois de a ditadura ter expressionista grotesco raiado de humor absurdo.

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HISTORIA DA AMKRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E : D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S F. C U L T U R A I S II

No Equador impôs-se uma talentosa escola de realistas-sociais, maioritaria- ao positivismo liberal voltando-se para o regionalismo e o realismo social, ten-
mente comunistas, na cidade portuária de Guayaquil, a segunda maior cidade e dência que persistiria até finais dos anos 50 e que continuou a ser uma impor-
o centro da economia de exportação do país. Enrique Gil Gilbert, Demetrio tante característica da literatura brasileira. O regionalismo foi estimulado pelos
Aguilera Malta e o excelente escritor de contos José de Ia Cuadra concentraram estudos na área da história e da sociologia de Gilberto Freyre, que organizou um
a sua atenção nos trabalhadores das docas e das plantações. O equatoriano mais congresso regionalista no Recife em 1926, e cujo trabalho tomava a sociedade
famoso foi Jorge Icaza, que combinou realismo social com indigenismo na obra patriarcal da economia de plantação do Nordeste como a fonte dos valores bra-
que é hoje um clássico, Huasipungo (1934), um romance cru sobre a expropria- sileiros tradicionais, partindo depois para a descrição do afrouxamento dos laços
ção das terras de uma comunidade índia pobre por um latifundiário sem escrú- raciais e sociais na grande cidade com o advento da república liberal. A influên-
pulos aliado a uma companhia petrolífera estrangeira. À semelhança de Raza de cia de Freyre foi tremenda; desempenhou para o Brasil um papel semelhante ao
bronce (1919) de Alcides Arguedas, Huasipungo termina com um relato do do mexicano José Vasconcelos na América hispânica - o seu mito de tolerância
fracasso dos índios, que não resistem às incursões da economia de exportação racial na sociedade esclavagista colonial permitiu que os seus compatriotas
capitalista. pusessem de lado o pessimismo em torno da questão da raça e que aceitassem a
Depois de Icaza, o romance indigenista tornou-se mais politizado. O peruano miscigenação como um fenómeno positivo, ao mesmo tempo que os reconci-
Ciro Alegria, apoiante do partido APRA, publicou El inundo es ancho y ajeno liava, até certo ponto, com a sua herança ibérica.
(1941), que teve reconhecimento internacional, e que também abordava os temas Escritores dos anos 30 como Raquel de Queirós, João Américo de Almeida
da expropriação de terra e da sobrevivência índia numa economia capitalista. e José Lins do Rego evocaram a vida nas plantações de açúcar com um misto de
Mas a questão fundamental mantinha-se: deveria o mundo índio resistir, a todo nostalgia pela ordem paternalista e ultraje perante a degradação da escravatura e
o custo, ao desenvolvimento económico, ou deveria encontrar formas de se adap- a hostilidade impiedosa do mundo natural. Jorge Amado tornou-se o romancista
tar à nova realidade? Uma das razões por que era tão difícil responder a esta mais vendido do Brasil graças às suas narrativas poderosas, que sentimentaliza-
questão residia no facto de os escritores indigenistas serem falantes de espanhol vam, de um modo inteligente, a cultura oprimida dos negros do Nordeste e dos
cultos, e não conseguirem evitar impor as suas ideias aos índios sobre os quais camponeses pobres do sertão. O sertão foi o cenário do melhor romance regio-
escreviam. Poderia um escritor moderno penetrar na consciência de um índio? nalista, o clássico Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, que descrevia,
E mesmo que tal fosse possível, para quem estaria a escrever? Eram estes os numa prosa crua e contida, as tribulações de uma família de camponeses do
problemas que obcecavam José Maria Arguedas, um mestiço peruano que cres- interior em tempos de seca. Com efeito, mesmo nos anos 50, quando o regiona-
ceu a falar quíchua e que durante toda a sua carreira se debateu com os conflitos lismo já começara a perder a força, o sertão, e também o Nordeste e a selva
entre as culturas índia e espanhola. Enquanto estudante do folclore quíchua, continuariam a ser os lugares onde os escritores brasileiros regressariam imagi-
Arguedas foi o primeiro dos indigenistas a tentar retratar os índios segundo os nativamente para contrariar as pretensões modernizadoras das elites governantes
termos destes últimos. Na sua coletânea de contos Agua (1935), escreveu um de São Paulo e do Rio de Janeiro.
espanhol com inflexões de quíchua. O romance Yawar Fiesta (1941) incorporou
mitos e rituais andinos na narrativa. Para um público de classe média, esta opção
tornava o texto misterioso e agradável; o efeito influenciou aquilo que mais tarde O Modernismo na Ficção Narrativa
seria designado «realismo mágico».
Não foi Arguedas quem estabeleceu a ligação entre indigenismo e moder- A revolução modernista passou da poesia à ficção narrativa em Paris, Bue-
nismo literário europeu nos anos 40. Isso ficou a dever-se a escritores mais nos Aires e São Paulo. Argentinos como Borges, Macedonio Fernández, Roberto
experimentais que tinham absorvido o surrealismo em Paris. Em romances Arlt e Leopoldo Marechal tinham, a partir dos anos 20, ido além da experimen-
posteriores, Los rios profundos (1958), Todas Ias sangres (1964) e El zorro de tação técnica para questionarem os pressupostos do realismo e da autoria, intro-
arriba y el zorro de abajo (1970), Arguedas começou a explorar a sua própria duzindo a fantasia nas suas narrativas para contrariar a ideia de que a ficção só
relação atormentada tanto com a cultura índia como com a cultura espanhola, podia refletir a realidade ou que o escritor podia agir como uma fonte autoritária
empregando técnicas retiradas das descobertas de outros escritores. da verdade. Enquanto viviam em Paris, dois romancistas que anteriormente se
Apesar de o modernismo ter produzido, no Brasil, um forte impacto na poe- haviam dedicado a temas nativistas, o guatemalteco Miguel Angel Asturias e o
sia e nas artes visuais no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, os romancistas reagiram cubano Alejo Carpentier, entraram em contacto com o surrealismo e viram como

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E ! D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S li

o uso de crenças e mitos primitivos poderia criar um efeito de maravilhoso na Só na década de 60 os traços tipicamente joycianos - fundos míticos, narração
ficção, representando ao mesmo tempo a realidade cultural heterogénea da que se pretende como o fluxo do pensamento e uso intensivo de jogos de pala-
América Latina. vras - seriam utilizados por muitos latino-americanos talentosos para expressar,
Todavia, a primeira experiência do que viria a ser conhecido como realismo e ainda assim para ligar, em «romances totais» a sua experiência da caótica
mágico ocorreu no Brasil. Tratou-se do notável romance de Mário de Andrade urbanização que marcou aquele período.
Macunaíma (1928), em que as viagens de um versátil herói popular pelo Brasil Em meados dos anos 40, os recursos técnicos do contador de histórias latino-
são recontadas numa narrativa estranha e desarticulada, com elementos de fanta- -americano tinham sido enriquecidos por estas influências, e algumas obras
sia poética e sugestão mítica. Macunaíma surgiu, no entanto, muito antes do seu decisivas foram publicadas na década seguinte: os livros de contos e os ensaios
tempo - Andrade era um escritor urbano sem experiência direta do interior bra- irónicos de Borges, Ficciones (1944) e El Aleph (1949); a epopeia urbana de
sileiro, pelo que a sua obra foi encarada como uma fantasia literária de outro Leopoldo Marechal, Adán Buenosayres (1948); romances de um realismo
mundo; teve poucos seguidores no Brasil e passou quase despercebida fora dos mágico seminal ou romances históricos, como El seiior presidente (1946) e
círculos de vanguarda até aos anos 70, quando a influência do realismo mágico Hombres de maíz (1949) de Angel Asturias, e El reino de este mundo (1949)
da América hispânica revelou a importância histórica de Macunaíma a uma gera- e Los Pasos perdidos (1953) de Alejo Carpentier; as distopias faulknerianas de
ção mais jovem de escritores brasileiros, que foram cativados pelo seu tema Juan Rulfo, El llano en liamos (1953) e Pedro Párcmio (1955), este último um
fundamental de identidade múltipla. estudo cruelmente ambivalente da dependência patriarcal. No Brasil, Sagarana
Os desenvolvimentos modernistas na ficção deveram-se em larga medida à (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956), cie João Guimarães Rosa, foram
influência de escritores norte-americanos dos anos 20 e 30. Com John dos Pas- aclamados como obras-primas da escrita modernista. Todas estas obras resu-
sos, os latino-americanos ficaram a conhecer instrumentos narrativos inspirados miam e reformulavam os principais temas do século anterior, ao mesmo tempo
em técnicas cinemáticas e na reportagem jornalística, que refletiriam a experiên- que estabeleciam padrões para a maior parte da ficção que seria escrita posterior-
cia desarticulada da vida nas grandes cidades. Hemingway mostrou-lhes como mente.
aparar os floreados retóricos para conseguir um estilo duro, coloquial. Uma De todos os grandes latino-americanos, Jorge Luis Borges foi o mais excên-
influência mais substancial e duradoura foi a de William Faulkner, cuja obra trico e, todavia, o mais moderno. A uma primeira análise, a sua obra parece
ajudou a introduzir pontos de vista múltiplos, o monólogo interior e a narração absolutamente desfasada das preocupações americanistas dos seus pares, aspi-
como fluxo do pensamento. A visão sombria e complexa de uma sociedade rando, antes, a equiparar-se aos clássicos da tradição europeia. Com raízes nas
patriarcal, racialmente dividida e em decadência, produziu um forte impacto em histórias de aventuras exóticas de autores de expressão inglesa que lia na infân-
escritores de toda a América Latina - desde o uruguaio Juan Carlos Onetti, os cia - G. K. Chesterton, Robert Louis Stenvenson, Kipling -, a imaginação de
mexicanos José Revueltas, Agustín Yánez e Juan Rulfo, ao jovem colombiano Borges foi estranhamente estimulada pela filosofia de Berkeley e de Hume, de
Gabriel Garcia Márquez e ao peruano Mário Vargas Llosa. A partir de finais da Schopenhauer e de Nietzsche. De Berkeley e de Hume retirou a sua premissa
década de 30, as traduções de textos de Faulkner começaram a ser publicadas nas básica - a natureza subjetiva de todo o conhecimento e de toda a experiência; de
revistas literárias de Buenos Aires, especialmente na Sur (Borges traduziu The pensadores voluntariosos como Schopenhauer e Nietzsche extraiu o seu sentido
WildPalms em 1940), e foi também através destas revistas que escritores norte- da fragilidade da identidade pessoal, que tanto poderia ser produto da autoafir-
-americanos anteriores, como Herman Melville e Henry James, até então desco- mação como uma mera pretensão de uma qualquer inteligência cósmica. À falta
nhecidos, exerceram influência sobre a nova escrita. de uma verdade objetiva, o homern estava condenado a um jogo sem regras
A maior influência modernista, a longo prazo, foi, possivelmente, a de James definidas e sem um objetivo específico; isto porque se a existência de outros
Joyce. Nos anos 20 e 30, Joyce era conhecido apenas entre os escritores mais seres para além de nós era incerta, a presença de Deus ou de um qualquer
cosmopolitas - Borges e o seu círculo de Buenos Aires, Carpentier e Asturias em demiurgo oculto não podia ser excluída. O ato de escrever era um paradigma da
Paris —, mas raramente era imitado. Só a partir de 1945, ano em que apareceu existência: o autor podia inventai' personagens e enredos, mas seria ele a verda-
(em Buenos Aires, como não podia deixar de ser) uma tradução espanhola de deira fonte das suas invenções, ou essas invenções refletiriam apenas padrões
Ulisses, podemos encontrar uma influência direta. Essa influência torna-se interminavelmente repetidos através da literatura universal? Perante incertezas
evidente na obra Adán Buenosayres (1948), em que é usada uma estrutura mítica tão radicais, o leitor era convidado a questionar a personalidade, o sentido e, em
- inspirada em Inferno, de Dante - para subjugar um ambiente urbano indómito. última análise, a própria realidade.

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O meio escolhido por Borges, para além da poesia, foi aficción - um conto «luz» da comunidade rural - organizando-se o intrincado simbolismo em tomo
ou um pseudòensaio cuja brevidade lhe dava a oportunidade de condensar jogos de dualidades que servem para ligar os episódios soltos, fantasmagóricos, para
mentais em imagens e situações ressonantes. As primeiras ficciones eram fanta- constituir um todo coerente.
sias filosóficas em que, por exemplo, o universo era comparado a uma livraria Hombres de maíz (1949) desenvolve o tema central da obra de Asturias - a
bem organizada mas sem limites, que se recusava a revelar a sua conceção glo- destruição de uma cultura orgânica pelo progresso do capitalismo. A originali-
bal, ou em que os acasos da sorte e do sentido eram comparados a um sorteio dade do romance reside no uso de mitos maias, tanto para estruturar a história
supervisionado por um quadro sombrio de juizes. Sem nunca perderem a sua como para proporcionar à comunidade índia uma defesa espiritual contra os
dimensão filosófica, muitas ficciones, especialmente as de uma fase mais tardia, exploradores brancos. Isto fez de Hombres de maíz uma das primeiras obras de
apresentavam cenários argentinos. Um tema obsessivo era o duelo, o confronto realismo mágico, uma vez que material não-racional é introduzido na estrutura
entre dois rivais pela supremacia - na maioria das vezes, Borges escolhia gaú- do romance como a expressão válida de uma mentalidade alternativa. Em obras
chos ou aventureiros, mas podia também escrever, em tom de provocação, sobre posteriores, Asturias deu uma resposta socialista aos problemas da nação e con-
rivalidades entre senhoras da alta sociedade, entre escritores e até entre os dois tinuou fiel a um estilo realista-mágico. Foi-lhe atribuído o Prémio Nobel em
grandes libertadores Bolívar e San Martin em Guayaquil. O duelo torna-se, na 1967.
verdade, urna metáfora para o eterno desejo humano de afirmar a identidade O encontro de Asturias com o surrealismo, ern Paris, nos anos 20, permitiu-
eliminando um rival (embora Borges gostasse de mostrar, no final, como o ven- -Ihe revolucionar a forma e o conteúdo do romance indigenista. O outro grande
cedor era uma réplica exata da sua vítima). criador do realismo mágico, Alejo Carpentier, também foi inspirado pelo surre-
Na ficção de Borges, as dualidades dividem-se constantemente em unidades alismo em Paris, onde viveu entre 1928 e 1939. Mas foi uma visita ao Haiti, em
apenas para formarem novas dualidades, até ao infinito. Pela sua entrega a este 1943, e a leitura de Spengler que o levaram a rejeitar os «truques literários»
processo, Borges é universalmente moderno; mas a sua obsessão pela unidade e executados pelos surrealistas europeus na sua procura de lê merveilleux, e a
identidade torna-o tão latino-americano como os seus contemporâneos. Afinal, a voltar-se, ern vez disso, para as maravilhas reais que se encontravam por toda a
maioria das ficciones pelas quais Borges é aclamado foram escritas em finais dos parte na América Latina. O escritor tem de captar Io real maravilloso, evidente
anos 30 e nos anos 40, um período em que se assistiu ao colapso do liberalismo no esplendor do mundo natural e especialmente na consciência mágica preser-
clássico na Argentina - o destino da nação estava a tornar-se enigmático ainda vada nas muitas culturas étnicas do continente.
antes de o país entrar num labirinto histórico pela mão de Juan Péron. Mas Carpentier distinguia-se de Asturias, essencialmente, por apresentar a
Com os seus contemporâneos, Borges partilha a nostalgia pelo passado busca de uma consciência una como um problema. Carpentier não se opunha em
(embora não uma mesma versão), e o desejo de ordem e unidade; como a maio- absoluto ao mundo moderno: valorizava o humanismo racionalista do Ilumi-
ria deles, também era branco e de classe média. Mas o que o torna uma exceção nismo, considerando que fora um impulso para a liberdade que justificara a
é o facto de não acalentar a esperança de encontrar uma «cultura integral» única independência latino-americana. Assim, toda a sua obra representa uma busca
na América Latina. Tal era, precisamente, a aspiração de Miguel Angel Asíurias, por um ponto de síntese entre razão e instinto, matéria e espírito. El reino de este
um escritor que, embora branco e aristocrata, tentou penetrar na mentalidade dos mundo (1949), um romance sobre o processo de independência do Haiti, retrata
índios da Guatemala, o seu país de origem, para descobrir uma consciência una a cultura de vudu da comunidade escrava como um agente de libertação, mas, no
que funcionasse como antídoto para a alienação capitalista. final, mostra a sua impotência para resistir ao racionalismo. Los pasos perdidos
Asturias começou a sua carreira com Lcyendos de Guatemala (1930), em (1953) descreve uma viagem quixotesca, por regiões remotas de um país latino-
que recriava contos do passado colonial e prc-hispânico. Porém, o seu primeiro -americano, realizada por um artista moderno alienado que busca o Santo Graal
romance, El senor presidente (1946), foi iniciado em 1922 e escrito sobretudo de uma consciência integrada, intemporat. Termina, no entanto, com um regresso
era Paris, onde o autor viveu entre 1923 e 1933, ano em que concluiu esta obra. à cidade e corn a aceitação de que o tempo não pode recuar. No seu ambicioso
Extraordinariamente original na linguagem e na estrutura, é um ataque a um romance El siglo de Ias luces (1963), situado no período ilurninista, Carpentier
ditador liberal modernizador (como Estrada Cabrera, da Guatemala, ou Porfirio explora as consequências da Revolução Francesa para três personagens nas
Díaz, do México), e desenrola- se numa cidade de pesadelo onde todas as rela- Caraíbas, procurando, através de um processo muito estrutural, criar um padrão
ções humanas foram degradadas pelo capitalismo e pela opressão. Na tentativa de história capaz de conciliar uma dimensão espiritual e uma dimensão material
de escapar a estas forças das trevas modernas, os protagonistas refugiam-se na da experiência.

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HISTORIA DA AMERICA LATINA IDENTIDADE E M O D E R N I D A D E : DESENVOLVIMENTOS L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

Depois deste romance, Carpentier, que após a Revolução regressara para considerados os melhores - cuja ação se desenrola num porto fluvial de provín-
viver em Cuba, não publicou qualquer obra de grande envergadura durante mais cia imaginário, onde habitam indivíduos desesperados por viver uma ilusão que
de uma década. A ficção que surgiu nos anos 70 foi influenciada pelo marxismo, compense a falta de sentido da existência.
embora Carpentier continuasse a ser ura escritor modernista, fundamentalmente No Brasil, a ficção narrativa manteve-se, de um modo geral, regional e rea-
interessado na consciência individual por oposição à realidade social. O seu lista. Contudo, João Guimarães Rosa, o proeminente autor dos anos pós-guerra,
Recurso dei método (1974) é um romance sobre um ditador típico, que admira a utilizou técnicas modernistas no tratamento do grande tema regionalista do ser-
Europa e despreza o «barbarismo» do seu próprio país, que governa com mão de tão, o interior selvagem e remoto do Brasil. Com a publicação da sua primeira
ferro até ser derrubado por uma revolta chefiada por comunistas. Com La con- coletânea de contos, Sagarana (1946), Rosa impôs-se como um autor de rara
sagración de Ia primavera (1978), procurou unir numa grande síntese todos os criatividade, combinando prosa poética e especulação metafísica na sua evocação
seus principais temas, para mostrai' como estes encontravam uma solução posi- de uma região perdida habitada por aventureiros e camponeses analfabetos. Pas-
tiva com o triunfo da Revolução Cubana. sados dez anos, publicou sete narrativas sob o título Corpo de liiiile; o cenário
A produção do mexicano Juan Rulfo foi, pelo contrário, muito escassa - um era o mesmo, mas as experiências com a linguagem e a técnica foram, por vezes,
romance e uma coletânea de contos -, mas, pela forma e pelo conteúdo, revelou- ao ponto de tornar o texto hermético. No mesmo ano, publicou a sua obra-prima
-se de uma importância fundamental. Em Pedro Páramo (1955), Rulfo criou um Grande Sertão: Veredas (1956), uma epopeia joyciana que invertia curiosamente
mundo fictício que expunha a ambivalência do patriarcado latino - odioso pela o ponto de vista da obra-prima que Euclides da Cunha escreveu na viragem de
opressão que exercia sobre o espírito individual, mas desejado por oferecer pro- século, Sertões (1902): ern vez do liberal urbano civilizado que c levado a um
teção e uma espécie de identidade social. As personagens estão todas mortas, e estado de perplexidade pelas hordas supersticiosas do sertão, deparamo-nos com
habitam a narrativa como uma amálgama de vozes e ecos que evoca o regime do Riobaldo, um habitante do interior bárbaro de Minas Gerais, que dirige a sua
caudilho Comala na cidade com o mesmo nome. Escrito bastante depois de a narrativa a um ouvinte implícito, um habitante culto da cidade, que representa,
revolução ter sido institucionalizada por uma elite modernizadora, o pessimismo talvez, o leitor moderno «civilizado». Rosa assume, desta forma, a voz de um
desencantado do romance reflete uma sensação de traição: a ordem pós-revolu- homem que vive efetivamente num mundo tradicional povoado por vaqueiros,
cionária não trouxe liberdade nem justiça; a autoridade paternalista persiste, mas bandidos, pregadores milenaristas e outros forasteiros, todos eles reduzidos pelo
numa forma pervertida, que torna a comunidade social uma sombra do inferno e vazio imenso do sertão, o espaço simbólico onde as personagens procuram o seu
não um microcosmo de Deus no paraíso. Numa obra literária económica e de destino e a sua salvação, e para onde o leitor é imaginativamente atraído.
grande mérito técnico, Rulfo captou a situação da América Latina em meados do Como foi apontado pelos críticos, a narrativa multifacetada, escrita numa
século — dividida entre uma sociedade rural em crise e um mundo moderno que prosa poética repleta de neologismos, distorções sintáticas e vocabulário regio-
se torna aterrador pelo seu progresso insondável. nal (foi publicado um glossário para quem falava português), lembra o romance
Estes primeiros escritores do realismo mágico descrevem comunidades medieval; contudo, apesar de passarem por provações intermináveis, esles cava-
rurais em conflito com um capitalismo invasor. Nas duas grandes cidades do rio leiros errantes do sertão não conseguem encontrar um destino certo - tudo con-
da Prata - Buenos Aires e Montevideu -, os horrores do capitalismo urbano tinua ambíguo, dual, por resolver. Estamos perante um mundo tradicional pertur-
impuseram-se a escritores que já não podiam evadir-se para a comunidade rural. bado pela dúvida - Riobaldo não sabe se fez um pacto com o diabo, se Deus
Eduardo Mallea escreveu sobre a angústia e a solidão num mundo que perdeu os existe, onde a vida o conduz. Se se trata de um romance de cavalaria atual, a obra
seus apoios espirituais. Ernesto Sábato explorou estados de loucura e maldade, foi permeada por um agnosticismo moderno, e funciona, assim, como uma metá-
retratando indivíduos alienados pelo racionalismo científico do mundo moderno. fora literária para o Brasil - um país confusamente diverso, fundamentalmente
Nas obras de ambos os romancistas, o estado psicológico das personagens pode tradicional e, todavia, perturbado por uma modernidade invasiva, pois enquanto
ser entendido como um microcosmo do mal mais abrangente que atormentou a nação tem de abranger extremos culturais, arranha-céus bem como tribos da
Argentina dos anos 40 e 50. O uruguaio Juan Carlos Onetti concebeu um estra- selva na Idade da Pedra.
nho mundo fictício onde as personagens são oprimidas pela angústia existencial, A literatura brasileira posterior oscilou entre estes poios, mas o golpe de
tendo perdido a fé em toda a forma de verdade. Com La vida breve (1950), Estado de 1964, que estabeleceu uma ditadura militar durante cerca de 20 anos
Onetti inaugurou o seu famoso ciclo faulkneriano, a «Saga de Santa Maria», uma e que impôs a censura durante a maior parte desse período, causou o empobreci-
série de romances - dos quais El astillero (1961) e Juntacadáveres (1964) são mento da vida cultural. Clarice Lispector, uma escritora talentosa que se tornou

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IDENTIDADE E MODERNIDADE: DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS U
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

escritores das décadas anteriores se tornaram tão conhecidos - nem sequer


célebre no começo da década de 60, cora romances come Laços de Família
Carpentier, que continuou a escrever durante os anos do boom, nem Asturias,
(1960), A Maçã no Escuro (1961) e A Paixão Segundo G. H. (1964), viu no
apesar de ter sido galardoado com Prémio Nobel em 1967. As figuras no centro
ambiente urbano um cenário para explorações existencialistas da consciência de
do boom foram jovens romancistas - Júlio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel
protagonistas maioritariamente femininas. Autran Dourado confrontou o campo
Garcia Márquez e Mário Vargas Llosa — cuja obra conquistou admiração pelo seu
e a cidade em romances como Uma Vida em Segredo (1964), Ópera dos Mortos
poder e originalidade. Outros romancistas forarn atraídos pelo círculo mágico,
(1967) e O Risco do Bordado (1970), em que o cenário é Minas Gerais, a sua
mas nenhum alcançou a fama dos quatro atrás referidos. A que se deveu este
região de origem. António Calado teve problemas com as autoridades por causa
interesse inédito na escrita latino-americana?
dos seus romances Quarup (1967), que descrevia as consequências do golpe
Até certo ponto, assinalou a entrada das principais editoras espanholas no
militar na região pobre do Nordeste, e Bar Don Juan (1970), um ataque satírico
mercado internacional do livro. A editora Seix Barrai em Barcelona, cidade onde
à repressão policial e ao terrorismo das guerrilhas em finais dos anos 60.
Vargas Llosa e Garcia Márquez estavam a viver no começo da década de 60,
A sátira e a paródia foram as armas favoritas de uma geração mais jovem de .
mostrou-se particularmente ativa na promoção dos novos escritores. A desco-
escritores que passou pela experiência do governo militar dos anos 60 e 70. Em
berta de Borges por críticos franceses, num período em que a França estava
1967, uma companhia de São Paulo encenou a peça de Oswald de Andrade O Rei
fascinada como o seu nouveau roman experimental e com a nouvelle critique de
de Vela (1937), que levou à redescoberta do modernismo da década de 20. (Esta
Roland Barthes, estimulou o interesse por autores latino-americanos como Júlio
reavaliação foi seletiva: celebrou os escritores do Pau-Brasil mas ignorou o
Cortázar, que vivia em Paris havia muitos anos. Depois, a Revolução Cubana de
grupo ultranacionalista Verde-Amarelo, que ficara conotado com o fascismo de
1959, com os seus carismáticos jovens líderes, Fidel Castro e Che Guevara,
Plínio Salgado, um dos seus fundadores.) Macunaíma (1928), de Mário de
conquistou o apoio de intelectuais de todo o mundo, que viram no acontecimento
Andrade, deu origem a um influente filme em 1969, realizado por Joaquim Pedro
um exemplo bem-sucedido da luta anti-imperialista de países subdesenvolvidos.
de Andrade (sem parentesco com o escritor). Esta voga da antropofagia dos anos
A crise dos mísseis cubanos de 1961 fez da América Latina uma região de impor-
20 conduziu ao realismo mágico e à paródia. João Ubaldo Ribeiro teve uma
tância estratégica vital para os EUA, e despertou a atenção dos media internacio-
estreia promissora com Sargento Getúlio (1971), embora a sua escrita no âmbito
nais para os assuntos da região. Mas o boom foi mais do que um triunfo de
do realismo mágico só tenha atingido a plena maturidade com o monumental
publicidade; serviu para sublinhar a qualidade intrínseca de obras que estavam a
Viva o Povo Brasileiro! (1984). Em A Festa (1972), Ivan Angelo retratou, com
ser escritas numa parte do mundo ignorada durante demasiado tempo.
um humor cru, a migração para a cidade de camponeses em fuga de um Nordeste
Júlio Cortázar escreveu romances de grande ousadia experimental, dos quais
devastado pela seca. Galvez, Imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, era
o mais influente foi Rayuela (1963), e contos de grande qualidade, que o torna-
uma sátira sobre o imperialismo que tinha a selva como pano de fundo. As flo-
ram conhecido nos anos 50. (Um conto seu foi filmado pelo realizador italiano
restas tropicais da bacia do Amazonas foram o espaço escolhido para obras de
Michelangelo Antonioni como Depois Daquele Beijo, 1966, que se tomou
grande impacto do antropólogo Darcy Ribeiro, que analisou as atitudes equívo-
famoso como um retraio de Londres nos hedonistas Swinging Sixties.) Influen-
cas dos Brasileiros dos tempos modernos para com os aborígenes em Maíra
ciado pelo surrealismo, Cortázar considerava a vida burguesa unidimensional, e
(1977) e Utopia Selvagem: Saudades da inocência Perdida (1982).
a cultura moderna racionalista e repressiva. Ao incorporar engenhosamente a
fantasia na sua ficção, apontava para o «outro lado» da mente, uma realidade
suprimida, para onde o desejo erótico fora banido. Seguindo o seu compatriota
O Boora Hispano-Americano: A Ficção nos Anos 60 e 70 Borges, Cortázar interrogava o processo literário, desmantelando as convenções
da narrativa em gestos exuberantes, com vista a erotizar o ato de contar a história
No início da década de 60, a literatura hispano-americana foi internacio-
encorajando o leitor a mergulhar nos seus textos semiabertos em busca de uma
nalmente aclamada, e as obras de alguns dos seus melhores escritores foram
sempre adiada plenitude de sentido.
consideradas do mais alto nível. Mas o boom, como seria designado, foi bastante
A alienação burguesa do erótico é um tema central na obra de Carlos Fuen-
desigual na atenção dada aos talentos da América Latina. Borges alcançou, mere-
tes, mas ele foi também um perspicaz analista das novas classes médias mexica-
cidamente, reconhecimento internacional, depois de ter partilhado o Prémio
nas, confortavelmente distantes graças ao rápido desenvolvimento dos anos 50 e
Formentor, francês, com Samuel Beckett em 1961, e, de entre os poetas, Pablo
60. La región más transparente (1958) examinava a caótica multiplicidade do
Neruda e Octavio Paz ganharam fama além do mundo hispânico, mas poucos
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HISTORIA PA A M É R I C A LATINA I D E N T I D A D E E MODERNIDADE: D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

México do ponto de vista central de Ixca Cienfuegos, uma infeliz combinação do assim, estranhamente vulneráveis a mudanças de perceção, como que à mercê de
espanhol e do asteca, como o próprio nome sugere. Fuentes revelava aqui duas um qualquer caleidoscópio irregularmente girado pela mão do destino. Os ternas
preocupações constantes e inter-relacionadas - a procura de identidade cultural de Garcia Márquez têm raízes profundas na tradição hispânica - amor frustrado,
e o sacrifício da integridade pela ambição material. Em La muerte de Artemio idealismo quixotesco, honra, lealdade e a força do destino. Uma preocupação
Cruz (1962), o romance que lhe granjeou fama internacional, cria a história central era a condição do fracasso e, mais precisamente, a postura moral a adotar
poderosa de um mestiço ilegítimo que se torna um grande magnata da Revolu- em relação ao mesmo, oscilando as personagens entre uma nostalgia que lhes
ção. Fuentes põe o dedo no trágico paradoxo da modernização: Artemio Cruz permitia fugir à realidade e uma afirmação estóica de integridade pessoal.
pode ser uma personificação odiosa da Revolução traída, mas é também uma Todos estes temas foram eximiamente incluídos em Cem Anos de Solidão
figura patética, alguém que optou por sobreviver às suas terríveis origens (1967), talvez o melhor e certamente o mais famoso romance latino-americano
subindo até ao topo à custa da integridade pessoal. Em obras posteriores, nome- alguma vez escrito. A obra conta, numa narrativa pseudomítica, a fundação, o
adamente em Cambio de piei (1967), Fuentes revela uma ambiciosa prontidão crescimento, o declínio e a destruição da vila de Macondo, através da expe-
para explorar o labirinto da psique da classe média em relação à história do riência de sucessivas gerações dos Buendías, a família que a fundou. Embora
México. Terra Nostra (1975) era uma fascinante súmula ficcional de nada menos Macondo seja o resultado de uma revolta contra a superstição e a autoridade
do que três séculos de história hispânica, na qual o autor procurava uma síntese aceite, o seu patriarca acaba por desistir da busca da «civilização» e dos «bene-
entre a unidade repressiva de Filipe II de Espanha e a liberdade pluralista que fícios da ciência», sucumbindo a uma profunda nostalgia do passado, estabele-
esta negava. cendo um exemplo fatídico para a sua prole, cujas rebeliões e bizarrias resultam,
A exuberância da imaginação de Carlos Fuentes tinha paralelo em Mário invariavelmente, num terrível isolamento. Perseguida pelo espetro cio incesto, a
Vargas Llosa, que em 1963, aos 26 anos de idade, ganhou um importante prémio família distancia-se cada vez mais da realidade, até que um ato de paixão entre
literário com La Ciuad y los perros (1962), um romance sobre uma academia dois Buendías faz com que uma maldição ancestral se abata sobre a casa.
militar que se debruça sobre as relações complexas entre as classes sociais em O romance pode ler-se como uma sublime metáfora de fracasso, o fracasso
Lima, com todo o entusiasmo e o suspense de um thriller. O imenso talento de da história independente da América Latina. Mas é, ao mesmo tempo, uma
Vargas Llosa enquanto narrador, a sua frieza flaubertiana, que apenas acentua a comédia de erros analisada corn distanciamento olímpico por um narrador domi-
pungência das dificuldades das suas personagens, e a originalidade da sua téc- nante. Por último, o romance é um triunfo de estilo - uma extraordinária mistura
nica de construção polifónica fizeram dele o principal escritor social e político de exuberância barroca e ironia doseada. O seu modo narrativo ganhou fama em
da América Latina. todo o mundo como o principal exemplo do realismo mágico; mas tratava-se, em
Em La casa verde (1966) e Conversación en Ia catedral (1969) - dois estu- larga medida, de realismo mágico num registo cómico, alternando com indife-
dos brilhantes da realidade multifacetada do Peru, um país fragmentado por rença entre facto e fantasia para dar conta da desorientação ingénua de persona-
geografia, raça e classe —, empregou técnicas que se afastavam das constrições gens que se deparam com um mundo que não compreendem. Mas o seu humor
lineares do romance realista para melhor conseguir o alcance e a densidade iró- nunca é paternalista; expressa, antes, uma certa compaixão, como se o próprio
nica de uma comédie humaine. E apesar de ter retratado a sociedade peruana autor tivesse partilhado daquele estranho estado mas tivesse conseguido escapar
como corrupta de alto a baixo, escreveu romances cómicos como Pantaleão e as às consequências. O romance relata, com efeito, a fuga de Macondo, em devido
Visitadoras (1973) e 77a Júlia e o Escrevedor (1978), em que os temas da corrup- tempo, de um tal Gabriel Márquez; a sua evasão permite-lhe olhar para trás e
ção, da hipocrisia e do idealismo foram tratados num espírito mais leve, satírico. narrar o processo através do qual os Buendías se bloquearam num ciclo de des-
O mais famoso de todos estes escritores e um dos maiores artistas da narra- tino que os conduziu à destruição. E assim, perto do final, encontramos indícios
tiva latino-americana foi Gabriel Garcia Márquez. Jornalista de profissão e a de uma libertação, uma insinuação de liberdade, mas uma liberdade arduamente
certa altura estudante de realização cinematográfica em Roma, ganhou reputação alcançada, cujo testemunho maior é esta sublime ohra de arte.
em finais dos anos 50 e princípios dos 60 como escritor de excelentes novellas e A obra de Garcia Márquez não era inteiramente característica da nova
contos. Famosas pelo seu estilo contido e desapaixonado, e quase sempre situa- escrita. O seu mundo fictício era rural e provincial, retratando uma sociedade
das na vila fictícia de Macondo, um lugar remoto de clima tropical na costa tradicional que começava a sentir o impacto da modernidade. Nesta perspetiva,
caribenha da Colômbia, o seu país de origem, estas primeiras obras revelavam representa o culminar da ficção produzida entre os anos 30 e os 50, modernista
um mundo onde os valores morais eram sentidos de modo intenso mas, ainda como regionalista. Mas a escrita do boom eram predominantemente baseada na

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E ! D E S E N V O L V I M E N T O S LITERÁRIOS E CULTURAIS II

cidade, e os seus mentores foram Cortázar e Carlos Fuentes, sob a tutela não traição própria da paródia, pois o autor homossexual é um avatar da Mulher-
solicitada de Borges. A experimentação e os jogos linguísticos joycianos esta- -Aranha - o autor propõe-se envolver o romance popular em ficções complexas,
vam na ordem do dia. O preconceito contra o capitalismo moderno era ainda astutas, mas vê-se fatalmente atraído para as suas simplicidades tranquili-
aparentemente forte, mas, ao contrário dos escritores dos anos 30 e 40, os roman- zadoras.
cistas do boom procuravam uma consciência integral, não na comunidade rural Puig estabeleceu uma ligação entre ficção séria e cultura popular moderna
ou no indigenismo, mas na contracultura da libertação sexual, da música rock e que se revelou extremamente frutuosa, abrindo novos campos de interesse para
da revolta individual que surgiu nos anos 60. Os seus alvos favoritos eram as o romancista contemporâneo. Com efeito, nas cidades em expansão, a literatura
velhas oligarquias proprietárias de terra e a elite modernizante de executivos e confrontou-se com outros e mais poderosos meios de comunicação - rádio, tele-
tecnocratas, sendo muitos destes autores descendentes dissidentes das referidas visão, cinema, música pop, revistas e banda desenhada. A partir dos anos 50, de
classes. um modo geral, as séries de melodramas na rádio e na televisão - as radionove-
José Donoso analisou a má-fé das classes altas chilenas, fazendo uso da las e, mais tarde, as telenovelas - tornaram-se a dieta cultural básica do grosso
fantasia e de reflexividade literária em romances aclamados como El obsceno da população urbana em toda a América Latina. Tratava-se de uma manifestação
pájaro de Ia noche (1970) e Casa de Campo (1978), para reproduzir as evasões do novo capitalismo urbano, que agora regia a vida da maioria da população -
de consciências burguesas inquietas, num mundo interior caótico e isolado, que uma tendência impulsionada pelo consumidor, assumidamente vulgar e pouco
por vezes se aproximava da loucura. O seu compatriota Jorge Edwards também diferente da cultura popular de outras partes do mundo. Puig descobrira uma
criticou as hipocrisias atormentadas das classes altas libertas das amarras dos forma de partilhar estes fenómenos culturais modernos enquanto refletia critica-
valores tradicionais. O peruano Alfredo Bryce Echenique recolheu um certo mente sobre eles. Outros romancistas começaram a ver possibilidades semelhan-
humor melancólico das farsas da haute burgeoisie em Un mundo para Julius tes ao longo das décadas de 70 e 80, incluindo escritores do boom, como Vargas
(1970) e Tantas veces Pedro (1977). Llosa, Carlos Fuentes e até Garcia Márquez.
Em meados dos anos 60, surgiu no México La Onda, uma «nova vaga» de Por estranho que pareça, o entusiasmo lúdico foi o selo da escrita cubana,
escritores experimentais - Gustavo Sainz, José Agustín, Fernando dei Paso, onde o elemento homossexual foi bem vincado. José Lezama Lima, católico,
Salvador Elizondo - que, como beneficiários de uma rara estabilidade pós- homossexual e poeta, escreveu uma extravaganza (composição fantástica) inti-
-revolucionária, se entregaram à escrita de ambiciosos romances à Ia Carlos tulada Paradiso (1966), um romance de difícil descrição - sem intriga, discursi-
Fuentes, caracterizados por uma ironia cómica, jogos de palavras e mitificação vamente poético, repleto de simbolismo e de perseguições eróticas de uma uni-
joyciana; eram tentativas de combater a monstruosidade da Cidade do México, dade transcendente. Guillermo Cabrera Infante foi reconhecido como um escritor
então uma metrópole cada vez mais vasta e parcialmente rica, com ligações de primeiro plano após a publicação de Três tristes tigres em 1967, uma recor-
duvidosas ao passado violento do país. dação cómica da Havana pré-revolucionária, em que o exercício maníaco do
Foi, no entanto, o argentino Manuel Puig que emergiu como o romancista trocadilho evoca um mundo de divertimento anárquico e de aventuras sexuais.
mais original a seguir às principais figuras do boom dos anos 60. Puig foi o pri- Este mesmo mundo é celebrado no semiautobiográfico La Habana para un
meiro escritor hispânico a usar conscientemente uma sensibilidade efeminada na infante difunto (1979). Uma terceira figura proeminente foi Severo Sarduy,
paródia, explorando, ainda assim, os recursos da cultura de massas. Romances que, residindo em Paris, foi apadrinhado por Roland Barthes e pelos intelectuais
como La traición de Rita Hayworth (1968), Boquitas pintadas (1969) e The Tel Quel; homossexual e barroco como Lezama, Sarduy encarava a arte como
Buenos Aires Affair (1973) estão repletos de alusões a telenovelas, thrillers, algo quase inútil, que tinha por línica função advertir para o vazio subjacente à
canções populares e cinema. As personagens de Puig entregam-se a fantasias aparente permanência das coisas. Deliberadamente efeminadas e profusas em
românticas que são o seu refúgio contra uma realidade insuportável. O romance alusões eruditas, as principais obras de Sarduy - Gestos (1963), De donde son
mais representativo deste autor é O Beijo da Mulher Aranha (1976), que foi bem los cantantes (1967), Cobra (1972), Maitreya (1978) - são a quinta-essência da
convertido num premiado filme de Hollywood realizado pelo argentino Hector autorreferência estetizante que caracterizou tanto do que se escreveu durante o
Babenco. É a história de um homossexual que partilha uma cela com um guerri- boom.
lheiro urbano trotskista, a quem acaba por seduzir e por denunciar às autorida- Esta literatura cubana de polivalência e jogo foi produzida por exilados ou
des. O que se verifica nas relações humanas sucede também com os géneros dissidentes do regime de Castro, sem dúvida como reação à conformidade exi-
literários: a assimilação do vulgar por Puig é tanto um ato de amor como uma gida pelos comissários da Revolução. Pretendia frequentemente ser subversiva:

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Cabrera Infante começou por ser funcionário do Estado, mas um descontenta- Os Anos 70: Liberdade, Autoridade e o Estado
mento crescente levou-o a abandonar Cuba e a acabai- por se estabelecer eni
Londres, de onde lançava os seus jogos de palavras ao monólito castrista. Dissi- A discussão sobre a liberdade artística atingiu o seu ponto culminante em
dência mais dolorosa foi a de Reynaldo Arenas; filho de camponeses, era um 1971 com a detenção, em Cuba, do escritor Heberto Padilla, por ter produzido
homossexual intransigente e de um pessimismo irredutível quanto à condição obras ideologicamente corruptas, e com a sua posterior confissão pública, em
humana. O seu romance realista-mágico El mundo alucinante (1969) desagradou que se dava como culpado de subversão. A irada condenação que Fidel Castro
ao regime e contribuiu para o seu posterior exílio em Nova Iorque. A obra con- dirigiu aos intelectuais «liberais burgueses» em abril desse mesmo ano traçou
siste num relato fictício da carreira do monge mexicano e proeminente defensor uma linha entre os apoiantes leais da autoridade revolucionária e aqueles que
da independência Servando Teresa de Mier, descrevendo o seu desapontamento punham a sua liberdade pessoal acima dos problemas concretos das massas.
com os ideais iluministas de liberdade e razão, que resultam em distorções gro- O resultado foi uma divisão nas fileiras dos escritores latino-americanos.
tescas quando transpostos para a América hispânica. Outro romance de grande Antes deste episódio, tinha havido debates intermitentes sobre compromisso
importância, Otra vez, el mar, foi publicado em 1982, tendo o manuscrito sido político e liberdade artística. Escritores como Garcia Márquez, Vargas Llosa,
clandestinamente levado de Cuba após vários anos de perseguição. É uma obra Fuentes e Cortázar tinham expressado o seu apoio à mudança revolucionária na
francamente antirrevolucionária, centrada num poeta que perde a fé no comu- América Latina, mas insistiam no direito do artista a seguir a sua própria imagi-
nismo. nação; segundo a famosa afirmação de Garcia Márquez, «o supremo dever do
Em Cuba, Edmundo Desnoes mereceu a atenção internacional com Memó- escritor é escrever bem.» Após o caso Padilla, as divergências agudizaram-se.
rias dei subdesarrollo (l 965), um romance sobre a relutância com que urn inte- Cortázar e Garcia Márquez foram os mais distintos defensores da Revolução
lectual aceita a Revolução, e que deu origem a um aclamado filme de Tomás Cubana e, mais tarde, da Revolução Nicaraguana de 1979, enquanto Vargas
Gutiérrez. Outras obras importantes foram escritas por Jesus Díaz, Pablo Llosa, Octavio Paz e Carlos Fuentes começaram a distanciar-se.
Armando Fernández, Miguel Barnet e Roberto Fernández Retamar, embora Estas disputas a respeito da liberdade do artista individual decorreram com
nenhuma tenha despertado um interesse duradouro fora da ilha. um pano de fundo bem sombrio: o derrube do governo marxista democratica-
As divergências relativamente ao regime de Castro não se confinavam ao mente eleito de Salvador Allende, no Chile, em setembro de 1973, a que se
mundo literário. Ao longo da década de 70, assistiu-se a um amplo consenso de seguiu a terrível repressão levada a cabo pelo general Pinochet; o regresso caó-
apoio moral à Revolução entre os escritores e os intelectuais latino-americanos. tico de Juan Pêro n à Argentina, quando se assistia à escalada da «guerra suja»
Não se tratava apenas de um indício de nacionalismo anti-EUA, mas de algo entre o Exército e as guerrilha urbanas; ditaduras militares na maioria das repú-
mais profundo: sentia-se que a Revolução dava resposta às questões de identi- blicas, com recurso a esquadrões da morte para abafar o descontentamento dos
dade e modernidade que haviam estimulado o movimento modernista latino- trabalhadores.
-americano desde os anos 20 - na grande autoestrada que levava a América Latina A resposta criativa ao autoritarismo veio primeiro da esquerda. Em meados
rumo ao capitalismo moderno, a Revolução Cubana parecia ter sido a última da década de 70, apareceram vários romances sobre ditadores, que se inscre-
saída para uma «cultura integral». viam na linha iniciada pelo espanhol Ramón dei Valle-Inclán com o seu romance
Mas o experimentalismo modernista que caracterizou o boom era essencial- sobre um tirano latino-americano intitulado Tirano Banderas (1926), e seguida
mente individualista e baseava-se no direito do artista à liberdade criativa: como por El senor presidente (1946), de Miguel Angel Asturias. Estes romances apre-
conciliar semelhante individualismo com compromisso revolucionário? Tornar- sentavam invariavelmente a ditadura como um fenómeno de direita, como uma
-se-ia cada vez mais difícil evitar a questão depois do desastroso fracasso de defesa reacionária do privilégio, de que havia inúmeros exemplos na América
Cuba ao não atingir a meta de 10 milhões de toneladas de açúcar na colheita de Latina. Alcjo Carpentier, como o seu contemporâneo Asturias, encarava o fenó-
1970, quando Fidel Castro decidira entregar a gestão da economia a estrategos meno como uma manifestação de caudilhismo clássico. O seu Recurso dei
soviéticos ortodoxos, e depois de o próprio Estado se ter consolidado segundo o método (1975) retratava as ditaduras em termos personalistas, enquadrando-as
modelo comunista da Europa de Leste. Este apertar da disciplina pôs fim a mui- na tradicional dialética entre «civilização» e «barbárie», o que fazia que o
tas ilusões românticas relativamente à criação de uma sociedade livre e igualitá- romance parecesse alheado das brutais tecnocracias militares dos anos 70. Em
ria única na América Latina. El otono dei patriarca (1975), Garcia Márquez elaborou um discurso realista-
-mágico que abarcava toda a mentalidade do patriarcado, mostrando de forma

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA IDENTIDADE E M O D E R N I D A D E : DESENVOLVIMENTOS L I T E R Á R I O S E CULTURAIS II

brilhante, através da orquestração de vozes narrativas, como as próprias pessoas cultura política hispânica - e, além do mais, nem todos os ogres eram tão filan-
eram cúmplices do seu opressor, numa simbiose doentia que paralisava o corpo trópicos como o mexicano: nos anos 70, o terrorismo de Estado atingiu propor-
ções escandalosas nas ditaduras militares de Argentina, Chile, Brasil, Uruguai e
político.
Mas de entre os romances sobre ditadores, o mais aclamado foi Yo el supremo muitas outras repúblicas. Nem mesmo Cuba, que era ainda a grande esperança
(1974), de Augusto Roa Bastos, que, como opositor ao general Stroessner, que da esquerda, podia ser ilibada da acusação de autoritarismo, pois na esteira do
governava o Paraguai desde 1954, se encontrava numa posição lamentavelmente caso Padilla surgiram novos indícios de negação sistemática de direitos civis
favorável para analisar a tirania. O ditador em questão era o Dr. Francia, o grande básicos, de perseguição de homossexuais e dissidentes políticos, e de outras
déspota paraguaio do período pós-independência. Tendo escrito um excelente restrições no âmbito das liberdades individuais.
romance indigenista, Hijo de hombre (1960), Roa Bastos pôde retirar proveito À medida que a década de 70 se aproximava do fim, a vontade popular
das experiências do boom dos anos 60 para estender a sua crítica do autorita- inclinava-se cada vez mais para a democracia, em toda a América Latina. Por
esta altura, dada a violação sistemática de direitos humanos em muitas partes do
rismo à própria noção de autoria.
Ao longo da década de 70, os escritores que se antagonizaram com Castro continente e verificando-se que as lutas de guerrilha tinham, em quase toda a
permaneceram num estado de confusão ideológica. Isto era indício do profundo região, levado a uma situação de violento impasse, os princípios básicos do libe-
descrédito das ideias liberais e democráticas que se fez sentir entre a elite inte- ralismo político passaram a ser valorizados, mesmo pela esquerda radical - direi-
lectual a partir dos anos 20, aproximadamente: depois da desilusão com o socia- tos civis garantidos, o Estado de direito, eleições livres e, acima de tudo, o facto
lismo revolucionário, parecia não haver outro destino possível para além da de os governantes terem de responder perante as pessoas que deviam servir.
paródia e do jogo linguístico subversivo. Foi esse o caminho seguido por dissi- Este movimento popular generalizado a favor da democracia exerceu uma
dentes cubanos como Cabrera Infante, Arenas, Sarduy e Lezama Lima, enquanto pressão considerável sobre as ditaduras militares do continente e contribuiu
Vargas Llosa, que era, de longe, o escritor realista mais talentoso do continente, para a sua queda no começo da década de 80. Mas a falência do autoritarismo
trocou a crítica social pela comédia e pela sátira ligeira, escrevendo romances latino-americano não se cingia à vertente política - tinha também uma dimensão
espirituosos como Pantaleão e as Visitadoras (1973) e Tia Júlia e o Escrevedor económica. As ditaduras militares caíram porque já não eram capazes de gerir a
(1978). Carlos Fuentes e os escritores de La Onda foram igualmente atraídos economia; 50 anos de desenvolvimento forçado, conduzido pelo Estado, tinham
pelo jogo literário e pela exploração psicológica, embora em Terra N ostra (1975) originado indústrias improdutivas, desemprego crónico, um rápido declínio da
Fuentes tenha abordado obliquamente a questão do despotismo e da intole- sociedade rural tradicional e cidades sobrepovoadas. A mistura explosiva de
rância, relacionando-a como o alegado obscurantismo da Espanha Contra- inflação e estagnação era um problema com que nenhum governo, indepen-
dentemente da sua orientação ideológica, parecia capaz de lidar, muito menos
-Reforma.
Foi no México que a busca intelectual de uma alternativa ao socialismo eliminar.
revolucionário foi iniciada no começo dos anos 70, A sua origem remonta à Desde os anos 20 que o labirinto era um artifício recorrente dos modernis-
indignação gerada pelo massacre dos estudantes em Tlatelolco, em 1968. tas latino-americanos, servindo como imagem de desorientação pessoal.
O poeta Octavio Paz, que na altura era embaixador na índia, demitiu-se do seu Ao longo das décadas inflacionárias de 60 e 70, Estado e sociedade tinham-se
cargo e acabou por regressar ao México. Aí, fundou as revistas Plural (1971-6) também tornado cada vez mais labirínticos: as relações sociais tinham sido
e Vuelta (1976-), e deu início a demanda de uma ética política para a América arrancadas à sua estrutura tradicional e desordenadas pela rápida industrialização
Latina. Iniciou uma censura ao Estado todo-abrangente, especialmente na sua e pela vida na grande cidade; as lealdades políticas começaram a perder sentido
compilação de ensaios políticos, El ogro filantrópico (1971-8), expressão que quando todas as opções pareciam levar à farsa ou à tragédia; até a linguagem
descrevia adequadamente o corporativismo intrinsecamente corrupto mas bene- comum se tornara suspeita, depois de décadas da retórica enganosa de caudilhos
volente do Estado mexicano durante o governo do PRI. Esta crítica do poder e juntas militares. Como podiam os escritores descortinar sentido em sociedades
estatal não responsabilizável foi veiculada de diversas formas por intelectuais tão perturbadas?
mexicanos mais jovens: Enrique Krauze, Gabriel Zaid, Carlos Monsiváis e jor- Nestas circunstâncias, os romancistas recorreram à fantasia para expressar o
nalistas alinhados politicamente, como Júlio Scherer Garcia. * sentido prevalecente de desordem e irrealidade. A interrogação literária da
Tornou-se, no entanto, evidente que a crítica ao poder do Estado não podia própria linguagem tornou-se um exercício terapêutico, porque, no interesse da
confinar-se ao México: tratava-se de um fenómeno com raízes profundas na verdade, era importante para os escritores refletirem sobre o seu meio de comu-

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E ! DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS II

nicação. Assim, a escrita dos anos 60 e 70 foi fortemente influenciada pelas judeu peruano que foge da sociedade moderna e se torna xamã e contador de
obras lúdicas e autorreferenciais de Borges e de James Joyce. Isto não era indício histórias no seio de uma tribo índia da selva amazónica. O autor posiciona-se a
de escapismo burguês, como alegavam os críticos marxistas mais severos; tra- favor da pluralidade e da abertura na abordagem de realidades culturais com-
tava-se, sim, da necessidade vital de enfrentar, se não mesmo de exorcizar, uma plexas.
realidade confusa que a imaginação individual parecia não conseguir apreender Apesar da recuperação das ideias liberais, persistia uma vigorosa cultura
na totalidade. marxista, que mantinha o seu empenho na luta armada. Escritores como Augusto
Roa Bastos (Paraguai), Mário Benedetti (Uruguai), David Vinas (Argentina)
e Eduardo Galeano (Uruguai) prosseguiram com esta linha anti-imperialista.
Anos 80: O Declínio do Patriarcado? Nos anos 80, Galeano, autor de ura bestseller sobre dependência económica e
cultural, Lãs venas abiertas de América Latina (1971), publicou uma trilogia,
Talvez não cause surpresa o facto de Mário Vargas Llosa ter sido o escritor Memória dei fuego (1982-6), em que denunciava a exploração da América
que mais ativamente procurou novos valores políticos para a América Latina da Latina por potências imperialistas após a Conquista espanhola e que traçava a
década de 80. Vinte anos antes, Llosa fora o realista-social que mais se destacara sua busca de uma identidade autêntica. Esta perspetiva radical foi especialmente
no continente, tendo inventado técnicas narrativas extraordinariamente eficazes fértil na América Central, onde a Revolução Nicaraguana estava a ser alvo de
para captar a realidade labiríntica do seu país, o Peru. Durante os terríveis anos ataque e onde as lutas de guerrilha em El Salvador e na Guatemala continuavam
70, recolheu-se numa esfera mais pessoal, mas no início da década de 80 a sua por resolver. O poeta Ernesto Cardenal produziu um novo ciclo de poemas, La
escrita já recuperara a acutilância social e política de outros tempos. Sob a influ- música de Ias esferas (1989), e outros escritores centro-americanos tornaram-se
ência de Karl Popper, de Isaiah Berlin e, em certa medida, de Friedrich von internacionalmente conhecidos. Apareceu ficção política radical da autoria de
Hayek, Llosa redescobriu os princípios do liberalismo, que estavam novamente Ornar Cabezas, de Sérgio Ramírez (o vice-presidente da Nicarágua) e de Manlio
a merecer a atenção do mundo ocidental em finais dos anos 70 e nos anos 80. Argueta, de El Salvador.
O seu romance La guerra delfin dei mundo (1981) foi particularmente sig- Ainda assim, nos anos 80, o marxismo enquanto ideologia atravessava uma
nificativo, recontando o esmagamento da revolta dos Canudos, em 1897, na profunda crise na América Latina, tal como no resto do mundo. Isto porque, para
região pobre do Nordeste brasileiro, o tema da obra-prima de Euclides da Cunha, além de as lutas armadas dos anos 60 e 70 terem tido escassos casos de sucesso,
Os Sertões (1902). Da Cunha, embora liberal e positivista, revelara uma certa e de Cuba e a Nicarágua estarem obviamente em dificuldades económicas, era
ambivalência para com os rebeldes messiânicos «bárbaros» que rejeitavam a todo o sistema de planeamento do Estado que estava a ser posto em causa, e esta
república liberal. Vargas Llosa, apesar de manter essa ambivalência, optou ainda revisão decorria tanto na China como na União Soviética, onde estavam a ser
assim pelo progresso e pela modernização. Tratava-se de uma posição extrema- introduzidos os princípios do mercado e onde vinha sendo encorajado o investi-
mente radical para a América Latina dos anos 80, pois Llosa estava a absolver a mento dos EUA, do Japão e da Europa. Em finais da década de 80, a liberaliza-
herança política do liberalismo do século xix e, implicitamente, a rejeitar a ide- ção política nos Estados comunistas do Leste europeu e na própria União Sovi-
ologia antiliberal nacionalista que era a norma desde os anos 20 e que fora o ética estava a evoluir para uma qualquer forma de democracia, baseada em
contexto, pouco ou nada questionado, do modernismo latino-americano. eleições livres e nas liberdades civis. Como iria todo este processo afetar Cuba e
Este novo radicalismo agora descoberto devolveu a Vargas Llosa os seus a Nicarágua? Até que ponto obrigaria a repensar a típica análise marxista da
poderes de escritor com preocupações sociais e históricas diretas. Em Historia história da América Latina, que assentava na teoria da dependência? Com efeito,
de Mayta (1984), concentrou-se na estratégia de guerra revolucionária seguida a cultura política geral chegara a uma espécie de impasse, pois a habitual reserva
pela sua própria geração, que tanto contribuíra para os sangrentos conflitos dos de ideias parecia esgotada, ao mesmo tempo que as novas receitas, como o libe-
anos 60 e 70, e de que o próprio Peru sofria na altura, com a rebelião da guerrilha ralismo de mercado livre, pareciam demasiado perigosas para aplicar.
do Sendero Luminoso. Em El hablador (1988), abordou o problema complexo O resultado foi uma sensação de deriva e fragmentação, com a sobriedade
da assistência social e da modernização das comunidades índias, um tema alta- por registo dominante: era tempo de reconhecer as perdas e denunciar os horro-
mente sensível no Peru, o baluarte do indigenismo radical desde o tempo de res das décadas anteriores. Uma literatura mais realista, com carácter de testemu-
Mariátegui. O romance lançava um olhar crítico à ansiedade latino-americana no nho, começara já a aparecer após o golpe de Pinochet de 1973 e a sua terrível
que tocava a raízes culturais e identidade nacional, tendo como figura central um sequela; os exemplos mais notáveis foram Soné que Ia nieve ardia (1975) e

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E : D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

Ardiente paciência (1985) de António Skármeía, e Vindas (1981) e La última sobre o ultraje de Tlatelolco, ou como Nada, nadie (1988), sobre o sismo de
cancíon de Manuel Sendero (1982) de Ariel Dorfman. Grande parte deste traba- 1985, estavam bem distantes dos romances do realismo social dos anos 30, na
lho de testemunho foi produzido por escritores socialistas no exílio. Uma série medida em que não impunham um esquema ideológico preconcebido mas tenta-
de hábeis escritores argentinos começou a avaliar, em obras de ficção com um vam, antes, captar a realidade histórica tal como ela afetava os indivíduos. Pode
forte cunho documental, os traumas resultantes da estranha obsessão do país com encontrar-se uma correspondência com o fenómeno dos «novos movimentos
o peronismo desde os anos 40: Ricardo Piglia, Respiración artificial (1980); sociais» que surgiram em muitos países na sequência do problema da dívida de
Osvaldo Soriano, No habrá más pena ni olvido (1980); Mário Schizmann, A Ias 1982. Estes movimentos das camadas populares, que promoviam campanhas
20.25 Ia senora entro en Ia inmortalidad (1981); Marta Traba, Conversación ai locais com vista à melhoria das condições de vida, representavam uma afirmação
sur (l 981); Luisa Valenzuela, Cola de lagartija (1983); o relato do ex-montonero pragmática de direitos por parte do cidadão comum, à margem de ideologias
Miguel Bonasso sobre a guerra suja contra as guerrilhas, Recuerdo de Ia muerte totalizadoras e de partidos populistas; tratava-sc aqui de um pluralismo democrá-
(1984); Tomás Eloy Martínez, La novela de Perón (1985), uma análise da car- tico em ação, ainda não formalizado por uma máquina de Estado nem adotado
reira, da mística e do legado do grande caudilho. por caudilhos. Por analogia, Poniatowska abdicava do privilégio de autor de con-
Esta tendência para uma escrita mais realista tornou-se evidente mesmo trolar a narrativa a partir de cima, e permitia que as pessoas comuns se fizessem
entre autores que haviam sido profundamente influenciados pelo experimenta- ouvir a partir de baixo. O impulso do seu estilo pluralista, objetivo, era antiauto-
lismo do boom. Escritores como Severo Sarduy, Gustavo Sainz e Manuel Puig ritário e, no contexto da América Latina, antipatriarcal, pois, não por acaso,
afastaram-se das complexas ficções joycianas para romances com uma história Poniatowska era mulher e os seus principais sujeitos eram também mulheres.
acessível, seguindo as linhas do cinema, da televisão e do rock. Apesar de terem Com efeito, outra tendência cultural de finais dos anos 70 e dos anos 80 foi
uma postura crítica relativamente à cultura de massas, estes escritores também a entrada de mulheres na cena literária. A brasileira Clarice Lispector tornara-se
se sentiam fascinados pelo seu poder de atração. Com efeito, o novo realismo de conhecida nos anos 60, mas a sua obra mais popular foi A Hora da Estrela,
finais dos anos 70 e dos anos 80 pode ser encarado como uma tentativa de escri- publicada em 1977, ano da morte da autora, em que eram exploradas as reações
tores sérios de lidar com as profundas mudanças que as principais sociedades de uma rapariga pobre do Nordeste rural à sociedade de consumo de São Paulo.
latino-americanas atravessavam desde os anos 50, mas sem retornarem às pana- Nos anos 80, Nélida Pinón tornou-se famosa pelo seu trabalho no âmbito de
ceias nacionalistas e socialistas que se haviam tornado correntes a partir da questões como as raízes históricas da crise de identidade brasileira, mas a partir
década de 20. E porque o nacionalismo cultural estivera tão estreitamente asso- de uma experiência feminina.
ciado ao modernismo na América Latina, romper com os estereótipos ideológi- Na América hispânica, a vitalidade da escrita de mulheres foi acentuada pelo
cos implicava também uma reavaliação da herança modernista. Por exemplo, sucesso internacional de A Casa dos Espíritos (1982), de Isabel Allende, um
Manuel Puig, cujas obras dos anos 70 já revelavam uma ambivalência pós- romance inscrito no realismo mágico que conta a história do Chile do século xx
-modernista relativamente à cultura das massas e uma desconfiança de soluções através de quatro gerações de mulheres, culminando na encarceração da prota-
políticas radicais, escreveu Sangre de amor correspondido (1982), um romance gonista após o golpe militar de 1973. A obra denunciava a violência a que os
sobre um pedreiro brasileiro no Rio de Janeiro, em larga medida inspirado em homens sujeitavam o país e, enquanto história de amor, ansiava por uma recon-
gravações de entrevistas com o homem em questão. Assume a forma de um ciliação, simbolizada pela criança que a heroína leva no ventre para a prisão.
monólogo que trai a profunda desorientação psicológica de um camponês Outras escritoras famosas vieram de países que passaram por uma brutal repres-
que migrou para a grande cidade e cujos valores tradicionais - sexuais como são militar na década de 70, e algumas tinham elas próprias sido exiladas
sociais - se desintegraram, deixando-o à deriva num mundo privado de fantasias - nomeadamente, Luisa Valenzuela, da Argentina, e Cristina Peri Rossi, do Uru-
e ilusão. guai, que escreviam, tal como Allende, num registo realista-mágico, iluminando
Do mesmo modo, a mexicana Elena Poniatowska desenvolveu um estilo que temas políticos com fantasia.
aplicava as técnicas de ficção a narrativas documentais que se debruçavam sobre O importante contributo das mulheres para a literatura dos anos 80 suscitou
o impacto de grandes acontecimentos sobre as vidas de pessoas comuns. Obras interesse por autoras anteriores, como Victoria e Silvina Ocampo, Alejandra
como Hasta no verte, Jesus mio (1969), que relatava o testemunho de uma cam- Pizarnik (todas elas argentinas) e como a mexicana Rosário Castellanos, cujo
ponesa que sentira na pele as mudanças sofridas pelo México desde a Revolução romance Balún-Canán (1957) era um estudo original do desmoronar da ordem
ao desenvolvimento dos anos pós-guerra, como La noche de Tlatelolco (1971), patriarcal branca, na perspetiva da filha jovem de uma família de latifundiários.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E ! D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

Adiantando-se ao feminismo dos anos 60, Castellanos pressentiu a ligação entre Inquestionavelmente, o fim do patriarcado representaria uma mudança
a subordinação das mulheres na sociedade tradicional e a opressão económica e profunda na América Latina, assinalando a emergência de uma cultura verdadei-
étnica que sustinha essa mesma estrutura social. ramente moderna. Isto porque o patriarcado fora o princípio universal das
Com efeito, a proeminência da escrita de mulheres nos anos que se seguiram monarquias católicas ibéricas, assim como das anteriores sociedades índias
ao boom pode muito bem apontar o verdadeiro significado histórico do floresci- pré-colombianas; o patriarcado também acompanhara as tentativas de moderni-
mento da literatura latino-americana a partir dos anos 20 - o modernismo deu zação no mundo ibérico desde o século xvin até aos anos 20 do século xx,
aos escritores os meios necessários para lidarem com o fim da autoridade patriar- quando até os mais liberais advogavam reformas a partir do topo levadas a cabo
cal da sociedade hispânica tradicional. Os primeiros efeitos da revolução moder- por um Estado forte; e o patriarcado também marcara profundamente o período
nista seriam visíveis na poesia lírica, pois a reação à modernidade foi inicial- de nacionalismo económico, com os seus caudilhos populistas e com as suas
mente uma expressão de angústia individual. Contudo, a partir dos anos 40, o oligarquias militares. Só após a rápida urbanização de meados do século xx é que
modernismo começou a transformar a ficção narrativa, à medida que o ritmo do a democratização da cultura tivera início. Com efeito, nos anos 80 despertou-se
desenvolvimento industrial se acelerava e que os laços de uma sociedade em para a possibilidade de a América Latina ter chegado ao fim de uma era.
larga medida rural começavam rapidamente a dissolver-se nas cidades em Esta noção de fim foi magnificamente veiculada no Brasil por um notável
expansão. O referido processo culminou no boom dos anos 60, quando escritores romance histórico de João Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro! (1984), uma
jovens começaram a refletir nas suas obras as relações sociais fluidas caracterís- obra que analisava a história brasileira e reexaminava exaustivamente o tema da
ticas da cultura urbana moderna. identidade nacional, apenas para mostrar que isso não passava de uma miragem,
Mas apesar de o avanço do capitalismo de consumo ter rapidamente deses- quando se tinha em conta a multiplicidade do país. O título parodiava o logro do
tabilizado as hierarquias sociais nas cidades, o ethos patriarcal encontrava-se tão nacionalismo populista, embora expressasse também o desejo de um verdadeiro
profundamente enraizado na política, através do patrocínio e do clientelismo, consenso que servisse de base à identidade nacional, uma ambivalência que per-
que deu origem a Estados em vias de desenvolvimento com regimes autoritários, corre todo o romance. O seu final apocalíptico ocorre em finais da década de 70
chefiados, a partir dos anos 40, quer por governos civis quer por juntas militares. (precisamente quando a ditadura militar se deparava com os seus próprios fra-
Os conflituosos anos 70 assistiram à entrada deste tipo de Estado neopatriarcal cassos), e descreve uma tempestade que traz o unificador «Espírito do Homem»
numa crise terminal de autoridade, revelando-se a sua falência na catástrofe da do outro lado do oceano, deixando-o a pairar, como nunca fora visto, sobre o
dívida externa, em princípios da década de 80. Assim, em retrospetiva, verifica- povo do Brasil.
mos que a partir de finais dos anos 60 os escritores do boom e do pós-boom Os críticos apontaram a influência da escrita de Garcia Márquez na obra de
vinham dando conta da progressiva impotência do patriarcado hispânico - nos Ribeiro, e o próprio escritor colombiano - antigo mestre do apocalipse literário
jogos de linguagem subversivos de romancistas (muitos deles homossexuais), - publicou em 1985 outro romance extraordinário, onde captou os sentimentos
nos romances sobre ditadores de meados da década de 70, no novo fascínio pelo contraditórios que acompanharam os últimos tempos do patriarcado. Amor em
ethos igualitário da cultura internacional de massas, na literatura que testemu- Tempo de Cólera é uma canção de amor para a sociedade hispano-americana
nhava as repressões do Estado autoritário e, finalmente, no desabrochar da tradicional. (Garcia Márquez assumiu-se uma vez como autor falhado de can-
escrita de mulheres. ções sentimentais como o bolero, e até comparou Cem Anos de Solidão a um
A autoridade patriarcal estava a ser substituída pelo pluralismo cultural, tal vallenato, um género musical popular colombiano.) Situado na «cidade dos vice-
como a oligarquia branca fora minada por uma reavaliação da mestiçagem e da -reis», um antigo porto caribenho do comércio de escravos, inspirado em Carta-
diversidade étnica. Porém, de igual modo, o pluralismo da cultura urbana come- gena de índias, o romance descreve a paixão frustrada de um jovem poeta anti-
çava a converter a busca de uma «cultura integral» - a base dessa identidade quado por uma rapariga rica que casa com um médico liberal aristocrata.
essencial que tanto preocupava nacionalistas e modernistas até aos anos 60 - A obra é de um espírito deliberadamente antimoderno, sendo o amor român-
numa irrelevância. No decorrer do século, a América Latina fora obrigada a tico comparado à cólera, uma doença que o médico esclarecido quer erradicar.
reconhecer-se nas suas diversas formas de mestiçagem e agora, finalmente, tor- Porém, contra todas as probabilidades, o amor triunfa mesmo no final, quando
nava-se impossível negar a suprema mestiçagem, aquela que os nacionalistas os namorados de outrora, destruídos pela idade, viajam, como num sonho, num
tinham mais dificuldade em aceitar - a assimilação de influências estrangeiras, barco de quarentena que sobe e desce o rio Magdalena; vivem uma «festa flutu-
fenómeno de grande importância no mundo moderno. ante» sobre as águas do tempo, num santuário fora do alcance destrutivo do

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA I D E N T I D A D E E M O D E R N I D A D E : D E S E N V O L V I M E N T O S L I T E R Á R I O S E C U L T U R A I S II

desenvolvimento moderno. Levando o leitor no fio da navalha entre a paródia e Nos tempos da monarquia católica, o princípio integrador residia na ortodo-
a autossatisfação, o romance pode ser considerado uma obra pós-modernista, xia religiosa, que servia como força de ligação de um império global, porque
pois é como se todos os temas da tradição romântica hispânica - honra, glória, legitimava a autoridade real. Esse princípio unificador perdeu-se com a indepen-
virgindade, amor impossível - fossem acariciados uma última vez, antes de dência e nunca foi recuperado, apesar dos diversos esforços dos conservadores.
serem definitivamente postos de lado por um autor que consegue idealizar com No século xix, os republicanos liberais tinham tentado estabelecer novos prin-
tamanha riqueza os valores de uma sociedade patriarcal, porque sabe que eles cípios de unidade política baseados nas ideias do Iluminismo europeu, em parti-
não podem sobreviver durante muito tempo na realidade. cular a soberania do povo num Estado de direito. Mas não conseguiram chegar
Dir-se-ia que o fim da ordem patriarcal deixaria a cultura latino-americana a um consenso, porque, entre outros motivos, deixaram de fora a noção de mul-
indefesa perante as exigências o mundo moderno. Mas isso poderá, na verdade, tiplicidade étnica e regional da América Latina.
ter sido mais unia oportunidade histórica do que um desastre, pois criou as con- Foi a experiência rica e multifacetada do modernismo no século xx que per-
dições para realizar os grandes sonhos dos Libertadores pela primeira vez desde mitiu que a América Latina se apercebesse da sua própria diversidade, da sua
a independência. Como vimos, o que frustrou os ideais de Bolívar e de outros mestiçagem profundamente enraizada de tradições ibéricas, índias e africanas, e
liberais revolucionários foi a imensa força do patriarcado hispânico nas suas das forças duradouras da sua cultura popular. Esta longa exploração de uma
muitas formas, desde o caudilhismo e da governação autoritária aos regimes herança complexa e das suas relações com o mundo exterior foi, talvez, um pro-
pseudodemocráticos que surgiram por variadíssimas vezes por todo o conti- cesso necessário, para que uma genuína democratização da cultura e da socie-
nente. Se a literatura dos anos 70 e 80 começava a assinalar o fim de uma era, dade pudesse ter lugar. A América Latina parecia estar a aproximar-se de um tal
podia muito bem estar a apontar um novo começo para os valores do Iluminismo, estado nas últimas décadas do século, quando as críticas à autoridade patriarcal
que inspiraram os líderes do movimento de independência. Soberania popular, encorajaram uma reavaliação dos valores democráticos liberais herdados do
liberdade, igualdade, os direitos do homem, o espírito da livre investigação e a Iluminismo europeu, esse grande repositório de ideias modernas que fora a ins-
razão crítica - todos estes ideais foram adotados por Bolívar e pelos seus suces- piração de Simón Bolívar e dos libertadores do continente. Essa censura ao
sores ao longo do século xix, embora não pudessem ter um efeito duradouro na patriarcado pode, em suma, apontar para uma eventual conciliação das identida-
realidade enquanto os valores patriarcais prevalecessem na sociedade latino- des nacionais latino-americanas com o inevitável pluralismo da cultura moderna.
-americana.
Mais uma vez, foi Garcia Márquez quem pressentiu a relevância dos ideais
cio período da independência para a situação da América Latina nos anos 80 do
século xx. O seu romance O General no Seu Labirinto (1989) descrevia os últi-
mos dias de Simón Bolívar, quando partiu, doente, para o exílio, após o colapso
da sua autoridade na Grande Colômbia, a república independente que ele próprio
constituíra. A sua obsessão recorrente é com a ideia de unidade da América his-
pânica, e condena por várias vezes a anarquia em que o continente mergulhou
desde que cortou os seus laços com Espanha. À medida que a grande esperança
de unir o mundo hispano-americsno esmorece, Bolívar sente que as novas repú-
blicas estão a entrar num labirinto - uma longa história de tumulto em que a
identidade nacional e a cultura moderna pareceriam violentamente opostas. Mas
no entender de um homem como Bolívar, uma identidade nacional estável não
podia ser alcançada senão com base num ideal político unificador. Nos seus
esforços para preservar a Grande Colômbia e no seu sonho de uma federação
pan-amcricana, o general lutava por redescobrir nas condições políticas moder-
nas a qualidade fundamental que tornara a monarquia católica de Espanha (e de
Portugal) tão estável e resiliente - a sua capacidade de conciliar unidade política
e diversidade cultural.

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Quarta Parte

Rumo a uma Nova Era


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AMÉRICA LATINA (POLÍTICA)

OCEANO ATLÂNTICO

*Vl A l TI Santo Domingo


CAPÍTULO 16

_ San Salvador
ST KITTS-NEVlSkANTiGUA E BARBUDA
Tegucigalpa .DOMINICA
Globalização e reforma:
INICARÁCUA -DOMINILA
SÃO SALVADOR
Manág „ r „ .„_._..__ i SANTA LÚCIA
COSTA RICA^^AgVICENTE, . BARBADOS uma Análise
•GRENADA
TRINDADE E TOBAGO

Na última década do século xx, a América Latina chegara ao fim de uma era.
Os países com as economias mais avançadas haviam sofrido uma revolução
industrial e muitos dos outros tinham-lhes seguido o exemplo. Esta revolução foi
OCEANO PACÍFICO desencadeada por um desejo de independência: considerava-se que a economia
internacional se baseava numa forma de «neocolonialismo», porque as matérias-
-primas e os bens alimentares eram trocados por importações industriais de ele-
vado valor, num processo que se julgava implicar a subordinação aos interesses
do mundo desenvolvido. Os países latino-americanos precisavam, então, de se
industrializar para se libertarem desta dependência. Porém, só o Estado podia
reunir os recursos para dirigir semelhante iniciativa, pelo que, a partir de finais
dos anos 30, os principais países seguiram uma política de industrialização por
substituição de importações (ISI), mediante a qual indústrias nacionalizadas
URUCjUAI
foram estabelecidas e protegidas da concorrência estrangeira por tarifas elevadas
Buenos Aires ^V*—/
Montevi
(ver capítulo 9, p. 347-351). Esta era de nacionalismo económico voltado para
dentro chegou ao fim nos anos 80, quando o processo de desenvolvimento con-
duzido pelo Estado implodiu e deixou a América Latina a braços com uma dívida
intolerável e uma terrível onda de violência.
A principal causa deste desastre foi os governos terem tentado proteger as
Arcas não independentes
suas sociedades em mudança dos choques da rápida industrialização aumentando
Estão representadas apenas as capitais
dos Estados lalino-americanos independentes
a despesa pública; a certa altura, a despesa passou a exceder a produção, a ponto
de o crescimento económico só poder ser mantido à custa de um crescente endi-

583
HISTORIA DA A M E R I C A LATINA OLOBALIZAÇÀO E R E F O R M A : UMA ANALISE

vidamento junto de bancos estrangeiros. Apesar de o problema se ter tomado mia mundial atraiu investimento de empresas multinacionais, que compraram
evidente logo em meados dos anos 60, nenhum governo civil conseguiu reunir companhias públicas pesadas e as converteram em empresas mais ágeis e mais
autoridade suficiente para remediar o aumento sistemático da inflação e os colos- produtivas, ao mesmo tempo que bancos de investimento estrangeiros injetavam
sais défices públicos. Assim, num país após outro, as forças armadas intervieram o capital privado tão necessário aos mercados financeiros «emergentes» da
para restaurar a disciplina fiscal e para cortar a inflação, mas isto aconteceu num região. Com efeito, as reformas do FMI contribuíram para o processo de «globa-
momento em que a esquerda radical, inspirada pela Revolução Cubana, estava lização» - a redução, à escala mundial, de regulamentação estatal, de modo a
preparada para recorrer à luta armada, e o conflito ideológico que se instalou permitir um comércio mais aberto entre os países e a circulação mais livre cie
levou à guerra civil em muitos países e a uma profunda instabilidade em quase capitais - e o seu efeito viria, de um modo geral, a colocar a América Latina na
toda a região. E todavia, apesar de terem derrotado as guerrilhas marxistas, as posição que ocupara na economia mundial entre os anos 70 do século xix e a
ditaduras militares e os seus «regimes burocráticos autoritários» não consegui- década de 40 do século xx, o período de liberalismo económico anterior à 1SI.
ram normalizar a economia, e viram-se também obrigados a endividar-se e a Mais uma vez, o desenvolvimento seria perseguido através do aumento das
aumentar a despesa para garantirem um mínimo de aceitação pública. O resul- exportações, explorando a vantagem comparativa dos países latino-americanos
tado foi uma inflação galopante e, por fim, a ruína financeira (ver capítulo 9, sobre os seus concorrentes, como era o caso, por exemplo, da mão de obra barata
pp. 364-372). ou dos recursos naturais, em que se incluíam produtos agrícolas, petróleo, gás,
No começo da década de 80, quase todos os países deixaram de poder cum- minério e, por vezes, até bens industriais. Contudo, a globalização tanto trouxe
prir os pagamentos relativos às suas avultadas dívidas externas, o que determi- benefícios como problemas. A liberalização das taxas de câmbio permitiu que o
nou que o seu crescimento económico praticamente se interrompesse nos anos capital fluísse nos mercados com uma facilidade inédita - e, graças à revolução
seguintes. (Os anos 80 ficaram conhecidos como a «década perdida».) A situação da tecnologia informática dos anos 90, corretores em Londres, Nova Iorque ou
começou a mudar na década de 90, depois de o governo dos EUA ter patrocinado Tóquio podiam alternar, numa questão de minutos, entre moedas, ações ou bens.
uma série de acordos, dos quais se destacou o Plano Brady de 1989, que permitiu Como consequência, os governos perderam grande parte do controlo sobre as
o perdão de parte da dívida e a restruturação da dívida restante através de novos suas economias, e os países tornaram-se mais vulneráveis do que nunca a flutu-
empréstimos e títulos do tesouro com desconto - na condição de os países deve- ações que ocorriam em mercados bolsistas distantes. Em 1994, por exemplo, os
dores implementarem um programa de «ajustamento» económico recomendado investidores estrangeiros reagiram aos tumultos políticos no México retirando
pelo Fundo Monetário Internacional (ver capítulo 9, pp. 377-385). O programa capital e mergulhando o país numa inesperada recessão.
do FM1 previa, essencialmente, importantes cortes na despesa pública, a privati- Esta volatilidade era fonte de enorme preocupação na América Latina, onde
zação de indústrias do Estado, o estabelecimento de taxas de câmbio compe- a inflação tantos danos causara desde os anos 60. Muitos países tentaram estabi-
titivas, e a abertura do mercado interno à concorrência estrangeira através da lizar as suas moedas fixando-as ao dólar de urna série de formas. A Argentina
redução das tarifas aduaneiras e dos subsídios aos produtores nacionais. Este consagrou na lei a conversibilidade direta do peso ao dólar; Equador, Panamá e,
programa refletia um consenso entre os estrategos políticos latino-americanos mais tarde, El Salvador adotaram o dólar como sua moeda, enquanto outros
relativamente à necessidade de liberalizar e estabilizar a economia (o «Consenso países permitiram transações financeiras em dólares nos seus mercados internos.
de Washington»); havia também um consenso quanto a uma reforma institucio- Mas a «dolarização» também não estava isenta de riscos, pois a flexibilidade da
nal que garantisse uma maior responsabilidade democrática, e que canalizasse a taxa de câmbio era importante para lidar com as flutuações internacionais, como
despesa social de modo mais eficaz para os pobres. O problema residia em alcan- o Brasil descobriu em 1998, quando evitou desvalorizar a sua moeda ligada ao
çar o equilíbrio adequado entre liberalização económica, reforma de instituições dólar durante demasiado tempo, e como a Argentina também percebeu, três anos
e alívio da pobreza, e, como sempre sucedera num continente tão vasto e diverso, depois, quando se agarrou ao dólar até já não ser possível impedir uma crise
nem todos os países conseguiram atingir os três objetivos com sucesso: os gover- financeira que praticamente arrasou a sua economia.
nos concentraram-se sobretudo na estabilização económica, aplicando o pro- O desejo de um desenvolvimento estável encorajou a criação, nos anos 90,
grama de «ajustamento» do FMI na medida do possível. de zonas de comércio livre que estimulassem o crescimento geral. Em 1994, o
A receita do FMI não tardou a produzir resultados nos anos 90: a inflação foi México juntou-se aos EUA e ao Canadá num Tratado Norte-Americano de Livre
reduzida para valores de um só dígito, os défices públicos foram reduzidos, e as Comércio (NAFTA), iniciativa que encorajou outras formações, como o Merco-
tarifas e os subsídios foram gradualmente extinguidos. A nova abertura à econo- sur (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), a Comunidade Andina (Colômbia,

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Peru, Equador, Bolívia), e o Mercado Comum Centro-Americano (Costa Rica, pressão sobre a terra empurrou os camponeses para áreas menos férteis ou para
Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala). O modelo frequentemente território virgem. No Brasil, o problema da falta de terra agravou a ameaça à
citado para este tipo de associação era a União Europeia (UE), mas nenhum país floresta tropical da Amazónia, pois os camponeses na pobreza procuravam con-
latino-americano era suficientemente rico para redistribuir recursos para investi- verter áreas florestais em campos de cultivo, e este processo, aliado a uma expan-
mento em infraestruturas e projetos sociais em parceiros mais pobres, como se são desenfreada da criação de gado e da exploração florestal, em muitos casos à
verificava na UE, nem era provável que surgissem instituições comuns num margem da lei, causou preocupação em todo o mundo, num momento em que a
futuro próximo, dada a persistência das rivalidades económicas entre os Estados- consciência dos danos ambientais e das mudanças climáticas começava a influen-
-membros.
ciar a opinião pública. As incursões da indústria agroalimentar na economia rural
Em dezembro de 1994, a administração dos EUA acolheu a primeira Cimeira intensificaram a migração para as cidades, aumentando o número de desemprega-
das Américas, em Miami, na qual os participantes concordaram em negociar uma dos em economias onde o desemprego disparara, devido aos cortes na despesa
Associação de Comércio Livre das Américas (FTAA), mas não foi possível con- pública e à liberalização do comércio. E a falta de empregos nas cidades levou
cretizar o projeto dentro do prazo previsto, que terminou em 2005. Apesar do seu muitas pessoas a emigrarem para os EUA e para a Europa, nos anos 90.
bom começo, o Mercosur fracassou devido às crises financeiras de 1998-2002 O número de trabalhadores latino-americanos que entraram legal e ilegal-
no Brasil e na Argentina: o acordo de comércio mútuo do grupo ficou reduzido mente nos EUA aumentou substancialmente ao longo da década de 90 e nos
a metade e nunca recuperou o seu volume inicial, tendo os parceiros sucumbido primeiros anos do novo milénio. A fronteira entre os EUA e o México tornou-se
à concorrência interna, embora a Venezuela de Hugo Chávez tenha mais tarde uma zona fortemente policiada, não apenas pelas autoridades oficiais mas tam-
sido admitida como membro. Chávez, por sua vez, também promoveu a ALBA, bém por vigilantes determinados a impedir a entrada de mexicanos de pele
uma alternativa «bolivariana» à FTAA («Alternativa Bolivariana para América escura. Ainda assim, as principais cidades dos Estados Unidos, especialmente no
Latina y el Caribe» ou Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra Amé- Oeste e no Sul, receberam grandes populações de «latinos» e em meados da
rica», com o acrónimo expressivo de ALBA, alvorada, em espanhol). Tratava-se primeira década do século xxi os hispânicos tinham-se tornado a minoria mais
de um bloco de comércio de cariz socialista, formado por Venezuela, Cuba, numerosa, prevendo-se que constituiriam 25% da população total em 2050,
Bolívia, Honduras, Nicarágua, Dominica e São Vicente e as Granadinas (com aproximadamente a mesma percentagem dos «anglo-americanos». O problema
Equador e Paraguai como associados), que tinha por objetivo promover uma da imigração agitou a política dos EUA porque não se cingia aos interesses eco-
troca equitativa de bens e serviços. Reafirmou-se a intenção de criar a FTAA nómicos; levantava questões polémicas, relacionadas com raça e com identidade
numa outra Cimeira das Américas, que se realizou em Mar dei Plata, na Argen- cultural, que passavam também pelo papel do espanhol no ensino e noutros
tina, em 2005, numa altura em que o Brasil e a Argentina se tinham dececionado serviços públicos.
com o projeto, dada a relutância dos EUA em reduzir as tarifas sobre os seus Outro problema que tornava os EUA menos tolerantes aos mercados de
bens agrícolas. Chile, Colômbia, Peru e outros países viriam, em diferentes comércio livre prendia-se com o tráfico de cocaína. Embora ilegal, o consumo
momentos, a negociar tratados de comércio livre em exclusivo com os EUA, estava tão enraizado nas sociedade ocidentais que a procura continuava a incen-
apesar das preocupações nacionalistas que enfrentavam internamente e dos tivar as organizações criminosas que forneciam a substância. (Na América do
receios protecionistas dos EUA. Ainda assim, como se tornou evidente na Norte, cerca de 7 milhões de consumidores eram os destinatários de 45% da
cimeka da Organização Mundial do Comércio em 2001 (Agenda de Doha para cocaína traficada em todo o mundo.) A partir dos anos 90, o tráfico de estupefa-
o Desenvolvimento), os benefícios da globalização para os países em vias de cientes teve um efeito devastador em países como Colômbia, Peru, Bolívia,
desenvolvimento estavam seriamente limitados pela relutância dos países mais Panamá, México e Brasil, com cartéis poderosos a minarem a lei através do
ricos em levantar restrições à importação de bens agrícolas pelos quais os agri- suborno e da corrupção, e até a recorrerem a ataques à mão armada contra fun-
cultores dos EUA e da UE recebiam avultados subsídios. cionários e instituições do Estado. Incapaz de anular a causa do problema inter-
A nova orientação da exportação das economias latino-americanas originou namente, o governo norte-americano tentou erradicar a fonte da oferta nos
mudanças estruturais no mundo rural, onde os pequenos agricultores perderam Andes, onde a folha de coca era cultivada há séculos com fins medicinais
para empresas multinacionais do ramo agroalimentar que se especializaram em e rituais. Na Colômbia, onde tinha origem grande parte do tráfico, o governo
bens com grande procura internacional, como soja para rações animais, açúcar receberia cerca de $ 5 mil milhões de ajuda dos EUA para envenenar campos
para biocombustíveis ou carne de vaca para hambúrgueres de fast food. Esta de coca, além de apoio militar para desmantelar os cartéis. O Peru e a Bolívia

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T GLOBALIZAÇÃO E REFORMA! UMA A N Á L I S E

também receberam fundos para combaterem a produção de coca, mas o tráfico tes, enquanto quase um terço da população da Guatemala se convertera à Igreja
prosseguiu, sem um decréscimo significativo, porque os pequenos produtores de Cristã Evangélica.
coca não tiveram incentivos suficientes para se dedicarem ao cultivo de espécies A ideologia secular moderna assente nos direitos humanos também permeou
alternativas, que eram muito menos rentáveis. as comunidades índias e envolveu-as, pela primeira vez, nos círculos dominantes
A globalização acelerou a modernização das culturas e das sociedades latino- da política nacional. Este desenvolvimento revestia-se de um profundo signifi-
-americanas, à medida que as tecnologias e os meios de comunicação de massas cado histórico: tratava-se de uma luta tanto pelo reconhecimento da dignidade
expunham a população a influências estrangeiras, e que os migrantes de comu- dos índios como por direitos políticos ou económicos, pois os povos indígenas
nidades lurais em processo de desintegração - nas montanhas andinas, por tinham sido vítimas de discriminação racial, desprezo e exploração em todas as
exemplo - se viam a ganhar a vida ao lado de pessoas das mais diversas nacio- regiões onde os colonos europeus se haviam estabelecido nas Américas, no
nalidades na ambiência permissiva das grandes cidades ocidentais. Esta experi- Norte como no Sul. E não há dúvida de que estes movimentos indígenas conse-
ência direta do pluralismo da sociedade moderna fomentou uma ideologia de guiram produzir importantes mudanças em vários países da região. Estimava-se
direitos individuais e civis, que contribuiu para a subversão dos valores patriar- que o número de habitantes dos povos indígenas na América Latina rondasse os
cais que haviam regido a América Latina durante séculos. Os direitos das mulhe- 40 milhões no início do novo milénio. Os índios constituíam mais de metade da
res progrediram consideravelmente, à medida que cada vez mais mulheres população da Guatemala e da Bolívia; eram cerca de 40% da população do Peru
entravam no mercado de trabalho nas cidades ou obtinham um grau de ensino e 30% da do Equador; o México apresentava o número mais elevado de índios,
mais elevado; em muitos países, as mulheres foram admitidas nas profissões embora estes correspondessem a apenas 15% da população do país.
liberais e na vida pública. A primeira mulher a ser eleita para a presidência de Os movimentos sociais indígenas formaram-se nos anos 80, como reação às
uma república latino-americana foi Violeta Chamorro, na Nicarágua (1990); dificuldades infligidas pelas políticas do FMI, e ganhariam força ao longo da
Michelle Bachelet foi eleita presidente do Chile em 2005, e Cristina Fernández década seguinte, cendo a sua causa sido apoiada, em 1989, pela Convenção 169
tornou-se presidente da Argentina em 2007; muitas outras mulheres desempe- da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obrigou os governos a
nharam cargos ministeriais ou municipais em vários países. A emancipação garantirem a igualdade dos povos indígenas no seio dos Estados-nações. Muitos
homossexual também progrediu, especialmente no ambiente mais descontraído países latino-americanos ratificaram prontamente a Convenção 169 e vários alte-
do Brasil, embora não tanto nos países hispânicos, à exceção das cidades capitais raram as suas constituições, reconhecendo os direitos indígenas num Estado
mais cosmopolitas.
«multiétnico» e «pluricultural»: Guatemala (1985), Nicarágua (1986), Brasil
A Igreja Católica, que retomara uma postura mais conservadora durante o (1988), Colômbia (1991), Paraguai (1992), México (1992), Peru (1993), Bolívia
longo papado de João Paulo II, continuou a defender os seus ensinamentos (1994), Argentina (1994), Equador (1998), Venezuela (1999). Contudo, apesar
morais, opondo-se à contraceção artificial, ao divórcio e ao aborto, mas o divór- das piedosas aspirações, a criação de um Estado «pluricultural» não seria tarefa
cio, em certas circunstâncias, foi permitido em todos os países, e até o conserva- fácil, pois a natureza das exigências índias contrariava o carácter da república
dor Chile acabou por legalizá-io em 2004. O aborto continuou a ser ilegal, exceto liberal tal como fora concebido na Independência e, como veremos, em países
em circunstâncias muito específicas (a proibição só era total no Chile, na Nica- com comunidades índias numerosas surgiram conflitos que ameaçaram dividir a
rágua e em El Salvador), apesar da aprovação, em 2007, pelo parlamento da nação.
Cidade do México de uma lei que permitia a interrupção da gravidez durante o Outros movimentos sociais tomaram medidas pragmáticas para lidar com os
primeiro trimestre, depois de uma campanha que opôs violentamente a Igreja e problemas do quotidiano em vez de contarem com o tradicional patrocínio de
o lobby feminista. Os católicos ficaram ainda mais chocados quando a edição do caudilhos. No Brasil, por exemplo, onde a distribuição de terra era uma das mais
Natal de 2008 da Playboy mexicana apresentou na capa uma manequim nua desiguais do mundo, em 1984 surgiu um movimento de camponeses sem terra
posando como Virgem Maria. E a secularização não foi o único desafio à fé (MST); os seus protestos consistiam na invasão e ocupação ilegal de terra pri-
católica. Desde os anos 80 que as igrejas protestantes dos EUA enviavam mis- vada inculta. E durante a grande crise económica que assolou a Argentina em
sionários para a América Latina, e o estilo emocionalmente intenso do culto 200J, trabalhadores desempregados e as suas famílias criaram mercados de
pentecostal exercia claramente uma forte atração entre os pobres dos bairros de bairro que mantiveram pequenas economias locais em funcionamento através da
lata ou das áreas índias; na década de 90, estas novas igrejas tinham já atraído troca de géneros e de vales, depois de o dinheiro ter desaparecido dos subúrbios
milhões de convertidos. No Brasil, cerca de 15% pertenciam a igrejas protestan- mais pobres.

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As massas desprovidas de direitos civis que criaram estes movimentos eram alcançar não o eram. A principal dificuldade consistia em encontrar uma autori-
os destroços das inúmeras expropriações e migrações causadas primeiro pela dade efetiva que implementasse as reformas do FMI, mas a autoridade efetiva
industrialização e depois pela globalização. Havia milhões de desempregados e depende da legitimidade, que por sua vez assenta num consenso quanto aos
subempregados, que habitavam os enormes bairros de lata em redor das grandes princípios fundadores do Estado. E, como foi referido neste livro, a fraqueza
metrópoles da América Latina e que tinham de sobreviver com fracas perspetivas intrínseca do Estado na América Latina reside precisamente na incapacidade
de uma melhoria de condições, pois nem a política de ISI nem as economias crónica, desde a Independência, de estabelecer um consenso nacional duradouro
supostamente mais eficazes propostas pelos reformadores do mercado livre (ver capítulo 9, pp. 387-390). Não obstante, o FMI exigiu que os governos destes
tinham conseguido aliviar as suas dificuldades. O problema fulcral era a endé- Estados com bases pouco sólidas cortassem a despesa pública e dispensassem
mica desigualdade na distribuição de rendimento, que nenhum crescimento um elevado número de trabalhadores em sociedades que já eram as mais desi-
económico conseguira resolver. Com efeito, a desigualdade de rendimento na guais do mundo. Ainda assim, se se podia esperar um regresso às lutas revolu-
América Latina era a mais grave do mundo, e embora os níveis (extremamente cionárias ou às ditaduras militares que marcaram os anos 60 e 70, a política
elevados) de pobreza e indigência pudessem ser temporariamente aliviados democrática resistiu em praticamente todas as repúblicas ao longo da década de
durante os períodos de crescimento, o grau de desigualdade permanecia obstina- 90 e depois.
damente inalterado (*). Assim, por exemplo, o Chile, um dos países mais ricos e A persistência da democracia deveu-se, acima de tudo, ao colapso do comu-
com o melhor desempenho na implementação do mercado livre, apresentava um nismo na Europa de Leste em 1989-90, e depois na própria União Soviética em
índice de desigualdade pior do que o da Nicarágua ou das Honduras, e situava-se 1991, que pôs fim à Guerra Fria entre a URSS e os EUA. Em virtude deste
aproximadamente ao nível da Guatemala, os três países mais pobres e mais atra- colapso, o marxismo perdeu a sua força ideológica - Cuba não era encarada
sados da região; e o Brasil, o gigante económico da América Latina, era o país como um modelo viável nos anos 80 e 90 -, mas a extrema direita também enfra-
com o terceiro maior índice de desigualdade, a seguir ao Paraguai e à Bolívia (f). queceu, pois já não podia bloquear as reformas sociais convidando os EUA a
A verdade é que existiam dois setores sociais lado a lado em todos os referidos intervirem para impedir a infiltração soviética no seu «quintal». Acontecimentos
países - um que gozava de emprego estável e de acesso regular aos serviços no plano interno e no plano externo impeliram, deste modo, a América Latina
públicos, e uma grande massa de desempregados crónicos, que viviam pratica- para um terreno central de contornos pouco definidos, mas se o resultado foi a
mente sem segurança social proporcionada pelo Estado e com dificuldades de democracia, tratava-se de uma democracia assente num consenso de desespero,
acesso a serviços de saúde e educação, e que constituíam o chamado «setor pois nem a esquerda nem a direita tinham aonde ir, senão às urnas, para pro-
informal» de vendedores ambulantes, trabalhadores temporários, artesãos, trafi- curarem resolver os problemas de economias em ruínas.
cantes de droga, ou apenas pessoas que tentavam sobreviver lavando carros ou A questão resumia-se a convencer os eleitorados a engolirem o medicamento
engolindo fogo junto de semáforos. Como seria de esperar, este «setor informal», prescrito pelo FMI. Os governos tinham de consultar o povo para conseguirem
que cresceu prodigiosamente nas décadas de 80 e 90, representava uma ameaça um qualquer tipo de consentimento, e, nos anos 90, os eleitorados, cansados de
constante à ordem estabelecida, especialmente em períodos de crise económica. inflação, de violência e de desordem, optaram quase sempre por consentir em
Basicamente, a América Latina enfrentou um grave problema de governação reformas que levavam a uma política de mercado livre. Os eleitores já não tole-
após a crise da dívida dos anos 80. O FMI definira os principais objetivos a ravam as promessas ocas e os negócios corruptos associados aos partidos tradi-
atingir: controlar a inflação, desregular e privatizar a economia, e resolver o cionais, pelo que tenderam a eleger candidatos novos ou independentes para a
problema do endividamento. Mas se os objetivos eram claros, as formas de os presidência, como foi o caso de Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Bolívia,
Equador, e até do México, depois de o partido no poder ter sido obrigado a deixar
(*) Para dados ilustrativos sobre desigualdade e pobreza, consultar Anexo Estatístico,
de manipular as eleições. Muitos países reformaram as suas constituições.
Quadro 2. Alguns deles, como a Colômbia ou o Chile, pretendiam desse modo fortalecer as
(f) O índice Gini é a medida padrão para a desigualdade de rendimento, sendo que um instituições democráticas, melhorando o sistema de representação e apostando
valor de O representa a igualdade absoluta e um valor de 100 corresponde à desigualdade numa maior responsabilização. A maioria dos restantes procurou assegurar a
absoluta. Os desempenhos Gini para os países mencionados são: Chile: 54,9; Nicarágua: 43,1; continuidade das reformas permitindo que um presidente cumprisse mandatos
Honduras: 53,8; Guatemala: 55,1; Brasil: 57; Paraguai: 58,4; Bolívia: 60,1. Consultar Programa
consecutivos adicionais. Outros ainda, como o Peru (em 1993), avançariam para
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), Relatório de Desenvolvimento Humano
2007/2008. o autoritarismo, ou até para a ditadura velada. Na América Latina, «democracia»

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continuava a ser um conceito bastante maleável, por demasiadas vezes sujeito a aumento extraordinário e a taxa de crescimento tornara-se uma das mais eleva-
práticas mais tradicionais como o patrocínio e o clientelismo, pelo personalismo das da região, mantendo-se assim durante um longo período. Mas, apesar de
ao estilo caudilhista e pela fraude eleitoral (ver capítulo 9, pp. 359-362). Assim, tudo, o Chile continuava a ser um país violentamente dividido. Por fim, até o
em algumas repúblicas, como Peru, Venezuela, Bolívia e Equador, ganhou forma general Pinochet se voltou para o eleitorado à procura de consentimento para
a chamada «democracia delegativa», uma nova versão da velha tradição de popu- institucionalizar o seu poder, e quando este lhe foi negado, num plebiscito reali-
lismo caudilhista, mediante a qual o poder executivo era «delegado» num líder zado em 1988, ficou aberto o caminho para uma transição negociada para uma
carismático por via das urnas, que lhe davam um mandato para se sobrepor às qualquer forma de liberalização política.
limitações institucionais representados pelo parlamento e pelo poder judiciário. Em 1990, Patrício Aylwin foi eleito presidente, tendo encabeçado a Concer-
A busca de uma autoridade efetiva foi moldada pelas características e pela tación por Ia Democracia, uma coligação de democratas-cristãos, socialistas e
história recente de cada república, mas os problemas de governação foram con- vários outros partidos, contra um candidato da direita. (O outrora poderoso Par-
sideravelmente afetados também pelas correntes da economia globalizada, que tido Comunista foi marginalizado pelo eleitorado.) Aylwin decidiu não agitar o
escapava ao controlo dos Estados-nações. Durante os anos de expansão interna- barco da democracia, e prosseguiu com as reformas de mercado livre, tomando
cional - aproximadamente entre 1992 e 1998 -, os governos conseguiram levar simultaneamente medidas para aliviar a pobreza e melhorar a sorte dos desem-
a cabo reformas liberalizantes com considerável apoio público, mas a crise da pregados. A estratégia revelou-se suficientemente eficaz, e foi, em traços gerais,
desvalorização tailandesa em 1997, seguida do incumprimento da Rússia em mantida pelos seus três sucessores na presidência, todos eles da Concertación.
1998, teve danos colaterais na América Latina até por volta de 2002, reduzindo Ainda assim, a sombra de Pinochet continuava a pairar sobre o Chile, uma
o crescimento e sobrecarregando os governos, alguns dos quais não resistiram a ameaça ao frágil consenso que sustinha a restauração da democracia. Em 1998,
manifestantes em fúria. (O período de 1998-2002 ficou conhecido como «a meia Pinochet abandonou o cargo de chefe supremo das forças armadas, conforme
década perdida».) Contudo, quando o comércio mundial entrou novamente em estipulado num acordo de 1988, mas foi preso durante uma visita a Londres,
expansão, a partir de 2002, a maioria dos países latino-americanos teve um na sequência de uma providência cautelar emitida por um juiz espanhol, que o
enorme crescimento nas exportações de petróleo, minério e bens agrícolas para acusava de violação dos direitos humanos de cidadãos espanhóis durante os anos
o mundo desenvolvido, e especialmente para a China, pelo que os problemas de da ditadura. A detenção de Pinochet enfureceu a direita chilena, mas encorajou a
gestão económica se atenuaram uma vez mais. Depois, em finais de 2008, a esquerda, tanto no país como no exílio. Seguiu-se um combate jurídico interna-
economia globalizada entrou novamente em recessão, na sequência de uma cional, a par de apelos à detenção e ao julgamento de mais militares. Pinochec
grave crise financeira em Wall Street e em Londres, com consequências para a permaneceu em prisão domiciliária em Londres, até o governo britânico decidir
estabilidade política e para a democracia liberal que eram difíceis de prever. que o general não se encontrava em condições de ser sujeito a um julgamento
em Espanha e o autorizar a regressar ao Chile (onde viria a falecer em dezembro
de 2006).
Os Países Mais Avançados O país ao qual Pinochet regressou, em março de 2000 elegera para presidente
outro candidato da Concertación, Ricardo Lagos, um socialista, embora com
CHILE uma estreita margem em relação a um popular candidato da direita. Lagos depa-
rou com uma situação delicada - um crescimento económico hesitante, devido à
O país que seguiu com maior rigor as medidas recomendadas pelo FMI foi turbulência da economia internacional, e uma direita agressiva, irada com a
o Chile. Com efeito, o Chile dera início a reformas estruturais com vista ao mer- humilhação de Pinochet, a par de uma crescente pressão exercida pela esquerda
cado livre muito antes da crise da dívida dos anos 80. Após o derrube de Salva- para que se investigassem alegadas violações dos direitos humanos. Lagos con-
dor Allende pelo general Pinochet, em 1973, a brutal ditadura militar permitiu seguiu conduzir o seu governo sobre estas águas revoltas, até a economia reto-
que tecnocratas levassem a cabo as suas experiências com ampla margem de mar um impressionante crescimento não-inflacionário. Agradou à esquerda
manobra e, apesar dos resultados ambíguos dos primekos tempos, que incluíram introduzindo um esquema de assistência social para os setores mais pobres da
uma terrível crise no começo da década de 80, a política seguida produzira autên- população, legalizando o divórcio e permitindo que os tribunais acusassem mili-
ticos milagres - a inflação fora controlada, o investimento externo tornara- tares de violações de direitos humanos no período da ditadura. De resto, seguiu,
-se abundante, a produtividade disparara, as exportações tinham sofrido um em traços gerais, uma política de continuidade na condução da economia.

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Os tecnocratas chilenos tinham apostado na diversificação das exportações para Collor de Mello, mas o seu plano anti-inflação falhou passados poucos meses e,
diminuir a dependência do cobre, nomeadamente através do desenvolvimento da para agravar a situação, um escândalo relacionado com corrupção obrigou-o a
indústria vinícola, que se tornara uma das melhores do mundo, através da aqui- abandonar o cargo em 1992. O seu pouco carismático sucessor [Itamar Franco]
cultura e da produção de frutos e flores para mercados de nicho. Nesta diversifi- teve, no entanto, o mérito de nomear um ministro das Finanças que conseguiu
cação teve um papel essencial a Fundación Chile, criada durante o regime de finalmente lidar com os problemas da economia.
Pinochet para encorajar a pesquisa e o desenvolvimento e novas iniciativas de Fernando Henrique Cardoso, professor de sociologia, foi uma escolha total-
negócio. mente inesperada para o cargo, tendo feito a sua reputação nos anos 60 como um
Em dezembro de 2005, Michelle Bachelet, a quarta candidata consecutiva da dos principais expoentes da «teoria da dependência» e da industrialização con-
Concertación, venceu as eleições presidenciais contra Sebastián Pinera, um duzida pelo Estado. Mas Cardoso conseguiu um impressionante volte-face ao
populista multimilkmário de direita. A eleição de Bachelet era, em si mesma, introduzir o Plano Real em julho de 1994, um programa anti-inflacionário cen-
sinal da mudança dos tempos - para além de ser a primeira mulher chilena a trado no lançamento de uma nova moeda, o real, que se fez acompanhar de
chegar à presidência, era membro do Partido Socialista, de Allende, tendo estado medidas para privatizar e abrir a economia. Ao longo dos quatro anos seguintes,
exilada na Alemanha de Leste, e, num país socialmente conservador, era mãe a inflação caiu para valores de um só dígito e o crescimento disparou para cerca
solteira de três filhos. Na verdade, Bachelet nunca gozaria de grande populari- de 4% ao ano. Os resultados permitiram recuperar a confiança do público na
dade - foi eleita à segunda volta com menos de 50% dos votos - e suscitaria economia e no país. Sendo a nova estrela da política brasileira, Cardoso venceu
descontentamento devido ao escasso orçamento para a educação, ao desastroso as eleições presidenciais de 1994 e foi reeleito em 1998. No decurso dos seus
sistema de transportes na capital e, apesar de se ter empenhado nas causas das mandatos, procurou equilibrar as reformas de mercado livre com programas no
mulheres (cerca de metade do seu primeiro governo era feminino), foi criticada âmbito da educação e da assistência social, que passaram por uma modesta redis-
pela legalização da contraceção de emergência para adolescentes sem consenti- tribuição de terra por famílias de pequenos agricultores. Deparou-se, no entanto,
mento parental, um tema polémico num país católico. com um agravamento da despesa pública e com um défice comercial crescente,
Em 2008, muitas pessoas sentiam que a Concertación se mantivera no poder que não conseguiu reduzir, e quando a crise financeira internacional chegou
durante demasiado tempo: o governo caía nas sondagens de opinião, o público ao Brasil, em 1998, e ameaçou o real, Cardoso procurou a todo o custo prote-
mostrava-se consternado com os desentendimentos no seio da coligação e havia ger a moeda sobrevalorizada até se ver obrigado, em 1999, a dar uma cotação
rumores de corrupção. Nas eleições municipais de outubro de 2008, a direita flutuante ao real, que acabou por cair para um quarto do seu valor face ao dólar.
conseguiu avanços significativos - a Aliança pelo Chile de Sebastián Pinera Esta crise abalou o crescimento e criou dificuldades no pagamento da dívida
venceu nas grandes cidades — e parecia destinada a bons resultados nas eleições externa. Pouco antes das eleições de 2002, as ações caíram a pique e o real per-
presidenciais que se realizariam em dezembro de 2009. A estabilidade política deu cerca de 40% do seu valor face ao dólar, porque os investidores previam a
iria, provavelmente, manter-se, na ausência de grandes choques económicos, vitória de Luiz Inácio «Lula» da Silva, o candidato dos Partido dos Trabalhado-
mas o Chile era ainda uma das sociedades com maior índice de desigualdade na res (PT), um partido socialista com objetivos anticapitalistas revolucionários.
América Latina, e as manifestações contra os salários baixos e o desemprego E não havia dúvida de que Lula era um homem do proletariado: tendo nascido
ocorriam com frequência. Restava saber se o consenso que permitira a transição no desfavorecido Nordeste, numa família indigente e iletrada que migrou para
da ditadura para a democracia conseguiria sobreviver ao impacto de uma crise São Paulo, Lula abandonou a escola aos 14 anos e foi trabalhar na indústria-
global prolongada. metalúrgica; depois de se tornar um proeminente dirigente sindical, fundou o PT
em 1980.
Como se esperava, Lula alcançou a vitória prometendo erradicar a fome e
BRASIL reduzir a desigualdade. Porém, uma vez no poder, surpreendeu todos ao dar
continuidade aos objetivos fundamentais do seu antecessor - estabilidade econó-
A partir de 1974, o Brasil efetuara, sem grande dificuldade, uma transição mica e uma prudente redistribuição da riqueza. Na verdade, como já tinha ante-
faseada do regime militar para a democracia, mas nenhum governo civil conse- riormente perdido a corrida à presidência por três vezes, Lula adotara uma
guira resolver as crises do endividamento e da hiperinflação. A desilusão do abordagem pragmática da política e acreditava na necessidade de se aliar a
público com o fracasso levou à eleição, em 1990, de um independente, Fernando outros grupos de interesse. Apesar de este pragmatismo ter causado uma cisão no

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partido, a inflação foi controlada e os pagamentos ao FMI foram cumpridos. Brasil emergia como um gigante económico, ao lado da Rússia, da índia e da
Em 2003, a economia começou novamente a crescer moderadamente e em finais China, e afirmava-se como a principal voz da América Latina na cena interna-
de 2005 o empréstimo do FMI estava pago, graças à muito favorável conjuntura cional. Em 2008, começou a exercer influências para se tornar membro perma-
internacional, que estimulou as exportações brasileiras e permitiu um excedente nente do Conselho de Segurança da ONU, e em 2009 o Rio de Janeiro tornou-se
no comércio externo. Em simultâneo, Lula canalizou os apoios sociais para os a segunda cidade latino-americana a ganhar o concurso para receber os Jogos
pobres: aumentou em um quarto o salário mínimo e incrementou os programas Olímpicos (que se realizarão em 2016).
de assistência social de Cardoso, criando a Bolsa Família, um esquema que atri-
buía às famílias mais pobres um subsídio mensal. Estas e outras políticas de
carácter social reduziram a pobreza e melhoraram a distribuição de rendimento, ARGENTINA
garantindo ao presidente uma base de apoio entre os moradores das favelas e os
mais desfavorecidos. Se a transição do Brasil da ditadura militar para a democracia foi relativa-
Sem um tal apoio, Lula não teria, provavelmente, sobrevivido aos vários mente suave, a da Argentina foi súbita, calamitosa e traumática. O colapso da
escândalos que envolveram o seu partido, quando foi alegado que dirigentes do junta de Galtieri, como consequência da guerra das Falklands/Malvinas, levou
PT tinham estado implicados no suborno de deputados de partidos rivais para ao poder o fraco governo radical de Raul Alfonsín, que foi alvo de greves à
conseguirem votos pró-governo no Congresso. Em 2005, o pior destes escânda- esquerda e de revoltas militares à direita, acabando por dar lugar a um governo
los obrigaria à demissão de toda a liderança do PT e de vários membros do peronista em 1989, com a inflação a atingir uma taxa composta anual de
governo, mas Lula afirmou que nada sabia do assunto e, apesar de ter sobrevi- 28 000%, e com motins para obtenção de comida nas principais cidades.
vido politicamente, graças à sua popularidade, o PT foi penalizado nas urnas e Tudo levava a crer que o novo presidente, Carlos Saúl Menem, seria um
Lula teve de ir a uma segunda volta nas eleições presidenciais de 2006, que instigador populista como Juan Perón. Contudo, Menem não tardou a dar início
acabou por vencer com 61% dos votos. a um programa de reformas conducente ao mercado livre, que provocou uma
No seu segundo mandato, Lula manteve a combinação de estabilidade eco- resposta irada da parte dos sindicatos, a acrescentar ao nervosismo das forças
nómica e política social. Tentou melhorar a lei e a ordem, procurando responder armadas, que Menem tentou, por sua vez, neutralizar perdoando os líderes das
à preocupação do público com os motins nas prisões, com os escândalos relacio- juntas e concedendo amnistia a todos os oficiais envolvidos na repressão. Mas o
nados com maus-tratos praticados por forças da autoridade, e com o persistente seu golpe de génio foi a nomeação de um brilhante economista, Domingo
flagelo da violência de gangues de traficantes de droga nos bairros de lata; per- Cavallo, para ministro das Finanças. A medida central da política de Cavalio foi
dera, em 2005, um referendo sobre a proibição da venda de armas, e uma nova a «conversibilidade» - a garantia por lei da paridade do peso face ao dólar ame-
tentativa para controlar este mercado alcançou um sucesso limitado em 2008. ricano — uma jogada ousada, que originou uma acentuada contração da economia
Outro dos grandes problemas que Lula enfrentava consistia em equilibrar o mas que permitiu controlar a inflação. A estabilidade económica estimulou o
desenvolvimento da bacia do Amazonas com as preocupações ambientais susci- crescimento e Menem tornou-se tão popular que conseguiu alterar a constituição
tadas pela desflorestação. (Estimava-se que, desde os anos 70, cerca de um de modo a permitir a reeleição do presidente por um novo mandato (que foi,
quinto da floresta tropical da Amazónia, uma área equivalente à da Califórnia, todavia, reduzido de seis para quatro anos). Em 1994, foi reeleito com quase
fora destruída por exploração florestal e criação de gado ilegais.) Em maio de 50% dos votos.
2008, a sua grande aliada, Marina Silva, demitiu-se do cargo de ministra do Ao longo dos quatro anos que se seguiram, Menem presidiu a uma fase de
Ambiente depois de muitas batalhas contra o poderoso lobby dos rancheiros e os grande crescimento - pelo menos para as classes médias, visto que o desemprego
interesses da indústria agroalimentar na Amazónia. A gota de água para Silva, se mantinha em níveis muito elevados, devido à privatização em curso do pesado
uma defensora do desenvolvimento sustentável, fora a autorização dada pelo setor público. A falta de emprego e a alegada corrupção na venda de bens do
governo para a construção de duas barragens hidroelétricas no Amazonas. Para Estado a uma elite de empresários favorecidos eram motivos de descontenta-
a substituir, Lula nomeou Carlos Mine, um dirigente do Greenpeace, mas o inci- mento público, e Menem viu-se de mãos atadas nas eleições de 1997 para o
dente pusera, uma vez mais, em evidência o desejo obstinado do Brasil - que se Congresso, onde uma coligação entre radicais e a FREPASO (socialistas inde-
manifestava até no governo de um outrora socialista revolucionário - de se pendentes) obteve a maioria dos lugares na câmara baixa. Durante a crise inter-
tornar uma grande potência. Com efeito, apesar do crescimento preguiçoso, o nacional de 1997-8, a política de conversibilidade peso-dólar foi alvo de forte

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pressão, mas Menem recusou-se a desvalorizar a moeda, receando uma perda de Uma relativa recuperação começou alguns meses mais tarde, depois de
confiança na economia, embora o custo de suportar o peso tenha agravado uma Duhalde ter nomeado um novo ministro das Finanças, Roberto Lavagna, que
dívida pública já colossal. Após as eleições presidenciais de 1999, o problema da começou a aplicai" medidas fiscais ortodoxas para reduzir a inflação e estabilizar
conversibilidade foi herdado pelo vencedor, Fernando de Ia Rua, à frente da a economia. Mas o fator que permitiu dar a volta à situação foi uma reintensifi-
aliança entre radicais e a FREPASO. cação da procura internacional das exportações agrícolas argentinas, aliada à
Enquanto o novo presidente lutava para equilibrai' o orçamento, a perspetiva desvalorização do peso. Nas eleições presidenciais realizadas em abril de 2003,
de cortes na despesa provocou uma vaga de protestos, incluindo uma greve geral. Néstor Kirchner, outro peronista, venceu por uma pequena margem. Tinha de
Ao mesmo tempo, a exportação de carne de vaca caiu, devido à febre aftosa, e assegurar a estabilidade económica e, ao mesmo tempo, dar resposta a graves
as exportações agrícolas também registaram um decréscimo. Para piorar a situa- problemas sociais: desemprego na ordem dos 20%, e 60% da população abaixo
ção, um dólar cada vez mais fone pressionava o peso sobrevalorizado, num do limiar da pobreza, com quatro em cada dez pessoas numa situação de pobreza
momento em que os preços dos produtos estavam em queda. Em março de 2001, extrema. Kirchner adotou um registo populista para acalmar os ânimos do
com uma crise financeira no horizonte e uma vez quebrada a aliança com a FRE- público, culpando o FMI pela crise e afirmando o direito da Argentina a contro-
PASO, De Ia Rua formou um governo de unidade nacional, e recebeu um lar o seu próprio destino. Também agradou à esquerda cancelando a amnistia de
empréstimo de $40 mil milhões do FMI. Depois, nomeou uma vez mais Menem para membros das juntas militares, e, ao longo dos anos seguintes, ofi-
Domingo Cavallo para ministro das Finanças. O prestigiado arquiteto da conver- ciais militares, incluindo generais proeminentes como Jorge Videla, seriam jul-
sibilidade procurou, então, cortar a ligação ao dólar, iniciativa que minou a gados e condenados por violação de direitos humanos durante a ditadura.
confiança dos investidores e originou uma fuga de capitais. Em julho, o país foi Kirchner manteve Lavagna como ministro das Finanças e, no começo de
paralisado por uma greve geral contra os novos cortes na despesa. Em setembro, 2005, a dívida externa foi reduzida de $80 mil milhões para cerca de $35 mil
com o crédito da Argentina a cair a pique, Cavallo convenceu o FMI a proceder milhões, quando a maioria dos credores estrangeiros aceitou trocar os seus títu-
a um novo empréstimo de $8 mil milhões, na tentativa de restaurar a confiança. los de dívida por outros que valiam menos dois terços. O montante por saldar
Os preços das ações sofreram uma enorme queda, e Cavallo voltou-se nova- correspondia ainda a cerca de 75% do PIB, mas o crescimento situava-se agora
mente para o FMI, mas desta vez viu o seu pedido recusado. O custo da conver- na casa dos 8% ao ano, e se a inflação estava a subir, o desemprego descera para
sibilidade com o dólar alarmou os investidores; a fuga de capital acelerou-se e 10%. Em virtude deste bom desempenho, Kirchner queria aumentar os gastos
rapidamente se tornou uma autêntica debandada (cerca de $25 mil milhões dei- sociais, mas Lavagna discordava, pelo que foi substituído por Felisa Miceli.
xariam o país). Para evitar a ruína total do sistema financeiro, Cavallo congelou A nova ministra das Finanças não tardou a anunciar que a Argentina se serviria
todas as contas em dólares, mas em dezembro a economia argentina sofreu o pior das suas reservas estrangeiras para pagar a dívida de $10 mil milhões ao FMI
colapso financeiro de que há memória. com três anos de antecedência, poupando $mil milhões em juros, iniciativa que
A 13 de dezembro, a uma greve geral de 24 horas seguiram-se manifestações reforçou a confiança na recuperação da Argentina.
e motins, em que morreram 25 pessoas. De Ia Rua declarou o estado de emer- A corrupção associada aos anos Menem, aliada ao trauma da crise de 2001,
gência, mas as classes médias, cujas poupanças e hipotecas estavam em dólares, deixara as instituições argentinas desacreditadas, e apesar de Kirchner ter
juntaram-se aos protestos nas ruas, e a repulsa geral pelos políticos foi expres- tomado medidas para restaurar a credibilidade da vida pública, reformando o
sada nas palavras de protesto «Que se vayan todos!». Os subúrbios pobres foram Supremo Tribunal, por exemplo, a verdade era que a política partidária conti-
invadidos por uma atmosfera revolucionária, com ocupações de fábricas, assem- nuava a basear-se na lealdade a caudilhos, o que tendia a turvai" as águas em
bleias locais e a emergência de grupos agressivos de piqueteros (ou piquetes), tempo de eleições. Não ajudou à situação o facto de Kirchner ter abandonado o
que bloquearam estradas e, organizaram comícios de massas. Perante tal ira cargo em 2007 para dar lugar à sua mulher, Cristina Fernández, o que levantou
popular, De Ia Rua optou por se demitir a 20 de dezembro, mas nada menos do a suspeita de que estaria a formar-se uma dinastia no seio da elite neoperonista.
que três presidentes interinos apresentaram a sua demissão no espaço de duas Cristina em breve entrou em conflito com o lobby dos agricultores, quando
semanas. Para agravar o tumulto, a Argentina entrou em bancarrota, com uma aumentou os impostos sobre as exportações e impôs um teto à exportação de
dívida externa de $80 mil milhões, a maior da história. O congresso elegeu então carne de vaca, com o objetivo de canalizar recursos para a assistência social e
o peronista Eduardo Duhalde. O novo presidente interino desvalorizou final- manter os preços dos alimentos baixos para os argentinos que ainda sofriam com
mente o peso, que sofreu uma queda de 400% ao longo dos dez dias seguintes. os efeitos da crise de 2001. Depois de meses de violentos protestos e bloqueios

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de estrada montados por agricultores zangados, a presidente viu-se obrigada a Ouviram-se protestos contra a NAFTA vindos de políticos nacionalistas, dos
recuar. À semelhança do que fizera o seu marido, tentou consolidar o apoio das sindicatos, de industriais mexicanos e outros, mas precisamente no dia em que o
massas no plano interno associando-se a líderes radicais estrangeiros, como acordo entrou em vigor, várias centenas de guerrilheiros índios maias ocuparam
Hugo Chávez, da Venezuela (Chávez teria alegadamente ajudado a financiar a a cidade de San Cristóbal de Lãs Casas, no estado de Chiapas, ao sul, O líder
campanha eleitoral de Cristina Fernández); em 2009, a presidente visitou Cuba deste Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) era um professor uni-
e foi elogiada pelo próprio Fidel Castro. Gestos como este ajudaram a encobrir versitário branco, conhecido como subcomandante Marcos, que se apresentava
as fissuras do consenso que sustinha a democracia argentina desde o desaire das aos media como uma figura de máscara, a fumar cachimbo, e que durante algum
Falklands/Malvinas. E talvez só o movimento peronista, esse monstro populista tempo intrigou o público internacional, denunciando a NAFTA e reivindicando
de muitas cabeças, poderia ter salvo o Estado da crise revolucionária que quase o direito à autonomia das comunidades maias do Sul empobrecido. Salinas
o destruiu em 2001-2002. Ainda assim, um quarto da população continuava a enviou imediatamente um exército e a área foi novamente controlada, à custa de
viver abaixo do limiar de pobreza e os acontecimentos de 2009 nada augura- cerca de uma centena de vidas. Foi declarado uni cessar-fogo e encetaram-se
vam de bom para a estabilidade política - a pior seca em 50 anos atingiu as negociações com o EZLN, que se arrastaram até o assunto dar lugar a preocupa-
pampas no momento em que as dificuldades na economia global reduziram a ções nacionais mais urgentes.
procura das exportações (até das exportações de soja para a China, o país que Ainda assim, 1994 foi um ano de violência política excecional. Em 1993, o
mais dinheiro dava a ganhar aos agricultores argentinos, tinham caído 40% até cardeal-arcebispo de Guadalajara fora assassinado por barões da droga (que
ao mês de maio). tinham por intenção matar um rival); alguns meses depois da revolta zapatista,
o candidato do PRI às eleições presidenciais que se avizinhavam foi também
assassinado, e passados meses foi o secretário-geral do PRI que teve o mesmo
MÉXICO fim. Salinas escolheu então Ernesto Zedillo, outro tecnocrata, para ser o novo
candidato do PRI, mas o clima conturbado que se vivia assustou os investidores
Foi o facto de o México ter entrado em bancarrota em 1982 que desencadeou estrangeiros e o valor dos títulos e das ações mexicanas registou uma queda alar-
a crise da dívida que se estendeu a toda a América Latina. E essa crise foi tão mante, originando o que ficou conhecido como a «Crise Tequila» de 1994-1995.
severa que até o PRI (Partido Revolucionário Institucional), que durante 60 anos Quando sucedeu a Salinas, em dezembro de 1995, Zedillo tentou estancar a
fora tão bem-sucedido à frente de um Estado corporativo de partido único, teve hemorragia financeira através de uma desvalorização controlada, mas viu-se obri-
dificuldade em lidar com a situação. Em 1988, o PRI entregou a presidência, do gado a atribuir uma cotação flutuante ao peso, que só estabilizou depois de uma
modo habitual, a Carlos Salinas, que fora responsável pelas reformas liberali- injeção de aproximadamente $50 mil milhões do Tesouro dos EUA e de outros
zantes da administração anterior. Porém, durante os seis anos de mandato de fundos do FMI, aliada a uma política de controlo salarial e ao aumento dos impos-
Salinas, a reação interna ao programa do FMI, combinada com a exposição aos tos e das taxas de juro. A procura interna caiu e a economia contraiu-se cerca de
mercados financeiros internacionais, começou a destruir a estrutura de patrocínio 6%. Para tornar a situação ainda mais grave, vários dos bancos recém-privatizados
que mantinha o sistema unido. Por outro lado, o México teve de competir com a tiveram de ser salvos do colapso financeiro por um colossal resgate do governo.
ameaça cada vez mais séria dos cartéis de droga que contrabandeavam droga A «Crise Tequila» levou a uma luta pelo poder nos círculos dirigentes do
para os EUA. PRI. Zedillo culpou Salinas pela crise, enquanto Salinas acusou Zedillo de má
Salinas teve algum êxito em estabilizar e liberalizar a economia mexicana . gestão económica. Depois, o irmão de Salinas, Raul, foi preso por alegado envol-
Reduziu a inflação, negociou uma restruturação da dívida externa, e privatizou vimento no assassínio do secretário-geral do PRI, e alguns meses mais tarde
os bancos, as telecomunicações e algumas indústrias estatais, à exceção da voltou a ter problemas por suspeita de lavagem de dinheiro através de uma conta
Pemex, a empresa petrolífera do Estado que era a relíquia dos nacionalistas, mas secreta na Suíça, para onde Carlos Salinas também teria alegadamente transfe-
até no que tocava à Pemex as companhias petrolíferas puderam licitar por con- rido verbas enquanto estava na presidência. Estes escândalos prejudicaram ainda
tratos. Salinas procurou consolidar as suas reformas negociando um acordo de mais a já manchada reputação do PRI, e o partido perdeu o controlo da câmara
comércio livre com os EUA e com o Canadá, e a l de janeiro de 1994 foi for- baixa nas eleições de 1997 para o congresso.
mada a zona de comércio livre NAFTA, que no espaço de alguns anos faria do Zedillo tentou restaurar a credibilidade do sistema político diminuindo o
México o principal parceiro comercial dos EUA a seguir ao Canadá. poder do Estado corporativo - criou um Supremo Tribunal de Justiça indepen-

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dente, um Banco Central independente, e uma autoridade também independente A derrota do PRI nas eleições presidenciais de 2000 prometia uma mudança
para supervisionar as eleições. Igualmente significativa foi a abolição do dedazo de maré na política mexicana, mas as vitórias controversas dos dois subsequen-
- o privilégio oficioso de escolher o seu sucessor de entre as fileira do PRI. Em tes presidentes do PAN mostraram que o país não chegara ainda a um consenso
2000, o PRI perdeu as eleições presidenciais pela primeira vez em 71 anos. duradouro quanto às regras do jogo político. Calderón manteve a economia
O vencedor foi Vicente Fox, do partido PAN conservador, um rancheiro de pos- estável e esta continuou a crescer, graças à NAFTA, até a economia dos EUA
ses e antigo diretor-executivo da Coca-Cola no México. abrandar em 2007 e depois sofrer um colapso, em finais de 2008. A severa crise
Apesar desta vitória histórica, Fox teria dificuldade em conseguir a aprova- do seu maior parceiro comercial - 80% das suas exportações destinavam-se aos
ção de reformas liberalizantes, visto não controlar nenhuma das câmaras do EUA - teve graves repercussões no México, também devido ao decréscimo das
congresso; o PRI continuava poderoso também aos níveis estatal e municipal. verbas enviadas por trabalhadores mexicanos dos EUA e devido aos lay-offs das
E embora a economia tenha recuperado bem da Crise Tequila, em grande parte maqiiiladoras, as fábricas situadas ap longo da fronteira que produziam compo-
graças ao crescimento do comércio por via da NAFTA, a sua nova abertura tor- nentes para a indústria automóvel norte-americana. A democracia no México
nou-a vulnerável, em 2001, ao crash das empresas tecnológicas dos EUA. Fox podia ainda ser minada por uma longa recessão global (a sua economia contraiu-
manteve os programas de apoio social iniciados por Salinas e desenvolvidos por -se 8% nos primeiros três meses de 2009), ou comprometida pela criminalidade
Zedillo; e quando a economia recuperou, conseguiu reduzir o endividamento do dos cartéis de droga.
governo e também a taxa de inflação, que se manteve em valores de um só dígito
durante vários anos, até ao final do seu mandato em 2006. A maioria dos países latino-americanos conseguiu ultrapassar a crise da
Nas eleições presidenciais seguintes, Felipe Calderón, do PAN, arrecadou a dívida e o «ajustamento» económico sem violar as regras da democracia eleito-
custo 35,9% dos votos, contra os 35,3% do seu rival António Manuel López ral, mas a oposição ganhou força a partir de finais dos anos 90. Ainda assim, as
Obrador do PRD (uma ramificação da ala esquerda do PRI). Afirmando ter sido forças armadas mantiveram-se à margem da política e, exceto na Colômbia e no
vítima de fraude, López Obrador organizou grandes manifestações nas ruas da Peru, os movimentos revolucionários optaram por concorrer a eleições mesmo
capital, e mesmo quando a autoridade eleitoral independente finalmente confir- em países que haviam passado por guerras de guerrilha em anos recentes.
mou a vitória de Calderón por uma estreita margem, Obrador recusou-se a acei- Na América Central, os sandinistas marxistas da Nicarágua, cujas tentativas
tar o resultado e prosseguiu com a sua campanha de protesto enquanto teve de construir um Estado socialista haviam fracassado, concorreram às eleições em
ânimo para tal. Esta contestação da vitória enfraqueceu Calderón, que, tal como 1990 e perderam para um partido conservador, mas depois de mais de uma
Fox, teria dificuldade em fazer aprovar reformas por um congresso hostil. década de política eleitoral, o seu líder, Daniel Ortega, foi eleito presidente em
Calderón combateu com determinação o tráfico de droga, que ameaçava 2006 (embora não tenha tardado a deparar-se com a oposição até dos seus anti-
mergulhar o país na desordem. A escala do problema era assombrosa - 90% de gos camaradas, por ter firmado um acordo alegadamente corrupto com o líder do
toda a cocaína que entrava nos EUA passava pelo México, e três cartéis lutavam partido de direita ARENA). Em El Salvador, a guerrilha marxista da Frente
pelo controlo daquele comércio tão lucrativo. Quando Calderón chamou o Exér- Farabundo Marti de Libertação Nacional (FFMLN) também trocou as armas
cito para combater os cartéis, em dezembro de 2006, deu-se uma terrível esca- pelas urnas, acabando por conseguir controlar o congresso e, mais tarde, metade
lada de violência: cerca de 450 polícias e soldados mexicanos foram assassina- dos assentos do executivo, quando Maurício Funes foi eleito presidente em
dos nos dois anos seguintes; só em 2008, houve 5300 assassínios relacionados março de 2009. Até a Guatemala, há muito torturada por ditaduras militares,
com droga no México, mais do dobro do ano anterior. (Um homem detido em optou pela política eleitoral em 1996, depois de uma guerra interna que incluiu
2009 confessou ter sido pago por um cartel para dissolver 300 cadáveres em a repressão genocida de índios maias pelo Exército guatemalteco, em que um
ácido.) Os barões da droga subornavam militares e agentes da polícia e importa- número estimado em 80 000 pessoas foram mortas ou «desapareceram» entre
vam armamento do mundo do crime norte-americano; quando a violência se meados dos anos 60 e meados dos anos 90. Este terrível conflito fora desencade-
estendeu às áreas fronteiriças, em território dos EUA, a administração Bush ado pelo derrube do presidente reformador Jacobo Arbenz, num golpe organi-
decidiu colaborar com o governo mexicano para tentar conter o problema. Em zado pela CIA em 1954. Foi a queda de Arbenz que afastou jovens radicais de
junho de 2008, o Congresso dos EUA aprovou um pacote de ajuda de $400 toda a América Latina, convencendo-os da necessidade de luta armada. (Este foi
milhões para o México, destinado a equipamento e treino militar, e concordou o fator determinante na decisão de Che Guevara de se juntar à revolta de Fidel
em reforçar o sistema judicial na campanha contra os cartéis. Castro em Cuba em 1956.)

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Contudo, os movimentos de guerrilha que se formaram nos anos 60 e 70, na Hugo Chávez empreender um esforço determinado, no novo milénio, para
esteira da Revolução Cubana, viam-se como uma vanguarda revolucionária, pelo traduzir esse sonho continental numa realidade geopolítica, através daquilo
que lhes faltava uma base ampla entre o operariado ou os camponeses. Mas na que designou corno «Revolução Bolivariana», em homenagem ao grande Liber-
América do Sul soprava um vento de mudança, e a partir da década de 90, em tador.
vários países andinos, surgiram verdadeiros movimentos de massas que, evi- Os países andinos estavam atrasados na modernização, tendo-se industriali-
tando a luta armada, adotaram uma nova estratégia de ação revolucionária, em zado mais tarde e de modo menos abrangente do que os países mais avançados
que a Venezuela foi pioneira. anteriormente discutidos. Estas repúblicas nunca tinham alcançado uma estabili-
dade duradoura após a independência, e os recorrentes conflitos entre liberais e
conservadores resultaram em longos períodos de ditadura. Para tal contribuiu
OS PAÍSES ANDINOS decisivamente a sua complexa geografia: em traços gerais, todos estes países
estão divididos em três regiões - a costa, a serra andina e as terras baixas tropi-
Os destinos dos países andinos - Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia e cais da bacia Amazonas-Orinoco. Além disso, no Peru, na Bolívia e no Equador
Equador - tinham convergido em diferentes momentos e de diferentes formas. existia uma divisão profunda entre os setores hispânico e indígena, pois estes
À exceção da Venezuela, que fora uma capitania-geral no vice-reino da Nova territórios tinham outrora integrado o império inça, e as suas comunidades índias
Espanha (México), os referidos territórios tinham em tempos constituído parte tinham estado sujeitas à soberania da aristocracia inça e, mais tarde, a uma casta
do vastíssimo vice-reino do Peru, que se encontrava dividido em jurisdições de proprietários de terra hispânicos.
semiautónomas conhecidas como audiências. A atua! Bolívia, então chamada A Colômbia e a Venezuela eram mais semelhantes, em parte porque as suas
Alto Peru, era designada Audiência de Charcas, o Equador foi em tempos a divisões étnicas, sociais e culturais não eram tão profundas como nos países
Audiência de Quito, e a Colômbia moderna chamava-se Audiência de Santa dos Altos Andes (na Venezuela, 80% da população era mestiça; na Colômbia,
Fe, com capital em Bogotá, até 1739, ano em que subiu de estatuto, tendo-se 58% mestiça e 20% branca). Esta relativa homogeneidade garantiu uma maior
tornado o vice-reino de Nova Granada, no qual foram integradas & Audiência de coesão, que permitiu o desenvolvimento de uma tradição democrática - ainda
Quito e a Venezuela, que se também se tornou uma audiência. que limitada - e de economias mais dinâmicas. Se a prosperidade da Venezuela
Estes territórios foram uma vez mais ligados, após a independência, pelo residia nos seus abundantes depósitos de petróleo, a Colômbia possuía uma eco-
libertador venezuelano Simón Bolívar, cujos exércitos os libertaram a todos do nomia mais diversificada, tendo reduzido a sua antiga dependência da exporta-
domínio espanhol. Bolívar uniu, então, o vice-reino de Nova Granada à capita- ção de café. Nos anos 90, os dois países divergiram profundamente nas suas
nia-geral da Venezuela, para criar a «República da Colômbia» (hoje muitas vezes trajetórias políticas, oferecendo às restantes, e menos avançadas, repúblicas
referida como a «Grande Colômbia»), que abrangia a Colômbia, o Panamá, o andinas dois caminhos de desenvolvimento bem distintos.
Equador e a Venezuela atuais. Este novo Estado não durou, todavia, mais do
que alguns anos: em 1830 já se desmembrara em três repúblicas independentes
- Venezuela, Equador e Colômbia (o Panamá só se separaria da Colômbia COLÔMBIA
moderna em ] 903). Peru e Alto Peru também se separaram, o primeiro para se
tornar uma república com o seu antigo nome, e o segundo para constituir a Repú- A Colômbia moderna viria a ter o pior historial de violência política no con-
blica da Bolívia. Na verdade, os nítidos contornos deixados por três séculos de tinente. Fragmentado, devido à sua geografia difícil, em regiões conflituosas, o
domínio espanhol dificilmente poderiam ser apagados, e as fronteiras das novas país conseguira sair do pântano de La violência - a guerra civil que nele lavrou
repúblicas corresponderiam, grosso modo, às fronteiras das antigas jurisdições entre 1948 e 1964 - graças à «Frente Nacional» de 1958, um pacto mediante
coloniais. o qual os partidos conservador e liberal aceitaram alternar na presidência e par-
O sonho de Simón Bolívar fora recriar na forma republicana a unidade tilhar cargos no executivo. Graças a este consenso temporário, a Colômbia con-
que suportara os muitos reinos da Coroa espanhola, mas a força unificadora seguiu passar pelo processo de industrialização com um êxito considerável,
que sustivera o império perdeu-se após a independência. A ideia de uma união alcançando uma das taxas de crescimento mais elevadas e uma das taxas de
continental, uma federação de repúblicas hispano-americanos, ressurgiria de endividamento mais reduzidas da América Latina. A estabilidade económica
tempos a tempos na retórica de líderes políticos, mas nada se concretizou até permitiu o abandono gradual do pacto da Frente Nacional a partir de 1974:

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a alternância na presidência deu lugar a eleições livres, e os gabinetes bipartidá- negociações se arrastavam, Pastrana voltou-se para os EUA e, em julho de 2001,
rios também deixaram de existir na década de 80. Além disso, a Colômbia lidou ao abrigo do «Plano Colômbia», obteve mil milhões de dólares em ajuda e treino
com a crise da dívida dos anos 80 bastante melhor do que a maioria dos restantes militar para pôr fim ao cultivo da folha de coca e para perseguir os traficantes e
países. Mas isto era apenas parte da história: o Estado continuava a ser ator- as guerrilhas responsáveis pelo comércio de cocaína. As conversações de paz
mentado por três exércitos de guerrilha marxistas, por vários cartéis de droga com as FARC prosseguiram, ainda assim, de modo intermitente, com Pastrana a
poderosos e, cada vez mais, por grupos paramilitares de direita aparentemente adiar constantemente a data-limite na zona segura, até que, em fevereiro de 2002,
formados para defender os cidadãos contra a violência das guerrilhas e dos nar- o presidente enviou finalmente as forças armadas.
cotraficantes, mas que haviam degenerado em gangues semicriminosos. Dada a impossibilidade de chegar a um compromisso com as guerrilhas, não
A taxa de raptos, ataques bombistas e homicídios foi aumentando ao longo causou surpresa o facto de Álvaro Uribe, da linha dura, ser eleito presidente em
da década de 80, atingindo um terrível pico em 1989, ano em que três can- maio de 2002, com uma vitória ressonante à primeira volta. Uribe prometia
didatos presidenciais foram assassinados. A Colômbia parecia condenada ao «segurança democrática» — a segurança da lei e da ordem sem prejuízo das liber-
desastre, mas este país cronicamente dividido mostrou a sua extraordinária dades democráticas, mas a sua tomada de posse foi assinalada por explosões em
resiliência depois da eleição do liberal César Gaviria, quando se formou uma Bogotá, das quais resultaram 20 vítimas mortais. Uribe, cujo pai fora assassinado
assembleia constituinte para elaborar uma nova constituição. O objetivo era pelas FARC, estava determinado a desmantelar as guerrilhas e declarou o estado
criar uma democracia institucional com uma base mais ampla e raízes mais pro- de emergência. Ao longo dos anos seguintes haveria alguns progressos no com-
fundas aumentando a responsabilidade do governo em vários níveis. A constitui- bate às FARC - um dos seus principais dirigentes foi capturado e preso em 2004;
ção de 1991 reequilibrou os governos central e locais, fortalecendo o exe- Uribe também iniciou conversações para desarmar as forças paramilitares, e em
cutivo nacional ao mesmo tempo que conferia poderes consideráveis às regiões 2005 encetou negociações de paz com a ELN, a outra grande força de guerrilha
e às cidades, algumas das quais, como Bogotá e Medellín, gozariam de grande na Colômbia. Mas se mereceu a aprovação do público pela sua campanha contra
prosperidade nos anos seguintes, dirigidas por presidentes de câmara dinâmicos a violência, Uribe foi menos popular na frente política, perdendo, em outubro de
e eficientes. 2003, um referendo para decidir da aplicação de um pacote de medidas de aus-
Apesar da amnistia oferecida aos exércitos de guerrilha que optassem pelo teridade económica, juntamente com reformas políticas que teriam fortalecido o
desarmamento e aderissem ao processo (só um aceitou), deu-se uma nova esca- governo central.
lada de violência nos anos 90, que ameaçou a nova constituição. Os cartéis de Em 2006, numa iniciativa controversa, obteve de um congresso dominado
droga encontravam-se agora em guerra aberta contra o Estado, especialmente o pelos seus próprios apoiantes a aprovação para se candidatar a um segundo man-
cartel de Medellín, liderado pela carismática figura robin-hoodesca de Pablo dato, e foi reeleito dois meses mais tarde. Em face da crescente indignação
Escobar, até este acabar por ser morto num tiroteio com a polícia em 1993. pública com o interminável problema da tomada de reféns pelas guerrilhas - em
Depois foi a vez de o cartel de Cali se tornar proeminente, e enquanto prosse- julho de 2007 ocorreram manifestações nas ruas contra os raptos e a violência -,
guiam os raptos e os tiroteios os barões da droga tentavam a todo o custo infil- Uribe tentou desarmar as forças paramilitares de direita e entrou em complexas
trar-se na administração pública através do suborno. A presidência do liberal negociações com as FARC para trocar reféns por guerrilheiros presos. O presi-
Ernesto Samper (1994-8) foi ensombrada por um escândalo em torno de alega- dente venezuelano, Hugo Chávez, mediou estas conversações durante algum
das contribuições de barões da droga para a sua campanha eleitoral, e pela sua tempo, mas a sua postura branda para com a guerrilha criou tensões com Uribe,
relutância em cooperar com os EUA na extradição de narcotraficantes. e acabou por gerar um conflito diplomático entre os dois países - e também o
Sucedendo a Samper, o conservador Andrés Pastrana encetou negociações Equador -, quando as forças colombianas atacaram uma base das FARC em
de paz com o maior dos exércitos de guerrilha, as Forças Armadas Revolucioná- território equatoriano em março de 2008. A maré começou a mudar a favor de
rias da Colômbia (FARC). Fundadas em 1964, como braço armado do Partido Uribe alguns meses mais tarde. Em maio, o líder das FARC morreu, e passado
Comunista, para lutar pelos interesses dos camponeses de regiões pobres, as pouco tempo vários rebeldes de topo renderam-se às autoridades. Depois, em
FARC tinham como objetivo declarado derrubar o Estado capitalista, mas julho, o governo alcançou uma vitória impressionante quando as suas forças
haviam recorrido a raptos e ao tráfico de droga para se financiarem. Em novem- especiais se infiltraram nas FARC e, sem derramar uma gota de sangue, liberta-
bro de 1998, Pastrana concordou em retirar o Exército colombiano de uma ram 15 reféns, incluindo Ingrid Betancourt, uma antiga candidata à presidên-
região do Sudeste do tamanho da Suíça e entregá-la às FARC. Mas ao ver que as cia que estivera nas mãos da guerrilha durante seis anos. Esta extraordinária

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operação foi recebida com júbilo pelo público, e constituiu um desastroso revés inflação disparou, criando unia interminável vaga de consumo, pelo menos para
para as FARC. Não se sabia, no entanto, se teria sido um golpe fatal para a guer- as classes médias.
rilha, que parecia estar a reorganizar-se sob o comando de um novo líder. A expansão industrial atraiu os camponeses para uma série de cidades ao
Apesar destes êxitos, Uribe viu-se implicado num escândalo em torno do longo da costa, mas nem a indústria petrolífera nem a preguiçosa economia
alegado suborno de congressistas para conseguir a aprovação da lei que lhe per- não-petrolífera conseguiram absorver um tal influxo, e esta limitação interna,
mitiu concorrer a um segundo mandato em 2006. Uribe conquistara um imenso combinada com uma população em crescimento, estaria na origem de um fosso
apoio popular em virtude dos seus esforços para erradicar a violência política, profundo entre ricos e pobres. Caracas, por exemplo, tornou-se uma megacidade,
mas como seriam esses esforços prosseguidos se o presidente tivesse de abando- com arranha-céus e autoestradas, rodeada por quilómetros de bairros de lata.
nar o cargo por razões constitucionais? A Colômbia não tinha ainda as suas ins- Mas as populações urbanas pobres permaneciam fora do alcance das redes de
tituições suficientemente consolidadas para ultrapassar o personalismo que patrocínio de que os dois partidos dominantes dependiam para alternar no poder.
caracterizara a política da América Latina, pois ainda agora o sucesso no com- Neste sistema oligárquico, a riqueza gerada pelo petróleo concentrou-se nas
bate aos inimigos do Estado democrático dependia em grande parte do carácter camadas mais altas, enquanto a pobreza, que se situava nos 15% na década de
e da determinação de um homem. Com efeito, em maio de 2009, o senado votou 50, disparou para 50 % nos anos 80. Havia demasiadas pessoas que não retira-
a favor da realização de um referendo para decidir se Uribe poderia candidatar-se vam qualquer vantagem do sistema e que tinham escassas esperanças de melho-
a um terceiro mandato consecutivo em 2010. As sondagens revelaram que i rar a sua sorte.
do público aprovava um terceiro mandato para Uribe. Entretanto, a economia tornara-se altamente volátil, com o PIB a sofrer flu-
tuações de ano para ano; os défices atingiram valores em que era impossível
continuar sem um ajustamento financeiro. Em fevereiro de 1989, um antigo
VENEZUELA presidente, Carlos Andrés Pérez, da Acción Democrática, foi eleito e começou a
implementar o habitual pacote de austeridade do FMI para estabilizar a econo-
À semelhança da Colômbia, a Venezuela sofrera às mãos de caudilhos e mia. Mas passadas três semanas a capital, Caracas, foi varrida por uma onda de
ditadores desde a independência. Até aos anos 20, fora uma economia de planta- motins e pilhagem - um episódio que ficou conhecido como o Caracazo -, que
ção e criação de gado, mas a descoberta de abundantes reservas de petróleo não tardou a alastrar a outras cidades. Pérez chamou o Exército a intervir, e
transformá-la-ia num dos maiores produtores mundiais. Apesar deste achado, várias centenas de civis foram mortos na repressão.
decorreram cerca de 30 anos até que a democracia eleitoral pudesse vingar, e Dois anos após o Caracazo, um grupo de jovens oficiais do Exército, che-
mesmo assim limitada pelo sistema oligárquico Punto Fijo, um acordo de parti- fiado por Hugo Chávez, tentou um golpe contra Pérez. Tinham formado o Movi-
lha de poder entre dois partidos - a Acción Democrática, à esquerda do centro, mento Revolucionário Bolivariano, inspirados pela revolução socialista das for-
e o COPEI, democrata-cristão -, que entrou em vigor em 1958, o ano em que se ças armadas do Peru nos anos 70, e também pelo ideal de Simón Bolívar de uma
formou a Frente Nacional, muito semelhante, na Colômbia. união continental de Estados hispano-americanos. O golpe fracassou e Chávez
A longa prosperidade gerada pelo petróleo duraria até finais dos anos 70. foi preso, e um outro golpe, levado a cabo pelos companheiros de Chávez meses
A partir de 1950, aproximadamente, a economia da Venezuela começou a cres- mais tarde, também falhou, mas nessa altura já o sistema fechado de Punto Fijo
cer 6% ao ano, sendo o seu PIB um dos mais elevados da região e a taxa de estava fatalmente desacreditado. Em 1994, o presidente foi impugnado por cor-
inflação uma das mais reduzidas do mundo. A Venezuela também aderiu à ISI, rupção e preso, e o seu sucessor revelou-se incapaz de debelar a inflação ou de
financiada pelas receitas do petróleo da companhia nacionalizada, Petróleos de restaurar a disciplina fiscal - enfrentou o colapso da banca e greves contra as
Venezuela (DVSA). Porém, nos anos 70, um conjunto de problemas subjacentes medidas de austeridade. Então, em dezembro de 1998, Hugo Chávez, que fora
começou a tornar-se patente. O país tornara-se dependente das receitas do petró- libertado ao fim de apenas dois anos de prisão, foi eleito presidente com 56% dos
leo para resolver problemas fiscais e sociais, de tal modo que a produtividade e votos, prometendo mudanças radicais e a criação de uma «nova democracia».
o crescimento dos restante setores começaram a declinar; o petróleo sobrevalo- O programa de reformas implementado por Chávez deve ser entendido como
rizou a moeda, desequilibrando o comércio externo ao absorver as importações, uma reação àquilo que jovens oficiais como ele viam como uma oligarquia irre-
e à medida que os preços do petróleo se tornavam mais erráticos no mundo ins- mediavelmente corrupta que esbanjara os imensos recursos petrolíferos
tável dos anos 70 e 80, os governos foram-se endividando cada vez mais, e a da nação e que fizera muito pouco pelos pobres e desfavorecidos. Em 1999, foi

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realizado um referendo em que 88% dos eleitores aprovaram eleições para uma em que o eleitorado diria se Chávez deveria abandonar o cargo. Depois de alguns
assembleia constituinte que elaboraria uma nova constituição. Os apoiantes de atrasos, o presidente venceu o referendo em agosto de 2004.
Chávez obtiveram 119 dos 131 lugares nessa assembleia. Quando a nova consti- Os sucessivos obstáculos radicalizaram Chávez, que se mostrou determinado
tuição foi objeto de um novo referendo, em dezembro de 1999, foi aprovada por a transformar o país em nome do «socialismo do século xxi». Tratava-se aqui de
71% do eleitorado. uma ideologia embrionária que visava promover uma democracia «proativa e
A constituição de 1999 foi concebida para enfraquecer os partidos oligárqui- participativa», que aproximaria a tomada de decisão do povo através de comités
cos, fortalecendo o executivo e tomando a legislatura representativa de um leque localizados e, num objetivo mais ambicioso ainda, que substituiria em devido
mais vasto da sociedade. Assim, aumentava os poderes do presidente, introdu- tempo a economia de mercado, orientada para o lucro, por um sistema de troca
zindo mandatos de seis anos e a possibilidade de reeleição para um segundo de bens e serviços através de «equivalências» calculadas segundo valores de uso
mandato consecutivo, e punha fim ao desacreditado congresso de duas câmaras, acordados. Depois das tentativas fracassadas para o derrubarem, Chávez institu-
criando uma Assembleia Nacional constituída por uma única câmara, com 160 cionalizou o apoio popular num Partido Socialista Unido da Venezuela, e cha-
deputados eleitos por uma combinação de representação proporcional e maior mou conselheiros cubanos para o ajudarem a conceber um sistema de «missões»
número de votos, em que cada estado tinha um mínimo de três assentos, para o povo no muito vasto «setor informal». Cooperativas de trabalhadores,
independentemente da sua população. Uma inovação importante - na Venezuela supermercados subsidiados, programas de literacia e educação chegaram aos
e, de um modo geral, também na América Latina - era a atribuição de três luga- bairros de lata e às zonas rurais pobres. A Misión Barria Adentro, por exemplo,
res aos representantes eleitos dos povos indígenas, dos quais existiam 26 grupos estabeleceu centros de saúde gratuitos onde trabalhavam médicos, dentistas e
étnicos distintos, correspondendo a 1,4% da população. Por outro lado, o outros profissionais de saúde cubanos, enviados por Fidel Castro em troca de
Supremo Tribunal e o sistema judicial sofreram uma restruturação que visava petróleo a bom preço. Na frente internacional, Chávez levaria por diante a sua
libertá-los das interferências políticas geradoras de ineficiência e corrupção. ambição de concretizar a ideia de Simón Bolívar de uma união continental de
A constituição de 1999 também criou uma comissão eleitoral independente e um Estados hispano-americanos, designando oficialmente o país de «República
novo órgão governativo designado «Poder do Cidadão», dirigido por um Conse- Bolivariana da Venezuela», e usando as receitas do petróleo para encorajar uma
lho Moral Republicano de três elementos, que funcionaria como provedor e que aliança pró-Cuba com a Bolívia, o Equador, as Honduras, o Paraguai e a Argen-
garantiria os direitos constitucionais. Em julho de 2000, Chávez candidatou-se à tina, embora com diferentes graus de sucesso. E apesar de os EUA continuarem
reeleição, como a sua nova constituição lhe permitia fazer, e voltou a vencer, a ser o principal mercado para o petróleo venezuelano, Chávez parecia determi-
com 59% dos votos, tendo os seus apoiantes obtido 55% dos lugares na recém- nado a irritar a administração Bush das mais variadas formas, que incluíram uma
-formada Assembleia Nacional. visita ao Iraque de Saddam Hussein e outra ao Irão. Só em 2008, Chávez expul-
Chávez começou o seu segundo mandato cautelosamente, com reformas sou o embaixador dos EUA como protesto pela alegada interferência da CIA na
educativas, agrárias e na indústria do petróleo; também criou uma campanha de Bolívia, convidou a Rússia a juntar-se à Venezuela em exercícios navais nas
assistência social destinada aos pobres dos bairros desfavorecidos. No entanto, Caraíbas e lançou o primeiro satélite de telecomunicações venezuelano na
estas reformas irritaram a oposição, que o acusaram de querer imitar Fidel China.
Castro; e quando Chávez demitiu o conselho de administração da companhia A política internacional de Chávez, de que foram exemplo a criação do bloco
petrolífera estatal PDVSA, a galinha dos ovos de ouro da economia venezuelana, de comércio ALBA e a compra de obrigações do tesouro de países muito endivi-
houve uma torrente de protestos, que incluiu uma greve geral. A 11 de abril de dados, como a Argentina ou o Equador, e também a sua política interna, com
2002, várias pessoas morreram quando a polícia disparou sobre manifestan- programas extensos de apoio social, foram financiadas pelas receitas provenien-
tes em Caracas, episódio que esteve na origem de um golpe de Estado contra tes do petróleo, mais precisamente pelo FONDEN, um fundo ao dispor do pre-
Chávez. Porém, na confusão que se seguiu, outra facão militar levou a cabo um sidente, estimado em $28,78 mil milhões (o quádruplo do PIB da Nicarágua).
contragolpe e reinstalou Chávez no poder. Passados alguns meses, a oposição Contudo, desde que Chávez chegou ao poder, a economia foi-se tornando cada
tentou uma vez mais derrubar o presidente, organizando uma greve por tempo vez mais dependente do petróleo, que em 2006 era responsável por 92% do total
indeterminado na indústria petrolífera, mas o plano fracassou ao fim de nove de exportações. Chávez teve sorte com os preços elevados do petróleo em mea-
semanas, com custos ruinosos. Numa terceira tentativa para afastar Chávez, a dos dos anos 10 do século xxi, mas os problemas na PDVSA tinham afetado a
oposição serviu-se de um instrumento constitucional para realizar um referendo, produtividade, que estava em declínio, apesar dos tempos favoráveis. O aumento

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da despesa pública fez a inflação chegar aos 30%, aproximadamente, a taxa mais — utilizava um instrumento-chave do liberalismo político, nomeadamente elei-
elevada da América Latina, atingindo os salários e as poupanças; a quebra das ções livres e referendos (o eleitorado foi consultado 15 vezes entre 1998 e 2009),
poupanças determinou um enorme crescimento do consumo, que obrigou a um por forma a legitimar o desmantelamento do liberalismo económico e das refor-
aumento das importações, especialmente dos EUA, retirando competitividade às mas do FMI. E esta estratégia revelou-se de tal modo eficaz que, ao tentar der-
indústrias locais e criando dificuldades na balança de pagamentos mesmo em rubar Chávez pela força, a oposição venezuelana incitou-o, inadvertidamente, a
pleno boom do petróleo. O preço do petróleo no mercado mundial caiu de $122 aliar populismo caudilhista e política eleitoral na causa do socialismo revolucio-
o barril em julho de 2008 para $40 no começo de 2009, forçando Chávez a nário, oferecendo, assim, à esquerda latino-americana uma estratégia para con-
reduzir o orçamento em 6,7% em março de 2009 (apesar de ter aumentado o quistar poder no Estado, num momento em que a ideologia marxista não tinha
salário mínimo em 20%). O preço do petróleo era determinante para o projeto de outros defensores.
Chávez - uma queda sistemática teria um impacto profundo numa economia já
desequilibrada, e produziria, sem dúvida, uma grave crise num país onde cerca A Colômbia e a Venezuela foram dois exemplos bem diferentes para os seus
de metade da população era a favor de Chávez e cerca de metade estava contra. vizinhos andinos. A Colômbia desenvolveu-se seguindo as linhas recomendadas
Dir-se-ia que o presidente se preparava para essa crise aumentando e conso- pelo FMI e aliando-se aos EUA, procurando consolidar uma democracia capita-
lidando sistematicamente o seu poder: depois da tentativa de golpe de Estado em lista assente num Estado de direito e na separação de poderes. A Venezuela de
2002, Chávez procedeu a uma purga no Exército para prevenir outras iniciativas Hugo Chávez adotou uma postura hostil aos EUA e optou por um sistema simi-
do mesmo tipo, e os seus críticos acusavam o governo de anular liberdades civis lar ao de Cuba, mas recorrendo às urnas, e não à luta armada. O Peru seguiria o
e de limitar a liberdade de expressão perseguindo órgãos de comunicação hostis. exemplo da Colômbia, enquanto a Bolívia e o Equador - após um período de
O avanço do autoritarismo fez-se alegadamente acompanhar de corrupção nos liberalização radical sob a liderança de governos pró-EUA- mudariam de rumo
círculos do governo e do uso de fundos públicos para favorecer o partido do para seguir Chávez, imitando a sua estratégia política.
poder nas eleições. Chávez foi reeleito para um segundo mandato em dezembro Peru, Bolívia e Equador partilhavam, no entanto, muito mais semelhanças
de 2006 e autorizado pela Assembleia Nacional a governar por decreto durante entre si do que com a Colômbia ou a Venezuela, em virtude das suas numerosas
18 meses. Em dezembro de 2007 perdeu por pouco um referendo que lhe teria comunidades indígenas, que haviam permanecido à margem do poder durante
permitido a reeleição por um número de vezes indeterminado, mas repetiu a séculos. A divisão entre ricos e pobres característica de toda a América Latina foi
questão noutro referendo, realizado em fevereiro de 2009, e dessa vez ganhou ainda acentuada, nos Andes, por diferenças de raça, cultura e organização social,
com 54% dos votos. Este resultado permitir-lhe-ia voltar a candidatar-se em fatores que desde os tempos coloniais se combinaram para estigmatizar os índios
2012, e por quantas vezes entendesse fazê-lo. Tal como Allende no Chile, e para os excluir, em regra, da vida nacional. Na verdade, o colonialismo interno
Chávez estava empenhado numa revolução socialista, mas queria seguir as do crioulo hispânico sobre o índio agravou-se após a Independência, pois as
regras da política eleitoral. Parecia, todavia, provável, que se agravassem os constituições liberais das novas repúblicas não reconheciam a identidade distinta
problemas com a oposição, e nesse caso Chávez teria de reorganizar pela força, dos povos índios e, em nome da igualdade perante a lei, os direitos estatutários
em moldes socialistas, a sua sociedade brutalmente desigual, ou então teria de que protegiam as comunidades indígenas no tempo do império espanhol foram
recuar, de modo a evitar um conflito armado, como fizera Perón na Argentina, abolidos, permitindo que crioulos poderosos manipulassem o mercado livre e
deixando que o seu país terrivelmente dividido resvalasse para um longo período privassem os índios das suas melhores terras. Ainda no século xx, quando os
de instabilidade. nacionalistas chegaram ao poder, o mestiço é que foi considerado o verdadeiro
A ascensão de Hugo Chávez teria repercussões bem para além das fronteiras representante da nação, enquanto os índios eram ainda encarados como povos
da Venezuela. O seu empenho na solidariedade «bolivariana» entre as repúblicas atrasados e necessitados de assimilação. Muitos índios foram efetivamente pri-
latino-americanas, suportado pela riqueza do petróleo, poderia ter consequências vados dos seus direitos civis; os analfabetos, por exemplo, que na sua maioria
sérias para a geopolítica da região. Mas talvez o seu papel mais significativo eram índios, só obtiveram o direito de voto no Peru em 1979 e em 1980 no
tenha sido como catalisador do reaparecimento da esquerda revolucionária, que Equador.
fora castrada e desmoralizada desde o colapso da União Soviética e desde o A situação começou a mudar em meados do século xx. Na Bolívia, uma
fracasso das lutas de guerrilha dos anos 70. Chávez encontrara uma forma de revolta de mineiros e camponeses em 1952 levou ao poder um governo revolu-
neutralizar os seus opositores liberais combatendo-os nos seus próprios termos cionário que redistribuiu terra, nacionalizou as minas de estanho e melhorou os

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serviços de assistência social; também consagrou as línguas e os direitos nativos de violência e da hiperinflação escolheu Alberto Fujimori, um agrónomo desco-
na nova constituição. De modo semelhante, no Peru, entre 1968 e 1975, o regime nhecido de ascendência japonesa, que encabeçava um novo movimento chamado
militar do general Velasco Alvarado, de inclinação socialista, declarou o quíchua Cambio 90 (Mudança em 1990).
língua oficial, dividiu as grandes fazendas nos Andes e redistribuiu terra por Apesar da sua política algo indefinida, Fujimori implementou reformas orien-
comunidades indígenas. Estas medidas teriam consequências de longo alcance, tadas para o mercado livre, que foram recebidas com protestos pela classe traba-
pois apesar de ambas as revoluções terem sido interrompidas por golpes milita- lhadora e que desencadearam uma nova vaga de violência das guerrilhas. Mas
res, deixaram às comunidades andinas um legado de ação militante e uma cons- depois o presidente mudou de estratégia - encerrou o congresso em abril de 1992
ciência mais profunda da sua identidade coletiva como «índios». e governou por decreto, com apoio militar, até uma assembleia constituinte entrar
em funções e uma nova constituição ser aprovada em 1993. Na sequência deste
«autogolpe», Fujimori ordenou um ataque sistemático às guerrilhas; em junho de
PERU 1992, o líder do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA) foi preso; em
setembro deu-se uma captura ainda mais importante: nada menos do que o fugidio
O Peru está dividido desde o início. Os conquistadores espanhóis julgaram Abimael Gusmán, fundador e líder do Sendero Luminoso, que não tardaria a
as montanhas andinas pouco indicadas para colonização, e então Pizarro fundou incitar os guerrilheiros a deporem as armas. À medida que se somavam as deten-
Lima, a sua capital, na costa do Pacífico, dividindo para sempre o Peru entre as ções, Fujimori parecia ter conseguido o impossível - a vitória sobre o Sendero.
terras centrais do antigo império inça, nos Andes, com o seu centro histórico em A popularidade do presidente foi ainda acentuada por sinais de uma melhoria
Cusco, e uma região crioula hispânica ao longo da costa. Na sua qualidade de económica no clima mundial favorável de meados da década de 90. Fujimori foi
capital de um vice-reino que abrangia toda a América do Sul espanhola, Lima reeleito em 1995, uma vez que a constituição permitia agora uma reeleição con-
tornou-se imensamente rica, uma vez que todo o comércio com a metrópole tinha secutiva, e o seu partido obteve o controlo sobre o novo congresso de uma só
de aí ser registado até meados do século XVHI. Mas embora tenha continuado a câmara. Em abril de 1997, alcançou outra vitória impressionante sobre as guer-
dominar o país depois da emancipação, o seu poder não foi suficiente para impe- rilhas quando o Exército tomou de assalto a residência do embaixador japonês
dir que a nova república fosse abalada por guerras entre caudilhos rivais. Com em Lima e libertou, em segurança, centenas de reféns que guerrilheiros do
efeito, apesar das fases de prosperidade, a história do Peru independente carac- MRTA mantinham presos havia meses. Mas por esta altura já a popularidade de
terizou-se por ditaduras recorrentes; de tal forma que, por exemplo, a APRA, o Fujimori declinava, visto a economia peruana estar a sofrer os efeitos da crise
primeiro partido de massas, embora fundada em 1924, foi durante 60 anos afas- financeira asiática. Havia também inquietação relativamente às suas tendências
tada do poder por sucessivos ditadores, até lhe ser finalmente permitido vencer autoritárias, especialmente depois de o Supremo Tribunal lhe ter permitido que
as eleições presidenciais em 1985 (para vir encontrar uma economia em ruínas). se candidatasse à presidência novamente em 2000, argumentando que se tratava
Os governos que em 1975 sucederam à junta revolucionária do general da primeira reeleição após a constituição de 1993. Fujimori foi, então, obrigado
Velasco Alvarado não conseguiram controlar a inflação nem resolver o problema a um novo ato eleitoral pelo seu opositor Alejandro Toledo, outro independente,
da dívida nacional. A situação foi ainda agravada pela violenta guerra de guerri- mas Toledo acabou por abandonar a corrida, declarando-se vítima de fraude
lha do Sendero Luminoso, que pretendia criar um Estado maoísta em nome das eleitoral. Pouco depois da polémica eleição de Fujimori para um terceiro man-
comunidades índias dos Andes, mas que, na verdade, provocou a fuga em massa dato consecutivo, foi divulgada uma videogravação que mostrava o chefe dos
de camponeses índios para a segurança relativa de Lima. A economia do país serviços de informação, Vladimiro Montesinos, a oferecer um suborno a um
encontrava-se, de qualquer forma, num estado caótico. Alan Garcia, eleito em político para este se juntar ao partido de Fujimori. Em novembro de 2000, Fuji-
1985 como primeiro presidente da APRA, tentou conquistar popularidade desa- mori demitiu-se e pediu asilo ao Japão. O congresso declarou-o «inadequado»
fiando o FMI, mas fez disparar a inflação, que atingiria uma taxa anual de para o cargo e nomeou um presidente interino, que convocou eleições para junho
2700%. As guerrilhas maoístas estavam agora às portas de Lima e aterrorizavam de 2001. O vencedor foi, desta vez, Alejandro Toledo, que derrotou um anterior
a população com ataques bombistas, cortes de eletricidade e assassínios, mas presidente, Alan Garcia, do partido APRA.
perderam qualquer simpatia de que tivessem gozado entre a população quando Toledo era um índio que falava quíchua, oriundo de um meio andino pobre,
foram ao ponto de matar mulheres que se manifestavam a favor da paz nos bair- e um professor de gestão de empresas formado em Stanford. Prometia criar um
ros desfavorecidos. Nas eleições presidenciais de 1990, um eleitorado cansado milhão de postos de trabalho e reduzir a pobreza, mas continuou uma política de

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GLOBALIZAÇÃO E REFORMA: UMA ANÁLISE
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Com Alan Garcia, que seguiu, em traços gerais, a estratégia de Toledo, a


mercado livre, que suscitou fortes protestos da parte dos sindicatos. Toledo teve
economia manteve o seu desempenho excecional, ultrapassando o Chile em
também de lidar com o perturbador legado do passado recente. A perseguição do
2008, com uma taxa de crescimento de 9,5%, como os media peruanos não se
fugitivo Fujimori e de Montesinos tornou-se uma saga complicada em tomo da
cansaram se proclamar. Garcia viria, no entanto, a ter problemas por causa do
extradição, que finalmente terminou cerca de quatro anos mais tarde, quando
enorme crescimento da exploração de petróleo e gás natural por companhias
ambos foram julgados e presos. Em abril de 2002, foi nomeada uma comissão
estrangeiras na Amazónia peruana; e em outubro de 2008 todo o seu governo foi
para investigar violações de direitos humanos durante a guerra contra o Seridero
obrigado a demitir-se, em virtude de um escândalo que envolvia alegado suborno
Luminoso. Apesar das condições internacionais pouco favoráveis, surgiram em
na atribuição de contratos para exploração petrolífera. Além do mais, as questões
2004 os primeiros sinais de retoma económica, e sob a orientação de Pedro-
controversas do passado recente não estavam ainda resolvidas. Segundo o rela-
-Pablo Kuczynski, um defensor do mercado livre e de reformas estruturais na
tório da comissão que investigara a guerra contra o Sendero Luminoso, cerca de
América Latina, que se tornou ministro das Finanças de Toledo e mais tarde
4000 pessoas tinham «desaparecido» às mãos das forças armadas e mais de
primeiro-ministro, a economia desenvolveu-se rapidamente através do cresci-
69 000 tinham sido mortas, na maioria dos casos pelas guerrilhas. Depois,.em
mento e da diversificação das exportações agrícolas e de minérios. A China tor-
abril de 2009, o ex-presidente Fujimori, que voltara a julgamento cerca de 15
nar-se-ia um dos principais mercados para os minérios peruanos, e foram inicia-
meses antes, foi condenado a 30 anos de prisão, tendo sido dado como cúmplice
das negociações com vista a um acordo de comércio livre com os EUA, acordo
de vários homicídios e raptos no âmbito da guerra contra as guerrilhas. Esta
que durante anos fora inviabilizado pela oposição dos democratas nos EUA e
sentença desencadeou protestos entre os muitos apoiantes de Fujimori no país,
pelos agricultores pobres dos Andes (seria finalmente assinado em 2009, estando
para quem o antigo presidente salvara o Peru do caos que o Sendero Luminoso
o sucessor de Toledo no poder). A oposição a Toledo ganhou força quando a sua
ameaçava instalar. Por esta altura, Alan Garcia inflamou ainda mais a polémica
exaltada campanha contra a pobreza e o desemprego ficou aquém dos resultados
ao recusar um donativo de $2 milhões do governo alemão para a construção de
prometidos, apesar do bom crescimento económico. Os povos indígenas e os
um Museu de Ia Memória em homenagem a todas as vítimas da guerra de guer-
ambientalistas manifestaram o seu descontentamento relativamente à privatiza-
rilha. Confrontado com a torrente de críticas dos meios de comunicação social,
ção do petróleo e do gás natural descobertos na Amazónia. Pouco antes das
acabou por recuar e nomeou o seu antigo rival, o escritor Mário Vargas Llosa,
novas eleições, o considerável apoio a Ollanta Humala, um antigo oficial militar
para presidir a uma comissão que se encarregaria de estabelecer um museu.
radical de ascendência índia e admirador de Hugo Chávez, era indício de diver-
Mas o Sendero Luminoso não podia ainda ser desvalorizado como apenas
gências quanto à política de mercado livre e à exploração dos recursos naturais.
uma má memória - reorganizara-se há alguns anos, em vales remotos da floresta
Em junho de 2006, Humala venceu a primeira volta, mas, na segunda, a vitória
nas montanhas do centro-sul, e, financiado pelo contrabando de droga, levava a
coube ao ex-presidente Alan Garcia, da APRA, apesar da política esbanjadora
cabo operações contra o Exército, tendo morto 12 soldados e vários civis numa
que seguira no seu primeiro mandato (1985-90). Garcia regressou, então, ao
emboscada em outubro de 2008.
poder, com a promessa de conversão à economia de mercado livre e apontando
As disputas pela exploração de petróleo e gás natural na Amazónia inflama-
o Chile como modelo para o Peru.
ram-se perigosamente em junho de 2009, quando ocorreram confrontos entre a
Por que motivo optou o eleitorado pelo caminho capitalista seguido pelo
polícia e ativistas indígenas, tendo-se registado mais de 30 vítimas mortais,
Chile e pela Colômbia, rejeitando o candidato pró-Chávez, Ollanta Humala?
incluindo polícias. Seguiram-se violentas manifestações de estudantes e sindica-
Depois de 20 anos de atividade terrorista de dois exércitos de guerrilha, os perua-
tos em várias cidades. Os manifestantes opunham-se ao pacto de comércio livre
nos estavam cansados de instabilidade política. Por outro lado, a migração em
com os EUA, que finalmente entrara em vigor em fevereiro de 2009 e que, ale-
massa de índios para Lima alterou a demografia do país, de tal modo que, no iní-
gadamente, concedera direitos a companhias estrangeiras para procurarem petró-
cio do novo milénio, o Peru inteiro, dizia-se, se encontrava em Lima, uma cidade
leo e minérios numa área que representava 70% da floresta tropical peruana, sem
que crescera de meio milhão de habitantes em 1940 para cerca de 9 milhões. Esta
consulta prévia dos povos indígenas, conforme estipulado pela Convenção 169
transformação demográfica reduziu a força política da região andina e aumentou
da OMT, ratificada pelo Peru alguns anos antes. Tratava-se, no fundo, de uma
a influência da capital, o que teve uma influência decisiva sobre o resultado das
disputa por direitos de soberania sobre território nacional. Os manifestantes indí-
eleições de 2006. Lima optou, finalmente, por Alan Garcia porque a economia ia
genas reivindicavam o direito a decidir o futuro das suas terras ancestrais,
de vento em popa na primeira década do século, e as pessoas não tinham vontade
enquanto o presidente Garcia defendia que os recursos naturais da Amazónia
de embarcar numa experiência ao estilo de Chávez.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA G L O B A L I Z A Ç Ã O E R E F O R M A I UMA ANÁLISE

eram vitais para o desenvolvimento e pertenciam a todos os peruanos, e não assentava em duas jurisdições paralelas mediadas por oficiais da Coroa - a
exclusivamente aos seus habitantes indígenas. O Peru evitara até então o conflito «república dos Espanhóis» e a «república dos índios» —, tendo cada uma as suas
entre direitos étnicos e direitos dos cidadãos que tinham abalado a Bolívia no formas distintas de governo, posse de terra e economia. O que os movimentos
passado recente. Com efeito, o governo peruano acusou Evo Morales, o presi- indígenas pretendiam pode, então, caracterizar-se como uma atualização da
dente indígena da Bolívia, e aliado fundamental de Hugo Chávez, de ser um «república dos índios» do período colonial, uma vez que passava pela remode-
«inimigo do Peru» e de semear a agitação entre as comunidades indígenas; lação do Estado moderno numa espécie de federação corporativa de jurisdições
Morales, por sua vez, afirmou que as mortes dos manifestantes na Amazónia e territórios autónomos consagrados numa única constituição. Mas tais reivindi-
tinham sido um genocídio em nome do comércio livre. cações constituíam um desafio ao Estado-nação conforme concebido pelos pais
Os candidatos que se alinhavam para as eleições de 2011 mostravam que o fundadores aquando da Independência e, como seria de prever, provocaram uma
Peru podia, nos anos seguintes, enveredar por qualquer um de vários caminhos. forte reação da parte do setor não-indígena desses países.
Uma das candidatas na frente era a filha de Fujimori, Keiko, que prometia per-
doar o seu pai condenado se fosse eleita, e que provavelmente retomaria as suas
políticas de mercado livre, sem dúvida com forte oposição à esquerda. Outro BOLÍVIA
candidato provável era o ex-ministro das Finanças de Toledo, Kuczynski, que
prosseguiria com o tipo de gestão económica que dera ao Peru uma das taxas de Com o dobro da área da França, mas com menos de 10 milhões de habitan-
crescimento mais elevadas do mundo durante mais de 20 anos. Contudo, uma tes, a Bolívia era uma das repúblicas com pior desempenho desde a indepen-
grave crise económica iria certamente beneficiar Ollanta Humala, que perdera dência, em virtude da sua geografia, da sua composição étnica e de puro azar. Das
por pouco contra Alan Garcia em 2006, e nesse caso era bastante plausível que suas minas saíra outrora a prata que sustentara o império espanhol, mas o Alto
o Peru se juntasse à Bolívia e ao Equador, seguindo Hugo Chávez. Peru começara a desagregar-se pouco depois de ter recebido o nome de Bolívia,
em homenagem a Simón Bolívar, que foi proclamado o seu primeiro presidente
Nos anos 80, vários movimentos indígenas emergiram na Bolívia e no Equa- em 1825 e que escreveu a sua primeira constituição. Uma federação com o Peru
dor como reação aos cortes na despesa pública e às privatizações resultantes da republicano sucumbiu ao ataque do Chile (1836-39). A Bolívia ficou, então, iso-
prevalecente ortodoxia do FMI. Embora divididos por culturas e línguas locais, lada quando o Chile se apoderou de toda a sua faixa costeira na Guerra do Pací-
conseguiram reunir-se em torno da identidade índia, algo que os diferenciava do fico (1879-83), e perderia ainda mais território para o Brasil, o Peru e o Paraguai.
resto da sociedade, e tornar-se atores coletivos na política nacional, de um modo Dividido entre as montanhas andinas a oeste e as regiões baixas tropicais a leste,
só agora possível. Contudo, ao contrário do Sendero Luminoso no Peru, estes o país era ainda fraturado por diferenças étnicas, sociais e económicas. Mesmo
movimentos evitaram a luta armada e optaram por formar os seus próprios par- nos tempos modernos, dois terços da população consistiam em camponeses indí-
tidos políticos para disputar eleições, primeiro a nível local, e depois a nível genas, mineiros e comerciantes dos Andes, que coexistiam a custo com um setor
nacional. Foi a descoberta de petróleo e gás natural nos anos 90 que galvanizou mais favorecido de brancos e mestiços das terras baixas de leste.
as comunidades índias a exigirem que as receitas geradas por esses recursos Depois de a revolução socialista de 1952 ter sido reprimida pelas forças
nacionais fossem usadas para vencer a desigualdade. Iniciaram a sua ação atra- armadas, a Bolívia seria governada por juntas militares entre 1964 e 1982,
vés de greves e manifestações e, nos primeiros anos do novo século, o exemplo período em que se iniciou um processo de ISI mas no qual também se desenvol-
de Hugo Chávez, na Venezuela, funcionou como um catalisador que transformou veu, com conivência militar, um comércio de folha de coca, em que cartéis de
movimentos reformistas em forças revolucionárias determinadas a chegar ao droga pagavam a camponeses índios pobres para cultivarem a tradicional folha
poder através das urnas. para depois ser transformada em cocaína na Colômbia. No início da década de
O objetivo destes partidos indígenas não era apenas uma transferência de 80, a Bolívia sofria de uma inflação galopante e entrara em incumprimento nos
poder e recursos a favor dos pobres, mas também conquistar o direito a viverem pagamentos da sua dívida externa astronómica. Apesar de os militares terem
autonomamente nas suas terras de origem, com as suas formas tradicionais de entregado o poder a um governo civil em 1982, a hiperinflação, na ordem dos
exploração comunitária da terra e com instituições reguladas por usos y costum- 25 000% ao ano, revelou-se impossível de controlar, até 1985, altura em que
bres, com as suas próprias leis consuetudinárias. Estas reivindicações traziam Gonzalo Sánchez de Lozada, um economista formado nos EUA, implementou
problemas que remontavam ao período colonial, pois o Estado imperial espanhol uma política de mercado livre, que permitiu debelar a hiperinflação e equilibrar

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o orçamento, mas à custa de uma elevadíssima taxa de desemprego. Depois, o Semelhante combinação de desastres económicos e naturais alimentou o
preço do estanho nos mercados mundiais caiu a pique, destruindo a principal ressentimento dos povos indígenas contra as políticas recomendadas pelo FMI e
indústria exportadora da Bolívia e deixando 21 000 mineiros índios no desem- pelos EUA, após a descoberta de gás natural nas planícies do leste - e especial-
prego. Mineiros e camponeses marcharam em La Paz e foram dispersados por mente na província de Tarija, no extremo sul - em quantidades só ultrapassadas
tanques do Exército; ainda assim, a crise económica gerou, nas comunidades pela Venezuela. Os depósitos de gás natural pertenciam a companhias estrangei-
indígenas pobres, movimentos de autoajuda que se empenharam na procura de ras, que controlavam o setor energético desde as privatizações efetuadas em
soluções para os seus problemas. meados dos anos 90. Sucedeu que o arquiteto das referidas privatizações, Sán-
O impulso para a aplicação do programa do FMI foi renovado quando chez de Lozada, regressou à presidência em 2001, e planeava exportar o gás
Sánchez de Lozada chegou à presidência ern 1993. Lozada prosseguiu com a natural para os EUA através de um porto chileno.
abertura da economia a investidores estrangeiros, e com a privatização dos trans- Os movimentos indígenas opuseram-se ferozmente a este acordo de expor-
portes, da energia e dos serviços, que ficaram nas mãos de empresas multinacio- tação, pois a perspetiva de vkem estrangeiros apoderar-se dos recursos naturais
nais. Mais uma vez, milhares de pessoas perderam os seus empregos, mas o do país tocava num ponto sensível da psique índia, trazendo à superfície memó-
crescimento económico a uma taxa anual de 4% não era suficiente para dar rias dos Espanhóis a extraírem riquezas das grandes minas de prata de Potosí.
emprego a uma população que continuava a aumentar. Muitos ex-mineiros e E o acordo com o Chile também era motivo de indignação, uma vez que a faixa
camponeses sem terra desesperados migraram para as planícies de leste, espe- costeira e os portos da Bolívia tinham sido ocupados por aquele país em 1879.
cialmente para a região de Chapare, perto de Cochabamba, para cultivarem folha A somar a tudo isto, Sánchez de Lozada tentou criar um imposto sobre o rendi-
de coca destinada ao tráfico de droga. No entanto, em 1997, Hugo Banzer, um mento com vista a reduzir o défice fiscal, medida que foi recebida, em fevereiro
antigo ditador militar, foi eleito presidente e, a pedido dos EUA, lançou um pro- de 2003, com protestos violentos nos quais morreram 30 pessoas. Em outubro,
grama para eliminar o cultivo de folha de coca; em 2000, pôde gabar-se de ter protestos contra a exportação de gás natural culminaram num bloqueio de duas
praticamente erradicado esta prática no Chapare. (Esta guerra contra a cocaína, semanas a La Paz, incidente que causou 80 vítimas mortais. Sánchez de Lozada
embora largamente suportada por fundos norte-americanos, também custava à demitiu-se e foi substituído pelo vice-presidente, Carlos Mesa. Num referendo
Bolívia, um país pobre, cerca de 5% do seu Pffl anual.) A erradicação do cultivo sobre as exportações de gás natural, realizado em julho de 2004, a maioria
da planta criou grandes dificuldades aos camponeses, porque as compensações mostrou-se favorável ao controlo da indústria pelo Estado. Mas as divisões no
pela perda das suas colheitas eram insuficientes e porque as alternativas eram país tornavam-se cada vez mais vincadas: os políticos das províncias ricas em
muito menos rentáveis. À beira da mina, estes cocaleros, muitos dos quais recursos energéticos, nas planícies, exigiam uma maior autonomia relativamente
mineiros de estanho despedidos, mobilizaram-se em federações que vieram a ser ao governo central, e em janeiro de 2005 manifestações contra a subida dos pre-
lideradas por um índio aymara chamado Evo Morales, que aos 12 anos de idade ços dos combustíveis ocorreram em Santa Cruz, o centro das indústrias petrolí-
partira a pé, com o pai e o seu rebanho de lamas, das montanhas do Chapare, fera e de gás natural. À medida que decorriam manifestações violentas a favor e
onde nascera, para cultivar coca para sobreviver. contra a renacionalização da energia, também Mesa se demitiu do cargo.
Os problemas no Chapare não tardaram a agravar-se devido a uma «guerra Em dezembro de 2005, Evo Morales, o líder dos cocaleros e agora também
da água» em Cochabamba, que ocorreu em 2000, quando a Bechtel, a empresa dirigente de um partido designado Movimento para o Socialismo (MAS), tor-
multinacional com sede nos EUA, que detinha a recém-prívatizada companhia nou-se o primeiro índio a ser eleito presidente da Bolívia, tendo arrecadado
das águas, aumentou o preço da água em 43%, em média, para financiar um 53,7% dos votos. Numa cerimónia organizada pelos movimentos indígenas em
projeto hidroelétrico, o que provocou violentas manifestações dos pobres. Em El Tiwanaku, lugar de uma civilização pré-inca, Morales recebeu o tradicional bas-
Alto, originalmente uma zona desfavorecida indígena, perto do aeroporto de La tão de autoridade e prometeu começar a inverter 500 anos de exploração dos
Paz, que se tornou uma cidade, eclodiu outra «guerra da água» quando o governo povos índios. A estratégia que adotou foi semelhante à de Hugo Chávez na Vene-
aumentou as taxas de ligação à rede de abastecimento, e também neste caso os zuela, com quem estabeleceu uma estreita aliança. Ao longo do ano seguinte,
violentos protestos obrigaram à anulação da medida. Depois, em 2001, foi decla- iniciou um programa de renacionalização do setor energético e de redistribuição
rado o estado de calamidade em metade do país devido às cheias, e passado de terra. Os seus apoiantes conseguiram uma maioria na assembleia para elabo-
pouco tempo os efeitos da crise económica argentina induziram uma profunda rarem uma nova constituição que conferisse mais poder às comunidades indíge-
recessão, que pôs fim ao crescimento da Bolívia. nas e que garantisse os direitos do Estado aos recursos naturais. Mas estes planos

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dividiram o país em função das duas linhas geográficas e étnicas. A oposição a bloqueadas, Morales estava preparado para as aprovar por decreto. O destino do
Morales ganhou força nas províncias da metade leste do país, conhecida como a país dependia da possibilidade de criar um consenso em torno da nova constitui-
media lima (meia-lua), onde vivia a maior parte da população mestiça, e onde se ção entre a maioria índia e os brancos e mestiços das planícies do leste.
localizavam 80% dos depósitos de gás e de petróleo, bem como a principal
indústria agroalimentar de soja e criação de gado. A campanha para uma nova
constituição provocou, deste modo, um conflito de culturas e interesses econó- EQUADOR
micos. (Este conflito intensificar-se-ia devido à descoberta do que poderia ser
metade das reservas mundiais de lítio, um metal essencial para as baterias de Sendo o mais pequeno dos países andinos, o Equador apresenta-se de igual
automóvel, por baixo da planície de sal de Uyuni.) modo dividido em costa, montanhas e floresta, enquanto do ponto de vista étnico
Em agosto de 2008, a oposição conseguiu um referendo para decidir se se divide entre uma pequena elite crioula, uma maioria de mestiços e uma nume-
Morales se manteria na presidência, e Morales venceu sem dificuldade, com rosa minoria de povos indígenas. Após a. Independência, foi castigado por con-
67% dos votos, uma margem bastante mais confortável do que obtivera aquando flitos endémicos entre os conservadores dos Andes, cujas propriedades eram
da sua eleição. Em setembro, os governadores de quatro províncias da media ainda trabalhadas por índios, e as elites liberais da costa, onde se cultivava cacau
luna apelaram à desobediência civil; nos violentos confrontos que tiveram lugar, para exportação.
30 pessoas morreram e várias centenas ficaram feridas. Morales expulsou o Durante muitos anos, a sorte do Equador manteve-se dependente dos capri-
embaixador dos EUA, alegando que fora a embaixada norte-americana a instigar chos do mercado no que se referia ao cacau, mas a transição para o cultivo de
a agitação, apesar de Washington ter negado qualquer envolvimento. (Hugo banana trouxe prosperidade e um período relativamente estável após a II Guerra
Chávez também expulsou o embaixador americano na Venezuela, para manifes- Mundial. Contudo, expectativas mais elevadas, especialmente a partir dos anos
tar solidariedade.) Morales recusou-se ainda a cooperar com a DEA [agência 60, quando a procura de banana começou a decair, causaram uma nova fase de
norte-americana de combate à droga], declarando que a folha de coca era parte instabilidade, até um novo período de prosperidade se iniciai" nos primeiros anos
da herança indígena do país.
da década de 70, com a descoberta de petróleo nas florestas a leste dos Andes.
A nova constituição foi aprovada pelo congresso em outubro de 2008, depois Com o petróleo vieram, no entanto, dinheiro fácil, uma elevada despesa pública
de concessões feitas à oposição no que se referia a autonomia regional, reforma e um aumento da corrupção, à semelhança do que aconteceu na Venezuela. Nos
agrária e limitação da reeleição do presidente a mais um mandato, mas tinha anos 80, o país sofria de uma inflação galopante e de défices públicos cada vez
ainda de passar por dois referendos nacionais. Morales venceu ambas as consul- mais elevados, quadro que se agravou nos anos seguintes, como consequência
tas populares, e após a segunda, a 25 de janeiro de 2009, declarou que a sua dos danos causados pelo fenómeno climatérico El Nino e por um tremor de terra
vitória assinalava o «fim do Estado colonial», que a Bolívia estava a ser «refun- devastador. Mas o problema residia em estabilizar a economia sem desencadear
dada», e que existiria finalmente uma «verdadeira igualdade» para todos os greves e manifestações em grande escala. León Febres Cordero foi alvo de uma
bolivianos. A nova constituição estabelecia direitos indígenas, incluindo um tentativa de golpe de Estado e de greves quando tentou implementar uma política
sistema de justiça baseado no direito consuetudinário com estatuto equivalente de mercado livre entre 1984 e 1988, mas também nenhum dos seus sucessores
ao do sistema legal estabelecido, e um determinado número de lugares no con- conseguiu estabilizar a economia. Em meados dos anos 90, o país encontrava-se
gresso reservados a representantes dos povos indígenas. Descentralizava o num estado caótico, com crescimento negativo e uma taxa de inflação das mais
poder, conferindo autonomia a instâncias municipais, regionais e departamen- elevadas da região; depois, em 1999, a crise financeira asiática álingiu o Equador,
tais, mas também a territórios autónomos para 36 nações indígenas. Determinava causando o colapso da banca e ameaçando hiperinflação. Cerca de um milhão dê
a soberania do Estado sobre vários setores económicos e recursos naturais, equatorianos procuraram trabalho nos EUA e em Espanha, e o governo fez do
incluindo os depósitos de gás natural; a posse de terra seria, de futuro, limitada dólar dos EUA a moeda oficial, para trazer alguma estabilidade à economia.
a 5000 hectares de terreno «socialmente útil». Sendo permitido ao presidente O crescimento foi retomado passados alguns anos, graça aos preços elevados do
candidatar-se a um segundo mandato consecutivo, Morales podia governar até petróleo, mas o país continuava a sofrer de uma profunda instabilidade política
2014, se vencesse as eleições marcadas para dezembro de 2009. - entre 1996 e 2006, o Equador teria nada menos do que oito presidentes.
Não obstante, 40% do eleitorado votou contra a nova constituição, e as A raiz do problema era a extrema desigualdade da sociedade equatoriana,
suas disposições teriam ainda de passar pelo congresso; no entanto, se fossem algo que nenhuma prosperidade económica conseguira remediar e. que a inflação

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA GLOBALIZAÇÃO E REFORMA: UMA ANÁLISE

de longo prazo, bem como as tentativas falhadas de a controlar, tinham simples- congresso cedeu, Corrêa ganhou o referendo em abril, e teve uma maioria na
mente agravado. As comunidades indígenas das montanhas andinas centrais assembleia constituinte em setembro.
tinham ficado à margem tanto da riqueza gerada peio petróleo nas planícies do A nova constituição preparada pela assembleia obteve finalmente a aprova-
leste, como do crescimento propiciado pela banana nas zonas costeiras, pelo que ção de 64% dos eleitores num outro referendo realizado em setembro de 2008.
continuavam a ser o setor mais pobre da população, como eram há séculos. Esta «Magna Carta» assemelhava-se à nova constituição da Bolívia, garantindo
Todavia, nos anos 60 tinham-se formado vários movimentos que exigiam uma uma maior autonomia às regiões e a comunidades indígenas e outras, e definia
reforma agrária e outras reformas sociais; e em reação às medidas do FMI dos direitos para grupos e indivíduos, aplicáveis mediante recurso para um tribunal
anos 80, vários desses movimentos tinham-se unido numa Confederação de constitucional. Também consagrava o princípio do controlo do Estado sobre a
Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), a qual reivindicou terra, direi- economia e permitia a reeleição do presidente. Em abril de 2009, Corrêa venceu
tos civis e autonomia «plurinacional» com uma agressividade sem precedentes, as eleições presidenciais, ao abrigo da nova constituição, com 52% dos votos, o
que em junho de 1990 culminou na maior revolta indígena da história do Equa- que criou a possibilidade de vir a governar durante mais oito anos.
dor. Esta grande revolta, que paralisou o país durante uma semana, determinou Não havia grandes dúvidas de que Corrêa e o seu movimento gozavam de
uma mudança de estratégia dos movimentos indígenas - em vez de apoiarem um enorme apoio popular, mas a minoria na oposição era, ainda assim, signifi-
partidos estabelecidos, formaram o seu próprio partido, o Pachakutik («renova- cativa, especialmente em Guayaquil, a maior e mais dinâmica cidade do país,
ção», em quíchua), que a partir de 1995 passou a disputar eleições em todos os onde os líderes do mundo dos negócios denunciavam o programa de Corrêa
níveis. Na realidade, a aliança tática entre o Pachakutik, a CONAIE e outras como uma tentativa populista no sentido do poder autocrático e consideravam
organizações de trabalhadores criaria uma força de oposição que nenhum a nova constituição uma receita para o desastre económico, uma vez que a
governo conseguiu aplacar ou subjugar: os seus protestos violentos expulsaram institucionalização do controlo do Estado encorajaria uma elevada despesa
um presidente em 2000 e outro em 2005. pública, ameaçando défices orçamentais e comerciais e uma inflação galopante.
Depois, um radical vindo de fora, Rafael Corrêa, um jovem economista Segundo Corrêa, porém, a constituição iria promover uma revolução «dos cida-
formado nos EUA, foi eleito presidente em novembro de 2006, numa corrida dãos» que tornaria possível o «socialismo do século xxi», uma expressão de
contra o barão da banana Álvaro Noboa, o homem mais rico do país. Afirmando Hugo Chávez.
situar-se na «esquerda cristã», Corrêa prometeu livrar o país do seu sistema
partidário corrupto e «refundar a República», de modo a conferir direitos às Numa perspetiva histórica, a emergência na política nacional dos povos
comunidades indígenas e a outros grupos desfavorecidos numa nova cons- indígenas do Peru, do Equador e da Bolívia foi uma fase necessária para a
tituição. As suas políticas revelaram-se semelhantes às de Hugo Chávez na modernização das referidas repúblicas andinas. Uma reação de brancos e mesti-
Venezuela e de Evo Morales na Bolívia, e Corrêa estabeleceu com estes dois ços era inevitável, sendo os seus valores e interesses tão diferentes, mas os ati-
chefes de Estado uma aliança diplomática na região. Como eles, adotou uma vistas indígenas tinham, por sua vez, de lidar com o potencial conflito entre a sua
posição hostil relativamente aos EUA, recusando-se a assinar um acordo de reivindicação de direitos comunitários e os direitos individuais dos membros do
comércio livre ou a renovar o arrendamento de uma base militar. Rejeitando as seu próprio grupo étnico, especialmente no que se referia a género, posse de terra
medidas do FMI e do Banco Mundial, propôs-se restaurar a plena soberania ou religião (muitos índios tinham-se convertido ao protestantismo). A noção de
sobre os recursos nacionais, colocando o petróleo e o gás natural sob a alçada do uma identidade étnica coletiva com raízes na terra ancestral já não correspondia
Estado. exatamente à realidade social atual, visto que eram muitos os índios que já não
À semelhança de Chávez e de Morales, Corrêa usou estrategicamente o viviam em comunidades rurais, tendo migrado para as cidades ou até para o
poder eleitoral de movimentos indígenas e de outros movimentos sociais para estrangeiro. Estas identidades indígenas fluidas e instáveis tornavam ainda mais
vencer uma série de referendos que lhe permitiriam estabelecer uma assem- difícil estabelecer um código legal «intercultural» que conciliasse leis indígenas
bleia constituinte para rescrever a constituição. E, tal como na Venezuela e na tradicionais com o princípio moderno de igualdade perante a lei, pois era difícil
Bolívia, este processo revelou-se altamente polémico. A proposta inicial para a ver como podia um Estado liberal sancionar costumes indígenas que podiam
realização de um referendo para uma assembleia constituinte, embora bem vista incluir práticas como casamentos arranjados, açoitamentos públicos (azotes)
por 70% da opinião pública, foi recusada pelo congresso em janeiro de 2007, ou a proibição da venda individual de terra. De qualquer forma, esta interação
mas depois de os apoiantes do presidente terem ocupado o edifício à força, o tardia das comunidades índias com o mundo moderno gerou uma fermentação

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criativa nos Andes, obrigando a uma reavaliação da natureza do Estado para se um pouco em 1992, com a eleição do presidente Bill Clinton: em 1994 foi assi-
chegar a um consenso mais amplo e igualitário em sociedades tão divididas. nado um acordo que permitia que 20000 cubanos emigrassem para os EUA
Os desenvolvimentos na Bolívia e no Equador até ao momento parecem todos os anos, e em 1998 os exilados cubanos passaram a poder enviar dinheiro
prenunciar uma mudança no sentido de uma sociedade socialista. Mas se a estra- para parentes na ilha.
tégia adotada foi a de Hugo Chávez, o modelo social veio de Cuba, que desde o Castro tentou melhorar outras relações. Em 1998 recebeu o papa João
final da Guerra Fria ficou estagnada numa espécie de desfasamento temporal, Paulo n numa visita a Cuba e fez cedências à Igreja Católica, as quais passaram
enquanto todos os outros países lutavam com dívidas externas e reformas orien- por tolerar o «projeto Varela», um movimento de cristãos, sem ligação à oposi-
tadas para o mercado livre. ção em Miami, que apelava a liberdades democráticas mais amplas. Verificou-se
uma certa aproximação à União Europeia, e à Espanha em particular; empresas
espanholas procederam a avultados investimentos na indústria do turismo
CUBA cubana. Também a China, em crescimento acelerado, aumentaria o seu investi-
mento em Cuba, mas o verdadeiro ponto de viragem ocorreria nos primeiros
A desintegração da União Soviética em 1991 privou Cuba do maior mercado anos do novo século, quando Castro encontrou um aliado em Hugo Chávez, o
para as suas exportações de açúcar e da sua fonte essencial de petróleo e tecno- presidente da Venezuela rica em petróleo, que partilhava das ideias do líder
logia subsidiados. O regime de Fidel Castro estava mergulhado na pior crise cubano. Foi, então, firmado um acordo que permitia a Cuba importar petróleo
desde a Revolução. Com o embargo comercial dos EUA ainda em vigor, foram subsidiado em troca do envio de médicos e conselheiros que ajudariam Chávez
aplicadas medidas drásticas no que foi designado como «Período Especial em a construir o seu «socialismo do século xxi» na Venezuela.
Tempo de Paz» - as rações de alimentos foram reduzidas, o consumo de eletri- Tendo a situação económica melhorado, Castro reforçou o controlo do
cidade limitado, e os Cubanos foram encorajados a poupar combustível andando Estado sobre a economia, limitando o alcance do investimento estrangeiro e
de bicicleta. Ao mesmo tempo, foram feitas pequenas concessões à iniciativa desencorajando a escassa iniciativa privada até então permitida. Do ponto de
privada: os agricultores podiam vender os seus próprios produtos, foram tolera- vista político, começou a restringir a dissidência. Quando, em maio de 2002, os
dos os táxis e os restaurantes geridos por uma mesma família, e o uso do dólar dissidentes do Projeto Varela apresentaram uma petição à Assembleia Nacional
foi permitido. exigindo mais direitos civis, Castro respondeu com uma emenda à constituição
Castro procurou diversificar a economia sem comprometer os princípios que estabelecia o comunismo com um sistema «irrevogável», medida que foi
socialistas e, ao longo da década de 90, foi desenvolvida uma indústria de apoiada por uma manifestação com um milhão de trabalhadores. Esta postura
turismo em parceria com empresas europeias, que consistia sobretudo em mais rígida foi determinada também pela atitude mais agressiva dos EUA, num
estâncias balneares de luxo ao longo da costa em redor de Havana. O contacto momento em que o presidente George W. Bush se preparava para atacar o Iraque,
com turistas estrangeiros favoreceria a prostituição ocasional de pessoas com alegando que este país possuía armas de destruição maciça. Em maio de 2002,
dificuldades financeiras, mas também encorajou outras formas de intercâmbio: os EUA acusaram Castro de tentar desenvolver armas biológicas, e Cuba foi
a música e a dança cubana começaram a ser apreciadas na Europa, e foi difun- acrescentada à lista de Bush de países que formavam um «eixo de mal» no
dida uma perspetiva romantizada da Revolução - imagens de Che Guevara tor- mundo. Depois, em 2003, quando um grupo de Cubanos tentou desviar umferry
naram-se comuns nas t-shirts de jovens europeus -, enquanto a juventude cubana para fugir para Miami, os líderes foram executados e os restantes elementos
trocava o son, a nimba e o mambo pelo rock e pelo hip hop. foram condenados a longas penas de prisão; por via das dúvidas, cerca de 70
A questão que se impunha ao governo cubano era como equilibrar uma dimi- ativistas de direitos civis do Projeto Varela foram também detidos como medida
nuição das restrições com o controlo político. Os exilados cubanos em Miami punitiva. Este tratamento tão severo dos dissidentes valeu a Cuba a condenação
aumentavam a pressão sobre a ilha em dificuldades, na esperança de precipita- internacional; a União Europeia impôs sanções como forma de protesto,
rem a queda de Castro. O forte bloco anti-Castro no congresso dos EUA apertou enquanto a administração Bush intensificou esforços para derrubar Castro - em
ainda mais o embargo em 1992 e novamente em 1996, depois de dois aviões outubro de 2003 foi criada uma «Comissão de Ajuda a uma Cuba Livre», e mais
tripulados por exilados anti-Castro terem sido abatidos no espaço aéreo cubano; uma nova repartição no Departamento de Estado destinada a «acelerar a queda»
em 1997, exilados cubanos foram alegadamente responsáveis por uma série de do regime. Mas Castro retirava nova força da sua associação à Venezuela, e sob
ataques bombistas em Havana. As relações com os EUA começaram a melhorar a égide de Cuba formar-se-ia uma aliança latino-americana de governos de incli-

626 627
HISTORIA DA AMERICA LATINA GLOBALIZAÇÃO E REFORMA: UMA ANÁLISE

nação socialista, com a chegada ao poder de presidentes com a mesma tendência Raul Castro parecia inclinar-se. Poderia dar-se uma transição gradual para a
na Bolívia, no Equador e na Nicarágua. social-democracia, mediante uma qualquer forma de reconciliação nacional
Em agosto de 2006, Castro foi submetido a uma cirurgia gástrica e o seu com o milhão de exilados cubanos nos EUA, especialmente se o embargo fosse
irmão Raul tornou-se presidente interino; mas os persistentes problemas de levantado. Ou, se a aliança com a Venezuela, a Bolívia e o Equador perdurasse,
saúde de Fidel impedi-lo-iam de retomar funções, pelo que em fevereiro de 2008 Cuba poderia continuar a desenvolver-se em termos socialistas mais ortodoxos.
anunciou que se retirava. Quando Raul assumiu a presidência, a política cubana
tornou-se mais pragmática. Na tentativa de estimular a produção, foram admiti- No momento da conclusão deste livro, a América Latina tinha pela frente
das diferenciações salariais e os agricultores privados passaram a gozar de mais tempos difíceis em virtude da recessão globa! de finais de 2008, uma crise cuja
liberdade; na frente internacional, foram assinados acordos de comércio com a profundidade e duração eram ainda impossíveis de prever, mas que alguns ana-
China e com a Rússia, e propiciou-se uma melhoria das relações com a União listas acreditavam que seria a mais grave desde a Grande Depressão dos anos 30.
Europeia, que levantou as sanções em 2008. Um melhor relacionamento com os A causa imediata da recessão foi uma devastadora crise financeira em Wall Street
EUA também se afigurou possível quando Cuba se mostrou disponível para e na City de Londres, que rapidamente contaminou o sistema financeiro interna-
dialogar com a nova administração do presidente eleito Barack Obama; também cional, fazendo o capital escassear e afetando o comércio e o investimento em
da parte dos exilados cubanos em Miami parecia haver uma postura mais branda todo o mundo. Dada a exposição internacional das suas economias, era provável
- uma sondagem de opinião realizada em dezembro de 2008 indicou que mais que os países latino-americanos sofressem também recessões profundas, e em
de metade queria que o embargo dos EUA fosse levantado e dois terços espera- tais circunstâncias era difícil imaginar como poderia a democracia liberal resistir,
vam que fossem diminuídas as restrições às viagens à ilha. Depois de iniciar quando mais pessoas se vissem no desemprego e na pobreza. Tendo em mente o
funções, o presidente Obama aligeirou as restrições às viagens para os america- que aconteceu na Argentina e na Bolívia por altura das suas respetivas crises em
nos-cubanos (embora não para outros cidadãos dos EUA), autorizando viagens 2001-2, poder-se-ia assistir ao ressurgir de movimentos de cidadãos que mobili-
anuais à ilha, e também pôs fim aos limites dos montantes enviados para paren- zassem os pobres para derrubar a ordem estabelecida, e nesse caso era provável
tes. Em troca, convidou Havana a libertar prisioneiros políticos e a reduzir o que a democracia desse lugar a regimes militares, a autocracias populistas ou
imposto sobre as verbas enviadas pelos exilados cubanos, mas recusou-se a talvez até a um socialismo de estilo cubano.
levantar o embargo comercial até que se realizassem eleições democráticas na Nos anos 80, a maioria dos países esforçou-se por combinar desenvolvi-
ilha. Raul Castro, por seu turno, garantiu a uma delegação do congresso norte- mento capitalista com valores democráticos liberais, e manteve relações mais ou
-americano que tudo estava aberto a discussão, incluindo os prisioneiros políti- menos amigáveis com os EUA. Contudo, na primeira década do novo milénio, o
cos e os direitos humanos, mas sem condições prévias. debate tornou-se mais uma vez altamente polarizado, e vários países envereda-
Por essa altura, era difícil ler as intenções de Raul. Em março de 2009, ram pelo caminho do «socialismo do século xxi» de Chávez, dividindo a região
surpreendeu toda a gente ao despedir dez ministros do seu governo, incluindo em dois blocos. O conflito ideológico entre as perspetivas liberal-democrática e
Carlos Lage e Felipe Pérez Roque, que há muito eram vistos como prováveis socialista veio à superfície na 5a Cimeira das Américas, que se realizou em abril
candidatos à presidência. A reorganização sugeria que Raul queria imprimir o de 2009 em Porto de Espanha, na Trindade e Tobago, sob os auspícios da Orga-
seu cunho pessoal na governação, mas podia também querer cortar as asas de nização dos Estados Americanos (OEA). Os participantes tinham divergido
uma geração mais jovem, para reafirmar o controlo de uma velha guarda de relativamente à questão de admitir Cuba na (OEA), de onde a ilha fora expulsa
revolucionários que combatera na Sierra Maestra ao lado dos Castros. O seu em 1962, depois de Fidel Castro ter alinhado com a União Soviética na Guerra
irmão, Fidel, que continuava a escrever editoriais de linha dura no Granma, o Fria. Antes da cimeira, o presidente Obama fora pressionado por muitos Estados
órgão oficial do Partido Comunista, declarou que os ministros despedidos latino-americanos para acolher Cuba (apesar de Fidel Castro continuar a criticar
tinham sido «seduzidos pelo mel do poder». Lage e outros confessaram publica- aquela «instituição vil» por nada ter feito para levantar o embargo dos EUA).
mente «erros» e demitiram-se de todos os cargos no Partido. Uma semana antes, Hugo Chávez realizara a sua própria cimeira na Vene-
Cuba celebrou o 50° aniversário da Revolução em janeiro de 2009, mas teria zuela, na qual tinham participado os membros da ALBA, o seu bloco bolivariano
provavelmente um futuro incerto após a morte de Fidel Castro, o seu líder caris- alternativo de aliados socialistas, que incluía Cuba. O encontro fora concluído
mático. Poderia seguir o mesmo caminho da China e optar por um rápido desen- com um acordo para a criação de uma moeda comum designada sucre (em home-
volvimento semicapitalista sob controlo do Partido Comunista, política para que nagem ao vice-presidente de Bolívar, o marechal António José de Sucre) em

628 629
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA G L O B A L I Z A Ç Ã O E REFORMA: UMA A N Á L I S E

2010, cora o objetivo de pôr fim àquilo que Chávez chamava «ditadura do América Latina apanhada em ciclos recorrentes daquilo que Gabriel Garcia
dólar». O presidente da Venezuela também avisara que veiaria qualquer resolu- Márquez designou como «cem anos de solidão». Esta impressão de marginali-
ção tomada na Cimeira da OEA se Cuba continuasse a ser excluída. Porém, na dade e estagnação subjacente deu alguma força à perspetiva socialista de que os
sua intervenção na cimeira, Barack Obama declarou que os EUA procuravam males da América latina se deviam à exploração «neocolonialista» de países
«um novo começo» com Cuba e uma «parceria igual» entre todas as nações das capitalistas avançados, que tinham substituído as potências ibéricas e que conti-
Américas. No final, o direito de Cuba se candidatar a membro da OEA, caso nuavam a sugar os recursos do continente, dando pouco em troca. Também ins-
decidisse fazê-lo, seria, de um modo geral, aceite, desde que subscrevesse os pirava urna interpretação liberal pessimista que atribuía o atraso da América
termos da Carta, que incluíam um compromisso para com a democracia e os Latina a uma «civilização hispânica» profundamente enraizada, assente em
direitos humanos. Este acordo indicava que um espírito de pragmatismo estava valores patriarcais de patrocínio e clientelismo, que era inimiga da democracia e
a emergir de ambos os lados da divisão ideológica das Américas: Cuba encon- do espírito de iniciativa individual.
trava-se numa encruzilhada, mas o mesmo se podia dizer das restantes repúbli- Porém, longe de ter sido paralisada pelo seu passado colónia!, a Arnérica
cas, incluindo os EUA, nas condições incertas da grave recessão mundial. Latina modificara-se profundamente depois de se abrir aos países avançados da
Dadas as circunstâncias, o renovado poder de atração do socialismo não Europa no século xix. O ritmo de desenvolvimento acelerou-se no século xx,
devia ser subestimado, pois mantinha-se em toda a América Latina o problema quando as revoluções industriais, combinadas com uma expansão urbana espan-
da desigualdade, que o desenvolvimento capitalista não conseguira remediar tosamente rápida, transformaram a vida de milhões de pessoas em toda a região.
nem mesmo no Chile, o seu melhor exemplo. E esse poder de atração era tão Estas mudanças materiais produziram também um grau muito significativo de
forte porque os valores socialistas produziam uma resposta emocional forte: os modernização cultural. A explosão de criatividade que fascinou o público inter-
Estados imperiais das monarquias católicas ibéricas baseavam-se em princípios nacional desde meados do século xx mostra como o legado colonial não foi, de
neoescolásticos que tinham a sua origem na filosofia de Aristóteles, para quem a rnoclo algum, uma influência incapacitante, como alguns analistas defenderam;
finalidade da política era o bem comum. Do mesmo modo, a pedra angular das constituiu, antes, uma herança rica, à qual escritores e artistas recorreram para
sociedades americanas nativas era a comunidade, uma realidade social que per- compreenderem o lugar do continente no mundo moderno (ver capítulo 15).
sistiu entre os povos indígenas contemporâneos. Com raízes tão profundas Em comparação com outras nações pós-coloniais, a difícil transição dos
quanto estas, não seria de admirar se o princípio de que deveria haver o sufi- países latino-americanos para a modernidade reflete uma experiência histórica
ciente para todos em vez de muito para alguns se revelasse irresistível para única. A modernização de antigas colónias britânicas como EUA, Canadá, Aus-
aqueles que viam no capitalismo um fracasso. trália ou Nova Zelândia foi relativamente suave porque esses territórios foram
Com a América Latina a entrar na nova era de globalização, depois do nacio- conquistados e colonizados muito mais tarde, e as suas sociedades coloniais
nalismo económico do século xx, as repúblicas de expressão espanhola prepara- eram, para todos os efeitos, bastante mais coesas, uma vez que os povos nativos
vam-se para assinalar o bicentenário das suas declarações de independência da ou de cor foram marginalizados logo à partida. Espanha e Portugal, pelo contrá-
Espanha em 1810. Porém, da perspetiva abrangente proporcionada pelo bicente- rio, optaram por incorporar um número muito elevado de sociedades nativas
nário, era evidente que a promessa de liberdade não se concretizara ainda plena- bastante complexas num Estado imperial composto por uma multiplicidade de
mente. No momento da sua emancipação, as colónias ibéricas eram as mais ricas reinos, que tinham de ser governados pesando constantemente os interesses indí-
de entre várias regiões agora chamadas «mundo em vias de desenvolvimento», genas contra os interesses de poderosas elites de colonos. Além do mais, a mis-
mas passados dois séculos as repúblicas independentes estavam bem atrás de tura gradual de inúmeras culturas indígenas - africanas e americanas - com a
muitas antigas colónias da Ásia e da orla do Pacífico. A região no seu todo con- civilização católica ibérica, ao longo de três séculos de domínio colonial, origi-
tinuava a ter um lugar periférico na economia mundial, exercendo um controlo nou um tremendo afastamento do passado pré-colombiano. E foi esta experiên-
reduzido sobre forças externas (*). Parecia, no entanto, plausível imaginar a cia que, por sua vez, diferenciou a América Latina de outras sociedades pós-
-coloniais da Ásia e do Médio Oriente, onde os problemas de identidade nacional
não erarn, em regra, tão pronunciados, dado que a presença europeia não causou
uma rutura insuperável corn as culturas ancestrais. Por fim, os súbditos america-
(') Para uma análise sucinta sobre esta relativa marginalidade, ver Victor Bulmer-Thomas,
nos das monarquias ibéricas foram, de certa forma, deixados à deriva pela ines-
The Economic History ofLatin America Since Independence, 2a edição (Cambridge: Cambridge
perada invasão napoleónica da Península Ibérica em 1808 e, depois de longas
Unversity Press, 2003), pp. 392-410.

630 631
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

guerras mutuamente destrutivas, viram-se obrigados a construir novas nações


sem um consenso relativamente aos princípios básicos da governação.
Existem ainda muitas divisões e muitos conflitos a vencer. Acima de tudo,
as sociedades latino-americanas continuam a ser excecionalmente desiguais, e
essa injustiça básica é fonte de perturbações recorrentes, que têm retardado o
desenvolvimento económico e a democratização. Vários países persistiram,
ainda assim, no tipo de reformas que acabaram por possibilitar a modernização
das antigas potências coloniais, Espanha e Portugal. Muito dependerá do resul-
tado da recessão mundial, e especialmente do desempenho dos EUA, o ainda
maior mercado da América Latina, e também da China, a nova superpotência
económica.

Anexo Estatístico

632
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A N E X O ESTATÍSTICO

QUADRO l QUADRO 2
População Desigualdade e pobreza

Urbana Taxa bruta de Esperança Utilizadores Rendimento Percentagem


(%da natalidade de vida à de Internet Nacional Bruto da população Percentagem de rendimento
Total população (por 1000 nascença (por 100 per capita abaixo índice ou consumo, 2003
(milhões) total) pessoas) (anos) pessoas) (dólares do limiar Gini de (salvo indicação
americanos) de pobreza desigualdade em contrário)
1965 2007 1965 2007 1965 2007 1965 2007 2007
Os 10% Os 10%
Argentina 22,3 39,5 76,4 91,8 22,8 17,5 71 75,2 25,9 1965 2007 1990-2004 2007 mais mais
pobres ricos
Bolívia 3,7 9,5 38,3 65 45,6 27,4 53 65,5 10,5
Argentina 1230 4460 N/D 51,3 0,9 (2004) 38,2
Brasil 84,3 191,6 50,3 85 38,9 19,2 65 72,4 35,2
Bolívia N/D 1260 62,7 60 0,3 (2002) 47,2
Chile 8,6 16,6 71,7 88,2 33,9 15 72 78,4 31
Brasil 270 5860 21,5 57 0,9 44,8
Colômbia 19,6 44 51 74,2 42 18,7 68 72,8 27,5
Chile 650 8190 17 54,9 1,4 45
Cuba 8 11,3 59,3 76,6 33 10,3 76 78,3 11,6
Colômbia 300 4100 64 58,6 0,7 46,9
Equador 5 13,3 36,6 65 43,3 21 N/D 75 13,2
Cuba N/D N/D N/D N/D N/D N/D
México 43 105,3 54,9 76,9 44,6 18,6 59,6 75 22,7
Equador 230 2700 46 53,6 0,9 41,6
Peru 11,5 28 52 71,3 44,7 21 52 71,4 27,4
México 490 8080 17,6 46 1,6 (2004) 39,4
Venezuela 9 27,5 67 93 42 21,5 62,7 73,6 20,8
Peru 390 2710 53 52 1,3 40,9

Venezuela 1080 7550 31,3 48,2 0,7 35,2


Reino Unido 54,4 61 77,8 90 18,3 12,6 71,6 79,3 72
FONTES: (1) RNB per capita: Banco Mundial, Indicadores do Desenvolvimento Mundial
EUA 194,3 301,6 72 81,4 19,4 14,2 70,2 78 73,5 (IDM), dezembro de 2008, ESDS Internacional, (MIMAS) Universidade de Manchester.
Direitos sobre os dados reservados ao Banco Mundial. (2) Outros dados: Programa de
FONTES: Banco Mundial, Indicadores do Desenvolvimento Mundial (IDM), dezembro de 2008 Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU), Relatório de Desenvolvimento Humano
e junho de 2009, ESDS Internacional, (MIMAS) Universidade de Manchester. Direitos sobre 2007/8. Direitos sobre os dados reservados ao Banco Mundial.
os dados reservados ao Banco Mundial.
NOTAS: a. RNB per capita é o Rendimento Nacional Bruto, convertido em dólares americanos
utilizando o método Atlas do Banco Mundial, dividido pela média anual da população mundial.
O método Atlas aplica um fator de conversão que determina a média da taxa de câmbio entre
um dado ano e os dois anos precedentes, com um ajustamento que leva em conta as diferenças
das taxas de inflação entre o país em causa e zona euro, Japão, Reino Unido e EUA; b. Os
limiares de pobreza nacionais são usados para efetuar estimativas coerentes com as
circunstâncias específicas do país e não pretendem ser uma medida uniforme para comparações
internacionais de taxas de pobreza; c. O índice Gini mede o desvio da distribuição da riqueza
relativamente a uma distribuição perfeitamente equilibrada. O valor O representa a igualdade
absoluta e o valor 100 a desigualdade absoluta.

634 635
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA A N E X O ESTATÍSTICO

QUADRO 3 QUADRO 4
Crescimento Económico Inflação

Taxa média anual de crescimento Taxa anual Taxa média anual Taxa anual
(%) (%) (%) (%)

1965 1980-88 1987-97 1997-2007 2007 1960-70 1970-78 1980-88 1995 2007

Rendimento elevado Argentina 21,8 120,4 290,5 3,4 8,8

Argentina 3,5 -0,2 4 1,9 8,7 Bolívia 3,5 22,7 482,8 10,2 . 8,7

Brasil 8,8 2,9 1,9 2,8 5,4 Brasil 46 30,3 188,7 66 3,6

Chile 1,9 1,9 8,0 3,8 5 Chile 32,9 242,6 20,8 8,24 4,4

México 6,5 0,5 2,8 2,9 3,3 Colômbia 11,9 21,7 24 21 5,4

Venezuela 3,7 0,9 2,6 2,4 8,4 Cuba N/D N/D N/D N/D N/D

Equador N/D 14,8 31,2 22,9 2,3

Rendimento médio México 3,5 17,5 73,8 35 4

Colômbia 5,8 3,4 4 3 7,5 Peru 9,9 22,2 119 11 1,8

Peru 3,9 1 1,8 4 9 Venezuela 1,3 11 13,0 59,9 18,7

FONTES: Banco Mundial, Relatório do Desenvolvimento Mundial, 1980, quadro l; Relatório do


Rendimento baixo Desenvolvimento Mundial, 1990, quadro l; Indicadores do Desenvolvimento Mundial (IDM),
junho de 2009, ESDS Internacional, (MIMAS) Universidade de Manchester. Direitos sobre os
Nicarágua 2,6 -0,3 0,9 3,6 4,2 dados reservados ao Banco Mundial.

El Salvador 4,3 0,0 5,0 2,6 4,2

Bolívia 4,5 -1,6 4 3 4,6

Equador 8,7 2 2,8 3,7 1,9

FONTES: Banco Mundial, Relatório do Desenvolvimento Mundial, 1990, quadro 2; Banco


Mundial, tabelas 2008, ESDS Internacional, (MIMAS) Universidade de Manchester. Direitos
sobre os dados reservados ao Banco Mundial.

NOTA: Os dados de 2007 são estimativas preliminares.

636 637
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA A N E X O ESTATÍSTICO

QUADRO 5 QUADRO 6
Crise da Dívida Crise da Dívida (2)
Rocio entre Total de Juros Pagos e Exportações de Bens e Serviços
1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984a
Países exportadores de petróleo 64,3 77,5 92,3 118,9 135,6 145,6 153,4
Bolívia 1,7 1,9 2,2 2,4 2,3 3,0 3,2 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984
Equador 2,9 3,5 4,6 5,8 6,1 6,6 6,8 Países exportadores de petróleo 13,0 16,0 15,7 16,5 22,3 32,0 31,0 33,0
México 33,9 39,6 49,3 72,0" 85,5d 90,0" 95,9"
Bolívia 9,9 13,7 18,1 24,5 35,5 43,6 49,3 57,0
Peru 9,3 9,3 9,5 9,6 11,0 12,4 13,5
Equador 4,8 10,3 13,6 18,2 24,3 30,1 26,0 31,5
Venezuela 16,3 23,0 26,5 29,0 31,0 33,5 34,0
México 25,4 24,0 24,8 23,1 28,7 39,9 36,7 36,5

Países não-exportadores de petróleo 86,5 104,3 128,7 156,4 179,6 195,2 206,7 Peru 17,9 21,2 14,7 16,0 21,8 24,7 31,2 35,5

Argentina 12,4 19,0 27,1 35,6 43,6 45,5 48,0 Venezuela 4,0 7,2 6,9 8,1 12,7 21,0 20,3 25,0
Brasil' 52,2 58,9 68,3 78,5 87,5 96,5 101,8
Colômbia 4,2 5,1 6,2 7,9 9,4 10,4 10,8
Países não-exportadores de petróleo 11,9 15,1 18,8 23,3 31,3 46,6 40,7 36,5
Costa Rica 1,8 2,3 3,1 3,3 3,4 3,8 4,0
Argentina 7.6 9,6 12,8 22,0 31,7 54,6 58,4 52,0
Chile 6,6 8,4 11,0 15,5 17,1 17,4 18,4
Brasil' 18,9 24,5 31,5 34,1 40,4 57,1 43,4 36,5
El Salvador 0,9 0,9 1,1 1,4 1,6 2,0 2,3
Guatemala 0,8 0,9 1,0 1,4 1,5 1,7 1,9 Colômbia 7,4 7,7 10,1 13,3 21,6 25,0 21,7 21,5

Honduras 0,9 1,2 1,5 1,7 1,8 2,0 2,2 Costa Rica 7.1 9,9 12,8 18,0 25,5 33,4 41,8 32,0
Nicarágua 0,9 1,1 1,5 2,1 2,7 3,3 3,9 Chile 13,7 17,0 16,5 19,3 34,6 49,5 39,4 45,5
Panamá 1,7 2,0 2,2 2,3 2,8 3,2 3,5
El Salvador 2,9 5,1 5,3 6,5 7,5 11,9 14,2 15,0
Paraguai 0,6 0,7 0,8 0,9 1,2 1,4 1,5
Guatemala 2,4 3,6 3,1 5,3 7,5 7,8 7,6 4,0
República Dominicana 1,3 1,5 1,8 1,8 1,9 2,5 2,8
Honduras 7.2 8,2 8,6 10,6 14,5 22,4 17,7 19,0
Uruguai 1,2 1,6 2,1 3,1 4,2 4,5 4,7
Nicarágua 7,0 9,3 9,7 15,7 15,5 33,2 19,3 18,5
FONTE: CEPAL com base na informação oficial; Brasil e Venezuela: CEPAL, com base nos
dados do Bank for International Settlements. Paraguai 6.7 8,5 10,7 14,3 15,9 14,9 24,3 19,0

NOTAS: a. Números provisórios; b. Números não comparáveis com os anteriores a 1982, devido República Dominicana 8.8 14,0 14,4 14,7 10,5 22,6 24,9 23,5
à inclusão da dívida da banca comercial mexicana; c. Dívida pública; d. Inclui dívida da banca
comercial. Estimativas baseadas nos dados fornecidos pelo Secretariat of Finance and Public Uruguai 9,8 10,4 9,0 11,0 13,1 22,4 27,6 31,5
Credit; e. Inclui dívida pública e dívida não garantida a curto e a longo prazo junto de institui-
ções financeiras que reportam ao Bank for International Settlements;/. Inclui a totalidade da FONTES; 1977-83: Fundo Monetário Internacional, Manual de Balanço de Pagamentos; 1984:
dívida a médio e a longo prazo, bem como a dívida a curto prazo junto de instituições CEPAL com base em informação oficial.
financeiras que reportam ao Bank for International Settlements; g. Dívida a curto, médio e a
longo prazo, excluindo a dívida ao FMI e os créditos a curto prazo de operações de comércio NOTAS: a. Pagamentos de juros incluem os juros da dívida de curto prazo; b. Estimativas
externo. provisórias, sujeitas a revisão.

638 639
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA A N E X O ESTATÍSTICO

QUADRO 7 QUADRO 8
Dívida Externa. 1975-2005 Estrutura da Produção (1965-1988)

Total do serviço da dívida em Distribuição do PIB (%)'


Total da dívida externa em percentagem das exportações
percentagem do PIB de bens, serviços e rendimentos Agricultura Indústria Manufaturas>> Serviços

1975 1985 2005 1975 1985 2005 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988

Argentina 14,5 60,9 75,3 N/D 60 20,6 Rendimento elevado

Argentina 17 13 42 44 33 31' 42 44
Bolívia 40,3 97 76,5 N/D 49,5 14,3
Brasil 19 9 33 43 26 29 48 49
Brasil 22,4 49 22 43,5 39 44,7
Chile 9 N/D 40 N/D 24 N/D 52 N/D
Chile 79,6 141,5 42 34,6 48,4 15
México 14 9 27 35 20 26 59 56
Colômbia 29,4 43 29,4 14,4 41,8 35,3

Cuba N/D N/D N/D N/D N/D N/D


Rendimento médio
Equador 19,8 80,7 48,6 N/D 33 29,7
Colômbia 27 19 27 34 19 20 47 47
México 21,2 55,2 22,3 N/D 43,7 17.6
Peru 18 12 30 36' 17 24C 53 51°
Peru 37,8 73 38,6 N/D 27,7 25,5

Venezuela 7 63,4 32 6 25 9,3


Rendimento baixo

FONTES: Banco Mundial, Indicadores do Desenvolvimento Mundial (1DM), dezembro de Nicarágua 25 21C 24 34C 18 24' 51 46'
2008, ESDS Internacional, (MIMAS) Universidade de Manchester. Direitos sobre os dados
reservados ao Banco Mundial. El Salvador 29 14 22 22 18 18 49 65

Bolívia 23 24 31 27 15 17 46 49

Economias desenvolvidas

Reino Unido 3 2C 46 42C 34 27C 51 56C

EUA 3 2" 38 33' 28 22C 59 65

Japão 9 3 43 41C 32 29 48 57'

FONTES: Banco Mundial, Relatório do Desenvolvimento Mundial, 1990, quadro 3; Direitos


sobre os dados reservados ao Banco Mundial.

NOTAS: a. O PIB e as suas componentes estão a preços de mercado; b. Os valores das


manufaturas estão incluídos nos números relativos ao setor industrial, mas a sua percentagem
do PIB é também apresentada separadamente; c. Estes números correspondem a anos que não
os indicados.

640 641
HISTORIA DA A M E R I C A LATINA A N E X O ESTATÍSTICO

QUADRO 9 QUADRO 9
Estrutura de Importações e Exportações Estrutura de Importações e Exportações

Percentagens dos vários setores nas importações Percentagens dos vários setores nas expot tacões

Maquinaria Combustíveis, Manufaturas


Outros bens e equipamento Outras minerais Outros bens e equipamento Têxteis e outras
Alimentos Combustíveis primários de transportes manufaturas e metais primários de transportes manufaturas

1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988 1965 1988

Rendimento elevado

Argentina 6 4 10 8 21 7 25 43 38 38 1 5 93 70 I 5 5 20

Brasil 20 14 21 28 9 7 22 25 28 26 9 21 83 31 2 18 7 30

Chile 20 2 6 6 10 2 35 46 30 44 89 67 7 18 1 3 4 12

México 5 16 2 1 10 8 50 36 33 38 22 38 62 7 1 33 15 22

Rendimento médio

Colômbia 8 9 1 4 10 7 45 37 35 43 18 26 75 49 0 1 6 24

Peru 17 19 3 1 5 4 41 44 34 33 45 58 54 20 0 3 1 18

Rendimento baixo

Nicarágua 12 25 5 11 2 3 30 17 : 51 44 4 2 90 89 0 0 6 9

El Salvador 15 15 5 8 4 4 28 19 , 48 53 2 3 81 68 1 1 16 26

Bolívia 19 15 1 3 3 3 35 52 : 42 27 92 89 3 8 0 3 4 2

Economias desenvolvidas

Reino Unido 30 10 11 5 25 8 11 37 23 41 7 10 10 8 41 39 41 43

EUA 19 6 10 10 20 5 14 43 36 36 8 6 27 17 37 47 28 31

Japão 22 17 20 21 38 20 9 13 H 30 2 1 7 1 31 65 60 33

FONTE: Banco Mundial, Relatório do Desenvolvimento Mundial. 1990, quadros 15 e 16.


Direitos sobre os dados reservados ao Banco Mundial.

642 643
Sugestões de Leitura

Abreviaturas
CHLA: Cambridge History of Latin America
HAHR: Hispanic American Historical Review

A historiografia da América Latina é vasta; pretende-se com a lista que se


segue apresentar uma seleção de textos para leitura complementar. Os títulos
sugeridos correspondem, em grande parte, a obras de referência e a artigos aca-
démicos (na sua maioria em inglês), mas incluem alguns textos mais especiali-
zados, que apontam para importantes desenvolvimentos conseguidos nas princi-
pais áreas de investigação ao longo das últimas décadas. As referências estão
organizadas por tema, e não por ordem alfabética. Na publicação anual Hand-
book of Latin American Studies (Texas University Press: Austin, 1936-) poder-
-se-á encontrar informação bibliográfica adicional. Também se encontra disponí-
vel orientação bibliográfica nas principais publicações académicas dedicadas à
história da América Latina: Hispanic American Historical Review, Journal of
Latin American Studies, e nas seguintes revistas de investigação: Latin American
Research Review, Bulletin of Latin American Research. Ver também as bibliogra-
fias sobre temas específicos relativos a cada país na Cambridge History of Latin
America, uma obra de dez volumes dirigida por Leslie Bethell (Cambridge Uni-
versity Press: Cambridge, 1984-92). Uma obra de referência útil é The Cam-
bridge Encyclopedia of Latin America and the Caribbean, dirigida por Simon
Collier, Harold Blakemore e Thomas Skidmore (Cambridge University Press:
Cambridge, 1985).

645
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

Parte I: Â Época Imperial uma análise mais alargada da exploração marítima europeia. Samuel E. Morison,
The European Discovery of America: The Southern Voyages, 1492-1619 (Oxford
University Press: Nova Iorque e Oxford, 1974) é um estudo que parte de uma
GERAL investigação exaustiva, efetuado por uma autoridade naval. Para a biografia de
referência de Colombo, ver Samuel E. Morison, Admirai of the Ocean Sea:
Charles Gibson, Spain in America (Harper & Row: Nova Iorque, 1966) é A Life of the Admirai Christopher Columbits (2 vols., Little, Brown: Boston,
uma análise exímia e breve do período colonial. Guillermo Céspedes, Latin Ame- 1942); ver também Cristóvão Colombo, Journal ofthe First Voyage/Diario dei
rica: The Early Years (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1974) é uma análise con- primer viaje, 1492, org. e trad. B. W. Ife (Aris e Philips: Warminster, 1990), um
cisa com observações estimulantes. texto bilingue, com uma análise da edição de Lãs Casas do original.
James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin America: A History of J. H. Elliott, The Old World and the New, 1492-1650 (Cambridge University
Colonial Spanish America and Brazil (Cambridge University Press: Cambridge, Press: Cambridge, 1970) é uma compilação de ensaios sobre o impacto da desco-
1983) é urna síntese importante e desapaixonada que se centra nos fatores socio- berta na mente europeia; as repercussões intelectuais da descoberta são analisa-
estruturais e nas relações étnicas, e que estabelece comparações esclarecedoras das de modo mais aprofundado em A. R. Pagden, The Fali of Natural Man: The
entre as experiências espanhola e portuguesa. Lyle N. McAllister, Spain and Por- American Indian and the Origins of Comparative Ethnology (Cambridge Univer-
tugal in the New World, 1492-1700 (Oxford Universiíy Press: Oxford, 1984) é sity Press: Cambridge, 1982).
uma obra objetiva e informativa. CHLA, vols. l e 2, contém ensaios de carácter Quanto a relatos sobre a Conquista, ver Hernán Cortês, Lettersfrom México,
geral escritos por especialistas na América colonial. org. e trad. A. R. Pagden (Oxford University Press: Oxford, 1972); Francisco
Uma análise demográfica credível é Nicolás Sánchez-Albornoz, The Popula- López de Gomara, Cortês: The Life of the Conqueror by His Secretary, trad.
tion o/Latin America: A History (University of Califórnia Press: Berkeley, 1974). Lesley Byrd Simpson; Bernal Díaz dei Castillo, The Conquest of New Spain,
Análises de referência mais antigas continuam a ser úteis; ver J. H. Parry, Tí-ie trad. J. M. Cohen (Penguin Books: Harmondsworth, 1963); Agustín de Zárate,
Spanish Seaborne Empire (Penguin Books: Harmondsworth, 1973), e o volume The Discovery and Conquest o/Peru, trad. J. M. Cohen (Folio Society, Londres,
que o complementa, de C. R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire (Penguin 1981). As obras de William H. Prescott History ofthe Conquest of México e His-
Books: Harmondsworth, 1973 [O Império Marítimo Português, Lisboa, Edições tory ofthe Conquest ofPeru (editadas pela primeira vez em 1843 e 1846, respe-
70, 2010]). Um bom estudo sobre as instituições coloniais é C. H. Haring, The tivamente, mas com muitas edições posteriores) são narrativas clássicas de lei-
Spanish Empire in America (Oxford University Press: Oxford, 1947). tura muito agradável, embora desatualizadas em certos aspetos. John Hemming,
Uma útil compilação de fontes primárias sobre o período colonial é Benja- The Conquest ofthe Inças (Macmillan: Londres, 1970) é uma crónica informa-
min Keen (org.), Latin American Civilization, vol. l, The Colonial Origins tiva do derrube do império inça e da subsequente resistência ao domínio espa-
(Houghton Mifflin: Boston, 1974). Vários ensaios académicos influentes foram nhol; F.A. Kirkpatrick, The Spanish Conquistadores (A & C Black: Londres,
compilados em Peter J. Bakewell, John J. Johnson e Meredith D. Dodge (orgs.), 1934; 3a ed., 1963) apresenta uma análise global de todo o processo de conquista
Readings in Latin American History, vol. l, The Formative Centuries (Duke Uni- no Novo Mundo.
versity Press: Durham, NC, 1985). Mário Góngora, Los grupos de conquistadores en Tierra Firme, 1509-1530
(Universidad de Chile: Santiago, 1962), e James Lockhart, The Men of Cajá-
marca (University of Texas Press: Austin, 1972) constituem dois estudos impor-
CAPÍTULO 1: DESCOBERTA E CONQUISTA tantes sobre as origens e as motivações dos grupos de guerreiros espanhóis no
Panamá e no Peru, respetivamente. Miguel León-Portilla, The Broken Spears:
Sobre descoberta e exploração, ver European Expansion in the Later Middle The Aztec Account ofthe Conquest, trad. Lysander Kemp (Beacon Press: Boston,
Ages (North-Holland: Amsterdão, Nova Iorque e Londres, 1979), onde Pierre 1961) é uma antologia das reações indígenas à Conquista, e El reverso de Ia con-
Chaunu analisa as viagens de Colombo no quadro mais vasto das primeiras quista. Relaciones aztecas, mayas e inças (Universidad Nacional Autónoma de
empresas marítimas ibéricas; J. H. Parry, The Age ofReconnaissance: Discovery, México: México, 1964). Nathan Wachtel, The Vision ofthe Vanquished (Harves-
Exploration and Settlement, 1450-1650 (Weidenfeld e Nicolson: Londres, 1963) ter Press: Brighton, 1976) é uma obra controversa que procura analisar o impacto
situa as viagens portuguesas e o empreendimento de Colombo no contexto de ideológico da Conquista no Peru.

646 647
S U G E S T Õ E S DE L E I T U R A
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA

Oxford, 1963); A. R. Pagden, Spanish Imperialism and the Political Imagination


CAPÍTULO 2: ÍNDIOS E IBÉRICOS
(Yale University Press: New Haven, 1990).
índios

CAPÍTULO 3: A ESPANHA NA AMÉRICA


William M. Denevan (org.), The Native Population ofthe Americas in 1492
(University of Wisconsin Press: Madison, 1976) é uma coletânea de ensaios
Sobre as características das primeiras colónias espanholas, ver Peter Boyd-
sobre demografia que reflete as polémicas em torno do assunto. Friedrich Katz,
-Bowman, «Patterns of Spanish Emigration to the Indies until 1600», HAHR, 56
The Ancient American Civilizations (Praeger: Nova Iorque, 1972) é um estudo de
(1976), pp. 580-640; Peggy K. Liss, México under Spain, 1521-1556: Society
referência. Sobre a América Central, ver Ignacio Bernal, The Olmec World (Uni-
and the Origins of Nationality (University of Chicago Press: Chicago, 1975),
versity of Califórnia Press: Berkeley, 1969); René Millon, Urbanization at Teo-
que incide sobre as tentativas de funcionários da Coroa de impor a lei e a ordem
tihuacan, México (University of Texas Press: Austin, 1973), parte l, vol. l, que
nos primeiros tempos pós-Conquista. O papel de Cortês após a Conquista é ana-
apresenta uma síntese do conhecimento atual sobre esta obscura civilização;
lisado por G. Michael Riley, Fernando Cortês and the Marquesado in Morelos,
Nigel Davies, The Toltecs: Until the Fali ofTula (University of Oklahoma Press:
1522-1547: A Case Study in the Socioeconomic Development of Sixteenth-Cen-
Norman, 1977), The Aztecs (Macmillart: Londres, 1973), e The Ancient King-
tury México (University of New México Press: Albuquerque, 1973); e F. V.
doms of México (Penguin Books: Harmondsworth, 1983); Michael D. Coe, The
Scholes, «The Spanish Conquistador as Businessman: A Chapter in the History
Maya (Tharnes and Hudson: Londres, 1987). Sobre as sociedades andinas e os
of Fernando Cortês», New México Quarterly, 28 (1958), pp. 1-29. Sobre o papel
Inças, ver os capítulos sobre a pré-Conquista em Magnus Mõrner, The Andean
do encomendem, ver José Miranda, Lafunción económica dei encomendem en
Past: Land Societies and Conflicts (Columbia University Press: Nova Iorque,
los orígenes dei regimen colonial (Universidad Nacional Autónoma de México:
1985); Alfred Métraux, The History ofthe Inças (Pantheon Books: Nova Iorque,
México, 1965). J. H. Parry, The Audiência ofNew Galicia in the Sixteenth Cen-
1969); John V. Murra, The Economic Organization ofthe Inka State (JAI Press:
tu/y (Cambridge University Press: Cambridge, 1948) examina as primeiras ten-
Greenwich, Conn., 1980), um estudo antropológico seminal sobre a lógica do
tativas de estabelecer o governo real numa região fronteiriça do México no
império inça; e John V. Murra (org.) Anthropological History of Andean Polities
período pós-Conquista. Os primeiros anos do Peru colonial são bem sintetizados
(Cambridge University Press: Cambridge, 1986). Geoffrey W. Conrad e Arthur
por James Lockhart em Spanish Peru, 1532-1560 (University of Wisconsin
A. Demarest, Religion and Empire: The Dynamics of Aztec and Inça Expansio-
Press: Madison, 1968), o retrato de uma sociedade pós-Conquista em formação.
nism (Cambridge University Press: Cambridge, 1984) defende a tese de que a
Para uma antologia de testemunhos em primeira mão sobre a vida na América
religião foi uma das principais causas tanto da ascensão como da queda dos
espanhola, ver James Lockhart e Enrique Otte (orgs.), Letters and People ofthe
impérios nativos.
Spanish Indies, Sixteenth Centwy (Cambridge University Press: Cambridge,
1976).
Charles Gibson, The Aztecs under Spanish Rule: A History ofthe Indians of
Ibéricos
the Valley of México, 1519-1810 (Stanford University Press: Stanford, 1964) é
uma obra importante, que abriu uma nova área de estudo. Outras obras importan-
Algumas obras de referência sobre as potências ibéricas são: Stanley G.
tes nesta área são: Ronald Spores, The Mixtec Kings and Their People (Univer-
Payne, A History ofSpain and Portugal (2 vols., University of Wisconsin Press:
sity of Oklahoma Press: Norman, 1967), que mostra como um reino índio no
Madison, 1973); Harold Livermore, A New History of Portugal (Cambridge
México se adaptou à Conquista espanhola; Nancy M. Farriss, Maya Society
University Press: Cambridge, 1966); Angus Mackay, Spain in the Middle Ages
Under Colonial Rule: The Collective Enterprise of Survival (Princeton Univer-
(Macmillan: Londres, 1977); Charles Julian Bishko, «The Peninsular Back-
sity Press: Princeton, 1984); Steve J. Stern, Peru's Indian Peoples and the Chcil-
ground of Latin American Cattle-Ranching», HAHR, 32 (1952), pp. 491-515;
lenge of Spanish Conquest: Huamanga to 1640 (University of Wisconsin Press:
J. H. Elliott, Imperial Spain, 1469-1716 (Edward Arnold: Londres, 1963); John
Madison, 1982), sobre as formas como uma sociedade índia lidou com o domínio
Lynch, Spain under the Habsburgs (2 vols., Blackwell: Oxford, 1964, 1969);
espanhol; Karen Spalding, Huarochiri: An Andean Society Under Inça and Spa-
Bernice Hamilton, Political Thought in Sixteenth-Century Spain: A Study ofthe
nish Rule (Stanford University Press: Stanford, 1984), uma monografia influente,
Political Ideas of Vitoria, De Soto, Suárez andMolina (Oxford University Press:
649
648
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

que põe em evidência tanto os fatores de continuidade como os de rutura. Nathan Bourbon; A. R. Pagden, Spanish Imperialism and the Political Imagination (Yale
Wachtel, The Vision ofthe Vanquished (Harvester Press: Brighton, 1976) é uma University Press: New Haven, 1990) é a análise mais completa até à data.
obra que se concentra nos efeitos destrutivos da Conquista espanhola sobre a Sobre o estatuto dos índios, ver Lewis Hanke, The Spanish Strugglefor Jus-
sociedade inça e sobre a mundividência andina. Magnus Mõrner, The Andean tice in the Conquest of America (Little, Brown: Boston, 1965) e Aristotle and the
Past: Land, Societies and Conflicts (Columbia University Press: Nova Iorque, American Indians, 2a ed. (Indiana University Press: Bloomington, 1970); Juan
1985) é uma síntese abrangente da história desta região. Friede e Benjamin Keen, Bartolomé de Ias Casas in History (Northern Illinois
C. H. Haring, The Spanish Empire in America (Oxford University Press: University Press: De Kalb, 1971); e Pnilippe-Ignace André-Vicent, Bartolomé de
Oxford, 1947) é uma análise informativa de carácter geral sobre as instituições Lãs Casas: Prophète du Nouveau Monde (Editions Tallandier: Paris, 1980).
governativas. Mário Góngora, El estado en el derecho indiano (Universidád de Sobre os princípios na base da encomienda, ver Silvio Zavala, La enco-
Chile: Santiago, 1951) é a obra de referência sobre os princípios subjacentes ao mienda indiana (Centro de Estúdios Históricos: Madrid, 1935); e Lesley Byrd
governo imperial espanhol, da qual se encontram excertos incluídos na obra do Simpson, The Encomienda in New Spain: The Beginning of New México (Uni-
autor Studies in the Colonial History of Spanish America (Cambridge University versity of Califórnia Press: Berkeley, 1950).
Press: Cambridge, 1975). J. Lloyd Mecham, Church and State in Latin America: Alistair Hennessy, The Frontier in Latin American History (Edward Arnold:
A History of Politico-Ecclesiastical Relations, ed. rev, (University of North Londres, 1978) é um estudo elucidativo sobre a dinâmica das regiões fronteiriças.
Carolina Press: Chapei Hill, 1966) é um estudo conceituado, publicado pela pri-
meira vez em 1934.
John Leddy Phelan, The Millennial Kingdom ofthe Franciscans in the New Capítulo 4: As índias Espanholas
World (University of Califórnia Press: Berkeley, 1956) analisa as ideias e os
motivos por detrás da missão franciscana entre os índios. Robert Ricard, The Sobre a economia, ver Woodrow Borah, New Spain's Century ofDepression
Spiritual Conquest of México: An Essay on the Apostolate and the Evangelizing (University of Califórnia Press: Berkeley, 1951), que considera o declínio demo-
Methods ofthe Mendicant Orders in New Spain, 1523-1572, trad. Lesley Byrd gráfico como um sinal de crise económica. Porém, John Lynch, no vol. 2 de
Simpson (University of Califórnia Press: Berkeley, 1966), é um estudo clássico, Spain Under the Habsburgs (2 vols., Blackwell: Oxford, 1964, 1969), defende
publicado pela primeira vez em francês em 1933. Pierre Duviols, La Lutte contre que certas regiões e alguns setores económicos das índias prosperaram em vir-
lês réligions autochtones dans lê Pérou colonial (Editions Ophrys: Paris, 1971) tude da acentuada queda de exportações de prata para Espanha. Sobre formas de
analisa as campanhas sistemáticas realizadas pela Igreja colonial entre 1532 e posse de terra, ver François Chevalier, Land and Society in Colonial México: The
1660 para erradicar as religiões nativas. Great Hacienda, trad. Lesley Byrd Simpson (University of Califórnia Press:
J. H. Parry, The Spanish Seaborne Empire (Penguin Books: Harmondsworth, Berkeley, 1963), uma obra de referência que é agora algo datada e restrita; Lesley
1973) inclui um estudo útil sobre a ligação transatlântica. Contudo, Pierre e Byrd Simpson, The Encomienda in New Spain (University of Califórnia Press:
Huguette Chaunu, Séville et 1'Atlantique, 1504-1650 (8 vols., Librairie Armand Berkeley, 1950); Elman R. Service, «The Encomienda in Paraguay», HAHR, 31
Colin: Paris, 1955-9) é uma obra de referência que consiste na análise exaustiva (1951), pp. 230-52; James Lockhart, 'Encomienda and Hacienda: The Evolution
de todos os aspetos do comércio marítimo com a América, com profusos dados of the Great Estate in the Spanish Indies', HAHR, 49 (1969), pp. 411-29, um
estatísticos e gráficos. Ver também William L. Schurz, The Manila Galleon, 2a ed. estudo incisivo, que deixou de lado muita confusão sobre a posse de terra no
(E. P. Dutton: Nova Iorque, 1959), uma monografia que não perdeu o seu valor. período colonial; William B. Taylor, Landlord and Peasant in Colonial Oaxaca
Mário Góngora, Studies in the Colonial History of Spanish America (Cam- (Stanford University Press: Stanford, 1972), uma obra influente, que revelou que
bridge University Press: Cambridge, 1975) contém ensaios excelentes sobre os a posse de terra pelos índios era ainda comum em finais do período colonial. Para
princípios do imperialismo espanhol; J. H. Parry, The Spanish Theory of Empire uma análise do trabalho e das relações laborais, ver Juan A. Villamarín e Judith
in the Sixteenth Century (Cambridge University Press: Cambridge, 1940) é uma E. Villamarín, Indian Labour in Mainland Colonial Spanish America (University
obra bastante datada, mas ainda assim útil como introdução. Colin M. MacLa- of Delaware Press: Newark, 1975).
chlan, Spain's Empire in the New World: The Role ofldeas in Institutional and Sobre o setor das manufaturas têxteis, ver Richard E. Greenleaf, «The
Social Change (University of Califórnia Press: Berkeley, 1989) debruça-se sobre Obraje in the late Mexican Colony», The Americas, 23 (1966-7), pp. 227-50;
a cultura imperial dos Habsburgos e defende que esta foi minada pela ideologia John C. Super, «Querétaro Obrajes», HAHR, 56 (1976), pp. 197-216. Richard J.

650 651
HISTORIA DA AMERICA LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

Salvucci, Textiles and Capitalism in México: An Economic Histoiy ofthe Obra- «The Inças under Spanish Colonial Institutions», HAHR, 37 (1957), pp. 155-99;
jes, 1539-1840 (Princeton University Press: Princeton, 1988) debraça-se sobre a Nicolás Sánchez-Albornoz, índios y tributos en el Alto Peru (Instituto de Estú-
indústria têxtil colonial e conclui que o obraje não era «uma fábrica embrioná- dios Peruanos: Lima, 1978); James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin
ria»; sofreu um declínio sistemático e foi eliminado pela concorrência externa America: A History of Colonial Spanish America and Brazil (Cambridge Univer-
nos anos 40 do século xix. sity Press: Cambridge, 1983).
Sobre exploração mineira, ver Peter J. Bakewell, Silver Mining and Society Sobre os africanos e o comércio de escravos, ver Philip Curtin, The Atlantic
in Colonial México: Zacatecas, 1546-1700 (Cambridge University Press: Cam- Slave Trade: A Census (University of Wisçonsin Press: Madison, 1969); Frede-
bridge, 1971), uma obra de referência; David A. Brading e Harry C. Cross, rick P. Bowser, The African in Colonial Peru, 1524-1650 (Stanford University
«Colonial Silver Mining: México and Peru», HAHR, 52 (1972), pp. 545-79, uma Press: Stanford, 1974); Colin A. Palmer, Slaves of the White God: Blacks in
excelente síntese comparativa; Robert C. West, Colonial Placer Mining in México, 1570-1650 (Harvard University Press: Cambridge, Mass., 1976).
Colômbia (Louisiana State University Press: Baton Rouge, 1952). Para uma análise de questões étnicas, ver Magnus Mõrner, Race Mixture in
A investigação sobre a sociedade hispânica colonial aumentou substancial- the History of Latin America (Little, Brown: Boston, 1967), e Magnus Mõrner
mente desde os anos 70 do século xx. Ver James Lockhart, «The Social History (org.), Race and Class in Latin America (Columbia University Press: Nova Ior-
of Colonial Spanish America: Evolution and Potential», Latin American Rese- que, 1970).
arch Review, l (1972), pp. 6-46. Os princípios teóricos subjacentes à divisão da Sobre a cultura colonial, ver Mariano Picón-Salas, A Cultural History of Spa-
sociedade colonial em duas «repúblicas» são tratados em Mário Góngora, Stu- nish America: From Conquest to Independence, trad. Irving I. Leonard (Univer-
dies in the Colonial History of Spanish America (Cambridge University Press: sity of Califórnia Press: Berkeley, 1964); Irving I. Leonard, Books of the Er ave
Cambridge, 1975). As dinâmicas da sociedade colonial são habilmente estudadas (Harvard University Press: Cambridge, Mass., 1949), e B aro que Times in Old
numa obra pioneira de J. I. Israel, Race, Class and Politics in Colonial México, México (University of Michigan Press: Ann Arbor, 1959), duas obras clássicas
1610-1670 (Oxford University Press: Oxford, 1975). sobre literatura e cultura; Jacques Lafaye, «Literature and Intellectual Life in
Sobre a formação das elites crioulas, ver Richard Konetzke, «La formación Colonial Spanish America», CHLA, vol. 2, pp. 663-704, e Ouetzalcoatl and Gua-
de Ia nobleza en índias', Estúdios Americanos, 3 (1951), pp. 329-60; Stephanie dalupe: The Formation of Mexican National Consciousness (University of Chi-
Blank, «Patrons, Clients and Kin in Seventeenth-Century Caracas: AMethodolo- cago Press: Chicago, 1976).
gical Essay in Colonial Spanish American Social History', HAHR, 54 (1974), Sobre personalidades tratadas individualmente, ver Octavio Paz, Sor Juana
pp. 260-83; Fred Bonner, «Peruvian Encomenderos in 1630: Elite Circulation lues de Ia Cruz: Her Life and Her World, trad. Margaret Sayers Peden (Faber and
and Consolidation», HAHR, 57 (1977), pp. 633-59; Peter Marzahl, Town in the Faber: Londres, 1988), uma biografia literária que esclarece toda uma cultura e
Ernpire: Government, Politics and Society in Seventeenth-Century Popayán sociedade. A Sor Juana Anthology, trad. Alan S. Trueblood (Harvard University
(Institute of Latin American Studies, University of Texas: Austin, 1978); Mário Press: Cambridge, Mass., 1988), é uma edição bilingue de uma selcção de poe-
Góngora, «Urban Social Stratification in Colonial Chile», HAHR, 55 (1975), mas. Rolena Adorno, Guaman Poma: Writing and Resistance in Colonial Peru
pp. 421-48; Louisa Schell Hoberman, «Merchants in Seventeenth-Century (University of Texas Press: Austin, 1986) debruça-se sobre a fusão que o mestiço
México City: A Preliminary Portrait», HAHR, 57 (1977), pp. 479-503. peruano fez. na sua crónica, de modelos culturais de escrita do Renascimento
Sobre a posição das mulheres na sociedade, ver Asunción Lavrin (org.), Latin espanhol com conceitos andinos tradicionais. Margarita Zamora, Language,
American Women: Historical Perspectives (Greenwood Press: Westport, 1978); Authority and Indigenous History in the 'Comentários Reales de los Inças'
Asunción Lavrin (org.), Sexuality andMarriage in Colonial Latin America (Uni- (Cambridge University Press: Cambridge, 1988) é uma análise da adaptação
versity of Nebraska Press: Lincoln, 1990); Asunción Lavrin e Edith Couturier, que o inça Garcilaso de Ia Vega fez da cultura renascentista com o objetivo de
«Dowries and Wills: AView of Women's Socioeconomic Role in Colónia! Gua- justificar o império inça.
dalajara and Puebla, 1640-1790», HAHR, 59 (1979), pp. 280-304. Sobre outras formas de expressão artística, ver George Kubler, Mexican
Sobre a sociedade índia, ver Charles Gibson, The Aztecs itnder Spanish Ride: Architecture in the Sixteenth Century (2 vols., Yale University Press: New Haven,
A History ofthe Indians ofthe Valley of México (Stanford University Press: Stan- 1948); Damián Bayón, «The Architecture and Art of Colonial Spanish America»,
ford, 1964); William B. Taylor, Drinking, Homicide and Rebellion in Colonial CHLA, vol. 2, pp. 709-46; Robert Stevenson, «The Music of Colonial Spanish
Mexican Villages (Stanford University Press: Stanford, 1979); John H. Rowe, America», CHLA, vol. 2, pp. 771-98.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

Sobre o carácter «patriarcal» do império e do Estado hispano-americano, ver que oferece deve ser confrontado corn a obra de C. R. Boxer Race Relations in
Richard M. Morse, «The Heritage of Latin America» in Louis Hartz, The Foun- the Portuguese Colonial Empire, 1415-1825 (Oxford University Press: Oxford,
ding ofNew Societies (Harcourt, Brace and Jovanovich: Nova Iorque, 1964), pp. 1963). Todo o tema das relações sociais e étnicas foi transformado pela sólida
123-77, e «Towards a Theory of Spanish American Government», Journal ofthe investigação empírica que encontramos em Stuart B. Schwartz, Sugar Planta-
History ofldeas, 15 (1954), pp. 71-93. Ver também Timothy E. Arma, «Spain and tions in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-183 5 (Cambridge Uni-
the Breakdown of the Imperial Ethos: The Problem of Equality», HAHR, 62 versity Press: Cambridge, 1985). C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1696-
(1982), pp. 254-72, que apresenta interessantes indícios contemporâneos da con- -1750 (University of Califórnia Press: Berkeley, 1962) é a obra de referência
ceção patriarcal das relações imperais mantidas pelos crioulos. sobre o impacto da exploração mineira do ouro na economia e na sociedade.
A. J. R. Russell-Wood, Fidalgos and Philanthropists: The Santa Casa da
Misericórdia of Bahia, 1550-1775 (University of Califórnia Press: Berkeley,
CAPÍTULO 5: O BRASIL COLONIAL 1968) situa no seu contexto social a divisão da Bahia da principal instituição de
caridade das colónias portuguesas. Uma perspetiva invulgar mas importante
Caio Prado Júnior, The Colonial Background of Modern Brazil (University sobre a vida colonial é dada por Susan A. Soeiro, «The Social and Economic Role
of Califórnia Press: Berkeley, 1967) é um estudo útil, realizado por um presti- of the Convent: Women and Nuns in Colonial Bahia: 1677-1800», HAHR, 54
giado historiador marxista. Ver também Dauril Alden (org.), Colonial Roots of (1974), pp. 209-32. James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin America:
Modern Brazil (University of Califórnia Press: Berkeley, 1973). A History of Colonial Spanish America and Brazil (Cambridge University Press:
Relativamente a alguns fatores importantes na criação do Brasil, ver John Cambridge, 1984) sistematiza habilmente a maior parte do que se sabe sobre as
Hemming, Red Gold: The Conquest ofthe Brazilian Indians, 1500-1760 (Mac- esturturas e as relações sociais no Brasil colonial.
millan: Londres, 1978), uma análise abrangente e legível; Charles E. Nowell, J. B. Bury, «The Architecture and Art of Colonial Brazil», CHLA, vol. 2,
«The French in Sixteenth-Century Brazil», The Americas, 5 (1949), pp. 381-93; pp. 747-70, é uma análise informada e bem escrita.
Richard M. Morse (org.), The Bandeirantes: The Historical Role ofthe Brazilian
Pathfinders (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1965), uma coletânea de ensaios
sobre as atividades dos caçadores de escravos que abriram o interior do Brasil aos Parte II: O Desafio do Mundo Moderno
europeus; Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census (University of Wis-
consin Press: Madison, 1969). CAPÍTULO 6: REFORMA, CRISE E INDEPENDÊNCIA
Os livros de C. R. Boxer oferecem uma sinopse incomparável sobre o lugar
do Brasil no império português. Ver The Portuguese Seaborne Empire (Penguin: Richard Herr, The Eighteenth-Century Revolution in Spain (Princeton Uni-
Harmondsworth, 1969 [O Império Marítimo Português, Lisboa, Edições 70, versity Press: Princeton, 1958) é uma obra de referência sobre o impacto do Ilu-
2010]); Portuguese Society in the Tropics (University of Wisconsin Press: Madi- minismo. Sobre as reformas dos Bourbons nas índias, ver John Lynch, Spanish
son, 1965); Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola, 1602-1686 Colonial Administration, 1782-1810: The Intendant System in the Vice-royalty of
(Athlone Press: Londres, 1952); The Dutch in Brazil (Oxford University Press: Rio de Ia Plata (Athlone Press: Londres, .1958); John R. Fisher, Government and
Oxford, 1957). Society in Colonial Peru: The Intendant System, 1784-1814 (Athlone Press: Lon-
Sobre governo e sociedade, ver Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society dres, 1970).
in Colonial Brazil: The High Court of Bahia and Its Judges, 1609-1745 (Univer- A respeito do impacto ideológico das reformas dos Bourbon, ver A. P. Whi-
sity of Califórnia Press: Berkeley, 1973) e Dauril Alden, Royal Government in taker (org.), Latin America and the Enlightenment (Cornell University Press:
Colonial Brazil (University of Califórnia Press: Berkeley, 1968), um estudo Ithaca, Nova Iorque, 1961); Mário Góngora, Studies in the Colonial History of
sobre a implementação da política da Coroa no século xvui. Spanish America (Cambridge University Press: Cambridge, ] 975); Magnus Mõr-
Gilberto Freyre, The Masters and the Slaves: A Study in the Development of ner (org.), The Expulsion ofthe Jesuits from Latin America (Alfred A. Knopf:
Brazilian Civilization, trad. Samuel Putnam (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, Nova Iorque, 1965); Antonello Gerbi, The Dispute ofthe New World: The His-
1956) é um livro famoso, que procura compreender as origens multirraciais da toiy of a Polemic, 1750-1900, trad. Jeremy Moyle (University of Pittsburgh
sociedade brasileira e a sua experiência da escravatura; o quadro algo cor-de-rosa Press: Pittsburgh, 1973).

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

Sobre as elites crioulas e o seu papel socioeconómico, ver Doris M. Ladd, American Revolutions, 1808-1826 (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1965); John
The Mexican Nobility at Independence (1780-1826) (University of Texas Press: Lynch, The Spanish American Revolutions, 1808-1826 (W. W. Norton: Nova Ior-
Austin, 1976); David Brading, Miners andMerchants in Bourbon México, 1763- que, 1973); O. Carlos Stoetzer, The Scholastic Roots of the Spanish American
-1810 (Cambridge University Press: Cambridge, 1971); John E. Kicza, «The Revolution (Fordham University Press: Nova Iorque, 1979); Jorge I. Domínguez,
Great Families of México: Elite Mainíenance and Business Practice in Late Insurrection or Loyalty: The Breakdown of the Spanish American Empire
Colonial México City», HAHR, 62 (1982), pp. 429-57, um artigo importante, que (Harvard University Press: Cambridge, Mass., 1980). Timothy E. Anna, Spain
mostra como as famílias crioulas de condição mais elevada ainda prezavam a and the Loss of America (University of Nebraska Press: Lincoín, 1983) defende
honra e o estatuto acima de tudo o resto, apesar de continuarem envolvidas no que erros de estratégia política da Espanha constituíram fatores decisivos no pro-
comércio transatlântico; ver também, do mesmo autor, Colonial Entrepreneurs: cesso de independência; ver também, do mesmo autor, «Spain and the Breakdown
Families and Business in Bourbon México City (University of New México of the Imperial Ethos: The Problem of Equality», HAHR, 62 (1982), pp. 254-72,
Press: Albuquerque, 1983); John R. Fisher, Silver Mines and Silver Miners in uma abordagem interessante da conceção crioula das relações imperiais. Charles
Colonial Peru, 1776-1824 (University of Liverpool: Liverpool, 1977); Susan C. Griffin, «Economic and Social Aspects of the Era of Spanish-American Inde-
Migden Socolow, The Merchants of Buenos Aires, 1778-1810: Family and Com- pendence», HAHR, 29 (1949), pp. 170-87, é um ensaio que se tornou um clás-
merce (Cambridge University Press: Cambridge, 1978); Javier Cuenca Esteban, sico. Biografias credíveis dos dois principais Libertadores são Gerhard Masur,
«Statistics of Spain's Colonial Trade, 1792-1820: Consular Duties, Cargo Inven- Simón Bolívar (University of New México Press: Albuquerque, 1969), e J.C.J.
taries, and Balances of Trade», HAHR, 61(1981), pp. 381-428. Metford, San Martin the Liberator (Longmans: Londres, 1950).
O papel das forças armadas é analisado por Lyle N. McAlister, The 'Fuero
Militar' in New Spain, 1765-1800 (University of Florida Press: Gainesville,
Florida, 1957). Leon G. Campbell, The Military and Society in Colonial Peru, CAPÍTULO 7: A PROCURA DE ORDEM:
1750-1810 (American Philosophical Society: Filadélfia, 1978) revela como o CONSERVADORES E LIBERAIS NO SÉCULO XIX
financiamento inadequado das forças armadas criou dificuldades à repressão da
revolta de Tupac Amaru. David Bushnell e Neill Macaulay, The Emergence of Latin America in the
Sobre a revolta de Tupac Arnaru e outras revoltas de finais do período colo- Nineteenth Century (Oxford University Press: Nova Iorque e Oxford, 1988) dá
nial, ver Lillian E. Fisher, The Last Inça Revolt, 1780-1783 (University of conta dos principais desenvolvimentos até 1880, mas debruça-se também sobre
Oklahoma Press: Norman, 1966); John Leddy Phelan, The People and the King: os vários países isoladamente, evitando a teoria da dependência e o «neocolonia-
The Comunero Revolution in Colômbia, 1781 (University of Wisconsin Press; lismo» como ferramentas analíticas. Tulio Halperin-Donghi, Historia contempo-
Madison, 1977); Anthony McFarlane, «Civil Disorders and Popular Protests in rânea de América Latina (Alianza Editorial: Madrid, 1969) é uma síntese base-
Late Colonial New Granada», HAHR, 64 (1984), pp. 17-54, e «The "Rebellion of ada na teoria da dependência; ver também, do mesmo autor, The Aftermath of
the Barrios": Urban Insurrection in Bourbon Quito', HAHR, 69 (1989), pp. 283- Revolution in Latin America (Harper & Row: Nova Iorque, 1973). Peter J.
-330, que, tal como o estudo de Phelan, mostra que as «várias revoltas» que ocor- Bakewell, John J. Johnson e Meredith D. Dodge (orgs.), Readings in Latin Ame-
reram nos últimos 50 anos de domínio colonial foram uma reação às pressões rican History, vol. 2, The Modern experience (Duke University Press: Durham,
fiscais dos Bourbons e não primeiros impulsos para a independência. NC, 1985) é uma coletânea de importantes artigos académicos sobre o período
Sobre o Brasil, ver Dauril Alden., Royal Government in Colonial Brazil (Uni- nacional.
versity of Califórnia Press: Berkeley, 1968); AJ. R. Russell-Wood (org.), From J. Lloyd Mediam, Church and State in Latin America: A History ofPolitico-
Colony to Nation: Essays on the Independence of Brazil (Johns Hopkins Univer- -Ecclesiastical Relaíions (University of North Carolina Press: Chapei Hill, 1966)
sity Press: Baltimore, 1975), uma antologia de ensaios sobre o impacto do Ilumi- é um bom estudo sobre as relações difíceis entre Estado e Igreja após a indepen-
nismo e sobre o processo de Independência; Kenneth R. Maxwell, Conflicts and dência. Sobre a ideologia das elites modernizantes na segunda metade do século,
Conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808 (Cambridge University Press: ver a antologia editada por Ralph Lee Woodward, Jr., Positivism in Latin Ame-
Cambridge, 1973) descreve as relações tensas entre a colónia e a sua metrópole. rica, 1850-1900 (D. C. Heath: Lexington, Mass., 1971), e Frank Safford, The
Sobre os acontecimentos que levaram à independência e às guerras revolu- Ideal ofthe Practical: Colômbia 's Struggle to Form a Technical Elite (University
cionárias, ver R. A. Humphreys e John Lynch (orgs.), The Origins of the Latin of Texas Press: Austin, 1976), que mostra como o ensino técnico foi retardado

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HISTÓRIA DA AMERICA LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

pela instabilidade política crónica e pela negligência do governo até a economia Sobre o México, ver Michael C. Meyer and William L. Sherman, The Course
de exportação começar a expandir-se. of Mexican History, 3a ed. (Oxford University Press: Nova Iorque, 1987); Charles
A respeito da economia, ver Roberto Cortês Conde e Stanley J. Stein (orgs.), A. Hale, Mexican Liberalism in the Age of Mora, 1821-1853 (Yale University
Latin America: A Guide to Economic History, 1830-1930 (University of Califór- Press: New Haven, 1968), um estudo incisivo de ideólogos liberais e conserva-
nia Press: Berkeley, 1977); Roberto Cortês Conde e Shane J. Hunt (orgs.), The dores; Michael P. Costeloe, Church Wealth in México: A Study ofthe Julgado de
Latin American Economies: Growth and the Export Sector, 1880-1930 (Holmes Capellanías in the Ai-chbishopric of México, 1800-1856 (Cambridge University
and Meier: Nova Iorque, 1985), ensaios sobre a ligação entre exportações e Press: Cambridge, 1967); Jan Bazant, Alienation of Church Wealth: Social and
desenvolvimento interno; Bill Albert, South America and the World Economy Economic Aspects ofthe Liberal Revolution, 1856-1875 (Cambridge University
from Independence to 1930 (Macmillan: Londres, 1983), uma análise concisa de Press: Cambridge, 1971); Laurens B. Perry, Juárez andDíaz: Machine Politics in
problemas de dependência económica e modernização. México (Northern Illinois University Press: De Kalb, 1978); John Coatsworth,
Sobre o Brasil, ver E. Bradford Burns, A History of Brazil (Columbia Univer- Growth Agaínst Development: The Economic Impact of Railroads in Porfirian
sity Press: Nova Iorque, 1970). Sobre a sociedade esclavagista, ver os dois clás- México (Northern Illinois University Press: De Kalb, 1980).
sicos de Gilberto Freyre, The Masters and the Slaves: A Study in the Develop- O poder atrativo da monarquia era mais forte no México, mas, na verdade,
ment of Brazilian Civilization, trad. Samuel Putnam (Alfred A. Knopf: Nova perdurou em toda a América hispânica. Esta questão só muito recentemente
Iorque, 1956), e The Mansions and the Shanties: The Making ofModern Brazil, começou a merecer a devida atenção. Ver, por exemplo, Mark J. Van Aken, King
trad. Harriet de Onís (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1963); e o excelente estudo ofthe Night: Juan José Flores and Ecuador, 1824-1864 (University of Califórnia
de Stanley J. Stein, Vassouras: A Brazilian Coffee County, 1850-1900: The Roles Press: Berkeley, 1989), uma biografia do primeiro presidente da república, um
ofPlanter and Slave in a Plantation Society (Princeton University Press: Prince- mestiço de baixa condição e, mais tarde, caudilho das guerras de independência,
ton, 1985). Sobre a luta para abolir a escravatura, ver Leslie Bethell, The Aboli- que nos anos 40 do século xix conspirou com outro grande caudiiho da luta pela
tion ofthe Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, independência na Bolívia, Andrés Santa Cruz, e com a Espanha, para estabelecer
1807-1869 (Cambridge University Press: Cambridge, 1970); Robert Brent monarquias no Equador, no Peru e na Bolívia. Ver também Ana Gimeno, Una
Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil (Atheneum: Nova Iorque, 1972); tentativa monárquica en America: El caso ecuatoriano (Banco Central dei Ecu-
Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888 (University of ador: Quito, 1988).
Califórnia Press: Berkeley, 1973). Emília Viotti da Costa, The Brazilian Empire: A respeito do Paraguai, ver Harris Gaylord Warren, Paraguay: An Informal
Myths and Histories (University of Chicago Press: Chicago e Londres, 1985) é History (University of Oklahoma Press: Norman, 1949); Paraguay and the Trí-
uma análise abrangente do período que antecedeu a queda da monarquia. Robert ple Alliance (University of Texas Press: Austin, 1978).
M. Levine, «"Mud-Hut Jerusalém": Canudos Revisited', HAHR, 68 (1988), Sobre a Argentina, ver David Rock, Argentina: 1516-1982: From Spanish
pp. 525-72, defende que os rebeldes antirrepublicanos não eram fanáticos loucos Colonization to the Falklands War (L B. Tauris: Londres, 1986); James R. Sco-
mas católicos ortodoxos que lutavam pela justiça social. As consequências da bie, Argentina: A City and a Nation, 2a ed. (Oxford University Press: Nova Ior-
rápida expansão da exportação são estudadas em Richard Graham, Britain and que e Oxford, 1971); Carlos Díaz Alejandro, Essays on the Economic History of
the Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914 (Cambridge University Press: the Argentine Republic (Yale University Press: New Haven, 1970); Miron Bur-
Cambridge, 1968). Warrerj Dean, The Industrialization o/São Paulo, 1880-1945 gin, The Economic Aspects of Argentine Federalism, 1820-1852 (Harvard Uni-
(University of Texas Press: Austin, 1969) mostra como a economia de exportação versity Press: Cambridge, Mass., 1946); James R. Scobe, Revolution on the Pam-
estimulou o desenvolvimento industrial. pas: A Social History of Argentine Wheat (University of Texas Press: Austin,
A respeito do Chile, ver Jay Kinsbruner, Chile: A Historical ínterpretation 1964), e Buenos Aires: Plaza to Suburb, 1870-1910 (Oxford University Press:
(Harper & Row: Nova Iorque, 1973); Simon Collier, Ideas and Politics ofChi- Nova Iorque e Oxford, 1974); John Lynch, Argentine Dictator: Juan Manuel dr
lean Independence, 1808-1833 (Cambridge University Press: Cambridge, 1969); Rosas, 1829-1852 (Oxford University Press: Oxford, 1981); Allison W. Bimkley,
Arnold J. Bauer, Chilean Rural Society from the Spanish Conquest to 1930 (Cam- The Life ofSarmiento (Princeton University Press: Princeton, 1952).
bridge University Press: Cambridge, 1975); Harold Blakemore, British Nitrates •*
and Chilean Politics, 1886-1896: Balmaceda and Lord North (Athlone Press:
Londres, 1974).

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

CAPÍTULO 8: «CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE»: Parte III: O Século xx


DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS I

O texto central do liberalismo latino-americano é Facundo, de Domingo Sar- CAPÍTULO 9: NACIONALISMO E DESENVOLVIMENTO:
miento. Ariel, de José Enrique Rodo, foi editado com uma boa introdução de UMA ANÁLISE GLOBAL
Gordon Brotherston (Cambridge University Press: Cambridge, 1967). Euclides
da Cunha, Rebellion in the Backlands, trad. Samuel Putnam (University of Chi- Das histórias gerais, as melhores são Benjamin Keen e Mark Wasserman,
cago Press: Chicago, 1957) é um clássico da literatura que reflete as dúvidas em A. Short History of Latin America (Houghton Mifflin: Boston, 1980), uma obra
relação a si próprios dos positivistas latino-americanos na viragem de século. bem escrita e informativa, influenciada pela teoria da dependência (ver abaixo
Charles A. Hale, Mexican Liberalism in the Age of Mora, 1821-1853 (Yale textos selecionados), que nos anos 60 e 70 constituiu o enquadramento concep-
University Press: New Haven, 1968) é uma boa análise dos problemas ideológi- tual básico para a maioria dos estudiosos da América Latina na maior parte das
cos sentidos num dos mais antigos vice-reinos após a independência; do mesmo áreas de especialidade, da história económica à crítica literária. Tulio Halperín-
autor, The Transformation of Liberalism in Late Nineteenth-Century México -Donghi, Historia contemporânea de America Latina (Alianza Editorial: Madrid,
(Princeton University Press: Princeton, 1990) foca a emergência do positivismo 1969) é uma história credível, de um investigador proeminente, cuja interpreta-
e do darwinismo social. William Rex Crawford, A Century of Latin American ção também se baseia na teoria da dependência. Thomas E. Skidmore e Peter H.
Thought, 3a ed. (Harvard University Press: Cambridge, Mass., 1963) é um estudo Smith, Modern Latin America, 2a ed. (Oxford University Press: Nova Iorque e
útil sobre os principais pensadores, com abundantes citações das suas obras. Ver Oxford, 1989), cuja primeira edição data de 1984, propõe uma «abordagem
também Leopoldo Zea, The Latin American Mina (University of Oklahoma modificada da dependência». The CHLA, vols. 4-9, inclui capítulos sobre desen-
Press: Norman, 1963), e Positivism in México (University of Texas Press: Austin, volvimentos gerais e sobre países tratados isoladamente, entre c. 1870 e c. 1990.
1974). Para uma perspetiva mais abrangente sobre o positivismo, ver a antologia Para uma história informativa da América Central, região que tanto atraiu a
organizada por Ralph Lee Woodward, Jr., Positivism in Latin America, 1850- atenção internacional nos anos 80, ver Ralph Lee Woodward, Jr., Central Ame-
1900 (D.C. Heath: Lexington, Mass., 1971). Sobre os obstáculos à implemen- rica: A Nation Divided (Oxford University Press: Nova Iorque e Oxford, 1985),
tação das ideias modernas, ver Frank Safford, The Ideal ofthe Practical: Colôm- e James Dunkerley, Power in the Isthmus: A Political History of Modern Central
bia^ Struggle to Form a Technical Elite (University of Texas Press: Austin, America (Verso: Londres, 1988), que adota uma abordagem radica] com base nas
1976). A importância das influências estrangeiras é ilustrada por Richard classes sociais. Para uma análise económica, ver Victor Bulmer-Thomas, The
Graham, Britain and the Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914 (Cam- Political Economy of Central America since 1920 (Cambridge University Press:
bridge University Press: Cambridge, 1968). Encontramos uma breve síntese de Cambridge, 1987). Ver também os capítulos relevantes em CHLA, vols. 5 e 7,
excelente qualidade em Charles A. Hale, «Political and Social Ideas in Latin com as respetivas bibliografias.
America, 1870-1930», CHLA, vol. 4, pp. 367-441. Sobre repúblicas como Bolívia, Colômbia, Peru e Venezuela, que são abor-
Sobre o Brasil, ver Samuel Putnam, Marvelous Journey: Four Centuries of dadas apenas tangencialmente neste capítulo, ver os capítulos correspondentes
Brazilian Literature (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1948); Eriço Veríssimo, em CHLA, vols. 5 e 8, sobre estes países e outros, e as respetivas bibliografias.
Brazilian Literature (Macmillan: Londres, 1945); David Haberly, Three Sad Para dados sobre desenvolvimentos económicos e sociais, ver Economic Sur-
Races: Racial Identity and National Consciousness in Brazilian Literature (Cam- vey of Latin America, publicado anualmente pela Comissão Económica para a
bridge University Press: Cambridge, 1983). América Latina e o Caribe (CEPAL), Santiago, Chile. Para uma perspetiva inter-
A respeito da América hispânica, ver os textos de Gerald Martin «The Lite- nacional comparativa, consultar os dados publicados anualmente no Relatório de
rature, Music and Art of Latin America, from Independence to 1870», CHLA, Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial. The Latin America Weekly Report
vol. 3, pp. 797-839, e «The Literature, Music and Art of Latin America, 1870- (Latin American Newsletters: Londres) constitui um resumo credível dos assun-
1930», CHLA, vol. 4, pp. 443-526; Jean Franco, The Modern Culture of Latin tos correntes; encontram-se também disponíveis Relatório Regional para a Amé-
America: Society and the Artist (Penguin Books: Harmondsworth, 1970), e An rica Latina. Sobre a 'teoria da dependência', ver André Gunder Frank, Capita-
Introduction to Spanish American Literature (Cambridge University Press: Cam- lism and Under-developmení in Latin America: Historical Studies of Chile and
bridge, 1969). Brazil (Penguin Books: Harmondsworth, 1969), um dos textos mais influentes;

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependency and Development in «Estado burocrático-autoritário» como uma aliança incómoda ente as elites
Latin America, trad. Marjory Mattingly Urquidi (University of Califórnia Press: dominantes e as forças armadas corn o objetivo de reprimir a mobilização dos
Berkeley, 1979); Stanley e Barbara J. Stein, The Colonial Heritage ofLatin Ame- trabalhadores; a sua melhor formulação encontra-se em Guillermo 0'Donnell,
rica: Essays on Economic Dependence in Perspective (Oxford University Press: Modernization and Bureaucratic Authoritarianism: Studies in South American
Nova Iorque e Oxford, 1970). Uma antologia útil é Ronald H. Chilcote e Joel C. Politics (Institute of International Studies, University of Califórnia: Berkeley,
Edelstein (orgs.), Latin America: The Struggle with Dependency and. Beyond 1973). Pelo contrário, os cientistas políticos dos EUA, em particular, tentaram
(Halstead Press: Nova Iorque, 1974). A validade da teoria da dependência é deba- explicar a relativa ausência de democracias liberais estáveis na América Latina
tida nos ensaios da especialidade em Christopher Abel e Colin M. Lewis (orgs.), procurando tradições distintivas na cultura política e analisando a sua razão de
Economic Imperialism and the State: The Political Economy ofan Externai Con- ser. A noção de «corporativismo» foi utilizada para dar uma explicação cultura]
nection during the 19th and20th Centuries (Institute of Latin American Studies, para o intervencionismo do Estado no período dos anos 30 ao começo dos anos
University of London: Londres, 1984). Ver também André Gunder Frank, Criti- 80; ver Howard j. Wiarda, Corporatism and National Development in Latin Ame-
que andAnti-Critique: Essays on Dependence and Reformisin (Macmillan: Lon- rica (Westview Press: Boulder, Colorado, 1981).
dres, 1984). Bill Albert, South America and the World Economy from Indepen- Para estudos sobre o desenvolvimento da economia latino-americana em
dence to 1930 (Macmillan: Londres, 1983) oferece uma análise sucinta e diferentes períodos e países, ver os ensaios de diversos especialistas em CHLA,
imparcial destas questões. vols. 4-9. Rosemary Thorp e Laurence Whitehead (orgs.), Inflation and Stabili-
A bibliografia sobre desenvolvimentos políticos e sociais é esmagadora; zation in Latin America (Macmillan: Londres, 1979) é uma informativa coletânea
grande parte refere-se a países tratados individualmente, e nas bibliografias para de ensaios escritos por historiadores da área da economia a respeito do problema
os capítulos subsequentes estão disponíveis mais sugestões. Os textos que a da inflação nos principais países durante a década de 70. Para relatos sobre os
seguir se referem foram incluídos com o objetivo de fornecer uma orientação resultados do liberalismo económico, conforme aplicado nos anos 70 e princípios
geral. A propósito de desenvolvimento rural e movimentos de camponeses, ver dos anos 80, ver Alejandro Foxley, Latin American Experiments in Neoconserva-
Alain de Janvry, The Agrarian Question and Reformism in Latin America (John s tive Economics (University of Califórnia Press: Berkeley, 1983), e Joseph Ramos,
Hopkins University Press: Baltimore, 1981); Rodolfo Stavenhagen, Agrarian Neoconservative Economics in the Southern Cone ofLatin America, 1973-1983
Problerns and Peasant Movements in Latin America (Doubleday: Garden City, (Johns Hopkins University Press: Baltimore, 1986), ambos, de um modo geral,
Nova Iorque, 1970). Richard Gott, Guerrilla Movements in Latin America (Tho- desfavoráveis. Para uma crítica monetarista da política governamental, da auto-
mas Nelson: Londres, 1970) é uma boa análise, que se concentra nas guerrilhas ria de um influente especialista em finanças, ver T. G. Congdon, Economic Libe-
rurais. Sobre crescimento urbano, ver Jorge Hardoy (org.), Urbanization in Latin ralisrn in the Southern Cone of Latin America (Trade Policy Research Centre:
America: Approaches and íssues (Doubleday: Garden City, Nova Iorque, 1975). Londres, 1985).
George Philip, OU and Politics in Latin America: Nationalist Movements and A crise da dívida dos anos 80 gerou reflexão e análise em abundância. Ver
State Companies (Cambridge University Press: Cambridge, 1983) trata da impor- Pedro-Pablo Kuczynski, Latin American Debt: A Twentieth Century Fund Book
tante questão das pressões políticas por detrás da intervenção do Estado num (Johns Hopkins niversity Press: Baltimore, 1988), uma exposição lúcida sobre o
setor crucial da economia de exportação. As tentativas de teorizar a respeito da problema, apresentada por um ex-ministro das Finanças do Peru e banqueiro
política latino-americana têm gerado grande polémica. As obras que a seguir se internacional; Rosemary Thorp e Laurence Whitehead (orgs.), Latin American
referem representam três grandes tendências: John J. Johnson, Political Change Debt and the Adjustment Crisis, Macmillan Press Series (Macmillan: Londres,
in Latin America: The Emergence of the Middle Sectors (Stanford University 1987), um estudo sobre o impacto da dívida e da inflação nas estratégias políticas
Press: Stanford, 1958) é uma obra de referência da teoria da «modernização» em diferentes países. Carlos Marichal, A Century of Debt Crises in Latin Ame-
liberal reformista dos anos 50 e princípios dos anos 60, na qual se apoiava a rica: From Independence to the Great Depression, 1820-1930 (Princeton Uni-
Aliança pelo Progresso do presidente Kennedy. Foi, em larga medida, eclipsada versity Press: Princeton, 1989) mostrou que o problema não era novo.
nas décadas de 60 e 70 por versões reformistas ou revolucionárias da «teoria da A crise da dívida levou também a uma reavaliação das estratégias de desen-
dependência» atrás mencionada. A predominância das ditaduras militares a partir volvimento. Stephany Griffith-Jones e Oswaldo Sunkel, Debt and Development
de meados dos anos 60 e até ao começo da década de 80 originou análise em Crisis in Latin America: The Endofan Illusion (Oxford University Press: Oxford,
abundância, que teve o seu exemplo mais influente à esquerda na teoria do 1986) é uma análise crítica do que correu mal com as políticas voltadas para

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
SUGESTÕES DE LEITURA

dentro, proposta por dois economistas influenciados pela CEPAL. Os estimulan- 1986), que defende que a Revolução foi um movimento de massas genuíno com
tes ensaios reunidos em Esperanza Durán (org.), Latin America and the World objetivos sociais radicais. Esta linha é seguida por John Mason Hart, Revolutio-
Recession (Cambridge University Press: Cambridge, 1985) constituem um post nary México: The Corning and Process ofthe Mexican Revolution (University of
mortem das estratégias de desenvolvimento latino-americano; escritos por peri- Califórnia Press: Berkeley, 1987), que revela quão profundamente os EUA esta-
tos regionais de várias tendências, refletem algum do novo pensamento sobre vam envolvidos na economia mexicana e como exerciam influência política
os problemas do continente no contexto da experiência de outros países em vias sobre caudilhos de todas as facões.
de desenvolvimento. David Lehman, Democracy and Development in Latin Robert E. Quirk, The Mexican Revolution and the Catholic Church, 1910-
America: Economias, Politics and Religion in the Postwar Period (Polity Press: -1929 (Indiana University Press: Bloomington, 1973) debruça-se sobre um tema
Cambridge, 1990) dedica-se à difícil tarefa de relacionar desenvolvimentos eco- importante e até então negligenciado. Jean Meyer, The Cristero Rebellion (Cam-
nómicos e políticos num período tumultuoso. bridge University Press: Cambridge, 1976) revela a dimensão e a gravidade desta
revolta católica.
Roger Jansen, The Politics of Mexican Development (Johns Hopkins Univer-
CAPÍTULO 10: MÉXICO: REVOLUÇÃO E ESTABILIDADE sity Press: Baltimore, 1971) é um estudo aprofundado sobre o Estado unipartidá-
rio. Peter H. Smith, Labyrinths of Power: Political Recruitment in Twentieth-
O melhor estudo é Michael C. Meyer e William L. Sherman, The Course of
-Century México (Princeton University Press: Princeton, 1978) examina a base
Mexican History, 3a ed. (Oxford University Press: Nova Iorque, 1987). Uma ava- do poder do PRI.
liação do país, num. texto bem escrito, encontra-se em Alan Riding, Distant Nei- Sobre a economia, ver Clark W. Reynolds, The Mexican Econorny: Twen-
ghbors: A Portrait o]the Mexicans (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1985) [Título tieth-Century Structure and Growth (Yale University Press: New Haven, 1970).
da edição britânica: México: Inside the Volcano (L B. Tauris: Londres, 1987)].
Para desenvolvimentos a partir de 1930, ver CHLA, vol. 7.
A Revolução foi alvo de muito interesse. Ver duas obras clássicas de Frank
CAPITULO 11: BRASIL: ORDEM E PROGRESSO
Tannenbaum, Peace by Revolution: México After 1910 (Columbia University
Press: Nova Iorque, 1933), e México: The Strugglefor Peace and Bread (Alfred Rollie E. Poppino, Brazil: The Land and The People (Oxford University
A. Knopf: Nova Iorque, 1950). Um registo fascinante é oferecido por Anita Bren-
Press: Nova Iorque e Oxford, 1968) e E. Bradford Burns, A Histoiy of Brazil,
ner, The Wind That Swept México (University of Texas Press: Austin, 1987), que
2a ed. (Columbia University Press: Nova Iorque, 1980) são análises de carácter
inclui 184 «fotografias históricas». Sobre o enquadramento ideológico, ver James geral sólidas. Um estudo abrangente sobre o desenvolvimento económico é
D. Cockroft, Intellectual Precursors of the Mexican Revolution (University of oferecido por Werner Baer, The Brazilian Economy: Growth and Development,
Texas Press: Austin, 1968). Para uma avaliação do debate sobre se os aconteci- 2a ed. (Praeger: Nova Iorque, 1983). Sobre desenvolvimentos posteriores a 1930,
mentos no México constituíram uma genuína revolução social, uma grande
ver CHLA, vol. 9.
revolta ou uma competição entre oligarcas que aspiravam ao poder, ver David M. Relativamente a mudanças políticas e económicas gerais na primeira parte do
Bailey, «Revisionism and the recent historiography of the Mexican Revolution»,
século, ver Gilberto Freyre, Order andProgress: Brazil from Monarchy to Repu-
HAHR , 58 (1978), pp. 62-79. John Womack, Jr., Zapata and the Mexican Revo- blic, trad. Rod W. Horton (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1970); Richard
lution (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1968) é um texto famoso sobre a revolta Grafiam, Britain and the Onset of Modernization in Brazil, 1850-1914 (Cam-
agrária das comunidades índias; ver também, do mesmo autor, a excelente aná- bridge University Press: Cambridge, 1968); Warren Dean, The Industrialization
lise «The Mexican Revolution, 1910-1920», CHLA, vol. 5, pp. 79-154. Um ofSão Paulo, 1880-1945 (University of Texas Press: Austin, 1969).
estudo influente é Ramon Eduardo Ruiz, The Great Rebellion, México 1905- A governação de Getúlio Vargas foi crucial para o impulsionamento da indus-
1924 (W. W. Norton: Nova Iorque, 1980). Sobre os efeitos da Revolução nas
trialização do Brasil. Ver Robert M. Levine, The Vargas Regime: The Criticai
diferentes regiões e sobre o papel dos caudilhos, ver David A. Brading (org.), Years, 1934-1938 (Columbia University Press: Nova Iorque, 1970); John D. Wirth,
Caudillo and Peasant in the Mexican Revolution (Cambridge University Press: The Politics of Brazilian Development, 1930-1954 (Stanford University Press:
Cambridge, 1980). Um dos estudos melhores e mais abrangentes é Alan Knight,
Stanford, 1970). Richard Bourne, Getúlio Vargas ofBrazil, 1883-1954: Sphinx of
The Mexican Revolution (2 vols., Cambridge University Press: Cambridge,
the Pampas (Charles Knight: Londres, 1974) constitui uma biografia credível.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

As transições abruptas na alternância entre governos militares e governos' vista negativo é oferecido por um antigo camarada de Castro, Carlos Franqui,
civis no decurso da modernização do Brasil têm sido profusamente analisadas. Family Portrait with Fidel (Random House: Nova Iorque, 1984). Para um retrato
VerThomas E. Skidmore, Politics in Braz.il, 1930-1964: An Experiment in Dema- mais completo, ver a biografia da autoria de Tad Szulc, Fidel: A Criticai Portrait
cracy (Oxford University Press: Nova Iorque e Oxford, 1967); Alfred Stepan, (William Morrow: Nova Iorque, 1986).
The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil (Princeton University Sobre a luta de guerrilha, ver Che Guevara, Reminiscences of the Cuban
Press: Princeton, 1971); Alfred Stepan (org.), Authoritarian Brazil: Origins, Revolutionary War (Penguin Books: Harmondsworth, 1969). Uma síntese breve
Policies and Future (Yale University Press: New Haven, 1973); Thomas E. e útil sobre a carreira e as ideias de Guevara, embora já bastante datada, é Andrew
Skidmore, The Politics of Military Rule in Brazil, 1964-85 (Oxford University Sinclair, Guevara (Fontana: Londres, 1970).
Press: Nova Iorque e Oxford, 1988). Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis Sobre o sistema político, ver Theodore Draper, Castroism, Theory and Prac-
(Ernest Benn: Londres, 1978) é uma interpretação da modernização e do papel do tice (Praeger: Nova Iorque, 1965). Os objetivos e as políticas do Estado revolu-
Exército com base nas classes sociais. Ver também as seguintes propostas de um cionário são favoravelmente apreciados em Leo Huberman e Paul M. Sweezy,
estudo abrangente de todo o processo: Luiz Bresser Pereira, Development and Socialism in Cuba (Monthly Review Press: Nova Iorque, 1969), enquanto K. S.
Crisis in Brazil, 1930-1983 (Westview Press: Boulder, Colorado, 1984), e John Karol, Guerrillas in Power (Hill and Wang: Nova Iorque, 1970) oferece uma
D. Wirth et ai. (orgs.), State and Society in Brazil: Contimdty and Change perspetiva crítica, vinda da esquerda. Sobre a economia, ver Carmelo Mesa-Lago
(Westview Press: Boulder, Colorado, 1987). (org.), Revolutionary Change in Cuba (University of Pittsburgh Press: Pitts-
burgh, 1971), e Carmelo Mesa-Lago, The Economy of Socialist Cuba: A Two-
-Decade Appraisal (University of New México Press: Albuquerque, 1981). As
CAPÍTULO 12: CUBA: DEPENDÊNCIA, NACIONALISMO E REVOLUÇÃO dificuldades económicas de Cuba nos anos 80 e a estratégia de «retificação» são
analisadas com benevolência em Jean Stubbs, Cuba: The Test of Time (Latin
Hugh Thomas, Cuba or The Pursu.it of Freedom (Eyre & Spottiswoode: American Bureau: Londres, 1989).
Londres, 1971) é uma história política muitíssimo documentada, que se tornou
a obra de referência na matéria. Para desenvolvimentos posteriores a 1930, ver
CHIA, vol. 7. CAPÍTULO 13: ARGENTINA: O LONGO DECLÍNIO
Os estudos sobre a Cuba anterior a 1959 tendem a ser influenciados pelo
desejo de identificar as raízes históricas da Revolução de Castro. Contudo, para David Rock, Argentina, 1516-1982 (I. B. Tauris: Londres, 1986), e James R.
uma obra equilibrada e bem documentada sobre a luta pela independência cubana Scobie, Argentina: A City and a Nation, 2a ed. (Oxford University Press: Nova
e o seu rescaldo, ver Louis A. Perez, Jr., Cuba: Between Empires, 1878-1902 Iorque e Oxford, 1971) são boas sínteses. Sobre a economia, ver Carlos Díaz
(University of Pittsburgh Press: Pittsburgh, 1983). Sobre as lutas subsequentes Alejandro, Essays on the Economic History ofthe Argentine Republic (Yale Uni-
contra o domínio dos EUA, ver Robert F. Smith, The United States and Cuba: versity Press: New Haven, 1970). Para desenvolvimentos posteriores a 1930, ver
Business and Diplomacy, 1917-1960 (College and University Press: New Haven, CHIA, vol. 8.
1960); Luis A. Aguilar, Cuba 1933: Prologue to Revolution (Cornell University Quanto à dinâmica da história política, ver Robert A. Potash, The Army and
Press: Ithaca, Nova Iorque, 1972); James O'Connor, The Origins ofSocialism in Politics in Argentina, 1928-1945 (Stanford University Press: Stanford, 1969), e
Cuba (Cornell University Press: Ithaca, Nova Iorque, 1970). Uma tentativa de The Army and Politics in Argentina, 1945-1962 (Stanford University Press: Stan-
avaliar a dimensão da mudança provocada pela Revolução encontra-se em Jorge ford, 1980); Peter H. Smith, Politics and Beefin Argentina (Columbia University
I. Domínguez, Cuba: Order and Revolution (Harvard University Press: Cam- Press: Nova Iorque, 1969), e também, do mesmo autor, o influente estudo Argen-
bridge, Mass., 1978). Para uma perspetiva favorável a Castro e à Revolução, tina and the Failure o/Democracy: Conflict among Political Elites (University
veiculada pelo jornalista dos EUA que o entrevistou na Sierra Maestra, ver Her- of Wisconsin Press: Madison, 1974).
bert L. Matthews, Revolution in Cuba (Scribners: Nova Iorque, 1965), e também, Para o primeiro período de peronismo, ver George I. Blanksten, Perón's
do mesmo autor, Castro: A Political Biography (Penguin Books: Harmon- Argentina (University of Chicago Press: Chicago, 1974), uma obra de referência.
dsworth, 1969). Outro registo positivo, e bem ilustrado, é Lee Lockwood, Para uma leitura do segundo período de governação peronista, da autoria de um
Castro's Cuba, Cuba's Fidel (Random House: Nova Iorque, 1969). Um ponto de dos seus ministros, ver Guido di Telia, Argentina Under Perón (1973-1976),

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

Macmjllan Press Series (Macmillan: Londres, 1983). Joseph A. Page, Perón:' A respeito de Pinochet, ver J. Samuel Valenzuela e Arturo Valenzuela (orgs.),
A Biography (Random House: Nova Iorque, 1983) é uma apreciação bem Military Rule in Chile: Dictatorship and Oppositions (Johns Hopkins Press:
documentada do grande caudilho. Baltimore, 1986).
Guillermo O'Donnell, Modernization and Bureaucratic Authoritarianism:
Studies in South American Politics (Institute of International Studies, University
of Califórnia: Berkeley, 1973) defende que as elites se aliaram às forças armadas CAPÍTULO 15: IDENTIDADE E MODERNIDADE:
com vista a conter a «ameaça» da militância proletária. Gary W. Wynia, Argen- DESENVOLVIMENTOS LITERÁRIOS E CULTURAIS II
tina: Jllusions andRealities (Holmes and Meier: Nova Iorque, 1986) estabelece
uma correlação entre política económica e tipos de governo. Joseph Ramos, As ideias dos pensadores e da história intelectual em geral têm sido algo negli-
Neoconservative Economics in the Southern Cone ofLatin America 1973-1983 genciadas, mas ver CHLA, vol. 9. Textos seminais disponíveis em inglês são:
(Johns Hopkins University Press: Baltimore, 1986) é uma obra informativa, José Carlos Mariátegui, Seven Interpretative Essays on Peruvian Reality (Uni-
ainda que bastante técnica, sobre as experiências de mercado livre das juntas versity of Texas Press: Austin, 1971), a exposição marxista clássica sobre indige-
militares. nismo, e Octavio Paz, The Labyrinth of Solitude: Life and Thought in México,
trad. Lysander Kemp (Grove Press: Nova Iorque, 1963), um ensaio célebre que
explora as ansiedades culturais de uma nação confrontada com o mundo moderno.
CAPÍTULO 14: CHILE: DEMOCRACIA, REVOLUÇÃO E DITADURA Para um estudo sobre os principais pensadores, ver William Rex Crawford,
A Century ofLatin American Thought, 3." ed. (Harvard University Press: Cam-
Jay Kinsbruner, Chile: A Historical Interpretation (Harper & Row: Nova bridge, Mass., 1963); Martin S. Stabb, In Ouest of Identity: Patterns in the Spa-
Iorque, 1973), e Brian Loveman, Chile: The Legacy of Hispanic Capitalism nish American Essay of Ideas 1890-1960 (University of North Carolina Press:
(Oxford University Press: Nova Iorque e Oxford, 1979) são dois estudos úteis. Chapei Hill, 1967) é esclarecedor relativamente à emergência e ao desenvolvi-
Sobre a economia, ver Markos J. Maraalakis, The Growth and Structure of the mento da ideologia nacionalista. Um estudo interessante sobre a influência de
Chilean Economy from Independence to Allende (Yale University Press: New ideias excêntricas sobre os movimentos nacionalistas de massas é Frederick B.
Haven, 1976). Sobre o papel cada vez mais importante dos sindicatos antes da Pike, The Politics ofthe Miraculous in Peru: Haya de Ia Torre and the Spiritiia-
eleição de Allende, ver Alan Angell, Politics and the Labour Movement in Chile list Tradition (University of Nebraska Press: Lincoln, 1986). A análise breve que
(Oxford University Press: Oxford, 1972); ver também James Petras, Politics and mais se distingue é Charles A. Hale, «Political and Social Ideas in Latin America,
Social Forces in Chilean Development (University of Califórnia Press: Berkeley, 1870-1930», CHLA, vol. 4, pp. 367-442.
1969). Para desenvolvimentos posteriores a 1930, ver CHLA, vol. 8. Jean Franco, The Modern Culture of Latin America: Society and the Artist
J. Ann Zammit (org.), The Chilean Road to Socialism (Institute of Develop- (Penguin Books: Harmondsworth, 1970) apresenta uma análise geral útil sobre
ment Studies, University of Sussex: Brighton, 1973) apresenta as atas de uma as tendências dominantes; ver também Germán Arciniegas, Latin America:
conferência realizada em março de 1972 e inclui as linhas gerais das políticas A Cultural History, trad. J. Maclean (Alfred A. Knopf: Nova Iorque, 1966).
económica, agrária e social do governo UP apresentadas por algumas figuras Gerald Martin, «The LiteraUire, Music and Art of Latin America, 1870-1930»,
proeminentes, incluindo Salvador Allende e Radomiro Tomic. Stefan de Vylder, CHLA, vol. 4, pp. 443-526, é um estudo inteligente e estimulante sobre o «moder-
Allende's Chile (Cambridge University Press: Cambridge, 1976) é uma avaliação nismo» latino-americano, o modernismo anglo-saxónico e as diferenças entre
equilibrada dos êxitos e dos erros do governo de Allende feita por um economista ambos; os capítulos correspondentes em volumes subsequentes levam a análise
de opinião favorável. Uma crítica lúcida a Allende, vinda de um simpatizante até ao período do chamado pós-Boom. Uma compilação interessante de material
dos democratas-cristãos, é Paul E. Sigmund's The Overthrow of Allende and the vanguardista pode encontrar-se em Nelson Osório (org.), Manifiestos, proclamas
Politics of Chile, 1964-1976 (University of Pittsburgh Press: Pittsburgh, 1977). y polémicas de Ia vanguardia literária hispanoamericana (Biblioteca Ayacucho:
lan Roxborough, Jackie Roddick e Philip O'Brien, Chile: The State andRevolu- Caracas, 1988). John King, 'Sur': An Analysis ofthe Argentine Literaiy Journal
tion (Macmillan: Londres, 1977) critica Allende do ponto de vista da esquerda and Its Role in the Development ofa Culture, 1931-1970 (Cambridge University
revolucionária. Edy Kaufman, Crisis in Allende's Chile: New Perspectives (Pra- Press: Cambridge, 1986) é um importante estudo sobre a revista mais influente
eger: Nova Iorque, 1988) é uma leitura abrangente, centrada nos erros de Allende. da América Latina.

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA S U G E S T Õ E S DE L E I T U R A

Dawn Ades, Guy Brett, Stanton Loomis Catlin e Rosemary O'Neill, Art in Putnam, Marvelous Journey: Four Centuries ofBrazilian Literature (Alfred A.
Latin America: The Modern Era, 1820-1980 (Yale University Press for the South Knopf: Nova Iorque, 1948), e Eriço Veríssimo, Brazilian Literature (Macmillan:
Bank Centre: Londres, 1989) é o catálogo abundantemente ilustrado de uma Londres, 1945). Gerald Martin, Journeys Through the Labyrinth, e os capítulos
exposição na Hayward Gallery, em Londres, com excelentes ensaios sobre os do autor na obra CHLA ajudam a remediar esta lacuna.
principais artistas e desenvolvimentos, sobretudo do século xx. Ver também São muitas as obras da literatura latino-americana disponíveis em inglês; ver
Oriana Baddeley e Valerie Fraser, Drawing the Line: Art and Cultural Identity in Jason Wilson, An A-Z of Modern Latin American Literature in English Transla-
Contemporary Latin America (Verso: Londres, 1989). tion (Institute of Latin American Studies, University of London: Londres, 1989),
John King, Magicai Reels: A History of Cinema in Latin America (Verso: e Gerald Martin, Writers from Latin America (Book Trust: Londres, 1990).
Londres, 1990) é um estudo de grande valor, numa área que está a despertar o Os escritores latino-americanos distinguiram-se no conto; ver Nick Caistor
interesse académico. (org.), The Faber Book of Contemporary Latin American Short Stories (Faber
Jean Franco, An Introduction to Spanish American Literature (Cambridge and Faber: Londres, 1989), que inclui vários jovens escritores dos anos 80 do
University Press: Cambridge, 1969) é perspicaz e abrangente, mas hoje algo século xx.
datado; David Gallagher, Modern Latin American Literature (Oxford University
Press: Oxford, 1973) contém bons ensaios introdutórios sobre os escritores mais
famosos. Gordon Brotherston, Latin American Poetry: Origins and Presence
(Cambridge University Press: Cambridge, 1975) constitui uma das melhores
Parte IV: Rumo a uma Nova Era
introduções ao tema; ver também, do mesmo autor, The Emergence ofthe Latin
American Novel (Cambridge University Press: Cambridge, 1977). WEBSITES E BASES DE DADOS
Os ensaios mais abrangentes, em inglês, que relacionam a ficção do século xx
com as principais questões culturais encontram-se em John King (org.), Latin O Handbook of Latin American Studies é uma bibliografia sobre a América
American Fiction: A Survey (Faber and Faber: Londres, 1987), obra que inclui Latina que consiste em obras selecionadas e anotadas por investigadores, e edi-
textos de escritores de primeiro plano, como Mário Vargas Llosa, Augusto Roa tada pelo Hispanic Division of the Library of Congress. Publicada continuamente
Bastos, Manuel Puig and Guillermo Cabrera Infante, e que, excecionalmente, desde 1936, está agora disponível online e é atualizada semanalmente. Ver HLAS
também cobre a ficção brasileira. Gerald Martin elaborou um bom estudo, Jour- Online: <http://lsb.loc.gov/hlas>.
neys Through the Labyrinth: Latin American Fiction in the Twentieth Century O Latin American Network Information Center (LANIC), sediado na Uni-
(Verso: Londres, 1989). Philip Swanson (org.), Landmarks in Latin American versidade do Texas, Austin, disponibiliza links para websites de instituições
Fiction (Routledge: Londres, 1990) é uma coletânea de ensaios sobre alguns dos latíno-americanas, incluindo bibliotecas, agências governamentais e outros
principais textos do Boom e do Pós-Boom, com uma excelente introdução. Jean media: <http:/Aanic.utexas.edu>.
Franco, Plotting Women: Gender and Representation in México (Verso: Londres, O Banco Mundial publica anualmente Relatórios de Desenvolvimento Mun-
1989) é um estudo pioneiro sobre a escrita de mulheres. dial e « Indicadores do Desenvolvimento Mundial» referentes à América Latina,
Historiadores e críticos há muito que se interessam pela questão da identidade que estão disponíveis online: <http://www.worldbank.org>.
cultural, e têm, de um modo geral, negligenciado a aspiração latino-americana à O Projeto Bretton Woods, estabelecido em 1995 por uma rede de ONG com
modernidade. Para uma análise destas questões, ver Edwin Williamson, «Corning sede no Reino Unido, monitoriza o impacto das políticas e projetos do Banco
to Terras with Modernity: Magicai Realism and the Histórica! Process in the Novéis Mundial e do FMI: <http://www.brettonwoodsproject.org>.
of Alejo Carpentien> in John King (org.), Latin American Fiction, pp. 78-100, e As entidades a seguir referidas também facultam informação útil e dados
«Magicai Realism and the Theme of Incest in One Hundred Years ofSolitude» in online:
B. McGuirk e R. Cardwell, Gabriel Garcia Márquez: New Readings (Cambridge Banco Inter-Americano de Desenvolvimento: <http://www.iadb.org>.
University Press: Cambridge, 1987), pp. 45-63, que mostra como o conflito histó- Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL): <http://
rico entre identidade e modernidade é mitificado neste romance crucial. www.eclac.org>.
A literatura brasileira não está particularmente bem servida de histórias Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas: <http://www.undo.org>.
literárias atualizadas em língua inglesa: os dois textos de referência são Samuel

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HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

CAPÍTULO 16: GLOBALIZAÇÃO E REFORMA: UMAANÁLISE Duncan Green, Silent Revolution: The Rise and Crisis ofMarket Economics
in Latin America (Latin America Bureau: Londres, 2003) relata o declínio da IS1
e a emergência do projeto neoliberal. Para abordagens mais técnicas, ver Werner
Geral Baer e Joseph L. Love (orgs.), Liberalization and its Consequences: A Compara-
tive Perspective on Latin America and Eastern Europe (Edward Elgar Publishing:
Sobre a história económica do século xx, incluindo temas como «teoria da Northampton, MA, 2000). George Ann Potter, Deeper than Debt: Economic
dependência», industrialização, urbanização e crise da dívida, ver as sugestões Globalisation and the Poor (Latin America Bureau: Londres, 2000) é uma expo-
bibliográficas para o Capítulo 9, pp. 661-664. Vários estudos novos apareceram sição acessível sobre o impacto das políticas de mercado livre sobre os mais
desde então: Victor Bulmer-Thomas, The Economia History of Latin America desfavorecidos. Encontramos uma análise marxista intransigente em James
Since Independence, 2.a ed. (Cambridge University Press: Cambridge, 2003); Petras e Henry Veltmeyer, Unmasking Globalization: The New Face oflmperia-
Rosemary Thorp, Progress, Poverty, Exclusion: An Economic History of Latin lism (Zed Books: Londres, 2001).
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2000) apresenta comparações com EUA, Espanha, Portugal, Coreia e Taiwan. Caribbean: The Political Economy of Open Regionalism (ínstitute of Latin
O impacto das reformas conducentes ao mercado livre tem produzido um American Studies: Londres, 2001).
amplo debate. Sebastião Edwards, Crisis and Reform in Latin America: From Encontramos toda uma série de perspetivas sobre o obstinado problema da
Despair to Hope (Banco Mundial e Oxford University Press; Nova Iorque, 1995) desigualdade em Victor E. Tokman e Guillermo O'Donnell (orgs.), Poverty and
é uma boa descrição do processo de ajustamento nos anos 80 e da emergência, Inequality in Latin America: Issues and Challenges (Notre Dame University
nos anos 90, de um novo consenso relativamente à política a seguir. Para uma Press: Notre Dame, IN, 1998), e em Victor Bulmer-Thomas (org.),The New Eco-
defesa sucinta do «Consenso de Washington» pelo criador da expressão, ver John nomic Model in Latin America and Its Impact on Income Distribution and Poverty
Williamson, «A Short History of the Washington Consensus» (Institute for Inter- (Institute of Latin American Studies and Macmillan: Londres, 1996).
national Economics: Washington, DC, 2004), em <www.iie.com/jwilliamson>. Nos anos 90, o estudo da política latino-americana deslocou-se para a demo-
html. A necessidade de instituições mais eficientes 6 discutida em Shahid Javed cratização e para os problemas de governabilidade. Ver Joe Foweraker, Todd
Burki e Guillermo E. Perry (orgs.), Beyond the Washington Consensus: Institu- Landman e Neil Harvey, Governing Latin America (Polity Press: Cambridge,
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As vantagens e desvantagens da privatização em sete países ao longo das Latin America's Struggle for Democracy (Johns Hopkins University Press:
últimas duas décadas são discutidas em Alberto Chong e Florencio López de Baltimore, MD, 2008). Para um estudo abrangente, ver Howard J. Wiarda e Har-
Silanes (orgs.), Privatization in Latin America: Myths and Reality (Banco Mun- vey F. Kline (orgs.), Latin American Politics and Development, 6a ed. (Westview
dial e Stanford University Press: Washington, DC, e Stanford, 2005). José Antó- Press: Boulder, CO, 2007), uma análise sucinta, em que cada país é tratado indi-
nio Ocampo e Juan Martin (orgs.), Globalization and Development: A Latin Ame- vidualmente.
rican and Caribbean Perspective (Banco Mundial e Stanford University Press: A situação difícil da esquerda é bem descrita em Jorge Castaneda, Utopia
Washington, DC, e Stanford, CA, 2005) é uma análise histórica útil, embora algo Unarmed: The Latin American Left after the Cold War (Vintage Books: Nova
árida para os não-especialistas. Charting a New Course: The Politics of Globali- Iorque, 1994), e o papel em mudança da direita em Leigh A. Payne, Uncivil
zation and Social Transformation (Rowman & Littlefield: Boulder, CO, 2001) é Movements: The Armed Right Wing and Democracy in Latin America (Johns
uma fascinante coletânea de ensaios de Fernando Henrique Cardoso, o antigo Hopkins University Press: Baltimore, MD, 2000), e Kevin J. Middlebrook (org.),
presidente do Brasil, que reflete a sua evolução de «teórico da dependência» para Conservative Parties, the Right, and Democracy in Latin America (Johns Hopkins
reformador empenhado no mercado livre. University Press: Baltimore, MD, 2000).

672 673
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA S U G E S T Õ E S DE L E I T U R A

As práticas tradicionais tendiam ainda a moldar a política democrática. Guil- Donna Guy (orgs.), Sex and Sexuality in Latin America (Nova Iorque University
lermo O'Donnell cunhou uma expressão influente: «Democracia Delegativa», Press: Nova Iorque, 1997).
Journal of Democracy 5 (1994), e para uma crítica ver Francisco Panizza, Os movimentos sociais das camadas mais baixas da população surgiram
«Beyond "Delegative Democracy": "Old Politics" and "New Economics" in como reação às crises económicas. Ver Arturo Escobar e Sônia Álvarez (orgs.),
Latin America», Journal ofLatin American Studies, 32 (2000). Ver também a The Making of Social Movements in Latin America: Identity, Strategy and Demo-
obra de O'Donnell Counterpoints: Selected Essays on Authoritarianism and cracy (Westview Press: Boulder, CO, 1992); Kenneth Roberts, The Modern Left
Democratization (Notre Dame University Press: Notre Dame, IN, 1999). and Social Movements in Chile and Peru (Stanford University Press: Stanford,
O populismo, como sempre, era um tema que merecia destaque. Encon- CA, 1998); e para uma análise marxista, ver James Petras e Henry Veltmeyer,
tramos uma série de pontos de vista em Michael L. Conniff (org.), Populism Social Movements and State Power: Argentina, Brazil, Bolívia, Ecuador (Pluto
in Latin America (University of Alabama Press: Tuscaloosa e Londres, 1999). Press: Londres e Ann Arbor, 2005). As mulheres desempenharam um papel pro-
E para casos particulares com maior ressonância, Alan Knight, «Populism and eminente nestes movimentos,'em alguns casos. Ver Jane Jaquette, The Women's
Neopopulism in Latin America, especially México», Journal ofLatin American Movement in Latin America: Participation and Democracy (Westview Press:
Studies, 30 (1998), e Steve Elmer, «The Contrasting Variants of the Populism of Boulder, CO. 1994), e Lynn Stephen, Women and Social Movements in Latin
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(2000). Para uma boa análise de questões ambientais, ver Helen Collinson (org.),
A corrupção persistiu, apesar da liberalização. Ver Joseph S. Tulchin e Ralph Green Guerrillas: Environmental Conflicts and Initiatives in Latin America and
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MD, 2000), e Walter Little e Eduardo Posada-Carbó (orgs.), Political Corruption Relativamente à entrada dos movimentos indígenas na cena política, ver
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Londres, 1996). sity in Latin America (Pittsburgh University Press: Pittsburgh, 2000), principal-
As fraquezas institucionais do Estado suscitaram bastante interesse. Ver mente sobre a Bolívia e a Colômbia, e, da mesma autora, From Movements to
Menno Vellinga (org.), The Changing Role of the State in Latin America (Wes- Parties in Latin America: The Evolution ofEthnic Politics (Cambridge Univer-
tview Press: Boulder, CO, 1998); Juan E. Méndez, Guillermo O'Donnell e Paulo sity Press: Nova Iorque, 2005), que também foca a Venezuela, o Peru e a Argen-
Sérgio Pinheiro (orgs.), The (Un)Rule ofLaw and the Underprivileged in Latin tina. Deborah J. Yashar, Contesting Citizenship: The Rise of Indigenous Move-
America (University of Notre Dame Press: Notre Dame, IN, 1999). Scott ments and the Postliberal Challenge (Cambridge University Press: Cambridge,
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America (Oxford University Press: Oxford, 2003); e Enrique Peruzzotti e Cata- ticulturalism in Latin America: Indigenous Rights, Diversity and Democracy
lina Smulovitz (orgs.), Enforcing the Rule ofLaw: Social Accountability in the (Palgrave Macmillan: Basingstoke e Nova Iorque, 2002) é uma excelente coletâ-
New Latin American Democracies (Pittsburgh University Press: Pittsburgh, nea de ensaios, escritos por especialistas conceituados, que cobrem temas gerais
e países específicos.
PA, 2006).
Sobre a evolução do papel da religião na política, ver Anthony Gill, Rende- Peter Wade, Race and Ethnicity in Latin America (Pluto Press: Londres 1997)
ring unto Caesar: The Catholic Church and the State in Latin America (Univer- estuda movimentos sociais de negros e índios. George Reid Andrews, Afro-Latin
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Protestant?: The Politics of Evangelical Growth (University of Califórnia Press: dos povos de ascendência africana na América Latina.
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the State: Abortion, Divorce and the Family under Latin American Dictatorships tions, y ed. (Oxford University Press: Nova Iorque, 2007) oferece uma excelente
and Democracies (Cambridge University Press: Cambridge, 2003). Para ensaios história destas relações difíceis, até às migrações recentes e ao tráfico de droga,
sobre a evolução dos comportamentos sociais, ver WilliamE. French e Katherine inclusive. Para um conjunto de pontos de vista sobre este último tema, ver Coletta
Elaine Bliss (orgs.), Gender, Sexuality and Power in Latin America since Inde- A. Youngers e Eileen Rosin (orgs.), Drugs and Democracy in Latin America: The
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674 675
HISTORIA DA A M E R I C A LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

Chile Argentina

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tity in Brazil (University of North Carolina Press: Chapei Hill, NC, 1999), e ties and Conflict (Columbia University Press: Nova Iorque, 1985), uma história
Christopher Dunn, Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of a Bra- geral sucinta dos povos do Equador, do Peru e da Bolívia, desde os tempos pré-
zilian Counterculture (University of North Carolina Press: Chapei Hill, NC, -colombianos até meados do século xx. Relativamente a questões mais recentes,
2001) ver Andrew Canessa (org.), Natives Making Nation: Gender, Indigeneity and the

676 677
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA SUGESTÕES DE L E I T U R A

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678 679
HISTORIA DA AMÉRICA LATINA SUGESTÕES DE LEITURA

Betilde Munoz-Pogossian, Electoral Rides and the Transformation ofBoli- Conclusão


vian Politics: The Rise o/Evo Morales (Palgrave Macmillan: Basingstoke e Nova
Iorque, 2008). Os blocos ideológicos que se impuseram no novo milénio estão refletidos
Donna Lee Van Cott, «From Exclusion to Inclusion: Bolivia's 2002 Elec- nos livros polémicos de dois jornalistas. Eduardo Galeano, Open Veins ofLatin
tions», Journal ofLatin American Studies, 35 (2003). America: Five Centuries ofthe Pillage of a Continent (Monthly Review Press:
Nova Iorque, 1997), cujo título sintetiza graficamente o conteúdo, é o livro que
Hugo Chávez apresentou a Barack Obama na Cimeira das Américas em 2009,
Equador enquanto Michael Reid, Forgotten Continent: The Battle for Latin America's
Soul (Yale University Press: New Haven, CT, e Londres, 2007) se opõe a Chávez
Marc Becker, Indians and Leftists in the Making o/Ecuador's Modern Indi- e defende uma reforma económica e institucional liberal.
genous Movements (Duke University Press: Durham, NC, e Londres, 2008). Têm-se registado muitas tentativas de definir as características distintivas da
David Corkil l e David Cubitt, Equador: Fragile Democracy (Latin America civilização latino-americana. Os textos de Richard M. Morse conquistaram um
Bureau: Londres, 1988). imenso respeito: ver acima p. 654, e o seu mais recente New World Soundings:
Allen Gerlach, Indians, Oil and Politics: A Recent History ofEcuador (Scho- Culture and Ideology in the Américas (Johns Hopkins University Press: Balti-
larly Resources: Wilmington, DE, 2003). more, MD, 1989), e «The Multiverse ofLatin American Identity, c.!920-c. 1970»,
Kintto Lucas, We Will Not Dance on our Grandparents' Tombs: Indigenous CHLA, vol. 10 (Cambridge University Press: Carnbridge, 1995). Ver também
Uprisings in Ecuador (Latin America Bureau: Londres, 2001). Howard J. Wiarda, The Soul ofLatin America: The Cultural and Political Tradi-
Suzana Sawyer, Crude Chronicles: Indigenous Politics, Multinacional Oil, tion (Yale University Press: New Haven, CT, 2001), e Jeremy Adelman (org.),
and Neoliberalism in Ecuador (Duke University Press: Durhan, NC, 2004). Colonial Legacies: The Problem of Persistence in Latin American History
David Schodt, Ecuador: An Andean Enigma (Westview Press: Boulder, CO, (Routledge: Nova Iorque, 1999).
1987). Estas tentativas são muitas vezes feitas estabelecendo uma comparação entre
Melina Selverston-Scher, Ethnopolitics in Ecuador: Indigenous Rights and a América Latina e a América de expressão inglesa, como em Cláudio Véliz, The
the Strengthening of Democracy (University of Miami, North/South Center New World of the Gothic Fox: Culture and Economy in English and Spanish
Press: Miami, 2001). America (University of Califórnia Press: Berkeley, 1994), e também o compla-
cente Lawrence B. Harrison, The Pan-American Dream: Do Latin America's
Cultural Values Discourage True Partnership with the United States and Canada, ?
Cuba (Westview Press: Boulder, Col. 1997). Juan González, Harvest ofEmpire: A His-
tory of Latinos in America (Viking: Nova Iorque, 2000) mostra que os «Latinos»
Alejandro de Ia Fuente, A Nation for AU: Race, Inequality and Politics in são o produto das histórias há muito interligadas dos EUA e dos seus vizinhos
Twentieth-Century Cuba (University of North Carolina Press: Chapei Hill, NC, hemisféricos. Para uma história comparativa inteligente e equilibrada, ver J. H.
1995). Elliott, Empires ofthe Atlantic World: Britain and Spain in America: 1492-1830
Richard Gott, Cuba: A New History (Yale University Press: New Haven, CT, (Yale University Press: New Haven, CT, 2006).
2004). Para comparações com outras partes do mundo desde a Independência, ver
Journal ofLatin American Studies, 40 (2009), Cuba: 50 Years of Revolution Stephen Haber (org.), How Latin America Fel! Behind (Stanford University
(edição especial), inclui artigos sobre política económica e cultural, comércio de Press: Stanford, CA, 1997), e Robert Devlin, Antoni Estevadeordal e Andrés
sexo, etnicidade e género. Rodríguez-Clare, The Emergence of China: Opportunities and Challenges for
Antony Kapcia, Cuba in Revolution: A History Since the I950s (Reaktion: Latin America and the Caribbean (inter-American Development Bank: Was-
Londres, 2008). hington, DC, 2006). Laurence Whitehead, Latin America: A New Interpretation
Lois Smith e Alfred Padula, Sex and Revolution: Women in Socialist Cuba (Palgrave Macmillan: Nova Iorque e Basingstoke, 2006) propõe uma teoria
(Oxford University Press: Nova Iorque, 1996). baseada em «configurações» de características diferenciais entre regiões do
mundo.

680 681
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Os latino-americanos têm-se empenhado em explorar a sua relação com o


mundo moderno. Ver Néstor Garcia Canclini, Hybrid Cultures: Strategies for
Entering and Leaving Modernity (University of Minnesota Press: Minneapolis,
MN, 1995), Jorge Larrain, Identity and Modernity in Latin America (Polity
Press: Oxford, 2000), e Luis Roniger e Carlos H. Waisman (orgs.), Globality and
Multiple Modernities: Comparative North American and Latin American Pers-
pectives (Sussex Academic Press: Brighton, 2002).
Sobre a cultura latino-americana, ver John King (org.), The Cambridge
Companion to Modern Latin American Culture (Cambridge University Press:
Cambridge, 2004), que inclui capítulos sobre cinema, teatro, arte, arquitetura e
música. Philip Swanson (org.), The Companion to Latin American Studies
(Amold: Londres, 2003) tem capítulos sobre cultura popular, raça, género e
sexualidade. Dois guias abrangentes para o vasto campo da literatura são Verity
Smith (org.), Encyclopedia of Latin American Literature (Fitzroy Dearborn:
Mapas
Londres e Chicago, 1997), e o monumental Roberto González Echevarría e Enri-
que Pupo-Walker (orgs.), The Cambridge History of Latin American Literature,
3 vols. (Cambridge University Press: Cambridge, 1996), que tem bibliografias
exaustivas.

682
MAPAS

 DIVERSIDADE DO MUNDO AMERÍNDIO


ANTES DAS INVASÕES EUROPEIAS
""

fp?- C Civilizações avançadas (Impérios)


Tribos teocráticas e militaristas
Povos semissedentários em florestas tropicais ou savanas
Povos semissedentários em território desértico
ulJX.] Povos nómadas caçadores, pescadores e coletores

OCEANO ATLÂNTICO

Ac-

685
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA MAPAS

/
AMÉRICA CENTRAL CLÁSSICA AMÉRICA CENTRAL PÓS-CLÁSSICA
Império Asteca na época da Conquista

OCEANO PACÍFICO
Teotihuacán, c. 1-750 d.C.
Monte Albán, c. 500 a.C - 800 d.C. Império Asteca, 1427-1521 d.C.
Maia, c. 300-900 d.C. OCEANO PACÍFICO Área dos Impérios Maias: Chichén Itzí, c. 900-1200 d.C.
Mayapân.c. 1200-1500 d.C.

AMERICA CENTRAL NO INICIO DO PERÍODO PÓS-CLÁSSICO A REGIÃO ANDINA: 1000-1438 d.C.


Área dos Toltecas Principais Povos do Período Pós-Clássico na Época da Expansão Inça

OCEANO PACÍFICO

Toltecas, 900-1200 d.C.


Direcão da invasão original toíteca-chichimeca

686 687
-J
O-

S

Fronteiras do vice-reino da Nova Espanh


Capitais de audiência
Principais cidades provinciais
Cidades mineiras
Rotas comerciais

FROTA
TRANSATLÂNTICA
PARA SEVILHA

OCEANO ATLÂNTICO
OCEANO PACÍFICO FROTA
TRANSATLÂNTICA
FROTA
TRANSATLÂNTICA
AUDIÊNCIA DE NOVA GALIZA VINDA DE SEVILHA
1549
i^lbdoiid 9^a

AUDIÊNCIA DO MÉXICCÍS*'
SANTO DOMINGO

FROTA TRANSPAClFICA
VINDA 1511
AUDIÊNCIA
DE MANILA
DA
FROTA
TRANSPAClFICA GUATEMALA
PARA MANILA . 1544

O VICE-REINO DA NOVA ESPANHA


HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA MAPAS

O VICE-REINO DO PERU, c. 1650 BRASIL COLONIAL, c. 1700


FROTA TRANSATLÂNTICA
PARA HAVANA, DEPOIS SEVILHA
_ FROTA TRANSATLÂNTICA
VINDA DE SEVILHA OCEANO ATLÂNTICO
GRAO-PARA 1616/

na Bacia do Amazonas l/
MARANHÃO

OCEANO ATLÂNTICO

IO G R A N D E
Ò NORTE 1598

Escravos importados
da África Ocidental
Salvador (Bahia)
Sede de Governo (1540), depois
Govemo-Geral (1578) do Brasil

[ 1534-6) Capitania estabelecida mas


l não donatária residente.
Absorvida pela Bahia
Porto Seguro -l
1534-6)

ESPIRITU SANTO 1535


\
Belo H

Ataques conlr
Fronteiras do Vice-Rcinodo Peru
jesuítas no Paragua
Capitais de audiência
Principais cidades provinciais
Área das missões jesuítas no Paraguai
Rotas comerciais espanholas
Incursões de caçadores de escravos e As datas indicam uma donatária residente ou colonização efetiva
missionários portugueses Fronteiras entre jurisdições (aproximadas)
Limite da ocupação holandesa (1630-54)
Áreas de plantação de açúcar colonizadas (desde meados do séc. xvi)
P£> Áreas de extração de ouro
Diamantes e pedras preciosas
Incursões de bandeirantes paulistas e outros caçadores de escravos

690 691
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA MAPAS

AMERICA DO SUL ESPANHOLA,


APÓS AS REFORMAS BOURBONS, c. 1800

CAPITANIA-GERAL
DA V E N E Z U E L A
. 1777
ogota
VICE-REINO
Popayán
DE NOVA G R A N A D A
Quito
1717 E 1739
Guayaquil

VICE-REINO r
OCEANO PACIFICO • Salta \;
I. SALTA 1783

Comente
OCEANO ATLÂNTICO
DE RIO DE LA PLATA

CAPITANIA-GERAL

Capita) de Vivt--Rcino
I. = INTENDÊNCIA Dli
P. = PROVÍNCIA DE

692 693
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA MAPAS

AMÉRICA LATINA EM 1830 AMÉRICA LATINA (POLÍTICA)

OCEANO ATLÂNTICO
OCEANO ATLÂNTICO

PROVÍNCIAS UNIDAS
DA AMÉRICA CENTRALT 1 MO*UÍ»JCOSTA „ stóy.cENTE/-——

IMontcvideu
(PROVÍNCIAS UNIDAS DE RIO DE LA PLATA, 1816
CONFEDERAÇÃO ARGENTINA, 1825)

Áreas não independentes

As datas indicam a independência Estão representadas apenas as capitais


dos Estados da América Latina dos Estados latino-americanos independentes

694 695
H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA

TERRITÓRIO DE
FERNANDO DE NORONH
RIO GRANDE DO NORTE

Glossário

América Hispânica

Adelantado: Chefe oficial de uma companhia de conquistadores.

Amerícanismo: Tendência, registada em finais do período colonial, de exal-


tar as maravilhas naturais do continente americano e as glórias do seu passado
indígena, a qual evoluiu, após a Independência, para a crença de que devia ser
criada nas Américas uma nova civilização, distinta da europeia.

Apo: governador de uma das quatro partes em que se dividia o império inça.

Aríelismo: Termo proveniente da obra Ariel (1900), de José Enrique Rodo,


que traduz uma crença na superioridade espiritual da civilização latina (associada
a Ariel) relativamente aos valores materialistas e utilitários da sociedade moderna
(associados a Caliban), supostamente exemplificada pelos EUA.

Asiento: Contrato atribuído pela Coroa espanhola a caçadores de escravos


portugueses, e mais tarde ingleses, para fornecerem escravos africanos às suas
colónias.

Audiência: Conselho de administradores da Coroa que funcionava simulta-


neamente como tribunal e órgão administrativo. Era também o nome do território
sob sua jurisdição.
¥*,
696 697
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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A L A T I N A GLOSSÁRIO

Ayllu: Comunidade semelhante a um clã que funcionava como unidade social à «república dos índios». Na sua maioria, viviam e trabalhavam no setor espa-
básica entre os povos indígenas dos Andes, antes e depois da Conquista espa- nhol, mas estavam sujeitas a certas desqualificações legais. Ver também Repú-
nhola. Ver calpulli. blica de los índios, república de los espanoles.

Baquía: Doença, por vezes fatal, que os Espanhóis contraíam frequente- Castizola: Pessoa oficialmente reconhecida como «branca». Também apli-
mente na América. Um baquiano era um espanhol que se adaptara ao novo cado a descendentes de brancos e mestizos.
ambiente. O termo passou mais tarde a designar caçadores de índios e explorado-
res calejados. Científicos: Termo usado no México, em finais do século xix e princípios do
século xx, para designar tecnocratas progressistas que advogavam uma postura
Bozal: Escravo africano que não sabia falar espanhol. «científica» ou racional no tratamento dos problemas de desenvolvimento econó-
mico, mesmo que para tal fosse necessário tolerar ditaduras.
Cabellaría: Unidade de terra (cerca de 2000 hectares) concedida a conquis-
tadores que montavam a cavalo. Ver peonía. Coatequitl: Trabalho que o povo realizava como forma de pagamento de
tributo a senhores astecas.
Cabecera, sujetos: Termos espanhóis que designavam a vila índia e as aldeias
em seu redor, uma disposição que foi mantida, após a Conquista, nas reservas Comercio libre y protegido: Sistema de «comércio livre sob a proteção do
criadas. Estado», criado em finais do século xvm, no âmbito da reforma implementada
pelos Bourbons na correra de índias, para permitir o comércio entre um muito
Cabildo: Conselho municipal. maior número de portos em Espanha e nas colónias, mas excluindo, ainda assim,
os estrangeiros. Ver correra de índias.
Cacique: (1) Originalmente, um chefe do povo Taino das Caraíbas, mas
os Espanhóis usavam-no como termo geral para designar um chefe indígena; Composición de tierras: Sistema que consistia na legalização da posse de
(2) aplicado, nos tempos modernos, a um dirigente político de uma localidade facto de terras, mediante a compra de um título de propriedade à Coroa.
ou região.
Comuneros: (1) Cidadãos comuns de Castela que se revoltaram contra Car-
Calpulli: Comunidade semelhante a um clã que funcionava como unidade los V em 1520-21; (2) rebeldes que se opuseram às reformas dos Bourbons em
social básica entre os povos indígenas da América Central, antes e depois da Nova Granada em 1781.
Conquista espanhola. Ver ayllu.
Congregación: Programa de relocalização de índios em aldeias especial-
Capitulación: Licença real requerida para uma expedição de exploração ou mente concebidas para o efeito, levado a cabo por missionários ou funcionários
conquista. Por exemplo, as Capitulaciones de Santa Fe autorizaram Colombo a da Coroa, com vista a facilitar a instrução religiosa e a aculturação. Ver aldeia, na
procurar uma via marítima ocidental para a Ásia e concederam-lhe uma série de secção «Brasil».
privilégios.
Consejo de índias: O «Conselho das índias», órgão supremo responsável
Carrera de índias: A rota marítima oficial entre Espanha e o seu império pela governação do império espanhol na América.
americano, que até finais do século xvm só podia ser utilizada para o comércio
transatlântico entre Sevilha (mais tarde Cádis) e Lima ou a Cidade do México. Consulado: Guilda de comerciantes nas cidades de Espanha e do seu
Ver comercio libre y protegido. império.

Castas: Termo coletivo para designar pessoas de raça mista que, por essa Corregidor: Administrador da Coroa com certos poderes judiciais e executi-
razão, não eram vistas como pertencentes nem à «república dos Espanhóis» nem vos, que era responsável por um corregimiento.

698
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA GLOSSÁRIO

Corregidor de índios: O equivalente administrador da Coroa num corregi- Fueros: Direitos concedidos pela Coroa a uma vila ou cidade. Também apli-
miento índio. cado a privilégios atribuídos à Igreja e ao exército. «Religión y fueros» era o
grito de guerra dos que se opunham às reformas liberais no México. Ver
Corregimiento: Uma jurisdição administrativa numa província, governada Reforma.
por um corregidor.
Gente sin razón: Termo pejorativo usado em relação aos índios, que eram
Costumbrismo: Tipo de literatura ou pintura que retraia costumes ou modos considerados «pessoas de razão deficiente». O termo não tinha estatuto legal.
de vida populares.
Hacendado: O dono de uma fazenda, que era uma das figuras mais podero-
Criollola: Espanhol nascido na América, e descendentes. Em português, sas da sociedade, antes e depois da Independência.
crioulo/a. Também se aplica a escravos negros nascidos na América.
índias: O termo deve-se ao objetivo inicial de Colombo de encontrar uma via
Curuca: Chefes étnicos de tribos andinas, absorvidos pelos Inças na sua elite marítima para a Ásia. No período colonial, os Espanhóis referiam-se ao conti-
governante imperial. Ver também pipiltin. nente americano no seu todo, Caraíbas inclusive, como Lãs índias, mas o termo
já não é do uso corrente. A noção sobrevive na expressão índias Ocidentais.
Descamisado: Alcunha dada ao trabalhador «sem camisa» apoiante de Juan
Perón, na Argentina. Indigenismo: Crença na necessidade de resgatar, aceitar e preservar as cultu-
ras indígenas como elementos-chave da herança e da identidade nacional. Refere-
Ejido: Um tipo de propriedade comunitária introduzido no programa de -se também à literatura destinada a concretizar tais objetivos.
reforma agrária dos anos 30 do século xx, no México.
Mayorazgo: Privilégio concedido pela Coroa a um agricultor, permitindo-lhe
Encomendem: Detentor de uma encomienda. Uma das figuras mais podero- que deixasse toda a sua propriedade ao filho primogénito, em vez de a repartir
sas dos primeiros tempos de sociedade colonial. entre todos os seus descendentes.

Encomienda: Sistema concebido para evitar a escravização de índios, Media luna: Termo coletivo que designa as regiões ricas em petróleo e gás
mediante o qual a Coroa concedia a espanhóis merecedores o direito a usufruí- natural nas planícies do leste da atual Bolívia.
rem da mão de obra de um dado número de índios em troca de remuneração,
proteção e instrução na fé católica. Os abusos de autoridade tornaram-se de tal Mestizaje: Qualquer tipo de hibridismo étnico ou cultural.
modo flagrantes que a prática foi gradualmente abandonada a partir de 1542.
Mestizola: Indivíduo de etnia mista, índia e espanhola.
Entrada: Expedição em território inexplorado, levada a cabo por uma com-
panhia de conquistadores. Mita: Sistema de trabalho forçado, através do qual as comunidades subjuga-
das tinham de pagar ao Estado e à aristocracia inça um tributo de mão de obra por
Estanciero: Dono de uma estancia argentina, que pertencia à elite. determinados períodos de tempo. Adaptado pelos Espanhóis para garantirem
mão de obra para as minas de prata andinas, especialmente em Potosí.
Estancia: (1) Propriedade resultante de uma concessão de terra na sequência
da conquista de novo território; (2) termo ainda utilizado na Argentina para Mitimae: Camponeses leais que os Inças enviavam para povoar territórios
designar urna propriedade rural de grande dimensão. acabados de conquistar.

Federal: Apoiante de uma constituição federal na Argentina do século xix. Mitmaq: Prática inça de estabelecer colonos (mitimae) em territórios recém-
Ver unitário. -conquistados.

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GLOSSÁRIO
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Modernismo: Movimento literário inspirado no simbolismo e no parnasia- Peonía: Unidade de terra (cerca de 40 hectares) concedida a soldados rasos
nismo francês de finais do século xix. Não deve ser confundido com o moder- num grupo de conquistadores. Ver caballería.
nismo anglo-americano, que corresponde, em traços gerais, à vanguardia.
Pipiltin: Chefes tribais absorvidos pelos Astecas na sua elite imperial. Ver
Modorra: Doença, por vezes fatal, frequentemente contraída pelos Espa- curaca.
nhóis na América.
Portenola: Habitante da cidade portuária, por oposição a província, de
Mudéjar: Estilo decorativo e arquitetónico de origem islâmica muito utili- Buenos Aires.
zado em Espanha e na América Latina.
Presidio: Construção defensiva em postos avançados do império.
Mulato/a: Indivíduo de etnia mista, africana e hispânica.
Pronunciamiento: Levantamento militar contra o governo.
Naboría: Servo da aristocracia nas sociedades aruaques das Caraíbas, e tam-
bém na América Central e no império asteca. Quinto: Imposto real que correspondia a um quinto do valor de todos os
metais preciosos extraídos na América.
Obraje: Fábrica têxtil no Novo Mundo. Ver ropa de Ia tierra.
Quipu: Corda usada pelos Inças para registar dados através de um sistema de
Oidor: Juiz que integrava o conselho de uma audiência. nós especiais.

Reducción: Vila onde comunidades índias dispersas eram relocalizadas por


Orejón: Termo espanhol que significa «orelhas grandes» e que era aplicado
forma a facilitar a conversão e a doutrinação levadas a cabo por missionários.
aos nobres inças, que usavam ornamentos nas orelhas.
Reforma: «La Reforma» foi um processo de reforma liberal, consagrado na
Padrinaje: Apadrinhamento; compadrazgo: co-apadrinhamento: Ambas as constituição de 1857, que estabeleceu no México um Estado secular baseado na
práticas serviam para estabelecer uma rede de relações na sociedade hispano- soberania do povo e na igualdade perante a lei.
-americana.
Relación: Relatório ou relato de viagens de descoberta ou expedições de
Pardo/a: Indivíduo de raça mista ou de pele mais escura que um crioulo his- conquista.
pânico ou «branco».
Repartimiento: (1) «Distribuição» de terra e/ou escravos índios pelos con-
Pátria: Um termo emotivo após a independência, como se deduz de expres- quistadores; (2) sistema mediante o qual trabalhadores índios serviam rotativa-
sões como hacer pátria («construir a nação), ou pátria o muerte («pátria ou mente agricultores espanhóis, por períodos de tempo determinados, como forma
morte»), o grito de guerra dos revolucionários cubanos, ou ainda vendepatria, de racionar o acesso à mão de obra nativa, que se encontrava em rápido declínio
termo insultuoso dirigido aos que eram vistos como «vendidos» a interesses devido às epidemias.
estrangeiros.
República de los índios, república de los espanoles: O Estado imperial
Padroado Real: Direito de fazer nomeações para altos cargos da Igreja no estava dividido entre «república dos índios» e «república dos Espanhóis, tendo
Novo Mundo, concedido pelo papa aos monarcas espanhóis em 1508. cada uma delas os seus próprios direitos políticos e instituições, práticas sociais
e organização económica. As duas repúblicas mantinham relações entre si, com a
Peninsulares: Espanhóis das colónias americanas que tinham nascido na mediação de funcionários da Coroa. Na prática, a divisão desapareceu em deter-
Península Ibérica. minados aspetos, embora não por completo. Esta estrutura jurídica foi em larga
medida desmantelada após a Independência. Ver castas.

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA GLOSSÁRIO

Requerimiento: Texto em latim que os conquistadores liam aos índios que Brasil
encontravam, incitando-os a aceitarem a autoridade do monarca espanhol ou a
enfrentarem ação militar. Tratava-se do instrumento legal necessário para iniciar Aldeia: Povoações onde os índios eram relocalizados pelos missionários
uma guerra de conquista «justa». jesuítas para serem instruídos e aculturados. O modelo seguido era o da çongre-
gación hispano-americano.
Resguardo: Território reservado pela Coroa para terra comum destinada
a comunidades índias relocalizadas em novas vilas. Antropofagia: Termo usado pelos escritores do movimento de vanguarda
para descrever o processo de absorver e transformar influências estrangeiras para
Residência: Avaliação do desempenho dos funcionários da Coroa durante os seus próprios fins.
o exercício do seu cargo.
Bandeira: Companhia de caçadores de escravos formada para procurar
R opa de Ia tierra: Roupa fabricada no Novo Mundo; Ropa de Castilla: roupa índios no interior do continente.
de melhor qualidade importada de Castela.
Bandeirante: Membro de uma bandeira. Mais tarde glorificado como um
Tierra firme: Grande massa de terra. Termo empregue pelos exploradores colono de fronteira, cujas incursões por território espanhol estenderam as frontei-
espanhóis após a descoberta da costa da Venezuela, para a distinguir das ilhas ras do Brasil.
Caraíbas.
Caboclo/a: Indivíduo de etnia mista, índia e portuguesa.
Tlatoani: Termo que designava o imperador asteca, literalmente «aquele que
fala». Café com leite: Pacto informal entre o estado de São Paulo, produtor de café,
e o estado de Minas Gerais, produtor de gado, que assegurava a alternância dos
Traza: Plano para a construção das novas vilas fundadas pelos conquistado- seus candidatos na presidência da república (1889-30).
res, que consistia numa disposição em grelha.
Cafusola: Indivíduo de etnia mista, índia e africana.
Unitário: Apoiante de uma constituição centralizada para a Argentina no
século xix. Ver federal. Conciliação: O uso que o imperador D. Pedro II fez do seu «poder modera-
dor» constitucional para garantir governos de coligação estáveis entre 1844 e
Vaquero: Vaqueiro. Usado no Novo Mundo, o termo espanhol foi posterior- 1889.
mente anglicizado como cowboy nos EUA.
Coronel: Líder político que exercia poder a nível nacional ou a nível local,
Vecino: Habitante de uma cidade fundada por conquistadores. através de uma influência carismática ou de força militar. Semelhante ao caudi-
Iho da América espanhola.
Visita: Supervisão das atividades de instituições ou funcionários por um juiz
nomeado pela Coroa. Degredado: Delinquente banido de Portugal no início do período colonial.
Muitos deles «tornavam-se nativos» e casavam com mulheres índias. Estes
Yanacona: Servo permanente da aristocracia inça. homens e os seus descendentes de raça mista viriam mais tarde a ser romantiza-
dos como os «primeiros brasileiros».
Zambo/a: Indivíduo de etnia mista, índia e africana.
Engenho: Grande plantação onde o açúcar era cultivado e refinado para
exportação. Senhor de engenho: Dono de uma plantação, e uma das figuras mais
poderosas da sociedade brasileira antes e depois da Independência.

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HISTÓRIA D A A M É R I C A L A T I N A

Estado Novo (1938-45): O Estado semifascista, autoritário, criado pelo pre-


sidente Getúlio Vargas, que lançou um programa de nacionalização e industriali-
zação por substituição de importações.

Feitoria: Posto comercial costeiro que os Portugueses fundavam antes de


uma colonização mais extensa.

Lavrador da cana: Agricultor que produzia cana de açúcar numa escala infe-
rior à do senhor de engenho.

Mamelucola: Indivíduo de etnia mista, índia e portuguesa.

Ordem e Progresso: Lema dos liberais brasileiros adotado pela República


em 1889 e inscrito na bandeira nacional. índice Remissivo
Ouvidor: Juiz nomeado pela Coroa, perante a qual era dirctamente respon-
sável.
absolutismo, 68-74, 79, 84 população no século xv, 48
Padroado Real: Direito de nomear candidatos para altos cargos da Igreja no ver também Monarquia Católica; rega- ver também, universalismo
lismo; «direito à resistência»; tirania anarquismo, anarcossindicalismo, 328-
Brasil, concedido pelo papa a monarcas portugueses em 1551.
açúcar, 191 -9,340-1,393,475,501-2
Brasil, 196-7 Aragão, 70-1
Pardo/a: Indivíduo de etnia mista, portuguesa e africana. Cuba, 466-8 Argentina, 42-3, 259, 586-90, passim,
africanos, 152-6 611-2,620-1
Resgate: Prática mediante a qual comerciantes brancos de escravos compra- ver também escravatura Buenos Aires, invasões britânicas de,
vam índios capturados por tribos rivais para depois os venderem como escravos agricultura, 216-7
a agricultores portugueses. As expedições enviadas com este propósito à bacia do colonial, 92, 103-7, 193, 199-200 conquista da, 44-5
Amazonas eram chamadas tropas de resgate. pré-colombiana, 49,51,53,57-9,63-4 economia, 476-93,passim, 494-7,585-
século xx, 348-51, 586-7, 495-6, 601, -6, 589-90, passim, 629
Senado da câmara: Conselho municipal. Semelhante ao cabildo espanhol. 621-2 governos Concordância, 477-80
ver também reforma agrária, açúcar governo militar, 364, 491-4
ALB A, 586, 611,629 «guerra suja» contra guerrilhas, 368-
Sertão: As vastas extensões do interior nordeste do Brasil. Os poderosos do
Aliança para o Progresso, 362-4, 438 -9,490-1,494
sertão eram os rancheiros influentes, proprietários de grandes manadas de gado. Alto Peru, ver Bolívia: colonial imigração, 473-4
Amazónia independência, 230-2
Sesmaria: Concessão de terra feita a colonos portugueses na primeira fase da descoberta da, 41-2 literatura e cultura
colonização. questões ambientais, 586-7,596,616-7 século xix, 299-305, 315-21
América Central, desenvolvimento de século xx, 537-41, passim, 546,
civilização, 49-52 553-61, 563-8, 574
América do Norte, explorações da, 42-3 período colonial, 135-6, 142-3, 154,
América 174-5
americanismo, 174,299-300,317,538, século xix, 286-92
548 arielismo, 317, 339, 341-2, 533, 537-8,
descoberta da, 13-5 545
706 707
HISTORIA DA A M E R I C A LATINA ÍNDICE REMISSIVO

arquitectura dívida externa, 444-6, passim, 595 Califórnia, 32, 441-2, 596 período colonial, 102-3,136-7, 141-2,
Brasil, 203 e os EUA, 423, 432-3, 437-9 Canadá, 585-6, 600, 631 527
século xvi, 168-70 economia, colonial, 195-200 «capitanias-donatárias», 180-1 redemocratização nos anos 80, 503-5,
século XVH, 168-70 século xix, 263-4, 292-3 correra de índias, 113-4, 128-9, 136-8 523-4, 592-3
século xvm, 174 século xx, 427-8, 438, 440-4, 447- Casa da Contratación, 113 reforma agrária, 510-6
século xx, 542 -8, 595 casamento e relações sexuais, 93,147-8, república parlamentar (1891-1924),
artes visuais escravatura, 183-7, 201-2, 264-5 151-2,156-8,172-3,175,180, 587-90 500-1
modernismo, 539-43 Estado Novo, 428-33 ver também mistura de raças século xix, 267-70
século xvn, 170-1 fascismo, 427, 430-1 castas, ver mistura de raças século xx, 498-24, 592-3
Astecas, 27-31,51-6 fronteira, 185-90 Castela, 65-73 século xxi, 592-4
e Espanhóis, 45-6 governo militar, 546-7, 439-46 Caudilhismo, 249-50, 268, 278, 280-1, socialismo, 604, 512-9
sociedade, 54-5 independência, 240-3 285, 290, 295, 388-9, 473, 482, 560, China, 591-2, 597-600, 611, 615, 627-
religião, 55-6 industrialização e desenvolvimento, 578 -9, 632
audiências, 102-5, 122, 161, 192, 210, 429-44,448, 596 centralismo, e regionalismo, 251-3 Cíbola, Sete Cidades de, 41-2
252-3, 543, 604 inflação, 436-9,443-8, 595-6 Chile, 37-8, 260, 342, 349-50, 363, 365, cidades, primeiras, 88-9, 91-2
Austrália, 631 literatura e cultura 369, 374, 380, 389-90, 586-92, pas- Cimeiras das Américas, 585-7, 629-30
colonial, 202-4 sim, 612, 616, 619-21 cinema, 543
bandeirantes, 187-8,197, 535, 654 século xix, 308-14, 319-20 agitação proletária, 500-1, 594 «civilização e barbárie», 297-321
Belize, 334-5 século xx, 426-7, 531-2, 541-2, Concertacionpor Ia Democracia, 592- civilização olmeque, 49
Bolívia, 258 551-3,556,561-3,575,577 -5 passim civilizações ameríndias
colonial (Alto Peru), 37-8, 102, 114, Partido Comunista, 427, 430, 433, conquista do, 43-4 clássicas, 49-50
134-8, 141-2, 210, 585-92, passim, 441,445 e os EUA, 502, 513-4, 607 pós-clássicas, 50-2
604-5, passim, 611, 613, 616-7, período colonial, 179-204 economia, 380, 502-3, 507, 514-5, classes médias, 148-9, 326, 328-31,
625, 628-9 primeira república, 423-33 519-23,592-4 341-2, 368, 386-9, 393, 475-6, 515-7,
e os EUA, 613, 619-22 passim primeiro império, 260-2 Frente Popular, 504, 506 597-8,608
economia, 619-21, 629 redemocratização nos anos 80 do governo da Unidade Popular (1970- classes trabalhadoras, 326-7, 366, 368,
Estanho, 333-4, 613, 619-20 século xx, 444-8 -73), 513-9 389-90, 393, 437, 475, 481-2, 500-1,
gás natural e petróleo, 618, 621-3 reformas pombalinas, 217-21 governo democrata-cristão (1964-70), 514, 519-20, 590-1, 603, 619-20
independência,231,242-3,253,619-20 republicanismo, 221, 240-1, 262-5 508-12 ver também trabalhadores/proleta-
literatura e cultura, 319-20 revolta dos Canudos, 316-8, 425 governo militar, 342, 365, 502-3, 519- riado
movimentos indígenas, 618-23 século xx, 423-48 -24, 592-4 clientelismo, 60-1, 147-8, 159, 177,
período republicano, 268-70, 281-2, século xxi, 595-7 governos pós-guerra (1946-64), 506-8 291-2, 325, 342, 348-9, 360, 389-90,
286, 336-7, 349-50, 375,466-7 século xxi, 595-7 passim independência, 233-4, 238-40 361
política e o Estado, 618-23 passim segunda república, 433-8 industrialização e desenvolvimento, ver também patronato/patrocínio
Prata, 115, 137-43,619-21 segundo império, 263-7 501-7,514,594 Colômbia, 40-1, 257-8, 281-2, 335-6,
revolta de Tupac Amaru, 212, 214 soberania, 182-4 intervenção militar, 502-3, 505, 511, 371, 375, 385-90, passim, 591-2, 603-
Revolução da, 613, 619-20 sociedade, colonial, 200-2 519 -4, passim, 612-3, 616, 619-20
século xx, 613, 618-20 ver também França; Grã-Bretanha; literatura e cultura, 299-300,315,344- Aliança para o Progresso, 362-3
século xxi, 620-3 Holandeses; Estado, corporativo -8, 565-7, 573, 575 crescimento económico, 348,363, 605
Brasil, 42-3, 586-92, passim, 619-20 nacionalismo económico, 504-7, pas- e os EUA, 587-8, 606
açúcar, 196-7 Cádis sim, 510 independência, 225, 232-5, 239-40,
arquitetura, 203, 436 constituição de 1812, 226-7, 235-6, Partido Comunista, 501-3, 506, 513- 242-3, 252-3
colonização, 179-82 240-1 -9, passim, 522, 524, 592-3 literatura e cultura, 299, 307, 319-20,
descoberta do, 179 Cortes de, 224, 235-6 partidos políticos, 503-13, 517-8,524, 546-8, 577-9
desigualdade, 589-90 motim, 236-7, 239-40 594 ouro, 137-8, 141-2

708 709
HISTÓRIA DA A M É R I C A LATINA ÍNDICE REMISSIVO

período colonial (Nova Granada), México (1857), 277-9; (1917), 401-2 política e o Estado, 627-9 impacto nos colonos, 23
88-9,102-5,113-4,137-8,154,210- Peru (1993), 614 revolução (1933), 455-6 Doutrina Monroe, 335-7
-4 Venezuela (1999), 609-10 revolução (1956-9), 366-8,458-61 ver também Corolário Roosevelt
política e o Estado, 356-7, 605-8 ver também Cádis, México: Plano de século xx, 449-71, 626-7
século xx, 356-7, 605-8 Iguala século xxi, 627-9 ECLA (CEAL - Comissão Económica
século xxi, 605-8 construção naval colonial, 137-8 cultura popular para a América Latina), 345-7,438
colonialismo, 93-4, 112, 124-5, 172-3, Corolário Roosevelt (acrescentado à colonial, 162-4, 166-8, 171-2, 175, economia
216-7, 222, 292-3 doutrina Monroe), 335-6 305,312 Brasil, 195-209,441-4,595-7
«duplo», 177 corporativismo, ver Estado, corporativo século xrx, 305, 312 colonial, 130-46
«interno», 125, 215, 387-8, 613, 618 corregimientos, 107-8 século xx, 533-4, 542-3, 567-8, 574, . século xrx, 293-4
«neocolonialismo», 583, 631 Costa Rica, 22, 103, 291-2, 337-8, 385- 577, 579 século xx, 331-5, 380-1, 591-2, 629,
«patriarcal», 164-5,176-7, 243 -6, 585-6 cultura 632
comerciantes coloniais, 143-5 independência, 237-9, 260 mistura, 162-4 século xxi, 591-2, 629, 632
comércio, índias espanholas, 142-5 plano de paz Árias, 371 século XK, 297-21 economias de exportação, 292-3, 325-6,
comunismo, 340-1, 366, 468-9, 590-1 crioulos, 613-4, 622-3 século xvi, 160-5 331-5, 353-4, 584-8, 591-2, 594, 604-
ver também marxismo; socialismo cultura do século xvn, 164-73 século xvn, 164-73, 202-4 -5, 622-3
«Consenso de Washington», 585-6 definições, 127, 155 século xvni, 173-6, 202-4 ver também dependência, teorias da
consenso político, 76, 246, 260, 263, e peninsulares, 143-4, 148-9, 165-6, século xx, 527-63 economias neoliberais, 384-5, 584-91
279-82, 290-1, 326, 355, 557-8, 362, 211-2 ver também arquitetura; literatura; Argentina, 491-4, 497, 597-8
389-90, 525, 539, 577, 590-5, 600, «patriotismo», 166-7, 175, 215 música; teatro; artes visuais Bolívia, 619-21
603, 605, 622-3, 625-6, 632 ver também oligarquia; sociedade, Brasil, 447-8, 595
conservadorismo, 247, 254, 267-8, 282- crioula darwinismo Social, 296, 311 Chile, 519-24, 592-3
-8,297-8,303,307,314 crise da dívida, 377-86, 419-22, 382-3, ver também positivismo Equador, 623-4
Brasil, 242-3 590-1,598-600 dependência, teorias da, 596-7, 583 México, 420-1, 600
dos crioulos, 247, 281-3 crise rural, 350-1, 586-90 «estruturalista», 345-7 Peru, 615-6
dos índios, 150-1,215 crises de desenvolvimento, 350-4 marxista, 367-8 Venezuela, 609
Igreja e Estado, 253-7 Cuba, 18, 24, 27, 333-4, 350-1, 527, «desestruturação» (da visão índia do ver também «Consenso de Washing-
ver também liberalismo 583, 586-7, 590-1, 600, 610, 613 mundo), 98-100 ton»
Constituições: açúcar, 449-50, 457-8, 467-70, 625-6 desigualdade, 589-90, 605,613,619-20, El Dorado, 41-2
Argentina, peronista (1949), 482; Pro- Autênticos, 455-7 630,632 El Salvador, 103, 363, 370, 373-4, 377,
víncias Unidas de La Plata (1853), Batistato, primeiro, 455-7; segundo, Argentina, 597-600 571,585,588-9
287-8 457-9 Bolívia, 589-90, 619-22 catolicismo progressista, 374
Bolívia (1826), 242-3 comunismo, 454-6, 459-60, 464-5, Brasil, 589-90, 596 •conquista, 32
Bolívia (2008), 621-3 467-8,471 Chile, 589-90, 594 crescimento económico, 348
Brasil, Estado Novo (1938), 431; pri- descoberta de, 18 Colômbia, 606 guerra de guerrilha, 375, 377
meira república (1891), 423; segun- ditadura de Machado, 455-6 Equador, 623-4 independência, 237-9
da república (1946), 433 e a União Soviética, 462-4, 470-1, México, 601 século xxi, 603
Chile, Portales (1833), 267-8; (1925), 625-9 Peru, 614 epidemias, ver doenças
502; (1980), 522 e os EUA, 336-7,450-3,462-7, 625-9 Venezuela, 608-9, 612, 622-3 Equador, 36-7,40-1, 281-2, 585-6; pas-
Colômbia (1991), 606 economia após a revolução de 1959, «direito de resistência», 69-70, 76, 120, sim, 604-5; passim, 607, 611, 613,
Colômbia, Angostura (1819), 234-5; 463-71, 625-7 214 618, 628-9
Grande Colômbia (1821), 239-40 escravatura, 449-50 ditaduras militares, 364-5, 382-3, 389- e os EUA, 623-4
Cuba, primeira república (1901), 451; independência, 450-5 -90,603,613-4,619-20 economia, 622-5
(1940), 502 literatura e, cultura, 307, 530-1, 533, doença literatura e cultura, 299, 307, 554
Equador (2009), 523 550, 559-60, 567-70 impacto nos índios, 44-6, 95-8 movimentos indígenas, 623-4

710 711
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
ÍNDICE REMISSIVO

período colonial (Quito), 36-7, 40-2, e Argentina, 480,483-4, 586-7


«modernismo», 314-5 Grande Colômbia, 242-3, 604
604 e Bolívia, 611, 613, 619-22 passim
século xix, 299-300 Guatemala, 252, 349-50, 363, 366, 585-
política e o Estado, 623-5 e Brasil, 423,432-9, 586-7
século xx, 527-34, passim, 545-53 -6, 588-90, 603
século xx, 622-4 e Chile, 502, 510, 513-5, 586-7
Florida, 24, 42-3 conquista, 32
século xxi, 623-4 e Colômbia, 586-8, 606, 612
França, 128,154,174,208,223-4,294-5 e os EUA, 603
escravatura, 20,24-5,54,63,119,141-2, e Cuba, 335-7, 450-3, 462-4, 466-7,
e Brasil, 180, 182,222,240-1 independência, 237-9
152-6, 257-8, 283-4 625-9
e México, 274-8, 335-6 literatura e cultura, 316, 531, 559
Brasil, 181-7,201-2, 264-5 e Equador, 613, 625
influência cultural, 298-301, 311-6, período colonial, 88,100-2,150-1
escritoras, 171-2, 545, 575-6 e Guatemala, 336-7, 366, 603
529 século xxi, 603
Espanha, 74-80, 207-10, 216, 223, 339, «Latinos», 586-8
ver também imperialismo guerrilhas urbanas, 369-70, 440-1
390, 592-3, 623-4, 627, 630-2 e México, 271, 273-5, 393, 398-401,
FTAA, 586
comércio com as índias, 113-8 407,421
Fundo Monetário Internacional (FMI), Holanda, ver Holandeses
declínio nas índias, 127-30, 207-8 e Peru, 586-7, 615, 617
584,588-91,618 Holandeses, os, 128, 154, 209
ver também imperialismo e tráfico de droga, 357, 587-8, 602,
e Argentina, 598-9 e Portugal, 82
Espanola, 18-26, pássim, 113, 135-6 606,619-22
e Bolívia, 619-21 no Brasil, 182,195,197
capitania-geral de Santo Domingo, e Venezuela, 611-2, 621-2
102-3, 210 ver também Cimeiras das Américas tv e Brasil, 596 rebelião contra Espanha, 76-8, 176-7,
208
e Chile, 592-3
República Dominicana, 337-8 ver também Aliança para o Progresso;
e Colômbia, 612 Honduras, 22, 103, 114, 333-4, 337-8,
Estado corporativo, 156, 326, 341-4, Doutrina Monroe; Corolário Roose-
e Equador, 624-5 589-90, 611
358,360-1,365,389-90,618 velt; Texas
e México, 600-1 conquista, 32
Argentina, 477, 480, 482, 498 estancias, 131-2,286-7
e Peru, 614e Venezuela, 609, 612 crescimento económico, 348
Brasil, 429-33 exploração mineira de ouro, 140-2
independência, 237-9
Chile, 502, 505, 509 Brasil, 197-9
globalização, 584-92, passim, 593-632
México, 402-22, 600-1 exploração mineira de prata, 138-41
passim Ibéricos e índios, 84-5
Estado imperial, comparação, 83, 190-1, exploração mineira, 138-40, 619-21
governação democrática (anos 90 do ver também Portugal; Espanha
220
século xx e século xxi), problemas da, identidade, cultural e nacional, 175-6,
de Espanha, 102, 106, 118-25, 177, fascismo, 343-4, 389-90,409,427, 430-
590-1, 605, 608-9, 612, 620-3, 623-5, 299, 303-5, 309-10, 320-1, 367, 526-
207-8, 345, 388-9, 604, 613, 618, -1,481
632 -7, 530, 533, 535, 538, 544, 553, 579,
630-1 fazendas, 130-5, 146-7, 325, 331-2,
governo constitucional, 260, 297-80, 608, 613, 618, 625-6, 632
de Portugal, 83, 180-1, 190-5, 220-1 349-50, 613
290-1,326-7,355,385-8 Igreja Católica, 68-74, 104-5, 525
ver também instituições coloniais; im- origens, 92
governo, índias espanholas, 101-8, 604, Brasil, 193-5
perialismo federalismo, 253, 273-4, 286-7
618 catolicismo social, 374, 376
Estado republicano, 217, 267-71, 276- Brasil, 262-4
local, 106-7 e conservadorismo, 254-6, 373
-85,passim, 290-1,325-6, 330, 340-1, ver também republicanismo
governos radicais, 474-7, 486-8, 494-7, e índios, 149-53, 373
364-5, 377, 384-5, 613, 618, 625-6 ficção
597-8 e secularização, 588-9, 594
legitimidade do, 246, 354-90, 405, anos 1900-1950, 318-21, 553-5
Grã-Bretanha, 76, 78, 80, 82-3, 128, evangelização, 108-13, 181,183
492-3 anos 1960-1970, 562-9
154, 208-10, 216-7, 222, 229, 232-4, papel económico nas índias, 144-6
fraqueza do, 355, 358, 361-3, 377, anos 1970-1980, 569-79
292-3, 333-5, 378, 557 radicalização política, 375-6
387-9,539,590-1,630-1 modernismo, 555-63
e Argentina, 216-7, 287-92, 478-9, relações com o Estado, 253-4, 260,
Estados Unidos da América (EUA), século xix, 305-16
493-4 266,269,272-7,377,408-10
215-6,220,229, 303,317-8, 321,326, ver também literatura; poesia
e Brasil, 197, 217, 219-20, 222, 260, século xx, 372-7
332-6, 344-7, 359, 366, 370-1, 378- Filipinas,
264 século xxi, 388-9
-86,529-30,544,548-9,556-7,584-8, ver poesia de Manila
e Chile, 270, 499-500, 592-3 ver também, teologia da libertação;
passim, 590-1, 600-3, passim, 612-3, Brasil, 203, 308-9, 312-3
e Cuba, 210, 449-50 partidos democratas-cristãos
629,631 colonial, 551-3, passim, 171-3, 162-3
e México, 277, 279-80, 396, 398 igrejas protestantes, 588-9, 625-6
712
713
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA ÍNDICE REMISSIVO

Humanismo católico, 173-4, 209 e a sociedade moderna, 588-9, 613, Inquisição Espanhola, 72-3,105, 215 económico, 334-5, 344-7, 351-2, 354,
ver também fluminismo, europeu 625-6 instituições coloniais 384-7,389-90,480,504-5,583, 630
Huminismo europeu, 173, 175, 215, ver também índios: e reformas libe- Brasil, 180-1, 191-5 nacionalismo, 330, 334-5, 355, 358-
227,297,302,318,340-1,387-8,525, rais; «república» dos; direitos; movi- índias espanholas, 101-8,209 -9, 373, 388-9, 434-5, 453-5, 465-
559,567-8,578-9 mentos indígenas intervenção militar na política, 266-7, -6,613
ver também Duminismo Católico índios, 45-85, 129-30 271, 326, 331-2, 342-3, 354, 358, revoluções, 342-3, 355
imperialismo, 367 Araucanos, 44-6, 260, 268 363-4, 388-9, 583, 597, 599, 609-10, literatura
dos Estados Unidos, 317, 334-6 Aruaques, 18, 63-4 613-4,619-20 afro-americana, 530-1
espanhol, 208, 211, 213, 217, 222-7, Chibcha, 40-1 intervenção militar, 476-7, 486-8,498 barroca, 167-9, 532-4
235-6 Chichimecas, 50, 63 Irão, 611 boom e pós-boom, 545, 563-79
francês, 277-8, 335-6 colapso demográfico, 94-5 Iraque, 611 costumbrismo, 301, 306, 315, 532,
português, 180-3, 203-4, 220-2 das Caraíbas, 18,63-4 ISI, ver industrialização por substituição 700
Inças, 57-63, 605, 614 direitos, 24-5, 119-25, 161, 162-3, de importações escritoras, 171-2,545,575-6
e Espanhóis, 45-6 182-3,260 Iucatão,'26,43-4,111,150-1, 275 gauchesca, 301, 303, 321
religião, 60-3 do Brasil, 63-4 indianismo, 308-9, 319, 372, 532
sociedade, 59-60 e as reformas liberais, 258-9, 278-9, Japão, 615 indigenismo, 341-2,372,531,537-40,
independência, 226-43 613, 625-6 jesuítas, 173-4, 181-9, 203, 214, 221, 554, 566, 572, 669, 701
América hispânica, 226-41 e os ibéricos, 84-5 283-4 modernismo, 527-63
Brasil, 240-3 e os primeiros colonos, 22-3 e regalismo, 218 «modernismo», 314-6, 319-20, 545-6
consequência a longo prazo da, 630-2 evangelização, 108-13 naturalismo, 312-5
Costa Rica, 260 Guaranis, 218, 282-3 liberalismo, 175, 215, 260-92, passim, neoclassicismo, 174, 299-305, 530
Cuba, 260 guerra de Mixtón, 44 297-321, passim, 329, 334-5, 339, parnasianismo, 312-4, 552-86
guerras da, 233-6 impacto da Conquista, 94-101 529-30 realismo mágico, 531-2, 541, 551,
México, 237-9 impacto da doença, 44-6, 95, 97-8 a Igreja e Estado, 253-7 passim, 554-65, 575
Panamá, 335-6 indianismo, literário, 308-10, 319-20 declínio do, 525-6 realismo social, 541, 553-4
Paraguai, 253, 282-3 índios bárbaros, 259-60 e a construção de nações, 246-51, realismo, 313-6, 573-5
Peru, 238-9 Mexica, 52-6 297-303 regionalismo, 312,319-21,555,561-2
rescaldo da, 345-60,589-90,604,613, perda de terras, 132, 258-9, 277-9, e índios, 258-90, 613, 625-6 Renascimento, 160-3
618-20 286-9, 341-2, 349-50, 392 económico, 584, 612 romantismo, 300-10
Venezuela, 253 «república» dos, 149-53, 618 imperialismo dos liberais de Cádis, simbolismo, 313-4
índia, 597 revoltas, 212-4 226-7 surrealismo, 530, 540-1, 548-9
índias espanholas, 145-9 ver também Astecas; «desestrutura- origem do termo, 224 ver também ficção; poesia; mulheres
independência, 226-41 ção»; Inças; indigenismo; Maias; político, 612
literatura e cultura, 298-307 escravatura; Tolteques reações nacionalistas contra o, 340-2 Maias, 56-7
reformas dos Bourbon, 210-17 ver também, índios, contemporâneos: recuperação de princípios, 568-72, Manila, 142-3, 210, 232
soberania, 223-6 direitos 578-9 marxismo, 366-72, 536-7, 573, 583,
ver também países tratados indivi- industrialização, 247, 293-4, 326-7, triunfo do, 291-6 590,606-7, 612
dualmente 331-2, 343-5, 359-60, 367, 383-4, ver também Huminismo europeu; ver também comunismo; socialismo
indigenismo, político, 341-2, 372, 531 388-9, 583,589-90, 605,608,631 economia neoliberal; positivismo; mestizaje /mestiçagem
ver também literatura: indigenismo substituição de importações, 347-58, darwinismo Social cultural, 162-5, 167-71, 533, 535,
índios contemporâneos, 588-9, 600-3; 378-9, 583, 589-90, 608, 619-20 linguagem e civilização nahuatl, 55, 539,544,555
passim, 605, 613-4, 618-25; passim, inflação, 361, 364-5, 386-7, 436-9,443- 152-3 racial, ver mistura de raças
630 4, 583-6, 592-3, 595-7, 608-9, 611, cultural, 406, 426-7, 454-5, 506, México, 585-91
direitos, 588-90, 601, 613, 617, 622- 614, 619-20, 623-4 535-9 «científicos», 280-1, 294-5, 311, 392-
-4, 625-6 Inglaterra, ver Grã-Bretanha e liberalismo, 340-2 -400, passim, 405

714 715
KHSTÓRIA D A A M É R I C A L A T I N A ÍNDICE REMISSIVO

conquista do, 27-32, 44 Monarquia Católica, 83-4, 105, 108, em conventos, 171-2 pacto colonial, 177, 215, 232-3, 243,
dívida externa, 419-22, 600-1 159, 163-4, 175, 208, 216, 222-6, escritoras, 171-2, 545, 575-6 387-8
e os EUA, 271, 273-5, 393, 398-9, 232-3, 235-7, 251-2, 291-2, 345, 579, índias, 157, 180 Padroado Real, 193-4, 254, 260, 702,
401,407,421,600 630-2 mestiças, 158 706
economia, 278-80,413-5,417-9, 585- criação da, 70-1 negras, 156-7 Panamá, 22-6, 33, 102, 113-4, 137-8,
-6, 600-3 passim e colonialismo, 89, 93-4, 106, 118, primeiras migrantes, 93 485-6, 587-8, 604
Estado pós-revolucionário, 402-22 125, 164-5, 176-7 música Canal, 335-8,350-1,370
Igreja Católica, 373, 398,408-12,488 e identidade cultural, 175 modernismo, 543-5 Congresso do, 344-5
Iguala, Plano de , 235-8, 271-2, 276 fim da, 175, 177, 235-6, 243, 281-2 popular, 442-3 independência, 335-6
independência, 236-9 e índios, 100-1,119-23 século xvn, 170-2 Paraguai, 42-3, 93, 135-6, 231, 385-6,
industrialização e desenvolvimento, influência nas repúblicas, 247, 271, 585-7, 589-90, 611,'619-20
279-80,494-5 274, 276, 307,360,404,604-5,613, naborias, ver sistemas laborais Guerra da Tripla Aliança, 286
literatura e cultura, 618, 625, 630-1 nacionalismo, 479-86 passim Guerra do Chaco, 286
colonial, 160-76, passim «monopólio de legitimidade», 74-8, NAFTA, 585, 600-4passim, independência, 253, 282-3
século xix, 299, 306, 317 105, 108, 118, 125, 208, 213, 216, ver também Organização dos Estados Jesuítas, 109, 218, 283-4
século xx, 538-42, 548-9, 570-1, 232, 235-6, 243, 387-8, 464 Americanos; Cimeiras das Améri- literatura, 570-1
574-5 portuguesa, 81-4,222 cas século xix, 282-6
Maximato, 407-10 princípios, 71-9, 159 Nicarágua, 22, 103, 137-8, 585-90, pas- partidos democratas-cristãos, 374-5
monarquia, 237-8, 271-2, 276, 278, ver também absolutismo; Patronato sim, 603,611,628 ver também Chile
281-2 Real conquista, 32 Patagónia, 42-3, 259
período colonial (Nova Espanha), monarquia constitucional, 175, 217, crescimento económico, 348-51 patriarcado, 84, 134-5, 147-8, 157, 159,
97-125, passim, 127-77 passim 238-9,267,271,278 e os EUA, 333-8 163-7, 172-7, 202, 249, 283-4, 304,
período revolucionário, 394-405 Brasil, 240-6,260-1, 266-7 independência, 237-9 307, 325, 328, 387-90, 560, 572-9
política e o Estado, 357-8,414-20 México, 238-9, 271-2, 276, 278, literatura e cultura, 314, 549-50 ver também patronato; colonialismo
Porfíriato, 279-81, 327, 391, 393, 281-2 revolução sandinista, 370-1, 376-7, Patronato Real, 104
397-8,401,404-7,412 monarquia, pós-independência, apoio à, 527 patronato/patrocínio, ver clientelismo;
PRJ (Partido Revolucionário Institu- 232-3, 237-40, 247, 271-2, 276, 278, século xxi, 603 patriarcado
cional), 413-9, 600-1, passim 281-2,283-5,299 Nova Espanha, ver México: período peronismo, 480-97, 597-600
rebelião contra domínio espanhol Movimento de Reforma Universitário colonial Peru, 225, 233-4, 260, 333-4, 343-4,
(1810), 227-8 (Argentina), 330,453,474 Nova Granada, ver Colômbia: período 349-50, 362, 389-90, 527, 585-92,
Reforma, La, 251, 276-8, 404, 703 movimentos de guerrilha, 336-72, 440- colonial passim, 603-5, passim, 612-20, 625
século xix, 271-82 -1, 460-1, 583, 600-3, 606-8, passim, Nova Zelândia, 631 APRA (Alianza Popular Revoluciona-
século xx, 391-422 612-7 passim ria Americana), 341-2, 381, 386-7,
século xxi, 600-3 movimentos indígenas (anos 90 do obrajes, 136-8, 154,211 454-5, 536, 554, 614-7 passim
migração (anos 90 do século xx e século século xx e século xxi), 588-90, 604, oligarquia, 123-33, 147-8, 159, 175-9, conquista do, 32-41, 613-4
xxi), 586-90, 614, 616, 619-21, 625-7 613, 625-6, 630 215-7, 246, 248, 252, 270, 290-1, crescimento económico, 348, 380,
missionários, 25, 108, 113, 183, 187-9, Bolívia, 618-23/>ftSíí'm 326-32, 342, 387-90 615-7
259 Equador, 618, 623-5 Brasil, 200-1, 240-1, 260-1, 266 e os EUA, 615-7
mistura de raças, 157-8, 185, 605, 613, México, 600-1 origens 107, 145-9 economia, 614-5
619-20, 622-3 Peru, 617 Onganiato, 488-9 governo militar, 364-5, 410-1, 614
modernização, 175-6, 278-81, 288-9, movimentos sociais, novos, 588-9, 598, Organização dos Estados americanos, ideólogos indigenistas, 341-2
292-4, 304, 319, 327, 349-50, 524, 619-20, 625, 629 629-30 independência, 238-9
538-9, 576-9, 587-8, 605, 625, 631-2 *! literatura e cultura, colonial, 160-76,
mulheres ver também Cimeiras das Américas
Monarquia Bourbon, 173-4, 208-9 como escravas, 156-7 Organização Internacional do Trabalho passim
instituições da, 209 e emprego, 587-8 (OIT), 588-9, 617 século xix, 306, 315, 319-20

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HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA (NDICE REMISSIVO

século xx, 535-8, 546-7, 550 Bolívia, 618, 622-3 sistemas laborais e o Chile, 509
período colonial, 87-125, passim, Chile, 591-2 mita, 59, 100, 134, 139-41, 212, 257, e Cuba, 462-4,469-72, 625-6, 629
127-77 passim Colômbia, 591-2, 606 701 universalismo, 538-43
política e o Estado, 356, 381, 614-8 Equador, 618, 625 naborías, 63, 97, 131,138,149 ver também americanismo
século xx, 614-5 México, 601 peonagem, 133-7, 278-9, 280-1,401 urbanização, 348, 350-4, 372, 589-90,
século xxi, 615-8 Peru, 591-2 repartimiento, 20, 66, 122, 134, 145, 608-9,614,616,631
Sendero Luminoso, 372, 537, 572, reformas «pluriculturais», 588-90 211,703 Uruguai, 216-7, 231, 261, 286-8, 348,
614-8 Venezuela, 609-10 yanaconas, 60, 63, 97,131,149 355, 363, 380, 384-5,389-90
pintura, ver artes visuais reformas de mercado livre, ver econo- ver também Astecas; sistema de enco- guerrilhas urbanas, 369
pobreza, alívio da, 584,593-6,599, 602, mias neoliberais mienda; Inças; escravatura literatura, 319-20, 541,561
610-1 Reformas dos Bourbon 604, 614 soberania, 223-6 reformas Batlle, 330
populismo, 286-7, 360-1, 434-5, 438-9, em Espanha, 208-10 «socialismo do século xxi», 610-1, 625,
447-8,475,481,504,591-2,600,612, na América, 210-7 627, 629-30 «vantagem comparativa», 332-3, 478,
625 reformas institucionais, 584,591-2,599, socialismo, 340-1,365,603,612-30 pas- 584
Porto Rico, 24,117, 135-6, 232, 335-6 601,606,608-10 sim Venezuela, 257-8, 348, 353, 362, 374,
Portugal, 79-84, 217-23, 390, 631-2 regalismo, 208-9, 214 Chile, 512-24 380-1, 385-7, 589-90, 591-3, 600,
ver também imperialismo ver também absolutismo; monarquia ver também comunismo; Marxismo 604-5, passim, 607, 613, 616-8 pas-
positivismo, 294-6, 310-5, 526 Bourbon sociedade colonial, 148-59,166-9 sim
reações contra, 316-8, 536, 555 região dos Andes, Brasil, 200-2 colonial, 88, 111, 135-8, 142-3, 154,
posse de terra, 90 desenvolvimento de civilização, 49- 210-1,215
ver também Astecas; estancias', fazen- -52 Tenochtitlán, 30-1,52-3 conquista, 41
das; Inças; índios; reforma agrária períodos colonial e moderno, uma teologia da libertação, 375-6 crescimento económico, 348
produção manufatureira colonial, 137-8 análise dos, 587-8, 604-25 Texas, 273-5 e os EUA, 611-2, 621-2
República Dominicana, ver Hispaniola têxteis, ver obrajes economia, 608-9, 611
quíchua, 260, 537, 554, 613, 615, 623-4 republicanismo tirania, 70, 73-4, 80, 173, 214-5, 232-3, independência, 225, 229-30, 233-5,
Quito (província), ver Equador: período América Hispânica, 215, 225, 232-3, 283-5, 299 239-40, 242-3, 252-3
colonial 239-40, 242-3, 248-9, 282-5 Tolteques, 50-1, 56 literatura e cultura, 299-300, 320-1,
Brasil, 221, 240-1, 262-6 trabalhadores/proletariado, 130-5, 290- 542
rebelião contra domínio espanhol, 230-2 revolta dos comuneros (Nova Granada), -1, 328-9, 401-2, 405, 519-20, 598, política e o Estado, 608-10
redemocratização nos anos 80 do 107,110-1,149-50,259 623-4 «Revolução Bolivariana», 605, 609,
século xx, 493-7 ver Colômbia congregación sindicatos, 280-1, 405, 410-1, 432, 611-2, 630
século xxi, 597-600 Revolução Francesa, 215, 221-2, 232, 434, 437, 475, 481-2, 486-7, pas- século xx, 608-10
século xx, 473-98 299,404,449, 560 sim, 500-1, 518, 598 século xxi, 610
ver também, Estado, corporativo revolução industrial, política da, 354, ver também sistemas laborais «socialismo do século xxi», 610-1
Reconquista da Península Ibérica, 65-9 583,631 tráfico de droga, 357, 587-8, 596, 600, Tierra Firme, 12,26
reducción, ver congregación; Paraguai: Rússia, 591-2, 597,611,628 602, 606-8, passim, 617-22 Vilcabamba, Estado neoinca de, 39-40
missões Jesuítas
reforma agrária, 349-50, 384-5, 410-1, Santo Domingo, ver modelos de coloni- União Europeia, 585-6, 627-8 yanaconas, ver sistemas laborais
621-4 zação de Espanola, 87-94 União Soviética, 359, 366, 389-90, 612,
Brasil, 446-7, 589-90,595 Brasil, 180-1,200 625-6 zonas regionais de comércio, 585-7
Chile, 510-1, 515-6 sincretismo religioso, 111-2,150-1,155
Cuba, 464-5 sistema de encomenda, 24-5, 90, 119-
México, 401, 405,409-11, 414-5 -23, 130, 146-7, 283-4
reforma constitucional, em Espanha, 66-7
Argentina, 596, 598 origens na América, 91-2

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