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René Rémond

O ANTICO REGIME
EAREVOLUÇÃOK

introdução à história de nosso tempo


! Introdução à história de nosso tempo

O ANTIGO REGIME
E A REVOLUÇÃO
FICH A CATALOGRAFICA
(P reparada pelo C entro de C atalogação-na-fonte,
C âm ara B rasileira do Livro, SP)
1750 - 1815
j Rém ond, René.
/ R3241 I n tr o d u c o à h istó ria d e nosso tem po; trad u ção
I v.I-3 de F red erico P essoa de B arro s e Octavio M endes
I Cajado. São P aulo. C ultrix, 1978. Tradução dc
3v.
F rederico P essoa de Barros
C onteúdo.-v.l. O A ntigo R egim e e a R e v o lu to :
1750-1815.-V.2. O século XIX: 1815-1914.-V.3. O século
XX: de 1914 a nossos dias.
1. E uropa — H istó ria 2. H istó ria m oderna —
Século 18 3. H istó ria m o d e rn a — Século 19 4. His­
tória m oderna — Século 20 L T ítulo.
CDD-909.7
-909.81
-909.82 i
76-0252 .940.2

Índice para catálogo sistemático:


1. Europa : Período m oderno, 1453- : H istó ria
2 . Século 18 : H istória 909.7 940.2
3. Século lfl : H istória 909.81
4. Século 20 : H istória 909.82

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
SUMÁRIO

Advertência 9
1. O ANTIGO REGIME
1. O Homem e o Espaço. Mundo Conhecido e Mundo Ignorado 19
1. O mundo não está unificado ig
2. As etapas do reconhecimento do mundo*, das grandes desco-
cobertas à conquista do espaço, a epopéia geográfica 23
3. Começa o tempo do mundo acabado 27
2. O Povoamento 29
1. A dimensão geográfica 29
2. A população e seu crescimento 31
3. A distribuição entre os continentes 32
4. O mundo: ao mesmo tempo povoado e superpovoado 35
Os meios de subsistência, 36. — Os empregos, 37.
3. A Organização Social do Antigo Regime 39
1. Os princípios de toda organização social 39
2. As atividades profissionais 41
A sociedade rural 41
A oeste da Europa, 43. — Na Europa Central, 43. — Na
Rússia, 44.
A sociedade urbana 47
As cidades, 47. — Os portos, 49. — As burguesias, 49.
3. Ordens e classes 51
As ordens, as classes 51
A organização social e seu envelhecimento 54
A centralização monárquica, 54. — As transformações
econômicas, 55. — O movimento das idéias e a evolução
espiritual, 56.
A reação da nobreza 56

4. As Formas Políticas do Antigo Regime 60


1. As sociedades feudais 62
2. As repúblicas patrícias 66
Seu domínio; a civilização urbana, 67. — Liberdade, colegia-
lidade, oligarquia, 67. — Situação no século X V III, 68.

5
. absoluta c adm inistrativa 70
3. A inoliarT " - ‘ Ja monarquia , 70. — M o d e rn id a d e d a
Predominane * _ _ 0 s lim ites de fa to do absolutism ^
admínls/raçâo enfraquece o caráter pessoal, 74 73-
75
4 O despo< absoluta, 75. — Traços distinf
mona r qui a
Analog1^ p0S(cridadc do despotismo esclarecido, 78. ,v°s>
80
5- s J 7w n c tÍ r íl^ s ° , 81. — A experiência dos Estados Unidos, 87

90
As Relações Internacionais
j As relações entre a Europa e os outros continentes, os impírios
coloniais, 91.
9 ^5 relações entre os Estados europeus, 92.

2. A R E V O L U Ç Ã O , 1789-1815

Revolução Francesa ou revolução atlântica?, 99.

104
As origens da Revolução
Oi princípios de explicação e as séries de causas, 105. -_
Revolução, simples acidentes?, 106. — A influência oculta d
minorias, 106. — Os fatores de ordem econômica, 108 — ?
organização social e a crise da sociedade, 111 _I_ A
políticas, 111. — O movimento das idéias, sua difusão “ 1 ^
opinião pública, 112. Sao na

9 Processo Revolucionário e seus Saltos 114


I. Dojs modos possíveis de evolução- , 114
que a Revolução?,
Por cadeia,
em 116. 114 - U m a sucessão
Su « s ^ o de revoluções

’’ ,?* /alor<,s do processo revolucionário 120


A força das coisas” 120
O problema dos meios de subsistência 120 n
u i . .— a guerra ¡pi a _ J —■ O medo,
As vontades e as paixões A questao religiosa, 122. 123
A Revolução e a Europa 124
pnmeira etapa, 124 __ a
,ra etapa, 126. A segunda etapa, 125. _ A ter-
bra da Jievoluçãao
128
O Estado
130
Evolução da norãn a .
litigo Regime, J3Q f P° itica, 130. — Comparação com o
Importância crescenn la?ao do campo da política, 131.
práticas * erUe da Política, 131.
132
¡ ^ r?Çã?apübliciâr,1g r n ‘eÍO d e eleições, 132. — A de*
• *
política, 133° 1Ca' 0 2 . - . Os ~
2. A organização a d m in istrativ a 133
Papel d a A ssem bléia C o n stitu in te, 134. — O governo revo­
lucionário, 134. — O D iretó rio , 135. — O C onsulado, 135.
3. Keligi ão c sociedade 137
A tra d iç ã o , 137. — A ntes de 1789, 138. — P apel d a R evo­
lução, 138. — D epois d a R ev o lu ção , 139.
4. A ordem social 139
A obra da Revolução, 140. -— A obra do Consulado e do
Im pério, 142. — T rata-se de um a sociedade burguesa?, 144.
5. A nação, a guerra e as relações internacionais 146
O sentim ento nacional, 146. — A guerra revolucionária, 147.
— O novo sistema das relações internacionais, 148.
6. Conclusão 148

4. O Continente Americano, 1783-1825 150


1. Os q u atro im périos 151
2. O fim dos im périos francês e britânico 152
3. A em an cip ação das colônias portuguesas e espanholas 154
As causas d a ru p tu ra 154
A In d e p e n d ê n c ia do Brasil 155
As colônias espanholas: do lealism o à secessão 156
O p o n to de p a rtid a , 156. — R u m o à em an cip ação , 157.
— O terror contra-revolucionário, 157. — A independên­
cia, 158.
Conclusão 159
5. A Marcha dos Estados Unidos Rumo à Democracia 160
ii

it:
Ì1

ifí
i
ADVERTÊNCIA

Se o costume da advertencia ao leitor no início de uma obra


tem mais do que uma justificação formal, este seria bem o caso.
A necessidade a impõe, tanto quanto a cortesia: mais do que outros,
com efeito, este volume carrega as marcas das circunstâncias que
precederam sua publicação, e sua simples lembrança é, sem dúvida,
o melhor modo de definir-lhe os objetivos e as Intenções. O livro
que nos dispomos a ler procede em linha reta de um curso dado no
Instituto dos Estudos Políticos de Paris, endereçado aos estudantes
do primeiro ano, o chamado ano preparatório. Ensino de caráter
geral, longe de qualquer preocupação erudita, e que tinha como
única ambição iniciar na compreensão do mundo contemporâneo um
auditório mais voltado para o exercício das responsabilidades ativas
do que atraído pelo conhecimento desinteressado. Persuadido, de
longa data, de que o ensino oral e a escritura pertencem a gêneros
nitidamente diferenciados e que um curso, mesmo de qualidade, nao
faz um bom livro, eu jamais pensaria em entregar ao público as
notas de que se nutriain minhas aulas. Além do mais, conheço por
experiência as dificuldades da síntese, sei das delongas exigidas por
qualquer pesquisa, estou muito compenetrado da necessidade da análise
para sequer ter concebido o projeto — quão presunçoso! — de enfeixar
dois séculos de história nas páginas de um livro. Foi a amizade de
Michel Winock que acabou por me convencer de que, se o curso
havia sido capaz de prestar algum serviço a um auditório de estudantes,
sua leitura não seria de todo inútil para um público maior, desejoso
de compreender seu tempo. Se temos como certo que a inteligência
do presente escapa a quem ignora tudo do passado, e que não lhe é
possível ser contemporâneo do próprio tempo se não se tem consciência
de tudo o que herdamos, quer o admitamos ou o contestemos, um
ensino que tem o propósito preciso de estudar o ontem em função
do hoje — e mesmo do amanhã — não deveria ele interessar a
outros, além dos estudantes adolescentes?

9
; Com a condição de não disfarçar sua verdadeira natureza e de
lhe conservar, para o melhor e para o pior, seus caracteres originais
tanto em relação à forma como ao conteúdo. Foi por isso que se
preservou o modo oral, limitando-se à supressão das repetições
I necessárias à pedagogia direta e à redução, insuportável para a leitura,
da parte dedicada aos enunciados e às recapitulações. Ao leitor cabe
! julgar se a conservação de um modo mais direto, eco apagado de um
ensino que aspirava a reavivar acontecimentos passados, compensa
até a indulgência o relaxamento da expressão, que é o seu preço
quase inevitável.
I Quanto ao fundo, os inconvenientes que poderíam resultar do
gênero justificam que a gente se explique de um modo um tanto
circunstanciado. Composto para os estudantes que haviam cursado
durante vários anos a História nos estabelecimentos do segundo grau,
■i e que, à diferença de seus colegas das universidades, que se destinam a
;í ensinar História durante toda a vida, não pretendiam continuar
p a estudá-la além do ano em curso, este ensino devia, ao mesmo
I tempo, apoiar-se nos conhecimentos adquiridos, supondo portanto
conhecida a relação dos fatos devendo bastar-se a si mesmo. Esta
obra, portanto, não é um manual de ensino: não apresenta um
p insumo dos acontecimentos. Ela procede, mais conmínente, por
lí alusões que o leitor deverá decifrar e elucidar; sua leitura não podería
dispensar o conhecimento das circunstâncias. Eu confessaria até que,
\. ao reler a versão policopiada deste curso, senti a todo instante uma
); furiosa vontade de reintroduzir, pelo artifício das notas de pé de
i;| página, todas as referências precisas aos fatos que só eram evocados
' sub-repticiamente. Renunciei a isso, porque as notas teriam devorado
a totalidade das páginas: isso seria o mesmo que compilar mais uma
História Geral, como as que já existem, e excelentes. Seria preferível
deixar este curso com seus traços de origem, incluindo os defeitos, a
arriscar-se a um resultado híbrido.

Os inconvenientes inerentes ao gênero poderiam ser agravados —


mas talvez eles também sejam legitimados — pela amplitude do assunto
; em questão; dois séculos da história do mundo. Nada mais do que
isso. Essas dimensões, fixadas pelo programa escolar, têm uma
justificação objetiva. Se, com efeito, o estudo do passado encontra,
no Instituto de Estudos Políticos, sua razão de ser na contribuição
que ele traz para o entendimento das situações e dos problemas, das
i forças e das idéias que compõem o mundo de hoje, não seria
j conveniente remontar às primeiras agitações, anunciadoras das trans-
i formações revolucionárias do fim do século X V III? A Revolução
!

10
Francesa de 1789, por certo, mas também a onda revolucionária
que se abate sobre o mundo ocidental no último quarto do século,
e que tem origem na declaração de independência dos Estados Unidos
em 1776. Mas, como o significado de uma mudança não pode
ser aferido senão por referencia ao estado precedente e, como a
apreciação do alcance de uma revolução está subordinada à compa­
ração com o regime por ela derrubado, c forçoso trazer à lembrança
os traços essenciais da sociedade do Antigo Regime. Eis por que
este curso tem como ponto de partida, aproximativo, os meados do
século X V III. É portanto, ura pouco mais -de duzentos anos, ou
seja, o periodo de vida de seis ou sete gerações, que formam a
matéria e dao a medida da extensão desta pequena síntese. Dois
séculos, no curso dos quais a figura do mundo, a composição das
sociedades, as relações entre os povos, as condições de vida e talvez
mesmo a mentalidade e a sensibilidade mudaram mais do que durante
os milênios anteriores. A densidade do período acentua, até a
caricatura, a tendência de todo ensino para a simplificação. Como
fazer para conter semelhante superabundancia de acontecimentos
dentro dos limites necessários, sem baralhar as evoluções, sem reduzir
os tempos, sem escamotear a preparação e a maturidade dos fatos?
A tentativa fica exposta a outro risco: o da sistematização a
posteriori. Como, para o historiador, a par da sequência, é forte
a tentação de dar aos acontecimentos uma racionalidade que o
contemporâneo era absolutamente incapaz de discernir, e não apenas
por causa da debilidade de seu olhar, mas porque a realidade histórica
nao a comportava! Considerando-se de um ponto demasiado alto
o desenvolvimento circunstancial, perdemos de vista a contingência
dos encadeam entos, o imprevisto das situações. É, portanto, essencial
reafirmar a importância da conjuntura, reencontrar o papel do
acontecimento, a influência das individualidades, numa palavra,
reabilitar o fortuito e recolocar no devido lugar o singular. Essa
profissão de fé não implica, de modo algum, na nao-existência de
certa lógica das evoluções. É um falso dilema aquele dentro do
qual certas escolas querem nos encerrar: a alternativa entre o reco­
nhecimento de um determinismo da História, todo dirigido para a
realização de um fim único e último, ou sua dissolução numa infinidade
de situações inexplicáveis. Para não se deixar reduzir à lógica de
nossos sistemas de pensamento e de interpretação, a experiência
histórica não escapa de todo à racionalidade. Pode-se admitir, pelo
mesmo movimento inerente à História, algumas grandes orientações,
e que os processos pelos quais estas se manifestam e se efetuam
comportam a todo instante uma pluralidade de combinações possíveis.

11
É precisamente no esforço para discernir essas linhas mestras e deter­
minar os eixos maiores da evolução no decorrer dos últimos dóis
séculos que este curso encontra sua rázao de ser. !
!
Todo estudo histórico situa-se no ponto de interseção de duas
dimensões, as mesmas cujo entrecruzamento define a posição na
história de todo ser e de toda coletividade; o tempo e o espaço. As
referências cronológicas acabam de ser dispostas; estabeleçamos o
cenário geográfico. No último terço do século que viu a emancipação
dos países colonizados, seria impossível a existência de uma história
contemporânea que não fosse universal: atualmente, nada mais justi­
fica que nosso campo de observação se limite à Europa, menos ainda
à França. O ensino da História na França, durante muito tempo,
foi prejudicado por um ponto de vista demasiado ocidental, quando
não por um preconceito galocêntrico, que levava a representar a
experiência dos outros países através de nossa história nacional. Ora,
se o anacronismo, que consiste em projetar as preocupações de um
tempo — o nosso, — seu vocabulário e seus conceitos, sobre o passado,
constitui de fato um pecado mortal em História, não constitui falta
menos grave aquela que leva a imaginar as sociedades contemporâneas
como seguidoras do modelo oferecido pela nossa. Semelhante erro
causa o desconhecimento tanto da diversidade dos mundos quanto
da singularidade de cada experiência. Os efeitos são ainda mais
nocivos quando o espirito de sistema, legitimando o preconceito e a
preguiça intelectual, não tem receio de erigir em dogma o postulado
de que todos os países são chamados a passar pelas mesmas etapas de
uma evolução uniforme. Que possam existir vários caminhos possíveis,
para chegar talvez à mesma conclusão, até o mundo comunista está
prestes a descobri-lo, através de suas rupturas e dissensões. É ■ —
deveria ser — uma das virtudes cardeais da cultura histórica dilatar
nossas estreitezas e alargar nossa experiência tornando-nos contem­
porâneos de outros tempos e cidadãos de outros povos. Desse modo,
não existe verdadeira História a não ser que ampliada de acordo
com as dimensões do globo,
Contudo, veremos que a maior parte destas páginas contínua
consagrada à História da Europa. Apesar do que acaba de ser dito,
essa preponderância conservada em relação a nosso continente nao
é simples arbitrariedade. Ela tem uma justificativa, mais legítima
do que simples razoes de fato, tais como a de que este curso foi dado
numa escola francesa ou ainda a de que nosso conhecimento do
passado é muito desigual, de acordo com os continentes. É um fato
que, para determinados países, como por exempío a África, a História

12
está apenas começando a se constituir: a ausência de escritura, a
indiferença dos historiadores europeus a respeito dessa História antes
da colonização têm como consequência a impossibilidade de consagrar
hoje aos povos da África a parte a que a extensão do continente, a
antiguidade de seu povoamento e a diversidade de suas tradições
lhe dariam direito. O verdadeiro motivo é histórico: desde a aurora
dos tempos modernos a Europa representou na história do mundo
moderno um papel sem proporção comqm com seu peso próprio.
Simples constatação, que não leva consigo nenhum juízo de valor
sobre a riqueza das respectivas civilizações. É .verossímil que a civi­
lização da índia ou a da China tenham sido mais sutis que a da
Europa; é certo que elas são mais antigas: numa época em que os
países da Europa ainda pareciam bárbaros, o Extremo Oriente já
tinha alcançado um alto grau de evolução. Nem por isso deixa de
ser verdade que foi a Europa quem, pelo fato de seu progresso técnico
e também intelectual, tomou a iniciativa, arrogou-se o comando e
foi ao encontro dos outros povos. São os navegadores europeus, os
exploradores europeus, os conquistadores vindos da Europa que des­
cobriram, reconheceram, organizaram, exploraram o universo. Essa
anterioridade teve consequências incalculáveis: a Europa impôs ao
resto do mundo sua organização política e administrativa, seus códigos,
suas crenças, seus estilos dé vida, sua cultura, seu sistema de produção.
É em relação à Europa que os outros povos, de bom ou mau grado,
tiveram de se definir, fosse para imitá-la ou para se conformar com
o modelo ocidental, ou, pelo contrário, para combatê-lo ou rejeitá-lo.
Num e noutro caso, o asiático e o africano se afirmaram, tomaram
consciência de si mesmos, por referência ao europeu. Do mesmo
modo, as relações entre a Europa e os outros continentes determinam
um dos eixos maiores da História dos últimos séculos. Eis por que,
sem nos julgarmos infiéis à convicção de que a História deve ser
universal, será dado aos acontecimentos que primeiro afetaram a Eu­
ropa — revoluções políticas, ou sociais, industrialização, êxodo rural,
sistemas ideológicos, despertar do sentimento nacional, afirmação do
Estado-Naçao — um lugar que poderá parecer desproporcionado, e
que por certo seria tal se se fizesse abstração da repercussão, direta
ou indireta, que cada um desses fenômenos encontrou fora da Europa.
Uma última indicação se impõe para acabar de definir clara­
mente o objeto do empreendimento, relativo à natureza dos fatos
considerados: na multiplicidade dos fatos que se propõem à observação
do historiador, foi feita uma escolha deliberada: em favor do político
e do social. Sem nos perdermos na procura de definições sempre
difíceis e decepcionantes, dizemos que por político será entendido

13
tudo o que se relaciona,, de ura modo ou de outro,, com o governo
dos homens : organização do poder, exercício e conquista da autoridade,
forças constituídas para esse fira, tensões internas e conflitos externos.
Quanto ao social, o substantivo sociedade é mais satisfatório do que
o adjetivo, a que a prática conferiu uma acepção restritiva, como
sc só existisse uma classe social, a dos operários da indústria, e uma
única pergunta, a feita à sociedade pela existência desse proletariado.
O estudo dos fatos sociais é o estudo das sociedades, de sua organi­
zação, isto é, de todo o conjunto dos diferentes grupos que a cons­
tituem, de suas relações, de direito e de fato, das considerações de
principio, que fixam seu lugar no conjunto, e das relações de força,
de poder e de riqueza que as aproximam ou as afastam.
Dar, portanto, uma atenção privilegiada aos fatos políticos e aos
fatos sociais implica em duas convicções: que estes e aqueles existem
por si mesmos, que eles têm consistência própria e dispõem de certa,
autonomia em relação às realidades de outra ordem; que, além do
mais, entre as duas séries dc fatos, existem relações pelo menos tao
íntimas quanto com qualquer outra, em particular, com as realidades
econômicas, as que interessam as relações do homem com a natureza,
a matéria, a terra, a energia e sua atividade produtora. Se o pro­
pósito, materializado por este livro, apresenta alguma originalidade,
é na conjunção desses dois pressupostos que ela pode existir. Depois de
mais de vinte anos, consagrados à tentativa de decifração dos fenô­
menos políticos e à perquiríção de suas causas, fortaleceu-se minha
convicção inicial de que eles pertencem de fato a uma ordem de
realidade autônoma, que possui especificidade própria e cuja expli­
cação deve ser pedida, primeiramente, a ela. O mesmo ocorre em
relação aos fatos sociais: eles nao constituem o simples reflexo de
uma realidade mais fundamental: eles também têm existência autô­
noma. Afirmar, assim, a autonomia tanto do político quanto do
social nao significa, de nenhum modo, constituí-los em setores total­
mente independentes dos outros campos da História: nem significa,
particularmente, desconhecer a influência, muitas vezes determinante,
que eles podem exercer sobre o governo das sociedades e as relações
entre as classes, a evolução da conjuntura econômica ou o progresso
técnico, Mas acreditamos que, com algumas exceções, os fatos econô­
micos, política e socialmente neutros — ou ambivalentes —, não
intervém no encadeamento dos acontecimentos políticos ou na dialé­
tica das relações sociais, senão por intermédio de realidades interme­
diárias, psicológicas ou ideológicas. Em outras palavras, nós nao
pensamos que toda a realidade histórica leve, em última instância,
às relações de produção, nem que todos os conflitos que ocorrem na

14
sociedade se reduzam à luta de classes, nem tampouco que o homem
se defina essencialmente pelo lugar que ocupa no processo de trans­
formação da natureza, e que. o trabalhador seja nele mais decisivo
do que o habitante, o crente ou o cidadão. A realidade social é
mais rica, mais variada, mais complexa também do que a imagem
simplificada, proposta por todos os sistemas de explicação.
Rejeitar as interpretações monistas, por causa da simplificação
excessiva, afirmar, pelo contrário, a pluralidade dos fatos e dos
princípios de explicação não resolve, contudo, o problema de fundo,
o das relações causais. Ora, propor-se a estudar conjuntamente o
político e o social coloca-o em toda a sua extensão e em sua mais
inextricável dificuldade: pelo lado das relações entre os regimes
políticos e as ordens de sociedades: existem relações entre os dois,
e de que natureza? São os regimes que exprimem e traduzem, na
organização do poder, certa ordem social; pode-se então estabelecer
uma estreita correspondência entre a classificação dos tipos de go­
verno, exercício favorito da filosofia política, e as distinções entre
tipos de sociedade? Ou os regimes reagem à evolução das estruturas
sociais? Ao invés de formular abstratamente proposições teóricas,
tomamos a liberdade de remeter o leitor para o corpo da obra: ele
verá que nossas preferências sao por um sistema de relações complexas,
cujo sentido não é fixado de modo irrevogável e unilateral, mas pode,
de acordo com as situações e as sociedades, inverter-se: o tipo de
causalidade mais conmínente observado na História e que, afinal,
nos parece propor a tradução menos inadequada da realidade, é a
de causalidade recíproca ou circular.
Quantas precauções, pensará alguém, para apresentar um pano­
rama da História contemporânea. Concordo, mas não existe, é
impossível que exista um modo de encarar a História de forma abso­
lutamente inocente. Sem que seja necessário concluir por isso que
a objetividade seja inviolável, toda leitura do passado leva a marca
de seu tempo, é a expressão de uma personalidade. Não manda a
honestidade que declaremos em plena luz nossos pressupostos?

15
P r im e ir a P arte

O ANTIGO REGIME
I
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Ü
1

O HOMEM E O ESPAÇO.
MUNDO CONHECIDO E MUNDO IGNORADO

O primeiro passo a ser dado é remontar a nosso ponto de partida,


ou seja, a cerca de duzentos anos atrás. Iremos precisar mais de
imaginação que de memória para fazer uma idéia do mundo tal
como era por volta de 1750, de tudo o que os homens lhe acrescen­
taram depois em obras (construção, disposição do espaço), assim
como as mudanças ocorridas em suas estruturas mentais.
Qual o aspecto do mundo nos meados do século X V III?

1. O MUNDO NÃO ESTÁ UNIFICADO

Impõe-se uma primeira constatação, prenhe de conseqiiências :


em 1750, o inundo nao existe enquanto unidade para a humanidade;
ele não é concebido como tal, ou, se algumas pessoas assim o consi­
deram, ele não é vivido como experiência, // Percebemos melhor o
alcance dessa observação por comparação. Nos dias de hoje, um
acontecimento, por pouco interesse que tenha, mesmo menor, é logo
propalado, levado ao conhecimento de todo o mundo, que assim se
torna ao mesmo tempo espectador e ator. Todo o planeta está coberto
por uma densa rede de informações, que põe em comunicação todas
as partes do mundo. No plano do conhecimento, pelos canais de
informação e os meios de comunicação, o mundo, atualmente, é de
fato uma unidade efetiva, e em pouquíssimo tempo todos os homens
— ou quase todos — são informados de um acontecimento.
Outro exemplo: as relações econômicas e de interdependência,
que progressivamente foram-se estabelecendo entre os diversos países.
A fixação dos níveis dos preços, tanto dos gêneros alimentícios como

19
dos produtos industriais, 6 função de dados que vão além dos qua­
dros de um mercado nacional, por maior que ele seja. O criador
de gado da Argentina ou o agricultor da Gosta do Marfim depende
dos mercados mundiais, para o montante de sua remuneração, seu
nível de vida, para suas possibilidades de existência, às vezes até de
sua subsistência. As crises se propagam de um país para outro. A
primeira grande crise a apresentar de modo impressionante esse
caráter universal é a que teve origem em outubro de 1929, em Nova
Iorque; em alguns anos, ela afetou a vida econômica de todos os
países do mundo. Não se trata de um caso isolado: depois, vimos
reproduzir-se, embora com menor intensidade, fenômenos análogos.
A guerra da Coréia, em junho de 1950, causou uma violenta alta de
preços à qual nenhuma economia conseguiu escapar. Isto é sinal
de que hoje a alta e a baixa dos preços, as crises econômicas se pro­
pagam num meio relativamente homogêneo, contínuo e ampiamente
unificado. Nós captamos por esse meio a universalidade vivida do
mundo contemporâneo.
Terceiro exemplo, em apoio a esta afirmação: o das guerras.
No século passado, ainda era possível limitá-las geograficamente : no
século X IX não há, propriamente, conflitos mundiais. O século XX,
pelo contrário, é o século dos conflitos mundiais.
Poder-se-ia estender a demonstração — o caso seria mais con­
vincente ainda à evolução das idéias. As filosofias políticas são hoje
postas em prática, provocam simpatias ou suscitam oposição no mun­
do todo, quer se trate de uma experiência comunista ou nacionalista:
são fenômenos universais.
Portanto — c esta é uma das linhas da evolução da história de
dois séculos para cá -— houve a passagem de um mundo fragmentado,
dividido em compartimentos, para um mundo que mostra uma rela­
tiva unidade; universalidade e simultaneidade.
O mundo de 1750 não é assim.
Não existe simultaneidade. Efetivamente, as invenções técnicas
que permitiram essa instantaneidade ainda estão para serem criadas:
não se conhece a revolução dos meios de comunicação, que se tornou
possível pela descoberta e o uso da eletricidade e das ondas, nem a
revolução dos transportes. Nos meados do século X V III, o homem,
para ir de um lugar a outro, tem de caminhar, ou utilizando os seus
pés ou os de sua montaria. É o passo do cavalo ou a velocidade dos
navios à vela que condiciona as comunicações, dá o ritmo à trans­
missão das novidades ou das idéias, dá a medida das distâncias. Com
efeito, ao lado da distância objetiva, a que pode ser apreciada em

20
números., a distância relativa, que varia de acordo com as condições
e as facilidades materiais, é muito mais importante para o relaciona­
mento entre grupos de homens; o essencial não é que 5 000 ou 6 000
quilômetros separam a Europa dos Estados Unidos; é que hoje bas­
tam algumas horas para percorrê-los, enquanto que no fim do século
X V III eram precisos dois bons meses para a ida e a volta da corres­
pondência, das notícias, das instruções diplomáticas. Isso continuará
assim até meados do século XIX. Essa passagem de um longo tempo
para um tempo mais rápido dá a medida da amplitude da transfor­
mação. O navio é mais veloz, razão (e não é esta a única) do pro­
gresso, da superioridade comercial, e muitas vezes política, dos Estados
marítimos sobre os Estados continentais: o mar, muito mais do que
a terra, serve de meio de comunicação.
De certo modo, portanto, o mundo parece aos contemporâneos
de 1750 incomparavelmente maior do que hoje. O mundo, depois, se
encolheu. Podc-se dizer, para caracterizar essa relação entre o
homem e o espaço, entre a humanidade e a terra que ela ocupa, que
o homem então está mais longe do homem. Essa constatação pro­
voca toda sorte dé consequências.
Conseqüências políticas : por causa desse afastamento, é mais
difícil constituir conjuntos políticos duráveis, é mais difícil para os
governantes administrar seus povos. Os impérios muito grandes são
condenados à decomposição. Os continentes não podem dar nasci­
mento a unidades políticas. Os agrupamentos políticos são, portanto,
naturalmente restritos.
No século X V III não se está tão longe do tempo em que os
soberanos, para se fazerem obedecer, tinham de se transformar em
viajantes, indo de província em província para restabelecer a própria
autoridade sobre um feudo turbulento. Na falta do soberano, seus
enviados percorriam o território. Richelieu cria os intendentes, a
princípio itinerantes: pouco a pouco, eles serão comissionados, fixan-
do-se numa jurisdição, ;más, em sua origem, os intendentes da monar­
quia administrativa são os herdeiros dos missi dominici de Carlos
Magno.
No século X V I ainda, embora a França seja um dos primeiros
países nos quais o soberano pôde renunciar a esse exercício itinerante
do poder, os reis iam de residência em residência. Testemunham-no
os lugares de onde são assinadas as ordenanças: muitos dos grandes
textos administrativos do século XVI são conhecidos pelo nome de uma
residência real, nos castelos do Loire ou da região parisiense. Pouco
a pouco, vemos surgir um novo fenômeno: o aparecimento de mo­

21
narquias fixas no espaço, ligadas muitas vezes ao nascimento de
capitais artificiais: a Madrid de Filipe II, a Versailles de Luís XIV,
pouco depois, a São Petersburgo de Pedro, o Grande. O fenômeno
serve apenas para assinalar no mapa o aparecimento de algo novo
na ordem política: a possibilidade de dirigir um país de um ponto
fixo, o aparecimento de uma forma de governo à distância, o governo
de gabinete. O rei dirige seu povo do gabinete. É a substituição de
um governo pessoal, ao pé da letra, que tinha necessidade de con­
tatos diretos de homem para homem, por um governo por corres­
pondência, por um governo à distância, porque o espaço começa
a se encolher, j No século X V III estamos ainda nos pródromos do
fenômeno: os meados do século X V III nao marcam, desse ponto
de vista, uma ruptura, mas uma simples transição dentro de uma
evolução lenta.
Consequências sociais: os indivíduos não se libertam de um
círculo estreito. Vivem num plano restrito: aldeia, paróquia, um
país limitado geograficamente. A maior parte deles nunca ultra­
passou as fronteiras de seu pequeno can tão e ignora o resto do
mundo; estão portanto sujeitos a uma dependência demasiado estrita
dentro desse pequeno agrupamento.
Consequência econômica, a título de exemplo: os mercados são
limitados. As unidades de produção devem bastar a si mesmas.
Trata-sc ainda de uma economia de subsistência, na qual deve-se
produzir quase tudo aquilo de que se tem necessidade, pois não
existe quase nenhum tipo de intercâmbio.
O mundo do século X V III também não conhece a unidade.
As diversas partes do globo ainda não se relacionam umas com as
outras. Elas se ignoram mutuamente; elas ignoram até sua exis­
tência, Pouquíssimos homens têm uma visão de conjunto do planeta.
Os japoneses ou os chineses conhecem bem seus vizinhos, e podem
fazer uma idéia do Extremo Oriente, mas não sabem quase nada
do resto. Mesmo os europeus só têm uma visão ainda fragmentária
e confusa do conjunto da humanidade.
O mundo é como que formado de humanidades separadas. Entre
elas, existe algum intercâmbio, mas limitado e intermitente, ocasional,
â mercê das correntes de circulação. Os mercadores árabes, dentro
do âmbito do Oceano Indico, puseram assim em relação a índia com
a África Oriental e a Malásia. N a África, caravanas ligam regular­
mente os países do Maghreb e a África do Norte. Mas esse intercâm­
bio ainda é muito restrito e não é suficiente para dar uma visão
global do continente africano ou do Oceano Índico,

22
2. As ETAPAS DO RECONHECIMENTO DO MUNDO: DOS GRANDES
d e s c o b r im e n t o s à c o n q u is t a do e s p a ç o - a e p o p é ia g eo g rá fica

Contudo, é preciso constatar que nos meados do século X V III


essa situação está em vias de se modificar, Ê uma conseqüência dos
grandes descobrimentos e do que se lhes seguiu desde o início dos
tempos modernos. Em 1750, estamos, de algum modo, a meio cami­
nho entre a aurora dos tempos modernos e a situação hoje caracte­
rizada pela universalidade, a unicidade, a instantaneidade. O co­
nhecimento da geografia do globo já havia conseguido, em 1750,
grandes progressos, por iniciativa dos ocidentais. Foram os europeus
que começaram a estabelecer um sistema unificado de conhecimento,
por serem os que partiram à descoberta do mundo. A epopéia
geográfica foi escrita por alguns países europeus. Nenhum fato mo­
delou tao poderosamente a fisionomia do mundo de hoje, imprimindo
em todos os países a marca de uma civilização, a que se havia elabo­
rado no extremo ocidental da Europa.
Por que os europeus? Esta é uma das perguntas mais interes­
santes, e também uma das mais difíceis de se responder. Gomo
sempre, nesse domínio, trata-se de um concurso de circunstâncias:
vamos cuidar para não ceder à tentação simplificadora de privilegiar
um tipo de causas em detrimento de outras.
Determinados fatores são intelectuais ou morais : os europeus
tiveram o desejo e conceberam a possibilidade de descobrir o mundo:
curiosidade, vontade de saber, de fazer recuar os limites do mundo
conhecido. Os motivos sao claramente científicos, desde os meados
do século XV, para os portugueses que fazem parte do círculo de
pessoas que convivem com Henrique, o Navegador. A esses motivos
científicos acrescentam-se outros, igualmente desinteressados, de ordem
religiosa: a universalidade do cristianismo, a vontade de levar até
os limites da terra a mensagem evangélica, de acordo com as pala­
vras de Cristo antes de sua Ascensão.
É preciso também mencionar motivos menos desinteressados.
Motivos comerciais: procura de novos caminhos de acesso para as
riquezas da Ásia. Motivos políticos: ânsia de poder das nações,
rivalidade que elas transferem da Europa para regiões exteriores.
Os primeiros países descobridores fazem tudo para conservar o se­
gredo de suas descobertas, até cuidar de sumir com os navegadores
estrangeiros que se aventuram nas mesmas rotas por eles percorridas.
Mas esses diferentes motivos só poderíam levar a descobertas se exis­
tissem meios para tanto.

23
Meios científicos: aperfeiçoamento dos instrumentos de navega­
ção, que permite que se tracem mapas, se assinale, o relevo, pro­
gressos que se ligam aos da astronomia e da hidrografia. O avanço
científico da Europa ocidental é talvez um dos fatores mais deter­
minantes.
Meios técnicos também: o navio é o meio ordinário de explo­
ração. Até a revolução dos meios de transportes no século XIX,
caracterizado pelo uso do vapor nas estradas de ferro, a terra se
presta menos à penetração do que o mar. Por sua extensão, seu
relevo, e também pela hostilidade dos indígenas, o continente opõe
muitas vezes um obstáculo quase intransponível, enquanto que os
mares poem em comunicação as praias opostas. Constatamos o pro­
gresso cronológico dos países marítimos sobre os países continentais.
Depois da prosperidade dos mares fechados, que caracteriza o
fim da Idade Média, mormente os portos italianos, Gênova, Veneza,
os portos do Báltico, produz-se um deslocamento no eixo da atividade
navegadora em benefício da orla marítima da Europa Ocidental.
A princípio é a extremidade sudoeste a península ibérica, o pe­
queno Portugal — que avança ao longo da costa africana, antes de
dobrar o Cabo e de descobrir a índia- depois, é a Espanha que,
de um salto, atravessa o Atlântico. Portugal e Espanha aproveitam
essa anterloridade para construir impérios coloniais que, na escala
da época, levando-se em conta a distância relativa, são de um
tamanho prodigioso.
No século X V III esses impérios já estão em declínio. Esse estado
de coisas foi continuado pela França, a Inglaterra, as Províncias
Unidas e até os países escandinavos. Os suecos, no século X V II,
desembarcaram cm alguns pontos da América do Norte : encontram-
-se ainda hoje, na Pensilvânia, vestígios de estabelecimentos suecos
anteriores à chegada dos ingleses. Antes de se chamar Nova Iorque,
a futura metrópole americana havia se chamado Nova Amsterdã: os
holandeses foram os primeiros a estabelecer ali uma fcitoria.
Muito mais tarde, a Alemanha e a Itália alcançarão o grupo
das potências coloniais, mas só depois de terem realizado sua unifi­
cação política. O fato, tanto para uma como para a outra, de terem
aderido tao tarde à corrida às colônias desviará a orientação de sua
política mundial.
A esses poucos países limita-se a lista daqueles que represen­
taram um papel importante no reconhecimento e na conquista do
mundo. A Rússia também tem seu lugar aí, mas sua expansão é
de outra natureza : ela é continental e age por contigüidade. A

24
Rússia estendeu-se para a Asia por uma espécie de dilataçao de sua
massa territorial própria, e nao, como os países enumerados anterior­
mente, por um salto para além do oceano, rumo a países separados
por milhares de quilômetros.
Esse resumo cronológico inclui um ensinamento. Se existe ante-
rioridade por parte dos europeus, ela não existe por parte de todos
os europeus: avanço da Europa Ocidental, ocasionalmente Central.
Para as relações da Europa e do mundo, capítulo essencial da história
européia, há duas Europas profundamente diferentes : uma repre­
sentou um papel decisivo, enquanto que a outra a esse respeito é
inexistente. Essas duas Europas correspondem a dois tipos de socie­
dades. H á sociedades marítimas — por agora, adotemos essa deno­
minação provisória — que se caracterizam por uma organização mais
diferenciada, notadamente uma burguesia numerosa e ativa, uma
economia na qual o comércio exterior tem um lugar apreciável, e
sociedades continentais quase que exclusivamente terrestres, com uma
economia totalmente agrária. Talvez, prolongando essa distinção até
o plano das formas políticas, seremos levados a descobrir determinadas
relações entre essa dualidade geográfica, esses tipos de sociedades e
os regimes.
E, portanto, por iniciativa da Europa que o mundo é descoberto.
É a Europa que começa a estabelecer laços de um continente a
outro e a dispor essa rede de noções de que nosso mundo unificado
é hoje o herdeiro.
Se da Europa passamos agora aos outros países, e dos países
descobridores aos países descobertos, veremos que esse conhecimento,
naturalmente, começou pelas praias, às quais abordam os navega­
dores, e que essa descoberta não é feita dentro de uma ordem lógica,
de proximidade decrescente : a face da terra oposta à Europa foi
conhecida antes que se tivesse terminado a exploração interior de
regiões mais próximas. Desse modo, o mundo austral, os antípodas,
isto c, a região exatamente oposta à Europa, foram reconhecidos bem
antes da África Central. Ê por volta de 1770-1775 que os navegado­
res, britânicos ou franceses, Cook, La Pérouse, Bougainville, descobrem
os arquipélagos oceânicos, entre os quais Tahiti. Só um século mais
tarde os grandes exploradores, Brazza, Livingstone, Stanley, desco­
briram as fontes do Zambese ou a bacia interior do Congo.
Nos meados do século X V III ainda subsistem enigmas, grandes
lacunas, representadas nos mapas da época por meio de manchas
brancas ou pela legenda: terra incógnita. Varios problemas ■ator­
mentam a imaginação dos geógrafos, entre outros o das *'‘passagens” :
passagem do Nordeste, ou do Noroeste, que deveriam permitir que
se fosse por mar do Atlántico setentrional ao Pacífico, pelo norte do
continente europeu e asiático ou pelo norte do continente americano.
O pretexto de Chateaubriand para sua viagem à América em 1791 é
descobrir a passagem do Noroeste. Outro enigma: a nascente dos
principais rios, americanos ou africanos. Quer se tratasse do' Nilo,
do Congo, do Niger ou do Zambese, ou do Amazonas, conhecem-se as
embocaduras, às vezes trechos de seu curso interior, mas sem que
se possa estabelecer-lhe o traçado completo. É no século X IX que os
exploradores resolverão pouco a pouco esses vários enigmas.
Essa descoberta progressiva também é um capítulo da história
geral, que toca de perto a história intelectual e política da humani­
dade, mas ainda mais a história intelectual, porque dá a medida
do progresso do conhecimento, e a história política, pois que à explo­
ração segue-se a colonização.
A segunda metade do século X V III constitui uma etapa decisiva
dessa história. Em alguns decênios a situação se modifica por com­
pleto. A curiosidade científica é viva: ela é um dos componentes
do movimento intelectual. Paralelamente, as técnicas progridem e
proporcionam aos homens meios mais rápidos, mais aperfeiçoados,
mais eficazes para satisfazer-lhes a curiosidade. Todos os tipos de
expedições esmeram-se por arrancar da terra os segredos que ela
ainda guarda. A face oculta da terra, o avesso do mundo conhecido,
o Pacífico, os arquipélagos excitam particularmente a curiosidade.
Diversas expedições partem à procura do continente austral, que se
supunha fazer contrapeso à massa das terras emersas do hemisfério
norte. Às vésperas da Revolução, o relacionamento entre as partes
conhecidas do globo e as partes desconhecidas não é mais o que era
em 1750.
No ponto de junção entre os dois séculos (1798), a expedição
militar do Egito constitui, ao mesmo tempo, uma verdadeira expe­
dição científica, que constitui um modelo de pesquisa. Se a expedição
do Egito nao chega a modificar nosso conhecimento da geografia —
o Egito já era conhecido — ela revela outra dimensão: o passado
da humanidade. A humanidade começou a reencontrar seu passado
com a descoberta imprevista das riquezas enterradas em Pompéia e
Herculanum. Esta é outra etapa da pesquisa do espírito humano de
dois séculos para cá: a volta às fontes de sua história. Entre 1750
e 1974 o homem tomou a medida de seu domínio espacial; hoje,
conhecemos melhor o passado da humanidade do que há dois
séculos, e descobrimos uma porção de civilizações desaparecidas.

26
No século X IX , a exploração por via terrestre toma o lugar da
exploração marítima, ou a completa, e os exploradores, partindo
de lugares conhecidos, penetram pelo interior das terras e tentam
reconstituir o puzzle. As conseqüências políticas, sociais, demográfi­
cas e econômicas dessas descobertas serão relatadas mais adiante. Na
América do Norte, é o impulso para o oeste: Jefferson, logo após a
compra da Luisiânia ( 1 8 0 3 ) , manda uma expedição rumo às Mon­
tanhas Rochosas: subida do vale do Missouri, descoberta das M onta­
nhas Rochosas, da Califórnia e junção entre o Este e o Oeste dos
Estados Unidos nos meados do século XIX . , Na Ásia Central, o
avanço é feito por iniciativa dos russos, mas é na Africa que o pro­
gresso é mais sensível. No início do século X IX , conhece-se, quando
muito, um décimo do continente. No início do século XX, poucas
regiões continuam inexploradas. Expedições polares, compreendendo
ingleses, americanos, noruegueses, investem sobre os dois pólos, o
Pólo Norte, em 1 9 0 9 ; o Pólo Sul, em 1911. Pode-se dizer, às vésperas
do conflito mundial, que a humanidade adquiriu um conhecimento
quase total do globo.

3. C o m e ç a o t e m p o do m u n d o acabado

A experiência é recente: apenas duas gerações passaram por ela.


Só então é que começa o que Valéry chamou de “tempo do mundo
acabado” num ensaio sugestivo escrito por essa época e incluido em
Regards sur le monde actuel. Entenda-se o “acabado” em seus dois
sentidos: ele está acabado, mas, ao mesmo tempo, limitado. Até
então, havia mais lugar do que a humanidade podería ocupar. Hoje
ela atinge seus limites em todas as direções. Agora, o mundo conhe­
cido coincide com o mundo inteiro. Nao há mais divórci© entre o
mundo objetivo tal como existia e o mundo tal como a humanidade
o conhecia.
Logo, o homem vai se sentir confinado, embora subsistam imen­
sos espaços a conquistar e a organizar. A humanidade, considerada
como um todo, encontra-se na mesma situação que o homem do
campo dos países que sofrem a escassez de terras, quando seu número
é muito grande para as terras disponíveis.
O total acabamento da descoberta do mundo é um dos ele­
mentos que concorrem para a exasperação das rivalidades entre as
nações e para o nascimento do imperialismo. As grandes potências
disputam entre si os restos ainda não atribuídos com muito mais
dureza, por se tratar dos últimos. As potências colonizadoras retar­

27
datáriaS; a Itália e a Alemanha, sao duplamente estimuladas. Nao
existe simples coincidencia entre o fim da exploração e o aparecimento
dos conflitos mundiais. Toda uma série de problemas irá .surgindo,
pouco a pouco, e nós começamos a pressenti-los: escassez de terras;
para as cidades, o abastecimento de água, de ar, problemas todos
que irão constituir o quinhão da humanidade de amanhã. '
No entanto, se a humanidade alcançou as extremidades da terra,
a história dos descobrimentos, contudo, ainda não está encerrada: na
própria superfície da terra subsistem enigmas, Há, sobretudo, a
terceira dimensão; a vertical. Não poderemos captar devidamente
o sentido histórico das descobertas mais recentes, se não as colocar­
mos dentro de uma ampla perspectiva, que as apresenta como o
capítulo mais recente de uma história que começou com a da huma­
nidade. Terceira dimensão: tanto a conquista dos picos montanho­
sos como a das profundezas dos mares, e mais ainda a conquista do
espaço. A conquista dos espaços interestelares é o prolongamento
da epopéia geográfica empreendida há séculos. O homem, depois de
dar a volta à terra, transporta para fora do planeta sua vontade
de conhecer, sua curiosidade e os meios técnicos que ele soube forjar.
Fui além do século X V III para restabelecer a perspectiva. Evi­
dentemente, ainda não estamos aí em 1750: a humanidade não
existe ainda como unidade. Existem apenas humanidades separadas
e descontínuas. O mundo apresenta-se então como uma justaposição
de sociedades estranhas umas às outras. Elas estão mais separadas do
que atualmente, por falta de meios de comunicação ou de informação;
seguem caminhos paralelos e se ignoram. Os franceses, por exemplo,
não sabem quase nada dos japoneses, e vice-versa. Mas, em contra­
partida, essas sociedades são menos dessemelhantes cm relação umas
às outras do que atualmente: entre uma e outra, existem grandes
analogias, e as semelhanças superam as diferenças. A humanidade
ainda não se comprometeu por caminhos divergentes. Hoje, entre
as sociedades mais desenvolvidas e as menos desenvolvidas cavam-se
abismos capazes de desencorajar os esforços dos que se empenham em
diminuí-los. No século X V III, não existe tanta diferença entre o
nível e o modo de vida das civilizações mais requintadas e os dos
países mais primitivos. Eles têm em comum os laços com a terra,
uma economia essencialmente fundiária; a sociedade ainda está ba­
seada no ritmo natural e na exploração do solo.
2

O POVOAMENTO

1. A D IM E N S Ã O G E O G R Á F IC A

Acabamos de falar da humanidade, até mesmo de diversas hu­


manidades. Numericamente, que representam elas? Qual é, em 1750,
o efetivo global e de que modo os homens se acomodam no espaço?
Depois da dimensão geográfica, a dimensão demográfica. Faz pouco
tempo que ela é estudada em si mesma e que historiadores ou soció­
logos passaram a dar ao fator demográfico a importância que lhe é
devida. Trata-se, contudo, de um dado essencial, que comanda de
modo bastante amplo os demais. Não sc pode fazer um estudo objetivo
da evolução política e das relações entre os países, sem levar em
conta o número. Trata-se da base de muitas outras coisas. Para os
Estados, o poderio numérico é a condição sem a qual os mais amplos
projetos são destinados ao fracasso. A evolução demográfica de uma
sociedade incide sobre os outros aspectos de sua vida, positivos ou
negativos. Do mesmo modo, nossa descrição da Europa e do mundo
às vésperas da Revolução seria incompleta se nao soubéssemos quantos
seres humanos ela contava então e de que modo eles se distribuíam
entre as unidades territoriais.
Se a pergunta é fundamental, a resposta é incerta. Os dados dc
que dispomos são fragmentários. Mal sabemos o número dos homens,
e os contemporâneos sabiam menos ainda. Por mais surpreendente
que isso possa parecer, estamos multo mais bem informados a respeito
do que os contemporâneos. Nosso conhecimento retrospectivo pro­
grediu. Ê nessa época que começa a despertar o interesse pela de­
mografía. Até então, os governantes quase não se tínham preocupado
em contar seus administrados. Ê então que se começa a conceber
o homem como um fator de riqueza para a economia, de poder para o

29
Estado. Os soberanos dao inicio a urna política de imigração. Pro­
curam também conhecer o número de seus súditos. Paralelamente
a essas considerações interesseiras, a curiosidade científica suscita os
estudos da população: a ciência demográfica nasce no século X V III.
Este é outro aspecto do progresso científico, da mesma importância
que a geografia, a astronomia, a hidrografia: as ciências sociais co­
nhecem seu primeiro impulso. É da segunda metade do século
X V III que datam muitos de nossos métodos demográficos; é igual­
mente nessa época que alguns demógrafos colocam os problemas
que, ainda hoje, preocupam a consciência coletiva com o famoso
ensaio de Malthus sobre a população, em 1798.
Ao mesmo tempo que surge esse interesse, vão-se organizando
os métodos de pesquisa; como para as descobertas, encontramos a
interação entre o desejo e as possibilidades, os móveis e os meios.
Até então, os métodos de investigação eram raros e cheios de defeitos.
Nessa época nao existia nenhuma operação comparável a nossos
modernos recenseamentos : nenhum Estado empreendeu — e a for-
úori não o faz regularmente — essa espécie de recenseamento siste­
mático, e isto por diversas razoes de ordem psicológica e prática.
Com efeito, toda operação estatística suscita uma animosidade com­
parável à que as investigações fiscais ou econômicas podem hoje em
dia provocar entre os comerciantes ou entre os industriais: associada
à cobrança de impostos ou ao recrutamento militar, a operação é
impopular. Enfim, a administração não está aparelhada para levar
a cabo essa tarefa.
Os contemporâneos estão, portanto, reduzidos ao uso de meios
indiretos. Ê por subterfúgios e meios indiretos que se chega a cál­
culos aproximados. Os processos são diversos. Um consiste em
extrapolar a partir dos movimentos de população, isto é, das cifras
anuais de nascimentos e mortes, levando em conta o que se julga ser
a duração média da vida, calcula-se qual possa ser a população global
do país cm foco. Outro método consiste em contar os fogos, isto é, as
casas, e em multiplicar esse número por um coeficiente — a média
do número suposto de pessoas que moram na mesma casa.
Desse modo os contemporâneos, e não apenas os curiosos da
estatística ou os apaixonados pela demografia, mas também as admi­
nistrações, os governos, não sabem o número de habitantes da França,
da Inglaterra ou da Espanha. Imaginem o que isso pode significar: os
governos, mesmo os mais absolutos, aqueles cuja legitimidade não
é contestada por ninguém, estão menos aparelhados na sua atividade
de todos os dias do que os governos mais fracos do século XX. Eles
-ignoram, com exceção de alguns milhões,, qual. possa ser o numero
de seus súditos, passíveis de pagar impostos e de serem convocados às
armas. Os soberanos mais absolutos desconhecem o número daqueles
sobre os quais se estende essa soberania. Sua situação é análoga à
dos Estados hoje menos desenvolvidos, que. nunca fizeram um recen-
seamen to e não têm administração que os dirija. Isso acontecia
então tanto com a França ou a Espanha, como com a China de
alguns anos atrás: quando não se sabia, à exceção de uns 100 mi­
lhões, o número dos chineses.
Os dados que temos, portanto, sao frágeis. E ainda a situação
que acabo de apontar é ; a dos países policiados. Que dizer das
regiões da África Central ou da América Latina? Contudo, seja
qual for a fragilidade dessas estimativas, elas nos dão uma idéia do
que são, por volta de 1750, o povoamento humano e sua distri­
buição. Vejamos o resultado dessas contagens, tomando o cuidado
dessas reservas de método e de documentação. Podemos tirar daí
alguns ensinamentos.

2. Á POPULAÇÃO E SEU C R E S C IM E N T O

Avalia-se o efetivo total dos seres humanos, em 1750, por volta


de 700 milhões. Sendo as cifras, por si mesmas, desprovidas de
significado, é bom aproximá-las do atual efetivo da população mun­
dial. As últimas estatísticas, publicadas pela Organização das Nações
Unidas, falam em cerca de 3 bilhões e 600 milhões. Desse modo, em
pouco mais de duzentos anos, a população do mundo quintuplicou.
Essa informação lhes dá a medida da mudança que ocorreu e justi­
fica a expressão “revolução demográfica”.
O crescimento não foi nem regular nem constante. A curva,
pouco a pouco, se levanta, aproximando-se da vertical. Eis alguns
piques, com espaços de 50 em 50 anos:
1750 cerca de 700 milhões
1800 800 milhões
1850 1 bilhão e 100 milhões
1900 1 bilhão e 540 milhões
1950 2 bilhões e 509 milhões
1970 3 bilhões e 600 milhões

De 1950 a 1970 a população mundial aumentou de mais de


ura bilhão. Esse crescimento em vinte anos é vertiginoso: ele sozi­
nho ultrapassa a população mundial de 1750.

3 n
As causas dessa evolução demográfica são múltiplas; algumas
se ligam à diminuição da mortalidade,, devida ao progresso da higiene;
outras às modificações de estrutura da economia e da sociedade —
e teremos ocasião de evocar pormenorizadamente alguns desses gran­
des fatos ligados à revolução demográfica. Em primeiro lugar, ‘f
convém assinalar a importância do fenômeno. Trata-se de ura dos é
fatos humanos mais importantes e mais cheio de consequências. Os
efeitos dessa revolução demográfica são inúmeros e podem ser apon-
tados como a origem de todos os nossos problemas contemporâneos, l
M-
'i-
i-
3. A D IS T R IB U IÇ Ã O ENTRE OS C O N T IN E N T E S I

Em 1750, a distribuição da população é muito desigual. Ao


lado de regiões muito povoadas, há outras quase que sem homens. f:
Além do mais, a partir de meados do século X V III, o crescimento í
não ocorreu no mesmo ritmo em todos os continentes; iremos encon- ;v
trar discordancias na expansão demográfica. í
A dissimetria é muito acentuada entre o Velho Mundo — Eu- í
ropa, Ásia, África — e o Novo Mundo — a América — pratica- f
mente vazia. Pensa-se que em 1750 não havia mais do que 12 f
milhões de homens em todo o continente americano (em 1800, essa l
cifra se aproxima dos 18 milhões), ou seja, 2% da população mundial. |
Mesmo esses poucos milhões são distribuídos de modo desigual. |
Ê a América do Sul que sobressai, com os três quartos da população
do continente vivendo ao sul do istmo do Panamá, nos impérios
coloniais espanhol e português. População das mais disparatadas, ì
porque compreende ao mesmo tempo os descendentes dos autóctones
estabelecidos nos platos da cordilheira dos Andes e no México, e os ,
herdeiros dos conquistadores, que constituem uma estrutura colonial
na qual as estratificaçÕes sociais coincidem com as diferenças de
raças: à população indígena sobrepõe-se a dos dominadores.
Na América do Norte, os índios são pouco numerosos: é pro­
vável que eles nunca chegassem a mais de 1 milhão, em todo o
espaço hoje ocupado pelos Estados Unidos e o Canadá. O núcleo
de descendência francesa é pouco numeroso; quando a França tem de
ceder o Canadá e a Luísiânia (1763), avalia-se em 60 000 o número .
dos canadenses franceses. O resto é muito heterogêneo, originário 1
da Inglaterra, da Suécia, da Dinamarca ou das Províncias Unidas.
Em 1750, conta-se cerca de 1 milhão de colonos, nas 13 colônias
que dependem da coroa da Inglaterra. |
Da Oceania quase nada se sabe. Em 1750, ela acabava de ser
descoberta. Um ponto de interrogação diante de uma cifra que não
indica mais do que uma ordem de grandeza: talvez 1 milhão de
indígenas.
A quase totalidade da população mundial, portanto, está con­
centrada na Europa, na Ásia e na África. O homem ainda está longe
de ocupar todos os seus domínios ; imensos espaços esperam ser con­
quistados e habitados.
A distribuição pelo interior do Velho Mundo é também das mais
desiguais. Da África, sabe-se pouca coisa. Mostram-nos números,
mas riao temos nenhum meio de verificá-los. Fala-se de 100 milhões
em 1800, levando-se em conta a parte mais povoada da África, a
África branca, a do Maghreb e do Egito, a África das cidades. Mas
é preciso lembrar que em 1750 a população da África negra, de
dois séculos e meio para cá, diminuiu, por causa do tráfico, que
provoca uma hemorragia demográfica; esse fato teve consequências
incalculáveis. Trata-se do primeiro grande movimento migratório
da história moderna. 10 ou 15 milhões de africanos, talvez, foram
arrancados de seu continente e deportados para a América. Primeiro
lado do triângulo: os navios partem das costas atlânticas carregados
de miçangas, com as quais os negociantes compram os escravos.
Segundo lado: o encaminhamento até os portos do Novo Mundo,
onde os escravos são vendidos. Terceiro lado: graças ao produto
da venda, os navios voltam à França e à Inglaterra carregados de
rum, de açúcar e de tabaco. Trata-se de um elemento essencial
da prosperidade dos grandes portos franceses e britânicos. O luxo,
o esplendor arquitetural de Bordéus, ou de Nantes, repousam em
parte sobre o comércio da “madeira de ébano”. O tráfico se pro­
longará até o século XIX, embora seja objeto de interdições. Os
plenipotenciáríos reunidos em Veneza em 1815 decidirão pela proi­
bição do tráfico, e é para fazer respeitar essa decisão que a França
e a Inglaterra darão a si próprias o direito de vìsita, fonte de diversos
conflitos diplomáticos e de agitação entre a opinião pública.
Se o tráfico acaba de se extinguir no século XIX, suas conse-
qüências lhe sobreviverão nos três continentes interessados, Se,
para a Europa, ele constituiu uma fonte de riqueza, para a África
essa hemorragia é a origem da penúria de homens de que sofre
ainda hoje a economia de vários Estados da África Central. O
tráfico desorganizou o intercâmbio, abalou os fundamentos das so­
ciedades africanas, provocou a fuga, para o interior, das populações
litorâneas. Para a América, esta é a origem do problema negro, sob

33
varias formas : a escravidão, até a guerra da Secessão e, após a
abolição da escravatura, .em 1863, suas sequelas, com a segregação
e a integração raciais; o problema 6 um peso incômodo que recai
sobre a vida política dos Estados Unidos.
A Ásia é o mais povoado de todos os continentes. É mais do
que todos os outros reunidos: 450 milhões sobre 700, ou seja, quase
dois terços. Em outras palavras, de cada 2 homens, 1 habita a Ásia.
Isso ainda é verdade nos dias de hoje, embora em menores proporções.
Em 1962, o anuário das Nações Unidas indicava, para o continente asiá­
tico, 1 bilhão e 764 milhões, ou seja, pouco mais de 56%. A proporção,
portanto, passou, em dois séculos, em relação à Ásia, de 64% para
56%. Os dois países mais povoados do mundo são países asiáticos:
a China com, sem dúvida, 800 milhões, e a Índia, com cerca de 600
milhões. Hoje, só a índia tem mais habitantes que toda a Ásia de
dois séculos atrás.
Nós captamos, através dessas cifras, um traço constante da
história demográfica: esse predomínio maciço da Ásia, que faz dela
o grande reservatório da humanidade. Não existe no mundo nada
comparável às suas multidões, àqueles formigueiros, rurais ou urba­
nos. 4 das 6 maiores aglomerações atuais são cidades da Ásia:
Tóquio, a primeira de todas; Changai, a terceira; Bombaim e Pe­
quim, em quinto e sexto lugares. Só Nova Iorque e Londres podem
rivalizar com essas cidades. Desse modo, tanto no que respeita à
população global quanto no tocante à aglomeração em centros urba­
nos, a Ásia detém a supremacia.
Essa população é distribuída de um modo muito irregular na
superfície do continente asiático. Imensos espaços continuam abso­
lutamente desertos. A população se agrupa na orla do continente,
desenhando uma espécie de guirlanda, com a Índia, a península
indo-chinesa, a China e o arquipélago japonês.
Em 1750, essas massas quase não pesam na balança das forças
políticas, embora esses países tenharn civilizações antigas, requintadas,
superiores, por vezes, às da Europa.
A Europa é bem menos povoada do que a Ásia, mais do que a
África, muito mais do que a América. Calcula-se em cerca de 140
milhões o número dos europeus em 1750. 140 milhões sobre um
total de 700 milhões, ou seja, um quinto: de cada 3 homens, 2 vivem
na Ásia; podemos acrescentar, de cada 5 homens, 1 é europeu. Se a
Europa vem assim em segundo lugar, muito atrás da Ásia, ela toma-
-Ihe a dianteira pela densidade.

34
A relação de densidade dá à Europa uma primazia que nenhum
continente lhe pode disputar: a Europa tem as taxas mais elevadas
e podemos pensar que entre essa densidade e a expansão da Europa
há mais do que uma simples coincidência. É bem plausível que os
europeus tenham encontrado nessa densidade uma das molas de sua
expansão pela superfície do globo. No século X V III, a Europa,
mais do que a Ásia, é uma reserva ilimitada de homens. Ê na Euro­
pa que os grandes movimentos migratórios, da humanidade encontrarão
seu ponto de partida no século X IX : cerca de 60 milhões de europeus
se expatriarão. No século X V III, o movimento era mais limitado e
ainda nao afetava senão algumas centenas de milhares de indivíduos.
Recordemos as cifras : 60 000 canadenses de origem. francesa às m ar­
gens do Saint-Laurent; 1 milhão de colonos para as . 13 colônias da
Inglaterra.
O grande movimento de emigração se desencadeará depois das
guerras da Revolução e do Império, tomando proporções considerá­
veis. Contudo, ele nao impediu o crescimento muito rápido da po­
pulação da Europa, apesar do deficit causado pela saída de 60 milhões
de europeus, e a “falta de trabalho” de sua descendência. Sem dú­
vida, o crescimento da Europa em dois séculos foi menor que o da
América (que passou de 12 ou 15 milhões para 440), mas foi superior
ao da Ásia, chegando a quadruplicar.
Tais sao os totais brutos, distribuídos em grandes massas. Nosso
planisfério começa a se animar; já podemos dispor nele fragmentos
de humanidade, cifras ponderadas de acordo com a extensão do
território.
Esses fragmentos da humanidade continuam separados, o po­
voamento continua desigual, descontínuo, fracionado. Há núcleos
densos, separados uns dos outros, e que se ignoram: eles não têm
sequer a possibilidade de se relacionar, em vista da mobilidade muito
reduzida de que dispõem então os agrupamentos humanos. Essa
descontinuidade concorre para manter uma grande diversidade nas
condições de vida, na mentalidade, na civilização.

4. O m u n d o : ao m esm o tem po po v o a d o e su ferpò v o ad o

Comparando, o inundo de 1750 deve parecer-nos muito pouco


povoado: 700 milhões contra os 3 bilhões e meio atuais. O universo
está subpovoado e, contudo, em 1750, em alguns lugares, ele já está
superpovoado. Aos contemporâneos, parece até que ele atingiu os
limites do superpovoamento, É que a própria noção de superpopu-

35
lação é relativa: ela é o resultado momentâneo de uma relação cujos
termos variam continuamente, entre o número de homens e sua
possibilidade de existência. Ora, essas possibilidades de existência,
—. a subsistencia e o trabalho — nao podem ser definidas de modo
absoluto: elas se modificam. Sem dúvida, atualmente, por causa do
destaque dado ao problema da fome, temos a tendência de privilegiar
o primeiro em detrimento do segundo. Há quarenta anos, por causa
da grande crise econômica e da gravidade da falta de emprego,
dar-se-ia menos atenção ao problema dos meios de subsistência e mais
ao do emprego ou do subemprego. Na verdade, é preciso levar em
conta esses dois aspectos.

Os meios de subsistência
Na economia do Antigo Regime, a capacidade de um país
alimentar sua população é severamente limitada pelo volume dos
recursos alimentares. Seja qual for o seu grau de desenvolvimento,
todos os países estão sujeitos à mesma lei ; só posteriormente é que
irá aparecer uma diferença, para depois se consolidar, entre economias
doravante libertas da dependência em relação ao problema dos meios
de subsistência e os dois terços da humanidade que, ainda hoje,
conhecem o problema da fome, como toda a humanidade poderia
conhecê-lo há 200 anos.
Em 1750, portanto, o volume da produção está limitado por
dificuldades aparentemente inexoráveis, Este é um dado determi­ ?
nante do regime demográfico em todas as sociedades do Antigo Regime:
todas elas vivem obcecadas pela penúria, da qual nenhuma ainda
conseguiu escapar. Durante a Revolução, esse 6 um dos compo­
nentes das jornadas revolucionárias: o abastecimento irregular, a
inquietação do povo parisiense, a queda brusca dos estoques desen­
cadeiam ímpetos insurrecionais, e a concordância entre o calendário
das dificuldades de abastecimento e o das peripécias revolucionárias
é surpreendente. N a França, isso acontecerá até a vigília da revolução
de 1848. Só na segunda metade do século X IX é que se pode afir­
mar que a França está ao abrigo desse temor, exceção feita, é claro,
de circunstâncias excepcionais, ligadas à guerra, à derrota e à ocupação
estrangeira, como em 1940-44.
Assim, até meados do século XIX , para a França, um pouco
antes para a Inglaterra, muito mais tarde para o resto do continente
europeu, mas hoje ainda para a maioria dos outros continentes, a
vida da população, suas possibilidades de crescimento demográfico
são comandadas, ritmadas pela produção de cereais, entre outros.

■I 36
Fica-se à mercê de más colheitas, das intempéries, de um verão
chuvoso ou de um inverno tardio; exemplo clássico, o da Irlanda
em 1846, onde a fome faz morrer meio milhão de irlandeses, conde­
nando meio milhão de outros a emigrar. É ao preço dessa diminuição
brutal que os que ficam podem subsistir. Compreende-se, graças ao
caso extremo desse país exclusivamente agrícola, a fatalidade dos
processos atmosféricos que marcam o ritmo da capacidade da agri­
cultura e, consequentemente, do montante da população.
No século X V III, em alguns pontos privilegiados, os homens
começam a se libertar dessa dependência. A revolução agrícola, os
progressos da agronomia, a descoberta, pelos ingleses, da possibilidade
de integrar a criação do gado à agricultura, a supressão do alqueive
e, ao mesmo tempo, a reconquista do terço do solo abrem perspec­
tivas imprevistas à esperança.

Os empregos
Nao basta haver comida para todos. Ê preciso ainda que os que
não possuem terras possam ganhar a vida, possam proporcionar a si
mesmos os poucos recursos necessários à alimentação. Ora, sob
o Antigo Regime, a situação, na maior parte dos países europeus,
caracteriza-se por um excedente de mão-de-obra. A revolução demo­
gráfica precedeu a revolução industrial; em outras palavras, o au­
mento da população ultrapassou as possibilidades de emprego. Toda
uma população de indigentes está sobrando e espera trabalho.
Correndo o risco de repetir até a sacíedade essa espécie de
comparação — mas só ela pode fazer com que não projetemos sobre
a França e a Inglaterra do século X V III as realidades de hoje —,
esses dois países conhecem nessa época uma situação análoga à da
Itália meridional, que dispõe de um excedente de mão-de-obra, onde
as economias industriais da Europa do Norte têm a felicidade de se
abastecer para atender à sua necessidade de trabalhadores. Essas
sociedades estão embaraçadas com o excesso de população: vagabun­
dos, indigentes, que vão de aldeia em aldeia, ou se aglomeram,
amontoados, nos arrabaldes, O que às vezes chamamos de quarto
estado é constituído desses andarilhos, que somam alguns milhões.
Um quarto ou um quinto da população de Paris é formado por eles.
Em outros países, aqueles em que a ordem pública não está assegurada
de modo tão eficaz, como nas monarquias absolutas, essa massa de
trabalhadores sem emprego alimenta o banditismo; os salteadores
são conseqüência da falta de emprego, na Itália, nos Estados da
Igreja, no reino de Nápoles (na Calábria), na Grécia, na Espanha.
Será- preciso esperar a revolução industrial e seus efeitos para
que, pelo menos na Europa, se reabsorva pouco a pouco o excedente
da população; mas todos os países ditos em vias de desenvolvimento
conhecem esse problema, quer se trate da África ou da América
Latina; esses grupos pobres, amontoados nos arrabaldes, nos cortiços,
nas favelas, são os irmãos dos vagabundos, dos andarilhos, da Europa
Ocidental de meados do século X V III.

38
3

A ORGANIZAÇÃO SOGIAL DO
ANTIGO REGIM E

Até agora, sucessivamente, consideramos o espaço sem o homem;


depois, contamos, recenseamos, distribuímos o homem nesse espaço.
Mas os homens nao sao individualidades isoladas: eles fazem parte
de grupos, vivem em sociedade. E preciso, portanto, situar esses
homens nas coletividades políticas e sociais por eles constituídas.
Esse terceiro ponto de vista nos reterá por mais tempo do que os dois
precedentes, porque faz parte do próprio corpo de nosso estudo.

1. Os P R I N C Í P IO S D E T O D A O R G A N IZ A Ç Ã O S O C IA L

Os homens são tomados num conjunto de relações sociais que


derivam de seu habitat, de seu estado profissionai, da natureza de
sua atividade e também dos conceitos inspiradores da sociedade. Eles
se associam em pirâmides de grupos superpostos, enquadrados dentro
de sistemas sociais.
Toda sociedade é diferenciada: essa proposição nao vale apenas
para as sociedades do Antigo Regime, mas também para as sociedades
anteriores ou para as sociedades contemporâneas, Não existe socie­
dade uniforme, no interior da qual os indivíduos sejam absoluta­
mente passíveis de troca. Toda sociedade se decompõe — e se
organiza — num número mais ou menos elevado de grupos interme­
diários entre a poeira dos indivíduos e a sociedade global. Isso
acontece por motivos práticos: mesmo sem justificativa, essa diferen­
ciação será imposta às sociedades por necessidades materiais, as que
decorrem da distribuição das tarefas, da velha lei da divisão do tra­
balho, que se aplica a toda sociedade. Mesmo nas sociedades primiti­
vas existe diferença entre os que têm por função cuidar da segurança

39
do grupo, e que combatem, e os que, ao abrigo da proteção assim
assegurada, trabalham para cuidar da subsistência.
Essa distinção dá origem a outras, nos hábitos de vida, nos costu­
mes, nos códigos. A interdição de trabalhar feita aos nobres e que
tinha como castigo a desqualificação para os que a infringiam, é
conseqüência e efeito jurídico dessa distinção. À diferenciação das
funções, imposta por necessidades de ordem prática, acrescentam-se
outras, de consideração, de estatuto jurídico, provenientes das idéias
em vigor, da concepção que as pessoas fazem das relações sociais,
dos sistemas de valores, morais e sociais. É, por exemplo, a idéia
de que o serviço de Deus deve preceder todas as atividades terrenas
que justifica a preeminencia do clero sobre as duas outras ordens na
sociedade do Antigo Regime. Trata-se de uma diferenciação de fun­
ção, mas legitimada por um conceito de relações entre o espiritual
e o temporal. Do mesmo modo, o preconceito que consagra maior
estima à atividade do espírito do que às atividades manuais é origem
da hierarquia social, que coloca as profissões liberais, as “artes libe­
rais”, acima das chamadas “artes mecânicas”, confiadas a uma mão-
-de-obra muitas vezes servil.
Desse modo, a organização social é a resultante de, pelo menos,
dois tipos de fatores: uns, técnicos e econômicos (divisão do trabalho,
distribuição das tarefas, especialização profissional), outros culturais,
intelectuais, ideológicos, filosóficos. A sociedade soviética contempo­
rânea, por motivos tanto ideológicos quanto materiais, coloca, na
escala dos salários, os intelectuais ou os técnicos acima de qualquer
outra categoria.
A sociedade do Antigo Regime, como toda sociedade, ê a expres­
são dessas duas ordens de fatores. Eu disse: a sociedade do Antigo
Regime. Para dizer a verdade, a expressão é inexata, porque não
existe propriamente uma sociedade do Antigo Regime, tanto quanto
hoje não poderiamos falar de uma sociedade do século XX. Desafio
quem quer que seja a propor uma descrição válida para todas as
sociedades de que se compõe o mundo de 1974. Sociedade do
século X V III, ou sociedade do século XX, são abstrações por sim­
plificação. De um modo geral, existem motivos para se desconfiar
quando se fala em realidade, social ou política, no singular: o número
ordinário da história e da realidade social é o plural. Ê, portanto,
das sociedades do Antigo Regime que convém falar, mesmo se, entre
uma e outra, existem certas analogias c traços comuns.
Não vou passar todas elas em revista, por causa de sua própria
diversidade. Em essência, esboçarei os traços principais da sociedade

40
européia do Antigo Regime. Vários desses traços valem, aliás, para
as outras sociedades, que encontraremos mais tarde, quando estu­
darmos as relações estabelecidas entre a Europa e os demais con­
tinentes.
2. As A T IV ID A D E S P R O F I S S IO N A I S

Alguns caracteres dominantes definem as sociedades da Europa


do Antigo Regime e permitem traçar um inventário das atividades.

A S O C IE D A D E R U R A L

Para começar, é preciso sublinhar a esmagadora predominância


da sociedade rural sobre a sociedade urbana.
Isso é ainda verdade em 1789 para todos os países do mundo.
Não poderiamos afirmar o mesmo em relação aos dias de hoje,
quando seria possível estabelecer uma classificação das sociedades
contemporâneas, em função das que têm predominância urbana e
daquelas nas quais persiste a predominância rural. Esse princípio
de classificação não seria de nenhuma utilidade para nós no que se
relaciona com a sociedade do Antigo Regime, porque em todos os
países, sem nenhuma exceção, a sociedade rural predomina. Mesmo
os países mais avançados economicamente, os mais evoluídos social­
mente, a Inglaterra, as Províncias Unidas, a Itália do Norte, têm
ainda uma forte maioria rural. N a França de 1789, numa população
global que pode ser calculada em 26 ou 27 milhões de habitantes,
mais de 20 milhões vivem no campo; em outros países, essa porcen­
tagem não se limita aos 80%, mas sobe a 85, 90, 95%.
A superioridade do campo sobre a cidade se estende a todos os
aspectos da vida social. Ela vale não só para a distribuição dos
homens, mas também no tocante à renda nacional: em 1780, a
renda dos campos representa ainda quase três quartos da renda
nacional total. Também para os investimentos (exceção feita, talvez
das cidades hanseáticas, das Províncias Unidas, de uma parte da
Inglaterra e de alguns portos), a forma comum da aplicação do
capital é a terra. Não que a renda agrícola — a renda proporcionada
pela posse ou exploração da terra — assegure benefícios superiores
aos outros investimentos, muito pelo contrário: a renda dos capitais
aplicados no comércio, interno ou externo, é infinitamente mais
compensadora. Se a burguesia francesa aplica regularmente seus
rendimentos na terra, é porque, primeiramente, ela encontra aí mais
segurança; a esse respeito, a experiência infeliz feita no início da

41
Regência, com o sistema de Law, nao foi capaz de encorajar os
investimentos agrícolas. As razões essenciais desse apego são da alçada
da psicologia coletiva: numa sociedade dominada pelos valores rurais,
só a propriedade da terra proporciona consideração, só ela enobrece.
É a terra a origem da ascensão social
Sociedade rural não é sinônimo de população agrícola. Essa
distinção é importante: a população agrícola é a que vive diretamente
do trabalho na terra, que a cultiva, que tira dela os meios de subsis­
tência. Essa sociedade comporta uma hierarquia de posições. No
ponto mais alto estão os proprietários que a exploram, aqueles que,
na sociedade rural da França do Antigo Regime eram chamados de
trabalhadores, que possuem bens suficientes para não terem neces­
sidade de arrendar terras pertencentes a outros. No ponto mais
baixo da escala, os que trabalham a terra sem a possuir.
Entre a propriedade da terra e o trabalho da terra, as relações
podem ser diversas e revestir-se de múltiplas formas, que ora se
confundem, ora se dissociam, de acordo com as regiões da Europa.
Os regimes que definem essas relações dependem, por um lado, de
fatores propriamente econômicos e, por outro, de fatores jurídicos
ou políticos, dc instituições, códigos, de regras estabelecidas pelo
direito.
Exemplo de fator econômico: o endividamento, fenômeno clás­
sico de todas as sociedades rurais, drama de todos os camponeses do
mundo, de todos os tempos, da Antiguidade grega e latina (Sólon
ou os Gracos), da China de antes da revolução agrária, dos fazen­
deiros americanos da época da grande crise. O endividamento é um
problema crônico, ligado a todas as sociedades rurais. Seu efeito é o
despojamento dos homens do campo, com a transferência da pro­
priedade da terra daqueles que a possuíam por hereditariedade
para os usurários, os bancos ou os que emprestam dinheiro a juros.
Ao lado dos fatores econômicos, atuam também fatores sociais
ou jurídicos. Desse ponto de vista, observa-se na Europa de antes da
Revolução diferenças muito acentuadas. Mais ainda: notam-se evo­
luções no sentido contrário: a Europa oriental parece engajar-se num
caminho exatamente oposto ao seguido pelo homem do campo da
Europa O cidental A Europa está longe de formar uma unidade e é
impossível falar no singular de uma sociedade do Antigo Regime,
como se ela apresentasse traços análogos de uma a outra extremi­
dade do continente.

42
A oeste da Europa
A oeste da Europa (isto é verdade, sobretudo na França), um
movimento lento, mas contínuo, tende a emancipar há vários séculos
os homens da terra. A servidão desapareceu praticamente. Talvez
exista pouco menos de um milhão de servos na França do Antigo
Regime, em condições, aliás, sensivelmente melhores. O desapareci­
mento da servidão representa a ruptura do laço que sujeitava o homem
à vontade de um senhor e a uma terra determinada. Trata-se de
uma etapa capital na evolução que, aos poucos, vai libertando o indi­
víduo e permitindo que ele escolha sua residência, sua ocupação, seu
emprego; essa mobilidade aumentará no século XIX e no século XX.
Os direitos feudais, contudo, perpetuam um sinal tangível da
dependência dos camponeses em relação aos senhores. Mas a reali­
dade desses direitos foi-se adelgaçando sempre mais. Com efeito,
esses direitos em geral sao pagos em dinheiro, O montante já foi
definido anteriormente; depois, a alta dos preços, causada pela de­
preciação da moeda, aliviou-lhe singularmente a carga. Esse adel-
gaçamento progressivo é que provocará o fenômeno de reação da
nobreza.
Com o desaparecimento da servidão, o abrandamento progressivo
dos direitos feudais, o camponês, na França e numa parte da Europa
Ocidental, sente-se senhor de si mesmo. A terra que ele trabalha, ele
a considera sua. Ele tem certeza de poder permanecer nela e de
poder transmiti-la a seus filhos. A Revolução Francesa, enquanto
revolução social, consagrará esse movimento secular. Ela não destrói
essa tendência: ela acelera o seu termo. Sem a Revolução, talvez
fossem necessários vários séculos ainda para se conseguir a extinção
dos direitos feudais. Ela irá aboli-los em duas etapas — noite de 4
de agosto, decretos da Convenção em 1793. Ê esse o significado das
medidas tomadas pelas assembléias revolucionárias a esse respeito :
elas consagram como direito um movimento irreversível, preparado
há vários séculos.

Na Europa Central
Mas a leste, na Europa Central (possessões dos Habsburgos;
Alemanha a este de Elba), a situação é muito diversa: a servidão,
ligada à economia rural, é á condição normal. Logo após os de­
sastres da Guerra dos Trinta Anos, a aristocracia reconstituiu seus
grandes domínios. A economia é essencialmente agrícola; há pouco
dinheiro, intercâmbio. Na ausência do dinheiro e da possibilidade,

43
para os proprietários, de assalariar mão-dc-obra, eles se veem obriga­
dos a reduzir os servos à escravidão. A servidão é um componente
essencial e como que a contrapartida do sistema econômico e social.
De que valeria aos grandes proprietários da Boêmia ou da Hungria
dispor de vastos domínios, se não tinham mão-de-obra para valoriza­
dos? A servidão é uma necessidade, enquanto não existe economia
monetária que comportasse circulação e intercâmbio.
A servidão continuará na Europa Central até o século XIX,
embora seja objeto de certo número de proibições. Em 1781, José II
aboliu a servidão pessoal, isto é, a forma mais humilhante, a que
se mostra ao espirito do século corno a mais contrária à dignidade
humana, a servidão que amarra o indivíduo, não ao solo, mas a um
senhor, fazendo do servo um escravo. Em 1807, logo depois da derrota
de Iena, quando a Prússia empreende um conjunto de reformas des­
tinadas a modernizá-la, a fim de que se torne capaz de enfrentar
ulteriormente uma prova de força com a França revolucionária, ela
suprime a servidão. Desse modo, quanto à região central da Europa,
é preciso esperar os meados do século X IX para que desapareçam,
por um ato legislativo, o que sobrevivia da servidão, que, durante
séculos, havia sido o sistema das relações entre a terra e o homem.

Na Rússia
Mais a leste, na Rússia, a evolução se faz na direção contrária.
 servidão acaba de desaparecer a oeste, mas se mantém no centra,
onde suas posições já estão prejudicadas. A leste, contudo, ela se
alastra. A Rússia quase a desconhecia antes do século XVI. A partir
daí, ela tende a se transformar em regra. É nisso que a história russa
diverge fundamentalmente da história do resto da Europa. A política
dos czares é que propaga a servidão; Pedro, o Grande, Elisabeth,
Catarina obedecem a dois tipos de considerações. Primeiro, trata-se
de um meio para conquistar e recompensar a fidelidade dos nobres,
dando-lhes terras; mas, de que vale a terra sem a mão-de-obra?
Voltamos a encontrar a mesma necessidade inelutável. Concede-se-lhes,
então, ao mesmo tempo que o domínio, a mão-de-obra, uma ou
várias aldeias, com suas "almas”, como se diz na literatura russa
do século XIX. Na França, o rei pode conceder pensão aos nobres;
a economia já é suficientemente monetária; o rei é suficientemente
rico para agir assim. O czar não pode dar senão o que ele tem:
teira e homens.
A esse motivo acrescentam-se outros, de ordem administrativa.
Poder-se-ia dizer que a Rússia do século X V III é subadministrada.

44
Os czares não dispõem de pessoal suficiente para administrar territorio
tao extenso e para enquadrar a população. Lembremo-nos do que
dizíamos a respeito da distância relativa e da dispersão dos homens
em amplos espaços. A Rússia, no século X V III, não é governável
pelos métodos e com as práticas de uma administração centralizada.
Forçoso é, portanto, que o soberano confie a administração dos ho­
mens aos senhores; ele confia aos proprietários o cuidado de adminis­
trar, de cuidar do registro civil, de administrar a justiça, de cobrar
impostos, de fornecer soldados ao exército. Em contrapartida, os
homens lhes pertencem, A servidão nada mais é do que a peça de um
sistema social que constitui uma sobrevivência do feudalismo. Será
preciso esperar o ucasse libertador de 1861, pelo qual o czar Alexan­
dre II tomará a iniciativa de abolir a servidão.
Assim, em 1750, muitos dos camponeses europeus ainda estão
sujeitos à obediência: servidão, direito feudal. Mas outras coerções
são mais horizontais do que verticais: as que decorrem nao mais da
superposição de uma ordem autoritária, mas dos costumes, das tradi­
ções, das regras adotadas em comum. Ê o que chamamos de obri­
gações comunitárias ou servidão coletiva, expressões que designam
uma mesma realidade.
Essas obrigações relacionam-se diretamente com as condições eco­
nômicas. Elas são impostas, primeiramente, pelo estado da agricul­
tura, dos conhecimentos e das possibilidades agrícolas, das condições
técnicas; pela fragmentação das terras, o fraco rendimento, a necessi­
dade de associar na mesma terra a produção dos cereais e a criação
de animais. Essas necessidades de ordem técnica são posteriormente
consagradas por obrigações jurídicas sancionadas em caso de infração.
O conjunto dessas servidões, que foi sendo elaborado aos poucos,
vem de um passado extremamente antigo e remonta a milênios: essas
obrigações são bem anteriores ao feudalismo; a servidão é compa­
rativamente recente.
Elas se desenvolveram sobretudo nas regiões dos campos abertos,
onde as parcelas se emaranham e tornam indispensável um cultivo
em conjunto: aí, é preciso plantar as mesmas sementes, colher na
mesma época. Daí decorrem certo número de interdições. Os cam­
poneses, mesmo quando proprietários de pleno direito, não podem
plantar o que querem, nem variar a cultura a seu bel-prazer. Os afo-
lhamentos são fixados pela tradição. Eles nao podem mais cercá-los
porque, logo que a messe é recolhida, o gado comunal deve ter acesso
à parcela; é o que se chama de pastagem aberta. Toda atividade,
portanto, inscreve-se numa densa rede de obrigações que a comuni-

43
dade aplica a si própria, com o fito de sujeitar-se a elas. Nao
existe individualismo agrario. Essa situação é a mesma na aldeia
francesa da Gampanha ou da Picardía, tanto quanto na aldeia alemã,
húngara ou no mir da planicie russa. Por toda parte, comunidades
fortemente constituídas cerceiam a iniciativa individual denteo dos
estreitos limites fixados pelo costume, as tradições, as autoridades
locais. Essa dependencia económica prolonga-se por uma obrigação
social que regulamenta todos os pormenores da existencia: os costu­
mes, os hábitos, ate as crenças são impostos pela comunidade. Não
existe nem mobilidade nem liberdade. As coisas sao um pouco dife­
rentes nas regiões dos campos fechados, dos pequenos bosques, nas
quais a dispersão do habitat proporciona aos indivíduos uma margem
de iniciativas mais amplas; mas isso continua a ser a exceção no
tocante às sociedades rurais fortemente organizadas e estruturadas.
No século X V III, o caso da Inglaterra c diferente. Junto com
a Rússia, ela é a segunda anomalia na Europa: a Inglaterra começa a
se engajar num caminho original. Sua agronomia está um passo à
frente; os proprietários britânicos podem cercar seus domínios, pe­
dindo autorização ao Parlamento; são os chamados Enclosure Actes.
Uma vez fechadas, as propriedades muitas vezes sao transformadas
pelo proprietário : a plantação de cereais é substituída pela cultura
de forragens e pela criação de gado, mais compensadora, por exigir
menos mão-de-obra. Ao mesmo tempo, esboça-se um movimento de
concentração da terra.
A transformação é, a princípio, econômica, embora exija urna
formalidade jurídica. Provoca consequências sociais. Pela concen­
tração das terras, a classe dos pequenos proprietários, os yeomen,
vê-se aos poucos excluída. Uma aristocracia de grandes proprietários
rurais toma força: ela é ao mesmo tempo proprietária da terra, dona
da administração local e compõe quase a totalidade do Parlamento.
Essa a diferença das condições relacionadas com a população
agrícola da Europa do Antigo Regime.
Mas a sociedade rural não se compõe apenas de camponeses,
de lavradores. Ao lado deles, no campo, encontramos uma popula­
ção numerosa, que não vive diretamente do trabalho da terra: artesãos
rurais, comerciantes rurais, todos os que exercem pequenas profissões
a meio-caminho entre a agricultura e a indústria.
A Europa do século X V III tem uma indústria rural dispersada.
Com efeito, no século X V III, agricultura e indústria nao se opõem,
como acontece atualmente. Ploje, a agricultura está no campo, a
indústria na cidade; na época, elas se misturavam. Cidade e indús-

46
tria não se atraem necessariamente. As cidades estão longe de serena,
todas, centros industriais. As funções específicas da cidade são ou­
tras: função de intercâmbio, com o comércio e o banco, ou função
administrativa e intelectual, raramente de atividade industrial. Recí­
procamente, a indústria está pouco concentrada: ela ainda nao
precisa de máquinas, de energia, de grande mão-de-obra. Pode dis­
persar-se pelo campo. A indústria fixa-se à beira da água, que
fornece a energia para animar os moinhos, as prensas, as forjas, os
martelos hidráulicos, ou na proximidade das florestas, que fornecem
o combustível necessário. A indústria doméstica está disseminada
até nas menores aldeias. Muitos camponeses também têm um oficio.
A indústria proporciona-lhes, durante as estações chuvosas, um tra­
balho complementar, um salário de compìementação. Os mercadores
fornecem-lhes a matéria-prima e revendem os produtos fabricados.
Existe, assim, toda uma circulação de produtos e de trocas, na qual
se integram as aldeias. Desse modo, pela osmose entre o trabalho da
terra e a indústria doméstica, as obrigações impostas pelas comunida­
des agrícolas, a sociedade rural do Antigo Regime é bem diferente
da nossa.

A S O C IE D A D E URBANA

As cidades
Sobre o embasamento que, por toda parte, planifica a sociedade
rural, delineiam-se as cidades. A existência das cidades como conjun­
tos organizados é tão antiga quanto as sociedades. Trata-se de um
elemento constitutivo de toda sociedade. Mas o fenômeno urbano
pode revestir-se de formas muito diferentes, e sua importância quan­
titativa pode variar no tempo e no espaço.
No século X V III, o fenômeno ainda está pouco desenvolvido.
Ê a contrapartida do predomínio da sociedade rural; apenas uma
pequena minoria vive na cidade, Há muitas cidades, mas pouquíssi­
mas grandes cidades. Em 1800, mesmo a Inglaterra — que, contudo,
está à frente no caminho da urbanização em relação ao resto da
Europa e, com muito mais razão, à frente dos outros continentes —
tem apenas 5 cidades com mais de 100 000 habitantes, das 25 da
Europa em iguais condições. Na França, âs vésperas da Revolução,
Paris reúne cerca de 650 000 habitantes; mas não se deve generalizar
levando em conta Paris, que é um monstro, Além de Paris, Lyon
ultrapassa — e por muito pouco — o nível dos 100 000, com cerca
de 135 000 habitantes,

47
O fenômeno se distribui de modo irregular sobre a superfície
da Europa. O grau de urbanização varia muito de região para
região, de acordo com a antiguidade da urbanização. Assim por
alto, as regiões urbanizadas desenham uma espécie de fita orientada
do noroeste para o sudeste da Europa Ocidental, das praias do
mar do Norte e do Báltico à região setentrional da Itália, Adriático
e Mar Tirreno. Essa nebulosa compÕe-se das cidades hanseáticas,
das cidades holandesas, dos portos das Províncias Unidas (Amster­
dã e Delft conheceram seu século de ouro no início do século X V II,
depois de se libertarem da tutela da coroa da Espanha), das cidades
flamengas mais antigas, que muitas vezes tiveram de arrancar sua
liberdade aos bispos e algumas das quais, desde o século X III, eram
centros ativos, graças ao comércio e à tecelagem de lençóis e de
outros tecidos ; das cidades alemãs do vale do Reno, da Baviera, na
Suábia, na Franconia, ao pé dos Alpes, no fundo das gargantas pelas
quais passam as vias de comunicação entre o norte e o sul da
Europa, entre todas essas partes ativas da Europa, enfim, as grandes
cidades da Itália setentrional, Milão, Verona e os portos, Veneza,
Gênova. Eis, desenhado sumariamente, o mapa das zonas urbanas
mais importantes.
Se, por um momento, fizermos abstração dos meados do século
X V III e passarmos a considerar a Europa de hoje, descobriremos
analogias. O mapa dos centros urbanos, da concentração humana,
das grandes vias de comunicação, das auto-estradas reconstitui hoje
essa trajetória orientada de noroeste pra o sudeste, do M ar do
Norte para a Itália, deixando a França um tanto a oeste.
A existência e a prosperidade desses centros urbanos muitas
vezes estão ligadas a determinadas indústrias (tecidos, às vezes também
indústrias mais modernas como, em Leão, a arte tipográfica), mas
os vínculos sao mais estreitos entre o comércio e a cidade. A cidade é,
primeiramente, um centro de trocas, ora sazonais (as feiras periódi­
cas), ora permanentes. É do comércio que nasceram á maior parte
dos grandes centros urbanos.
Essa correlação entre a atividade de trocas e a cidade tem con-
seqüências sobre a composição social da população urbana. A bur­
guesia, a princípio, é uma burguesia de comerciantes, de negociantes.
Existe toda uma hierarquia, a partir do pequeno retalhista, do rega tão,
até o negociante, que faz comércio com o resto do mundo conhecido.
Trata-se, portanto, de comércio interno e de comércio externo, con­
tinental e marítimo.

48
Os portos
A maior parte das grandes cidades são portos. N a Itália, em
relação a Veneza e Gênova, a prosperidade econômica se traduz
politicamente pela independência. Veneza e Gênova são republicas
soberanas, que conseguirão conservar a própria independência até
a grande desordem da Revolução. Do mesmo modo, nas Províncias
Unidas, os portos detêm a primazia. Na Inglaterra, Londres, capital
política, é um grande porto de mar. Também na França constata-se
a concomitância entre a importância dos centros urbanos e a ativi­
dade marítima. Depois de Paris e Lyon, por ordem decrescente de
importância, encontramos Marselha : 90 000 habitantes ; Bordéus :
84 000; Ruão: 72 500; Nantes: 57 000; trata-se de cifras imedia­
tamente anteriores à Revolução. Entre Ruão e Nantes intercala-se
Lille, que se liga à constelação das cidades têxteis das Flandres.
Ê surpreendente que, de 7 cidades principais da França, 4 sejam
portos de mar, 3 dos quais situados a oeste : Bordéus, Ruão e Nantes.
Com o tempo, a geografia dos centros urbanos foi-se modificando.
Às vésperas da Revolução, mais da metade dos grandes centros situa­
va-se a oeste do meridiano de Paris. Hoje, é a leste do mesmo me­
ridiano que se encontram as regiões de maior atividade, as mais
povoadas, as mais industrializadas. H á um profunda mudança na
distribuição da renda nacional e na estrutura das atividades. Para
retomar a distinção, já clássica, entre a França dinâmica e a França
estática, às vésperas da Revolução, a França dinâmica é a França do
oeste; hoje é a do leste, e sabemos quais os problemas criados, para
o abastecimento do território, a reanimação das regiões em declínio
de oeste e sudoeste.

As burguesias
Do mesmo modo que descrevemos vários tipos de sociedades do
Antigo Regime, falaremos de vários tipos de burguesias do Antigo
Regime, diferentes por sua origem, atividades profissionais e modo
de vida. Ao lado da burguesia que vive do comércio, há uma bur­
guesia intelectual e administrativa e uma burguesia de profissões
liberais, a que gravita em torno dos Parlamentos.
Através da Europa, a burguesia, seja ela de comércio ou de
função, desenvolveu-se de um modo muito irregular. Seu tamanho
depende do grau de desenvolvimento dos países, grau esse que varia
em função do desenvolvimento econômico e da difusão dos conheci­
mentos. No domínio econômico, sabemos que as sociedades marítimas

49
se adiantaram consideravelmente em relação às sociedades continen­
tais. É o mesmo que dizer que, a oeste,, encontra-se uma burguesia
importante, que não tem equivalente a leste onde, com algumas
raras exceções, nada há de permeio entre a rusticidade dos servos e
uma aristocracia de grandes proprietários, boiardos russos e mag­
natas húngaros.
A ausência de burguesia tem consequências sobre a economia
e sobre o governo da Europa Oriental. A ausência de uma classe
que disponha de capitais e desejosa de aplicá-los, instruída, culta,
capaz de tomar iniciativas, obriga o Estado a fazer-lhe as vezes. Na
Rússia, na Prússia, é o poder que incentiva a indústria, que faz o
país produzir. Trata-se de uma das características do regime. Uma
política econômica de iniciativa governamental, com intervenção do \
Estado, é uma das características do despotismo esclarecido, e não
é por acaso que o mapa desse tipo de despotismo coincide com o
dos países em que a burguesia é praticamente inexistente. Assim,
pressentimos, numa medida que é preciso determinar com precisão,
que o estado da sociedade modela a forma do regime político e
concorre para fixar a natureza do governo.
\
Na França, a situação é muito diferente: aí existe há séculos
uma burguesia importante, ativa, culta, rica, mas que nao c empreen­
dedora, e o Estado é obrigado a representar o papel de empresário.
A França tem uma tradição de iniciativa governamental, cuja expres­ i
são mais exata é o sistema colbertista. Essa burguesia, na França, não
representa o papel que a vemos desempenhar na Inglaterra, onde I
ela é fonte de progresso. Os motivos dessa diferença são essencial­ p
mente psicológicos e culturais, e ressaltam o peso de fatores não-eco- ì;
í
nômicos. Se o Estado é assim obrigado a ocupar o lugar da burguesia, t-
isso ocorre porque ela se afasta da economia. Por um lado, a bur­ í:

guesia adquire terras, o que, como vimos, c o mesmo que afirmar


que, afinal, ela é mais ávida de consideração do que de lucros. Ela
está â procura de honorabilidade, em sua ânsia de se identificar com i
: h-
í'
a nobreza. Assim, o código dos valores sociais desvia o capital, afas­
tando-o do comércio e da indústria e esterilizando-o na compra de
terras, sem se preocupar com modernizar sua exploração ou melhorar
sua rentabilidade. Por outro lado, a burguesia compra cargos. Isso
é uma conseqiiência da venalidade dos empregos. Por causa da
organização defeituosa de suas finanças, a monarquia francesa nunca
soube proporcionar a si mesma os meios de sua política; ela sempre
se viu obrigada a viver de expedientes. Um desses expedientes con­
sistia em vender os cargos de justiça e de administração. Esses cargos
tentam a burguesia, porque proporcionam-lhe a consideração de que

50
é tão avida e uma possibilidade para que seus herdeiros cheguem à
nobreza. A terra e os cargos, eis em que são aplicados, na França,
os recursos da burguesia.

3. O rdens e cla sses

Depois da descrição da sociedade em função de sua localização


nò espaço, de suas atividades profissionais 'e da distinção entre cidade
e campo, é conveniente considerar seus aspectos jurídicos. Qual é o
lugar, qual o estatuto desse ou daquele grupo no conjunto social?
Quais as relações de dependência e de hierarquia entre os diferentes
grupos, cuja reunião compõe a sociedade do Antigo Regime?
Eu tomaria como exemplo a França. Trata-se da primeira
sociedade transformada pela Revolução, e indubitavelmente nenhuma
outra ilustra melhor a diversidade dos princípios de organização
que se sobrepõem.
A análise da sociedade francesa pode ser feita em torno de duas
noções: ordem e classe; arribas dizem respeito à organização. Elas
introduzem aí distinções c divisões: existe pluralidade de ordens, como
existe pluralidade de classes. Aí cessam as analogias: elas não se
referem ao mesmo conceito de organização social e procedem de prin­
cípios diferentes.
Examinaremos sucessivamente o que são as ordens e o que sao
as classes; quais as ordens existentes no Antigo Regime e quais as
classes já se podem discernir; enfim, quais as relações de oposição ou,
pelo contrário, quais as semelhanças existentes entre ordens e classes.
Descobriremos assim a anatomia dessa sociedade, submetendo-a a duas
radiografias: uma que toma por princípio de investigação a noção
de ordem; outra, a de classe.

As O R D E N S , AS C L A S S E S

Em princípio, a sociedade do Antigo Regime sõ conhece as or­


dens. Não se pode, portanto, falar de classes a seu respeito senão com
prudência. Pelo contrário, a noção de ordem inscrita nos textos
corresponde à mentalidade do tempo. Trata-se de uma noção
essencialmente jurídica. A ordem se define por um estatuto. Tam ­
bém se pode falar indiferentemente de ordem ou de estado: o Terceiro
Estado é a terceira ordem. Os dois termos são permutáveis, pois estado
e estatuto são palavras de etimologia idêntica. A ordem, efetiva­
mente, define-se por um estatuto que comporta, ao mesmo tempo,

51
prerrogativas e obrigações, umas e outras devendo equilibrar-se nor­
malmente. As obrigações encontram compensação nas prerrogativas
e estas se justificam pelo cumprimento dos encargos que competem à
ordem em questão.
Noção e realidade jurídicas são conceitos inteiramente estranhos
à economia, Com as ordens, a fortuna tanto quanto a atividade pro­
fissional são critérios decisivos. Pode-se muito bem pertencer à
mesma ordem em níveis de vida diferentes. Por exemplo, a burguesia
mais rica coabita, dentro da mesma ordem — o Terceiro Estado ■ —
com os andarilhos e os vagabundos há pouco lembrados. Do ponto
de vista do direito, sua situação é idêntica: eles têm o mesmo esta­
tuto. Reciprocamente, dois homens que pertençam a duas ordens
diferentes podem ter uma renda idêntica e o mesmo nível de vida.
Trata-se, portanto, de uma realidade social irredutível à classe.
Pertence-se a uma ordem pelo nascimento, em relação à nobreza
e ao terceiro estado. Pode-se chegar a ela por vocação, quando se
trata do clero, que propõe possibilidades de ascensão social aos ple­
beus: muitos, fazendo carreira na Igreja, conseguiram chegar aos
mais altos cargos não apenas eclesiásticos, mas políticos e adminis­
trativos, o ministério, a diplomacia. Essa sociedade não é uma
sociedade estereotipada: as ordens não constituem castas; há possibi­
lidade para o enobrecimento. A aristocracia francesa, às vésperas
do Antigo Regime, compõe-se, numa proporção muito forte, de
descendentes de famílias que, dois ou três séculos antes, não eram
nobres, mas haviam conseguido do rei cartas de nobreza, ou haviam
usurpado a nobreza.
Discernimos, a propósito do clero, a origem longínqua da dife­
renciação por ordens: numa certa medida, ela procede de uma divisão
de tarefas e é nisso que ela mostra certas afinidades com a divisão
por classes, pelo menos em seu início. A divisão da sociedade do
Antigo Regime em três ordens repousa originalmente numa diferença
de funções. O clérigo, o homem da Igreja, tem por função rezar
pela comunidade, prestar culto a Deus. A essas funções essenciais,
acrescentam-se outras ocasionais: o ensino, a assistência. O nobre
cuida da defesa; de luta, protege; julga até, acessonamente. O ter­
ceiro estado trabalha.
Essa distribuição de funções, provocando uma distinção em or­
dens, é em sí o reflexo de um sistema de valores. Alguns desses
valores são religiosos, como a preeminencia do serviço de Deus sobre
as demais atividades. Os outros são valores sociais; assim a distinção

n
entre o que combate e o que trabalha, e a preeminencia concedida
a quem empunha a espada,
A ordem é uma noção jurídica; a classe não tem nenhuma
expressão jurídica. Trata-se de urna simples realidade de fato, rara­
mente consagrada pelo direito. Isso não acontecia antes de 1789,
nem acontecerá depois: aos olhos da lei todos os indivíduos são iguais.
Sendo a lei a mesma para todos, não leva em consideração as classes,
mesmo se, na realidade, a sociedade é desigual e heterogênea.
As ordens nao sao iguais entre si; com a diversidade, essa socie­
dade admite a desigualdade pela hierarquia. A primeira ordem é o
clero; depois vem a nobreza e, em último lugar, o terceiro estado.
A desigualdade não é então interpretada como uma exceção vergo­
nhosa, uma derrogação da lei: ela é o estado normal. Hoje, a socie­
dade sente a consciência pesada quando constata a desigualdade.
Nao é este o caso da sociedade do Antigo Regime, que repousa
explícitamente sobre a desigualdade: a desigualdade é considerada
legítima, porque é a expressão da diferença das dignidades, das tarefas,
das situações.
Cada ordem tem seu estatuto e, a este respeito, apreendemos
um traço característico do Antigo Regime político: ele não é uni­
forme. O Antigo Regime não conhece uma lei única. Esta é uma
das inovações da Revolução de 1789: a instauração da igualdade
perante a lei, a igualdade no tocante aos impostos, no que respeita
aos cargos, e é nisso que a sociedade contemporânea se diferencia
mais da do Antigo Regime.
O Antigo Regime parte do reconhecimento da diversidade das
situações e o consagra juridicamente. O Antigo Regime é o regime
da lei particular. N a verdade, pensava-se que deveria haver tantas
leis quantos os interessados e, se não havia tantas leis quantos os
indivíduos, havia tantas leis quantas as comunidades existentes. Nao
existe um regime municipal único: cada cidade tem seu mapa, suas
franquías, suas liberdades, diferentes da municipalidade vizinha. O
mesmo acontecia em relação às províncias e às ordens. O Antigo
Regime é o regime das leis particulares, isto é, do privilégio. Esse
6 o sentido original de privilégio, etimologicamente, A palavra, para
nós, revestiu-se de outro sentido, e nela colocamos agora um juízo
de valor pejorativo; mas, a princípio, o privilégio não representava
nada mais do que uma lei particular. Para podermos compreender
a sociedade do Antigo Regime, é preciso compreender os princípios
sobre os quais ela repousa: heterogeneidade da sociedade, pluralismo
das ordens, hierarquia e multiplicidade das leis.
Esses privilégios comportam um sistema de direitos e de deveres
que se equilibram. A nobreza tinha um dever: assegurar a defesa
c a proteção. Em troca, ela estava dispensada de trabalhar e auto­
rizada a arrecadar os direitos feudais. Do mesmo modo, o clero,
para exercer o ofício divino, devia ser dispensado de todo trabalho
servil, cabendo aos fiéis cuidar de sua manutenção.
Cada uma dessas ordens tem sua representação própria no seio
dos Estados Gerais.

A O R G A N IZ A Ç Ã O S O C IA L E S E U E N V E L H E C IM E N T O

Essa era a situação inicial, No século X V III, a situação está


profundamente transformada, Essa organização envelheceu: perdeu
sua razão de ser. A evolução do governo, das relações sociais, da
economia foi alterando e rompendo progressivamente o equilíbrio
entre direitos e deveres. A opinião pública começa a sc aperceber
disso. Sob a fachada das ordens surge outra classificação social, que
coloca as classes em oposição: do confronto entre as ordens tradicio­
nais e as novas classes sairá a revolução social de 1789.
A distinção tradicional em ordens deixa de corresponder a ne­
cessidades tão prementes quanto na Idade Média ou no início dos
tempos modernos. Daqui para a frente, já sc trata de sobrevivência
e, como tal, está com os dias contados, E sobrevivência por diversas
razoes, de ordem política, social e econômica.

A centralização monarquista
Primeiro, é. o desabrochar de uma forma de regime mais jovem:
a monarquia absoluta. O desenvolvimento de uma monarquia cen­
tralizada, administrativa, na qual o poder está concentrado nas mãos
de um soberano único, tira dessa organização social sua razão de
ser e sua justificativa. Com efeito, à medida que o monarca e seus
conselheiros se apoderam destas e daquelas atribuições que cabiam
à aristocracia, os privilégios da aristocracia perdem sua legitimidade.
O equilíbrio tradicional entre seus deveres e seus direitos, daqui por
diante, está rompido. Contudo, privada de algumas de suas funções
sociais, a nobreza pretende conservar os privilégios, honoríficos ou
pecuniários, que constituíam sua compensação.
Há vários séculos, um processo inexorável transfere da aristo­
cracia militar e proprietária para a monarquia administrativa as prin­
cipais funções sociais: primeiro, a defesa, com o aparecimento de
um exército permanente, pago pelo rei, e que dispensa o recurso à
nobreza militante. É sob Luís X III que, pela última vez, fez-se uso
do bando e do sub-bando, de acordo com a velha terminologia me­
dieval. Depois, termina a função militar da nobreza. Daqui por
diante, o exército está às ordens do rei, e também a polícia, com a
instauração de um corpo de polícia. Esse processo, que se manifesta
em todos os países dá Europa, mas em graus diferentes, tem um ritmo
desigual,* tende a desapossar a nobreza de seus cargos, cuidando os
monarcas simultaneamente de domesticá-la,. Este é o significado da
corte: a constituição, em torno da pessoa do rei, de uma sociedade
consagrada apenas a honrar a majestade real reduz o papel da no­
breza ao de curadora do culto monárquico, a um papel puramente
decorativo, que a constrange à ociosidade. Contudo, ela conserva
súas vantagens tradicionais, suas imunidades fiscais, suas isenções,
todos os privilégios que, tanto objetivamente como aos olhos da opi­
nião pública, perdem sua razão de ser. Nesse desequilíbrio reside um
dos elementos do mal-estar que começa a aparecer e da crise que
logo destruirá a ordem social tradicional. A discordância que se
acentua desse modo, progressivamente, entre uma sociedade fundada
sobre a superposição de ordens privilegiadas ao terceiro estado e a.
nova realidade dá origem a um sentimento antinobiliárquico e explica
a feição antiaristocrática tomada pela Revolução em seu início.

As transformações econômicas
As transformações da economia desenvolvem efeitos paralelos.
Sua evolução no século X V II, e sobretudo no século XVIII,. empo­
brece progressivamente a nobreza. Isso é verdade sobretudo na Europa
Ocidental. Enquanto a economia continua essencialmente rural e a
principal forma de riqueza continua a ser a terra, a nobreza, que
conserva a propriedade de grande parte do solo, continua a ser a
categoria social mais rica. Mas o quadro muda com o aparecimento
do capitalismo comercial, o desenvolvimento do mercantilismo, das
permutas, de uma economia monetária: a terra perde, em relação à
sua relativa importância na economia é na renda da nação. Como
consequência, a nobreza vê sua fortuna diminuir.
Ao mesmo tempo em que empobrece a nobreza, a evolução
enriquece a burguesia, cuja importância econômica aumenta: é a
burguesia que contribui mais ativamente para o enriquecimento do
país. Ela vê também aumentar sua importância política, pois é nela
que se apóia a monarquia: é na burguesia que os soberanos recrutam
seus ministros e prepostos.
Ao falar de “burguesia” fazemos intervir uma noção estranha à
das ordens tradicionais. A burguesia não é uma ordem: ela nada
mais é do que uma categoria social dentro do terceiro estado. Con­
trapor a burguesia à nobreza é fazer aparecer ao lado das ordens
um fenômeno relativamente novo, o das classes. A classe é uma
realidade de outra natureza, que não se define mais por critérios
jurídicos. O que faz o burguês, no sentido moderno do termo, é
menos seu estatuto do que sua atividade profissional, o emprego,
de que tira sua renda, seu nível de vida e também seu gênero de
vida, isto é, seu modo de gastar e de poupar, de fazer render seu
dinheiro, fatores, enfim, que dizem respeito à cultura e à educação.
Desse modo, como a evolução política, a evolução econômica,
pelo menos na Europa Ocidental, decreta o fim da antiga distinção
em ordens.

O movimento intelectual e a evolução espiritual


Acrescentamos, — nao se trata mais de fatores objetivos, mas da
idéia que os contemporâneos fazem dos mesmos — que a evolução
intelectual e espiritual começa a sentir como inaceitável, porque
injustificada, a persistência da desigualdade e a continuação da
sociedade por ordens.
Isso ocorre na França do século X V III, onde essa discordância
é mais acentuada — mas pressentem-se sinais precursores dessa rea­
ção em outras regiões da Europa Ocidental: norte da Itália, Países
Baixos, Alemanha renana —, duas ordens de realidades sociais se
sobrepõem: os velhos quadros jurídicos, que se tornaram arcaicos, e
novas estruturas em potencial, que já delineiam as classes da socie­
dade liberal do século XIX.

A REAÇÃO da nobreza
O divórcio entre classes e ordens agrava-se na segunda metade
do século X V III. Nos trinta últimos anos do Antigo Regime regis­
tra-se uma exasperação de seu antagonismo. É que então ocorre um
enrijecimento das ordens privilegiadas, uma espécie de crispação,
numa atitude defensiva que interrompe de modo brutal a ascensão
gradual da burguesia e a renovação natural dessa sociedade.
A despeito da clareza das distinções entre as ordens, a sociedade
francesa do século X V I ou do século X V II mantinha uma mobili­
dade social bastante grande. Não era impossível que pessoas bem

56
dotadas ou ricas passassem de uma ordem para outra. A burguesia
sempre viu abrirem-se possibilidades de acesso às ordens privilegiadas.,
mesmo que fosse pela compra dos cargos, pelo ingresso na nobreza dos
magistrados ou pela aquisição de terras, cuja posse enobrecia. En­
quanto existem essas válvulas de segurança, a burguesia nao nutre
nenhuma intenção revolucionária; ela está bem, numa situação que
lhe dá a esperança de acesso â partilha dos privilégios. É no dia
em que se vê limitada à situação inferior, que é a sua, que começam
a nascer as aspirações propriamente revolucionárias. Descrita suma­
riamente, esta é a situação no fim do Antigo Regime.
A burguesia choca-se, então, com a chamada reação da nobreza.
Reação de defesa de uma ordem que sabe que suás posições estão
ameaçadas, que vê sua fortuna diminuir e que procura, desespera­
damente, conservar sua preeminencia tradicional, tentando preservar,
às ve2es até restaurar, uma ordem tradicional que lhe era vantajosa.
Por isso os Parlamentos, dc agora em diante, para que se compre um
cargo, exigem pelo menos quatro quartéis de nobreza. Em 1781, no
exército, um regulamento militar reserva o acesso ao grau de oficial
aos membros da nobreza: os elementos do terceiro estado permanecem
confinados nos graus de "oficiais inferiores”, isto c, de suboficiais.
7'oda esperança de promoção, portanto, lhes era vedada.
Esses dispositivos jurídicos são reforçados por atitudes espontâ­
neas. Não é em virtude de um texto, mas por uma reação coletiva
que o alto clero se fecha totalmente aos elementos originários do
terceiro estado. Situação nova: no século X V III, a maior parte dos
prelados era de origem burguesa, ou mesmo popular: às vésperas da
Revolução, a aristocracia de nascimento açambarca bispados e ricas
abadias. Acontece o mesmo em relação ao exercício do poder polí­
tico que rodeia o soberano. Luís X IV estabelecera como regra não
nomear como ministros e conselheiros senão burgueses; no fim do
Antigo Regime, a maioria dos ministros, e mesmo dos intendentes,
pertencem à nobreza. Desse modo a aristocracia de nascimento tende
a reservar para si ao mesmo tempo as honras e as vantagens. Essa
reação, que lesa diretamente os interesses da burguesia e fere também
sua ânsia de consideração, é a fonte do vivo descontentamento em
relação à nobreza manifestado pela burguesía nos Estados Gerais e
nos primeiros anos da Revolução.
Mas os elementos superiores do terceiro estado não são os únicos
atingidos por essa reação. Paralelamente ao açambarcamento dos
postos e dos cargos, desenvolve-se outra forma da reação por parte
dos nobres: a reação senhorial, dos nobres em suas relações com seus
camponeses. É a resposta da aristocracia ao empobrecimento provo­
cado pela evolução da economia.
Os salários, geralmente, eram pagos em espécie e não em natura.
Seus níveis haviam sido fixados há muito tempo e, desde então; seu
valor real foi aos poucos diminuindo. Para a nobreza, trata-se de
restaurar suas antigas fontes de rendas. Por isso, ela torna a colocar
em vigor direitos muitas vezes caídos em desuso, Os comissários das
terras exumam taxas esquecidas, que há gerações não eram mais
cobradas. Essa reação senhoria! interrompe o lento movimento de
emancipação que, há séculos, tendia a libertar o homem do campo,
permitindo-lhe acesso à propriedade efetiva da terra. Do mesmo
modo que a reação da nobreza provocava o descontentamento da
burguesia, essa reação senhorial provoca o descontentamento dos
camponeses. O burguês e o homem do campo sentir-se-ão solidários
no início da Revolução.
Essa dupla reação de nobres c senhores contra o burguês e o
homem do campo parece tanto mais odiosa aos contemporâneos pelo
fato de ir contra a corrente não só da evolução econômica e social
como também de evolução intelectual. Encontramos aqui o terceiro
fator: o movimento no campo das idéias. Não é apenas o progresso
da centralização administrativa ou o de uma economia mais ligada
à terra que assinala o fim da antiga ordem ; é . também o movimento
das idéias e sua difusão. A reflexão crítica dos filósofos lança a culpa
de tudo às próprias bases da sociedade do Antigo Regime, torna a
questionar as diferenças tradicionais e opõe, aos preconceitos ou
à tradição, o mérito pessoal e a superioridade do talento. Essas idéias
encontram ecos prolongados na opinião pública, que começa a se
tornar uma potência e que se pronuncia em favor das novas classes,
contra as antigas ordens. A hierarquia jurídica parece-lhe obsoleta.
Objetivamente isso é verdade, mas o importante é que ela começa
a ser sentida como tal.
Ê o concurso desses dados objetivos, relacionados com a evolução
das instituições e com as estruturas, e desses elementos subjetivos que
cria na França dos últimos anos do Antigo Regime uma situação
objetivamente revolucionária.
Essa discordância na ordem social, entre as estruturas antigas,
herdadas da Idade Média, e as novas forças que sentem sua capaci­
dade de ação, animadas por uma ânsia de progresso, constituí um
dos maiores componentes do ideal revolucionário. Este aspecto dá

58
ênfase ao fato de a revolução de 1789 ser, pelo menos, uma revolução
tão social quanto política. Na verdade, ela foi primeiro uma revolução
social. Num primeiro tempo, ela não é dirigida contra a monarquia,
mas contra a desigualdade, contra os privilégios, as ordens. Depois
ela tomará outro rumo e, de antinobiliária, tornar-se-á antimonar­
quista, porque a realeza não soube libertar-se a tempo das ordens
privilegiadas.
r

■'■;■

59
4
AS FORMAS POLÍTICAS DO
ANTIGO REGIME

As formas políticas do Antigo Regime não sao uniformes e ho­


mogêneas. Muitas vezes somos tentados a concluir, partindo de uma
unicidade da expressão, por uma uniformidade das instituições e,
sob o pretexto de que a Revolução fez tábua rasa de todos os regimes
políticos anteriores a 1789, inferir sua identidade. Ora, existem vários
Antigos Regimes. É apenas por comparação com o regime saído da
Revolução que se aplica a tudo o que o precedeu nome comum:
“Antigo Regime”. A realidade é muito mais variada.
E isso é verdade mesmo se nos limitarmos a um país. É por
isso que na França, aliás uma das sociedades politicamente mais
unificadas, vemos que, no século X V III, sobrevivem resquícios de
vários Antigos Regimes políticos, profundamente diversos uns dos
outros. Se isso acontece dentro de um país, ocorre com muito mais
iazão no tocante à Europa; iremos encontrar no plano político o
equivalente dessa diversidade, cuja análise social nos mostrou exem­
plos, quanto à Europa, entre uma Europa rural e serva, a este, e
uma Europa já mercantil, urbana e liberal a oeste.
A fisionomia política da Europa no século X V III mostra uma
gama das nlais variadas, que vai do estágio mais elementar até orga­
nizações já nessa época muito complexas e diversificadas, A hetero-
geneidade dos Estados é extrema, pois existem várias centenas de
unidades políticas: só no interior do Império coexistem mais de 300
entidades políticas; mas, apesar dessa diversidade, podemos reduzi-las
a alguns tipos gerais.
O problema que se coloca para definir e enumerar esses típos
é um problema permanente da análise das sociedades políticas: o
problema da classificação. É o problema já enfrentado por Mon-

60
tesquieu, ao procurar definir os grandes tipos. O problema é colocado
ainda hoje: corn quantos tipos de regimes políticos temos de lidar
na segunda metade do século XX? Várias classificações são conce­
bíveis, e a resposta depende muito da escolha dos critérios. Mon­
tesquieu baseou-se no número dos poderes e na forma dos mesmos..
Poder-se-iam imaginar outras classificações como, por exemplo, em
função do relacionamento entre governo e governados, ou em relação
com o desenvolvimento social.
Adotarei uma classificação que leva em conta essencialmente a
historicidade dos regimes, sua relativa antiguidade. Os regimes que
descrevemos na Europa do século X V III não nasceram ao mesmo
tempo. A origem de alguns deles remonta a um milhar de anos,
outros só apareceram há cerca de cinqüenta anos, enquanto outros
acabam de aparecer. Ê, portanto, possível classificá-los em função
de sua antiguidade. Veremos que essa classificação não deixa de se
relacionar com o que já sabemos acerca da sociedade e da distinção
entre duas Europas.
Ela comporta cinco tipos diferentes de regimes políticos, embora
os quatro primeiros possam ser agrupados dois a dois. Pela ordem,
são os seguintes:
O feudalismo aristocrático e as repúblicas patrícias: duas ver­
sões do regime oligárquico. Tanto num caso como no outro, o poder,
muitas vezes a título hereditário, encontra-se nas mãos de um grupo
restrito.
A monarquia absoluta, tal como existia na França ou na Espanha
do século X V II, e o despotismo esclarecido, forma mais recente,
pois só aparece no século X V III. Entre a monarquia absoluta e o
despotismo esclarecido existe uma analogia de natureza: todos os
poderes estão concentrados nas mãos de um soberano hereditário.
A quinta forma não se deixa reduzir facilmente a um tipo: é o
regime da Inglaterra. A monarquia britânica aparenta-se a outras
no que diz respeito a determinados traços: pelo caráter monárquico,
ela estaria ligada ao segundo grupo, mas, por outro lado, algumas
de suas instituições mais características — presença de um parla­
mento, administração local — sugerem que se trata de um regime
do tipo aristocrático, tanto que poderiamos ser tentados, levando em
conta suas últimas características, a colocá-la de preferência no pri­
meiro grupo: feudalismo e patriciado. É melhor, portanto, por agora,
classificar à parte o caso britânico, sobretudo se levarmos em conta
seu futuro: de todos esses regimes, é o que tem diante de si o futuro
mais longo; ele se tornará um modelo universal.

61
Esses regimes não desapareceram por completo; a Revolução
não extirpou-lhes as raizes. Convém, portanto., procurar os prolon­
gamentos e a sobrevivência de cada um deles no mundo de 1974, e,
para isso, teremos de examiná-los um por um.

1- As S O C IE D A D E S P E U D A IS

Das cinco, este é o tipo mais antigo. No século X V III, ele


talvez já tenha um milênio de existência, Este é também, sem dú­
vida, o tipo inais universal, o mais divulgado, talvez porque fosse
o mais econômico, eu diría o mais rústico, como se diz hoje em dia
de um material solido e cômodo. Sem fazer jogos de palavras,
este é, efetivamente, o modelo adaptado às sociedades rurais da Idade
Média. Provavelmente, ele é comum a todos os continentes e sobre­
viveu até os séculos X IX e XX: até a Revolução das Luzes, empreen­
dida pelo micado em 1868, o Japão vive sob um regime tipicamente
feudal, o dos daimyo e dos shogun; as sociedades da África Central,
antes das mudanças provocadas pela colonização, têm muitas vezes
instituições políticas que são autênticas variantes do feudalismo. Com
efeito, o feudalismo é o regime normal na ausência do Estado, seja
pelo seu desaparecimento, como aconteceu na Europa com a queda
do. Império Romano, seja, porque o Estado ainda não apareceu,
como é o caso das sociedades primitivas da Oceania, da África ou
da América.
Primeiro elemento constitutivo, negativo, que caracteriza o feu­
dalismo: a ausência de um poder central. Na Europa medieval, a
autoridade local é atomizada pelo excesso de senhorias, a autoridade
regional é representada por ducados, baronías, principados, que
sobrepõem a esse grande número de senhorios poderes de nível
intermediário.
Essas diversas autoridades não excluem a existência, acima delas,
cie um princípio superior, de uma suserania, cuja autoridade é pura­
mente honorífica. O suserano não tem poder efetivo, não tem meios
de exercer sua autoridade e, sobre seus pares ou vassalos dispõe ape­
nas de uma primazia de presença. Na Inglaterra a realidade do
poder está na mão dos barões; no Império, na mão dos duques; em
outros lugares, na mão dos príncipes. Mostra-o bem o fato de que,
no feudalismo, o suserano nem sempre é hereditário, mas costuma
ser eleito por seus pares, enquanto a monarquia continua eletiva.
Esse era o caso da monarquia francesa, no início, quando Hugo
Capeto foi escolhido pelos principais barões. Esse é ainda o caso,

62
no século X V III, do Santo Império Germânico onde, embora, há
vários séculos, a coroa imperial tenha-se tornado hereditária na famí­
lia dos Habsburgos, contínua de pé o princípio de que o imperador
devería ser eleito por um colégio de eleitores. Sem dúvida, ê na
República da Polônia que encontramos a ilustração mais clara do
regime feudal, já que o rei da Polônia contínua a ser eleito pela
nobreza. Trata-se da contraparte, da expressão política de uma
sociedade hierarquizada em ordens.
Outro traço constitutivo do feudalismo é a existência de laços
pessoais. Sobre esse ponto, a comparação revela o que diferencia
nossas sociedades modernas do feudalismo medieval. Em nossas socie­
dades, o direito moderno não conhece os indivíduos: não faz acepção
de pessoas; não se fazem leis para o particular; as leis são gerais,
abstratas, impessoais, assim como a administração. Por isso, muitas
vezes, ele é criticado; por isso, a desumanidade do Estado, “esse
monstro frio”, é denunciada, mas faz parte da propria natureza do
Estado moderno não levar em consideração as situações pessoais: a
regra de direito aplica-se a todos. Trata-se de uma característica de
nosso direito, do Estado moderno, das sociedades saídas da Revolução.
Na Idade Média, e ainda sob o Antigo Regime, os laços sao pes­
soais. Os indivíduos estão cercados por uma rede de relações inter-
individuais: o vassalo presta homenagem a seu suserano; eles estão
ligados por uma religião do juramento que os obriga. O suserano
deve a seu vassalo ajuda e proteção ; em troca, o vassalo lhe dá
assistência e conselho.
Isso é verdade em todos os escalões da sociedade e define tanto
as relações dentro das ordens privilegiadas quanto as relações entre
o senhor e seus camponeses. Às relações entre o senhor e seus
camponeses são do tipo pessoal, nos antípodas do sistema de relações
anônimas e impessoais que caracterizarão, no século XIX, a manufa­
tura e o comércio, quando o dinheiro tomará o lugar desses laços
pessoais.
O feudalismo ligado à terra ignora o dinheiro. Esta é outra de
suas características. As instituições políticas e a ordem da sociedade
estão intimamente imbricadas. O feudalismo está ligado a uma
economia baseada na propriedade e na exploração da terra. O senhor
é um proprietário rural e seus dependentes cultivam a sua terra ou
as que ele lhes aluga. É assim que o feudalismo encontra sua expres­
são mais exata nas sociedades em que o sistema das relações pessoais
é completado pela servidão.
Nos meados do século X V III, a situação do feudalismo declina.
A servidão desaparece aos poucos a oeste da Europa. A evolução
3 63
econômica emancipa os indivíduos; a irrupção do dinheiro nas rela­
ções sociais liberta as pessoas, que podem resgatar-se ou esquivar-se
ao cumprimento dos contratos; o crescimento de uma sociedade ur­
bana abala a ordem feudal, destruindo-lhe as bases. No plano político,
o fortalecimento de uma monarquia centralizada, no plano das forças
sociais, a ascensão da burguesia, reduzem a extensão e a influência
do feudalismo. Nem por isso o feudalismo deixa de ficar menos
representado na superfície da Europa, mais a este do que a oeste,
confirmando a conveniente distinção entre as duas Europas.
No império russo, os boiardos são grandes proprietários, embora
os czares procurem rcduzir-lhes a importância. A política de Pedro, o
Grande, é tipicamente antifeudal; ele cria uma nobreza de cargos,
com o fim de pregar uma peça nessa nobreza hereditária e senhorial.
Na Escandinávia, na Suécia, na Dinamarca, a nobreza representada
nas dietas ainda é dona de grandes poderes. É talvez na Polônia que
o feudalismo se conservou melhor, mas este é também urn dos motivos
pelos quais ela perderá sua independência, pois o feudalismo não é
capaz de preservar a integridade de um país quando entra em com­
petição com Estados modernos de forma monárquica e centralizada.
Na Polônia todo o poder e riqueza pertencem à nobreza; como o rei
é eleito, cada vacância causa uma longa crise de sucessão, de que a
nobreza procura tirar partido para aumentar ainda, se possível, sua
autoridade. O poder está nas mãos das dietas. A mesma instituição
existe na Suécia e na Dinamarca. As instituições representativas, o
processo eletivo, o colégio político : todos sinais do feudalismo. Esses
mesmos elementos, que boje se apresentam como símbolo da demo­
cracia, são bem anteriores a ela. Nao é da Revolução que datam os
recursos à eleição ou a existência das câmaras : o feudalismo já as havia
posto em prática em ampla escala. A democracia, portanto, nada
mais fez do que recolocar em vigor uma herança secular, mas, com
ela, o conteúdo e o significado das instituições sofreram completa
transformação.
O Santo Império Germânico é talvez o exemplo mais caracte­
rístico da persistência, em pleno século X V III, do espirito da Idade
Média e do feudalismo. Se, com efeito, coexistem dentro do Santo
Império diferentes tipos de instituições, repúblicas patrícias ao lado
de cidades livres, monarquia absoluta com certos principados, reinos e
eleitorados, a construção global continua inspirada pelo espírito do
feudalismo. O imperador é seu suserano medieval.
Mais para oeste, o feudalismo cedeu terreno; progressivamente
enfraquecido, ele subsiste apenas como instituição civil e social, e não
mais como potência política. Afirmar isso é expressar em outros

64
termos o que eu dizia ao discorrer sobre discordancia entre a evolução
econômica e social e a sobrevivencia da ordem antiga; é se aperceber
da mesma realidade, mas de um ponto de vista essencialmente polí­
tico. Se o feudalismo perdeu suas atribuições políticas, ele se mantém
como instituição civil : a nobreza conserva seus privilégios, suas
imunidades, suas precedências (grandes de Espanha, nobreza na
França). Essa aristocracia não perdeu de todo a esperança de re­
cuperar os poderes que teve de ceder, à monarquia e, de quando
em quando, vêm à tona suas tentativas de reconquista. Esse é o
sentido da Fronde dos grandes e dos príncipes, entre 1648 e 1652,
que pode ser interpretada como uma volta ofensiva do feudalismo,
mantido sob tutela por Richelieu. O mesmo ocorre, por ocasião da
morte de Luís XIV, com essa curiosa experiência da polissínodia,
que visa a transferir a realidade do poder de alguns ministros inves­
tidos da confiança pessoal do soberano para conselhos, onde têm
assento os representantes da nobreza.
Essa reação nobiliaria, cujos aspectos sociais e econômicos evo­
camos, comporta igualmente intenções políticas. A nobreza procura
reconquistar o poder de que fora esbulhada pela centralização e o
absolutismo monárquicos, e uma das chaves da crise pré-revolucio-
nária é a recusa oposta pela nobreza aos esforços da monarquia para
renovar a sociedade.
O feudalismo encontra-se, portanto, em declínio, mas está longe
de ter desaparecido e vale-se do mais pequeno sinal dc enfraqueci­
mento da vontade real, de qualquer relaxamento da autoridade monár­
quica para tentar restabelecer a situação anterior.
E isso continuará a ocorrer enquanto a ordem social continuar
a buscar apoio nas ordens, nos estados provinciais, bases herdadas
do feudalismo. Existe profunda antinomia entre a evolução dos
regimes políticos da Europa do oeste para a centralização monár­
quica e a ordem social, que continua a se valer de princípios dia­
metralmente opostos. Esta é a explicação para algumas das crises so­
fridas pelas sociedades políticas da Europa Ocidental no século XVIIX.
O feudalismo não desaparecerá por completo com a destruição
da ordem social que lhe corresponde: ele sobreviverá à Revolução
e pode-se, no século X IX , e mesmo no século XX, identificar aqui e
ali seus prolongamentos. Onde quer que se encontrem as condições
do feudalismo, onde quer que subsistam seus traços consecutivos,
estaremos à frente de variantes do feudalismo. . Isso nos países onde
a economia continua a ser essencialmente agrícola; onde laços de
dependência continuam a unir os indivíduos; onde o patronato con­

65
tínua era ação, nas Índias, na África, com os chefes costumeiros, no
Marrocos, com os senhores do Atlas, no Sul dos Estados Unidos até a
independência (com essa forma particular de escravidão mantida
pelos Estados do Sul), estamos na presença de sociedades que pode­
mos chamar, com o rigor da palavra, feudais.
Hoje, o vocabulário de nossas lutas políticas costuma usar esse
termo, “feudalismo”, mas para aplicá-lo a outras realidades. Fala-se
de feudalismo a propósito dos trusts, dos grandes grupos econômicos ou
financeiros. Seria justificável esse uso? Existem motivos para esta­
belecer paralelos entre o feudalismo clássico das sociedades rurais e
esses monopólios, tão familiares às sociedades mais industrializadas
do mundo contemporâneo? Entre estes e aquelas as analogias saltam
aos olhos. Tanto num caso como no outro, trata-se de oligarquias
que se opõem à autoridade do Estado ou que tendem a confiscar em
proveito próprio. Trata-se do fenômeno, bem conhecido dos espe­
cialistas em ciência política, dos grupos de interesses e da pressão
exercida por essas minorias sobre o poder e a política econômica.
Contudo, entre essas oligarquias existem diferenças que não se
deve menosprezar e que nos obrigam a falar de feudalismo com certa
precaução: esses novos feudalismos não estão ligados a lima economia
da terra mas, pelo contrário, à economia menos estável que existe: à
economía das finanças; alem do mais, eles não comportam essas
estruturas hierarquizadas, essas desigualdades jurídicas entre indivíduos,
esses laços pessoais de clientela, que constituíam outros tantos ele­
mentos constitutivos do verdadeiro feudalismo.
Assim, às vésperas da Revolução, o feudalismo continua a existir
como uma forma cheia de vida, mas ele é combatido e até mesmo
condenado, de um lado, pela afirmação da soberania do Estado sob
sua forma monárquica; de outro, pelo desenvolvimento de uma socie­
dade urbana e a ascensão de uma burguesia, cujos interesses são soli­
dários com a monarquia contra o que ainda sobrevive do feudalismo.

2. As R E P Ú B L IC A S P A T R ÍC IA S

O segundo tipo de instituição apresenta, como o precedente,


certas analogias que justificariam sua reunião sob a mesma clave.
Trata-se dessas repúblicas urbanas que floresceram nas cidades da
Idade Média e dos tempos modernos, nas quais o poder estava nas
mãos de uma oligarquia que não era nobiliária, mas burguesa.

66
Seu domínio: a civilização urbana
Situado no tempo, esse regime é menos antigo do que o feuda­
lismo, embora suas origens possam remontar até os séculos X II ou
X III; no espaço, ele cobre uma área territorial por certo mais redu­
zida que a do feudalismo. A exigüídade constitui até um de seus
caracteres intrínsecos. Com efeito, essa forma de regime está estrei­
tamente ligada ao fenômeno urbano que, por definição, cobre espaços
reduzidos, enquanto o resto do país é abandonado, quase sem partilha,
ao feudalismo. Ela é a expressão exata da civilização das cidades,
ligadas à atividade comercial, à presença das feiras, intercâmbio co­
mercial dentro da Europa ou com os outros continentes.

Liberdade, colegialidade, oligarquia


No plano político, essa civilização se traduz por um regime de
um tipo especial. Sobre o embasamento proporcionado pela geo­
grafia ou a economia privilegiada de determinados lugares, à saída
dos desfiladeiros ou nas costas bem recortadas, apareceu uma forma
original de regime.
Essas cidades lutaram bem cedo por sua liberdade; 6 o movi­
mento das comunas, dirigido mais contra os senhores da vizinhança
ou os bispos do que contra os soberanos, que estão longe e que
muitas vezes prestam ajuda aos burgueses das cidades em luta contra
o feudalismo. Às vezes, contudo, é justamente contra os soberanos
que as cidades têm de se defender. É o caso do Norte da Itália, onde
a liga lombarda reúne em federação as cidades que procuram pre­
servar a própria liberdade no tocante ao compromisso cavalheiresco
de combater pelo imperador. Essas cidades conseguem cartas, obtêm
franquias, liberdades. Daí por diante esses textos passarão a regula­
mentar tanto as relações exteriores como o governo interno.
Todas essas repúblicas têm em comum o fato de se governarem
livremente: é o que significa, nessa época, o termo república, que
não é sinônimo de democracia. É no século X IX que essas duas
noções se reconciliarão pouco a pouco, Na época, esses dois conceitos
são quase antinómicos: as democracias sao mais do tipo autoritário
e ditatorial, enquanto as repúblicas são liberais e oligárquicas.
Nelas, o poder está nas mãos de uma minoria. Essa minoria,
em geral, é formada por um colégio — o que concorre para dife­
renciá-lo dos regimes do tipo monárquico, e sua origem costuma ser
eletiva. O patriexado, que se adquire pagando direitos ou por uma
colação jurídica, designa os notáveis que constituem o governo cole-

67
gial denominado “o magistrado”, A expressão não designa um
indivíduo, mas uma entidade coletiva. Assim, um patriciado detém
o poder, ficando o povo miúdo sob sua dependência.
Essa forma de governo espalhou-se por conjuntos territoriais
mais extensos: não permaneceu como monopólio das cidades fortes,
entrincheiradas detrás de seus muros. Na Europa do Antigo Regime
podem-se notar pelo menos dois exemplos de conjuntos geográficos,
bastante extensos, que adotaram formas políticas semelhantes: as
Províncias Unidas c os cantões suíços, que sao 13 no século X V III.
As instituições federativas das Províncias Unidas e os cantões suíços
apresentam semelhanças com as das cidades do Império ou da Itália.
Muito descentralizadas, para retomar uma distinção posterior ao
Antigo Regime, elas sao mais confederações do que federações: os
laços que as prendem continuam bastante frouxos. Províncias e can­
tões uniram-se contra os inimigos externos, para defender a própria
independência, mas com a preocupação de preservar zelosamente a
própria autonomia: a história dos cantões suíços, assim como a das
Províncias Unidas, é bem a história de suas rivalidades internas.
Contudo, é preciso notar que nesses dois países, nos séculos X V II
e XVIII, e.sboça-se uma tendência para estreitar esses laços; obser­
va-se o aparecimento dessa tendência na corrente unitária, que tem
mais adeptos entre a gente do povo, mantido à parte da vida política
pela burguesia, e que deposita sua confiança no estabelecimento de
um poder autoritário e monárquico : nas Províncias Unidas, c o
movimento orangista que pretende estabelecer uma monarquia em
benefício dos descendentes de Guilherme de Orange. Pode-se perce­
ber, claramente, as afinidades existentes entre monarquia e movi­
mentos populares.

A situação no século X V 111


Essas repúblicas perderam muito de seu brilho e de seu poder
por diversos motivos, cuja convergência lembra os motivos que pro­
vocaram o declínio do feudalismo. Como o feudalismo, a republica
patrícia é um regime fadado a desaparecer, pois já foi ultrapassado
pela evolução da economia da sociedade e das idéias.
Essas repúblicas, outrora prósperas e muito ricas, que constituíram
mesmo os pólos da atividade econômica da Europa medieval e mo­
derna. entraram em decadência. Não estão mais à altura da economia
moderna. Nao se adaptam bem ao mercantilismo e são progressiva­
mente excluídas do comércio com as colônias pelo crescimento dos
grandes Estados modernos: a França, a Inglaterra.

68
Paralelamente a essa decadencia econômica, elas sao atingidas
pela decadencia política. Elas lutam ainda contra outras formas de
regime, mais modernos e mais bem armados para a competição,
expostas como estão à cobiça dos Estados monárquicos, que sonham
em absorvê-las. É o caso, por exemplo, de Estrasburgo, anexada
pelo reino de França em 1681 (a chamada política das reuniões).
Quando essas cidades fazem parte de um conjunto político como,
por exemplo, as cidades livres do Impèrio^ — no século X V III, con­
tam-se ainda cerca de cinqüenta —-, o poder central procura diminuir
seus privilégios,
■'A maioria delas desaparecerá na tormenta revolucionária. Algu­
mas se entregarão livremente (é o caso de Mulhouse, que entra para
a unidade francesa ; ou então, serão absorvidas pela aplicação do
sistema de co-parlicipaçao. O caso mais famoso é o de Veneza, que
o tratado de Campo Formio (1797), negociado entre Bonaparte,
para a República Francesa, e o imperador, entrega pura e simples­
mente à Áustria e que, daí por diante, ficará incorporada aos Estados
patrimoniais dos Habsburgos. Essa é a origem do reino lombardo-
-veneziano e de um longo período de submissão, de que Veneza só se
libertará em 1866, quando volta a fazer parte da Itália unificada.
O mesmo acontece com Gênova, anexada ao reino de Piemonte-Sar-
denha. O recesso de 1803, que faz uma redistribuição territorial
do Império, ocasiona a morte da maioria das cidades livres do Im­
pério, e os tratados de 1815 consagrarão seu desaparecimento.
Alvo das ambições dos Estados monárquicos, arrebatadas pelo
redemoinho da tempestade revolucionária, essas cidades livres, essas
repúblicas não se ajustam, aleni do mais, com a aspiração unitária,
que irá predominar no século XIX. O nacionalismo moderno leva
à formação de grandes Estados, a Itália, a Alemanha, e a sobrevivência
dessas cidades livres é incompatível com os grandes conjuntos
territoriais.
Entretanto, no século XX, essas cidades terão uma descendência
temporã; contudo, trata-se, em geral, de criações artificiais, ditadas
por considerações puramente diplomáticas, como a criação, logo após
a Primeira Guerra Mundial, da cidade livre de Dantzig, e, depois de
1945, da de Trieste. Tanto num caso como no outro, tinha-se em
vista neutralizar pretensões rivais, separando as cidades contestadas ;
mas essas soluções são precárias, e tanto uma como outra desapare­
cerão. Contudo, convém assinalar que duas dessas cidades, Breme e
Hamburgo, subsistem sob a forma de Lãnder na República Federal
da Alemanha, respeitando o regime federal adotado as partícularida-
des locais, provinciais ou urbanas. Mas, no conjunto, essa .forma de
regime praticamente desapareceu da nossa Europa,

3. A M O N A R Q U IA A B S O L U T A E A D M IN IS T R A T IV A

Predominância da monarquia
No século X V III, feudalismo e república patrícia constituem,
portanto, formas residuais, que cobrem apenas uma superfície redu­
zida da Europa, Essas formas desaparecem porque ' vao contra o
impulso geral da sociedade, a evolução da economia, da administração
e das idéias, A evolução trabalha em favor do regime monárquico,
então o mais difundido; em diversos países ele se sobrepõe ao que
ainda resta do feudalismo ou aos vestígios das repúblicas patrícias.
Não estaríamos esquematizando se disséssemos que a forma normal
do Antigo Regime político no século X V III é a monarquia. Daí a
equação, muitas vezes colocada como axioma, de que o Antigo
Regime é a monarquia. Essa equação recebe uma confirmação
suplementar pelo fato de a Revolução, que irá fazer tábua rasa do
Antigo Regime, ser dirigida esscncialmente contra a monarquia.
Contudo, essa equação só é verdadeira em termos, já que outros tipos
de regimes subsistem, mas sobretudo porque a denominação de mo­
narquia cobre uma diversidade bastante grande de formas de governo.
Encontramos aí, noutro nível, essa constatação da pluralidade das
experiências.
A Europa tem monarquias de todos os tamanhos; a disparidade
entre os Estados é ainda mais acentuada do que hoje. Atualmente,
a maioria dos Estados europeus são de uma ordem de grandeza
comparável, enquanto que a Europa do século X V III justapõe, ao
lado de reinos vastíssimos, grande número de minúsculos principados,
dos quais não subsistem hoje mais do que Mcnaco ou Lichtenstein.
Por outro lado, os graus da autoridade são muito desiguais: em alguns
países, o poder é ilimitado; em outros, ele deve concertar-se com
uma multiplicidade de adversários ou de parceiros.
Contudo, é possível reduzir essa variedade de formas monár­
quicas a três tipos: a monarquia absoluta, o despotismo esclarecido
e a monarquia britânica, que são como que outras tantas espécies
de um mesmo gcnero.
Essas formas não são fixas e, justamente por não serem definidas
por textos, evoluem com muito mais facilidade. A Europa ainda não
pensou em fixar por meio de constituições a organização do poder

70
e as relações entre os órgãos, quando eles são muitos: como o exer­
cício do poder não está consignado em nenhum texto, ao qual cada
uma de suas formas se possa referir, há uma grande margem de
manobra.
Muito antiga em sua essência — o poder de um só —, esse é o
traço que distingue a instituição monárquica das outras formas de
regimes caracterizados pela pluralidade, que, para o feudalismo, reside
na fragmentação da autoridade; para as repúblicas patriciais, nos exe­
cutivos colegiados. A instituição monárquica define-se, portanto, pela
unicidade do soberano e pelo poder pessoal.

Modernidade da monarquia absoluta


Se a monarquia tem atrás de si séculos de História, sob sua forma
absoluta ela é recente, ao passo que o despotismo esclarecido é mais
recente ainda. Trata-se de uma contestação fundamental, que merece
explicação.
Em que a monarquia absoluta se distingue da simples monarquia?
Que ê que o absolutismo acrescenta ao caráter monárquico do
regime?
Absolutismo não é sinônimo de arbitrariedade. O que os filó­
sofos ou os políticos chamam de arbitrário no século X V III é o
despotismo, cujo exemplo eles encontram no Império Otomano, onde
os caprichos do sultão, que não são contidos por moral alguma, nem
nenhuma lei fundamental, 6 a única regra. Não acontece o mesmo
nas monarquias absolutas da Europa Ocidental, O absolutismo con­
siste num poder não partilhado, concentrado na pessoa do rei. Seu
caráter pessoal é o que os sociólogos políticos chamam hoje de perso­
nalização do poder. A soberania é absoluta em todas as ordens, tanto
no interior quanto no exterior; é esse o sentido da famosa fórmula:
“o rei é imperador em seu reino”. É o repúdio do velho conceito
medieval, que admitia que acima de um rei pudesse existir um suse-
rano. O rei não reconhece nem autoridade nem suseranismo, nem
sequer o do Papa, embora o reí de França seja independente em
relação à Santa Sé (o galicanismo é um componente dessa concep-
cão da monarquia absoluta). Sua soberania é absoluta também no
interior, onde o rei é obedecido por todos, onde tudo lhe é subordinado.
É esse o conceito que preside à noção da monarquia absoluta.
A realidade não se conforma a isso senão dentro de certas medidas; o
que existe é uma aproximação. É no final de um processo de vários
séculos que a monarquia absoluta conseguiu libertar-se dos entraves

71
do feudalismo, impondo sua autoridade soberana. A instauração do
absolutismo monárquico é o resultado de diversos fatores.
Podemos citar quatro fatores que trabalham em favor do
absolutismo.
1. A evolução das idéias. Há vários séculos todo um movi­
mento procura reabilitar a idéia de Estado. Desde a renovação do
direito romano é que se voltou a encontrar a importância dessa noção
e, ao mesmo tempo, justificar a pretensão do poder real ao absolu­
tismo. A essa legitimação jurídica acrescenta-se outra, teológica, que
apresenta a monarquia absoluta como a expressão mais perfeita da
autoridade delegada por Deus. É nesse sentido que se fala em
monarquia por direito divino.
2. O movimento dos juristas e dos teólogos em favor da auto­
ridade monárquica foi reforçado por uma parte da opinião pública,
a burguesia das cidades, entre outras, que, lutando há muito tempo
contra a autoridade episcopal ou senhoria!, volta-se naturalmente para
o rei protetor, cuja distante tutela é menos pesada do que a dos
adversários próximos. Monarquia e burguesia aliaram-se contra o
feudalismo civil e eclesiástico. O desenvolvimento da autoridade
real representa, com efeito, uma proteção contra a arbitrariedade do
feudalismo, uma garantia de ordem contra a insegurança (é sufi­
ciente lembrar os Grandes Dias de Auvergne, em pleno coração do
sáculo X V II, quando os homens do rei punem as pilhagens dos senho­
res) e, enfim, um fator de progresso, porque a ação da administração
é exercida em favor de um desenvolvimento que hoje qualificaríamos
de econômico e social. A monarquia, portanto, tem a certeza de
poder contar com simpatia e aliados entre seus súditos.
3. As transformações da sociedade trabalham em proveito da
autoridade real. Se a senhoria e a cidade livre não estão mais à
altura dos tempos modernos, a monarquia proporciona uma resposta
adequada aos problemas que se originam da evolução geral. Com um
exército permanente, uma administração que se desenvolve de forma
contínua, do século XVI ao X V III, ela se aperfeiçoa e estende o
domínio de sua ação: pode-se pensar que a monarquia absoluta
é a forma moderna do Estado, da modalidade de governo mais bem
adaptada às exigências dos tempos.
4. Graças à ação perseverante do soberano e de seus servidores,
pessoas ligadas ao rei, legistas, oficiais, vai-se estruturando, pouco a
pouco, uma administração que dá à monarquia meios proporcionais
às suas ambições; d a arroga-se o clireiío de conceder franquias,

72
limita os privilégios, combatendo sem tréguas tudo o que pode fazer
sombra à autoridade do rei ;— o feudalismo secular e eclesiástico —
cujo lugar, aos poucos, ela vai tornando seu. Sem a ação metódica
desses oficiais, que trabalham para estender as prerrogativas da coroa,
a ação de alguns legistas, que elaboram uma filosofia da monarquia,
seria uma contribuição interessante para a história das idéias, mas
sem conseqüência prática. Sem essa administração, cuja história está
intimamente ligada à história politica, não teria havido monarquia
absoluta, È cia que estabelece toda a difc'rença entre as monarquias
absolutas e as que não o são, mesmo se o pretendem. Com o des­
membramento da antiga curia regis, com o aparecimento dos parla­
mentos, dos intendentes, com o desenvolvimento das repartições que
assistem aos intendentes em suas tarefas administrativas, com uma
correspondência regular entre essas repartições c os agentes, a mo­
narquia absoluta dá a si própria uma forma moderna de governo,
por ser a mais racional e a que atinge o mais alto grau de eficácia.

Os limites de fato ao absolutismo


Ê preciso, de novo, distinguir entre a doutrina e a prática. Se,
no plano das idéias, a noção de soberania é absoluta e já nao tolera
limites á autoridade real, na prática ela está longe disso, pois nao
apresenta, com o absolutismo monárquico, mais do que uma reali­
dade aproximada.
1. O absolutismo superpÕe-se às outras formas políticas. A
soberania monárquica ainda não conseguiu fazer tábua rasa dos ves­
tígios do feudalismo, nem reduzir a nada a liberdade dos centros
urbanos. O poder do rei tem de entrar em entendimentos com o
que sobrevive do feudalismo, sempre pronto a renascer, pois basta
uma crise de sucessão, urna regência, para que os grandes tentem
recuperar poder e influência: a Fronda não está tão longe assim.
Tocqueville, em O Antigo Regime e a Revolução, demonstra de
forma luminosa que a Revolução prolonga diretamente a obra dos
soberanos absolutos. O que nenhum deles conseguiu levar a cabo
será conseguido pelas assembléias revolucionárias, passando por cima
de todos os particularismos e da ordem social tradicional.
2 . Em segundo lugar, por mais absoluto que seja, esse regime
não goza todas ás facilidades práticas que o progresso técnico coloca
â disposição dos governos contemporâneos, O império napoleónico,
os regimes autoritários do século XX terão um poder infinitamente
superior ao dos monarcas considerados absolutos no Antigo Regime,
pois eles dispõem apenas de uma administração ainda multo inade-

73
q u a d a , a despeito de seus progressos e de seu fortalecimento. Seus ^
meios ainda são limitados; os serviços que essa monarquía pode prestar 1
são reduzidos e precários.
3. A isso acrescenta-se que a maior parte dos soberanos nem
sequer está segura a respeito de seus agentes. Para dispor de agentes -
fiéis e dóceis, os reis de França tiveram de criar, em várias etapas, um >
pessoal novo, a princípios bailios e senescais, depois os oficiais, enfim os
intendentes. Mas essa renovação do pessoal torna-se ineficaz, pois, para
assegurar recursos, a monarquia é obrigada a vender cargos: proprie­
tários de seus cargos, os funcionários se emancipam. Para recuperar
a autoridade que tem sobre eles, a monarquia ter ia que resgatar esses „
cargos, medida que o estado das finanças reais torna ilusória.
4. Enfim, como acabamos de lembrar, as finanças da monarquia
não são boas, por um lado, por causa da ausência de uma adminis­
tração responsável pelo estabelecimento e cobrança de impostos, o
que a obriga a recorrer aos serviços de arrendatários; por outro lado,
por causa da organização social desigual e da hierarquia herdada da
Idade Média, o que reduz o lançamento fiscal e priva a monarquia
de receitas substanciais, com a distinção existente entre as ordens
privilegiadas, isentas de impostos, e o terceiro estado, sujeito a eles.
Sendo assim, a manutenção da ordem tradicional, longe de ser de
proveito à monarquia, é contrária aos verdadeiros interesses do regime.
A lógica, portanto, seria abolir os privilégios, pois o rei podería reinar
com mais autoridade sobre uma sociedade igualitária.
Estado da sociedade, crise financeira, estruturas administrativas
e poder real, portanto, são interdependentes. É a conjunção de todas
essas causas que faz com que o absolutismo monárquico seja muitas
vezes mais uma pretensão do que uma realidade efetiva. No século
X V III, a monarquia absoluta ainda não conseguiu superar a contra­
dição interna entre a ordem social desigual e a lógica da evolução
política.

A administração enfraquece o caráter pessoal

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da administração e o for­


talecimento das repartições têm como consequência a alteração de
uma característica fundamental da monarquia: seu caráter pessoal.
A própria essência da monarquia reside na concentração do
poder nas mãos de uma única pessoa, um soberano amado por ele
mesmo. O caráter pessoal é bem anterior ao absolutismo e à adrm-

74
nistração: o desenvolvimento do absolutismo e da administração aos
poucos vão fazendo com que ele desapareça. À medida que se esta­
belece uma rede de instituições pelas quais tem de passar a decisão
real5 cria-se outro tipo de relações, impessoais e anônimas, entre os
súditos e o soberano: não existem mais entre os nobres, ou os bur­
gueses, e a monarquia os laços de afeto que, até Henrique IV, uniram
os súditos ao rei, mas apenas relações jurídicas e administrativas. Essa
evolução carrega em seu germe a ruína da idéia monárquica no es­
pírito e no coração dos povos, porque não se trata mais de uma pessoa
ou de um príncipe, mas de um regime, de uma forma anônima e
jurídica.
O reino de Luís X IV representou um ponto de equilíbrio no
qual o toque pessoal e o caráter administrativo ainda estão associados,
embora já comecem a se desfazer; no século X V III, essa diferença
se acentua. Trata-se de um elemento de fraqueza, que explica a
relativa facilidade com que a monarquia irá desabar, com o empobre­
cimento monárquico.

4. O D E S P O T IS M O E S C L A R E C ID O

A expressão despotismo esclarecido não é contemporânea dos


acontecimentos. Ela foi forjada posteriormente, pelos historiadores
que estudaram os regimes da Europa Central e Oriental; mas, hoje,
ela é acolhida universalmente e tem a vantagem de caracterizar
alguns dos traços mais fundamentais dessa forma de regime.

Analogias com a monarquia absoluta


Nesse regime monárquico pessoal, os déspotas esclarecidos pro­
curam reforçar a própria autoridade, indo de encontro aos mesmos
obstáculos encontrados pelos monarcas absolutos. A autoridade da
tzarina Catarina II ou do imperador José II se desenvolve, como
a de Filipe II ou a de Luís XIV, em detrimento do feudalismo, da
Igreja, das particularidades provinciais. O progresso do despotismo
esclarecido pode ser medido pela redução dos privilégios. Os déspotas
usam do poder, como faziam os monarcas absolutos, para racionalizar
o governo, unificar seus povos e territórios, impondo, por exemplo, a
língua alemã nos Estados de Habsburgo, estabelecendo códigos e insti­
tuições comuns. A mesma noção do Estado soberano inspira seu modo
de agir ; uma administração comparável à da Espanha ou à da
França está a seu serviço.

75
Há Sii. portanto^ nao apenas analogía; mas um parentesco con­
fessado e uma imitação deliberada de um modelo que eles procuram
reproduzir; sua prática e suas instituições são colocadas na monarquia
absoluta.

Traços distintivos
No tocante à descrição geral da monarquia absoluta; os regimes
de despotismo esclarecido apresentam alguns traços distintivos, que
muitas vezes dependem das circunstâncias, mas que bastam para
dar-lhes um lugar à parte na galeria dos regimes do século X V III.
Esses regimes devem sua originalidade ao fato dc terem aparecido
depois das monarquias absolutas e de terem surgido alhures.
A monarquia absoluta começa a aparecer desde o início dos
tempos modernos. É na Espanha que, pela primeira vez, cia toma
sua fisionomia característica, sob o reinado de Filipe II, na segunda
metade do século X V I; na mesma época, Elisabeth não está longe
de estabelecer um regime absoluto na Inglaterra. Na França, a
monarquia só se torna absoluta no século X V II, com o ministério
de Richelieu, seguido do de Mazarino e, sobretudo, sob o governo
pessoal de Luís XIV. É, portanto, nos séculos XVI e X V II que a
monarquia absoluta toma forma.
Por sua vez, o despotismo absoluto data do século X V III e, mais
precisamente, da segunda metade do que da primeira metade do
século. Uma coincidência fortuita faz com que a maioria dos sobe­
ranos chamados esclarecidos recebam o número II: Catarina II,
José II, Frederico II. Ora, o reinado da maior parte deles se inicia
mais ou menos nos meados do século. Em 1740, Frederico II da
Prússia sucede ao pai; em 1760, Catarina II sobe ao trono da Rússia;
a partir de 1780, José II, depois da morte de sua mãe Maria Teresa,
passa a reinar sozinho. Portanto, entre o aparecimento da monarquia
absoluta e o do despotismo esclarecido existe uma defasagem crono­
lógica, pelo menos de um século a um século e meio.
A segunda diferença não se relaciona com a cronologia, mas com
a geografia. Com efeito, se o lugar de eleição da monarquia absoluta
é a Europa Ocidental, a França, a Espanha, a Inglaterra, o despo­
tismo esclarecido localiza-se a leste da Europa, na Prússia, na Áustria,
na Rússia. Constatamos o mesmo dualismo das duas Europas já
observado a propósito da colonização, da ordem social, da presença
ou ausência de burguesia, do predomínio de uma sociedade urbana
e da atividade comercial. Eis o que confirma nossa presunção dos

76
laços existentes entre a atividade econômica, a organização das rela­
ções e a forma dos regimes.
Além do mais, esse dualismo se prolongará além do Antigo
Regime. A Revolução deixou traços mais duradouros a oeste da
Europa do que a leste. Quando estabelecemos a cronologia do
liberalismo ou da democracia, temos constantemente de voltar a essa
constatação da defasagem da região leste em relação à região oeste.
Hoje mesmo, não é fora de propósito pensar que esse dualismo foi
transposto no confronto de dois sistemas de governo; o conflito que
opõe as democracias do tipo pluralista às democracias populares nada
mais é que a última metamorfose de uma história que há séculos
dissociou a evolução das duas Europas. Essa constatação facilita a
compreensão do sentido histórico do despotismo esclarecido. Sua
função foi permitir que esses países compensassem o atraso em que
se encontravam em relação à monarquia absoluta, empreendendo ou
apresentando sua modernização.
O fato de o despotismo esclarecido ter aparecido mais tarde, e em
lugares outros que a monarquia absoluta, teve conseqüências sobre
a própria forma do regime.
Tendo nascido depois, o despotismo esclarecido sofreu o contágio
do século; portanto, em sua apresentação, ele é mais moderno do que
a monarquia absoluta. Por convicção sincera, mas também por pru­
dência c habilidade, os déspotas fazem concessões ao gosto e ao
vocabulário do tempo; cuidando da própria propaganda por inter­
médio dos escrivães e cios publicistas, eles lisonjeiam a opinião pú­
blica e conquistam para si a simpatia de uma Europa onde os filó­
sofos começam a ditar as leis.
Essa experiência, de que se aproveitam os déspotas esclarecidos,
tem efeitos até nas bases do regime. De fato, se a monarquia abso­
luta se originava, por um lado, no conceito romano de Estado, por
outro lado, numa teologia da monarquia de direito divino, o funda--
mento divino tornou-se anacrônico e o despotismo esclarecido toma
todo o cuidado de não se referir a ele. Ele se legitima pelo desejo
de fazer a felicidade do povo, pelas intenções filantrópicas então
apregoadas.
O século X V III já é um século laicizado, secularizado. É ne­
cessário precisar que essa parte da Europa não é católica. A compara­
ção entre monarquia absoluta e despotismo esclarecido mostra a
evolução das relações entre política e religião. O despotismo escla­
recido é uma versão secularizada da monarquia absoluta, É uma
etapa no grande movimento que vai desfazer os laços entre as Igrejas

17
e os soberanos. Mesmo na Europa Ocidental, a especie de casamento
místico que unia a coroa e a Igreja transformou-se num casamento
de razao. Nos países onde reina o despotismo esclarecido, esse estágio,
na verdade, está ultrapassado; trata-se mais de uma aliança de inte­
resses que de uma simbiose de pensamentos e sentimentos.
A modernidade do despotismo esclarecido distingue-se também
por sua racionalidade. O século X V III é o século em que a razão
empreende o exame crítico de todas as crenças. Se o despotismo
esclarecido, em sua inspiração e ern seus fins, é racionalista, não o é
menos nos objetivos que fixa para si próprio. Ele visa a instaurar
uma ordem racional; a simplificação, a uniformização, a codificação,
que caracterizam sua atividade, ligam-se a esse grande desígnio de
racionalidade, no qual o poder do Estado encontra sua razão de ser.
Sua simplificação elimina os rivais, a uniformização facilita a ação dos
poderes públicos, reforça-lhes a autoridade, É por esse lado que o
despotismo esclarecido pode se aparentar com certos aspectos da obra
da revolução. Os déspotas esclarecidos, a leste, a Revolução, a
oeste, trabalharam no mesmo sentido para substituir a tradição pela
razão.
A localização no espaço tem como segunda consequência o fato
de o despotismo esclarecido ter encontrado a leste da Europa uma
economia atrasada, ausência de capital, nenhuma ou quase nenhuma
burguesia, uma instrução ainda muito restrita, condições menos favo­
ráveis do que a dos soberanos absolutos dos séculos X V I e X V II.
O Estado, portanto, é obrigado a fazer tudo por si mesmo e a tomar
o lugar da iniciativa privada. Assim, na Rússia, é a coroa que ex­
plora as minas do Ural, na falta de um capitalismo em condições
de fazê-lo. O despotismo esclarecido caracteriza-se, portanto, por
práticas intervencionistas, que dao nascimento, quando ela ainda
não existia, a uma tradição autoritária, que se perpetuará até o
século XX.

A posteridade do despotismo esclarecido


Com efeito, entendido num sentido amplo, e não mais limitado
a um domínio no tempo e no espaço, o despotismo esclarecido sobre­
viverá, embora perca alguns de seus traços mais circunstanciais —
abstendo-se, por exemplo, de fazer referência ao vocabulário dos
filósofos, às idéias do século X V III e mesmo, às vezes, dispensando-se
de ter um monarca , mas ele continuará enquanto conceito e go­
verno. Legitimamente, no meu sentido, podem-se ligar ao despotismo

78
esclarecido todos os regimes que, nos sécalos X IX e XX, se propõem
transformar as estruturas da sociedade por meio da autoridade.
Todas as vezes que estivermos na presença de um reformismo
pelo alto, com muita verossimilhança estaremos à frente de um des­
cendente do despotismo esclarecido. Todos os regimes, todos os
governos que empreendem a reforma das estruturas, mesmo que seja
para desenvolver o poderío do Estado ou para fazer a felicidade de
seus súditos, ou ainda por esses dois motivos ao mesmo tempo —
pois não são necessariamente contraditórios — ligam-se, de perto ou
de longe, à tradição do despotismo esclarecido. 'Se as reformas são
feitas sem que sejam consultados os interessados, encontramos a mesma
conjunção de açao autoritária e de intenção racionalista.
É o caso, em primeiro lugar, dos países que constituíam o domínio
do despotismo esclarecido no século X V III e, singularmente, a Rússia.
Os czares reformadores do século XIX , que governam lançando mao
dos ucasses, são os herdeiros legítimos de Pedro, o Grande, e de Ca­
tarina II : a abolição da servidão, decretada por Alexandre I I em
1861, alinha-se ao lado das reformas da grande Catarina, e pode-se
perguntar se o governo de Stalin, que representa uma das formas de
poder mais con centradas, das mais autoritárias que o mundo tenha
conhecido, postas a serviço de um programa de reforma, não repre­
sentava o último avatar dessa tradição do despotismo esclarecido. Na
Alemanha também existe uma tradição de iniciativa reformista, que
sobreviverá a Frederico II, com Bismarck, centralizador, iniciador
de uma política econômica, fazendo votar uma legislação social avan­
çada em relação a seu tempo.
Poder-se-ia até afirmar que países que, no século X V III, não
faziam parte da esfera do despotismo esclarecido foram conquistados
pelo movimento nos séculos X IX e XX. É o caso da França, por
exemplo, onde o regime napoleónico e o Segundo Império se aparen­
tam, por mais de um título, com o despotismo esclarecido. Contudo,
os dois Napoleões recebem do povo o poder e tomam o cuidado de
fazer com que sua legitimidade seja confirmada mediante uma con­
sulta popular. Mas, posta de lado essa referência explícita à soberania
popular, no que diz respeito a programas e métodos, as analogias
são reais.
Prolongando essas considerações até nossos dias e ampliando o
círculo para além da Europa, é permitindo contar como variantes
do despotismo esclarecido certo número de regimes muito afastados de
seu berço original, que presidem aos destinos de países em vias de
desenvolvimento. A Turquia de Ataturk, o Egito de Nasser, alguns

79
regimes da América Latina fazem parte da familia do despotismo
esclarecido. As mesmas condições determinantes estão reunidas ali,
empenhadas na transformação — um regime puramente conservador
nao é um regime do despotismo esclarecido —, e a obra de moderni-
zaçao, empreendida sem consulta aos interesses e por meio da autori­
dade. Se o Oriente Próximo, a Turquia e o Egito, se a America
Latina, se determinados países da Ásia ou da África possuem hoje
regimes que podem ser filiados ao despotismo esclarecido, isso ocorre
porque os países em questão encontram-se às voltas com os mesmos
problemas que os da Europa Oriental e Central no século X V III.
Tanto num como noutro caso os problemas são uma economia atra­
sada, sociedades pouco diferenciadas, sem capitais, sem pessoal técni­
co, sem burguesia culta; sendo assim, é forçoso que os poderes públicos
se coloquem no lugar da iniciativa privada.
Mesmo abolindo a monarquia, como no Egito (1952), mesmo
rotulando-se de socialismo, esses regimes não deixam de se aparentar
com o despotismo esclarecido. Declarando-se hoje socialistas, a maior
parte dos regimes africanos ou asiáticos nada mais fazem, em suma,
em nosso século, do que se conformar coin o exemplo dado pelos
déspotas esclarecidos do século X V III, como Catarina II ou Frede­
rico II quando se referiam, aos filósofos da época ou ao movimento
das luzes; prevalecendo-se do socialismo, Boumcdicne ou os ditadores
do Oriente Próximo conformam-se corn as ideologias dominantes.
Esse paralelismo é mais uma prova do parentesco dos regimes
e nos mostra que as formas que inventaríamos às vésperas da Revo­
lução puderam sobreviver aos movimentos revolucionários. À análise
do despotismo esclarecido no século X V III projeta sobre muitos
redimes contemporâneos uma luz que ajuda a definir-lhes a finalidade
e a descobrir-lhes a função social,

5. O R E G IM E B R IT Â N IC O

Monarquia absoluta sob Elisabeth, ou regime de tipo aristocrá­


tico, se levarmos em consideração o poder do Parlamento, o regime
britânico exige um estudo especial, na medida em que os desenvol­
vimentos ulteriores de sua política nao permitem identificá-lo com
este ou aquele dos regimes estudados até aqui.
pjo século X V III esse regime ainda não havia adquirido seu
aspecto definitivo. Até por volta de 1840, o que ocorre é a manu­
tenção de gabinetes colocados em minoria pelo Parlamento e é só no
início do reino de Vitória, por exemplo, que a responsabilidade do

80
Gabinete diante do Parlamento é irrevogavelmentc consagrada; ho je,
consideramos esse princípio de responsabilidade como urna das dis­
posições mestras do regime britânico. O regime tateia, antes de
encontrar sua forma definitiva. E evolui muito lentamente pelo fato
de nao existir constituição, sendo a parte dos costumes tanto maior
quanto menor é o número de textos.
Indubitavelmente, a Grã-Bretanha oferece o melhor exemplo de
adaptação progressiva de instituições ern fase de experiência. A Grã-
-Bretanha, onde a revolução não é considerada o único processo
possível de mudança, apresenta o caso de uma-adaptação flexível e
gradual, embora com reservas, já que, nos séculos X V II e X V III, esse
processo teve seus acessos de violência. No século X V II, ela aparece
como a terra das revoluções em oposição à França.
Elisabeth ficou anos sem convocar o Parlamento; seu sucessor,
Guilherme I, faz da monarquia absoluta a teoria, e Garlos I segue
o mesmo caminho. Mas essa evolução é bruscamente interrompida
por uma espécie de acidente histórico estranho. Guilherme I e Carlos
I, no início de seu reinado, eram talvez mais obedecidos do que
Henrique IV c Luís X III nos primeiros anos de seu governo, quando
intervém a crise revolucionária, o processo do rei, sua execução, 20
anos de agitações, o governo de Cromwell que é, avant la lettre, uma
experiência de despotismo esclarecido, embora as luzes com que essa
ditadura enfeita sua filosofia sejam o puritanismo e não a filosofia
do século X V III. Depois houve a Restauração e a volta de Carlos II,
e poder-se-ia acreditar que sc reata o fio rompido quando eclode o
segundo acidente revolucionário, com a revolução de 1688, provocando
uma mudança na ordem dinástica, mas que, sobretudo, arruina defi­
nitivamente o absolutismo monárquico na Grã-Bretanha. Os espíritos
liberais saudarão a “gloriosa revolução” de 1688, cujo teorizador é
Locke. Desde então a Grã-Bretanha engaja-se num caminho novo,
que irã explorar por sua conta, c também por conta de muitos
outros países.

Suas características
Mas se, em 1750 ou 1780, esse regime ainda não tomou sua fisio­
nomia definitiva, já se podem notar em esboço as linhas mestras do
que irá ser o parlamentarismo britânico.
Trata-se de uma monarquia hereditária, e a mudança de ramo,
a substituição dos Stuart pela dinastia de Orange, depois dos Hanover,
nao chegou a causar prejuízos ao princípio dinástico.

81
Essa monarquia não é absoluta, bem pelo contrário; e no século
XVIII não se sabe se ela irá inovar ou voltar para um regime anterior
ao absolutismo, isto é, a uma mistura de aristocracia e de realeza.
Na Inglaterra do século X V III, uma aristocracia poderosa e
honrada, que goza do respeito e da consideração geral, tem nas mãos
a parte essencial do poder: o monopólio da administração local, os
poderes da polícia e da justiça; o que é chamado de justices of peace
pertence-lhe por hereditariedade. A Inglaterra, que nao conhece o
equivalente da centralização administrativa francesa, não tem uma
burocracia que dependa de Londres, e o ministério do interior será
um dos últimos departamentos ministeriais a ver a luz do dia na
Inglaterra. Tudo isso nos inclinaria a aproximar o regime britânico
do primeiro dos típos que passamos em revista.
Contudo, essa aristocracia nao é um feudalismo turbulento,
como o do continente. Suas origens também a tornam diferente:
enquanto a democracia do continente tende a se limitar à nobreza
da raça, à nobreza militar ou à dos grandes proprietários, a aristo­
cracia inglesa, cujas velhas casas feudais desapareceram quase por
completo nas guerras civis {guerra das Duas Rosas, guerras de religião),
é relativamente recente. Aberta à fortuna e ao talento, ela não forma
uma casta, como no continente, e seu poder não tem o mesmo sentido
político e social que o do feudalismo da Europa Central, ou mesmo
da Europa Ocidental. Longe de ser afastada do exercício do poder
por uma monarquia absoluta, está associada a ele graças à sua
representação no seio do Parlamento, e a existência dessa instituição
representativa permanente é um dos dispositivos mais originais do
regime britânico.
Desse modo, a monarquia é limitada, não, como no continente,
pela turbulência intermitente de vassalos indóceis, mas pela existência
de uma assembléia regular que mantém sessões periódicas, de um
; I j!H:
Parlamento com atribuições já bem amplas. Contudo, ainda nao se
i i !$ pode falar cm regime parlamentar senão com precaução, A denomi­
nação de regime parlamentar, com efeito, é equívoca, pois pode
designar duas realidades bastante dessemelhantes, embora originárias
de um núcleo comum. Hoje, por regime parlamentar entendemos
urn regime no qual o executivo 6 responsável diante do Parlamento
que, retirando sua confiança aos ministros, pode a qualquer momento
it destitui-los. Ora, na Inglaterra do século X V III, essa responsabili­
dade ainda não é considerada uma regra essencial. Contudo, se,
tornando mais ampla a definição, entendemos que o regime é parla­
mentar quando existe uma representação, pode-se falar já em regime
li. parlamentar. De fato, uma partilha dos poderes é estabelecida desde

82
a revolução de 1688 e a declaração dos direitos de 1689 entre a
Coroa e o Parlamento. O rei é obrigado a contar com o Parlamento.,
cujo consentimento eie tem de obter para a votação de impostos e o
recrutamento de tropas.
A terceira originalidade do regime relaciona-se com o Gabinete,,
que ocupa uma posição intermediária ao lado da Coroa, com suas
prerrogativas, e do Parlamento, com suas atribuições. Certo, no
continente, na França, na Espanha, na Rússia, na Prússia, encontra­
mos um gabinete, ministros, conselhos, mas seu poder e atribuições
são totalmente diferentes, já que os ministros - do rei da Espanha
ou da França não passam de executantes, escolhidos pelo rei, de
quem dependem inteiramente e a quem somente têm de prestar
contas. O soberano reúne o conselho, mas não fica amarrado às
opiniões do conselho, e pode muito bem dispensá-las. Pelo con­
trário, o Gabinete britânico é relativamente independente em relação
ao rei. Em Versalhes, o rei tem assento em seu conselho. Em Lon­
dres, o Gabinete delibera longe de sua presença e, por isso, goza de
uma autonomia mais ampla. Se o Gabinete precisa da confiança
do soberano, a do Parlamento não lhe é menos necessária para con­
seguir a votação do orçamento e os meios necessários para agir,
A existência de um parlamento e a de um gabinete autônomo
são as duas características essenciais do regime britânico e constituem
sua originalidade em relação a todos os regimes que passamos em
revista.
Ao lado das instituições e à margem dos órgãos institucionais,
a vida política também apresenta outros traços originais, notada-
mente a existência de partidos. Foi na Inglaterra que surgiu, pela
primeira vez, esse fenômeno, que terá tanta importância no funciona­
mento dos regimes políticos, O Parlamento, sobretudo a Câmara
Baixa, e o corpo político são partilhados entre uma maioria e uma
minoria. Relativamente estáveis em suas combinações, dois campos
tendem a se esboçar, duas tradições disputam entre si o poder, sendo
a extensão da prerrogativa real o abono do debate. A divisão dua­
lista e a estabilidade dos partidos são acentuadas pelo regime eleitoral.
O Parlamento, com efeito, comporta duas Câmaras, das quais só a
Câmara dos Comuns é eletiva, A palavra “comuns” não tem a
mesma conotação do homônimo francês. As comunas da França sao
as unidades das aldeias; no vocabulário inglês, o termo designa as
comunidades no sentido medieval do termo, mais próximo das cor­
porações que das comunas, É isso o que justifica a representação
das antigas universidades no seio do Parlamento britânico, até a
reforma de 1950, sendo os universitários considerados enquanto co-

83
m uni da des, en q u a n to corporações estabelecidas. O regime eleitoral
é o da maioria relativa por escrutínio, ganhando o mais votado, mes­
mo que não consiga a maioria absoluta dos sufrágios* Esse regime,
constantemente praticado, que impõe o rcagrupamento e obriga a
diversidade de opiniões a se limitar dentro de um quadro dualista,
é um bom exemplo da influência dos regimes eleitorais sobre os
sistemas de partido.
No século X V III, a vida política é das mais restritas e sua
exigüidade a aproxima da experiência das repúblicas oligárquicas.
Se existe aí uma representação eleita, ela não constitui mais do que
uma fração reduzida da população. As duas câmaras não estão longe
de serem aristocráticas, tanto uma como a outra, pois a maioria das
cadeiras são ocupadas pelos descendentes de grandes famílias, sentan­
do-se o herdeiro do nome na Câmara dos Lordes, enquanto que os
irmãos mais novos integram a Câmara dos Comuns.
Trata-se, portanto, de um regime representativo, eletivo, aris­
tocrático e liberal porque, sendo oligárquico, nem por isso deixa de
ser menos liberal; a contradição é apenas aparente. Com efeito, no
século X V III, a democracia costuma ser solidária com a autoridade
e a liberdade das aristocracias. Se .Rousseau opta por uma forma de
república popular e autoritária, Montesquieu preconiza um regime
aristocrático, defensor das liberdades. Nas Províncias Unidas, duas
correntes se defrontam: a burguesia rica e liberal, ligada ao regime
oligárquico e federativo, e os elementos populares, que militam por
um regime autoritário e monárquico,
No século X V III, a Grã-Bretanha já goza de uma soma de liber­
dades mais ampla do que a de qualquer outro país da Europa. Quem
fala então em liberdade pensa logo em liberdade religiosa. É por
aí que se inicia a emancipação das consciências e dos indivíduos.
Nesse domínio, a Grã-Bretanha tem uma política particular. Com
efeito, ela desconhece a igualdade religiosa: a discriminação subsiste;
c preciso pertencer à Igreja estabelecida para exercer uma função
pública, para ensinar nas universidades. O bill do Test, estabelecido
no fim do século X V II, reserva as funções importantes especialmente
aos que podem atestar que receberam os sacramentos da Igreja
Anglicana, As demais seitas ou confissões, dissidentes, católicos, sao
reduzidas a uma condição inferior, e será preciso esperar pela eman­
cipação dos católicos, em 1829, para que os fiéis das igrejas não esta­
belecidas conquistem a igualdade dos direitos civis e políticos.
Contudo, se não existe igualdade, existe liberdade: liberdade
de consciência e liberdade de culto. A Grã-Bretanha já oferece o

84
espetáculo tão surpreendente para um europeu do Antigo Regime,
da tolerância religiosa. O que Voltaire admira, nas Cartas Ingle­
sas (1732), é que possam coabitar, em perfeita inteligência, 20
ou 34 confissões diferentes. Espetáculo insólito numa Europa que
ainda vive sob o regime da unidade de fé, e onde, mau grado a
divisão da cristandade depois da Reforma, só uma religião é auto­
rizada em cada reino ou principado. Esse é o princípio que pre­
valeceu no fim das guerras de religião no Império, com a trégua de
Augsburgo, é o que ainda inspira, na França, a revogação do Edito
de Nantes em 1685. Uma fé, uma lei, um rei.
A tolerância se estende às opiniões políticas: a Inglaterra já
possui uma imprensa política, que acaba de conquistar a liberdade.
É sob o reinado de Jorge III, durante o caso Wilkes, com as Carias
de. Junius^ que a imprensa conquista sua independência. A Ingla­
terra conhece uma liberdade de discussão ignorada em outros lugares,
e o Parlamento é o guardião dessa liberdade. É ele quem preserva a
liberdade da imprensa contra as intromissões da coroa. Desse libe­
ralismo decorre a atração que o regime britânico exerce sobre os
espíritos liberais de toda a Europa, A anglomania atinge amplos
setores da opinião culta, seduzida pelo funcionamento do regime e
pela liberdade que proporciona aos cidadãos.
Esse regime está fadado a um grande futuro, a ponto de se
tornar a forma política universal do século X IX e do início do scculo
XX. Se, por volta de 1750, pensava-se que a monarquia absoluta
era a forma mais moderna de governo, a modalidade mais racional da
organização do poder, no século X IX , a opinião esclarecida preferirá
o liberalismo à inglesa, o regime parlamentar, cujos caminhos a Grã-
-Bretanha foi a primeira a explorar e cujos fundamentos foram lança­
dos por ela. O estudo da evolução política da Europa e do mundo
no século X IX e no século XX será, em larga escala, o da propa­
gação desse modelo na superfície do globo.
Ficamos, assim, conhecendo cinco tipos diferentes de regimes
políticos, que podemos agrupar dois a doís, no tocante aos quatro
primeiros.
Este inventário tem um alcance que ultrapassa o período pré-
-revolucionário : por mais profunda e radical que seja, a Revolução
não suprimiu totalmente os princípios e modalidades dos regimes
anteriores.
Por comodidade, pusemos em destaque o que diferencia esses
tipos de regimes. Ora, na prática, acontece que eles se misturam,
mostrando simultaneamente determinadas experiências, características

85
de diversos tipos. Assim, numa mesma sociedade política, sobrepõem-se
feudalismo, ou república oligárquica, e monarquia. Existe, portanto,
entre esses tipos, toda espécie de comunicação. Além do mais, eles
apresentam traços comuns, que convém destacar.
1. Entre esses traços comuns, nota-se a quase universalidade
da forma monárquica, embora de características muito diversificadas.
Da república da Polônia, onde um rei nao é mais do que um presi­
dente sem poder, ao despotismo esclarecido ou à monarquia absoluta,
a forma monárquica cobre quase toda a Europa. Dois séculos depois,
observamos nesse domínio uma transformação muito profunda: a
diminuição progressiva, o desaparecimento quase completo da insti­
tuição monárquica, por causa das revoluções, mas também, e sobre­
tudo, pelas duas guerras mundiais que derrubaram os tronos e con­
sumaram a ruína das dinastias. A derrota de 1918 provoca a queda
dos Habsburgos, dos Hohenzollern, dos Romanov, do sultão, de vários
outros reinos pequenos; da mesma forma, em 1945, se a forma monár­
quica acaba desaparecendo da Europa Oriental, isso acontece por
causa da guerra. Hoje, no que respeita a Europa, a instituição mo­
nárquica está acantonada na região noroeste, limitando-se. com
exceção da. Grã-Bretanha, a pequenos países: os Estados Escandinavos,
os Países Baixos, a Bélgica.
2. Todos os regimes anteriores à Revolução são regimes tradi­
cionais. Quero dizer que todos eles constituem produto de uma
lenta e longa evolução, e é preciso ir muito lontre no passado para
cncontrar-lhes as origens, Eles não têm constituição, impõem-se
pela própria antiguidade e encontram sua legitimidade no tempo
de sua duração, seu melhor argumento, a prova de que eram viáveis.
Esses regimes baseiam sua justificativa na tradição, na historícídade,
Ê isso que. depois da ruptura da Revolução, se chamará, em 1815,
princípio de legitimidade. Antes de 1789 não se fala em principio
dc legitimidade, poreme os regimes não têm necessidade de justifica­
tivas. Só depois de desafiados nela Revolução é que terão necessidade
de forjar essa Justificativa: então, buscarão apoio no passado, na His­
tória, na tradição.
3 . Essa legitimidade, para a maioria deles, é consagrada no
sentido próprio do termo, santificada, poder-se-ia dizer, pela religião.
Quase em toda parte, são íntimos os lacos que unem Igreja e Estado.
A natureza, a forma desse vínculo varia de acordo com as religiÜes e as
confissões. Mas, originalmente, a Tgreia existia no Estado, e vice-
-versa. No século X V III, a evolução já procura dissociá-los, mas a
ruptura ainda não é consumada, Em geral, é o Estado quem tomou
distância em relação à religião, procurando subordinar-se ao poder

86
civil a Igreja e o clero, procurando sujeitar a sociedade religiosa ao
direito comum, Esse é o sentido do gal icarlismo, do josefismo, do
regalismo. Trata-se de urna etapa no processo de secularização
do poder e das sociedades civis. Também sob esse aspecto o Antigo
Regime anuncia a Revolução.
4. Outro traço comum, mas desta vez negativo: nessa variedade
de experiências e de regimes, não há nada, nem de perto nem de
longe, que se aparente com a democracia. , Nada a anuncia, nem as
repúblicas oligárquicas nem, com muito mais razão, as monarquias.
Encontram-se diversos processos, diversas- instituições, que
depois serão adotados pela democracia: instituições representati­
vas, processos eletivos, que não sao democráticos, nem cm seu prin­
cípio nem cm suas modalidades. Em toda parte, a vida política é
das mais limitadas: entidades com atribuições reduzidas, recrutadas
em círculos limitados, se reúnem durante pouco tempo, sem periodi­
cidade fixa, salvo na Inglaterra. Os Estados Gerais da monarquia
francesa não são democráticos, e o Parlamento britânico é totalmente
aristocrático. Por toda parte, a vida política está nas mãos de uma
elite. Aliás, não podería ser de outra forma, em sociedades cuja
maioria era rural, composta quase que só de iletrados, sociedades nas
quais existem uns poucos meios de comunicação e de expressão, onde
o intercâmbio de idéias é raro e lento. Com exceção da Inglaterra,
nenhum país admite liberdade de opinião nem de expressão* não
existem partidos constituídos, nem filosofia ou ideologia política am­
piamente difundidas entre a opinião pública. Não existia democracia
e havia poucas liberdades. Embora se constate na superfície da
Europa um pluralismo de regimes, nenhum deles admite ainda em
seu interior pluralidade de opiniões e de instituições, salvo a Grã-Bre­
tanha, com seus dois partidos.
Posta em confronto com esses traços gerais, a novidade radical
da Revolução aparece melhor. A Revolução irá mudar ao mesmo
tempo os princípios e a prática. Ela destruirá o princípio de histori-
cidade, forjará instituições novas, experimentará formas inéditas, com
a transmissão da soberania, a adoção de textos constitucionais, a
presença de assembléias, a formação de partidos políticos, a liberdade
de imprensa, a multiplicação dos jornais, a publicidade dos debates,
a liberdade de discussão, os clubes.

A experiência dos Estados Unidos


N a verdade, a enumeração completa das formas políticas deveria
incluir um sexto tipo, a república americana. Mas a república ame­

87
ricana é quase contemporânea da Revolução Francesa, pois foi em
1787 que uma convenção, reunida em Filadélfia, redigiu o texto da
constituição dos Estados Unidos, que só entrará em vigor — coin­
cidência notável — no transcorrer do ano de 1789. Apesar de tudo,
tendo em vista a influência dos acontecimentos da América sobre as
origens da Revolução Francesa e levando-se em conta o parentesco
de certas idéias dos rebeldes e certas experiências dos revolucionários
franceses, é preciso dizer algo a esse respeito. A experiência ameri­
cana não deixa de ter analogia com algumas das formas recenseadas
precedentemente. É assim que a coexistência de 13 Estados faz
pensar nas Províncias Unidas; há semelhanças entre o caráter oligár­
quico, a descentralização, certas instituições dos novos Estados Unidos
e a experiência duas vezes secular das Províncias Unidas.
O caso americano não é menos original. E isso por dois motivos,
É a primeira vez que uma colônia reivindica sua independência e
rompe os laços com a metrópole. Primeiro ato da descolonização,
esse gesto tem um sentido histórico capital e pode-se fazer remontar
à declaração de independência de 1776 todos os movimentos que,
depois, visaram a romper os laços de tipo colonial, na América espa­
nhola e portuguesa, no século XIX, na África ou na Ásia, no século
XX. A reivindicação de independência no espírito dos insurgentes,
como no processo circunstancial, está ligado de perto a causas po­
líticas; é porque as colônias americanas nao eram representadas no
Parlamento dc Londres, que se recusaram a se considerar comprome­
tidas com suas deliberações, considerando nulas as imposições decre­
tadas por Londres. Sob o aparente paradoxo da fórmula, os insurgen­
tes nunca se mostraram melhores britânicos do que no dia em que
romperam os laços com a Inglaterra, aplicando os princípios do
regime britânico dc representação, de eleição, de consentimento em
relação aos impostos.
Em 1783, separados da Grã-Bretanha, eles inovam as instituições,
elaboram um novo sistema político, cujos elementos constitutivos sao
novos, a começar pela presença de um texto de constituição. Com
a constituição americana, nos deparamos, pela primeira vez, com
um acontecimento que ainda hoje é atual; o texto elaborado em 1787
regulamenta para sempre o funcionamento dos poderes públicos na
União Americana.
Encontramos nesse regime assembléias eleitas, um equilíbrio entre
o governo federal e os Estados, garantias para as liberdades públicas, a
aplicação do princípio de separação dos poderes levada às suas últimas
consequências, já que o presidente não pode dissolver o Congresso,
nem o Congresso depor o presidente ou derrubar os ministros.

88
A experiência é nova e desperta uma corrente de simpatias ate
na Europa, onde, às vésperas da Revolução, dois modelos suscitam
igual interesse: o modelo inglês e o xnodelo americano.
Mas a França levará mais longe a empresa. É ela quem fará a
experiência mais revolucionária e é a experiência francesa que terá
maior repercussão. Esse o motivo pelo qual convém marcar o ano
de 1789 como o do término do Antigo Regime e nele fixar o ponto
final deste inventário de suas formas políticas e sociais.

89
5
As relações in t e r n a c io n a is

O estudo do Antigo Regime político comporta duas etapas:


as instituições internas e as relações entre Estados. Com efeito, esses
Estados, que consideramos isoladamente, mantinham relações cuja
fórmula variou com o tempo. Importa definir a originalidade dessas
relações internacionais, porque a Revolução também irá modificá-las,
tanto quanto o funcionamento dos regimes políticos. *
No século XVIII, os Estados são mais numerosos do que hoje.
Alguns exemplos a multiplicação exagerada de pequeno¿
Estados na Europa. A Itália, por exemplo, apresenta uma fisionomia
muito diferente da que conhecemos depois de sua unificação, há um
século. De acordo com a forma consagrada, ela nada mais é do que
uma rfexpressão geografica”. Sua unidade é geográfica e cultural,
mas não política.^ Uma boa dezena de Estados, de tamanho e impor­
tância muito desiguais, diviciem a península: reinos, Duas S icílias__
sobre o qual ^reinam os Bourbons Piernónte-Sardenha ; grandes
ducados ou pri ñapados,^como a Toscana; dependências estrangeiras,
republicas; Veneza e Gênova; e um Estado de um tipo muito par­
ticular, o único da Europa do século X V III, no qual subsiste uma
forma de teocracia, onde o espiritual e o temporal se confundem,
os Estados da Igreja. Desse modo, mesmo no quadro relativamente
exíguo de uma península que não cobre mais de 300 000 kra2 en­
contram-se justapostas a maioria das formas políticas precedente-
mente recen sead a s: feudalismo, república, monarquia absoluta ou
esclarecida. Essa multiplicidade de Estados talvez explique por que
a Itália se tenha familiarizado com a arte da diplomacia, quando a
esse respeito q resto da Europa ainda estava balbuceando. Desde o século
XVI, ê na Itália que se formam as tradições da diplomacia moderna.

9.0
É também da Itália que procede uma parte do pessoal diplomático,
sendo grande o número de italianos a serviço dos príncipes estrangeiros.
No século XVI, o modelo das relações diplomáticas é fornecido pelos
despachos dos núncios apostólicos e dos embaixadores de Veneza, A
Alemanha apresenta uma situação bastante semelhante e é principal­
mente dos alemães que precisamos falar pois, sob a aparência de
unidade, conferida pela fachada do Santo Império Romano Germâ­
nico, coexistem mais de 300 Estados.
Essa multiplicidade exige o estabelecimento de um sistema de
relações que, contudo, no século X V III, ainda são limitadas. O
mais das vezes, um Estado não as mantém com seus vizinhos imediatos.
Nao existe ainda um sistema universal de relações diplomáticas. Hoje,
com algumas exceções, que em geral se explicam por desacordos
ideológicos, todos os países do mundo mantêm relações regulares.
Basta ver, nas principais capitais, o número de missões diplomáticas.
Nada disso ocorria no século X V III, quando nern mesmo as grandes
potências têm representantes acreditados senão junto a um pequeno
número de Estados ; um sistema generalizado só será organizado
progressivamente; não se conhecem então organizações internacionais
comparáveis à Sociedade das Nações ou às Nações Unidas, e a todas
as organizações técnicas que delas dependem. O sistema de relações
internacionais é ainda reduzido e rudimentar.
O estudo das relações internacionais se subdivide, naturalmente,
em dois capítulos: relações da Europa com os demais continentes,
e relações internas da Europa. Essa distinção nao é apenas geográ­
fica, mas impÕe-se em razão de uma diferença de natureza: as
relações no interior da Europa se estabelecem de ordinário sobre um
pé de igualdade, pelo menos juridicamente, enquanto o mesmo não
ocorre nas relações entre a Europa e os demais continentes.

1. As RELAÇÕES ENTRE A EU RO PA E OS OUTROS C O N T IN E N T E S .


Os T M PÉR TO S C O L O N IA IS

Alguns reinos, entre os quais o Sião e a Pérsia, que conseguiram


preservar a própria independência, mandam de quando em quando
embaixadas extraordinárias à Europa, que mantém com eles relações
em geral intermitentes, em pé de igualdade. Postas de lado essas
exceções, as relações, normalmente, tomam a forma de colonização,
isto é, de dependência, de sujeição à Europa. Esse é um fenômeno
fundamental.

91
A própria essência da colonização é uma relação de desigualdade
e de dependência, repousando sobre a desigualdade política, militar,
econômica e cultural entre colônias e metrópoles, Muitas vezes os
conquistadores não encontraram à sua frente mais do que o vazio,
ou sociedades primitivas. Mas quando encontraram Estados consti­
tuídos, reinos ou impérios, eles os destruíram, como foi o caso dos
impérios pré-colombianos.
O importante, para caracterizar a situação no século X V III, é
constatar a existência de diversos impérios coloniais de antiguidade
desigual, alguns dos quais já em declínio, tais como o império por­
tuguês e o império espanhol, enquanto outros, pelo contrário, encon­
tram-se cm plena expansão, como o Império Britânico. O fato de
relevo é a rivalidade oposta pela França à Inglaterra, ambas dispu­
tando a supremacia colonial onde quer que a colonização progrida,
onde quer que passe a linha da expansão, seja na América do Norte,
na foz do Saint-Laurent ou Luisiânia, seja nas ilhas dos trópicos ou na
índia. Em 1763, o firn da Guerra dos Sete Anos consagra o fracasso
das pretensões francesas c coroa o esforço britânico; a França é
afastada do continente norte-americano e perde também o essencial
de suas possessões na índia. Dividida entre sua vocação continental
e sua vocação marítima, a França, que não soube ou não pôde
escolher, perdeu as terras clc além-mar. A Grã-Bretanha, pelo con­
trário, que não se havia comprometido no continente, ou o fez apenas
por procuração — ela está à procura de aliados na Europa, mas sem
ter de manter um esforço continuado —, pôde consagrar todos os seus
esforços no campo das operações externas, Esta é a chave de seu
sucesso. Mas nem por isso a rivalidade colonial entre os dois países
chega ao término; veremos a mesma reanimar-se por ocasião da guerra
de Independência dos Estados Unidos (1.776-1783) quando, para
restabelecer seu prestígio, a França prestará ajuda aos insurretos con­
tra a Grã-Bretanha.
Essa rivalidade colonial é uma dimensão essencial da história das
relações internacionais no século X V III, quando a competição ultra­
marina somava-se à competição no próprio continente europeu.

2. As RELAÇÕES EN TR E ESTA D O S EU RO PEU S

Na Europa, as relações internacionais obedecem a princípios


totalmente diversos. No que se refere ao direito, os países sao todos
iguais, entidades atuantes das relações internacionais, e nao existe
dependência. Há muito tempo, certos princípios, que alguns juristas

92
cuidaram de elaborar, constituem um corpo de doutrina: um direito
das gentes, que serve para regulamentar as relações em tempo de paz
e em tempo de guerra.
Admitidas essas convenções gerais, as atenções prodigalizadas
pelos soberanos nao impedem que. surjam conflitos, e o século X V III
vê, a curtos intervalos, longas guerras se sucederem e se generaliza-
rem (a guerra de Sucessão da Espanha dura cerca de doze anos até
1713; a guerra de Sucessão da Áustria, oito anos (1740-1748); a
Guerra dos Sete Anos (1756 a 1763), sem contar os conflitos meno­
res, por causa da Itália ou da sucessão na Polônia).
O século X V III c, assim, marcado por conflitos, embora muito
diferentes das guerras modernas, posLerlores à Revolução, por não
existir ainda, no século X V III, o que depois receberá o nome de
Estados-NaçÕes. A maior parte dos Estados, em geral, não são nações
constituídas e, mesmo nesse caso, o sentimento nacional é ainda
muito fraco para constituir um móvel determinante. O princípio
dinástico é mais importante e mais decisivo, pois é ele que determina
a maior parte dos acordos diplomáticos e é a origem de numerosas
alianças, o chamado pacto de famílias, como, por exemplo, entre os
Bourbons da França, da Espanha, das Duas Sicílias ou de Parma.
Mas esse princípio é também fonte de numerosos conflitos e as deno­
minações habituais da maioria das guerras mostram muito bem que
elas são travadas a propósito de sucessões, da Espanha, da Áustria
ou da Polônia.
Um segundo elemento característico do sistema das relações
internacionais é a preocupação geral de manter o equilíbrio. Os sis­
temas de alianças tradicionais têm como principal razão impedir a
hegemonia de urna das grandes potências. Esta é a preocupação
constante do Gabinete britânico, mas também a da maior parte dos
príncipes, de onde a confusão provocada, em 1756, pelo rompimento
das alianças: todo o sistema, de repente, se desequilibra quando a
França se aproxima da Casa da Áustria, de que era adversária here­
ditária há mais de dois séculos.
Outra mudança brusca intervém, um pouco mais tarde, com o
sistema de partilha. Chama-se assim o acordo, a conivência de
diversos Estados contra um vizinho comum, para partilharem seus
despojos. Esse sistema é experimentado em detrimento da Polônia,
por iniciativa de Frederico II, que consegue a adesão da tzarina
Maria Teresa da Áustria para as suas idéias. O sistema de partilha
será posto em prática em três etapas, com as tres divisões da Polônia,
que, em 1795, resultou no desaparecimento do mapa da Europa riessa

93
República, que cobria antes de 1772 una territorio rauito ampio, desde
o Mar Báltico até as imediações da Ucrania.
O rompimento das alianças, a adoção do sistema de partilha entre
os poderosos provocam o desequilibrio do sistema das relações inter­
nacionais. É esse o contexto em que ocorre a Revolução Francesa.
Essa situação não deixará de ter consequências no que respeita às
relações entre a França revolucionária e os tronos.
A isso acrescenta-se o declínio das grandes potências,, cujo caso-
-limite é o da Polônia, que não está mais em condições de resistir à
cobiça de seus vizinhos. O Império Otomano já é o “homem doente’*
da Europa e atiça os apetites da Rússia e da Áustria. A Suécia, após
o fiasco da empresa mal planejada de Carlos X II, compromete-se no
mesmo caminho. Ora, Suécia, Polônia e Turquia tinham em comum
a característica de constituírem para a diplomacia francesa uma aliança
às avessas, pois lhe dariam a oportunidade de atacar pelas costas a
Casa da Áustria, esmagando-a entre dois fogos. A diplomacia francesa
perde assim os aliados sobre que se apoiava desde os acordos de Fran­
cisco I com o Grao-1 ureo e da política de Richelieu com Gustavo-
-Aclolfo da Suécia. Adicionada à Revolução, essa mudança do equi­
líbrio das forças dará, sem razão, como veremos, aos soberanos
europeus — o rei da Prússia, o imperador, a tzarina — o sentimento
de que a França deixará de ser um elemento importante no jogo
diplomático.
Os conflitos são numerosos, mas sempre limitados; as guerras
podem ser longas, mas não são totais. Nada anuncia o caráter totali­
tàrio dos conflitos do séculos XX, nem nos objetivos, nem nos meios
postos em ação. Nenhum soberano se propõe, mesmo no segredo de
sua consciência, destruir o adversário; exceção feita no que se refere à
Polônia, ele sempre tenciona arredondar suas fronteiras, conquistar uma
província, como a Silesia, por exemplo, tirada à Áustria por Frederico
II. Quanto aos meios, eles sao limitados pois o estado precário das
finanças principescas não permite manter tropas a soldo por muito
tempo, nem levar a efetivos consideráveis os exércitos de ofício. Os
Estados do Antigo Regime não têm meios materiais, nem financeiros
nem militares, para levar a cabo uma estratégia de grande enverga­
dura e uma política de hegemonia continental.
A Revolução mudará tudo isso. A adoção do recrutamento trans­
formará a natureza dos exércitos, tornando-se então possível mobilizar
grande número de pessoas, para substituir os exércitos de ofício pela
fórmula de nação armada. O sentimento nacional, que a Revolução
desperta na França e, logo depois, por ressonância, nos outros países,

94
torna-se uma força poderosa de apoia aos governos, embora às vezes,
vá além de seus limites, não permitindo que eles façam concessões, A
própria guerra tomará novas proporções, com a introdução de uma
dimensão ideológica. No plano das relações internacionais, assim
como no dos regimes políticos, a Revolução Francesa provocará uma
verdadeira mudança.

4 93
S e g u n d a P arte

A REVOLUÇÃO
,1789-1815
O período revolucionário é um dos capítulos mais conhecidos
da historia. Por isso,, ao invés de narrá-lo de novo, vamos pôr em des­
taque seus traços principais, suas origens, seu significado e importância.
Poucos acontecimentos históricos merecem tanta atenção. Essa
revolução, por sua novidade, pela extensão de suas conseqüências,
por sua repercussão, tanto no espaço como no tempo, não tem quase
precedentes na história da humanidade. Seus prolongamentos são,
de algum modo, indefinidos e, mesmo hoje, não podemos ter certeza
de que a história da Revolução tenha chegado ao fim.
Posteriormente, outros acontecimentos puderam eclipsá-la, como
a revolução de 1917. Fazendo já parte da História, o que a muitos
parecerá ilícito foi legitimado pelo tempo. Entretanto, em todos os
pãísès dà Europa, alguns grupos de intelectuais, integrantes de peque­
nos núcleos refratários à Revolução, contestam-lhe os princípios e
aderem a escolas de pensamento contra-revolucionário. Enfim, fora
da Europa, existem países que se situam aquém da Revolução, por
não tê-la conhecido.
A Revolução é o grande choque que dá começo a toda a história
do século XIX. Mesmo que se creia na sua conjuração, fechando-a
como um parênteses em 1815, ela continua a dominar a situação.
Durante todo o século, ela é que determinará a divagem dos
acontecimentos.

Revolução Francesa ou revolução atlântica?


Para que possamos avaliá-la devidamente, a Revolução Francesa
deve ser colocada numa perspectiva que ultrapassa os limites da
França. Não se trata de um fato puramente francês. Os aconteci­
mentos de 1789 inscrevem-se dentro de um movimento mais amplo.
Constitui uma orientação da historiografia atual, tanto na França

99
quanto nos Estados Unidos, insistir sobre as ligações entre essa Revo­
lução e outros movimentos. Com efeito, examinando a cronologia
das agitações revolucionárias — e houve muitas — descobre-se que
se delineiam entre elas paralelismos e até sincronismos. A Revolução,
portanto, esta enquadrada déntro de numerosos movimentos, antes,
durante e depois de sua eclosão.
De 1776 a 1783 o movimento mais importante que precedeu a
Revolução Francesa é a revolução da América, que apresenta um
fenômeno complexo em seu >duplo significado. Com efeito, trata-se
de uma guerra de libertação externa, mas também de uma reavaliação
dos fundamentos e das formas de governo, e é nisso, é por causa de
'seu conteúdo político que esse movimento nos interessa neste pònto
de nosso estudo. Sue caráter revolucionário foi-se acentuando de
ano para ano durante a guerra, como quase sempre acontece no
transcorrer de uma crise, com os elementos extremos levando a melhor
sobre os moderados. O fenômeno sc reproduzirá com a Revolução
Francesa, com a vitória progressiva dos elementos mais avançados
sobre os mais conciliadores. Na América, onde os radicais (no
sentido americano da palavra) apoderam-se pouco a pouco do mo­
vimento, uma fração da opinião americana, os lealistas, recusa-se a
romper com a coroa britânica e emigra. O movimento de emigração
para os Estados Unidos foi bem superior à emigração francesa, pois
esta é calculada em 5%, enquanto que a emigração dos lealistas, dos
toríes americanos, atingiu 24 a 25% da população: os emigrados
veem seus bens confiscados em proveito do novo regime.
Essa revolução exercerá considerável influência sobre a Europa.
Ela desperta simpatias na própria Grã-Bretanha; mesmo durante o
desenrolar da guerra, algumas vozes se levantaram na Câmara dos
Comuns em favor dos insurretos, dentre as quais as de grandes ora­
dores, tais como Fox e até Burke, o futuro teórico da contra-revolução.
Na França, recrutam-se voluntários e La Fayette, que desempenhará
um papel de primeira plana nos primordios da Revolução Francesa,
deve seu prestígio ao fato de ter combatido ao lado dos americanos
pela liberdade. A revolução americana, portanto, propôs um exemplo,
mas pode-se dizer também que ela contribuiu, indiretainente, para
a crise pré-revolucionária. Com efeito, a França recrutou tropas,
travou combates terrestres c navais, forneceu subsídios, operações
muito dispendiosas, que exigiram um empréstimo que comprometeu o
equilíbrio do orçamento, obrigando o rei a convocar os Estados Gerais
para cobrir o deficit. Contudo, de certa maneira., pode-se dizer que
a Revolução Francesa teve sua origem na guerra de independência
dos Estados Unidos,

100
Na Europa, outros movimentos, mais próximos da França, ocor­
rem nos anos anteriores-“a ~ 1789; ' A Grã-Bretanha, nos anos de
1780, é teatro de uma agitação ao mesmo tempo social e política:
motins operários, revoltas entre os camponeses e efervescência política,
de inspiração radical, exigindo a ampliação do corpo eleitoral e a
redução do período legislativo- Essas reivindicações anunciam as
reformas do século X IX . A Irlanda também se agita contra o domínio
britânico. Nas Províncias Unidas, perturbações graves e prolongadas
contrapõem o povo, fiel à dinastia de Grànge e partidário da instau­
ração de uma monarquia autoritária, aos adeptos do governo patrício.
Essa agitação só é debelada graças à intervenção exterior da Prússia
e da Áustria, no verão de 1792, contra a Revolução Francesa. Os
Países Baixos (tomemos cuidado com as armadilhas do vocabulário
político: esse nome designa, sob o Antigo Regime, o que chamamos
de “Bélgica”, e o que hoje chamamos de “ Países Baixos” chamava-se
então Províncias Unidas), os Países Baixos, portanto, que dependem
da coroa da Áustria, sublevam-se contra José II. Genebra também
experimenta certa agitação.
Por terem sido testemunhas, ou por terem lido os testemunhos,
os contemporâneos das perturbações ocorridas nas Províncias Unidas,
nos Países Baixos, em Genebra, na Inglaterra, não deixam de colocar
os acontecimentos de 1789, na França, em seu contexto de agitação
quase geral, pois, como acabamos de ver, o conjunto dos países por
ela influenciados desenha, em novos traços, o mapa da Europa
Ocidental.
Paralelamente à Revolução em si, outros movimentos revolucio­
nários se desenvolverão por contágio ou sob sua influência, ou ainda
por causa de sua intervenção armada. Esse é o motivo da onda de
revoluções nos países renanos, na Itália, assim como da multiplicação
das repúblicas-irmãs. Além dos territórios ocupados pelos exércitos
revolucionários, por toda a Europa, fazem-se acordos, esboçam-se sim­
patias revolucionárias, enquanto os jacobinos podem ser encontrados
na Inglaterra, na Hungria e na Áustria.
Enfim, essa agitação se prolonga após a Revolução, fenômeno ao
qual se pode ligar o movimento de independência das colônias
espanholas e portuguesas da América, entre 1807 e 1825, a onda de
conspirações militares que se desencadeia em 1820, afetando a França,
a Espanha, Nápoles, Turim,- a agitação estudantil e universitária na
Alemanha. Nem mesmo a longínqua e autocrática Rússia deixa de
conhecer um movimento deste tipo, com o movimento decabrista
de 1825, Acrescentemos as revoluções de 1830, talvez mesmo as de
3848.

101
Assim, entre 1780 e meados do século XIX, durante cerca de 70
anos, o mundo é sacudido, a curtos intervalos, por ondas de revoluções
que fazem um longo cortejo à Revolução Francesa, permitindo que
se fale numa era de revoluções. Subsequentemente, os movimentos
desse gênero se tornarão mais espaçados e rarefeitos. Seu próprio
número leva certos historiadores a falar, hoje, não mais de Revolução
Francesa, mas de uma revolução ocidental, ou de uma revolução
atlântica, em relação à qual os acontecimentos da França não passa­
riam de um episódio particular, um aspecto local. Aliás, os próprios
contemporâneos tinham consciência dessa solidariedade entre os epi­
sódios. Não se trata apenas de uma visão retrospectiva de alguns
historiadores. São muitos os indícios dessa convicção de que as revo­
luções eram solidárias umas com as outras; daí o título dado por
Camille Desmoulins ao primeiro jornal que ele dirige sob a R e­
volução: As Revoluções de França e de Brabante (a aproximação
entre França e Brabante é uma alusão direta aos acontecimentos
que acabavam de ocorrer nos Países Baixos da Áustria) ; Barnave
fala de uma revolução européia, encabeçada pela França. Tudo
impõe a imagem de uma onda revolucionária que teria percorrido
o mundo ocidental de oeste para leste, desde as margens ocidentais
do Atlântico até o centro da Europa.
Essa perspectiva dá ênfase à universalidade do movimento e ao
fato de que o período de 1780-1850 é um período excepcional de
turbulencia, que sublinha a inadaptação das estruturas, das institui­
ções, a discordância entre o Antigo Regime e as' novas aspirações,
Essa agitação sugere que todo o Antigo Regime estava em crise e
que é preciso procurar as causas da Revolução em outros lugares que
não a França.
Contudo, mesmo reconhecendo a contribuição positiva dessa in­
terpretação, seria um exagero deduzir daí que a Revolução Francesa
não tem importância particular ou originalidade específica, que não
passa de um caso no contexto de um fenômeno mais geral, no qual
se diluía. Várias observações obrigam a nuançar a interpretação de
uma revolução ocidental ou atlântica.
Da símultaneidade dos movimentos não se pode concluir neces­
sariamente seu parentesco, menos ainda sua identidade. É preciso
que nos asseguremos de que a aspiração c a mesma, de que as reivin­
dicações são concordantes; ora, nem sempre é esse o caso. Em
segundo lugar, vários desses movimentos procedem da Revolução
Francesa, de que são consequências : sem ela, teriam eles ocorrido?
Foi ela quem os desencadeou, por uma reação em cadeia, que veremos
reproduzir-se em 1830, em 1848, e posteriormente após a revolução

102
bolchevista. E, sobretudo, mesmo admitindo que de fato se trata
de um movimento geral, se a crise revolucionária é generalizada e
afeta a maioria dos países, o centro desse movimento está na França.
È lá que ela eclode, e lá que ela se desenvolve. A maioria dos outros
movimentos abortam e, isoladamente, não teriain sido suficientes para
derrubar o Antigo Regime. Esses confrontos, portanto, nada mais
fazem do que evidenciar melhor a originalidade e a importância
histórica da Revolução, cujo berço é a França de 1789. A Revolução
c bem francesa, mesmo se ela se inscreve num quadro mais amplo e
se seus prolongamentos permitem que se fale numa revolução atlântica,
ocidental ou européia.
Essa constatação, por seu turno, suscita uma questão. Se assim
c, por que a Revolução ocorre justamente na França, se a ordem
social é a mesma por toda a Europa? À questão da localização no
espaço junta-se outra, de ordem cronológica: por que naquele mo­
mento, e não antes nem depois? É o imenso problema das causas da
Revolução que iremos examinar. Estudaremos, depois, os processos
pelos quais a Revolução, uma vez iniciada, se desenvolveu, como ela
se desenvolveu e as etapas que a fizeram ir bem além de seu projeto
inicial. Faremos, enfim, o inventário de sua obra e o balanço de
sua repercussão.

103
1
^ [ AS ORIGENS DA REVOLUÇÃO
0 r .‘j :^

O problema das origens da Revolução pode-se reduzir a um


paradoxo : o das relações entré, a Revolução e o Antigo Regime,
tema que prendeu a atenção de Tocqueville. A Revolução rompe
com o Antigo Regime, exprime o desejo de uma ruptura, a mais total
possível, e, no entanto, ela emana desse regime. De que modo,
então, ela pode ao mesmo tempo romper com o Antigo Regime e
derivar dele? Este é um problema fundamental, talvez o maior pro­
blema da reflexão histórica, problema que, aliás, é suscitado cada
vez que ocorre uma mudança, quer se trate de revoluções, a de 1848
ou a de 1917, ou de guerras, sobretudo as duas guerras mundiais: de
que modo a guerra procede do estado.de coisas anterior? O que
é que ela conserva e o que é que ela modifica da situação anterior?
A Revolução Francesa 6 o acontecimento que coloca esse pro­
blema com a maior acuidade, na medida em que se trata do primeiro
acontecimento desse tipo (as outras revoluções, todas, se inspirarão
no modelo de 1789) c na medida em que ela surge com uma rapidez
sem igual e ocasiona uma mudança radical. Historiadores e filósofos
políticos fizeram carreira discorrendo sobre ela, e o pensamento polí­
tico do século XIX, todo dominado pelo fato revolucionário, se per­
gunta sobre a sua legitimidade, sua necessidade, suas consequências,
e não seria possível compreender coisa alguma do pensamento político
do século XIX se não se levasse em conta essa reavaliação geral.
Mas o leque das respostas é amplo, e dispomos de tantos sistemas
de explicação quantos os diferentes fatos a serem explicados.
Frequentemente, cada sistema de explicação privilegia de modo
abstrato c acadêmico um tipo de fatos. Esforçar-nos-cmos também

104
por destacar a interdependência desses fatos e suas articulações; por
demonstrar de que modo a Revolução originou-se de sua convergência.

Os princípios âe explicação e as séries de causas


Depois de um século e meio de estudos históricos sobre o acon­
tecimento revolucionário, a fim de perscrutar-Ihe as causas, o campo
de explicação nao parou de se ampliar, No início, o leque era redu­
zido; os historiadores oscilavam entre uma explicação de tipo propria­
mente político (a crise das instituições) e a que poe em destaque o
movimeiito~dás idéias, o despertar dos espíritos, o fator ideológico.
Subsecuentemente, a observação histórica foi aos poucos fazendo
emergir outros fenômenos e a atenção se deslocou do institucional
para as estruturas da sociedade e o papel da economia. Paulatina­
mente, as explicações foram-se multiplicando, Mas, tão viva quanto
há um século, continua a tentação de reduzir essa pluralidade de
explicações a um princípio único. Para uns, será a luta de classes;
para outros, a alta dos preços, reduzindo todos os outros fatores a
causas secundárias, direta ou indiretamente ligadas ao tipo de expli­
cação privilegiada.
Essa tendência, contudo, apresenta mais riscos do que vantagens
e, se uma lição sc impõe depois de um século e meio de historiografia
revolucionária, é justamente a da diversidade e da complexidade dessa
história, por demais variada para se deixar reduzir a uma causa
única, sejam as ambições de Philippe-Égalité, a cavalaria de São
Jorge, a franco-maçonaria ou a alta dos preços. Cada uma dessas
causas, isolada, é impotente para dar contas da totalidade do pro­
cesso revolucionário.
Também me parece mais prudente levar em consideração a
pluralidade dos fatores. Na verdade, nem mesmo assim o problema
está completamente resolvido, restando ainda estabelecer uma hierar­
quia entre os diferentes fatores, nem todos de igual importância;
e a ação de Philippe-Égalité teve menos importância do que a crise
das instituições ou a alta dos preços. Ê preciso, portanto, que se dê
a cada um desses princípios explicativos a importância que lhe é
devida. E a tarefa do historiador é, precisamente, a de apreciar
a importância relativa, a importância respectiva de acontecimentos
diferentes, estabelecendo uma escala, levando em conta o fato de
que é muito verossímil que as mesmas causas não tiveram em 1792
a mesma importância que em 1789, e recensear as principais expli­
cações indo do acidental para o essencial.
À Revolução ; simples acúlente}

Um primeiro grupo de explicações, que não vê na Revolução


Francesa mais cio que um acidente, resolve o problema suprimindo-lhe
os dados. De acordo com essa versão, a Revolução não era fatal e era
possível evitá-la. Ela não representava a vontade do povo, mas apenas
a dos revolucionários, e só um concurso imprevisto de circunstâncias
fortuitas teria provocado, por uma sequência de acidentes, o désen-
cadeamcnto da Revolução. Nesse caso, seria inútil procurar razoes
profundas para acontecimentos que poderiam ter tomado uma direção
muito diferente. Resta apenas colocar em destaque o encadeamento
das circunstâncias, e a explicação da Revolução se fragmentará numa
série de mal-entendidos ou de escândalos, entre os quais o do colar
da rainha, o deficit orçamentário, as veleidades de Luís X V I e uma
quantidade de pequenos fatos que, em conjunto, ficariam com a
responsabilidade da Revolução.
Que pensar desse tipo de comentário, ainda encontrado em algu­
mas histórias? Essa tese leva em consideração alguns pontos da
realidade. Sublinha o caráter imprevisto, imprevisível, do fato revo­
lucionário, que, sem dúvida, não era efeito da fatalidade. A partir
de uma narração circunstancial de episódios fortuitos, pode-se encon­
trar o que houve de efetivamente contingente, de acidental, no desen­
rolar dos acontecimentos de que se originou a Revolução. Essa tese
também poe em evidência o papel das individualidades.
Mas dela não se deduz que o encadeamento dos fatos tenha
obedecido a alguma lógica. Ainda resta explicar de que modo cir­
cunstâncias de todo fortuitas puderam engendrar consequências de
tamanha amplitude. Em outra situação, as mesmas ocasiões não
teriam produzido os mesmos efeitos. Se quisermos penetrar mais na
inteligência do desenvolvimento e na apreciação da importância
do acontecimento, é portanto indispensável descer um degrau na
escala das explicações e fazer intervir outros fatores.

A influência oculta das minorias

Esse tipo de explicação, que encontra fácil acolhida junto a


uma opinião pública satisfeita em pensar que, definitivamente, a
história se reduz à ação de cabalas, faz a fortuna de coleções de obras
ou de publicações. O esquema — um dos mais vulgarizados —~ não
vale apenas para a Revolução Francesa: com efeito, ele pode apli­
car-se a todos os fenômenos históricos, aos conflitos sociais, por exemplo,
que se reduzirão à ação de alguns cabecilhas, logo qualificados de

106
maus pastores, aos quais opõe-se a inocência de um rebanho tresma­
lhado. Esta é, no século XIX;, a tese de todos os governos conserva­
dores, a que inspira a política de Metternich que, entre 1815 e 1840,
na Alemanha e na Itália, pensa estar lidando apenas com pequenas
minorias de universitários ou de militares. Inútil, portanto, empreen­
der reformas: tudo é culpa de um punhado de jacobinos, que per­
vertem a opinião pública. Basta que os governos reduzam-nos ao
silêncio e os impossibilitem de causar dapo, e não haverá mais nem
agitação nem problema. Essa explicação é ainda invocada pelos
movimentos de tipo nacional na Europa, no século X IX e, no século
XX, fora da Europa: sempre se crê que se trata de um punhado de
indivíduos movidos pela ambição ou estipendiados pelo estrangeiro,
e que o resto da população só quer viver em paz, feliz com seu
status quo.
Forjado a propósito da Revolução, o principio da influência
oculta de pequenos grupos que tramam contra a ordem estabelecida
encontra aplicação num grande número de casos, quer se tratem
das intrigas do duque de Orleans, do papel das sociedades secretas, da
franco-maçonaria ou ainda do ouro que a diplomacia inglesa teria
distribuído largamente na França.
Essa explicação tem o mérito de colocar em destaque o papel
das minorias. Os que acreditam que podem explicar tudo pela re­
volta espontânea das massas pecam por exagero porque, quer se
trate de movimentos sociais, nacionais ou de revoluções políticas, a
experiência histórica revela a intervenção de pequenos grupos pre­
cursores, que formam as vanguardas. Mas a influência dessas mino­
rias, a ação dessas vanguardas seriam das mais restritas se elas não
encontrassem nas massas simpatias declaradas ou implícitas. Evitando
levá-las em conta, a explicação toma uma direção diferente. Se, por
exemplo, a ação das lojas rnaçônicas ou dos amigos do duque de
Orleans se fazia sentir ao arrepio do movimento geral, se a totalidade
do país tivesse assegurado à monarquía e ao Antigo Regime uma
adesão sem falhas, o governo nao teria dificuldade erm contrariar suas
intrigas. É porque gozaram do apoio da população que eles conse­
guiram êxíto. Aliás, a contraprova nos é fornecida no século XIX,
quando nao é por falta de ter tramado a derrubada dos regimes
baseados nos princípios de 1789 que os contra-revolucionários fra­
cassam, mas porque eles estão isolados, porque nao encontram na
opinião pública essa conivência com a qual foram beneficiados os
revolucionários de 1789.
A explicação pelas minorias deve, portanto, ser aceita por sua
contribuição positiva, mas com a condição de ser colocada numa

107
perspectiva de conjunto, que leva ern conta as ligações entre as van­
guardas e o resto da sociedade, pois é dessa reciprocidade de trocas,
dessa aliança das minorias e das massas que dependem todos os
grandes movimentos históricos.
Embora deem ênfase a circunstâncias, a acidentes ou minorias,
essas teorias, dando destaque ao caráter inevitável da Revolução Fran­
cesa, não bastam para explicar tudo; é forçoso, portanto, apelar para
outras teorias: o elo de causalidade, de necessidade entre a situação
anterior e a evolução dos acontecimentos, parece tao estreito e tão
direto que, às vezes, somos levados a perguntar como a Revolução
não surgiu mais cedo. Como o elo de causalidade pode cobrir uma
multidão de causas de natureza muito diferente, é necessário exami­
ná-las uma por uma.

Os fatores de ordem econômica


É preciso cuidado para hão confundir econômico — no sentido
próprio do termo — e financeiro: esses termos podem interferir, mas
continuam distintos por natureza.
As causas financeiras da Revolução prendem-se ao deficit orça­
mentário, que por certo leve o seu papel, pois foi a causa da convo­
cação dos Estados Gerais. O estudo das instituições do Antigo Regime
fez-nos ver a situação cronicamente defeituosa das finanças, devido
à ausência de administração financeira, a que se deve acrescentar a
impotência da monarquia para acabar com os privilégios.
A situação é agravada pela guerra da América, que obriga a
despesas consideráveis e provoca o recurso dos empréstimos. Fis um
tipo de causas meio estruturais e meio conjunturais, pois as conse-
qüências financeiras da guerra da América derivam da conjuntura
e do estado crônico das finanças das estruturas.
As causas econômicas, porém, são multo mais importantes e du­
radouras e se relacionam com o próprio regime da economia francesa,
isto é, com o modo pelo qual a produção das riquezas e a distribuição
dos bens são organizadas.
Algumas dessas causas dependem de conjunturas, e esse elemento
não pode ser negligenciado. A economia francesa, em 1789, encon­
tra-se num período difícil, e muitas vezes já se imputou a responsa­
bilidade da crise que ela atravessa à aplicação do tratado de câmbio-
-livre, assinado em 1789 entre a França e a Inglaterra. Nos anos 1780
a Europa tenta uma espécie de liberalização das relações econômicas,
uma primeira experiência ainda tímida, de câmbio-livre. Vários

108
tratados de comercio e de navegação são então assinados entre a
França e os jovens Estados Unidos, a Inglaterra, a Suécia, e diversos
países bálticos. Esses tratados têm em comum a intenção de aumentar
o intercâmbio comercial e diminuir as barreiras aduaneiras, abrindo
assim" uma brecha no sistema mercantilista, que controlava de forma
rigorosa as relações entre as economias nacionais. Esse tratado, deno­
minado Eden, do nome do negociador britânico, é mal recebido na
França, onde industriais e comerciantes >o responsabilizam pelo seu
marasmo. É difícil hoje, à distância, dizer se essas recriminações
tinham base. Cada vez que se diminuem asvbarreiras aduaneiras,
comerciantes e industriais lançam altos brados: isso aconteceu depois
do tratado de câmbio-livre, de 1860, que privou o Segundo Império
da simpatia dos produtores e, posteriormente, depois de 1950, a pro­
pósito do plano Schuman. Depois da assinatura desse tratado, seria
a situação econômica tão desastrosa quanto o davam a entender os
manufaturistas? Se era esse o caso, o tratado teda alguma utilidade?
Fiquemos com a idéia de que o tratado e as conseqüências que lhe
eram atribuídas puderam concorrer para o nascimento dc urn estado
de espírito revolucionário, com o descontentamento dos produtores,
que responsabilizavam por eles um regime que defendia tão mal sua
existência.
Mais determinantes, por certo, foram os fatos de estrutura, os
que decorrem da organização da economia francesa. Essa economia
é caracterizada pelos entraves que pesam sobre ela, uns técnicos, ou­
tros jurídicos. A ameaça crônica de penúria faz da fome o primeiro
problema de governos e governados; a França vive sob o medo
obsessivo da carência de alimentos, a lembrança das carestías anterio­
res e o temor de seu retorno. Falou-se, no fim do reinado de Luís
XV, de um pacto de fome, o povo pensando que o governo estava
unido aos açambarcadores para diminuir a produção e promover o
aumento dos preços. As carestías são tanto mais temíveis nos casos
em que a população aumenta rapidamente, mais depressa do que a
produção dos cereais. Entre 1715 e 1789, a população da França
aumentou aproximadamente da metade, passando de 18 ou 19
milhões para 26 ou 27 milhões, o que fez com que a agricultura
se visse impossibilitada de alimentar esse excedente. A população
conta com 8 a 9 milhões de bocas suplementares e esse desequilíbrio
tende a se acentuar.
Essa situação inscreve-se dentro dc um movimento de longa
duração. Na história da economia fala-se das variações dos preços
e dos movimentos a curto e a longo prazo. Mais ou menos pelos

109
fins do reinado de Luís XIV, essa tendencia é ascendente, e a
economia da Europa está comprometida num moviménto de lenta
ascensão dos preços, o que provoca uma série de conseqüências hoje
bem conhecidas. A alta faz parte de um conjunto favorável à expan­
são da produção e o século X V III é, para alguns, um século de
prosperidade. Essa alta provoca o aumento dos preços das merca­
dorias; para quem sc encontra na posição de consumidor — o
operário assalariado, o artesão, obrigado a comprar produtos alimen­
tícios —, isso significa aumento das despesas e diminuição do poder
aquisitivo. A conjunção da penúria intermitente e do contínuo
encarecimento explica o descontentamento e o nascimento de um
espírito pré-revolucionário nessa parcela da população urbana que
depende, para sua subsistência, da produção agrícola. O mesmo
fenômeno enriquece os outros grupos, os que produzem e vendem.
Constata-se, por esse exemplo, o caráter ambivalente da maioria dos
fatos, notadamente econômicos, o que constitui uma das constantes
da realidade social. Desse modo, o mesmo fenômeno toma alguns
felizes e outros infelizes e é impossível afirmar se em si ele é bené­
fico ou nefasto, dependendo o julgamento das circunstâncias que se
escolhe para examinar e das categorias sociais que se leva em con­
sideração.
É preciso ainda dizer uma palavra a respeito do sistema das cor­
porações, que faz parte da organização jurídica e institucional da
sociedade," contribuindo para o aumento da opressão. Com efeito,
em numerosos ramos de atividade, o trabalho não c livre, mas regu­
lamentado, e não se pode exercê-lo se não sc fizer parte de uma cor­
poração. Assim,4a quantidade, a forma, as condições da produção
são fixadas, e qualquer infração é sancionada com multas, às vezes
com a proibição de produzir ou de vender, constituindo uma carac­
terística da corporação o fato de o poder público delegar-lhe atribui­
ções coercitivas. O conjunto dessas exigências, que pouco antes eram
justificadas por necessidades sociais, políticas, muitas vezes financeiras,
perdeu, no fim do Antigo Regime, sua justificação. O progresso
técnico, a multiplicação das invenções, o acúmulo de capitais, o
nascimento de novas formas de indústria, a formação de uma classe
de negociantes concorrem para prescrever essa organização. No
plano da atividade econômica, existe o mesmo contraste que, do ponto
de vista da organização social, é travado entre organizações seculares,
que parecem anacrônicas, e.as forças novas que tentam aboli-las. Sem
dúvida, o desejo de inovar, a necessidade de iniciativa, conquistou
muitos produtores para o campo das forças revolucionárias em 1789.

110
A organização social e a crise da sociedade
■Achando-se a economia condicionada e regulamentada pelas
estruturas jurídicas e as instituições, resta determinar as causas que
se relacionam com a própria organização da sociedade do Antigo
Regime.
A crise dessa sociedade é determinada pelo antagonismo que opõe
uma organização (baseada na hierarquia^ na desigualdade, na exis­
tência de ordens, na defesa dos privilégios) e as novas aspirações das
classes cuja ascensão se inicia. De ano para ano, a diferença se torna
mais acentuada, pelo deslocamento de riquezas, que empobrece a
nobreza e enriquece a burguesia, pela evolução intelectual, pela rea­
valiação das bases jurídicas e intelectuais da ordem tradicional, Á
teimosia dos privilegiados, sua dureza ao defender seus postos con­
tribuem para exasperar os antagonismos, para transformar as tensões
que existem em toda sociedade em tensões propriamente revolucio­
nárias, e isso tanto mais que o poder real, ate então árbitro das com­
petições de amor-próprio e das concorrências de interesse, não tem
mais condições para arbitrar.
A partir do instante em que a opinião pública começa a ter em
vista outras possibilidades e a fazer um julgamento crítico a respeito
do estado de coisas existente, a situação não é mais apenas objetiva­
mente revolucionária, mas começa a se tornar tal politicamente.

As causas políticas
■' As causas políticas sao talvez as mais determinantes de todas
porque, política, a Revolução irá atacar a própria forma do regime
e a organização do poder.
Contudo, é preciso que se dissipe um equívoco. Toda uma inter­
pretação da Revolução Francesa — essa que ainda inspira muitas
vezes os compêndios escolares — apresenta a Revolução de 1789
como uma reação liberal contra uma monarquia cujo jugo se
teria tornado insuportável, uma reação contra a autoridade e o
absolutismo. Isso também ocorreu, por certo, e a tomada da Bas­
tilha é o símbolo da derrubada do despotismo por um povo que quebra
os seus grilhões. Contudo, observando mais de perto, além do sim­
bolismo de acontecimentos espetaculares, nos perguntamos se a mo­
narquia não morreu vitimada mais por um excesso de fraqueza do
que de autoridade: por não ter conseguido impor aos privilegiados
o respeito pelo interesse geral. Um poder mais forte, mais respeitado,
teria talvez sabido prevenir uma crise revolucionária, Poder-se-ia
dizer da monarquia francesa, no fim do Antigo Regime, o que

111
Bain ville disse do tratado de Versalhes: rigoroso demais para a fra­
queza da organização por ele instituída e fraco demais para a severi­
dade das cláusulas que impunha à Alemanha. O mesmo acontece
com a monarquia, que pretende ser absoluta, mas que carece muitas
vezes de meios para atingir seus objetivos. Mal usada administrati­
vamente, desprovida de finanças regulares, ela não tem meios para
conter as pretensões dos privilegiados. Desse modo,/'sob Luís XVI,
a luta várias vezes secular entre a coroa e os privilégios recomeça,
as corporações multiplicam suas reivindicações, os oficiais do rei se
emancipam: é a revolta dos Parlamentos, a má vontade da Assembléia
dos Notáveis, a insubordinação em todas as escalas da pirâmide social.
A Revolução começou como uma revolta dos privilegiados, anteé
de ser a revolta do terceiro estado contra a sociedade privilegiada.
Foram eles que deram o sinal de desobediência e que, sem o saber,
abriram o caminho para o processo revolucionário. Se a monarquia
tivesse sido mais forte, se tivesse tido os meios que ambicionava, ela
teria contido os privilegiados, impondo as reformas que a preocupação
bem compreendida da razão de Estado lhe teria inspirado. Não era
esse o caso, e todas as tentativas de reforma, as de Maupeou, no fim
do reinado de Luís XV, as de Turgot e de Necker, chocaram-se contra
a resistência das ordens privilegiadas, A confusão vai mais longe
ainda: não só a monarquia foi incapaz de resistir, como deixou-se
conquistar pelos privilegiados, cujas causas passou a defender. Agindo
assim, ela se afastava da linha de conduta tradicional, que os sobera­
nos haviam transformado em princípio fundamental de sua política:
a aliança com os elementos mais evoluídos do terceiro estado contra o
feudalismo. A aliança que se alardeia, às vésperas da Revolução,
entre o poder real e os privilegiados, lançará a burguesia na oposição
revolucionária. Assim se explica a mudança de rumo de um movi­
mento, que de antinobiliário se tornará antimonárquico, porque en­
globará a instituição real na animosidade dirigida contra as ordens
privilegiadas.
Nessa relação triangular entre a monarquia, os privilegiados e o
terceiro estado, ó processo vai provocar a extensão da revolução. Re­
volta dos privilegiados, revolução antinobíliária, revolução antimo­
nárquica: esses são os três estágios sucessivos de um movimento que
irá destruir até as raízes a ordem política e social do Antigo Regime.

O movimento das idéias. Sua difusão na opinião pública

Os fatores de ordem intelectual e ideológica, o movimento das


idéias do século X V III concorreram ampiamente para a gênese da

112
Revolução. Com efeito, as teorias políticas não são concebidas apenas
no silencio dos gabinetes, por pensadores isolados, mas alimentam .
também os movimentos de opinião. Contudo, entre o conteúdo ori­
ginal e sua difusão, as teorias sofrem alterações. Assim é que o que a
opinião retém dos escritos de Voltaire ou de Montesquieu está bas­
tante afastado do que eles escreveram ou pensaram. Contudo, esse
conteúdo desnaturado, se não é inteléctuaimente dos mais ricos, é,
historicamente, o que ele tem de mais importante, de mais decisivo
sob o ponto de vista da história em movimento. Constitui-se, assim,
no fim do Antigo Regime, uma espécie de vulgata, que populariza ás
idéias dos filósofos e que é difundida bern além do círculo dos leitores.
De fato, com os que haviam lido Montesquieu e Rousseau ou com
os assinantes da Enciclopédia não havia motivo para se fazer uma
revolução: a Enciclopédia não teve mais do que 4 000 ou de 5 000
assinantes, menos do que nossas revistas de interesse geral. Mas seria
um grande erro medir o papel histórico da Enciclopédia apenas por
essa cifra, porque é preciso levar em conta a difusão subterrânea, que
veicula as idéias e as faz penetrar por osmose em camadas mais
amplas.
Ao lado dos escritos, existe também a força dos exemplos, a con­
tribuição dos precedentes e da experiência. O da revolução ameri­
cana propõe uma solução de recambio a uma parte da opinião
publica, que deseja confusamente uma renovação profunda e a quem
as simples reformas não parecem mais suficientes. Ela sonha com
uma reforma que seria feita dentro da ordem e da harmonia, com o
consentimento c mesmo por iniciativa do poder real. O espírito da
Revolução definiu-se por essa vontade de racionalismo, que caminha
ao arrepio do respeito à tradição, próprio do Antigo Regime, e por
esse sonho de uma unificação que faria tábua rasa da diversidade
de instituições acumuladas há séculos.
Eis os fatores principais que convergem para determinar a Re­
volução; é no seu concurso que reside a interpretação mais válida:
a que junta a conjuntura e os fatos de estrutura, que associa o polí­
tico ao social, explicando de que modo, a partir de uma situação de
crise, os movimentos de idéias puderam desencadear um processo
irreversível. É a conjunção de todas essas causas que constitui a
força explosiva da Revolução e que não permite que se a considere
um simples acidente que sobreveio de forma inopinada na evolução
de uma determinada sociedade.

113
O PROCESSO REVOLUCIONARIO
E SEUS SALTOS

Se as causas que passamos em revista bastam para explicar os


pródromos da Revolução (convocação dos Estados Gerais, proclama­
ção da Assembléia Constituinte ), elas nem por isso explicam a se-
qüência dos acontecimentos, Com efeito, o leque das causas deixa
livre a escolha do processo de procura de um novo equilíbrio, eco­
nômico e político e não impõe método algum para essa reforma da
sociedade, que constitui a própria finalidade da Revolução.

1, Dois Monos p o s s ív e is de evolução :

M U DANÇA O U ADAPTAÇÃO

Por que a Revolução?


A ruptura de um equilíbrio não é necessariamente o fato de
uma revolução. A experiência mostra que as sociedades podem esco­
lher entre dois modos de transformação: um por mudança brusca,
outro por adaptação gradual.
A mudança brusca provoca uma súbita ruptura na continuidade
da História. É o caso da Revolução Francesa que, primeira no gênero,
criou um precedente, pesou sobre a História e que, desde então, serve
para designar toda ruptura análoga. Se outros países seguiram seu
exemplo, isso aconteceu tanto por contágio quanto pela força do
hábito. Na França, a revolução surge no século X IX como a solução
clássica, normal, poder-se-ia dizer, se os termos “revolução” e “nor­
mal” não fossem contraditórios. A revolução é o recurso que se
impõe para derrubar um regime cuja legitimidade é contestada,
tornando-se assira,, depois de 1830, 1848, 1870, a fórmula banal do
reajustamente, de onde a freqüencia das revoltas e a sucessão de
experiencias constitucionais. Como o exemplo francês fez escola, a
Europa passa a trilhar o mesmo caminho até que a revolução soviética
de 1917 toma-lhe o lugar, transformando-se, por sua vez, no modelo de
outra linhagem de revoluções.
A adaptação gradual, mediante reformas sucessivas, sem ruptura,
é a fórmula preconizada por todos os reformistas, e a escolha entre
reforma e revolução continua a dividir socialistas e democratas.
Os reformistas podem invocar em seu apoio- o exemplo de diver­
sos países, a começar pela Grã-Bretanha que,, nos séculos X IX e XX,
evitou revoluções e nem por isso evoluiu menos do que os países onde
as revoluções foram-se sucedendo a cada geração. Na Inglaterra, a
evolução é demarcada por reformas legislativas — as eleitorais, por
exemplo, cuja cronologia põe em destaque o desenvolvimento da
democracia: 1832, 1867, 1884-1885, e 1918 — votada por um Parla­
mento eleito regularmente. Essas reformas eleitorais, é verdade, nao
afetam senão um setor da vida política; contudo, sua importância
é incalculável, pois elas constituem a alavanca que depois permitirá
que a opinião pública consiga, pelos meios legais, transformações de
toda natureza. O exercício do direito dc voto permite às forças da
oposição, ao derrubar a maioria, chegar ao poder, modificando assim
profundamente o estilo da vida política e o estado da sociedade, como
foi o caso, em 1945, da vitória dos trabalhistas. Se compararmos a
situação da Grã-Bretanha de hoje ao que ela era no início do século
X IX e se fizermos um paralelo entre sua evolução e a curva descrita
pela sociedade francesa, constata-se que a Grã-Bretanha está hoje
tão afastada da velha Inglaterra quanto a França da V República
da França do Antigo Regime. Essa é, portanto, a prova de que os
países podem evoluir por adaptação sem recorrer à revolução.
Os Estados Unidos propõem outro exemplo dessa forma de
evolução, a mais surpreendente de todas, pois desde a guerra da Inde­
pendência os Estados Unidos não sabem o que é uma revolução,
constituindo-se o único acidente, de outra ordem, a guerra civil, que,
no entanto, não modificou o regime nem provocou diretamente uma
transformação profunda. Contudo, desde a adoção da constituição
até nossos dias, os Estados Unidos conheceram urn progresso prodi­
gioso, sem paralelo em nenhum outro país. Sua população passou
de pouco mais de 3 milhões para mais de 200; de agrícola e comercial
que era, esse país se tornou a primeira potencia industrial do mundo;
seu território dilatou-se até atingir as dimensões de um continente; ele
criou um modo de vida, uma forma de sociedade inédita e, no
entanto, vive sempre sob o regime que escolheu para si em 1787,
Completamente transformado, ele pôde contudo conservar seu quadro
institucional, o que é bem uma prova de que existem dois modos de
evolução e, entre eles, toda espécie de casos intermediários, de variantes,
A França, como vimos, se comprometeu, quase sem hiatos,, na
evolução de tipo revolucionário, Mas essa escolha teria sido feita
de modo deliberado? Se o foi, por quê? Na verdade, a princípio
nada havia sido posto em risco; muito pelo contrário, no início de
1789, sente-se que a França vai empreender profundas transformações,
mas amigavelmente c dentro do respeito à ordem.
Assim, é o rei quem toma a iniciativa de convocar os Estados
Gerais, o que lhe vale o reconhecimento popular — que nao temos
nenhuma razão para per em dúvida — como está consignado nos
livros em que os delegados anotaram nas sugestões. Não existem
ainda republicanos; a lealdade à monarquia é forte e, quando se
abrem os Estados Gerais, todos ou quase todos esperam que um
acordo entre o rei e a nação permitirá levai- a cabo as mudanças
que se impõem, Para explicar a passagem brusca da harmonia para
o desacordo e o conflito não basta o exame dos antecedentes; corn
efeito, se as causas mostram claramente a necessidade de mudança,
nem por isso elas postulavam' a queda da monarquia, e somos assim
forçados a procurar outros elementos de explicação para o rumo
tomado pelos acontecimentos.

U ma sucessão de revoluções em cadeia

Uma história revolucionária mostra uma série de saltos inespe­


rados. Poder-se-ia pensar que a França, escolhendo o caminho da
revolução, leva a cabo uma reforma total, atendo-se desse modo à
ordem estabelecida. É isso, aliás, o que pensavam os contemporâneos,
em 1789 e, mais tarde, em 1791, quando a Assembléia constituinte se
dissolve, após ter restabelecido o rei em seus poderes; o rei compa­
rece à Assembléia e jura fidelidade à constituição, que havia sido
objeto de uma revisão visando a torná-la definitiva. Percebe-se
então um sentimento quase geral dc que a era das revoluções havia
sido encerrada e que se iniciava um longo período de estabilidade,
no qual a França poderá gozar, sem tempestades, da renovação que
acaba de realizar.
Isso, porérn, não acontece; o 10 de agosto e a queda do trono,
o que se segue ao 9 termidor, assim como outros acontecimentos,
desmentem sucessivamente essa esperança.
Temos, portanto, à frente um suceder-se cie revoluções. A expres­
são que usamos correntemente de Revolução, no singular, é enganosa
porque, se serve para identificar o período, dissimula essa seqüência
de revoluções, que se seguem nos anos que vão da convocação dos
Estados Gerais ao 18 brumário (por ora, deixaremos de lado a ques­
tão de saber se o período que inaugura o golpe de Estado de brumário
prolonga a Revolução ou assinala irrevogavelmente o seu fim).
Distinguem-se diversas fases nitidamente individualizadas, que
são como outras tantas revoluções, cada uma com seu espírito, cada
uma propondo-se ura programa, fixando objetivos. Cada revolução
tem também seu pessoal próprio, apóia-se numa categoria social de
preferência a outras e deixa urna herança, instituições, processos de
governo, que concorrem para diferenciá-la das outras fases.
1. Como fase preliminar, a crise pré-revolucionária opõe ao
poder real a resistência dos privilegiados por intermédio da Assembléia
dos Notáveis, dos Estados provinciais, dos parlamentos. Ela se carac­
teriza pela rebelião contra o absolutismo e seus agentes locais, os
intendentes.
2. Em seguida, inicia-se a Revolução propriamente dita, quan­
do os Estados Gerais decidem transformar-se em Assembléia Nacional,
tomando a resolução de nao se dissolver enquanto não for dada
à França uma constituição, cuja elaboração empreendem. Este é o
momento decisivo da Revolução, aquele em que se realiza a mudança
da soberania, que deixa de se identificar com a pessoa do rei e passa
a residir, de aí por diante, na representação da nação, pondo desse
modo fim a séculos de monarquia, Essa revolução, muitas vezes
chamada de revolução dos juristas, merece duplamente esse nome
porque, de uma parte, é feita por homens da lei e, de outra parte,
sua própria ação c de essência jurídica.
A Assembléia Constituinte toma a resolução de dar à França
novas instituições; essa reorganização não deixa de lado nenhum
setor: por isso, na noite de 4 de agosto, ela se dedica à ordem social
com a votação de decretos que consumaram a ruína do feudalismo.
Essa primeira revolução é mais antinobiliária do que antimonár­
quica, pois, enquanto limitava os poderes do rei, não deixa de con­
servar o princípio da monarquía no novo regime, tentando assim
conciliar a instituição real herdada do passado com as aspirações da
França moderna.
Sua inspiração é essencialmcnte individualista e liberal, palavras
quase sinônimas: toda a obra da Constituinte, administrativa, social,
financeira, judiciária, traz a sua marca.

117
3. Essa primeira fase revolucionária é logo seguida de uma
segunda, que nada anunciava, nem nas intenções nem nas disposi­
ções da primeira. Ela se inicia com a jornada popular de 10 de
agosto de 1792, que derruba a monarquia, executa o monarca e
proclama a República.
Mais radical, ela vai muito além da precedente em todos os
domínios, sejam eles políticos, sociais, religiosos ou econômicos, e se
caracteriza por um impulso democrático. Esta é a ocasião de lembrar
a distinção capital entre liberalismo e democracia que, tendo ele­
mentos comuns, nem por isso deixam de ser profundamente diferentes.
A primeira revolução, a da Constituinte, era liberal. A segunda vai
além dos limites do liberalismo: tende a acabar com as diferenças
sociais, suprime a distinção censitária, sobre que repousava, sob o
regime da constituição de 1791, o exercício dos direitos políticos.
Ela é popular também pelos que a fazem. Enquanto a primeira
havia sido feita por uma burguesia abastada de togados que, depois,
toma a seu cargo as administrações departamentais e municipais, a
segunda é obra da ¡debe de Paris, das divisões administrativas, dos
sans-culottes.
A primeira faz uso de meios moderados, enquanto que à segunda
nao repugna recorrer a soluções extremas, se as circunstâncias, tanto
internas como externas, parecerem exigi-lo; o Terror é um aspecto
dessa revolução.
Há diferença também no plano das instituições políticas e admi­
nistrativas: a primeira revolução liberal suprimiu todos os agentes
do poder central, enquanto a segunda, em parte porque as circuns­
tâncias constrangem-na a isso, compromete-se numa direção diame­
tralmente oposta, voltando às iniciativas descentralizadoras de 1789-
-1791 e estabelecendo um governo concentrado, autoritário, que nada
fica a dever ao absolutismo monárquico. O governo revolucionário
alia assim uma política de inspiração democrática a um poder forte,
desembaraçado dc todos os entraves que a monarquia não havia
conseguido extirpar, ficando tudo subordinado à noção de salvação
pública, que constitui a forma moderna da razão de Estado. E isso
continua assim até o 9 termidor.
4. À margem da história clássica, tal como é escrita em função
dos debates das assembléias ou da agitação parisiense, desenvolve-se
uma revolução provinciana. No verão de 1789, fazendo eco aos acon­
tecimentos do 14 de julho, uma revolução municipal substitui nas
cidades as tradicionais municipalidades por novos poderes. Na zona
rural, uma revolução camponesa, cujos objetivos são propriamente
agrarios, prossegue seu curso pela emancipação completa da terra
e a libertação do indivíduo, acabando com o que ainda resta de
feudalismo e, notadamente, dos direitos feudais, que a reação nobi­
liaria torna mais detestáveis. Trata-se de um movimento autônomo,
que tem seu programa, seus personagens, e cujo ritmo não coincide
com o da revolução parisiense. A revolução agrária é feita em etapas
sucessivas, intermitentes, a primeira das quais é o Grande Terror,
uma espécie de jacquerie, bem sucedida graças ao terror que inspira
aos senhores e à Assembléia que promete '— dentro de certo prazo —
a abolição dos direitos senhoriais. Outros ataques esjrasmódicos con­
seguirão, em 1793, a supressão imediata desses direitos, cuja extinção
gradual havia sido prevista pela Constituinte por amortização.
Alguns historiadores, recentemente, chamaram a atenção para
uma revolução mais avançada, e mais radical, empreendida pelos
enragés, facção extremista, que se situava mais à esquerda que os
sans-culottes e os jacobinos, sonhando com uma reforma total da or­
dem social e com a supressão de qualquer desigualdade. O movimento
de Babeuf, enfim, embora diferente, situa-se em seu prolongamento.
Depois do 9 termi dor, a história da Revolução perde essa bela
simplicidade que lhe era conferida pela dramatização da luta entre
as facções, A linha geral se altera e se embax'aça, como se a Revolução
hesitasse. Ela detém sua marcha, volta atrás, tateia, procurando
atender a solicitações contrárias. A Convenção termidoriana, e de­
pois o Diretório, oscilam entre a restauração do passado e o incre­
mento da Revolução. Os dois regimes se aparentam mais com a
primeira fase — a da Constituinte — do que com a fase posterior
ao 10 de agosto de 1792; c clássico o paralelo entre as duas constitui­
ções, a de 1795, ou do ano III, e a de 1791, assim como entre as duas
políticas econômicas e sociais. Os termidorianos voltam ao liberalismo,
onde se inspiravam os constituintes, e abandonam sem pena a política
democrática avançada, posta em prática pelos integrantes do partido
da montanha. Se formulamos essa observação em termos de forças
sociais, diremos, mas com muita cautela, que a Revolução, depois
do termidor, volta a ser burguesa, em oposição à revolução popular,
que se situa entre 1792 e 1794.
O regime oscila entre dois perigos: o da contra-revolução realista
e o do jacobinismo ou, como se diz na época, da “cauda de Robes­
pierre”. Bonaparte é o elemento de decisão e o 18 brumário marca
o fim dos dez anos de saltos sucessivos.
Desse modo, em 1789, a França decide-se por uma mudança
radical e a Revolução é feita em etapas sucessivas. Revolução de

119
repetição, poder-se-ia dizer, cujas diversas fases separam-se umas das
outras, por outras tantas rupturas da legalidade: 10 de agosto de
1792, termidori dias do Diretório. Essas rupturas ligam-se a dois
tipos nitidamente diferenciados: jornadas populares e golpes de
Estado.

2. Os F A T O R E S DO P R O C E S S O R E V O L U C IO N A R IO

Podem-se discernir fatores de duas ordens: de um lado, uma


série de fatores ampiamente independentes da vontade dos homens,
que pesam sobre eles, ao invés de serem por eles controlados, e que
constituem coação, aquilo que Saint-Just chama de “força das coisas” ;
por outro lado, fatores mais pessoais, mais ligados ao caráter dos que
a empreendem, às suas ambições, às suas convicções. Enfim, podem-se
distinguir fatores objetivos e fatores psicológicos.

A “ fo rça das c o is a s ”

O problema dos meios de subsistência


Já vimos os problemas que as possibilidades dos recursos ali­
mentares causam ao crescimento demográfico; analisaremos agora suas
conseqüências políticas. A Revolução não está livre da carestia e,
por várias vezes, o povo passou fome, porque os gêneros alimentícios
são raros e os preços inexoráveis. A incerteza da chegada de merca­
dorias, com a psicologia das massas revolucionárias, causa nervosismo,
irritação e concorre para o sentimento de insegurança. Tornaremos
a encontrar essa situação em outras circunstâncias análogas, com a
revolução soviética entre 1917 e 1922, por exemplo, que também
sofreu as conseqüências da fome.
Várias espécies de indícios revelam a ligação entre o problerna
dos meios de subsistência e a situação política, como, por exemplo,
o lugar tomado nas palavras de ordem pelas reivindicações relativas
ao abastecimento. Nas jornadas de outubro de 89, é porque as
provisões não chegam que uma multidão se põe em marcha até
Versalhes. Ao trazer o rei de volta a Paris, afastando-o de uma
camarilha considerada hostil, ela espera assegurar o sucesso da Re­
volução e garantir a chegada regular dos comboios de farinha. Ê
bom nao esquecer os apelidos familiares com que é ridicularizada
a família real: o padeiro, a padeira e o pequeno ajudante. No tempo
da Convenção Termidoriana (1795), por ocasião das jornadas da

120
miséria, é ao grito de “Pão e a constituição do ano P ’ que o povo
invade as salas de reunião, associando uma reivindicação política a
uma palavra de ordem relacionada com o abastecimento.
Encontra-se outro indício desse fato no sincronismo dos calen­
dários. A maioria dos movimentos populares ocorrem nos momentos
em que ainda não foi feita a soldagem entre os estoques da colheita
precedente, já esgotados, e a nova colheita. É durante o verão,
quando os moageiros não têm mais farinha, quando os padeiros estão
sem provisões, que eclodem os movimentos em favor do terror, na
esperança de uma solução satisfatória para o 'problema dos meios
de subsistência (setembro de 1792, setembro de 1793).
A Revolução, portanto, é feita aos saltos, que em geral nem sao
previstos nem esperados. A febre, o nervosismo da população pari­
siense representam um fator de aceleramiento, empurrando para a
boca da cena a facção disposta a adotar medidas extremas e, se
o partido da montanha leva a melhor sobre os girondinos, isso ocorre
porque o povo confia nele para assegurar o reabastecimento.

O medo
O medo, sob todas as suas formas, afeta sucessivamente todas
as categorias e partidos políticos; trata-se de um medo ora espon­
tâneo, impulsivo, irracional (o Grande Terror), ora usado, suscitado
por facções, explorado, como poderosa arma política. Ambos os
partidos, o contra-revolucionário e o revolucionário, fizeram uso dele.
Os emigrados tentam a intimidação ■— é assim que o manifesto de
Brunswick ameaça de subversão total a cidade de Paris; eles contam
com o medo para desencorajar os revolucionários ou para isolá-los.
Em sentido oposto, os revolucionários fazem uso do Terror contra
seus adversários. Essa dialética de temores simétricos e antagônicos,
do terror e do contraterror, tem um lugar muito importante no
desenrolar da Revolução.

A guerra
De todos os fatores, a guerra é talvez o mais determinante, em­
bora não tivesse desempenhado nenhum papel no início, pois em
1792 a França vive em paz. Em 1790, a Constituinte declarou
solenemente a paz no mundo e ninguém imagina que essa situação
deixe de existir. Mas, em abril de 1792, a Assembléia Legislativa
declara guerra ao rei da Boêmia e da Hungria, e desde então intro-

121
duz-se um novo dado, que irá modificar o sistema das relações que
provocam conseqüências incalculáveis.
A iniciativa de fazer guerra a certos soberanos tem como primeira
consequência o fato de a sorte da Revolução depender, daí por diante,
nao mais apenas da decisão das assembléias, mas do desenrolar da
guerra e do acaso dos combates. Estabelece-se um elo, uma solida­
riedade de interesses, entre o curso da Revolução no interior e as
vicissitudes da guerra além-fronteíras.
Por isso, altera-se o desenvolvimento natural da Revolução cuja
eonseqüência direta é o governo revolucionário. Se a Revolução, a
partir de 1792-1793 se vê obrigada a reconstituir um poder central
autoritário, contra as esperanças dc 1790, ela o faz obrigada pela
guerra. As condições de exercício do poder são profundamente modi­
ficadas, as garantias suspensas, as liberdades individuais colocadas
entre parênteses. O Terror c uma eonseqüência da guerra.
Examinando toda a história das instituições e da administração,
vemos que não há decisões ou acontecimentos que não sejam re­
percussões da guerra, até mesmo o 18 brumário. Robespierre soube
ver isto muito bem e, no debate que dá origem à declaração de
guerra em abril de 1792, ele é um dos ramos que se lhe opõem:
da guerra sairá a ditadura.

 questão religiosa

Duas teses opõem-se no tocante às relações entre a questão


religiosa e a Revolução. De acordo com a primeira, a Revolução,
sendo fundamentalmente anti-religiosa, de inspiração intrínsecamente
anticristi, devería fazer guerra à Igreja, e ela limita-se a tirar-lhe as
conseqüências, quando persegue a Igreja, lança os padres nas prisões
ou condena-os ao massacre; a outra interpretação reduz a impor­
tância cio conflito entre Revolução e Igreja a um simples acidente.
Dc início, os revolucionários não se propunham a descristianizar a
França; pelo contrário, queriam reconstruir a nova França em função
do cristianismo: uma sucessão de mal-entendidos levou ao cisma.
Á verdade está entre essas duas teses extremas, É fora de dúvida
que a Revolução, no início, não é anti-religiosa, embora seja anti­
clerical. Contudo, considerar isso um simples acidente, é diminuir
a importância dos primeiros acontecimentos. Se os revolucionários
quiseram regenerar a Igreja, é porque não conheciam a constituição
própria da sociedade religiosa c sua iniciativa só podería levar a uma
ruptura. Â constituição civil do clero implicava disposições inacei­

122
táveis, porque atentavam contra a estrutura hierárquica da Igreja
e contra os laços entre a Igreja galicana e Roma. Depois, uma se­
quência aparentemente inelutável de causas e de efeitos provocou a
condenação da constituição civil do clero pelo papa, o cisma e a per-
seguição. Seja como for, tal ruptura teve conseqüências incalculáveis
para a própria Revolução, pois os católicos foram rejeitados em sua
totalidade para o campo da contra-revolução, enquanto o baixo clero
proporcionava ao terceiro estado uma ajuda muito preciosa; a aliança
entre o terceiro estado e o clero é que deu condições à Revolução.
As conseqüências, a longo prazo, ultrapassarão o período revo­
lucionário, pois o conflito entre Revolução e Igreja Católica pesará
durante um século e meio sobre toda a Europa: trata-se do divórcio
entre a França cristã do passado e a nova França. Desde a Restaura­
ção até a Terceira República as duas Franças lutarão entre si,
dividindo profundamente a sociedade francesa. No conflito que,
no século X IX , opoe católicos a democratas, existe não só a clássica
competição pelo poder (como a que opunha Luís X IV a Roma)
mas também uma prova de força entre duas concepções, o confronto
entre duas filosofias políticas, entre duas sociedades.
O conjunto desses fatores explica a maioria dos saltos e das
surpresas que o desenrolar da Revolução causou aos contemporâneos.

As VONTADES E AS P A IX Õ E S

A esses fatores objetivos, acrescentam-se outros, mais subjetivos,


mais propriamente humanos, psicológicos ou políticos.
Com efeito, do lado dos detentores do poder, é preciso levar em
conta a má vontade e as reticências do soberano, as intrigas da corte,
o compio aristocrático, como se diz em 1789, o prejuízo que os emi­
grados causaram à coroa, o duplo jogo do rei e da política do pior,
praticada por contra-revolucíonários convencidos de que do pior sairía
depois o melhor. Essas intrigas, verdadeiras ou supostas, lançaram a
suspeita e muito fizeram para desarraigar da opinião pública o lea­
lismo monárquico. No campo contrário, entraram em jogo as segun­
das intenções dos revolucionários, desejosos de ir mais longe, as dis-
sençÕes, as rivalidades entre pessoas ou grupos, as lutas de facções,
que o curso dos acontecimentos, os problemas nascidos da guerra ao
mesmo tempo revelaram e acentuaram por uma interação permanente
entre os problemas objetivos apresentados aos responsáveis e os sen­
timentos humanos.
Tal interação explica esses dez anos de saltos. É a convergência
de todos esses fatores que imprime à história da Revolução esse ritmo

123
intermitente, que fez déla um período intensamente dramático e que
deu voga ao sentimento de que estava em ação uma misteriosa fata­
lidade. São essas — dentro da possibilidade de reduzir história tão
complexa e movimentada a um pequeno número de fatores — as
chaves principais do desenrolar da Revolução.

3. A R evolução e a E uropa

Os acontecimentos de que a França é teatro afetaram a Europa


e mesmo uma parte do mundo. De que modo a influência da Revo­
lução estendeu-se a outros países? É o que temos que examinar para
avaliar as dimensões do acontecimento. À resposta prende-se ao es­
tudo das relações circunstanciais, diplomáticas ou militares, entre a
França da Revolução e a Europa. Tais relações passaram por várias
fases, cada uma assinalando uma etapa na difusão das idéias revo­
lucionárias,

A primeira etapa
A primeira etapa vai de 1789 à declaração de guerra (20 de
abril de 1792), Num primeiro tempo, os acontecimentos da França
suscitam além-fronteiras a comiseração dos soberanos, a curiosidade
e a simpatìa de parte da opinião pública. Quase todas as grandes
inteligências da Europa discerniram imediatamente a novidade do
acontecimento; dão-lhe testemunho as opiniões que podem ser pro­
curadas em Kant, em Goethe e em outros mais. A opinião pública
esclarecida teve, dc choírc, o sentimento de que se iniciava uma nova
era da, história européia. Essa compreensão foi facilitada pelo cos­
mopolitismo europeu, pois o intercâmbio de idéias fazia da Europa
uma espécie dc pátria comum dentro da qual as experiências, os escri­
tos, as idéias dos filósofos encontravam ressonância universal. Ora,
esse cosmopolitismo era dominado pela influência da França. Como,
no século XVIII, a língua francesa é o veículo das idéias e dos escritos,
a Europa culta fala francês e pensa em francês. Está, portanto,
preparada para prestar atenção aos acontecimentos da França.
Por seu lado, a Revolução Francesa não se fechou em si mesma;
de imediato ela pretende e espera agir em escala mundial e, conse-
qüentemente, dirige-se ao mundo. De fato, os acontecimentos da
França logo passam a exercer sobre seus vizinhos certo contágio,
provocando reações em cadeia; os povos se agitam, e alguns deles nao
esperam por 1789. Assim os súditos do papa, em Avignon, e no

124
condado, exigem sua integração na França: os súditos do rei da
Sardenha, na Savoia, fazem o mesmo. Alhures, mesmo em países
que não têm fronteiras comuns com a França, surgem movimentos
renovadores: a Polônia, estimulada pelo exemplo francês, abole o
liberum veto, que paralisava o poder c colocava a independência do
país à mercê de seus vizinhos, e dá a si mesma uma constituição (3
de maio de 1791). Um pouco por toda parte, delineiam-se movimen­
tos contra os príncipes, os senhores, os bispos, contra os privilégios.
A Revolução logo deixa de ser propriamente francesa. Pode-se já
então falar de uma revolução da Europa Ocidental.

A segunda etapa
A segunda etapa, consequência da primeira, é a ruptura entre
a França e os soberanos, contida em germe no contágio exercido pelo
modelo revolucionário. Esse segundo período (1792-1799) caracte­
riza-se pela guerra. Os soberanos, inquietos quanto à própria autori­
dade, pressentem a gravidade do perigo, percebem a necessidade de
sufocar a Revolução em seu berço, exigindo a salvação da ordem
estabelecida que a Revolução seja esmagada na própria França,
enquanto que, por seu lado, a Revolução é levada a fazer guerra
aos “déspotas”.
Essa guerra é de um gênero relativamente novo. Antes, como
as relações internacionais do Antigo Regime caracterizavam-se pelo
principio dinástico, os países guerreavam entre si para conquistar
territórios limitados; com o antagonismo entre a Revolução e a Eu­
ropa surge uma guerra de tipo ideológico. A Revolução empreende
uma cruzada contra o Antigo Regime; ela não se limita a repelir o
invasor; passa à ofensiva e empreende uma guerra de libertação.
A França dos girondinos anuncia que prestará assistência a todos os
povos que queiram se libertar da tirania.
A natureza dessa guerra provoca uma dissociação nas comuni­
dades políticas. A linha divisória entre revolucionários e contra-re-
volucionários passa de aí por diante para o interior de cada povo.
Na própria França os franceses combatem a Revolução, alinham-se
ao lado de seus adversários, enquanto que os soberanos têm contra si
parte de seus súditos revoltados, que esposam a causa dos exércitos
revolucionários. Quando os exércitos franceses entram no vale do
Reno ou no norte da Itália, são acolhidos com simpatia, e até com
entusiasmo, por uma parte da população. Encontram-se jacobinos
mesmo nos países onde os franceses jamais haviam penetrado, como
na Inglaterra ou na Hungria. A opinião pública se reclassifica em

125
função das preferências ideológicas, que se sobrepõem ao apego ao
soío e à fidelidade dinástica.
Entre os soberanos e a Revolução, a luta é desigual. A Europa,
coalizada, reagrupando diversos Estados, com maior número de habi­
tantes, deveria normalmente levar a melhor, e, contudo, o verdadeiro
composto de forças dá vantagem à Revolução, que está mais apta a
levar a té à vitória essa guerra de novo tipo. O Antigo Regime é
incapaz de adotar e mesmo de conceber a mesma estratégia que
a Revolução. Os soberanos conservam os antigos métodos diplomá­
ticos, militares, enquanto que a Revolução inova, recorre a meios
inéditos, mais eficazes. Ela faz o recrutamento de toda uma nação
e desse modo restabelece o equilíbrio lançando contra exércitos
profissionais, pouco numerosos, as massas mobilizadas e, sobretudo,
motivadas.
A Revolução corrige a situação, reconduz à fronteira os invasores,
penetra por sua vez em território estrangeiro, anexa, ocupa, transforma
politica e socialmente. Ei-la triunfante. A invasao, a guerra, a ocupa­
ção provocam a abolição do Antigo Regime. Por toda parte dissol­
vem-se as ordens, abole-se feudalismo, extinguem-se as corporações,
dispersam-se as congregações, seculariza-se o Estado, proclama-se a
igualdade civil, e se introduzem as instituições da França revolucionária.
O Diretorío provoca a formação das republicas-irmãs, como res­
posta a duas preocupações: uma, puramente militar, visa a dispor
ao redor da França uma trincheira de proteção; a outra, cujo alcance
é mais longínquo, visa a preparar a transformação da Europa. A
primeira dessas repúblicas-írmãs é a República Batava, que sucede às
Provincias Unidas: seu nascimento atende às aspirações unitárias e
populares há muito tempo contidas pela burguesia patrícia. Mas
a Itáüa é o local privilegiado do florescimento dessas repúblicas, a
cisalpina, a liguríana —- a antiga República de Gênova —, a romana,
herdeira dos Estados da Igreja, a partenopeana, que substitui o Reino
de Nápoles. Virá depois a República Helvética.
A Revolução, por uma espécie de lógica inexorável, depois de
haver declarado a paz no mundo, foi levada a fazer guerra à Europa:
lutando por sua segurança, passou à ofensiva e revolucionou a me­
tade do continente.

A terceira etapa

A terceira etapa é dominada pela personalidade de Napoleão,


cujo modo de agir, nesse plano, não representa nenhuma ruptura

126
com a Revolução, mas constitui um prolongamento da obra empre­
endida pelas assembléias e os diretores. Napoleão conjuga a guerra
e a administração, a ação dos prefeitos e a presença das tropas. _
Á Revolução não tinha tido tempo para ir além da margem
esquerda do Reno e da Itália. Napoleão estende seus domínios até
as extremidades da Europa, da península ibérica à Polônia e das
províncias ilíricas até a Dinamarca. Vários Estados são anexados
à França ou colocados sob sua tutela. O Grande Império, no seu
apogeu, em 1810-1811, cobre metade da Europa e a França conta
com 130 departamentos. . A Europa c profundamente remanejada,
suas fronteiras são empurradas e os Estados reagrupados em novos
conjuntos.
Napoleão leva para toda parte os princípios e instituições revo­
lucionárias; a velha sociedade tradicional das ordens desaparece; o
clero e a aristocracia perdem seus privilégios; a servidão é abolida,
o homem libertado, a terra emancipada. A burguesia e as classes
médias vêem abrirem-se para elas novos campos de atividade e de
iniciativa. Uma sociedade nova nasceu em todos os países ocupados
e administrados pela França.
Paralelamente, Napoleão introduz os métodos de administração
moderna. A divisão territorial adotada pela França em 1800 é esten­
dida à Itália, com os departamentos, à cuja frente estavam os pre­
feitos, os corpos técnicos, a administração financeira, a magistratura,
os departamentos de viação e obras públicas. Grande parte da
Europa, sujeita à hegemonia francesa, encontra-se de fato política,
social e administrativamente unificada, enquanto o bloco continental
reforça ainda mais essa homogeneidade. Sem dúvida, a experiência
foi muito rápida para que essa unificação durasse, mas foi o bastante
para tornar irreversíveis várias mudanças.
Essa unificação acentua ainda a diferença entre duas Europas.
Com algumas exceções, a linha de divisão entre a Europa napoleó­
nica e a outra coincide com a antiga linha de demarcação, já esboçada
em várias ocasiões, entre a Europa voltada para o exterior e a Europa
voltada para si própria; a Europa das sociedades marítimas e a
Europa das sociedades terrestres; a Europa da monarquia absoluta
e da burguesia e a Europa do despotismo esclarecido. O corte que
marca a separação entre os territórios ocupados e transformados pela
França, e os demais, agrava a diferença cronológica e acentua a
disparidade das evoluções.

s 127
3

A OBRA DA REVOLUÇÃO

Qual é o balanço da Revolução? Em que ela mudou a ordem


das coisas?
Duas reflexões preliminares servirão de norma ao que vem a
seguir :
1. Em primeiro lugar, nem tudo o que a Revolução empreendeu
durou; do que ela apenas esboçou, muito desapareceu no naufrágio
de 1814. São várias as -razões dessa desigualdade no destino e
duração das mudanças. Nem sempre a Revolução teve inspirações
felizes; seus projetos, muitas vezes, eram utópicos, às vezes até retró­
grados. Com efeito, nem toda a Revolução está voltada para o futuro;
ela também alimenta um sonho nostálgico em relação à idade de
ouro e às antigas repúblicas. Essa parte de quimera não deveria
sobreviver à Revolução. Pelo contrário, certas idéias, certas expe­
riências sofreram por estarem à frente de seu tempo; alguns aspectos
da política econômica, por exemplo, eram prematuros. Entre as
inovações, muitas irão desaparecer com a Restauração, mas não para
sempre. Poder-se-ia quase descrever toda a história do século X IX
como a rcdescoberta progressiva das antecipações da Revolução ou
escrever a história da Revolução como a de uma série de intuiçÕes
proféticas e de sinais que só se tornarão realidade meio século ou
um século depois.
Por agora, interessa-nos fazer o balanço positivo do que perma­
nece após a tormenta revolucionária, o inventário objetivo do que
resistiu à prova dos fatos e ao contragolpe da Restauração depois
da Revolução.
2 . A frase anterior dá origem à segunda observação ; que quer
dizer “depois da Revolução” ? Quando terminou a Revolução? Onde

128
começa o seu depois? A 18 brumário? Em 1814, em 1815, na pri­
meira ou na segunda abdicação do imperador?
Qual é o lugar dc Napoleão no tocante à história da Revolução?
Em outras palavras: Bonaparte prolonga, a Revolução ou a destro!?
Eie é seu herdeiro ou seu coveiro?
A resposta é tão pouco evidente que, desde então, duas inter­
pretações contraditórias se opõem.
A primeira coloca em destaque a ruptura e afirma que Napoleão
matou a Revolução. O 18 brumário é um golpe de força dirigido
contra a legalidade. Napoleão é um tirano, que violou a constituição,
dispersou as assembléias, confiscou a liberdade. E assim que ele se
mostra aos membros dos Conselhos e é assim que o veem os jacobinos,
que conspiram, entre 1800 e 1804, contra o seu poder. O segundo
Império, e as circunstâncias de seu estabelecimento, o golpe de Estado
de 2 de dezembro, a perseguição dos republicanos, corroboraram
retrospectivamente essa versão, reforçando a analogia entre Napoleão
e a tirania.
Napoleão, não se pode negar, derrubou o regime legal e confiscou
a liberdade. Se a Revolução se identifica com a liberdade do indiví­
duo, a conclusão não encerra nenhuma dúvida: Napoleão é o inimigo
da Revolução. Mas a diversidade dos movimentos revolucionários
sugere que a Revolução não se reduz ao respeito da liberdade indi­
vidual; tanto isso é verdade que todo um capítulo da história pro­
priamente revolucionária, a que se inicia na noite de 10 de agosto
de 1792 e cujas características são o Terror e o governo revolucio­
nário, faz pouco caso das liberdades.
É fácil, portanto, imaginar que um segundo ponto de vista apre­
sente uma interpretação completamente diversa sobre a pessoa de
Napoleão, suas idéias e seu papel histórico, dando destaque à conti­
nuidade e fazendo dele o herdeiro, o soldado, o defensor, o mártir
até da Revolução. Os soberanos execram nele o homem que conso­
lidou a obra da Revolução, e ele próprio, mais do que ninguém, con­
tribuiu para fixar esse ponto de vista com o Memorial, Se se consi­
derar menos o homem do que a obra, esta segunda versão tem mais
força do que a primeira: Napoleão consolidou a obra da Revolução
porque, purgando-a do que ela tinha de excessivo e de contestável,
assegurou-lhe a possibilidade de durar.
Assim, para traçar o balanço das transformações e descrever a
obra da Revolução, não nos devemos situar em 1799, porque nessa
cpoca a obra revolucionária está em suspenso e seu futuro depende
do remanejamento consular. Sem que seja necessário remontar a

129
1814, é preciso contudo incluir o período consular, pois são as grandes
leis de 1800-1802 que dão estabilidade à herança da Revolução e à
nova França sua fisionomia definitiva*
A Revolução tocou em tudo; por isso passaremos em revista
os principais setores da vicia coletiva, que serão divididos em cinco
capítulos.
No primeiro, relativo à organização do poder e ao Estado, estu­
daremos as formas políticas do Antigo Regime, o que ainda restou
dele e o que desapareceu; em segundo lugar, num nível inferior,
analisaremos a administração e os meios de ação do poder. Esses
dois capítulos iniciais têm em cornum o fato de ambos dizerem
respeito ao governo dos homens; a terceira parte versará sobre as
relações entre religião e sociedade, a Igreja c o Estado; o quarto
capítulo, sem dúvida, o mais importante, trata da ordem social que
teve origem na Revolução; e, em último lugar, veremos a contri­
buição que a Revolução trouxe para a idéia nacional, o sentimento
patriótico, as relações internacionais, a diplomacia e a guerra.

1, O E stado

A Revolução afeta não só os princípios da organização política


como também as práticas da vida política.

Evolução da Noção de Política


Com a Revolução, a própria noção de política mudou e nossa
noção moderna, mesmo se depois sofreu diversas transformações,
descende dela em linha reta. A comparação com o que era a política
antes da Revolução dará maior destaque a essa novidade.

Comparação com o Antigo Regime

1. Sob o Antigo P^egime, a política e reservada a um pequeno


número de pessoas: só a conhecem e só têm voz política alguns indi­
víduos, em razão de seu nascimento, nos regimes oligárquicos, ou
porque gozam da confiança do príncipe, nos regimes monárquicos.
De qualquer modo, trata-se sempre de uma minoria restrita. O
segredo envolve todas as decisões.
Com a Revolução, a política transforma-se em coisa de todos,
a coisa pública. Esse é, aliás, um dos sentidos da palavra república,
que toma o lugar da monarquia, e 6 exatamente em razão dessa

DO
i
transferência da soberania que a política, de agora era diante, inte­
ressará a cada um, que todos os cidadãos têm o direito de serem
informados e até o dever de se informarem. Tal evolução tem conse-
qüêncías capitais, entre outras a publicidade dás decisões, a liberdade
de imprensa, a publicidade dos trabalhos parlamentares. É o chamado
governo da opinião.

Ampliação do campo da política


2. A segunda mudança diz respeito à ampliação do campo da
política, que se dilata bruscamente e se estende a toda espécie de ativi­
dades que, até então, não dependiam da ação dos poderes públicos,
pois sob o Antigo Regime a política implicava essencialmente na
manutenção da ordem, na justiça, na defesa e na diplomacia.
Com a Revolução, as responsabilidades reconhecidas como do
poder público englobam logo setores que antes dependiam da iniciativa
privada, individual ou coletiva: a assistência pública, por exemplo
— e o epíteto é significativo —, não cabe mais exclusivamente à
Igreja ou à caridade particular. A sociedade tem responsabilidades
e cuidar dos indigentes é seu dever; também a Assembléia Consti­
tuinte forma um comitê da rnendicidade, Do mesmo modo, e o
exemplo é mais claro ainda, a instrução pública não depende mais
da Igreja ou das congregações, mas passa à responsabilidade dos
poderes públicos. Estas sao as primicias da evolução, que, por etapas,
levará os Estados a cuidar do ensino.
A afirmação de que a felicidade é um direito do indivíduo e uma
responsabilidade do Estado estende ao infinito o dominio das atri­
buições públicas. Se os cidadãos são infelizes, os poderes públicos
sao considerados parcialmente responsáveis por isso, e cabe portanto
a eles fazer de modo que a situação se modifique. Esse é o germe
de todos os desenvolvimentos que estenderão o campo de atividade
e das tarefas do Estado.

Importância crescente da política


3. Publicidade dos debates e extensão da política a toda espécie
de domínios que antes dependiam do particular, essas duas evoluções
têm como resultante comum a promoção da política em dignidade
moral e em importância psicologica. É depois da Revolução que a
política passa a ser considerada como uma das atividades mais altas
—■ talvez a atividade suprema — mas também das mais disputadas,
de toda sociedade organizada. É precisamente em razão dessa cres-

131
cente importância e de suas conseqüêncías que as decisões políticas
provocam discussões apaixonadas; é o que inspira a Napoleão esta
frase: “Hoje, a tragédia é a política”, querendo dizer com isso que a
política muitas vezes mostra um caráter dramático, capaz de prender
a atenção e de satisfazer a curiosidade até então suscitada pelos dra­
mas ligados às fícções do passado, mas querendo também significar
com isso que a vida dos indivíduos, como a das sociedades, está
em jogo.
Nosso modo de colocar os problemas em termos de confronto
data da Revolução que, de certo modo, provocou uma transferência
de paixões, antes mobilizadas pelas questões religiosas. O caráter
conflítual de nossa vida política, os antagonismos que dilaceram nossas
sociedades, tudo isso procede dessa nova noção de política, que assi­
nala uma profunda mudança na concepção do Estado e de seu papel.

As práticas

O princípio, sem as modalidades, teria tido pouca influência.


Por isso a Revolução experimentou toda uma gama de meios, poste­
riormente retomados e generalizados.

A consulta popular, por meio de eleições


A Revolução pôs em prática a eleição em escala muito acentuada;
aliás, de um só golpe, ela irá muito além do que todas as experiên­
cias ulteriores. Com a Constituinte, a Revolução recorre à eleição,
não apenas para a escolha dos representantes da Nação — o que é
lógico —, mas para a de todas as administrações — municipais e de­
partamentais; no que respeita à justiça — os magistrados são escolhi­
dos por via eletiva para um tempo limitado; no tocante ao próprio
clero, a constituição civil do clero previa que bispos e curas seriam
escolhidos pelos eleitores. A eleição torna-se um processo universal
de escolha. Mas, se seu campo de aplicação é universal, só uma
parcela dos cidadãos têm direitos políticos.

A deliberação pública

As assembléias revolucionárias têm que improvisar um regula­


mento, inventar processos de discussão, modos de escrutínio, de que
nossa experiência parlamentar ainda ê tributária.

132
Os novos esteios da vida política
À margem dos processos regulares e oficiais -— eleição, delibera­
ção de assembléias representativas —, a Revolução também criou os
esteios da vida política, entre os quais, em primeiro lugar, a imprensa ;
com efeito, é sob a Revolução, entre 1789 e o 10 de agosto, que a
França fez a primeira experiência de completa liberdade de imprensa;
que, pela primeira vez, os jornalistas tiveram grande destaque na
vida política. Grande número de políticos deveram sua influência
ao fato de serem ao mesmo tempo diretores de jornal, ou porque
nele encontraram um meio de ação: os Camille Desmoulins, os Brissot,
os Marat. De aí por diante — e teremos ocasião de verificá-lo no
século X IX —, existe íntima ligação entre atividade jornalística e
atividade política, entre a liberdade de imprensa e a liberdade política.
Ao lado dos jornais, os agrupamentos políticos oferecem um elo
de ligação entre as assembléias e os cidadãos; clubes, seções, sociedades
populares sao outros tantos centros vivos e nervosos da vida política,
a força motriz das jornadas populares. É nesses agrupamentos que
se faz a educação política; é por ele que o cidadão passa a participar
das decisões. Eles são os antepassados de nossos modernos partidos.
Nessa época aparecem, pela primeira vez, o militante, as lutas de
partidos, todo o sistema de relações entre os partidos políticos e o
poder público.
Foi a Revolução a primeira a experimentar tudo isso, embora
se trate de uma experiência precária. A liberdade de imprensa con­
tinuará, no máximo, por dois ou três anos, das jornadas de outubro
ao 10 de agosto, e os clubes serão dissolvidos logo após o 9 termidor.
Contudo, por mais breve que tenha sido essa experiência, ela constituí
para o futuro uma antecipação cheia dc consequências. Mais tarde,
num contexto mais estável, menos exposto aos impulsos da violência,
ver-se-á ressurgir, desenvolver-se e organizar-se por etapas a liberdade
de imprensa, da Restauração à Terceira República, com a grande
lei da imprensa de 1881, que representa o término dc noventa, anos de
tentativas e de experiências.

2. A O R G A N IZ A Ç Ã O A D M IN IS T R A T IV A

Depois dos órgãos de decisão política, seus meios de execução.


A organização administrativa constitui o elo de ligação, mediante o
qual as decisões políticas tornam-se uma realida.de capaz de moldar
■a existência dos indivíduos.

133
Para as instituições da vida política, o período determinante foi
o do início, com a Assembléia Constituinte e o governo revolucioná­
rio: o período que se segue não acrescenta nada, antes desfaz, com
a dissolução dos clubes e a apatia que ataca a política. No que
respeita à administração, pelo contrário, os anos decisivos situam-se
entre 1798 e 1802. Notemos de passagem a anomalia dessas duas
datas, ligadas a dois regimes — o fim do Diretório e o inicio do
Consulado — que o estudo propriamente político tende a opor e que
têm mais afinidade do que comumente se imagina. Contudo, desde
antes de 1798 a Revolução estava comprometida com uma série de
experiências, das quais nada sobreviveu, mas que constitui talvez a
melhor ilustração da seqüência de revoluções que obedeciam a inspi­
rações nitidamente diferentes.

O papel da Assembléia Constituinte


A Assembléia Constituinte dirige seu impulso liberal para a
ordem administrativa, contra o absolutismo monárquico e seus agentes.
Combate os abusos do sistema, cuja arbitrariedade denuncia, supri­
mindo os intendentes, os parlamentos, enfim, todo o aparelho admi­
nistrativo laboriosamente montado há séculos pela monarquia: nada
disso subsiste desde fins de 1789. A Assembléia reorganiza então os
quadros administrativos de alto a baixo, adota a divisão em depar­
tamentos, transfere todos os poderes administrativos aos eleitos pelas
coletividades locais. As administrações municipais e departamentais,
compostas apenas de membros eleitos, administram-se livremente, sem
controle dos representantes do Estado. É a experiência mais ousada
de descentralização que a França jamais conheceu; contudo, feita a
quente, em plena crise, ela provoca a anarquia. O poder central
não é obedecido e nem pode confiar em tais administrações; esco­
lhidas por um corpo eleitoral censitárlo, elas defendem, em 1793, a
causa dos girondinos: a insurreição federalista encontrou seu princi­
pal apoio junto às administrações departamentais.

O governo revolucionário
As circunstâncias, isto é, os perigos internos e externos, as lutas
que a Revolução teve de travar contra a invasão e a guerra civil,
impõem uma total remodelação. O governo revolucionário, apoiado
na Montanha, afirma a unidade e restabelece a centralização. “A
República una e indivisa” é a nova palavra de ordem. Reação vital
ditada pelo instinto de conservação, contra o perigo mortal provocado

134
pela descentralização, Á organização estabelecida pela Assembléia
Constituinte subsiste, mas sujeito ao controle de representantes em
missão, auxiliados pelo que hoje se denominaria hierarquia paralela,
a rede das sociedades populares. Ás sociedades, afiliadas ao clube
dos jacobinos, constituem uma segunda administração, que controla
a primeira, denuncia os funcionários suspeitos e ineficientes, e tem
poder para substituí-los ou destituí-los. Esse aparelho centralizado,
que funciona com eficácia, é um dos artesãos da vitória.

O Diretório
Depois da descentralização extrema da Constituinte, da reorga­
nização provisória, empreendida a poder de expedientes pelo governo
revolucionário, o Diretório dá início a uma reorganização destinada
a durar e deixa uma obra administrativa que nunca poderá ser menos­
prezada. O Diretório tem uma reputação deplorável, nao inteira­
mente justificada; algumas de nossas instituições datam dessa época:
o sistema fiscal que caracterizou o século X IX , apelidado de quatre
vieilles (imposto fundiário, quota pessoal e mobiliária, impostos sobre
portas e janelas, patente), assegurará o essencial das receitas do
Estado, até a adoção do imposto sobre a renda, durante a Primeira
Guerra Mundial.
No que respeita às instituições militares, o Diretório adota, com
a lei Jourdan, o sistema de conscrição, dividindo os conscritos em
classes convocadas de acordo com a necessidade (1798), enquanto a
Revolução vivera de expedientes, lançando mão de convocações em
massa e do recrutamento de voluntários.

O Consulado
O Consulado põe fim às oscilações e estabiliza as instituições.
Bonaparte faz uma triagem nas experiências da Revolução, adota o
que considera viável, restabelece por vezes o que lhe parece deveria ser
restaurado, faz uma amálgama disso tudo e lança as bases da admi­
nistração moderna. O capítulo administrativo da reforma consular
é um de seus aspectos mais duradouros e traça o quadro em que
vivemos ainda hoje. Diz-se que Bonaparte deu à França sua consti­
tuição administrativa. Se as constituições políticas do Consulado e
do Império não sobreviveram a Napoleão, a constituição administra­
tiva foi conservada por todos os regimes posteriores. Recenseando-Ihe
as características, delineamos o panorama da sociedade dos séculos
X IX e XX.

135
O remane] amen to empreendido durante o consulado estabelece
uma administração perfeitamente centralizada: tudo parte de Paris,
decisões, nomeações, e tudo acaba em Paris: relatórios, informações,
requerimentos. A administração central se organiza visando a deter­
minadas metas e dentro de alguns ministérios mais numerosos do
que sob o Antigo Regime; entre esses ministérios, a distribuição de
tarefas obedece a divisões mais racionais. Sob o Antigo Regime, a
administração interna estava fragmentada entre as secretarias de Es­
tado, enquanto que agora existe um Ministério do Interior,
A administração é rigorosamente hierarquizada, em todos os seus
escalões; todos os funcionários são nomeados pessoalmente, recebem
sua autoridade de uma autoridade superior e estão sujeitos a revo­
gação, regra a que não escapavam, sob o Consulado e o Império,
nem mesmo os prefeitos, Isso prova até que ponto o Consulado
defende o contrário da inspiração liberal da primeira revolução, À
frente de um departamento, õ prefeito é o chefe de todas as adminis­
trações de seu departamento, mas contínua à discrição do poder
central.
A administração é especializada, pois encontram-se administrações
específicas para as finanças, a justiça, viação e obras públicas, o
culto (o clero faz parte do corpo de funcionários, em decorrência
da Concordata e dos Artigos Orgânicos), o próprio ensino, com a
criação da Universidade napoleonica.
Essa administração é também uniforme. Todas as administrações
são moldadas nos mesmos quadros territoriais, nas mesmas circuns-
crições, comunas, cantões, bairros, departamentos. Os limites das
jurisdições estão unificados: todas as administrações apresentam hie­
rarquias análogas (o decreto de Messidor regula até a precedência
entre elas).
Tal administração é servida por um corpo de funcionários está­
veis, com poderes para nomear, pagar ou demitir. O funcionário
é um tipo social novo: o Antigo Regime só conhecia os oficiais, pro­
prietários de cargos comprados, c os comissários, portadores de cartas
de comissão.
Os funcionários só respondem por suas atividades perante o Es­
tado, e escapam ao controle da justiça comum; este é outro aspecto
original do sistema instituído por Napoleao, que alias inspíra-se numa
tradição jurídica do Antigo Regime. Ao lado da justiça ordinária,
que julga os litígios entre os cidadaos, há uma justiça administrativa,
a única - a quem competem os atos da administração. Um juiz
ordinário, portanto, não pode perseguir um funcionário em razão de

136
sua atividade, nem sequer pronunciãr-se sobre a procedência ou não
de uma resolução prefeitoral, menos ainda de uma decisão ministerial.
Simplicidade, uniformidade, especialização, eis como se define
uma ordem administrativa racional, geométrica, sistemática, que visa
à eficácia e a atinge. Vindo depois da destruição revolucionária, a
ordem consular torna realidade as metas do Antigo Regime e do
despotismo esclarecido. A conjunção de uma revolução, que fez tábua
rasa de todos os particularismos c faz desaparecer os poderes secun­
dários, e de Bonaparte resulta num Estado forte, cujo poder ameniza
o liberalismo eventual das instituições políticas e da ordem social.
Essa ordem administrativa é exportada para fora da França pelos
exércitos da Revolução e do Império; em Mayença ou em Roma, os
prefeitos comportam-se como na França. Mesmo fora das fronteiras
do Grande Império, os outros países o copiam, porque entenderam
que essa ordem proporciona a eficácia, a racionalidade, o poder que
os déspotas esclarecidos procuravam, a exemplo dos monarcas abso­
lutos. No século X IX , o modelo administrativo concebido por
Napoleao estende-se por toda a Europa e mesmo fora dela.
Assim, no tocante ao governo dos homens, tanto no que respeita
à política quanto à administração, a Revolução, prolongada pelo
gênio administrativo de Napoleão, modificou profundamente a ordem
existente e modelou o futuro.

3. R elig iã o e so c ied a d e

O lugar da religião e de suas relações com a sociedade civil é


outro campo onde a Revolução modificou a ordem estabelecida de
uma forma irreversível.

A tradição
N a ordem tradicional, os regimes políticos tinham base religiosa.
O historiador Marc Bloch falou, referindo-se à França, de uma religião
de Reims, na qual a sagração representava o símbolo da união
entre as sociedades religiosa e política. O rei só era verdadeiro rei
a partir do momento em que a sagração, espécie de sacramento pró­
prio dos soberanos, lhe conferia uma legitimidade religiosa. Portanto,
a expressão “aliança entre a Igreja e o Estado” é um ponto dc vista
moderno projetado sobre a realidade medieval; ela é imprópria, pois
postula a existência de dois poderes distintos, de duas sociedades

. 137
diferentes onde existe apenas uma sociedade,, uma única ordem, defi­
nida pela simbiose entre o religioso e o político. Tal é a situação,
pelo menos em sua origem. Ela não vale apenas para a França, mas
para todos os Estados, sejam eles católicos ou protestantes. A Refor­
ma, aliás, não modificou tanto os laços entre o poder público e a
religião quanto a unidade entre os cristãos. Com efeito, a partir
do século XVI, contam-se três Europas religiosas: a Europa do
Norte (Escandinávia, Ilhas Britânicas, Províncias Unidas, parte da
Alemanha) que abraçou a Reforma, a Europa Meridional e Latina
(Península Ibérica, Itália, França) que continuou fiel ao catolicismo
romano, e a Europa Oriental, quase que inteiramente (três quartos)
ortodoxa.

Antes de 17&9
Antes mesmo da Revolução, a evolução das idéias e a política
dos Estados já haviam modificado sensivelmente a situação. Com
efeito, o racionalismo responsabiliza o domínio político da Igreja
por esse estado de coisas (o que mais tarde democratas e republicanos
chamarão de clericalismo) mas vai também muito mais longe, ata­
cando o próprio dogma. Por sua vez, o absolutismo monárquico (o
poder político, portanto) cuidou de se emancipar, pois a afirmação
de sua soberania também era válida no tocante às tutelas religiosas.

O papel da Revolução
A Revolução retoma esse movimento c o prolonga. Votando a
constituição civil do clero em julho de 1790, ela caminha no mesmo
sentido que os jurisconsultos reais e termina o que Felipe, o Belo,
havia começado quinhentos anos antes. Nesse particular, do Antigo
Regime à Revolução existe continuidade de inspiração e de método.
O papel da questão religiosa foi determinante, e a ruptura pro­
gressiva entre o catolicismo romano e a Revolução explica muitas
peripécias e mesmo insucessos da Revolução. Os revolucionários
são levados a tomar medidas mais radicais do que se tivessem secula­
rizado as instituições. O clero perde seu estatuto, seus privilégios,
vê-se até despojado de suas atribuições na sociedade civil; o estado
civil, transferido para as municipalidades, é-lhe retirado e seus bens
confiscados; as ordens religiosas são dissolvidas e o próprio culto
muitas vezes entravado. A Revolução estende suas reformas e medidas
aos territórios ocupados e anexados, até em Roma, onde penetram
seus exércitos. Com ela, pela primeira vez, as sociedades modernas

138
fazem a experiência de uma separação radical entre o religioso e o
político, entre as Igrejas e o poder público,
A solução de continuidade provoca o deslocamento dos quadros,
o desmoronamento das práticas sociais. Daí por diante, a religião
perde o apoio secular de todo um conjunto de costumes, de senti­
mentos e de obrigações coletivas.

Depois da Revolução
A obra de Bonaparte é ambígua: cie não torna a seu cuidado
toda a política religiosa da Revolução, na qual vê uma parte de
quimera, como por exemplo, no que respeita aos cultos revolucionários.
Contudo, sob outros aspectos, ele consolida a obra da Revolução
mantendo, por exemplo, a secularização, a venda dos bens nacionais.
Napoleão reata as relações com a Santa Sé; com a assinatura da
Concordata, em 1801, a Igreja vê-se novamente numa situação oficial,
embora muito diferente da do Antigo Regime. Primeiramente, por­
que deixa de ser a única religião reconhecida, pois os artigos orgânicos
estendem às confissões protestantes e ao judaísmo parte das disposi­
ções adotadas para o catolicismo. Então é por direito público que a
França vive sob o regime de pluralismo religioso,
Bonaparte consegue que o papa reconheça a transferência dos
bens nacionais e renuncie à sua restituição. Com seus bens confiscados,
esse clero depende do Estado por via da verba dos cultos. Equiparados
aos funcionários, bispos e curas são nomeados de acordo com o governo,
recebem o mesmo tratamento e sao quase tão dependentes dos poderes
públicos quanto os funcionários das outras administrações. Ê por
isso que Napoleão pode dizer: “Meus prefeitos, meus bispos, meus
guardas.”
A Restauração não será uma restauração integral sob o ponto
de vista religioso porque, mesmo se os novos dirigentes sao mais
favoráveis à religião, as relações entre o político e o religioso, entre
as duas sociedades, haviam sido irrevogavelmente modificadas.4

4. A ORDEM S O C IA L

No plano político, em mais de um aspecto, a Revolução prolongou


o Antigo Regime, a ponto de se poder defender com igual verossimi­
lhança a tese de continuidade como a de ruptura, enquanto que, no
que respeita à sociedade, a renovação é integral.

139
Sua transformação não é feita no mesmo instante nem no mesmo
ritmo que as do governo e da administração, Quanto ao governo,
as grandes mudanças situam-se entre 1789 e a queda de Robespierre.
Quanto à administração, as grandes inovações, mais tardias, sítuam-sc
entre 1798 e 1804, Ouanto a sociedade, a cronologia que associa
Revolução e Consulado é outra.

A obra da Revolução
À revolução começou por uma ação negativa, destruindo a socie­
dade do Antigo Regime. Foi' um trabalho de poucas semanas, já
que, três meses depois da primeira sessão dos Estados Gerais, pode-se
considerar que a revolução social está feita e que o Antigo Regime
chegara ao fim. A Revolução põe téi'mino ao que restava do feuda­
lismo : abolindo o que ainda sobrevive da servidão, ela liberta o
homem; abolindo os direitos feudais, liberta a terra e, desse modo,
põe fim ao movimento iniciado há vários séculos pela realeza, que não
havia sabido levar a termo esse empreendimento, por falta de meios
ou de espírito de continuidade.
Essa sociedade nova define-se essencialmente pela liberdade: a
do indivíduo, a da terra, a da iniciativa individual. Gom a servidão
e os direitos feudais, são abolidos todos os entraves (corporações, con­
frarias, privilégios, banalidades), os monopólios que impediam a
concorrência e a livre escolha, todas as regras restritivas que paralisa­
vam a invenção, a iniciativa. Aliás, é nisso que está a verdadeira
revolução, muito mais do que na transferência da soberania.
Instruída pela experiência, desconfiando de contragolpes preju­
diciais, ela cuida de impedir a reconstituição dessas regras e a restau­
ração desses grupos, votando a lei Le Chapelier, em 1791. Essa lei
constata legalmente o desaparecimento das corporações e de todos
os agrupamentos, proibindo-os de se reconstituírem, É então consi­
derado delito para os individuos o fato de se agruparem em função
de suas atividades profissionais ou econômicas, tal era o temor de
que as corporações tornassem a aparecer.
Essa primeira Revolução liberal, individualista, considera que a
tutela que mais se deve temer para o indivíduo não é tanto o poder
real quanto a existência de corpos intermediários. Essa hostilidade
da Revolução no que respeita às corporações e às ordens é talvez o
traço mais característico de seu espírito.
Esse estado de espírito sobreviverá por muito tempo à Revolução;
toda a tradição republicana e democrática do século X IX continua

140
a desconfiar dos agrupamentos c das associações. Explica-se desse
modo — o que hoje pode nos parecer uma anomalia — , o fato de a
democracia na França ter demorado tanto tempo para reconhecer
o direìto de associação. A Declaração dos Direitos do Homem, que
enumera as principais liberdades, não diz uma palavra sobre o direito
de associação! A lei sindical de 1884 só é válida para as associações de
defesa profissional. Será preciso esperar o alvorecer do século XX
e a lei de 1901, que dará às associações um estatuto, reconhecendo
sua liberdade e libertando-as de um regime policial. Foí, portanto,
preciso esperar cento e dez anos para que os filhos da Revolução
aceitassem o restabelecimento das associações, tão grande era o medo
de que elas atentassem contra a liberdade individual.
A Revolução também proclama como um direito e instaura como
prática a igualdade civil. Todos os franceses passam a ter os mesmos
direitos civis e as mesmas obrigações. Pode-se medir a novidade
dessa atitude se a compararmos com a sociedade do Antigo Regime,
que se baseava no particularismo, na diversidade das ordens, na desi­
gualdade entre elas. Trata-se do fim dos privilégios; os próprios
títulos são abolidos, as diferenças sociais suprimidas. Perante a lei
todos os cidadãos são iguais. À igualdade perante a lei e a justiça
significa a supressão de todas as justiças senhoriais, municipais, ecle­
siásticas, e constitui um prolongamento do movimento da justiça real,
que procurava erradicar as justiças concorrentes.
Os encargos que constituíam a imposição tradicional são substi­
tuídos, na Revolução, por um sistema de contribuição proporcional
aos recursos, às possibilidades de cada um. Ela instaura nao só a
igualdade em relação ao imposto de sangue, com a conscrição, mas
também a igualdade no que respeita ao acesso aos empregos civis e
militares, suprimindo assim a venal idade dos cargos. De agora em
diante, nao importa quem, contanto que preencha as condições de
aptidão necessárias, pode pretender um emprego público. Ocorrerá
com o Consulado o aparecimento e depois o desenvolvimento de urn
tipo social novo, o funcionário, promovido nas sociedades contempo­
râneas a um futuro e a uma multiplicação indefinidos. No que respeita
aos cargos militares, enquanto a reação nobiliaria havia fechado aos
plebeus o acesso ao grau de oficial, a Revolução, tanto por necessidade
prática quanto por conformidade a seus princípios, suprime essa cláu­
sula restritiva e permite a quem quer que seja o acesso aos graus mais
elevados. O exército e a administração pública, sob a Revolução e
sob o Império, irão transformar-se cm rneios de promoção social:
é em parte pelo serviço do Estado e serviço das armas que se fará a
renovação dos homens, e também pela eliminação de um pessoal sus­

ini
peito por suas origens ou por ser antigo emigrado, Um fenômeno
bem comparável a este ocorre em relação à propriedade, com a co- ^5
locação à venda dos bens nacionais, o que torna a pôr no circuito
econômico bens esterilizados pela mão-morta eclesiástica ou pela trans- v
missão hereditária dos bens nobiliarios.
De todas essas reformas resulta uma intensa efervescência de
energias, de que Napoleão é o exemplo mais brilhante; a carreira
dos marechais do Império e dos prefeitos do Consulado são outras í
tantas conquistas sociais inconcebíveis no fim do Antigo Regime.
Ligados à nova ordem, de quem são beneficiários, esses talentos, que,
de outro modo, nunca teriam sido usados, foram gastos no serviço do
Estado, que deles tirou considerável proveito.
De inspiração liberal e individualista pela afirmação da igual­
dade, pela supressão das barreiras e das coações, a revolução social
liberta pela própria iniciativa. Mas, como acabamos de defini-la,
ela nao durou muito, e é da Revolução revista e corrigida pelo Con­
sulado que nós somos os herdeiros.

A obra do Consulado e do Império


Napoleão conservou o essencial das conquistas sociais da Revolu­
ção, mas deu-lhes uma nova ordem, Ele tornou-a viável à medida
que foi corrigindo a obra da Revolução, que foi moderando algumas
ousadias, A Restauração teria talvez tentado restituir os bens aos
antigos proprietários se Napoleão não tivesse conseguido do soberano
pontífice a renúncia da Igreja a seus bens e se, por outro lado, encer­
rando a lista dos emigrados, reabrindo-lhes as fronteiras, tomando a
iniciativa de um cadastro, ele não tivesse tornado irrealizávei a desna­
cionalização desses bens.
Em 1804, a obra da Revolução foi fixada, corrigida, pelo código
de Napoleão — nosso Código Civil — que tem uma importância
capital, pois foi ele quem fixou até nossos dias os traços da moderna
sociedade francesa, como também de grande número de países que
nele se inspiraram, adotando-lhe os princípios e reproduzindo-lhe as
disposições.
O código de Napoleão traz a sua marca. Ele próprio contribuiu
para sua elaboração, tomando parte nas deliberações do Conselho de
Estado, Napoleão não era individualista, nem por temperamento
nem por espírito, O indivíduo é efêmero, o que conta é o grupo; é
preciso, portanto, subordinar o indivíduo ao interesse superior do
grupo de que faz parte. Uma fórmula dele, muito citada, é bastante

142
significativa: “Ê preciso lançar massas de granito para ligar os grãos
de areia.” A sociedade atomizada saída da Revolução parece-lhe
perigosamente instável e o papel do código e das instituições 6 fixá-la,
solidificá-la.
O individualismo da Revolução é amenizado pelo principio de
autoridade em todos os graus e em todas as comunidades. Na família,
o código institui a autoridade dos pais sobre os filhos, do marido
sobre a mulher (incapacidade jurídica da mulher casada). Na empre­
sa, é a autoridade do patrão sobre os empregados, sendo o patrão
investido de uma tutela em relação à sociedade, no interesse da ordem
pública. Não se confia nos assalariados; cabe portanto ao patrão
assegurar a boa ordem de seu estabelecimento. O Império restabe­
lecerá a carteira de trabalho, na qual são lançadas as quantias adian­
tadas pelo patrão ao operário, que não pode deixar o trabalho a não
ser com o consentimento do patrão e a não ser que este lhe restitua
a carteira; caso contrário, o operário será considerado um vagabundo.
Esse regime, portanto, acaba por restabelecer uma forma de servidão
disfarçada, já que depende agora do bel-prazer do patrão dar liber­
dade ao empregado ou conservá-lo.
Pela sua preocupação em relação à autoridade, por sua vontade
de conter o individualismo pela tutela, a reação consular chega até
a ir contra os princípios revolucionários, notadamente no tocante à
igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Assim, num artigo que
só será áb-rogado no Segundo Império — artigo 1783 — o código de
Napoleão prevê que, em caso de disputa entre patrão e operário,
principalmente no que diz respeito ao contrato dc trabalho, ou aos
ordenados, o patrão tem sua palavra acreditada, enquanto que o
operário é obrigado a provar o que afirma.
Esta filosofia social estende-se a todos os domínios; é ela que
inspira a reorganização administrativa, chegando a ultrapassar-lhe
os limites. Desse modo, Napoleço suscita ou reconstitui quadros, uma
organização, uma estrutura social, rompendo com a aversão que os revo­
lucionários testemunhavam pelas corporações. Caminha-se para uma
espécie de neocorporativismo, com as câmaras de oficiais ministeriais
e, em 1810, a criação do foro para os advogados. A universidade
partilha da mesma idéia; no espírito de Napoleão, ela é uma entidade
que tem o monopólio do ensino e sobre a qual o Estado exerce um
controle direto. A Legião de Honra, a princípio, inspira-se no mesmo
sistema: trata-se de constituir na sociedade uma espécie de associação,
com uma estrutura hierárquica que enquadrará os indivíduos. Ele
recriará até uma nobreza, com a possibilidade de transmitir heredíta-

6 143
riamente seus títulos, contanto que haja constituição de patrimônios,
os morgadios.
Assim, a seu término, a obra social do Império parece aproxi­
mar-se da do Antigo Regime, afastando-se da Revolução. A analogia,
contudo, não é completa, já que a antiga aristocracia era uma aristo­
cracia de sangue, hereditária, enquanto que a nova é uma aristocracia
de cargos e de dinheiro, aberta ao talento, ao mérito, aos serviços
prestados. Trata-se de uma concepção mais moderna de nobreza,
não igualitária, é certo, mas onde a desigualdade não está mais ligada
à hereditariedade,
A obra da Revolução assim remanejada pelo Consulado e pelo
Império constitui uma síntese original e poderosa, um compromisso
Sem dúvida feliz, fecundo, que integra o essencial das conquistas da
Revolução e traz a marca do gênio de Napoleao, ao qual sobreviverá.
Enquanto o edifício político soçobrou no naufrágio do Império, o
administrativo permaneceu e a ordem social subsistiu, A Restauração
e os regimes seguintes deixarão ambos intactos. Desse modo, Na­
poleao é duplamente o criador da sociedade moderna, por ter assegu­
rado, sob uma forma adaptada, corrigida, a perenidade dos princípios
de 1789 para a França e todos os países sobre os quais a Revolução
estendeu sua influência. Pode-se dizer de nossa sociedade que ela é
ainda em larga escala, a filha dessa sociedade revolucionária e con­
sular e que vivemos dentro dos moldes da ordem social concebida e
imposta por Napoleao.

Trata-se de uma sociedade burguesa?


Ê um lugar-comum dlzer-se que a sociedade saída da Revolução
é uma sociedade burguesa, Morazé intitulou um de seus livros mais
sugestivos, consagrado à descrição da França do século X IX , herdeira
das transformações revolucionárias e da ordem napoleónica, A França
Burguesa. Que dizer a isso? Em que medida esse epíteto “burguesa”
esclarece a natureza da nova sociedade? Várias definições se impõem
para matizar os lugares-comuns e prevenir as confusões intelectuais.
A Revolução é incontestavelmente burguesa por seus autores, A
composição das assembléias mostra-o suficientemente, já que, nelas,
a burguesia constitui a grande maioria, os operários não estão repre­
sentados e a aristocracia está em evidência. De resto, nada mais
natural; a burguesia é a classe instruída, a mais capaz de empreender
uma reforma dessa natureza.

144
Em segundo lugar, c muito natural que essa burguesia cuide de
seus próprios interesses, que eles coincidam com o espírito e o movi­
mento da Revolução. Quem encontra mais vantagens na abolição
das injunçÕes sociais, das desigualdades jurídicas? A igualdade civil,
a liberdade, aprovei tam essencial mente à burguesia, rural, industrial,
comerciante. São os burgueses que, em geral, tornam-se proprietários
dos bens nacionais postos à venda; são eles que preenchem os qua­
dros administrativos.
Em terceiro lugar, acontece que, em pontos importantes, as as­
sembléias revolucionárias ou o governo consular trouxeram para o
exercício das liberdades, para a aplicação dos princípios de igualdade,
restrições em vantagem da burguesia e em detrimento das demais
classes. Assim, a constituição de 1791 e a de 1795 distinguem duas
categorias de cidadãos, das quais só a que pode justificar condições
de fortuna e de propriedade tem a plena plenitude dos direitos polí­
ticos. O conceito do censo no tocante à diferença entre os cidadãos
é uma derrogação grave aos princípios de liberdade e de igualdade.
Quanto ao Império, ele restaura a nobreza, as corporações, os mono­
pólios e é nisso que se pensa quando se fala em revolução burguesa,
feita pela burguesia, para seu proveito exclusivo, com o desprezo dos
princípios de que ela se prevalece ; quando se denuncia a contradição
entre as idéias c a prática, a hipocrisia dos dirigentes.
Tudo isso é incontestável, mas c preciso examinar essa questão
sob outra luz, mais justa, para que nao se julgue em função da
sociedade dos fins do século XX, mas da do fim do século X V III.
Então, o contraste entre os princípios e o comportamento parece
menos pronunciado, enfim, menos escandaloso.
As distinções baseadas no dinheiro e na propriedade parecem
aos contemporâneos menos chocantes que para nós. O dinheiro, a
propriedade não são considerados tanto por si próprios quanto como
indícios de outra coisa, e liga-se a essa época o critcrio da fortuna como
sinal de trabalho, de talento, de merecimento, como se se pensasse,
que os eleitores, tendo mais independência, teriam tempo para se infor­
mar e emitir opiniões mais abalizadas. Não se trata do domínio
brutal do dinheiro; trata-se do dinheiro tomado num sistema de
valores que dá ênfase à capacidade intelectual e à independência
de opinião.
Por outro lado, a contradição entre os princípios e a prática
rnostra-se menos flagrante do que hoje, na medida em que os con­
temporâneos estabelecem um cotejo, nao com a sequência dos aconte­
cimentos mas com o que precede e, feitas as contas, a nova sociedade,
com as desigualdades que subsistem, parece-lhes infinitamente mais

145
justa do que a precedente. Eles são sensíveis, sobretudo, à novidade
revolucionária e ao caráter igualitário dessa ordem.
Enfim, o liberalismo, no início, ainda está longe de ter desenvol­
vido todas as suas conseqüencias. A igualdade de princípios, a possi­
bilidade de cada um fazer o que quer são, de início, sentidas e vividas
bem mais como uma libertação do que como uma opressão. Ninguém
teve tempo de usá-la para submeter outros à sua vontade de poder
ou a seus próprios interesses. Ê durante o transcorrer do século X IX
que começarão a ser notados os inconvenientes do liberalismo e agra­
vadas as injustiças que ele traz em germe.

5. A N A Ç Ã O , A G U E R R A E A S R E L A Ç Õ E S IN T E R N A C IO N A IS

O sentimento nacional
A nação, como fato e como sentimento, é uma realidade nova
saída da Revolução, o que não quer dizer que a Revolução tenha
criado nações de todas as espécies, pois estas são obra do tempo.
Para a França, a unidade nacional é antiga, mas a Revolução aper­
feiçoa-a, consagra-a, pondo fim aos particularismos, a tudo o que se
interpunha entre o indivíduo e a comunidade nacional, porque, assim
como a Revolução fez tábua rasa dos particularismos administrativos,
ela faz com que se manifestem os particularismos locais ou regionais,
acabando com as velhas instituições históricas, as províncias, e substituin­
do-as por instituições novas, os departamentos. O pensamento contra-
-revolucionário criticou a Revolução por ter criado instituições total­
mente artificiais. Os departamentos não eram artificiais; eles rea­
gruparam unidades que existiam há muito tempo. De resto, os depar­
tamentos logo adquiriram uma consistência que explica como hoje é
tão difícil ultrapassar o quadro departamental. A desagregação dos
velhos quadros administrativos, sua substituição por novos quadros
mais homogêneos muito contribuíram para afirmar a unidade nacional.
Ao mesmo tempo, a Revolução precipitou a tomada de consciên­
cia do fato de se pertencer a uma comunidade nacional e já se é
cidadão francês por adesão voluntária. Vários movimentos ratifica­
ram essa aceitação da unidade nacional: o movimento das federações
em 1789-1790 encontra o seu ápice a 14 de julho de 1790, com a festa
da Federação. Contrariamente ao que muita vezes se crê, nossa festa
nacional do 14 de julho não comemora a queda da Bastilha, mas a
festa da Federação, embora a escolha do 14 de julho para come­
morá-la se explicasse, em 1790, pelo aniversário da tomada da Bastilha.

146
Agora, a adesão é feita à nação e não mais à coroa, e isso cons­
tituí um fenômeno capital, comparável à transferência da soberania.
Na ordem política, quanto ao poder, a Revolução transfere a sobe­
rania da pessoa do rei para uma assembléia representativa da nação ;
do mesmo modo, quanto aos laços entre os cidadãos e o país, ela
substitui o lealismo dinástico, a dedicação à pessoa do soberano, por
um sentimento coletivo, o patriotismo moderno. O símbolo dessa
mudança é a batalha de Valmy, na qual, pela primeira vez, os solda­
dos franceses combatem ao grito de ‘Viva a nação”. Trata-se da
vitória da nação sobre o velho lealismo monárquico, e Goethe não
errou ao considerar essa batalha como um momento decisivo da
história da humanidade.
O sentimento patriótico vai-se afirmar na resistência aos reis,
na defesa do território contra o invasor. Esse nacionalismo de novo
gênero, esse sentimento moderno, liga-se durante muito tempo à Re­
volução. Durante quase um século, até as grandes crises do bouían-
gismo e do caso Dreyfus, o nacionalismo é antes um sentimento de
esquerda, ligado às forças populares e à obra revolucionária. A prova
disso está no fato de o imagismo patriótico se inspirar em episódios
tirados da lenda revolucionária: a pátria em perigo, os voluntários
de 1793, a nação armada.

A guerra revolucionária
A Revolução provoca uma espécie de mudança em relação à
guerra. As guerras passam a ser populares ou de massa, ideológicas
ou de sentimentos, traços constitutivos dc nossos conflitos modernos.
Guerra popular? Os exércitos do Antigo Regime eram exércitos
pouco numerosos, de soldados profissionais, unidos pela fidelidade ao
chefe, à bandeira, ao regimento ou ao dinheiro. Com a Revolução
aparece a nação em armas, o recrutamento em massa. Á princípio,
é a chamada dos voluntários; depois, com a conscrição, veio a gene­
ralização do serviço militar, consequência do princípio de igualdade.
A conscrição, por sua vez, tem influência sobre a sociedade, pois con­
tribui para a mistura, para a unificação, traços dominantes da demo­
cratização nos séculos X IX e XX. Agindo dessa forma, a Revolução
modifica os dados tradicionais da guerra. Â tática e a estratégia são
transformadas pela intervenção do número, pela irrupção das massas.
A exércitos profissionais, rigorosamente treinados, a Revolução opõe
tropas mediocremente instruídas, mas que o superam pela superiori­
dade do número e pelo ardor revolucionário. Foi esse o modo pelo
qual a Revolução soube resistir à Europa, ganhando a guerra.

147
Outra guerra de novo tipo é a guerra psicològica e ideologica.
O soldado, ao mesmo tempo que defende o solo, defende o regime
por ele escolhido e combate tanto pela Revolução como pelo inte­
resse nacional. Os revolucionários pensam — a experiência muitas
vezes dá-lhes razão •— que o soldado-cidadão é superior ao mercenário,
porque paga sua inexperiência com o heroísmo, enquanto que a pro­
paganda é uma das armas mais eficazes dessa guerra.

O novo sistema das relações internacionais


Com a Revolução chega ao fim a diplomacia tradicional, funda­
mentada sobre as alianças dinásticas, os acordos matrimoniais, a con­
veniência dos soberanos. A Revolução introduz, com o direito dos
povos para dispor de si mesmos, um novo princípio, que é a extensão
às relações internacionais do princípio da soberania nacional; é por
isso que a Revolução realiza uma consulta quando se pretende rea-
nexar Avinhão. As guerras da Revolução e do Império destroem
as velhas estruturas feudais e dinásticas. É no decorrer desses vìnte e
cinco anos que os países descobrem sua identidade nacional, tomam
consciência de suas particularidades ou vivem, pela primeira vez, sua
unidade. É o caso da Itália, e a lembrança dessa experiência perma­
necerá como um dos fatores da unidade italiana no século XIX.
Contudo, ria prática, a Revolução, por mais de uma vez, afastou-se
de; seus princípios, notadamente a partir do Diretório. A paz de
Campo Formio inspira-se no princípio de partilha de Frederico II,
de acordo com o qual, em nome do direito do mais forte, o vencedor
dispõe soberanamente dos vencidos; basta ver o recesso de 1803 ou os
tratados impostos pela Revolução ou pelo Império a seus adversários.
Assim, até na ordem internacional a Revolução propôs novos
princípios, despertou os sentimentos, lançou o fermento de uma pro­
funda transformação. A consequência e o prolongamento desse
aspecto, o movimento das nacionalidades no século X IX e, fora dos
limites da Europa, o movimento contemporâneo de descolonização
são suas resultantes.

6. C onclusão

Alguns traços gerais se evidenciam, seja qual for o setor conside­


rado, quer sc trate do lugar da religião na sociedade, quer se trate
da ordem internacional.
A Revolução, corrigida, revisada pelo Consulado e o Império,
pôs em prática certas tendências anteriores e constitutivas da monar-

148
quia. A ruptura não 6 em todos os pontos tão evidente como nos
parece, ou como a historiografía no-la apresenta. Encontra-se de um
lado e de outro do corte feito em 89 elementos de continuidade.
A monarquia, a seu tempo, havia desenvolvido um paciente esforço
para uniformizar e unificar, para aumentar a centralização, reforçar
a coesão e reduzir os particularismos. Beneficiando-se de um novo
impulso e do apoio da nação, ela conseguiu concretizar esse esforço
e acabar com as últimas resistências.
A segunda observação diz respeito ás relações entre o período
propriamente revolucionário e o que se lhe segue imediatamente, do­
minado pela personalidade de Bonaparte. Com efeito, se, em todos
os planos, a síntese napoleónica bate em retirada no que diz respeito às
tentativas mais avançadas da Revolução, é talvez precisamente essa
retirada que tornou viável a obra da mesma, permitindo que a ordem
política e social instituída pela Revolução perdurasse, porque livre
daquilo que ela possuía de mais contestável e de mais quimérico.
A terceira observação antecípa-se ao futuro e considera essa
obra no período posterior à contra-revolução. A Restauração nao
atentou contra o edifício levantado pela Revolução, mesmo limitando
a aplicação dos princípios, o que deu a impressão de que era seu
intento tom ar a colocar em causa as mudanças aconselhadas pela
prática. Mesmo tendo-se dedicado à crítica do sistema e à denúncia
dos princípios, ela respeitou a obra revolucionária.
A quarta e última observação esclarece um período mais próximo
de nós: no século XIX , a sociedade, retomando a marcha suspensa
durante a Restauração, ressuscitará mais de uma idéia ou experiência
revolucionária, levará a bom termo o que a Revolução havia iniciado,
restabelecerá o que havia sido suprimido e tirará todas as consequên­
cias dos princípios enunciados em 1789.
Levando-se em conta essas observações, é possível avaliar-se
legítimamente que esses poucos anos marcaram de modo duradouro
a história contemporânea e de modo irreversível a fisionomia das
sociedades modernas.

149
4

O CONTINENTE AMERICANO
1783-1825

Deixemos por um instante o continente europeu para evocar o


que aconteceu na America entre o fim cia guerra da Independencia
dos Estados Unidos (1783) e o fim das lutas pela independência das
colônias espanholas e portuguesas (1825), ou seja, durante cerca de
quarenta anos, que representam um capítulo maior da história do con­
tinente americano.
Ate a independência americana e a Revolução Francesa, o Novo
Mundo havia estado intimamente associado ao destino da Europa
Ocidental. A América havia entrado na história da Europa e, reci­
procamente, a Europa na história do continente americano desde
fins do século XV. Os europeus baviam-na integrado a seu sistema
econômico (regime do pacto colonial) e sobrepondo às antigas civi­
lizações, chamadas pré-Colombian as, seus modos de vida, suas insti­
tuições, sua religião.
Para o Novo Mundo, os anos de 1790-1825, decisivos na Europa,
também marcaram um momento capital cm seu desenvolvimento
histórico: com efeito, a América sofreu o contragolpe dos aconteci­
mentos de que a Europa Ocidental era teatro. De um lado, a Revo­
lução exerceu uma influência intelectual e política sobre a América,
que aderiu à sua escola, quis imitá-la e adotar-lhe os princípios. Por
outro lado, por um caminho mais indireto, as guerras de Napoleão
na península ibérica tiveram repercussões diversas sobre a emanci­
pação da América Latina.
São precisamente esses efeitos da Revolução e do Império que
nos levam a evocar, logo depois da Europa, a história do continente
americano,

150
1. Os QUATRO IMPERIOS

Quatro nações européias haviam construído impérios além do


Atlântico, cobrindo a quase totalidade do continente americanos na
América do Norte, o império francês da América, essencialmente com
o Canadá e a Luisiânia; a Grã-Bretanha, com as 13 colônias distri­
buídas pela costa atlântica; na América Central e Meridional, Portu­
gal, no Brasil, e a Espanha, cujo império era muito mais extenso
e que foi, por muito tempo, o mais rico.' Essa era ainda a situação
nos meados do século X V III.
A América do Sul, sozinha, cobre quase 18 milhões de km2.
Mas a América Espanhola a ultrapassa em larga escala, pois com­
preende toda a América Central e o México; e não nos devemos
esquecer que a penetração espanhola prossegue ainda no século
X V III. Pelos fins do século, os espanhóis sobem até a América do
Norte rumo a nordeste, costeando o Golfo do México até a Flórida,
seguem rumo a noroeste, ao longo da costa do Pacífico até a Cali­
fórnia; é por volta de 1775 que a fronteira da colonização espanhola
atinge a baía de São Francisco, onde estabelece um posto. A arqui­
tetura, os nomes dos lugares testemunham em pleno século XX que
eles foram habitados principalmente por espanhóis; limitando-nos à
Califórnia, temos como exemplo suas cidades mais importantes, Los
Angeles e San Francisco.
Mas, se o império espanhol continua a se expandir no século
X V III, continua despovoado em sua maior parte. Para 18 ou 20
milhões de km2, existem cerca de 18 milhões de habitantes em 1800,
ou seja, uma densidade aproximada de 1/km2. Os núcleos prin­
cipais dessa população, distribuída de modo muito irregular, encon­
tram-se na costa atlântica (no Brasil, junto ao rio de La Plata), ou
nos platos (ao longo da cordilheira, do lado do Pacífico). Entre
os dois, imensos espaços lacunares, quase vazios de homens.
A população é heterogênea. À desigualdade inerente a todas as
sociedades do Antigo Regime acrescenta-se a desigualdade provocada
pelo regime colonial, com coincidência entre a superposição das ca­
madas sociais e a estratíficação étnica.
No ponto mais alto da escala, estão os crioulos, descendentes
diretos dos conquistadores e dos que se lhes seguiram. Avalia-se
aproximadamente em 500 000 os espanhóis ou portugueses originários
da península ibérica que atravessaram o Oceano, estabeleceram-se na
América Latina e aí tiveram descendência. Em três séculos, eles já
eram cerca de 4,5 milhões, muito orgulhosos de sua origem e da pureza
de seu sangue, embora na América Latina o preconceito de cor sempre
tivesse sido mais fraco do que na América Anglo-Saxônica. Esses
crioulos constituem uma aristocracia que possui riquezas, terras, gran­
des domínios explorados por mão-de-obra servil- Abaixo deles, en-
contram-se os meios-sangues, produto da mestiçagem entre brancos
e índios, entre brancos e negros e, enfim, no ponto mais baixô da
pirâmide, a massa que se fixou sobretudo nos platos andinos, cerca
de 10 milhões de índios, descendentes das populações autóctones, dos
antigos impérios inca e asteca, e de outros reinos destruídos pela
conquista espanhola. Trata-se de uma população mal assimilada,
superficialmente evangelizada, que se mantém fiel às suas crenças e
pratica uma espécie de sincretismo no qual se fundem o paganismo
e elementos de superstição tomados de empréstimo ao cristianismo.
Essa massa de índios fornece a mão~dc-obra para a exploração das
terras e das minas. É preciso acrescentar, à margem, sobretudo no
Brasil, a mão-de-obra negra fornecida pela escravatura; em 1800
des já eram cerca de meio milhão.
A América do Norte está mais despovoada ainda, pois conta
com cerca de 600 mil franceses apenas, um pouco mais de um milhão
de britânicos e de escandinavos nas colônias inglesas, e um milhão de
índios, em geral nômades, que vivem cia caça c da pesca.2

2. O F IM D O S IM P É R IO S FRANCES E B R IT A N IC O

Dos quatro impérios que dividem entre sí a América em 1800,


dois já haviam sido destruídos antes da Revolução Francesa, sem que
os acontecimentos da Europa tenham contribuído para seu desapa­
recimento, consequência das rivalidades coloniais entre as potências
européias e rebeliões locais ditadas pelo desejo de emancipação, geral­
mente dos brancos, excepcionalmente dos elementos de cor.
No século X V III, a competição entre a Inglaterra e a França,
disputando entre si a índia e a América, é um elemento essencial do
jogo diplomático. O império francês da América é a primeira vítima
dessas rivalidades coloniais, pois tem de ceder o Canadá à Grã-Bre­
tanha, m 1763, e a Luisiânia à Espanha, para compensá-la das perdas
sofridas por motivo da aliança franco-espanhola. A França, portanto,
do ponto de vista jurídico, está praticamente afastada do continente
americano, Ela não conserva mais do que pequenas ilhas, como a
de Saint-Pierre-et-Miquelon, das quais a mais preciosa é a de Sao
Domingos, a pérola das colônias francesas da América, no golfo do
México,

152
Em 1800, a Franca recupera a Luisiânia, que a Espanha lhe
restituì, mas por pouco tempo, porque Bonaparte, sabendo que nao
tem meios para conservá-la, oferece-a aos Estados Unidos, que a
adquirem em 1803, A venda sela o destino do império francês na
América e abre aos jovens Estados Unidos um imenso campo de ação.
Por ter querido restabelecer a escravidão antes abolida, a França
perde também São Domingos, apesar da intervenção de um exército
comandado pelo general Ledere, cunhado de Bonaparte, cuja missão
era subjugar os revoltosos negros chefiados por Toussaint Louverture.
Mas o exército é dizimado, seu chefe perde a vida nessa batalha e a
França tem de renunciar ao domínio de São Domingos. Esta é a ori­
gem da república negra do Haiti. Desse modo, o império francês
desapareceu por completo em 1800.
Por motivos diversos, o Império Britânico conheceu a mesma
sorte, com a revolta dos colonos que, ajudados pela França e a
Espanha, rompem os laços que os unem à metrópole e conseguem
sua independência,
A partir de 1783, os Estados Unidos tomam grande cuidado para
se manter longe do conflito europeu. Washington, pouco antes de
deixar a presidência, endereça a seus concidadãos uma espécie de
testamento, no qual lhes recomenda que jamais se comprometam em
alianças com a Europa. Essa mensagem de adeus é um dos textos
fundamentais da história da política exterior americana e estabelece
a tradição dc isolacionismo, à qual os Estados Unidos manter-se-ão
quase que constantemente fiéis e da qual só se afastarão com Wilson,
em 1917, mas por pouco tempo, pois em 1920 o Senado dos Estados
Unidos recusa-se a ratificar o tratado de Versalhes c a entrar para
a Sociedade das Nações. Somente na segunda presidência de Ro­
osevelt é que os Estados Unidos romperão de modo duradouro com
essa tradição de isolacionismo, que já se prolongava por um século
e meio, obrigados por suas responsabilidades, a desenvolver uma
política em dimensões mundiais.
Se os Estados Unidos cuidam de não serem levados pelos caudais
provocados pelo conflito entre sua antiga aliada e a antiga metrópole,
nem por isso deixam de fazer guerra à Grã-Bretanha em 1812. Esta
é consequência do bloqueio que a Inglaterra tenta estabelecer contra a
França e ao qual Napoleão responde com o bloqueio continental.
Entre essas duas pretensões opostas, os Estados Unidos, numa situação
difícil, para defender seu comércio, os direitos dos neutros, a liberdade
dos mares, são levados a entrar em guerra com a Grã-Bretanha, sem
por isso se aliarem à França.
As lutas duram cerca de três anos, de 1812 ao início de 1815.
Operações limitadas, esporádicas, nas quais não se pode assinalar
nenhuma vantagem decisiva. Os ingleses tomam Washington, ateiam-
-lhe fogo; os americanos rechaçam para o mar, diante de Nova
Orleans, um corpo expedicionário britânico, feito de que eles muito
se gloriam (janeiro de 18í 5). O tratado assinado em 18í 4 limita-se a
confirmar a independência dos Estados Unidos.
Se dois impérios desapareceram no início do século XIX, dois
outros, cuja história está intimamente ligada à da Europa e à da
Revolução, subsistem,

3. A EM A N C IPA Ç Ã O DAS C O L O N IA S PORTUGUESAS E ESPA N H O LA S

As CAUSAS DA R U P T U R A

O império espanhol e o império português foram afetados pelos


contragolpes, não apenas da Revolução Francesa, mas também da
independência americana, porque é certo que o exemplo dado pelos
revoltosos desempenhou seu papel.
O movimento de independência dos dois impérios 6 iniciativa
principalmente, e até quase que exclusivamente, dos colonos, os criou­
los; não há nada comparável com a revolta, no século'X X , dos
povos de cor contra o domínio da raça branca, e assemelha-se antes
à independência dos Estados Unidos, onde são os brancos que fazem a
secessão (salvo no México, onde os índios tomam parte ativa no
levante).
O ressentimento dos crioulos no que respeita aos espanhóis ou
aos portugueses vindos da metrópole, que açambarcam todos os
postos, desde o alto clero aos cargos governamentais, leva a pensar
no descontentamento da burguesia francesa contra a reação dos no­
bres. Por outro lado, os crioulos começam a achar pesado o jugo
da metrópole, não sendo os encargos financeiros compensados por um
lucro positivo, enquanto o sistema de exclusividade do pacto colonial
cria entraves que lhes são prejudiciais.
A influencia da Euiopa e o esplendor das idéias filosóficas tam­
bém podem ser contados entre as causas da ruptura, Com efeito,
muitos crioulos são instruídos, freqüentaram universidades da América
Espanhola, no México, em Lima, viajaram, foram até a Europa,
leram os escritores franceses ou ingleses; alguns até são membros da
franco-maçonaria. Poroso, todo um conjunto de relações coloca a
elite intelectual dos crioulos à escuta do que se diz na Europa.

154
Bolívar é discípulo de Jean-Jacques Rousseau; seu pai o educara de
acordo com os princípios do Emílio. Miranda, o libertador da Ve­
nezuela, mantém amizade com os deputados girondinos, combate nas
fileiras do exército francês, como general, na batalha de Jemmapes.
É ao voltar dessa batalha que ele empreende a libertação de seu país,
Todos esses americanos sonham com imitar ó exemplo dado pela
França revolucionária e os rebeldes da America do Norte.
Essas causas, porém, não teriam produzido todos os seus efeitos
sem os acontecimentos da Europa, porque, sem dúvida, a indepen­
dência das colônias espanholas e portuguesas 6' uma decorrência da
ocupação da península pelos exércitos napoleónicos. Se o Brasil
e as colônias espanholas seguiram caminhos diversos, a diferença
resulta da sorte desigual dos soberanos.

A I N D E P E N D Ê N C IA D O B R A S IL

Quando Napoleão tenta fechar a Europa à Inglaterra, Portugal,


ligado de longa data à Inglaterra, recusa-se a romper sua aliança
e a dobrar-se aos decretos do bloqueio continental. Em eonseqüência,
em fins de 1807, Napoleão manda a Portugal um exército comandado
por Junot, enquanto a dinastia de Bragança embarca para o Brasil
que, de longínqua dependência de Lisboa, transforma-se em sede do
governo e centro do poder enquanto durar a hegemonia francesa
na Europa. É assim que, com mais de um século de antecedência, um
governo europeu deixará seu país para manter o princípio e a exis­
tência do Estado, como o farão alguns governos, em 1940, diante
do avanço dos exércitos de Hitler.
Esses anos representarão para o Brasil uma era de desenvolvi­
mento: não podendo mais contar com Portugal para as transações
comerciais, ele se abre ao comércilo britânico, criam-se escolas. Mas,
terminada a guerra, recobrando Portugal sua independência, o Brasil
não admitirá mais uma volta à sua condição de província longínqua,
sujeita às decisões de Lisboa. Aliás, a família real prolonga sua
estada, mas, em 1820, a onda de agitações que percorre toda a
Europa atinge Portugal e o rei tem de voltar a Lisboa para resta­
belecer sua autoridade, deixando no Rio de Janeiro seu filho, D. Pedro,
como regente.
Entre Portugal e Brasil, entre a metrópole e a colônia, entre
pai e filho, entre o rei e o regente, os laços se distendem e a sepa­
ração efetua-se sem crise, enquanto Portugal, aconselhado pela Grã-
-Bretanha, que exerce sobre ele uma pressão amigável, teve a sabedoria
de não querer restaurar a antiga ordem de coisas. O regente D.
Pedro proclama a independencia do Brasil, do qual ele se torna o
primeiro imperador constitucional.
Esse império constitucional, instaurado em 1822, durará até
1889, data na qual será proclamada a república, urna república de
inspiração positivista, cuja divisa, “Ordem e Progresso” é direta-
mente inspirada em Auguste Comte.
Resta notar que a emancipação do Brasil marcou para o mi­
núsculo Portugal o início do esboroamento de um imenso império
colonial, que cobria a América, a África e a Asia e do qual, em
nossos dias. não resta mais do que Angola e Moçambique.

As c o l ô n ia s e spa n h o l a s : do l e a l is m o À
SECESSÃ O

As colônias espanholas seguiram um caminho totalmente diverso:


sua história, entre 1807 e 1825, é muito movimentada; convém des­
tacar-lhe aqui quatro períodos mais importantes.

O ponto de partida
Como para o Brasil, o ponto de partida é o momento em que as
tropas francesas tomam o controle da Espanha e de Portugal, mas
as conseqüências não serão as mesmas. Os Bourbons não embarca­
ram para o Peru ou para o Chile, a dinastia teve de consentir numa
abdicação forçada e, sobre um trono assim vacante, Napoleão coloca
seu irmão José. Grande parte da população espanhola recusa-se a
admitir o usurpador e isola os espanhóis que o aceitaram {chama n-
do-os de afrancesados) ; estes, porém, contam com a presença do reí
e a inspiração francesa para liberalizar e modernizar a Espanha. A
separação entre os que colaboram com o rei José e os demais corres­
ponde à linha divisória entre os liberais modernistas e os tradiciona­
listas, apegados ao passado espanhol. Esse acidente comprometerá
as chances de evolução da Espanha.
Uma junta toma a direção da resistência e todas as colônias da
América afirmam sua fidelidade a Fernando VII. Estando este
confinado no castelo de Valençay, há vacância do poder. Desse
modo, na ausência do soberano, as colônias são obrigadas a se admi­
nistrar a si mesmas, decisão contra a qual, de Paris ou Madrid, nem
Napoleão nem José, nada podem fazer. Elas tornam a pôr em vigor
as instituições tradicionais caídas em desuso, notadamente o cha­
mado cabildo abierto. Uma vida política local, que podería ser

156
chamada democrática, se não se limitasse apenas aos crioulos, passa
a existir. Economicamente, como ocorreu no Brasil, as colônias
espanholas abrem-se para o comércio britânico e é a frota inglesa
quem lhes assegura defesa e abastecimento.

Rumo à emancipação
Num segundo tempo, voltando-lhes o^ gosto pela liberdade à me­
dida que a vão experimentando, as colônias que, pela força das
circunstâncias, não podem mais contar com ~a metrópole, vao-se
desligando dela insensivelmente e logo rompem com a junta insurre­
cional de Sevilha, embora esta represente a legitimidade. O mo­
vimento então muda de rumo e, de secessão inspirada pelo lealismo,
transforma-se numa luta pela emancipação pura e simples, sendo a
primeira medida tomada pelos colonos a de substituir os vice-reis
e capitaes-generais das administrações por eles controladas. No con­
junto da América Espanhola, o movimento é dirigido pelos crioulos,
com exceção do México, onde toma um caráter mais democrático,
com a participação dos índios, que têm à sua frente eclesiásticos de
origem indígena, como os padres Hidalgo e Morales, porta-vozes
da nacionalidade, que dao, em 1810, o sinal da independência; os
crioulos, temendo ser dominados pelos índios, continuam leais à Es­
panha, da qual necessitam para poderem conter as massas indígenas.
Entre 1810 e 1814, a guerra civil causa baixas entre a minoria
lealista, e a maioria consegue a independência, que tem à sua frente,
a noroeste da América do Sul, Bolívar e, no vice-reinado do Prata
(a futura Argentina), San Martin. Entre 1813 e 1814, a insurreição
triunfa em toda parte, eliminando a administração espanhola e redu­
zindo os lealistas â impotência.

O terror contra-revolucionário
Contudo, ao mesmo tempo, a península ibérica é libertada da
ocupação francesa, graças à batalha de Vittoria, vencida pelos ingleses;
as tropas estão disponíveis e o rei restaurado em seu trono. Fer­
nando V II, que pretende reconquistar a autoridade perdida nas
colônias revoltadas, manda até elas um corpo expedicionário. Seus
desígnios são atingidos por um concurso de circunstâncias favoráveis:
os rebeldes são pouco numerosos, mal armados, divididos; os lealistas,
que retomaram armas, lutam ao lado dos espanhóis que, aprovei­
tando-se do antagonismo existente, conseguem o apoio dos índios
contra os crioulos. O México, a Venezuela, o Noroeste da parte

157
andina da América espanhola sao reconquistados; Morales é fuzilado;
só San M artin consegue manter-se na região do Prata.
A situação modifica-se por completo; o antigo regime triunfa
na América, como na Europa; desencadeia-se o terror contra-re­
volucionario.

A independência
Mas o triunfo da Restauração não durará muito. Ele é contes­
tado na América, antes do que na Europa, onde é preciso esperar
pelas revoluções de 1830. Na América a repressão é atroz. Mas
sua própria atrocidade contribui para dar nova força ao movimento,
assim como ao valor pessoal, à tenacidade, ao gênio militar de alguns
homens, dentre os quais Bolívar e San Martin, que, na libertação
da América espanhola, ocupam um lugar comparável ao de Washing­
ton na independência dos Estados Unidos. Enfim, os revoltosos, os
chamados independentes, recebem o apoio de voluntários da Europa;
o fim das guerras, com efeito, deixara desocupados os soldados de
carreira que, sem emprego, um pouco para ganhar a vida e um pouco
por convicção e simpatia, vêm bater-se ao lado dos rebeldes. Por
outro lado, a revolta das tropas espanholas, que Fernando V II reunira
em Cadiz (1820), é o ponto de partida da revolução espanhola, que
durará três anos, até que a expedição francesa consiga esmagá-la,
com a vitória de Trocadero, restabelecendo o poder de Fernando V II.
A sedição de Cadiz serve muito bem para ilustrar a interação dos
acontecimentos nas duas margens do Atlântico e a solidariedade dos
liberais de um continente a outro, pois é a insurreição das tropas,
que se recusam a ir para a América a fim de esmagar os revolucio­
nários, que irá permitir o sucesso dos movimentos insurrecionais, da
América Espanhola. Dez anos mais tarde, o mesmo fenômeno se
reproduz com a revolução polonesa de novembro de 1830, quando
os poloneses, mobilizados, subievam-se contra a Russia do tzar Nicolau,
que quer lançá-los contra a Bélgica, salvando assim a independência
belga e a revolução francesa de 1830. Os revolucionários do oeste
triunfam por causa do sacrifício dos revolucionários do leste.
Os independentes beneficiam-se, enfim, com o apoio da Grã-Bre­
tanha, que foi a primeira a reconhecer seus governos, e dos Estados
Unidos, que se opõem a qualquer intervenção da Santa Aliança. A
famosa declaração de Monroe (dezembro de 1823) situa-se nessa
conjuntura em função dos projetos, apresentados ao tzar, de uma
intervenção internacional para restaurar o domínio do rei da Espanha.
O presidente Monroe julga oportuno enunciar os princípios que

158
regem a diplomacia americana. Essa declaração capital, que comple­
menta a mensagem de adeus de Washington, significa para a Europa
que já c passado o tempo do domínio colonial na América,, que a
América é um continente livre, e que os dois continentes devem evitar
qualquer intervenção nos negócios um do outro, A América é dos
americanos.
Entre 1818 e 1824, reiniciam-se as operações, com vantagem dos
revoltosos, que ilustram a epopéia libertadora da América com bri­
lhantes feitos de armas. San M artin transpõe a cordilheira dos Andes
e liberta o Chile em 1817, enquanto Bolívar liberta todo o norte do
continente. San M artin volta então para o norte, Bolívar desce para
o sul e a junção das forças dá-se nos altos platos dõ Peru, onde a
batalha de Ayacucho, em dezembro de 1824, assinala o ponto final
dessa história, já que toda a América espanhola está livre, Com o
Brasil independente há dois anos, o conjunto do continente sul-ameri­
cano é agora senhor de seus destinos.

C o n clu sã o

Três observações impoem-se para destacar a importância e o


significado deste capítulo.
Esses acontecimentos marcam o fim dos impérios coloniais da
Europa na América. Depois do império francês (1763), o império
britânico (1783), o império português (1823), o governo espanhol,
resignado, reconhecerá cm 1836 a independência de suas antigas co­
lônias, não conservando na América mais do que os restos insulares
de Cuba e Porto Rico, até que, graças aos Estados Unidos, essas ilhas
conseguem a independência.
O império espanhol desaparece, o império português está dissol­
vido, mas outros laços, além dos políticos, ainda subsistem com uma
cultura e uma língua comuns, o catolicismo c tudo o que os espanhóis
chamam por um termo vago, mas cuja imprecisão convém à diver­
sidade dos laços, a hispanidade.
Se a América Latina está livre, esse sucesso incontestàcei é pago,
durante muito tempo, ao preço de um duplo fracasso político: a
falência da unidade e a instabilidade política.
Sob a fachada colonial, a América havia conhecido uma unidade
de civilização e de governo. Com a independência, essa unidade é
rompida, o antigo império da Espanha fragmenta-se em cerca de
vinte pedaços, incluindo entre eles as repúblicas da America Central,
de tamanhos muito desiguais, em sua maior parte inviáveis. Mesmo a
Grande Colômbia, que devia reunir o que constitui a Colômbia pro­
priamente dita, o Equador, a Venezuela e a Bolívia, cái em pedaços,
marcando o fracasso de Bolívar, que queria ao mesmo tempo antecipar
a América e unificá-la. Seu projeto de um congresso que deveria
reunir no Panamá, em 1826, os representantes de todos os governos
para lançar as bases da unidade, malogra. Atribuem-lhe estas palavras
desabusadas no fim de sua vida : ÍSEu pari o mar."
Uma comparação impõe-se com a atual África Negra, onde os
antigos impérios coloniais se desagregaram em entidades demasiado
pequenas para serem viáveis e constituir Estados-Nações.
Por que esse malogro? Muito pouco povoado, demasiado ex­
tenso, com núcleos de população dispersos sobre milhões de quilô­
metros, as rivalidades que dividem os países, a hostilidade da Grã-
-Bretanha e dos Estados Unidos, que já não têm interesse algum em
encorajar a unidade e, antes, trabalham para sua fragmentação, esse
continente não poderá conhecer circunstâncias favoráveis para sua
unificação política. Daí data a díssimetria entre a poderosa nação
do Norte e a fragmentação da América do Sul. Essa diferença coloca
a América Latina à mercê do Norte, ao mesmo tempo em que de­
turpa o próprio conteúdo do pan-americanismo, que já não passa de
um simples instrumento da hegemonia política ou econômica americana.
No plano das instituições políticas, a bancarrota é patente, pois
nenhum desses Estados conseguirá criar para si instituições estáveis.
Desde 1825, a história da América Latina é uma longa sequência de
golpes de Estado, de ditaduras, de revoluções. A Bolívia, cm menos
de cinquenta anos, sofreu 120 golpes de Estado. É evidente que nem
todos os países da América ostentam recordes tao impressionantes,
mas todos sofrem de instabilidade política crônica.5

5. A MARCHA DOS ESTA D O S U N ID O S RUM O À D E M O C R A C IA

Ela se desenvolve numa linha distinta, mas interfere, de quando


em quando, com a da Europa ou a da América Latina.
Sob dois pontos de vista, os Estados Unidos mostram uma dife­
rença essencial em relação à América Latina.
Em primeiro lugar, desde a constituição de 1787, eles souberam
preservar sua unidade encontrando o meio institucional de conciliar
a aspiração de cada Estado à autonomia e a necessidade de mostrar
uma frente unida diante do mundo exterior. E pluribus unum, da

160
pluralidade emana e se fortifica a unidade. Essa é a divisa da União
Americana.
Em segundo lugar, dando o exemplo, já clássico, de uma evo­
lução flexível dentro da própria constituição, eles souberam escolher
para si instituições estáveis.
Elaborada em 1787 por uma Assembléia reduzida, composta de
homens escolhidos em razão de seu prestígio pessoal, a constituição
que entra em vigor em 1789 instaura um regime cuja originalidade
é dupla. De um lado, a existência de duas Câmaras proporciona uma
solução elegante para o problema das relações entre os treze Estados
e o Estado Federal: no Senado, os Estados são representados em pé
de igualdade, seja qual for sua importância; na Câmara dos Repre­
sentantes, eles são representados por uma quota-parte de sua população.
Por outro lado, no que respeita à relação entre os poderes, a
União Americana é a primeira experiência moderna do regime repu­
blicano num grande Estado. É preciso lembrar que até então só
pequenas cidades a haviam posto em prática e, que, no século X V III,
a maioria dos filósofos políticos são da opinião de que a forma repu­
blicana não ó aplicável a grandes Estados, nem mesmo nos que a
consideram preferível e superior às outras formas de governo. Por
isso, a experiencia levada a efeito pelos Es Lados Unidos tem uma
importância que as ultrapassa ampiamente e interessa à própria Europa.
Governo republicano, mas não democrático, porque a República
não é necessariamente democrática, pois a democracia, no espírito do
século X V III, estava muitas vezes associada a um regime do tipo
autoritário. O regime de 1787 é um regime liberal, que reserva o
poder para uma classe abastada, culta, de proprietários ricos. Em
nenhuma parte existe sufrágio universal; portanto, não é o conjunto
dos cidadãos que distribui o poder, mas o quadro pode se prestar a
uma evolução democrática, e essa evolução se efetuará gradualmente,
para uma democracia de fato.
Essa evolução conta com dois momentos importantes. O pri­
meiro, em 1800, a eleição de Jefferson à presidência. Entre 1789
e 1800, dois partidos haviam-se destacado, defendendo duas interpre­
tações contrárias no tocante à aplicação da constituição, O partido
“federalista”, que defendia o fortalecimento do Estado Federal em
detrimento da autonomia dos Estados, era integrado pela aristocracia
dos comerciantes e dos proprietários. Os republicanos, pelo contrário,
faziam-se advogados da independência mais ampla possível dos Es­
tados, e contavam com a simpatia dos “pequenos5'. Ao conflito
constitucional, portanto, acrcscentava-se essa divergência de interesses.

161
Nas eleições de 18(30., Thomas Jefferson, candidato do partido repu­
blicano, vence e dá outro sentido à orientação aristocrática que lhe
havia entregue a presidência de Washington.
Paralelamente, a sociedade se transforma de forma espontânea
com o início da valorização dos territórios do oeste, além dos Apala­
ches. Um novo tipo de homens começa a aparecer; surge uma nova
raça de pioneiros rudes e igualitários. Entre eles nao havia discussão
sobre problemas hereditários, de títulos ou de privilégios. Com eles,
nasce uma nova ordem social, que constitui aliás a base da democracia
política e social. À medida que se formam, esses novos Estados votam
constituições democráticas, que incluem o sufrágio universal, e não
prevêm nenhuma discriminação em função da propriedade, do dinhei­
ro ou da educação. Uma democracia de fato é estabelecida no oeste.
 medida que os territórios do oeste se elevam à categoria de Estados,
o equilíbrio das forças se desloca, dando vantagem aos republicanos.
É bom tomar cuidado com uma das armadilhas da terminologia
política dos Estados Unidos. Com efeito, se atualmente os partidos
americanos levam o nome de republicano e democrata, em 1800, os
republicanos é que são os democratas,
A democratização estende-se aos Estados primitivos, a maioria
dos quais, nos anos 1820-1830, revisam suas constituições, abolem as
distinções sociais, introduzem o sufrágio universal, separam as Igrejas
dos Estados.
No governo federal, o impulso democrático traduz-se, em 1828,
pela eleição e a entrada na Casa Branca do general Jackson, que
personifica a corrente mais democrática. Esta é a segunda etapa da
democratização da vida política americana.
A eleição de Jackson ocorre alguns meses antes da onda revolu­
cionária que sacudirá a Europa Ocidental, em 1830 e, embora não
haja nenhuma relação entre esses dois acontecimentos, esse sincro­
nismo ilustra muito bem a diferença entre o Antigo e o Novo Regime.
Os Estados Unidos já ingressam na era democrática, enquanto a
Europa Ocidental ainda se encontra na idade liberal. As revoluções
de 1830, liberais, desbaratam a contra-revolução, mas nem por isso
estabelecem a democracia, e nem a Carta de 1830, nem os textos que
nela se inspiram preveem o sufrágio universal. Os Estados Unidos
estão uma geração à frente: eles fizeram 1848 em 1828. Tocqueville,
logo após a revolução de 1830, deixa uma França liberal, mas não
democrática, e vai estudar a democracia americana, para ter uma
idéia do que será a fase seguinte da evolução da Europa.

162
Se deixamos o aspecto interno para considerar as relações exte­
riores, os Estados Unidos afirmam-se como potencia. Sua indepen­
dencia saiu reforçada da guerra que travaram, entre 1812 e 18.15,
contra a Grã-Bretanha e, sobretudo, eles crescem territorialmente com
a Luisiânia, comprada em 1803 por Jefferson à França, e com a
Florida, comprada à Espanha em 1819. O povoamento acompanha
a conquista; às vezes até a antecede. Em 1820, os Estados Unidos
já se estendem sobre cinco milhões de km2 ç sua população chega a 9
milhões. Ela praticamente triplicou desde a independência. Em
1823, a declaração de Monroe faz saber às potências européias que,
no continente americano, a era colonial chegava ao fim. Os Estados
Unidos estão prestes a conquistar também sua independência econô­
mica. A segunda guerra da Independência precipitou os acontecimen­
tos, obrigando a nação americana a bastar-se a si mesma, depois que
foram cortadas as relações com a Inglaterra, de onde ela tirava o
essencial de seus produtos manufaturados. Quando se restabeleceu
a paz, o Congresso, para preservar a indústria nacional nascente, adota
uma tabela de proteção; é sob o abrigo de sua barreira alfandegária
que a economia nacional irá se desenvolver.

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