Você está na página 1de 176

036850

1 111 1 11 1 111 li li lllll l Ili


L0000043736
... 1 COMPRA

PASSADOS RECOMPOSTOS
CAMPOS E CANTEIROS DA HISTÓRIA

Organização

Jean Bortti.rr
Dominique !'-,,lia

Participam

Philippe Bo..ary
Jacques Rma
Patrick Nerbot
UFRJ .Pascal Ent,d
Reitor Paulo Alcantara Gomes Claude Lan�lois
Vice-reitor José Henrique Vilhena de Paiva · Dominique &rne
CoordemJdora do Forum François Bldaida
de Cii11cia � Cultura Myrian Daudsberg Étimne Frtm:f(Jis
.• Otivier GuyotjCJmnin
EDiTORA UFRJ ·- �·-J,tan-Lcuis G=.lin
Direwra Hcloisa B�uc de Holanda Jean-Yixs Grazier
Editora Executiva Lucia Canedo François Hanog
Coordenadora de Produção Ana Carreiro Heinz-Gerhard Ha11pt
Conselho Editorial Hcloisa Buarque de Holanda (Presidenlc), Dominique falia
Carlos Less:i.. Fernando Lobo Carneiro, Simona Cn-JLtti
Flora Süsselcind, Gilberto Velho, 0/zvm Hupn
Margarida ó: Souza Neves Marclau:r
Hmry Gakil
FUNDAÇÃO GETUL/O \!ARCAS Manuel Rc-yo
Presideme Jorge Oscar de Mcllo Flôrcs Pierre Vda:r
Arundhari Vl771Ulni
EDITORA FGV Timothy Tad:ett
Edirim1 Executiva Alzira Alves de Abreu Antoine de 13=-cque
Coorde11adom Editorial Cristina Mar:-· Pacs da Cunha

,_;:-·,./\.,...t · 1· Eclicora UFRJ


Eclicora FGV
1998

,. · · . ......� .: .. . .. . .
' ,.
L ...
. ...,

Copyright © by Jean Bouticr e Dc'.ninique Juli.t


Tículo do original: Pa.ués recampo.<és SUMÁRIO
Ficha Catalogr:lfica elaborada pela Divisão de
ProcessameNo Técnico-SIBI/UFRJ
APRESENTAÇÃO 9
P285 Passados recomposcos; ca.,1pos e canteiros da história / organiza­
ção Jean Boucicr [e] Oominiquc Julia.: tradução de Marcclla
INTRODUÇÃO
Mortara [e] Anamaria Skinncr. Rio de Janeiro: Editora UFRJ:
Editora FGV, 1998.
Em que Pensam os Historiadores? 21
352 p .. 16 x 23 cm. Jean Boutier e Domi:niq11ef11/ia
1. Boutier, Jean 2. Julia. Oominique 3. Mort�íª· Marcclla,
trad. ·4. França-História.
coo 900 44 1 QUESTÕES

ISBN 85-7108-199-9 Certezas e Descaminhos da Razão Histórica 65


Philippe Bou1ry

Capa História e Ciências Sociais: Uma Confrontação lnscávd 79


Tila Nigrí Jacques Rerrel
Revi.tão
FUNO _.,ÇÃO UNIVERSI0ADe :' ···No Prlncíçio Era o Direito... 91
Cecília Moreira
Josett.: Babo . FE!'.)ER-,._L ·oE RONDÔNIA l -,,..v -· · . ··Fa(rlck Nerboi"°.
Maria Beatriz Guimarães � .. .". _;�-.--... : �- ._ :.".-:7'·
&18t 10TÉC.._ CENTRAL . Pode àFilÓsofia·Escapºar tia-História? 105

�e�oo-,-.1A..13 m t9S , · Pãséai En;çd.... . .


Projelo Gráfica
Ana Carreiro
.,,1,·('1-
Editoração Ele1r,i11ica 0s Efeitos Retrúativos da Edição Sobre à Pesquisa 121
se
- -:· .. J, ----- ---·

Cadu Gomes Claude Langf.ois

Universidade Federal do Ri , ... . Comunidade de Memória e Rigor Crítico 133


Forum de Ciência e Cultur:. Dominiqtie &Jnze
Edicora UFRJ
Av. Pasteur 250/sala 107
Rio de Janeiro - RJ
CEP: 22295-900
Tcl.: (021) 295 1595 r.: 124 a 127 As Responsabilidades do Hismriador E:xpert 145
TclJFax: (021) 542 3899 e (021) 295 1397 François Bédarida
E-mail: cditora@forum.ufrj.br
Os "Tesouros da Scasi" ou a Mi=gem dos Arquivos 155
Edicora Fundação Getulio Vargas Étienne Fr=çois
Praia de Bocafogo, 190 - 6Q andar
22253-900 - Rio de Janeiro - Brasil A Erudição Transfigurada 163
Tel.: (021) 536-9110 - Fax: (021) 536-9155 Olivier G11yotfe".anni11
e-mail: editora@fgv.br
h11p:.'/www.fgv.br/fgv/publicao/livros.h1m A Ascese do Texto ou o Retorno às Fontes 173
Jean-Lo11is Ga.uli11
Apoio
A História Quantitativa Aind:::i. É Necessária? 183
Jean-Yves Gr-enic.-
W
l(f)I Fundação Unive,::itària
José Bonifàcio
t. Arte da Narrativa Histórica 193
Françofs Ha;-tog
- ·�--..,.
APRESENTAÇÃO

, 3 ,MUTAÇÕES

O Lento Surgimento de uma História Comparada 205


Heinz-Gerbard Ha!rpt

A Violê'ncia das Multidõl!s: É Possível Elucidar o Desumano? 217


Dominiquejulia

A Construção das Categorias Sociais 233


Simona Ccrutti

Mulheres/ Homens: uma Questão Subversiva 243


O/wen H1ifton

Depois de 1989, Esse Estranho Comunismo... 251


MarcLazar

A Arqt1eologia na Conquista d:a <;Idade 261


Henri Ga/inié e Manuel Royo

(... ·11 1,. -�Ili';; ::b·.) 1


4 TESTE�UNHO

. A Memória Viva dos Histori2<iores 271


Entrevista com Pierre Vilar

' 1 . :: 1; •·, . -�-


5 FRO�TElRAS

Os Caminhos da Polifonia 301


Jean Boutier e Anmdbati Virmani

A Comunidade Científica Americana: um Risco de Desintegração? 311


Timothy Tackett

Um Mercado Mundial das Idéias: o "Bicentenário" da Revolução 321


Antoine de Baecque

BIBLIOGRAFIAS 335

BIOGRAFIA DOS AUTORES 346


APRESENTAÇÃO

FRANCISCO ÍOSÉ CALAlANS FALCON

2assados recompostos: Campos e can:eiros da História, obra coleti­


va dirigida por Jean Boutier e Dominique Julia, apresenta ao leitor algumas
das preocupações de mais de duas dezenas de_ historiadores, franceses .em
sua maioria, acerca de questões hoje na ordem do dia da Oficina da História.
Tem seqüência assim um movimento historiográfico responsável pela publi­
cação, nestes últimos anos, de obras deste mesmo gênero em diversos países
e tendo em comum certas preocupações quanto aos rumos e tendências
observáveis na historiografia contemporãnea. Da percepção de tais rumos e
tendências deriva-se uma certa percepção, algo gene1alizada per s:nai, de se
estar, provavelmente, em face de uma crise da história. No. âmago desta
perCP.pção encontra-se uma co_mpreensão aguda das implicações epistema­
lógicas dessa crise, vale dizer-se, do que significa para_ as concepções domi­
nantes acerca da natureza do discurso histórico e de seu valor de verdade, ou
seja, ao fim e ao cabo, é a possibilidade mes�a de um discurso histórico
enquanto conhecimento de História que estaria ameaçada.
A partir de uma perspectiva mais abrangente, pode-se situar esta obra
ao taco de inúmeras outras editadas neste final de milênio nos mais ::liversos
semelhantes: avaliar os resultados até agora alcançados e tentar oferecer al­
gumas respostas a novas indagações.
I•
1
No caso específico da historiografia, vem se tornando cada vez mais
necessário afirmar de maneira incisiva e incessante os va!ores destacados
por Eduardo Lourenço num de seus últimos ensaios: o valor da racionalidade,
a importância do sentido, a existência de inteligibilidade e do conceito. 1 As­
sim, contra os apóstolos do caos e da desordem epistemológica comprometi­
dos com o desespero da razão, cabe ao historiador retomar com decisão os
princípios fundamentais de sua própria disciplina. A emergência e dissemi­
nação do irracionalismo e do ceticismo relativista, justamente ironizados por
Eco ao tratar do Irracioi1al, misterioso e enigmático,2 e denunciadus entre
nós por alguns historiadores, como Cardoso,3 constituem o horizonte princi­
pal de referência dos artigos desta coletânea.
Uma das questões subjacentes aos ensaios presentes neste livre é a
demanda cada vez ma_is forte que se exerce sobre a ;itividade historiadora em
1C pASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 11

tempos como estes que estamos vivendo. Tidos como senhores do passado, realidade quanto a objetividade do <.:onhccimento histórico são propostas ao
ou donos da memória, sofrem os profissionais de História duas solicitações leitor sob a capa de.alusões indiretas a questões que estão na primeira linha
opostas: a solicitação daqueles que.desejam conhecer/compreender o pas­ do,; debates atuais. De fato, referir-se a passados é sinalizar-se, simultanea­
sado, e a dos que sonham com antever o fwuro. Confundidos com os mente, tanto no sentido do problema da realidade histórica, enquanto sinô­
"futurólogos", os historiadore:; 'vêem-se instados pela mídia a delinear os nima de passado, como do discurso que se produz sobre este mesmo passa­
rumes mais prováveis d� História, a partir d.i suposição algo ingênua de que do. Ao se propor o caráter recomposto desses passados, convoca-se para a
o seu con!Jecimento do passado constitui passaporte garantido rumo às in­ frente do palcd a figura do historiador enquanto subjetividade decisiva para
certezas do futuro.4 Como se verá em alguns ensaios desta coletânea, a ten­ o trabalho artesanal de a seu modo, segundo sua leitura, recompor um certo
dência a resgatar, na atualidade, a história do tempo presente5 não significa, passado. Difícil não se pensar, imediatamente, nas interpretações que postu­
do ponto de vista dos historiadores que a praticam, qualquer compromisso lam a inexistência, ou a "irrealidade", da História, � sua inacessib:lidade a
com especulações futurológicas. todo e qualquer conhecimento.9
No entanto, bem mais até que o futuro, � certamente o próprio passa­ Os a�tores de Passados rernmpost:1s procuram fazer uma espécie de
do que se tornou um sério problema para seus tradicionais senhores. Passa­ contraponto aos vários descamin_hos da razão historiadora que o título da obra
do, vale frisar, aqui entendido quer como realidade em si mesma, quer como parece, num primeiro momento, incorporar ou, quem sabe, insinuar. Contra os
o objeto por definição·da prática historiadora que a respt!itu dele r,rcduz seu fatores que favoreceram e ainda favorecem tais descaminhos, sublinham eles
próprio discurso. Um discurso, é bom notar, que se quer como cor.hecimen­ os aspectos do ofício capazes de frear os excessos de subjetividade típicos da
to verdndeiro da realidade passada. Assim, se a noção m-'!sma de pas�ado é cultura contemporânea: o estudo da áocu.mentação, os lugares sócio-i11stitu­
passível de interpretações as mais diversas, cabe recorrer à conhecida frase czonais de produção do discurso histórico e as indispensáveis premissas teó­
de Pierre Viiar - a históric fala da História'· - a fim de nos interrogarmos rico-metodológicas de toda pesquisa histórica que se preze. Fica também mui­
sobre a validade ou não, ainda hoje, do que nela se afirma de essencial: a to evidente, na maior parte destes ensaios, uma_ certa ênfase em direção à
"história - disciplina" e a "História - matéria" pressupõem-se mutuamente. h�rmenêutica, a qual parece derivar como que naturalmente do caráter essen­
Com efeito, ante a tão repetida declaração de falência da concepção hegeliana cialmente interpretativo do trabalho historiador que aparentemente admitem.10
de História 1 e os estragos causados à história-disciplina p:é!las análises críti­ Já o subtítulo, se também inova, permite no entanto que se perceba com
cas associadas ao /i11guistic tum, ao 11arrativismo, e à crise da grande teo­ muito mais clareza uma e·v·idente intenção de retificar as eventuais derrapa­
ria/ é extremamente bem-vinda esta publicação de trabalhos sJrios e opor­ gens ou exageros a que o título possa ter conduzido o leit,Jr menos atento.
tunos es"ritos por autênticos especialistas do ramo, isto é, familiarizados A referência aos campos da História serve para quebrar a tradicional
com as verdadeiras dificuldades do processo de escrever textcs de história. rigidez associada às delimitações baseadas em especializações disciplinares
Tal como outras coletâneas do mesmo &êncro, Passados recompos­ que se ignoram às c•1tras. Ao mesmo tempo, a idéia de campos vale como
tos constitui mais uma tentativa de articubr um:1 espécie de estado atual das afirmação da pluralidade dos espaços postos à disposição do conhecime:1to
q:,r.:stões, à maneira das conhecidas coleções C.'io e Nouve/le Clio, mas com histórirn, o sem sentido das fronteiras rígidas e as possibilidades infinitas
uma difcrança essencial: agora, os balanços e p-crspcctivas visam principal­ das trocas com os campos vizinhos - das ciências humanas e sociais.
mente os problemas gerais da disciplina e caci:l autor busca indicar cami­ A alusão a callteiros, certamente disseminados pelos diferentes cam­
nlws e soluções sempre do ponto de vista do h:sroriador. Quaisquer seme­ pos, contém uma outra mensagem: escrever história, como trabalho ce um
lhanças com aqueles antigos manuais ficam na ,.-erdade um tanto esmaeddas tipo específico de profissional, é atividade que possui exigência e �crvidões
quando se busca compreender o título e subtín.:lo deste livro: inevitáveis - formação específica, familiaridade com uma certa prática, obe­
Passados reco111posros: passados (plur:1:). e não simplesmente o pas­ diência a regras ditadas pelo ofício. Cabe à comunidade historiadora, hoje
s:ido; recompostos, vale dizer: refeitos mas não cxatamer.te "reconstituídos" cada vez mais internacio,ializada, reconhecer ou não como 9e história os
ou simplesmente "revelados". Em ambos os ca._,os, tít11lo e subtítulo, tanto a textos que assim se auto-intitu_lam.
12 pASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 13

Não gos:aria de concluir esta parte sem fazer o elogio de mais uma procedentes dC' exterior da oficina, sem apelar, a priori, para sua desquali­
caracterísaca extremamente positiva deste livro: apesar de produzido p�r ficação pura e simples.
historiadores franceses, não espere o leitor n�le encontrer mais uma daque­ Nesse mesmo ensaio, outra surpresa, Uffi quase-espanto do leitor, ao
las coletâneas triunfalistas já tão conhecidas. Bem ao contrário da tradição l�r: "Não que a "escola histórica francesa• constitua ainda um modelo: se ela
das Anna/es, reconhece-se, sim, que existem graves e importantes proble­ mantém um real dinamismo, h� muito tempo não po�ui mais o monopólio
m as a enfrentar, evidencia-se muito bem a tomada de consciência quanto às da inovação metodológica". Eis aqui 1.1ma constatação que chega em muito
relações realmente existent�s entre tai� problemas e os as:,im chamados dt?­ boa hora sobretudo quando se sabe o quão é ainda rara entre nós a consciên­
safios dirigidos à história por um verdadeiro exército de filósofos, lingüistas cia efetiva de um fato na verdade tão simples que Boutier e Julia se limitam
e especialistas em teoria da literatura. a constatá-lo: a consciência de que existem diver:;osuniversos historiográficos
Enfim, registro meu próp�io alívio ao perceber que não mais me en­ na· atualidade, ou seja, a hi�toriografia contemporânea não se resume à das
;
:j
contro diante de outra antologia voltada para aquelas nossas já conhecidas e Annales! Há mais, porém: as aspas para ªa escola histórica francesa" expri­
1
desgastadas q1 :erelas: objetos - novos ou antigos? abordagens: inovadoras/ mem uma certa reserva acerca da própria realidade dessa escola; uma res�r­
_
progressistas ou tradicionais/conservadoras? métodos: quantitativos (empi­ va no mínimo curiosa ein termos de Brasil, se nos lembrarmos de algumas
ristas) 0u qualitativos (teoricamente embasados)? a diferança/oposição en­ tendências voltadas precisamente para a identificação de uma ou várias es­
tre história evenemen!iel/e, historizante, e história conceituai, fundada em colas historiográficas entre n�.
pressupostos teóricos de viés estrutural, é passada em revista, sim, mas como A seguir, breve síntese dos caminhos da historiografia francesa desde
pai te do processe, histórico da própria escrita da História. 1945, se�s sucessos e _ ambigüidades. É come voltar no !empo e rever aquelas
A coletânea está dividida em quatro blocos temáticos intitulados: grandes coleções dos anos 50/60, tais como a Hist6ria Geral das Civiliza­
Questões, Competências, Mutações e Fronteiras; há, ainda, uma Introdução ções, dirigida por Maurice Crouzet, e a coletâneaL'Histoire et ses Méthodes,
e um Testemunho. organizada por Charles Samaran!
Elaborada pelo3 organizadores da obra, a Introdução sintetiza os obje­ Enfim, o tournant decisivo: os três volumes deFaire de l'histoire, sob
tivos e preocupações (iUe norteiam o conjunto das intervenções e ostenta um a direção de Jacques Le Goff e Pierre Nora, 12 espécie de referência obrigató­
título sintomático: Em que pensam os historiadores? É como se já soubessem ria para todos interessados cm travar conhecimento com aNouvelle Histoire:
da resFosta mais provável: Quem afirma que os historiadores pensam? A pro­ Novos Objetos, Novas Abordagens e Novos Problemas. Apesar de Veyne 13 e
va cesta suposição vem logo a seguir: "é por demais conhecida a pouca incli­ de Foucault, 14 a Nova Hist0ria, no Brasil, àquela mesma época,·foi também,
nação dos historiadores pelas questões de natureza reflexiva respeitantes à r1.1a em geral, apenas uma questão de objetos, métodos e abordagens. Em 1978,
disciplina"; os historiadores que se preocupam com a análise dos pressupos­ com a publicação da Enciclopédia da Nova História, organizada por Jacques
tos teóricos de seu própriofazer sempre foram e ainda são uma espécie de avis Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, 15 o triunfo da Nouvelle Histoire
rara.. Afinal, não vem a ser isto exatamente o que um historiador como Elton 11 parecia estar definitivamente fora de questão.
afir::10u e defendeu, ainda recentemente, sem meias palavras, ao denunciar e Vinte anos depois, já não é mais possível continuar-se fiel às certezas
mandar às urtigas as teorias dos cientistas sociais e asfilosofias dos não-histo­ e ao otimismo dos anos 70, pois, muito ou quase tudo daquilo que parecia
riad..."lres (filósofos, lingüistas, literatos) precisamente porque todos eles dcs­ então adquirido definitivamente tomou-se objeto de discussão: a realidade
co0-;.,ecem a prática do historiador, pois, jamais tend�1 pesquisado e muito menos das estruturas; a noção de temporalidades imanentes; a eufor�a da quantifi­
produzido história, como podem pretender agora dizer algo sobre o oficio? cação, ou cliometria, a unida�e e ser,tido da História. A fragmentação da
Boutier e Julia não pactuam, é claro, com o radicalismo de Elton, disciplina fez-se acompanhar da crítica aos seus tradicionais pressupostos
err::-,0ra tratem, até certo ponto, de problemas idênticos; apenas entendem realistas; a objetividade, ou verdade, do conhecimento histórico passou a ser
ele� q:ie a melhor política não é a do avestruz; a auto-reflexão historiadora mediada pelo conflito das interpretações, �, por último, resgatados do limbo
é quem dcv.e proceder ao reconhecimento e análise crítica dessas incursões ao qual tinham sido re1 cgados, os agentes sociais foram trazidos para a frente
M PASSADOS RECOMPOSTOS· Apresentação 15

do palco e suas ações e representações, coletivas ou/e individuais, passar.ara pelo texto; segundo, a tomada de consciência das especificidades da na"ativa
a oc11par lugar de destaque na historiografia. histórica; e, por último, a recuperação sistemática da noção de sentido.
O primeiro bloco, Questões, inicia-se com o ensaio de Boutry- Cer­ Outros ensaios deste mesmo bloco, também interessant�, são os de
tezas e Descaminhos da Razão Histórica. Talvez com o objetivo de apresen­ Jacques Revel � História e Ciências Sociais: Uma Confrnntação Instável­
tar em cores fortes a essência c!o problema que t!m em mira, el� principia no qual se analisa o curso sinuoso da história das Annales do ponto de v·ista
pelo fim: a chamada Históri�Experimental, ou História Lúdica. A mera exis­ a
de suas relações um tanto ambíguas com Sociologia e a Antropologia; de
tência da tal História demor,.stra que não se deve desprezar as inquietações e Patrick Nerhot - No Princípio Era o Direito- a respeito da questão muito
o ceticismo atuais- de alguns bons historiadores em relação aos métodos, atual das afinidades discursivas da história com o direito; de Pascal Engel -
valores e tradições de uma disciplina talvez por demais 3cadêmica· como Pode a Filosofia Escapar da História? - abordando uma das questões mais
parece ser ainda a história. Trata-se, segundo ele, dos resultados lógicos de quentes, hoje em dia, no ca]DpO da históri:.9. das idJias e da história intelectual
uma tendência secular que hipertrofiou cada vez mais o sujeito do conheci­ - a da necessidade e possibilidade da chamada contextualização.
mento, uma tendência que afunda suas raízes no solo nietzscheano e se de­ D,'l bloco a seguir, Competências, destaco três trabalhos mais gerais, ou
senvolve, na França, graças aos cuidados de Aron e de Marrou, desabro­ menos técnicos: R Bédarida � As Respon...::abilidades do Historiador Expert -
chando, finalmente, com Veyne, Ricoeuer e, sobretudo, Foucault e de Certeau. que critica duramente, apoiando-se sobretudo em Michel de Certau, os vários
Um longo percarso, am�. genealogi� que nãfl cie campre aqui discutir, mas revisionismos da atuali<.lade, lamentável abdicação da razão contra a qual se
. que, segundo Boutry, marca a passagem da objetividade à subjetividade, da faz mais urgente do que nun::a, segundo el� afirmar (o historiador) o princí­
crítica das fantes à das categorias e formas de escrila dfl história, ou, como pio de verdade, princípio essencial e em nada incompatível, ao contrário do
seria bem mais claro talvez: o questionamento da verdade da história en­ que alguns possam supor, com o fato de que toda pesquisa histórica inscre­
quanu> forma de conhecimento. ve-se num lugar social. O ensaio a seguir, de Jean-Yves Grenier -A História
No intuito de demonstrar a validade de seu argumento, Boutry exa­ Quantitativa Ainda É Necessária?- retoma e desenvolve alguns pontos já
mina alguns dos momentos e efeitos do processo geral acima descrito so­ tocados por Bcutry e indaga sobretudo dos n!)VOS usos possíveis de uma
bre a historiografia contemporânea: o prestígio e as ilusões do·quantitativo história quantitativa em tempos co1.1.10 os que vivemos hoje aparentemente
(cabe aqui pensar-se cm Furet, Chal1nu, Mauro, e tantos outros, papas da muito mais favoráveis à narrativa e à análise antropológica. Em terceiro lu­
euforia quantitativista que grassou também entre nós, nos anos 60nO); o gar, François Hartog, com A Arte da Narrativa Histórica, oferece-nos uma
declínio da razão geográfica (imposs!'ve! não se pensar em Vidal de La síntese precisa e inteligente das últimas discussões havidas na historiografia
Biache, Mare Bloch, ou, principalmente, Braudel e seus epígonos, adeptos ocidental a respeito de um real ou apenas suposto retorno da narrat;va; mais
de uma geohistória que chegou a fazer parte do currículo mínimo oficial importante, no entanto, é a crítica consistente que faz às chamadas teses
dos cursos de graduação em História e Geografia em nosso país ... ); a crise 11arrativistas ao sublinhar que a narrativa histórica mantém, por definição,
de inteligibilidade que tende a transformar a história num jogo ou sucessão uma relação específica com a verdade pelo simples fato de que ela remete
de experiências, no qual as hipóteses. e interprelações são eternamente sempre a um passado que realmellte exis::.u.
revisiradas e a obra de história vale ou significa bem mais em termos do Após as Questões e Competências7 o terceiro bloco sublinha as Muta­
conhecimento do respectivo historiador e sua época que da história propria­ ções. Entramos então na leitura de temas os mais diversos, inclusive alguns
mente dita (seria aqui a brecha para introduzir, entre outros, o nome de um tanto pontuais, cabendo de fato ao leitN, conforme seus interesses e pre­
Hayden-White). ferências, escolher entre O Lento Surgimento de Uma História Comparada,
Depois de tantos perigos e ameaças, será que a história pode ainda su­ de Heinz Gerhard Haupt, A Violência das Multidões: É Possível Elucidar o
perar c\.xlos esses contratempos? Sim, afirma Boutry, e ela o. vem fazendo a Desumano?, de Dominique Julia, ou, air:·.:fa, A Construção das Categorias
partir de três atitudes básicas dos hi::.toriadores: a red,,scoberta do arquivo, Sociais, de Simone C erutti, e Mulheres/Homens: uma Questão Subversiva,
isto é, dodocumellto bruto, graças, entre outras co� ao fascínio hoje exercido de Olwen Hufton. A tônica aqui recai e.as temáticas mais atuais, aquelas

l
16 PASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 17

precisamente que r.oncentram uma parte significativa das pesquisas e dos principalmente um certo cuidado com a marcação das próprias distâncias em
debates históricos mais polêmicos. relação àquela tradição. Metodologicamente 2berta, ela assim se define quer
Diferentes da lógica seletiva presente nos blocos anteriores, os temas pelo que inclui, quer por tudo que exclui. Inclui, !)Or exemplo, sem as ccstu­
de Fronteiras nada possuem em comum, salvo o fato de.contribuir:::m, cada meiras ironias e restrições, referências a trabalhos Je historiadores de outras
qual a seu modo, para a melhor compreensão do panorama atual da historio­ nacionalidades sobre !emas tipica�entefranceses, a começar, pasme-se, por
grafia. Em Os Caminhos da Polifonia, J. Boutier e A Virmani buscam d�se­ historiadores dedicados ao estudo da Revolução F�ncesa! Do lado das ex­
nhar as linhas mestras da comunidade mundial de historiadores, em função clusões, vale sublinhar-se a ausência de qualquer tipo de abordagem que
tanto de seus progressos evidentes, como dos dilemas que ainda persistem. signifique a valorização unilateral de tal ou qual visão teórica.
Ac analisar A Comunidade Científica Americana: Um Risco de Desintegra­ A juventude se deduz tanto das próprias posições assumidas como
ção?, Timothy Tackett oferece-nos um quadro realista, algo pessimista quem também das datas de publicação dos trabalhos mais importantes de quase
,
sabe, da estrutura e funcionamento de uma comunidade historiadora ainda todos os participantes da coletânea -a década de 80. Naturalmente, poder­
bem pouco conhe�ida entre nós. Muito interessante., enfim, a exposição crí­ se-ia lamentar 4 ausência daqueles nomes nossos velhos conhecidos... Não
tica de Antoine de Baecque acerca do Bicentenário da Revolução, pois, se penso que se deva realmente cobrar essas chamadas presenças obrigatórias.
os números são impressionantes, mais ainda o são as estratégias e mecanis­ Como logo o leitor irá perceber, a injeção de perspectivas diferentes elabora­
mos postos em prática a prete�to �aquela comemoração vishndo, de fato, das por historiadores 1el:tiv:imente nove� pode ser extremamente positiva.
afirmar uma presença cultural em crise - a francesa - à sombra do poder Abertura, juventude, tudo enfim se condensa num certo padrão diante
simbólico in�rente à ,nemória da Revolução Francesa. da crise que hoje parece estar na cabeça de todos os historiadores, padrão
Antes desse último bloco, inseriu-se um documento da maior importância este que incorpora alguns pontos consensuais: 1-Chamemos ou não de cri­
-uma entrevista com Pierre Vilar-sob o títuloA Memória Viva dos Historia­ se a atual situação da historiografia, o fato é que problemas existem na ofici­
dores. A escolha merece todos os elogios. Afinal, Vila:- é o mais antigo dentr\; na da história, embora a natureza e alcance de cada um deles e a das respos­
os historiadores franceses vivos mas é também o menos procurado pela mídia, tas e/ou soluções dos historiadores seja algo ainda muito problemático; 2 -
provavelmefl:te por não ter sido nunca um analista ortodoxo e por ter sido A existência de tais problemas não significa necessariamente uma ameaça
sempre um historiador identificado com p0sições teóricas marxistas. Escolha ou anúncio de desintegração próxim� mas, antes, um verdadeiro desafio,
curiosa também, se se tem presente a ressonância atual de perspectivas ditas no sentido positivo, principalmente se daí resultar, para o historiador, o aban­
pós-marxistas no contexto do chamado pós-moderno! Estão portanto de para­ dono definitivo de sua indifrrenia e/ou sectarismo teóricos e a aceitação da
béns os organizadores, pois, ousaram apresentar-nos Pierre Vilar de �rpo intei­ necessidade de refletir seriamente sobre a natureza de seu próprio/azer. _3 -
ro, vivo e lúcido como de hábito; um historiador competente, sério e coerente. Não há lugar, na história-disciplina, para o ceticismo ou o relativismo radi­
Antes de terminar, creio que são oportunas duas observações finais - cal. O historiador continua a ser, por definição, um realista: a matéria do
sobre o carater inovador da obra e a visão da crL�e da História que dela conhecimento histórico é sempre a História, o singular coletivo no sentido
podemos deduzir. utilizado por Koselleck; quer designemos :i História como a realidade ou o
Inovadora, esta coletânea assim se caracteriza de· duas formas pelo passsado, o fato aqui essencial é sua existência real, e sua acessibilidade ao
menos: por ser francesa e apesar disto não se apr-esentar como uma obra tipo de conhecimento específico e verdadeiro que chamamos de conheci­
fechada, do ponto de vista metodológico; pela juventude relativa de seus mento histórico. As dúvidas existem, não s5o de pequena monta, e têm mui­
colaboradores e assim não incluir, como é de hábito... os famosos nomes con­ to a ver com o descrédito em que caíram as tradicionais ambições empiristas
sagrados e quase obrigatórios da historiografia gaulesa. e teorizantes embasadas no ·pressuposto d3 apreensão/explicação da totali­
Francesa, esta obra não sumen�e inova com,1 surpreende pelas pers­ dade histórica. Ao proporem a pluralidade dos passados recompostos pela
pectivas que seus autores assumem em face da tradição historiográfica das atividade dos historiadores, os colaborado res deste livro não pretenderam
Ann.ales - reconhecimento genérico, muitas dúvidas, algumas críticas e com isto abrir mão do mais essencial: que a h:stória seja uma escrita, que
1
18 PASSADOS RECOMPOSfOS

sua forma intrínseca seja a na"ativa, que o discurso histórico tenha tµdo a
ver com a retórica. Trata-se de aquisiçõ�s import'lDtes sem dúvida alguma. INTRODUÇÃO
O decisivo, porém, é que não se perca de vist:\ a caracidade desse discurso
de dizer algo verdadeiro a respeito de uma realidade passada que constitui
seu referente extradiscursivo. Logo, p�r mais que se pretenda o inverso, o
hi�toriadcr n:io é nem pode ser um autor de ficção pois não é livre para
inventar, imaginar e interpretar - o exercício das suas faculdades criativas e
interpretativas está limitado pelas evidencias documentais disponíveis no
seu próprio tempo e lugar. É_ a partir de protocolos dP. verdade que se identi­
ficam, em derradeira instânda, a história e o historiador como tais.

Notas
1 Os "Tonpos''do Século, ou o Crepúsculo da Consciê11cia Histórica, in Gil, Fernando (Org.),
Balanço do Século. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, pp. 237/250.
2
O Irracional, o Misterioso, o Enigmático, in Gil, Ferna!ldo (Org.), op. cit., pp. 105/117.
3
Cardoso, Cirô F. S., E11saios R�cio11alistas. Rio de Janeiro, Campus, 1988.
' Dumoulin, J. et Moise, Dominique (Org.), L "liistorien. enlre I'etli11dogue et /e futuro­
/oga,?. Paris, Mouton, J 972.
s Diversos autores - Ecrire l'histoire du temps présent. Paris, CNRS, 1993.
"Vilar, Pierre,/11iciació11 ai vocabulario del a11áli.-;is histórico. Barcelona, Critica/Grijalbo,
1980.
7 Anderson, Perry, O Fim da História. De Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
11
Chartiea, R., A História Cultural. E11tre práticas e represemtações. Lisboa, Difel, 1990;
· Slcinncr, Quentin, The Retum of Gra11d Ti,eory i11 the Hwna11 Scie11ces. Cambridge,
Uru,-crsity Press, 1991.
"Zai<bn Filho, Michcl, A crise da razão histórica. Campio.;as, Papirus, 1989.
111 Doss:, François, le tourna,:t illterprétatif et pragmalique d,e J 'historiograpl,ie fra11çaise,
Recife, Simpósio da ANPUH, 1995, texto mimeo.
11 Eltoo. G. R., Retum to Esse11tials. Some reflectio11s 011 doe present stale o/ 1,istorical
stud)·. Cambridge, U niversity Prcss, 1991.
•: Paris.. Gallimard, 1974, 3 vols.; trad. bras.: Rio de Janeim, Francisco Alves, 1976, 3
vois.
'-' Ve)t>e, Paul, Comme111 011 écrit l'/,istoire. Essai d'epistermologie. Paris, Seuil, 1971.
'" foc;oult, Michel, l 'Arc/,éologie du Savoir, Paris, GallimJlrd, 1969; Idem, L 'Ordre du
DiKours. Paris, Gallimard, 1971.
u Rctz - CEPL, Paris, 1978.
JNTRODl'ÇÃO

Em que Pensam os Historiadores?_


JEAN BOUTIER E DOM/NIQUE JULJA

Quando, no silêncio da abjeção,


só se ouve e retinir d:1 corrente do escravo e a voz
do delator; quando tudo treme diante do tirano e é tão
perigoso .estar em suas graças ou merecer sua desgraça,
àparece o historiador, encarregado da vingança dos povos.
·. Nero prospera em vão, Tácito já está no Império.

Chateaubriand
Le Mercure de France
4 de julho de 1�07.

Em que pensam os historiadores? A questão parecerá a muitos uma


piada pois, ao contrário do que ocorre com_ os filósofos, não se espera
dos historiadores que sejam virtuoses do conceito, nem que elaborem
complexas arquiteturas· teóricas. Tanto mais que, à exceção de alguns
textos híbridos entr� biografia e discurso do método, eles não são dados
à auto-análise. É verdade que, desde os anos 60, surgiu· o hábito de
elaborar, episodicam�ntt:, espécies de inventários, conseqüência da ex­
pansão sem precedentes que o conhecimento histórico conheceu a partir
do fim da última Guerra Mundial. Com a conquista _de novos objetos e
de novos territórios, a acumulação de trabalhos eruditos, o aprofunda­
mento dos métodos, o avanço da informática, a prática do historiador foi
grandemente renovada. A aceleração das mudanças nos últimos anos
chegou a levar certos historiadores a falar, na França e fora dela, de
incertezas, de dúvidas, de crises.
A presente coletânea se inscreve assim na urgência de uma reto­
mada da reflexão sobre a profo;são de historiad?r. Suas ambições são,
todavia, modestas: nem balanço sistemático, nem manifesto de uma nova
"nova história", ela pretende primeira:nente destacar a "longa marcha"
das pesquisas históricas de cinqüer.:a anos para cá. A empresa é difícil:
a extraordinária internacionalização da pesquisa histórica, a diversidade
22 pASSADOS RECOMPOSTOS
.! .f:� rt. .
,.:-
Introdução 23

das abordagens, a massa das publicações tornam impossível um panorama A segunda série de questões veio do div6rcio flagrante e sentido
exaustivo, mesmo restrito à escala francesa. Pr{!Cisaremos então nos como intolerável entre a histó�ia universi.tária por um lado e a vulga­
contentar em esboçar as grandes "linhas de fuga" de uma historiografia rização histórica· tal como .era praticada - mediocremente - por histo­
abordada principalmente a partir do ponto de vista francês. Não que a riadores amadores pouco informados das renovaç9es da historiografia,
"esco!a histórica francesa"·constitua aincla um modelo: se efa mantém um por outro. Mudança de geração? Sentimentn de um dever a ser cumprido
!'eal d!namismo, há muito tempo não possui mais o monopólio da inova­ como já havia sugerido Henri-Irénée Marrou em De la r.onnaissance
ção metodológica. Tant0 quanto possível, portanto, conduziremos nosso historique [Do conhecimento histórico]2? Üll simplesmente pressão de
olhar para além das fronteiras. uma demanda social crescente, satisfeita por editores dinâmicos? O fato
Não procuraremos aqui defender um conjunto coerente de propo­ é que os historiadores profissionais continuam aceitando a tarefa de es­
sições. Nem por isso cairemos em uma pseudo-imparcialidade insípida e crever livros d·estinad?s ao grande público mstruído. A partir dos anos 50,
enganosa. Engajados em trabalhos e discussões, compartilhamos com Lucien Febvre concebera uma nova coleção, "Destins du Monde", que
vigor de certas convicções: seria desonesto dar a ilusão de· calá-las. Ao aprc,sentava amplas sínteses realizadas por historiadores profissionais3 •
contrário, esta coletânea pretende participar, no mesmo plano, de alguns "Les grandes civilizations" (Arthaud), coleção dirigida por Raymond
dos debates reais da atualidade. Bk>ch - alguns volumes conheceram uma difusão sem precedentes, como
a Civilisatiun de l'occident médiéval [Civilização do Ocidente Medieval],
O exame periódico de consciência · de Jacques Le Goff - responde, de uma form� mais sistemática, às mesmas
Não é de ontem que ós historiadores se inter.-ogam sob:-e o estatuto preocupações: "Esta coleção - esclarece o editor - corresponde a uma
de sua própria disciplina. Às impaciências de uma geração emergente necessidade nova. Ao desejo de uma leitura agradável, à necessidade da
frente às certezas da histúriografia instalada, às inquietações de uma síntese e das amplas visões de conjunto se acrescentam agora, entre todos
corporação ciosa na defesa de seu território, vêm. por vezes se misturar o,s leitores, o gosto pela precisão, a exigência �e um contato direto com
as reflexões de solitários, cujo lúcido diagnóstico é mal recebido por estar

'
os documentos e os monumentos, a necessidade ainda de um guia que
nas antípodas das correntes dominantes de uma profissão satisfeita com treine o leitur para a análise e o oriente para pesquisas mais especializadas.
seus pressupostos e com seu patrimônio. Apenas a partir dos anos 1960, Assim, nos esforçamos por resolver esse problema dirigindo-nos a alguns
entretanto, surgem as primeiras tentativas sistemáticas e coletivas de eruditos cujo talento de escritor, cuja ampla cultura, a prática de um longo
reflexão sobre a atividade do histodacor, de questionamento de alguns de ensino designavam para levar a bom termo um problema tão complexo".
seus aspectos. Tais tentativas resultaram, provavelmente, de três séries de A vulgarização repousa sobre as mesmas exigências de cientmcidade das
fenômenos, independentes umas das outras. publicações eruditas, o que, por vezes, confunde suas fronteiras: A Re­
A primeira está ligada às transfarmações rápidas do ensino secun­ volução Francesa de François Furet e Denis Richet, que suscitou um
dário, tornado ensino de massa: num momento em que as matemáticas - debate importante, aparece em dois volu.;nes luxuosamente ilustrados da
e particularmente a matemática moderna - substitufa o latim como critério editora Hachette {1965-1966).
de classificação das inteligências, a cultura histórica seria fundamentalmen­ A partir de agora, o "belo" livro vale tanto por seu texto quanto pela
te necCS$ária à formação do homem moderno? Os historiadores travaram qualidade de suas imagens. Aqui nasceu um diálogo regular - que não era
duras batalhas para manter o lugar da história nos programas diante da fácil - entre a pesquisa de ponta e �m público cada vez mais amplo
invasão das ciências exatas, consideradas mais "úteis", para sublinhar seu (renovado, de resto, pela explosão d0-; efetivos universitários). Cada grande
valor "existencial" e cívico, seu antigo papel, insubstituívél, de magistra casa editora tem, doravante, o dever de p•�"ISSuir a sua ou as suas grandes
vitae: 1 Fernand Braudel oú Jacques Lc Goff, introduz.indo no ensino secun­ coleções históricas. Trata-se de vastas síntc:�es, com a coleção "Arts, ldées,
dário a história das civilizações, t�I como ela se de��volvia então em tomo Histoire" (Artes, idéias, histórias], criada em 1964 por Albert Skira, com
da revista Annales, tiveram aqui um papel decisivo. os três v1Jlumes ,fo Georges Duby, Adolescence de la chrétienté occidentale
24 PASSADO� RECOMPOSTOS Introdução 2 5
(Adolescência da cristandade ocidental] (1967), L"Europe des Cathédrales haver c�nsagrado algumas páginas à definição da história, ao tempo e ao
· (A Europa das catedrais] (1966), Fondements d'un nou':'el humanisme espaço, o volume se desdobra seguindo uma arquitetura cl�ica, onde a
[Fundamentos de um novo µumanismo] (1966),. ou as diferentes séries da parte reservada às técnicas (as famosas ciências ditas "auxiliares") é
Histoire de France [História da França] das Éditions �u Seuil, h1auguradas priffiordial: "pesquisa metódica dos testemunhos", "conservação e apre­
pela Histoire de la France Rurale [História da França rural] (1975). Os sentação dos testemunhos", "e,cploraçio cótica dos testemunhos"5•
editores se lançam ainda a uma larga difusão de trabalhos origina�. No No mesmo momento, vários colóquios e números especiais de
momento em que F. Braudel lança uma ambiciosa coleçã:> interdisciplinar revistas inauguram um1 reflexão mais exigente: "A carência de reflexão
- a "Nouvelle Bibliotheque scientifiq�e" [Nova Biblioteca Científica] sobre o que. fazem, de lucidez de seu sentido, entre os historiadores
(Flammarion)-, a coleção "Histoire sans frontiêres" [História sem frontei­ profissionais - nota Alphonse Dupront - tem algo de estarrecedor. ( •..]
ras] (Fayard; 1966), dirigida por,François Fure! e De11is Richet, pretende Se a conversa -girou sobre métodos, e ainda assim muito pouco, já é mais
ocupar o vazio que existe "entre o jornalismo histórico fundado sobre a do que tempo de nos perguntarmos, como homens de boa fé, quanto à
anedota e as t�ses inéditas ou dificilmente acessíveis", cobrir o espaço clareza do que fazemos e para que servimos"6• A discussão prossegue no:;
"entre a curiosidade de ontem, muito comull'!ente limitada ao passado anos 1970, desde Aujourd'hui l'histoire [A histó:-ia hoje] que; no auge da
nacional, e a de hoje, extensiva à Europa e ao IC.undo", restabelecer uma vaga estruturnlista, pretende reafirmar a fecundidade de um retomo de
continuidade "entre as grandes obras estrangeiras inéditas em francês e MMx,7 até ao vasto balanço da Nouvel!e Hk'to:re [Nova história] (Paris,
as pesquisas novas que amadurecem na França e fora dela": daí o apelo Retz, 1978), dirigida por Jacc;ues Le Goff, Roger Chartier e Jacques
a grandes nomes - é aí que· Pierre Goubert publica, em 1968, seu Louis Revel, prolongada pelo Dictionnaire de:s scit!nces Ílistvriques (Dicionário
XIV er 20. millions de franç(l.is [Luís XIV e 20 milhões de francese�], um das ciências históricas] (Paris, PUF, 1986), dirigida por André Burguiere8•
dos primeiros best-sellers da edição histórica - e uma política inteligente Mas essas duas obras, na órbita das AnnGles e da École des Hautes Études
de tradução de obras de peso como as de Eugenia Garin, L'Éducation de en Sciences Sociales (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais], já
l'homme moderne [A educação do homem moderno] (19�8) ou de Eric
ratificaram a explosão da historiografia em múltiplas direções; sobretudo,
J. Hobsbawm, Les Primitif.s de la révol:e dans l'Europe moderne [Os passando-se do balanço sistemático ao arbitrário de ckssificação alfabé­
primitivos da revolta na Europa moderna] (1966). Numa perspectiva si­ tica, o instrumento de trabalho sobrepuja uma encenação fundamentada
milar7 cs primeiros títulos da "Bibliotheque des Histoires" [Biblioteca das do método. Por isso é que o ambiciosoFaire de l'histoire [Fazer história],
histórias] (Gallimard), sob a direção de Pierre Nora, surgem em 1971, publicado em três volumes em 1974 e tornado rapidamente um clássico,
quase ao mesmo tempo em que os da coleção "Universe historiquP." constitui o balanço mais revelador de um verdadeiro momento historio­
(Universo histórico] (Seuil), dirigida por Jacques Julliard e Michel gráfico, que ele permite por isso mesmo apreender9•
\Vinock. A própria escrita da história sentiu os efeitos dessa abertura4 • 1974: o momento "Faire de l'histoire" - vinte anos depois, como
Sobretudo - é a última série de questões.. certamente a mais im­ e
lemos essa "obra coletiva e diversa" qoe pretendia "ilustrar promover"
p3rta::te - a história é levada a redefinir problen:;.iricas, métodos e objetos os "caminhos da pesquisa histórica hoje" - um "novo tipo de história" -
face às ciências sociais e humanas - basta peosar no impulso da socio­
para "esclarecer a história a ser feita", sem ser entretanto explicitamente
logia ou da psicanálise - no momento em que a impressionante expansão
programático?
de seu questionário e de suas curiosidades afa rga continuamente seu Os subtítulos de cada um dos volumes manifestam esse interesse
-território", o que suscita, desde a década de 1960, numerosas publica­ pelas mutações recentes da profissão: ...Novos problemas", que repensam
ções. Algumas delas conservam um aspecto muito t:adicional, tal como a definição da história sob a "provocação" das outras ciências humanas;
o vobme coletivo da E11cyclopédie de la Piéiade [Enciclopédia da "Novas abordagens", que modificam o:s recortes tradicionais em diferen­
plêiade], L'Histoire et ses méthodes [A história e seus métodos] (1961), tes setores bem balizados; "Novos objeLos", que em sua bulimin devorante
i' dirigida por Charles Samaran, antigo diretor dos Archives de France: após a história apropria e que se desenrolam, segunc!'l uma lista à Prévert, do
26 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 27

clima à festa, passando p�lo inconsciente, o corpo doente, ·os jovens e a M. Vovelle; "um lado capital de uma história do essencial"11• Quanto a
cozinha. U,na breve sociologia dos autores destaca três traços fundarµen­ Georges Duby, se ele afirma de saída que "a história d:is sociedades deve
tais. Quase . todos são "parisienses", 30 em 33, e apenas um é "provin­ fundar-se em uma análise das estruturas materiais", é para acrescentar,
ciano" (muito esp�ial, já que se trata de Paul Veyne, futuro professor do imediatamente, que os progressos feitos pela pesquisa histórica nos do­
College de France e dois "estrangeiros"' (Je�n Starobinski, professor em mínios da economia, da demografia e da ecologia no curso dos anos 1940-
Ge:ieora, e H. Zerener, professor em Harvard). Em segundo lugar, um 1970 obrigam à "elaboração de novos questionários" e particul�miente ao
terço dos autores (11) vêm da sexta seção da École Pratique des Hautes estudo dos sistemas de representações, de valores e de crenças a partir
. Étud� presidida então por J. Le Goff; um outro terço (12 autores) dos quais os homens modelam seus comportamentos.
reparte-se entre as diferentes universidades parisienses nascida::; da frag­ Enfim, F aire de l'histoire [Fazer história] a�ompanha - e ao mesmo
mentação que se seguiu aos acontecimentos de m aio de 6?: Paris-! (4), tempo anuncia - a pas�1gem de uma paradigma onde a análise macro­
Paris-IV (2), Paris-VII (3), Paris-VIII (3). Os restantes pertencem aos econômica era primordial para uma história que focaliza· os sistemas
grandes estabelecimentos científicos: College de France (3), CNRS (3), cultun-,is compreendidos em ·um sentido muito amplo. Nem por isso o
Institut d'études politiques (1). A maioria dos autores atingiu a casa dos livro se prende a terminologias em moda: Jacques Le Goff critica a
quarenta: poucos jovens, ainda menos "grandes antigos", as exceções imprecisão e a maleabilidade do termo �entalidades"; mas não se trata
sendo A. Dupront, A. Leroi-Gourlian e P. Vilar. A &usênda m�is espan­ de abandonar O terreno, mesmo se 00 instrumentos conceituais e os
tosa é a de Fernand Braudel; mas ele poderia aceitar não ser o mestre­ métodos aptos para o seu esquadrinhamento ainda faltam.
de-obras? Caberia notar optras ausências, enhe cs "inovadores" recen­ Em segundo lugar, Faire de l'histoire preludia uma fragmentação da
tes, como Maurice Agulhon ou Michel Vovelle. No essencial, trata-se disciplina. E. Le Roy Ladurie, ao afirmar em seu prefácic a Paysans du
de uma geração formada no período imediatamente p6s-guerra, que dá Languedoc [Camponeses do Languedoc) (1966) ter-se lançado à aventura
a ver senão um "pano�ama_ da história atual" - o krmo é explicitamente de uma história "total", suscitara viclent:as críticas. Pierre Vilar, apoian<fo­
recusado -, ao menos as arestas mais vivas da disciplina e seus desea­ se em um retomo teórico a � arx sensivelmente diverso da lei�ra operada
volvimentos mais recentes. então por Louis Althusser e seus dis=ípalos, é quase o único a defender,
A proximidade _dos autores com a última geração de responsáveis apesar dos "sarcasmos", a ambição de uma história total. Com malícia,
pela revista Amzales explica em boa parte a especificidade do livro. Ele Pierre Vilar recusa-se a deixar a presa · pela sombra, a totalidade pela
igno� desse m�o, uma história diplomática e política, muito tempo noyidade: "Toda história 'nova', privada de ambição totalizante, é uma
domin:ada pela figura de P. Renouvin, e marginaliza uma história econí:>­ história previamente envelhecida". Ao contrário, para F. Furet, a "apreensão
mica e social construída sobre o modelo elaborado por C.-E. Labrousse. do global" não é mais que "o horizonte da história": "A historiografia
F. Furet convida a nos voltarmos para a análise "político-ideológica" das contemporânea só progride na medida em que ela delimita seu.projeto[ ...].
sociedades do passado e contesta a evidência segundo a qual o "dinamis­ Mas a análise global do 'sistema dos sistemas' hoje provavelmente está fora
mo da historia da França" seria de natureza econômica: "O investimento de seus meios"12• Michel Serres é ainda mais categórico: "Os sistemas de
escolar., cultural no sentido amplo, e oficial (através dos serviços públi­ totalidade sem exterior, de ·explicação ou compreensão universais e sem
cos), pode ter tido aí um papel mais fundamental que o aumento do lacunas, estruturados por diferenças, leis seriais e quadros sin6ticos,
º.
produto nacionar'1 Para Pierre Chaunu, encarreg:ido todavia de tratar da hierarquizados por referências e funcicnando a motor, ou de planos
história econômica, a história serial e, "ontem, econômica e social", deve escalonados como camadas ou estrat�.. são dessueto� tanto quanto seus
se lanç.at "de assalto sobre o terceiro nível, a saber o essencial, o afetivo, modelos mecânicos de funcionamento, como variações ortogonais a uma
o mectal, o psíquico coletivo... melhor dizendo, os sistemas de civiliza­ ciência morta" 13• O ecumenismo de Fc;ire de l'histoire desemboca numa
ção". Não apenas tratar da civilização escrita ou da imagem, mas estudar forte contradição entre os autores, pouco ciosos de uma coerência de
o sexo. a vida e a morte, para utingir, a exemplo do livro "pioneiro" de conju'lto e'll suas proposições.
28 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 29

A dispersão das referências teóricas é, de resto, proporcional às nitidamente o deslocamento dos interesses dos historiadores à "crise de
divergências. que separam os autores em sua concepção da !tist6ria. Os civilização que afeta, desde 1962, setor a setor, os países que chegam,
grandes ancestrais, Marx e Freud, não estão ausentes. Mona Ozouf su­ progressiva e setorialmente, à era p6s-inãustrial. A crise põe em questão
blinha, a propósito da historiografia acadêmica da festa, o "grande ausen­ as �ransposições laicas dos valores de civilização de cristandade realiza­
te das interpretações", a saber, a "necessidade coletiva[••. ], a necessidade das no século das Luze3, a transposição escato!ógica da finalidade cristã
pulsional da festa"14• A psicologia das profundezas está presente na con­ sobre um crescimento por muito tempo automotivante" 17• Distinguem-se
tribuição de A. Dupront sobre a antropologia religiosa, ainda que _beba' mais com muita nitidez aqui as inquietudes do historiador- e um tanto teólogo
em Jung do que em Freud. A contribuição mais aberta às interrogações da - diante da perda de sentido em nossas sociedades contemporâneas. O
psicanálise é, sem sombra de dúvida, a de Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, acontecimento - como poderia ter sidC' diferen�e depois dos "aconteci­
que sublinham que o corpo, er,. sua alteridade, é •o limite onde tropeça e mentos" de maio de 68? - conquista até o direito a uma colaboração
pára" um saber "agressivo e devorador", que deseja abolir a diferença: a particular, a de P. Nora, enquanto que asAnnales não lhe reservavam lugar
história não l!eve mascarar muito rapidamente as falhas que· atravessam os algum. Mas ele é tratado sobretudo sob seu aspecto mediático "�e atu­
. "textos" de ontem com hipóteses redutoras, mas dar lugar aos silêncios, alidade" e sua projeção espetacular contemporânea; e para além �e uma
atenta ao irJ'ortúnio, ao sofrimento que s6 se diz indiretamente15• fenomenologia formal, o autor, ao comparar o historiador ao geólogo
Quanto ao retorno a Marx, n.inda que a abra pretenda romper com sobre um vulcão em erupção, designa mai� ponti> de vista do que os
o modelo dominante de história econômica, ele surge em vários níveis. O i.nstrumentos para tratar o problema.
objeco prifl.cipal do debate é, no entanto,· a leitura filosófica que Louis Mas é talvez M. De Cert�au quan ma�s lucic!amente situa a falha
Althusser acaba de propor em Pour Marx[Por Marx] e Lire /e Capital[Ler ii:itroduzida pelo acontecimento: para ele, o historiador não deve renunciar
o Capital]; toda a demonstração de· Pierre V ilar se levanta firmemente jamais à relação qu� as séries, as regularidades percebidas "mantêm com
contra seu dogmatismo teórico, seu hegeHani� seu desconhecimento 'particularidades' que lhes .escapam", mas d�ve ocupar-se do particular
abissal da prática histórica contemporânea: "A descoberta de Marx não é como "limite do pensável" 18• Assim ele pontua, atravé:; do modelo do­
essencialmente nem de ordem econômica ,1em de ordem teórica, mas: de minante da história serial, o movimento que conduz ao interesse pelos
ordem sócio-histórica. Ela está no desnudamento eia contradição social que "restos" e pelas "diferenças": "O historiador não é mais o homem capaz
implica a formação espontânea, livre, da mais-valia ('acumulação do ca­ de constituir um império. Nem visa mais o paraíso de uma história global.
pital'), no conjunto coerente do modo de produção que a assegura, e que Ele chega a circular em torno das racionalizações conquistadas. Ele tra­
ela caracteriza".' 6 A fidelidade a Marx encontra-se também no textJ de balha nas margens. Sob esse aspecto, ele se toma um erradio"19•
Micbel de Certeau que, recusando o estatuto "reservado" que Raymond Vinte anos depois. - Forçoso é constatar hoje que a história dos
Aron atribuía aos intelectuais, sublinha que os cortes epistemológicos são anos 90 difere sensivelmente daquilo que, por um momento, apresentou­
indissociavelmente sociais e intelectuais. º.
se como a "nova história"2 É bem verdade, a mudança operou-se com
Em verdade, Paire de l'histoire é um livro datado em suas referên­ freqüência no sentido diagnosticado ou sugerido por Paire d� l'histoire.
cias intelectuais. As obras maiores que, na França, inauguraram novas O "território do historiador" prosseguiu sua expansão com a introdução
questões nas ciências humanas, de Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, de novos objetos: a história das "atitudes coletivas", diante da morte
Michel Foucault ou Louis Althusser, subentcudem as colaborações de (Philippe Ariês, Michel Vovelle), do medo (J. Delumeau) ou da vida (J.
muitos autores. Era o apogeu do período "e:::truturalista". Por outro lado, Gélis), a história dos gestos (J.-C. Schmitt), das cores (M. Pastoureau),
os trabalhos da escola de Frankfurt- então disponíveis apenas em alemão dos prenomes (L. Pérouas, J. Dupâquier) ou dos "dispositivos afetivos"
- eram pouco conhecidos: apenas Paul Veyne e sobretudo M. De Certau (A. Corbin). Novas abordagens continuaram surgindo, levando vastos
fazem referência à sociologia crítica de Jürgen Habermas. O livro é por s�tores a uma reformulação das análises, como a análise das formas da
isso sensívd às mutaç6.!s que afetam o tempo presente? P. Chaunu liga sociabilidade no âmago da história social (M Agulhon), a. inscrição no

lil
30 PASSADOS RECOMPOSTOS lntrodv.ção 31

�spaço das relações e das dinâmicas econômicas de longa duração através a L'Histoire économique et sociale du monde [A história econômica e social
d.is "economias-mundos" (1. Wallerstein)21, o relacionamento das ativida ­ do mundo] ou a L 'Histoire de l'édition française [A história da edição
des econômicas, das estruturas demográficas e das configurações sociais francesa]29, · mais recentemente ainda, e �b a iniciativa do editor italiano
segunde o modelo - hoje fortemente discutido - da "profo-indústria"22, Laterza, a L'Histoire des femmes en Occident [A história das mulheres no
ou a construção da memória nacional pelo trabalho com os "lugares de ocidente], seguida de uma L'Histoire des jeunes [A história dos jovens] e
memória"23• Certos domínios, já definidos, adquiriram visibilidade e le­ agora de uma L'Histoire de l'enfance (A história da infância].:.. nem pela
gitimidade, como a história das empresas, industriais, comerciais ou fi­ inércia das práticas historiográficas. A história social e eco_nômica, por
nanceiras24. Outros constituíram-se, quase que totalmente, como a "his­ muito tempo dominante na França, apagou-se diante do avanço da história
tória do tempo presente" - que é extremamente difícil de se pensar, cultural, mas também da história política,. em história contemporânea30, e
considerando-se a função ctítica da história frente às reconstruções da mais ainda em ,:1ist6ria medieval3 1 e moderna, como t�temunham, por
memória ( ou da amnésia) - que o CNRS institucionalizou ·ao criar, em exemplo, os importantes tràbâlhos consagrados à "gênese do Estado mo-
1978, um Instituto de história do tempo prescnte25 • ' ·demQ"32• A rigidez dos quadros "estruturais" (o econômico, depois o social,
Entretanto, semelhante criação não era tão simples. Por causa, depois o mental, para retomar a trilogia de E. Labrousse) desgastou-se, a
antes de tudo, da antiga e tenaz crença de que a história se institui sobre quantificação - uma das "linguagens de descrição do mundo" preferidas
a separação entre o passado e o· presente - ilnsfo todavia denunciada peles historiadores do pós-guer;a - perdeu terreno, mesmo que, como
desde há muito - para que exish entre o historiador e seu objeto a explica J .-Y. Grenier, per:naneça sendo um instrumento heurístico
distância necessária à "objetividade": só o recuo iibertari:l das "paixões" insubstituível. A realidade histórica é cada vez menos examinada como um
do momento e a história "imediata" deveria ser deixada para o jomàlista. objeto dotado de propriedades que preexistam à análise, mas como um
Em segundo lugar, porque a escola histórica francesa foi fortemente "conjunto de inter-relações que se movem no interior de configurações em
;µarc-.ada pela onipotência concedida à longa duração em detrimento do ��tante · adaptação"33• Simona Cerutti aqui o .de�onstra a partir do pro­
acontecimento: F. Braudel disse sua desconfiança frente ao tempo curto, blema das classificações s<;)Ciais.
"a mais caprichosa, a mais enganosa das durações", pois "tal como a Numa palavra, a passagem das massas às margens, das análises esta­
sentiram, descreveram e viveram os contemporâneos", reconhecendo, en­ tísticas aos estudos de casos, dos objetos às práti�as e às lógicas sociais (como
tretanto, que é a história "mais apaixonante, mais rica em humanidade"26. demonstra Dominique Julia ·a ·propósito da multidão) provocou, entre outras
Pois foi o cará!er traumático dos acontecimentos que inauguram nossa coisas, a .reintrodução dos agentes nos grandes processos !:istóricos e a
contemporaneidade - a Segunda Guerra Mundial e o genocídio nazista diversificação dos instrumentos analíticos. Passar a levar em consideração,
- que tomou necessária a emergência da história do tempo presente. por exemplo, a diferenciação social dos papéis sexuais em um número cres­
François Bédarida recorda aqui mesmo a importância. do papel do exame cente de domínios (cf. o artigo de Olwen Hufton) não foi pequena trans­
por peritos e a responsabilidade social do historiador frente à impostura formação. Notemos igualmente que a chegada, doravante maciça, de histo­
dos negacionistas. Está em jogo a relação da história com a verdade assim riadores estrangeiros ( americanos, ingleses, mas também italianos ou ale­
como de sua função cívica, sem que seja certo que possamos jamais mães) como Robert Damton, E. Weber, R. Paxton ou T. Zeldin, o desen­
"historicizar� totalmente o fenômeno "nazismo", tanto o horror dos cam­ volvimento das grandes revistas anglófonas como French Historical Studies
pos toca os próprios limites de nossa cultura; como escreve F. Furet: "Há [Estudos históricos franceses] (a partir de 1962), French History [História
um mistério do mal na dinâmica das idéias políticas do século XX"27• francesa] (a partir de 1987) ou Modem aNJ Contemporary France [França
Os vinte anos que nos separam de Faire de l'histoire não foram então moderna e contemporânea], favoreceram a renovação das abordagens.
marcados nem por uma falta de dfuanismo- as sínteses coletivas são muito Por que, apesar da riqueza e da abundância de um tal panorama -
numerosas, como as histórias da França 1 ·rural", "urbana", mais recente­ que além do mais é necessariamente inc.omplcto - certos historiadores
mente "religiosa", aL 'Jlistoire de la vie privée LA histtSria da vida privada]28, fal:im nãc apenas de incertezas, de dúvidas, mas também de crise? A
32 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 33

questão � tanto mais importante por não se restringir à França, mas


A profissão de historiador hoje
repetir-se na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos34• O fenômeno não
A história tende a tomar-se u;:n patrimônio comum. Por conseguinte,
datà de hoje: o primeiro alerta remonta ao fim dos anos 70 - momento
todo o mundo pode tomar-se historiador, de sua família, de sua cidadezinha,
de euforia persistente sob o signo da "nova história" -, com o artigo
de sua região, de sua profissão, de sua disciplina ... Diferentemente da
de Lawrence Stone que, à contracorrente de vtrias décadas de prática
histórica, diagnosticava um "retorno ao relato"35• Ele chegar:a a se macemática, da biologia, até m\!smo da sociologia ou da antropologia,
integrar em uma "crise ge.ral das ciências sociaisu36• Trata-se simples­ acontece &inda, muitas vezes, com a história como com a música de
mente de uma transformação dos grandes modelos de inteligibilidade amadores ou a pintura de domingo. Alguns mesmo, como certos juízes de
que, por longos anos, os historiadores utilizaram no exercício de sua Versailles em uma sentença famosa ou cer:o antigo conselheiro do príncipe,
"profissão" (cf. artigo d·.1 Philippe Boutry 37)? Trata-se também dos se erigem pura e simplesmente em historiadores. Donde um risco, clara­
desafios que outras disciplinas podem lançar à história quando ela se mente denunciado por Pierre Vilar: no "comércio da história", as "marcas
esforça r,'Jr historicizar o conjunto de realidades sociais, em particular [ ...] estão muito mal protegidas. Qualquer um pode se dizer hist::>riador.
entre os filósofos - trate-se da filosofia analítica, como apresentada aqui [ ...] Contudo, nada mais difícil e raro do que ser historiador ...'141• Vilar
por Pa�cal Engel, ou da filosofia moral e ética - que recusam a acrescentava, é certo, o epíteto "marxista", mas a observação vale mesmo
historicidade n certas realidades, em nome de um sujeito universal e sem CJ l!pítet0. Num�rm,os tex:os recentes.. que remetem à "profissão de
trans-histórico? Não apenas: é o próprio estatuto da história, enquanto historiador" - às suas "regras", como lembra aqui mesmo François Bédarida
óiscipUna científica, que ·a partir de então é posto em jogo. - testemunham a atualidade dn questão. Se a paternidade da expressão
De um relativo co1_1s�nso passou-se a uma confrontação ambígua, pertence a Marc Bloch, numa obra importante, ainda que inacabada42, ela
onde a história, de resto, está longe de se encontrar em uma posição de pertence daí em diante ao domínio público, para englobar a um tempo um
fraque�a. Sob o choque da "virada lingüística" iniciada nos Estados método - um conjunto de operações técnicas, com
. seus instrumentos, seus
Unidos no fim dos anos 6038, e de uma crítica literária que, levando a procedimentos e sua necessária aprendizagem, e critérioc:; de científicidade
extremos as análises de Paul Ricoeur e, mais recentemente, de Hayden - e uma deontologia, não se deve esquecer a dimcn�ão ética do trabalho
White sobre o relato (cf. o artigo de François Hartog), amalgama '�relato", histórico, como de todo trabalho científico. Certamente foram as exigências
histórico ou não, e ficção, a história tomar-se-ia um simples gênero da "história do tempo presente" que devol,.-eram a essa antiga questão toda
literário, e perderia a partir disso toda pretensão a ser também um discurso a sua urgência, enquanto que a reflexão metodológica recente tendia a
de verdade. Ora, recentes proposições da epistemologia das ciências promover o problema da "escritura histórica", pondo como que entre pa­
sociais reinstalam a história no coração das ciências sociais, não como rênteses a imperiosa exigência de verdade-1:3_
a ciência-rainha, mas como um modelo geral de cientificidadc das ciên­ O "pequeno mundo" dos historiadores? - Desde inícios dos anos
cias sociais: J.-C. Passeron considera a todas como "ciências históricas", 70, os efetivos universitários conheceram um crescimento sem precedente.
frente às ciências da natureza, as únicas que estariam submetidas ao Os historiadores titulares de postos nas uci,·ersidades frances,is passaram
modelo popperiano de validação experimental�. de 302 cm 1963 para 155 cm 1991, ou seja, seu número foi quase quadru­
Em conjunturas diversas, segundo as disciplinas ou o país, a "crise" plicado, os professores de história nas universidades italianas passaram de
se enuncia em termos de sobrevivência - Grã-Bretanha-, de futuro - 252 em 1951 para 1.115 em 1983, e passaram de 1.300 em 1960 para 1.700
Estados Unidos - ou de estatuto - Franç:i, Estados Unidos - da história. em 1970 nas universidades britânicas, qu:mdo eram por volta de 30 cm
Será necessário, por ·isso, dramatizar o momento presente pois, como 190044• As conseqüências são numerosas: a pesquisa profissionalizou-se
lembrava recentemente a historiadora americana Joan W. Scott, "aqueles quase completamente, às custas dos ilustres acadêmicos, e, com algumas
que esperam que os momc�tos de mudança sejam confortáveis e isentos exceções, implantcu-se solidamente. O volume das publicações deu um
de conf!itos ;1ão apr�ndc�am história?"40• salto: de acordo ("'.:>m a bibliografia anual internacional de história da França,
34 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 35

contava-se com cerca de 3.000 publicações (livros, artigos, comunica­ para quem a ·vive, mas tende também a reduzir, até mesmo a fazer
ções ••• ) por ano nos anos 1920, 5.000 por ,·o)ta de 1955, 8.000 em 1960, desaparecer, o indispensáve·l "tempo de reflexão".
9.000 em 1963,. 10.000 em 1970; após "Cm decênio de estagnrição, o cres­ Desde os grandes sucessos editoriais dos anos 70 sobre fundo de
cimento foi retomado: 11.000 em 1979, 12.000 em 1985, mais de 15.000 nostalgia rural (Histoire de la France Rurale. [História ·da França
em 1991. Enquanto os "catedráticos" <los anos 1960 podiam ainda dominar rural]), o Montaillou de E. Le Roy Ladurie . . . )-que alguns acreditaram
uma vasta área, a explosão da produção em todos os setores historiográficos poder interpretar como um açambarcamento da �dição de história pro­
levou a uma especialização mais e mais aguda, a despeito da publicação gramado pela "escola das Annales" -, o imaginário de muitos historia­
regular' de review articles ou do desenvolvimento das bibliografias dores foi povoado de best-sellers ou de Apostrophes. A celebridade do
informatizadas. É preciso notar, de resto, que e�sas últimas operam escolhas historiador é uma realidade recente, como o demonstra a contrario um
drásticas, privilegiando fortemente as publicações em inglês, uma vez que panfleto anti-s7mita recente que se opunha ao nome de Marc Bloch para
os instrumentos informáticos mais potentes encontram-se nos Estados a Universidade de Letras e Ciências Humanas de Strasbourg: um nome
Unidos. É verdade, como lembra oportunamente T. Tackett, que o tamaJ1bo , "não conhecido pelo grande público"47• Ela indubitavelmente modificou
da "comunidade" dos historiadores nos Estados Unidos é sem comparação a relação entre pesquisa e edição. Não há dúvida, um bom número de
com a dos outros países do mundo: lá são publioldos a cada ano mais de livros ainda é submetido a um editor por iniciativa de seu autor (33%
7 .000 livros apena3 sob,e a histór:a d�s Estados Unidos e países da América, dos livros publicados no conjunto do setor de ciências sociais). A no­
contra uns 2.500 na França para todo o conjunto das ciências sociais. vidade - não absoluta - vem sem dúvida da crescente importância da
Esses historiadores, mais numeroso� que :nte�, encontram-se tam­ encomenda editorial (22% dos livros publicados48): ao lado das grandes
bém mais freqüentemente para apresentar problemas e resultados em coleções e das séries históricas, ou das biografias, redigidas agora por
congressos ou seminários, em períodos limitados de ensiná em professores universitários titulados, os editores pretendem suscitar obras
universidades estrangeiras, sobretudo· européias (graças aos programas específicas. Georges Duby, que confessa hayer escrito vários de seus
de cooperação como "Erasmus"), mas também americanas. Tal circula­ livros sob encomenda, lhes reconhece o mérito de sacudir a indolência,
ção possui evidentemente muitas vantagens: acelera a difusão dos re­ de estimular a inteligência49• Eles foram particularmente ativos para
sultados, obriga os pesGuisadores à confrontação, nacional e, mais ain­ produzir vastas sínteses, primeiramente em escala nacional, com co­
da, internacional, o que tende a desclassificar uma historiografia muito edições "bilaterais" logo â seguir - o editor italiano Laterza fez disso
estreitamente "hexagonal", em suas questões mais que em seus objetos. uma especialidade, com a ajuda de historiadores italianos� franceses; os
Mas o "colóquio", mais dissimuladamente, toca a atividade dos histo­ volumes são depois propostos para a tradução em outias línguas-, com
riadores de dois modos. A prática da comemor3ção, em escala nacional coleções agora européias, como a dirigida por Jacques Le Goff.
como na França, cm escala mais local como na ltália45, tornou-se uma Esse real sucesso da história como mercado editorial, que mobi­
das fontes de financiamento das reuniões científicas; ademais, uma lizou - desviou? - uma parte - mc1s Gual? - da corporação, influenciou
demanda social forte exige a apresentação de resultados da pesquisa, profundamente as dinâmicas da pesquisa recente? alterou o equilíbrio
para além dos círculos de especialistas, pel� próprios historiadores. entre a vulgarização e a pesquisa? modificou a própria escritura da
Comemoração e "vulgarização" (sem conotação. pejorativa) podem história? Claude Langlois pr�põe aqui uma perspectiva diferente: qual
perfeitamente se encontrar e multiplicar os en�ontros, como foi o caso a edição necessária para a pesqllisa hi:;tórica? Para além das questões
do Bicentenário da Revolução Fra,1cesa. Compreende-se então facil­ clássicas, que tratam da dh:tância entre pesquisa e vulgarização, da
mente o apelo à moderação no uso dos colóqufos, apelo lançado recen­ necessária publicação, em atenção a um público de especialistas, de
temente por Jacques Le Goff4 6 • A transforr:.:ação do historiador em pesquisas austeras e difíceis mas fundamentais, é importante refletir
globe-trotter - um ex�mplo excepcior.:il mas revelador é apresentado sobre o laço essencial que o editor deveria estabelecer entre a pesquisa
aqui por Antoine de 13aecque - é não apena� uma experiência extenuante e � demar.da social. A esse respeito, a França, como a Itália ou a Espanha,
36 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 37

cncontrnrn-se em uma situação em que a maioria das obras históricas é histórica51 . Seus a�anços decisivos repousaram na inventividade de seus
public.ada por editores comerciais, o que assegura uma larga difusão a autores, na importação, mais ou menos selvagem, de noções ·ou de modelos
esse tipo de livros. Na Grã-Bretanha ou nos Es!ados Unidos, ao con­ explicativos vindos c!as ciências sociais, mais do que na crí\ica metódica
trário. o essencial das obras históricas é publicado por editoras das fontes. À margem da "galáxia Mabillon'", o "novo historiador" encon­
universitárias, especialistas do livro "acadêmi�"- Não estaria aí uma trou-se desarmado, nos anos 80, face às teses "negacionistas" sobre a não­
das razões do aprisionamento dos historiadores ingleses nmna torre de existêneia das câmaras de gás e, mais recentemente ainda, diante da aber­
marfim cujos perigos acabam de ser d�nunciados por D. Cannadine? É tura dos arquivos das antigas democracias populares.·
evidente que se, para retomar uma comparação já utilizada, o editor de Em um livro que deve ser meditado, Anthony Grafton nos lembra
história concebe seu produto como uma fábrica de detergente concebe que o desenvolvimento da crítica na éiJoca moderna alimentou-se da
um novo sabão em pó, o ,�istoriador fica dependente. Mas a oposição sutileza inventiva do� falsários52, quer se trate da famosa "doação de
simplista entre lógicas editoriais e lógicas intelectuais negligencia a Constantino" que deveria legitimar o poder temporal do papado medie­
intcrpen<..'�ração complexa do mundo universitário e d0 meio editorial, val53, ou dos tristemente célebres "protocolos dos sábios de Sion", texto
a divisão dos papéis entre diretor de coleção e diretor comercial, os anti-semita posto em circulação no fim do século passado54. Donde, num
risco� de desclassificação, no campo intelectual, do historiador merce­ primeiro momento, uma retomada dos métodos tradicionais da crítica de
nário ... Todavia, que editor atual esperaria quinze anos para que um textos, tlabo, adas no sé�ub XVII e sistematizadcs pela filologia alemã
Marc Bloch lhe entregasse seu manuscrito de La Sociétê Féodale [A oo século XIX, e uma remissão, na falta de coisa melhor, à velha
�ociedade feudal] 5°? A oposição dos dois sistemas não deve, de resto, Jntroduction aux études historique.ç [Intrnduçãc aos estudos históricos],
ser levada longe demais: os editores comerciais franceses se beneficiam publicada em 1898 e recentemente reeditada: C. V. Langlois e C.
freqüentemente das subvenções do Centro Nacional do Livro (CNL), do Seignobos nela assentaram o "método histórico" sobre um tratamento
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), ou do ministério do de documentos que combinava uma críticà externa voltada para a au­
Ensino Superior e da Pesquisa, quando se trata de publicações de caráter tenticidade - a partir da escritura, da língua, d.as fom,as ou das fontes
cientifico. Não é o caso de se ignorar ou denegrir essa entrada da do documento - a uma crítica interna atenta ao autor e suas intenções
história no espaço mercadológico, sobretudo enquanto uma avaliação e assim ciosa do verídico .. Se essas fórmulas simples podem constituir
séria e serena de suas conseqüências não tiver sido realizada. um poderoso antídoto contra·as falsificações de todo tipo em um período
de manipulação mediática e de aproximações apressadas55, é apenas
As regras da profissão imperfeitamente que dão conta da erudição crítica, ainda menos Jas
Não há história sem aplicação rigorosa das regras de uma profissão. práticas atuais da profissão: esse exercício sistemático de comparação
Essa insistente lembrança - cuja compreensão não é imediata, pois eia e confrontação é a um tempo uma "arte racional" e uma "arte de fineza",
remete tanto a princípios formalizados quanto a0 s:zvoir-fa ire não expresso, afastada de toda regra mecânica; M. Bloch já sublinhou suas formas
adquirido no trabalho ou na atividade de "oficin:i" - retira sua origem de muitas vezes antinômicas e .os seus riscos - como o de sul,,stituir uma
inúmeros fenômenos. A "nova história" fundou-se, entre outras coisas, no linguagem da probabilidade por outra de evidência comum56 •
estudo das massas - a verdade é então assegurada não pela operação crítica Não nos cabe aqui retomar os grandes elementos da "profissão de
mas pela "lei dos grandes números" - e na aecusa da divisão entre docu­ historiador" aos quais M. Bloch consagrou, há. mais de meio século,
mcnt·os "verdadeiros" e "falsos" - todo dccumcnto é útil para o historiador; reflexões mais do que nunca funciamentais. Não pode haver história senão
des� modo ela colocou entre parênteses por um tempo a crítica histórica erudita; a coleta metódica dos dados repousa sobre o recurso, freqüente
ma� tradicional, ao mesmo tempo em que clabor.iva outros métodos adap­ ainda que variável segundo as épocas e os lugares, às técnicas "auxiliares"
tad0$ aos novos tipos de documentos mobilizados, como os testes de - ou "ancilares" - cuja longa lista não cessa de se enriquecer, com a
vali<hm�nto :las sérks estatísticas cm história econômica ou cm demografia introdução, por PXemplo, de métodos físico-químicos em arqueologia ou
,;!

38 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 39

cm História da Arte. Uma arqueologia industrial atenta :ios arquivos veio móvel toma aspecto de flutuações cíclicas; se se considera que a sucessão
recentemente desmontar o processo da "engenharia criminal", a partir do das colheitas sob o Ancien Régime é um fer.ômeno aleatório, como afirmar
estudo da construção dos crematórios de Auschwitz57• Neste quadro, os que os ciclos conjunturais das econoú1ias antigas são fenômenos reais? Mais
progressos da história repousam essencialmente sobre uma lógica da recentemente, os efeitos do uso da média nas estatísticas históricas foram
acumulação: acumulação de instrumentos de trabalho e de dados (repertó­ submetidos a avaliação60• Restaria ainda examinar a utilização de noções
nos de arquivos e de fontes, bibliografias gerais ou especializadas, dicio­ importadas de outras disciplinas, variante do ciássico "anacronismo": as
nários, edições de textos, bancos de dados ... ), acumulação de lrabalhos ... noções elaboradas para descrever, digamos, os bororos ou os nuers podem
Mas não está aí o ess�ncial: a qualidade da produção histórica depende do se aplic,u aos aldeões da Borgonha medieval? Muito dificilmente, pois
questionário elaborado pelo historiador; n validade das respostas obtidas "a disciplina da história é, acima de tudo, a disciplina do contexto"61• Ao
remete, para além dos procedimentos empregados, à pertinência da docu­ afirmar assi,1 a especificiüade disciplinar da história entre as outras ci­
mentação mobilizada em .relação às questões propostas. ências sociais, o historiador britânico E. P. Thompson enunciava uma
A demonstração de Étienne François, aqui mesmo, é, a esc;e res­ regra fundamental da profissão de historiador: um fato, u�a realidade
peito, esclarecedora: os relatos dos "informantes não-oficiais" da antiga social ou cultural, só pode ser analisado no contexto muito preciso, quase
Stasi descrevem a oposição ao regime ou são, antes, o produto da máquina estreito, que o produziu ou fez existir.
político-administrntivc1 .c!a rn!iga RDA e das estratégias complexas de Os instrumentos de trabalho - Durante os anos 1960, no apogeu
seus agentes? Para retomar a velha expressão de Émile Durkheim, o da exploração das grandP,s fontes seriais.. o uso do computador realizou,
historiador, como o sociólogo, constrói seu cbje•o de estudo pela formu­ na França, uma entrada marcante na pesquisa histórica. Ele permitia o
lação de questões ou hipóteses, pela definição das bases documentais e domínio sobre corpus até então inacessíveis por sua �mplitude, permitia
pela escolha dos procedimentos de análises58• Foi neste caminho que a transformá-los em quadros de cifras e gráficos: era, antes de _tudo, uma
reflexão sobre a "profissão" progrediu_ recentemente. fantástica máquina de calcular. Trinta anos mais tarde, a introdução d&
Analisando oMontaillou, vil/age occitan [Montaillou, aldeia occitanna] informática na história parece quase paradoxal: os grandes trabalhos de
de E. Le Roy Ladurie (Paris, Gallimard, 1975), Jacques Ranciere sublinha história quantitativa, de Esquisse du movement des prix et des revenus en
o c11Sto da construção historiográfica. A ctno-sociologia de uma aldeia France au XVII/e siecle [Esboço do movimento dos preços e dos lucros
"cátara" do século XIV só foi possível pelo descarte da heresia que deu lugar na França no século XVIII] de Emest Labrousse (1933) ao monumental
à visita do inquisidor e forneceu o material de arquivos: "O inquisidor Seville et l'Atlantique [Sevilha e o Atlântico] de Pierrr Chaunu (1955-
suprime a heresia ao erradicá-la. ( ...). O historiador, ao contrário, a suprim� 1960), foram elaborados com máquinas de calcular "pré-históricas"; as
ao enraizá-la. ( ...) Era necessário que a heresia fosse para que fosse escrito calculadoras de bolso nos anos 1970, sobretudo a microinformática dos
o que não tinha nenhuma razão de ser: a vida de uma aldeia do Ariegc no anos 1980 colocaram ao alcance de todos um espantoso poder de cálculo
século XIV. É preciso que ela desapareça para que essa vida se reescreva no no. momento em que o "paradigma galileano" deixa de ser central entre
presente de uma história das mentalidades"59• Re�idade enviesada, reduzida, os historiadores que se afastam do serial e do quantitativo.
mutilada? A operação historiográfica é acompanhada por efeitos diversos: a Não é o caso, todavia, de fazer um balanço negativo. As grandes
menos mal conhecida é a ilusão documentária que, como nos lembra Olivier enquetes quantitativas não cessaram da noite para o dia: a possibilidade de
Guyotjeannin, faz tomar por uma mudança nas realidades observadas o que trabalhar com populações consiJeráveis foi banalizada - Christiane Klapisch
é apenas uma modificação do modc de redigir atos administrativos ou notariais e David Herlihy estudaram :ssim os talvez 250.000 toscanos registrados no
ou a aparição de uma documentação antes inexistente. Mais sutil é a produção catast� (cadastro fiscal) estabelecido por Florença em 1427, André Zysberg
de -artefatos" pelos instrumentos utilizados. Há quase vinte anos, J.-C. Pcrrot escrutou a totalidade dos 60.000 conden�dos às galeras da época de Luís
ha,;a atraído a aten'ião para o efeito c!cscoberto pelo economista americano XIV, Jean-Pierre Bardet reconstituiu, a partir de amostragens significativas,
Slutzky: uma série de cifras lançadas ao acaso e substituídas por uma média os corr.portamentos demográficos dos habitantes de Rouen nos séculos
,'.·.··
40 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 41

XVH e XVIII 62• Onde a informática começa a alterar o trabalho do histo­ As transformações dos anos 80 não acarretaram nenhuma perd:1 no
riador é na introdução da possibilidade de traLalhar com dados cada vez domínio dos utensílios fundamentais: a "transfiguração" das técnicas,
mais ricos, dotados de úm número mais e mais elevado de carac�eres ou mais ou menos antigas, da erudição, o uso refletido da cifra e d:1s esta­
de variantes. Os anos 80 co�heceram ainda, na França, o desenvolvimento tísticas, o aprofundamento da· análise cartográfica - uma das originalida­
da análise factorial, no momento em que os h!storiadores complexificavam des francesas65 - enriqueceram e diversificaram a profissão de historiador.
sct&s modelos explicativos dos processos históricos: apreender as correla­ Mas ela não poderia ser reduzida a um conjunto de operações técnicas
ções não entre dois ou três elementos, mas re-5ituar o objeto. C;Studado em uma vez que é, antes de tudo, orientada para a produção de :::entido, trate­
um circuito muito mais diversificado. A informática permite, igualmente, se de uma explicação ou de uma interpretação.
o recurso a modelos formais para avaliar a importância de tal ou tal fator
num processo histórkí>63 • A econom�tria faz assim uma entrada tardia, e Algumas questões atuais, na França e no exterior
prudente, na história econômica com a publicação do grande trabalho de A história, enquanto disciplina, não pára de reformular seus próprios
Jcar.• Heffer sobre o porto de Nova I orque, que recNre a modelos econô­ problemas, sem dúvida porque a evolução do mundo não pára õe modificar
micos, avaliando a cada etapa sua capacidade explicativa<»4 . a percepção das realidades humanas que n0s cercam. É verdade que alguns
Enfim. no momento em que a história retoma o interesse pelos indiví­ não hesitam em pensar que nosso mundo pós-industrial, pós-moderno.
duos e suas trajetórias - as "carreiras", as genealogias, as redes sociais -, o tende a se destacar da �orrente cas trcldi�es que o construíram, abolindo
computador - que não é mais uma calculadora �não secundariamente - toma a "memória longa" e rem'!tendo os historiadores a seus gabinetes. É verdade
a ser o gerente zeloso de ·bancos de dados nominativos: pa!'a C'I estudo de que nos Estados Unidos, país de ''via;anres sem valise�", a história serviu
vastas populações - as dezenas de milhares de dossiêc.; de membros da apenas muito raramente para exaltar a grandeza nacional on ·a primazia
administração espanhola no século XVIII (J.-P. Uedieu), ou as genealogias, americana, diferentemente das outras ciências sociais. Mas os historiadores
abrangendo cerca de vinte gerações, dos habitantes do importante povo"dc britânicos denunciaram recentemente c om _vigor os perigos de um
de Manduna, na Puglia (G. Delille) - mas também de amostragens mais profissionalismo cortado de um público mais vasto, ignorante da demanda
restritas, estudadas de maneira mab intensiva. As possibilidades do compu­ social exterior. Muitos problemas históricos recentes, sejam eles franceses
tador permitem desse modo· a identificação de indivíduos descritos por di­ - em torno de Vichy ou da descolonização -, ou mais amplos - o recru­
ferentes fontes, e o estabelecimento da lista e o encadeamento das variantes descimento dos nacionalismos na Europa,. o retorno de uma extrema-direi­
de um texto através de seus diversos manuscritos (cf. o artigo de J.-L. Gaulin), ta ... -, mostram entretanto como o presente não deixa de interrogar a
a reconstituição do campo semântico de uma palavra cm um corpus ou a história e obrigam o historiador a retomar suas pesquisas, a reformular suas
reconstrução das etapas do trabalho tipográfico cm uma casa de impressão questões, até a mudar seus métodos. Grandes historiadores de nosso século
do século XV a partir do estudo intensivo de alguns incunábulos. Os não pararam de repetir: toda história possui "o caráter de 'história cont�m­
resultados - bem mais confiáveis que aqueles ohtidos por enquete manual porânea'", gostava de dizer o filósofo-historiador Benedetto Croce6<1; a
- s'5 dependem agora de uma realidade fundamental: a qualidade das fontes pesquisa histórica inscreve-se em um vai-e-vem indispcn::;ávcl que nos faz
registradas nas bases dos dados. O rigor formal do computador remete pois "compreender o presente pelo passado.,. e "compreender o passado pelo
o historiador à crítica erudita. A cnquete prosopográfica sobre a alta ad­ presente" (M. Bloch), ela é um "diálogo perpétuo entre o passado e o
ministração espanhola em fins do Anden Régime vem assim obrigar os presente"67, o que Pierre Vilar nos demonstra mais uma vez aqui mesmo.
pes.quisadores a retomar o estudo d"c; instituições políticas da Espanha das Questões sempre novas - Esse diálogo se faz mais insistente quando
Luzes, setor que a historiografia tradicional estimava conhecer bem há a irrupção de um presente trágico obriga o historiador a um exame de
tempos. Se a utilização "galileana" do computador ameaçava "fctichizar" consciência68 • "Devemos crer que a histó:ia nos enganou?" Essas palavras,
os resultados "limpos" saídos da impressora, seu uso mais recente relançou murmuradas por um oficial do Estado-�faior recém-saído da Escola de
a :eflex:io sobr� a constituição da informação e a natureza das fontes. Guerra, peq;,untando-sc, no verão de 19�. no dia seguinte ao desastre de
�I 42 P�oos RECOMPOSTOS

Flandres� sobre os .responsáveis pela derrota, perseguiram por muito tempo Foi assim,' ·no fim dos ànós 1960/oom: o desvio'.1cfúé�"des'i�ü� :inuitcis
o capitão Marc:·BJoch _como uma :espéc!e . 1·ma69.
• de censura a.. sua. d'1sc1p , , , • , ,.

e
• • • \ •, • • • • , 't ! l-"t. · ,.
.. ,_.,

historiadores' franceses; dos·mélhores, de úmã'histórià ecónom1ca�e:soc1al


. · " .·. - • t • - • 1�M.. , f* IA.., ,f '••"" (' 1 e •

Lucidamente,-ele· media como as falhus .da formaçã� :militar, e particular­ para unia históri� das ·mentalid�des·coie�ill>��aró6fbt1\Imi'�erdi�êi�o
1
•i mente um ensino.de estratégia que se referia apenas aos exemplos da guerra retrato econômico e �ocial". da'• l_-'rah�G.i� Lábróu�ê;rpro��i>f 'd�íi1stó� · ·
de 1914-1918, haviam irr.pedido .o, alto comando de 1940 de realizar a ria econômica na Sorbonnéi·lia,,ia ret(imãdÕ; � partir·, dós;ttttds'·50; :o�h�cô�te
r• • •. ··f ··
necessária mudança de idéia diante da Blitzkrieg dos exércitos hitleristas: . , •. l�'. ! ,_;_,; t';"'\ ,·• •, -. •
departamental do país e distribuído' ·a' éada-llDí·'de ·seu�f alunós üilia 'ci:-cuns-
1 4·_ ,,

esse "feitiço Jo passado"'º não seria. a mais terrível acusação contra a crição a ser estudada. As·restrições não tardararii73::havià:ú�a t',audáciâ ·um
legitimidade intelectual e a utilidade pragmática da história? Seria o caso, pouco ingênua" em pensar que a' ambição de um· taI··trabalhà1:aletivó!era
então, de conformar-se ao dito espirituoso qnt; escapou a Charles Seignobos: compatível com ·o "individúalismo' feroz" que·1êv� "tâdt·dohtorando a·afir­
"É 71
· muito útil propor-se questões, mas perigosíssimo responder a elas?" mar a original: dade de seü procedimento; como ·cànfess{Maunce Agulhori,
· -A resposta é evid�ntemente negativa.· A experiência da Segunda cada um desejava escapar '"da 'repútação' de'...serlaté;!éf:fim1d�lsétis;di�· o
Guerra mundial, assim como, ma�s recentemente, a queda do mur .:> dP­ historiador da Somme-Infé'rieure '.ou '-do ai�i�ei-Tertdte"l4.!:Soti�eíudo, r a
Berlim ou o ressurgir ·dos nacionalismos na Iugoslávia, obrigam os his­ história das infra-estruturas havia· à·'partir · de :.éiitão�j:ón\uistadoléàmplo
toriadores, para compreender a opacidade de um presente, a se perguntar direito de cidadania e, nesse tempo :de" ruptunis rêult\lrâisímaio�ei (tránsfor­
sobre a validade dos procedimentos COM os (!Wlis eles explicam as trans­ m.!çâo dos comportamentos demográficos e'sexuàis;:tébriêílió�dÔ,Vaticano
formações. Refletindo sobre o �entido dos acontecimentos de maio de 68 Ii, crise de maio de 68 onde a irrupção doi-unboliéô fiiostrav�-a fiagilidàdc
I <.
1
"
e sobre. a vontade: política de prcenche.i.·-lhes as .falh:is, M. de Certeau
notou:·"Ahistória presente, .a que nós vivemos. nos ensina a compreender
r:
das convenções sociais� ),�(fü�ó' sutp�ilife �qÚê'lé)1blh��r ;'if
se tenha voltado pará fenômenos ·no limite dô·'jfor..sáv�l:1êfon� pdpiilâ�ês;
o�liist�fi�dtites \
(-

de outro. modo a· história passada, que se escreve ou se ensina. O saber feitiçaria, profetismo$','; messianismô§/inas' tanibél1li6 ?sêx���i,lm6tiê�, 1�1'
pode muda�· com . a experiência. Aliás, . sob. o viés desse fenômeno parti­ Ao contrário, a histórWrur�l'cónli�êu:líirií:-irítdJicfstá��;eÍ:lips�­
cular -= a palavra tomada, e retomada --:-, somos · levados n ·um problema após a floração dos ·'trabalhos 1de i hisÍória:--rêgiônal q'tíe/tdóiBeãuváisi�
fundamental que provavelmente a estabilidade social e M sistematizações ao Languedoc� do ·Hurepoix: ao, Midi · toulousian<>tha�i�mtsublinhadd�
que a acompanhavam ontem havfam obliterado: como pode ocorrer uma nos anos 60, a permanênéiaFaté mesmo ii ·cón�ervaoodsmo;de·:socié�
mudança? Como nasce um novo d�a"!2? As crises d_o presente alteram os d ades ru'ra is . fortemenÚ�. �coíttrastàda·s/ e;f dclinea'cicfi'J'âgréisslstemas" .
paradigmas de ontem e o historiador trabalha sempre no presente, mesmo plurisseculares�·· AHistôire ilé IéFrance· Rura/e°1[His'té"tiâ;1<fa -França
que, estudando com as regras da mais estrita erudição um objeto do mais rural] (Lc ScuiJ�· 1975-1976)�·dirigida por ·oeorges·-Dubttf,E: Le··Roy
remoto passado, o faça dt; maneira metafórica.. Lad u rie, :propusera Luma 1síntese · consideradá'� eritãô�têômà"r.defin'i tiva:
A renovação dos assuntos e das problemáticas não nasce jamais in Neste domínio abandon:1do; a história· rura'I' "renasét';hojégraças · a
abstracto. Ela associa em uma alquimia complexa a acuidade de questões opções metodológicas novas (como o cruzamento de uma história
contemporâneas, a constelação intelectual na qual a história se insere_ antropológica das famílias com uma análise econômica -precisa da
(muito particularmente sua relação com as outras ciências sociais, como empresa agrícola) e revela, por trás da ilusória' imobiliciade· estrutural,
o demonstra aqui Jacques Revel), as exigências específicas do campo da algumas descontinuidades: o belíssimo livro de· Jean.:Marc Moriceau
própria disciplina, com seu desenvolvimento interno, suas formas parti­ sobre os fazendeiros da ile-de-Francc entre os séculos XV e XV III
culares de trabalho, os poderes que ali se exercem. valoriza assim a ·ascensão �ocial de um "patronato" agrícola no seio
Como qualquer outra disciplina científica, a história possui suas das elites rurais, seu papel motor na concentração e na modernização

1
dinâmicas internas: ela conhece os entusiasm� e os desânimos dos pes­ das explorações, seus investimentos precoces na educação das crian­
quisadores, ás submissões .e as rebeliões, ela possui suas enquetes "nor­ ças 75. A criação, em 1993, de uma associação que ·agrupa já 500
mais" e suas "revc!uções científicas", para retomiar os termos de T. Kuhn. 1.;storiaõores, seguida do lançamento da revista Histoire et sociétés
:1 44 PASSADOS RECOMPOSTOS
.......

Introdução 45

rurales l História e sociedades rurais] em 1994, no momento cm que Foi preciso a morte do general de Gaulle, o declíni!) do Partido Comunista
os ingleses e sua nova revista Rural History [História Rural] (1991) e sobretudo o desafio que representa,am os estudos americanos (particu­
redescobrem também a história dos campos7 s�o um sinal de que uma larmente os de Robert Paxton) para que a historiografia francesa estudas­
nova geração garante a. continuidade e que a história rural vai retomar se profundamente o regime de Vichy. É evidente que a evolução da
nos próximos anos um crescimento promisscr. historiografia da República Federal está estreitamente ligada ao olhar
A história é uma ciência social, quer dizer: "política". É uma antiga que ela lançou sobre seu passado. Acabada a última · guerra, o
evidência que já foi muitas vezes demonstrada com brio: a historiografia historicismo tradicional, saído da escola prussiana do fi� do século
da Revolução Francesa adere estreitamente à evolução política da França, passado, perdurou até 1960; a partir de uma história centrada sobre a
até mesmo do mundo76• O vigor da história depende então da liberdade política e a diplomacia, e em uma ótica nacionalista, ele não responsa­
de que dispõem os indiví1uos para pensar e agir. Na Alemanha Oriental, bilizava a Alemanh:i pel� Primeira Guerra Mundial e considerava o
a despeito de algumas exceções notáveis, o sistema muito centralizado de terceiro Reich uma aberração na história nacional: em nenhum dos casos
controle• ideológico e político - o.grau de adesão ao partido comunista a Alemanha era culpada. Só se colocou em questão essa aborda6em nos
aumentava em função direta da hierarquia dos postos e a quase totalidade estertores dos anos 1950, com a demonstração dos objetivos imperia­
dos professores de história moderna e contemporânea das universidades listas da política de Guilherme II em 1914, e depois da implicação de
eram membrns do Partido - desembocou o mais das vezes no conformis­ ampios setores da socieda<lc aiemã r.o sucesso do nazismo80• Obra de
mo de um catecismo conceituai e de uma linguagem ritualizada, que jovens historiadores, essa reviravolta historiográfica se desenvolve com
bloquearam ou retardaram as renovações, apesar de alguns espaços de o sucesso político da coalisfo social-Hbcral. Eln instala a história no
liberdadc77• Distâncias consideráveis separaram entretanto as historio­ meio das ciências sociais, afirma a singularidade de uma história alemã
grafias dos diversos países ditos "do Leste" segundo sua resistência à a ser reinterpretada desde o século XIX: 1:1ma industrialização sem re­
dominação do aparelho do Estado e do Partido. volução burguesa, um país dominado pela a_ristocracia proprietária dos
Na Polônia78, as exigências de alinhamento.doutrinal e a severidade Junkers prussianos, um nacional-socialismo como q11e desembocado de
da censura política puderam acarretar o abandono de certos assuntos de uma "via específica" - o sonderweg - na modernidade.
história contemporânea julgados muito explosivos ou a adaptaçfo da his­ Nos anos 80, esse novo paradigma foi por sua vez criticado pelos
tória nacional à conjuntura política, mas não encontraram a mesma adesão defensores de uma corrente historiográfica que, cm nome de uma abor­
maciça. A historiografia polonesa foi capaz de se renovar lá onde os objetos dagem mais cultuial e antropológica das realidades sociais, deseja
em jogo não pareciam decisivos para o poder. Os medievalistas (!esenvol­ reapropriar-se da dimensão subjetiva do viver cotidiano, no nível rc.;gio­
veram desse modo a metodologia original da cultura material a partir de nal, local, até mesmo· individual: as macroformulações das ciências
um programa muito amplo de pesquisas arqueológicas: nesse terreno, com sociais - industrialização, modernização ... - não podem dar conta dr
o �vai das autoridades, e sem que o controle de�t::as últimas pudesse distorcer relação que se elabora entre as contradições materiais da vida e os
os resultados, eles estiveram na ponta da ino,·ação tanto na história da comportamentos dos atores sociais6 :. Se o sucessn desse! Alltagsges­
produção agrária e industrial quanto na história das técnicas, do habitat, da chichte pode ser posto em paralelo com a subida dos "verdes", o avanço
alimentação ou do vestuário. Se a isso se acrcsc-.entam os estudos sobre os à direita dos anos 1980 é marcado por uma tentativa. de banalização do
sistemas mitológicos, as culturas populares uu os excluídos, os historiado­ "nazismo", considerado como o caso extremo de práticas mais larga­
res poloneses puderam propor modelos d::- pcsqt:isa aos países "ocidentais". mente difundidas. Esse "deba1e dos historiadores" - o Historikerstreit
Seria conveniente então nos intcrrogarr.1os sobre as pressões que - dos anos 1986-198882, fortemente ideológico e político, não desem­
afetaram a historiografia dos países ditos ·'livres" durante a guerra fria, boca de fato em nenhum grande avançü metodológico ou científico. As
cendo cm mente que "todas as questões históricas tendem a ser colocadas reformulações dus historiadores .;eriam apenas, por vezes, a simples
simult�near.:cnte ccmo questões políticas", e não somente na Alemanha79• reativação de =livagens antigas?
l 46 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 4 7

significativos dos novos tipos de relações que os historiadores entretêm com


Os Grandes Paradigmas a economia ou a sociologia85• Nenhuma dessas formulações tem ambição
As questões renovada:; não ganham sentido senão no seio de totalizante, elas correspondem bem às necessidades de uma história espe­
modelos de compreensão que tomam sua solução possível. Nos anos 60, cializada, de horizontes limitados; elas concernem, enfim, no essencial, aos
um problema devia integrar-se cm uma história "glob:?l", que pretendia dois domínios que se elevaram ao prime!ID lugar durante os anos 1980: a
dar conta da evolução das sociedades em seu conjunto; a resposta era história política e a história cultural.
obtida pela serialização de documentos e sua avaliação quantitativa. Duas vias se desenham então. Seja (c!COnstruir, em
bases diferentes,
Mapas, diagramas; quadros estatísticos. eram instrumentos indispensáveis uma nova amhição de totalidade, seja propor como- ponto de partida da
para se analisarem relações estáveis que compun�.im sistemas - estruturas análise histórica o que, à margem, resiste freqüentemente à investigação.
- e as transformações temporais que as afetavam, no próprio seio dessa Uma nova -,mbição "totalizante" veio à luz recentemente, a partir
estrutura - a conjuntura. Tal modelo "estrutura-conjuntura", caro a C. E. do político ou do cultural. No primeiro caso, a reflexão mais avançada
Labrousse, a Pierre Vilar e a um grande número de historiadores france­ füi con�uzida em torno da "história cática" da Revolução Francesa pro­
ses, repousava sobre uma representação do universo social vagamente posta por François Furet. Marcel Gauchet pretende desse modo fazer do
derivada do marxismo, o que P. Chaunu denominava o foguete de três político, desembaraçado do "jogo das forças sociais", uma c:nova chave
estágios, onde. o econômico precedia (ou dcter:ninava, segur.do as opções) para a &rquitetura da totalidade" que permitiria "uma recomposição do
o social, e o social o cultural. ãesígnio de uma história total" e autori=aria a construção de um novo
Esse horizont� de referência dos his�oriadcres france!;es terminou paradigma. "Longe de se reduzir a essa parte superficial e transparente
por desaparecer no decorrer dos anos 70. A crise econômica que dava um do funcionamento das sociedades sobre a qual acreditava-se saber tudo,
fim às Trinta Gloriosas e a suas "grandes esperanças", ao mesmo tempo o político constitui o nível mais englobante de sua organização (... ). É
abalou as grandes conceitualizações. Os gn,ndes paradigmas - de dupla do ponto de vista da forma política que a coerência hierárquica da ordem
referência a Marx e a Freud, mas seria necessário provavelmente acrescen­ social e material do Ancien Régime se revela melhor. Do mesmo modo,
tar alguns outros, como Malthus - dão lugar a um arsenal diversificado de é apenas do ponto de vista d0 poder e de sua história que as fraturas
instrumentos e de abordagens teóricas, tomadas de empréstimo no essencial maiores iniciadas por sua lógica, tanto no plano diretamente político como
a outras ciências sociais: as conceitualizações políticas de Tocqueville; a no plano dos fenômenos induzidos, como a separação da economia, se
descontinuidade dos "epistemai" e a microfísica do poder de M. Foucault; tomam plenamente legíveis"86• A outra versão do retomo à totalidade
a "reprodução" social, as "estratégias", os "campos" ou o "habitus" de P. residiria talvez na promoção recente, nos Estados Unidos, dos cultural
Bourdieu; o "espaço público" de J. Habermas; a "configuração" ou a studies, onde o mundo em sua totalidade inscrever-se-ia na esfera das
··interdependência" de N. Elias ... A lista, que se ampliaria se ultrapassás­ práticas e das produções culturais87 •
seml'S as fronteiras, embora revelando pontos C',"'muns - a extraordinária Essas duas tentativas repousam numa lógica semelhante: fundar um
fortuna, quase póstuma, de N. Elias- e divergências- a espanto�a ausê:1cia novo paradigma buscando a instância ao mesmo tempo mais central e
da sociologia compreensiva de Max Weber na França -, permite todavia mais englobante. Outras lógicas partem de uma constatação oposta: a
algumas conclusões gerais. Os historiadores não constroem mais do que construção do objeto histórico, que supõe um recorte específico do real,
anteriormente instrumentos teóricos que lhes seriam próprios, o que indica, é incapaz de dar conta de lados inteiros do "continente história", das
segundo R. Chartier, um "déficit de pensamento-s3; seu "bricolage" tende asperezas, das singularidades, dn3 "qued�s" que resistem à formalização
toda,·ia a se tornar um diálogo mais exigente e mais rigoroso, cm que se e às categorias nas quais as queremos inserir.
mesclam a recusa de uma interdisciplinaridade :ndulgentc84 e um esforço Para responder a esses silêncios, duas estratégias diferentes foram
ativo de .. tradução" conceituai. Os trabalhos de Bernard Lepetit sobre recentemente propostas. A primeira foi desenvolvida pela microstoria italiana
histl,ria urbana ou de Chdstophe Charle sobre hi�tôria �ocial são exemplos .1 par!ir de 1:doardo Grendi, Cario Ginzburg e Giovanni Levi. Trata-se
1 48 PASSADOS RECOMPOSTOS
-=07.::'; ....,,
·-'-';;ll",(·
,:�,
· _. · · Introdução 49

e!:sencialmente, por um deslocamento de foco da objetiva que aumenta o talhando suas palavras excessivamente sob nossas interpretações,.negli­
número e o tipo dos dados possíveis, de fazer emergir outras configurações genciando a particularidade dessas "vidas encalhadas.em_:�rquivos:;tque
onde aparecem, em toda a sua complexidade, concretamente, as relações dizem a violência, a humilhação ou e prazcr92.t,Ess�� ..rida5}�c�i!t���
sociais e as estrntégias individuais e coletivas: considerar· as condutas ·'<1t colhidas no arquivo judiciário e policial sã<;> o pão ;�q�i_d_i��. ��� -���tte
pessoais e os destinos familiares permite, melhor que agregados estatísticos, Farge. Uma perturbação da Clídem social obrigou ás' p����s �-s�. relata�em
compreenderem-se as racionalidades específicas que informam os co::npor­ diante da úUtoridade. Daí a surpresa !)Crpétua :do:. historiador :.à: leit�ra
tamentos de tal ou tal categoria sociaJ, muitas vezes nos interstícios de desses textos, e com o manejo dos obje1os. modest�� que_,a: ele� _foram
sistemas normativos cuja coerência inexiste88• A restrição do campo de reunidos - panos, grãos, cartas de baralho_ - como ·se :9� detaihes. mais
observação não é nem retorno à biografia, nem complacência com a íntimos de uma vida fizessem, para além da m'1rte, uma aparição em nosso
_
monografia local: trata-se, ao cm;trário, mudan.::o de escala, de fazer surgir mundo. Mas esse real nasce de uma prática de poder que ordena o texto
modelos de compreensão mais operatórios, que restituem as margens de segundo as exigências do interrogatório. Não há então :_uma "verdadeira"
. jogo deixadas !.Os atores pelas formas de dominação. Para dar conta disso, palavra popular a se exumar como um tesouro enterrado. , .. _;··: ·
Edoardo Grendi adiantou a noção de "excepc:onal normal", o que pode A partir dessas parcelas de discurso, desses fragmentos de vi�a, é
significar que uma sociedade se lê mais em suas margens que em seu centro; todavia possível reconstruir os modos de racionalidade que regulam-prá­
C. Ginzburg, retomando a comparação com o púlicial investigador, falou ticas e ações, os códigos que regem as relações sociais no bairro, na
,,
do ""'paradigma do indício : .o historiador começa seu trabalho seguindo um oficina ou no botequim, a� r�lações entre homens •eimulheres93• Pois o
indíci0, que não é mais do que um "resto" muitíssimo significativo89 • "populacho" não é esse menino crédul� irncion_a! ·e· violento·iq�e;_ os
Ginsburg analisa os mecanismos de troca entre cultura popular e administradores teimam em ver nele. Seguindo os �mâus discursos"i trans­
cultura erudita no final do século XVI, a partir do processo da Inquisição mitidos pelos inspetores de polícia, ele:,sabe i_ també�" Inanifes��r�iua
contra o moleiro friulano Menocchio, um indivíduo original e eviden­ "opinião"; não a nossa "opinião públi-=a�;ti ll}ensuráyel;_;e: rma�içapµias
temente excepcional que representava o cosmos sob a form� de um "opiniões sobre" (tal ato do rei, tal acontecimento,: tal_oêorrência)/mó_�eir
queijo comido por vermcs90• Le pouvoir au village [O poder na aldeia], e fluidas, saídas de esquemas lógicos com·os,quais_os dtferentes-atores
de G. Levi, começa por um relato minucioso da atividade de um padre reconstruíram sua interpretação dos fatos de que não conhecem senão um
exorcista de aldeia que revela, aumentando-as, as inquietações de uma pedaço. No século XVIII é ·que se enraíza em cada indivíduo a segurança
população rural submetida às incertezas do tempo; ao longo do texto, de que é legítimo julgar e saber. O que faz surgir o arquivo' policial-é. que
ele propõe uma releitura da sociedade rural do Ancien Régime, dcmo:is­ a opinião popular dos períodos antigos não se forja segundo um processo
trando a existência de estratégias ativas na população aldeã através da cumulativo e automático ligado à multiplicação; das, leituras. (libelos,
.i,1álise do sistema das alianças, das política s de transmissão do panfletos, cartazes), mas pela separação das idéias confrontadas com uma
patrimônio ou do mercado de terras. A socicd:iJc Jnt:ga, organizada cm pluralidade de acontecimentos94•
corfü) de amplas "frentes de parentesco" - a família nuclear européia, Diferentemente da microstoria, essa abordagem _repousa �obre a
cara aos demógrafos ingleses do Cambridge Group, é rejeitada entre as importância atribuída ao detalhe quase insignificante e· sobre seu, trata­
noç0es inúteis e enganosas, consegue criar, à sua maneira, formas de mento: aqui, não mais modelos formais para dar conta das racionalidades
segurança cm face das crises e das guerras'j,t . próprias a uma categoria social, mas um retorno voluntário à desordem,
A segunda via divide com a microistór:i.: o projeto de restrição do às descontinuidades, a tudo o que excede ou rompe a normalidade
campo de observação e a preferência pelas m::.rfcns como terreno de ação. majoritária. Daí a atenção dada ao trabalho de escrita que participa da
Ela parte da estranheza muitas vews ignora.::;.i. dos documentos que ai i­ inteligência do material: a história permanece fundamentalmente um relato

1
mentam o trabalho do historiador. São mortos. que falam: não podemos - François Hartog nos :Cmbra - e a /or,.ui desse relato é ·consubstancial
res..�uscitá-lo.; ma:; nos ar;iscamos a "matá-los uma segunda vez" amor- à compreensão do objeto. "Por ter visitado os limites de sua terra, por ter
;��-
}r?·.
50 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 51

sido,como Robi nson, 'comovido ' p elos t raç os da ausência m ar cados nas Há alguns anos, o livro de P. Novick suscitou um amplo debate sobre
margens de uma sociedade, escreve M. d e Certetiu, o historiador retorna a "questão da obj etividade" nos Estados Unidos9'J; a discussão existe tam­
modificado mas não silencioso. O relato põe -se a falar entre contempo­ bém - mais discretamente? - na Fr ança; C. Gil12burg evocou-a·, a seu modo
râneos. Parece-me que ele pode falar do sentido tornado p ossível p ela e em um contexto muito específico, na ltáliarn°. As obras históricas seriam
ausência quando n ão há mais outro lugar senão o discurso. Ele diz então apenas ob ras de ficção, já que a história nãc pode escapar ao relato, que

alguma coisa que se relaciona com toda comu'licação, mas ele o narra em é antes de tudo um gênero literário? Mas se o recurso inevitáve! ao "relato"
forma de len da - para bom entende�or m eia palavra basta - em um não implica no abandono de toda intenção de "verdade", de que tipo de
discurso que o rgàniza uma p resença ausente e que guarda d o sonho ou "verdade" se trata? Mais do que nunca, o histo riador· pretende construir
d o lap so a possibilidade de ser a marca d e uma a!teridade alteran te" .95 fatos " reais", mesmo se essa verdade for parcial, imperfeita, por vezes
As questões do tempo - Mesmo se o mundo dos historiadores tende i nsatisfató ria. Não há irabalho histór ico sem produção erudita d� dados,
a se confun dir hoj e em dia com o planeta, s e uma história "transnacional" apoiada em documentos que não podem assumir um sentido qualquer, ao
s e afirma como um instrum ento indisp ens ável à compreensão de noss o sabm• da subjetividade ou
parqialidade do historiador. Mas nem por isso este
te mpo, os questionamentos contemporâneos não p odem escapar à s preo­ abdicou de sua ver dadeira ambição, que é a de dar sentido aos processos
cupações nacionais. A Grã-Bretanha d os anos 80 se esforça em sublinhar hj stóricos. Seja o método escolhido explicativo ou interpretativo, o resul­
as continuidades de sua história, i ss0 quando há dez enas de �mos_ seu s tad o produ-zido não se avalia jamais pelo brio ou virtuosismo do autor. Os
historia dores haviam posto em e vidên cia seus aspectos pionei r os, com a historiadores do século passado pub licavam, cm anexo a suas obras, do­
precedência de suas revoluç ões, p olítica e d'!p0is i n dustrlal: assim, um cumentos autênticos que chamavam de "provas"; hoje o trabalho histórico
liv ro recen te, e muito discutido, apresenta a sociedade inglesa c omo uma p rova suas análises certamente pela segurança da documer,tação produzida,
s o ciedade de Ancien Régime até o a l v o recer d o século XIX"''· O mas sob retudo p elo rigor dos procedimentos utilizados (lógica do raciocí­
"" excepdonalismo" americano da "escola d o c on senso", fu_n dado s ob re a nio , i nstrumentos estatísticos pertinentes) 1º 1 • O imperativo de verdade, por
experiência da "Fronteira", a ausência de tradições feudais e hierárquicas, muito tempo denegrido como um avatar d o "positivismo", retomou assim
a fort e mobilidade social, deu lugar a uma forte negação dos caracteres em nossos dias ao primeiro lugar uas p reocupações dos historiadores.
constitutivos - "mitos fundad ores''? - d� uma nação americana : raça, Sua reformulação não levou e n tretanto o hi:;:tn riador a uma falsa
etnicidade, "gênero", classes - a diversidade é p rimeira e i n terdita a segura nça dos "fatos". Seu objeto p rivilegiado permanece sendo ainda a

escrita de toda história unificada do país97 • dinâmica das sociedades humanas, mas sua a bordagem mudou prc�unda­
A França também tem suas questões do tempo : a publicação, nos rnentc, à escuta de noss as interrogações mais atuais. A "uerrota" do
últimos dez anos, de um conjunto imp ressi onante de Histoires de France progresso calou a questão, antes preemi nen te, do surgimen to da "moder­
[Histórias da Franç a] muito diferentes cm suas abordagens, sub linha o nidade", seja eco nômica, política ou cultural, e afastou e ssas dinâmicas
retorno de preocupaç ões nacionais; a histó ria do an tigo império colo nial longas que faziam se suceder majestosamer.te as grandes fases da história
faz uma reaparição marcante, muito comumemc s ob a forma de nostalgia da humanidade. A erosão ou o esmigalhame n to das crenç as de todas as
imperial, por vezes em um esforço o rigina l de a n á lise das relaç ões com­ e spécie s abalou as grandes modelizações totalizantes, pon do cm relevo,
plexas entre co lonizadores e colonizados ; os novos p roblemas apresen ­ para além das lógicas do interesse , as tensões entre i ndivíduos e grupos,
ta dos pela in teg r ação social de populações de culturas a fastadas das as distâncias entre práticas e norm as, as falhas que ameaçam a coesão
... tradições" francesas suscitam trabalhos fundamentais sobre o "cadinho frágil das sociedades. O fim brutal e �nesp�rado das "democracias popu­
nacion a1"98• Não se trata aqui de inven tariar e-ssc mosaico d e i nterroga­ lares" convida mesmo a ceder um grande espaço ao imprevis ível. E nvol­
ções específicas, mn s de disti nguir, para além dessa diversidade fu nda ­ vidos cm uma crise gencra!izada das múl:iplas modalidades do "crer",
mentalmente política, algumas gran des questves - necessariamente mais testemunhas das resistê ncias às manipulações mediáticas, os historiadores
abstr atas - mais largame11t e repartidas. instn!aran� no cc.1tro de suas preocupações a questão da "crença'». Em
52 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 53
li,iguagem cor.mm, a palavra tem apenas uma acepção restrita, ligada à imagem de tensões tornadas inacreditáveis no consenso consumidor de uma
esfera religiosa, enquanto que, em verdade, ela remele às dimensões sociedade do espetáculo. Não se trata, em nenhum dos casos, de depreciar
subjetivas da vida social. Essas representações de toc!as as ordens, no essa busca de enraizamento, de subestimar os esforços consideráveis de
ponto de partida áa constituição das identidades» do local ao nacional, do salvaguarda que foram empreendidos. O Mémorial de Caen ou o Historial
individual ao coletivo, desembocam nas formas complexas de adesão e de Péronne são, a esse respait0, sucessos exemplar:s.
de recusa no coração de coesões sociais tornadas bem improváveis. Mas essa onipresença do passado - sintoma inquietante de um
déficit - não ameaça torná-lo sufocante? Apenas duas questões serão
Necessidade da História
propostas. A disciplina histórica não tem por objetivá celebrar tal ou tal
Vivemos um período em que vemos desaparecer sob nossos olhos memória particular ou ressuscitar o que se passou, mas tomar compre­
'tradições plurisseculares: aldei:-;, desertadas, �omplexos mineiros, side­ ensíveis, em toda a sua complexidade, as relações que unem ou dividem
rúrgicos ou têxteis desativados nos lembram cotidianamente o fim de os homens e as mulheres, os diversos grupos sociais, os governantes e
antigos modos·de vida. Mas não se trata apenas de uma págint1 de história os governados... sem apagar nenhuma de suas asperezas. Ao mesruo
que se vira; assistimos a uma cri�e generalizaJa da transmissão cultural: tempo, a história guarda em nossas sociedades democráticas uma função
que c;e tornarnm as crenças e convicções no interior das _igrejas que se cívica insubstituível. Nada pode evitar, a cada geração, o ato que lhe faz
esvaziaram, nos p2rtidos polítkos ou sindicatos? As grandes formas a um tempo receber um passado herdade" e :alter6-lo Cúl função d:is exi­
coletivas que asseguravam no país a transMissão dos va�ores às jovens gências do presente. "A tradição - escreve Michcl de Certeau -, só pode
gerações parecem ter-se apagado. O tempo das procissões cristãs triuP-fais estar morta se permanece intacta, se um� im·enção não a !=ompromete
agora ficou distante, e os· desfiles do Primeiro de Maio são cada vez mais dando-lhe vida, se ela não é transformada por um ato que a rccria"102•
magros. Um certo fio de uma tradição viva foi sem dúvida alguma cortado, Nesse sentido, é o trabalho histórico sobre o passado que, ao instaurar
e os aprendizados passam agora por outra.:; vias. uma distinção fundamental entre história e �emória, torna possível a
No momento em que essa perda é sentida como uma amputação, um apropriação crítica das tradições. Pois são certamente as cmnemorações
desapossamento de si, a "memória" conhec� uma valorização espantosa, aparentemente mais sacrílegas - como o desfile dos tanques alemães nos
com uma busca, por vezes patética, do testemunho marcado pelo duplo �elo Champs-Élysées no dia 14 de julho Je 1994 ou a presença do presidente
da autenticidade e do vivido, ou, inábil, das "'ante-memórias" que repou­ da Alemanha reunificada n·a comemoração da insurreição de Varsóvia no
sariam, intactas, nos depósitos de arquivos. Ao mesmo tempo, os museus 1u de agosto de 1944 - que carregam o futuro.
proliferam, encarregados de suportar a partir de agora o peso de memó:ias
particulares, assim como os espetáculos populares" - dos Misérables
04

[ívliseráveis] de Robert Hossein ao Germinal de Claude Berri, mas também


da representação do combate vendcano no Puy-du-Fou organizado por P. Notas
de Villicrs, ao /Is 0111 tué Jaures [Eles mataran1 Jaurcs] realizado por P.
1 O diretor da Faculdade de Ciências de Paris, M3rc Zamansky, escreveu O\) le Monde
Quiles cm Carmaux. De um lado o modelo patrimonial que, em um espaço
de 10 de abril de 1964: "Diminuiremos facilmente o total de horas do curso
neutro, transforma em objeto os instrumentos cotidianos, o habitat, os
tornando secundárias as disciplinas que de fato o são. Por exemplo: a história...
costumes de um passado já morto, subtraído .ao tempo das "tradições Pode-se ter uma obra de hist�ria aos vinte �nos pela primeira vez.
populares" muitas vezes reinventadas. De out:-·.:,. a exaltação romântica de
combates originais, tanto mais distantes quanto mais as condições de vida 2 Henri-lrénéc Marrou, De la co1111aissa11ce /risti.'lrique, Paris, Seuil, 1954, p. 103. Em
da sociedade contemporânea mudarnm radical:11cntc. De um lado, um in­ seu artigo "Commcnt comprendrc te métier d'historien" para l 'Histoire et ses mé-
1/rodes, Paris, G •. ttimard, 1961, de C. Samaran. Marrou escreveu: "só pode vulgarizar
ventário ctno-histórico que .privilegia os traços de identidade de uma co­
a ciência o erudito verdadeiro, aquele que se situa, por seus trabalhos pessoais, na
munidade (úldeiu, profis::.ão etc.) cm relação aos conflitos. De outro, a ponta da pesquisa, lá vnde a ciência está se produzindo" (pp. 1538-1539).
54 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 55
3 A coleção, visando o "grande público instruído", se rc_cusa a ser uma história
pour Pilistoire séricllc, le quantitatif au troisieme niveau", in Mélauges Femand
"univcrs.il" do mundo: ela pretende multiplicar os observn�órios e recusa o euro­ Braudel, t. II, Toulouse: Privat, 1972, p. 105-126.
ccntrismo. Cf. a introdução geral redigida por F. Braudel em A. Varagnac (dir.).
L'Homme avant l'écriture, Paris, 1959, pp. VII-XII. 12 F. Furet, "Le quantitatif en histoire", op. ciL, p. 55.

4 Gccrges Duby se explica em L'Histoire co11ti11u::, publicado pela coitara UFRJ e 13 M. Serres, "Les sciences", in Faire de l'�oire, up. cit., t. II, p. 228.
Z:1har em 1991, Paris, Odile·Jacob, 1991, pp. 133-134. 148, 152. Ver aqui mesmo
o artigo de Claude Langlois. 14 lbid. t. Ili, p. 265.

s Dos 35 colaboradores, 15 são antigos alunos da École des Charles. A obra abre espaço 15 A colaboração de Alain Besançon sobre o imronsciente, consagrada à comparação
todavia para o testemunho sonoro, o cinema, e se abre (com prudência) a "algumas de um mesmo episódio cm dois romances russos dos anos 1860, um de Tchemychevski
novas orientações": a lingüística (Marcel C(?hen), as economias e as sociedades antes e outro de Dostoiévski, p..�ece hoje pouco convincente. lbid, t. III, pp. 31-35.
da era estatística (Philippe Wolff), os dados demográficos e estatísticos (Jean
Mauvrct), a história das mentalidades (Georges Duby). 16 P. Vil, r, "Histoire marxiste, histoire en coa:struction", ibid, t. 1, p. 179.

6
A Oupronl, "Préscnt, passé, histoirc", in Histoire ,:t l'/ris1orie11. Rechercl,es et débats 17 Jbid., t. II, p. 67.
,tu Centre des intL ll�c'uels rat/,ol!qit'!S, Paris. Fay,rd, 1964, p. 18. Cf. ainda
"L'histoirc, �cicnce humaine du temps Frésent" • in Revue de sy11t/,Jse, números IM lbid., t. I, p. 32.
37-39, 1965, e o número especial da Revue e/.: /'e•1seig11eme11t supérieur, 1969,
números 44-45, preparada p�r Robert Mandrou, 1.:om o uíptico ·'L'histoi:-e aprcs 19 Jbid., t. 1., p. 27.
Marx" de Pierre Vilar (pp; 15-26) e "L'histoirc aprês Freud" de A. Dupront (pp.
27-63). :w Para um panorama exaustivo da história medieval francesa, cf. Michel Balard
(diretor}, L'Histoire médiévale en France. B3a11 et perspectives, Par;s, Le Seuil,
7 Aujourd'/rui l'l,istoire, Paris, Éditions sociales, 1974, reúne os artigos publicados
1991.
entre 1967 e 1973 pela Nova Crítica durante uma enquete que, graças às colabo­
racôcs dos mais dinâmicos historiadores desse período (Georgcs Duby, Robert 21 1. Wallerstein, le Systéme du mo11de du .,\i,,,t s:i.écle à 110s jours, Pari�, Flammarion,
M;ndrou, Jean Bouvier. Pierre Vilar etc.), visaviJ uma reflexão teórica sobre a 2 vol., 1980, cm curso.
evolução da historiografia.
22 P. Kriedtkc, H. Mcdick e J. Shlumbohm, lndu:strializatio11 be/ore lt,dustrializatio11.
x A metade dos autores da No�velle Histoire pertence à Écolc des Hautcs Étudcs en Rural bld'-lstry i11 tire Genesis o/Capitalism, P.aris-Cambridge, 1981 (edição alemã,
Scknccs Sociales. Para o Dictio1111aire des scie11ces /,isroriques, essa proporçãu cai Gõttingen, 1977).
par- pouco mais de um quarto. Nos dois casos, a qu3ntidadc de parisienses per­
manece amplamente majoritária, mesmo que, com 95 autores, o Dictiom,aire des 23 Les Lieux de mémoire, P. Nora (diretor), t. . I La République, t. II La Natio11, t. Ili
.w:i i::nces historiques se abra mais largamente aos provincianos (21% dos autores) La Fra11ce, Paris, Gallimard, 1984-1992, 7 "olumcf .
e a ..,s historiadores estrangeiros (10,5%).
24 Para um balanço recente da história dos bano:$ franceses, Hubert Bonin, "L'Histoire
'' Jaccues Lc Goff e P. Nora {editores), Faire de l'/,istoire, t. 1 Nouvcaux problemcs, bancaire françaisc entre l'univcrsité et Jes anrciversaires", L'foformatio11 historique,
t. ti Nouvclles a11proches, t. Ili Nouveaux objets, Paris. Gallimard, 1974, 3 volumes. LV, 1993, pp. 73-77; para a pesquisa italiana.,. Giulio SapelH, "li professor Roverato
e i1 professor Bairati: ovvcro dell'utilità e õca danno della "storia d'impresa' in
lCI F. Furct, "Le quantitatif en histoirc", in Faire de I /zistoire, op. cil., t. 1, p. 59-60.
ltalia", Società e Storia, X, 1987, pp. 949-?75.
11 P. Chaunu, "L'économic. Dépassement ct pcrspcctivc ... Faire ele l'/,isloire, op. cit.,
!S �ode-se remeter aqui ao bciíssimo volume '!m homenagem a F. Bédarida, Écrire
t. 11. pp. 66-67. Em 1962, comentando a tese de Michcl Vovclle sobre l'iété baroque /'/,istoire du temps prése111, Paris, CNRS É.:!itions, 1993.
et .téclrrislia11isalio11, defendida cm 1971, P. Chaunu já fizera um vivo elogio do
'º 1.i ·.1:mtitativo no terceiro nível", então em plena cxp:rnsão: "Un r.�uvcaux champ 26 F. B1.sudel, Écrits �11r /'/,istoire, Paris, Aa:.mmarion, 1969, pp. 12 e 46.

i
56 PASSADOS RECOMPOSfOS Introdução 57
27 f. Furet, "La passion révolutionnaire au xxc siéclc", in le Pensée Politique , 1994, :11 J. C. Passeron, le Raisomreme11t sociologique. l'espace 11011:..popp éri:m du
Écrire l'/zistoire áu xxc siécle, p. 39. raisomiement naturel. Paris, .Nathan, 1991, pp. 24-27.

2:t Todas publicadas, a partir de 1975, pelas Éditions Scuil. ,cc, J. W. Scott, "History in crisis? The others' side -:,f the story.", inAmerica,i Historical
Review, XCIV, 1989, p. 692.
2� P. l..éon (diretor), L'Histoire économique et sociale du mond!!, Paris, A. Colin, 6
volumes, 1978-1982; H.-J. Martin e R. Chartier (diretores), L'Histoire de l'édition 41 Pie1·re Vilar, art. cit., p. 169.
frallçaise, Paris, Promodis, 4 volumes, 1 �83-1986.
42 M. Bloch, Apologie pour l'/ristoire ou le métia d'J,istorie11. Paris, A Colin, !949;
30 R. Rémond (diretor), Pour Ulle /ristoire polilique, Paris, Le Seuil, 1988 [Por uma edição crítica acaba de ser publicada por Êtienne Bloch, Paris, A Colin, 1993.
_
uma /ristória política, publicado pela Editora UFRJ e Editora FGV em 1996];
para a história das relações internacion.a!s, um bllanço problemático recente: 43 Por exemplo, Paul Veyne, Comme11t º" écrit l'/ristoire. Paris, Seuil, 1971.
R. Girault, "De Renouvin à Renouvin", in P. Renouvin (diretor), Histoire des
rel.:ltions illtemalion.• les, nova edição, Paris, Hachette, 1994, t. 1, P!l· 1- 44 C. Langlois e R. Chutier, Les Historiens et l'orga11izàtio11 de la r�clrerclie, Mi­
XXXV III. nistério da Educação Nacional, setembro de 1991, p. 18; Mirella Scardozzi, "Gli
insegnamenti di storia ncll università italianc (1951-1983): tra ·immobilismo e
31 Para um ponto de vista estrangeir�, Charles T. Wood, "The return of medieval frammentazior.e", in: Qt:aderni storici, XX, 19S5, pp. 621; D. Cannadine, art. cit.
politics", in American Historical Review, XCIV, 1989, pp. 391-404. p. 171. A situação é muito menos preocupante do que aquek descrita há dez anos
por Daniel Rache, "Les Historiens aujourd'hui. Remarques pour un débat",
1:: Tra!a-se apeaias de um exemplo entre outros: cf. L'Etat modeme: genese. Biians Vinglieme Siecle, n. 12, 1986, PP· 3-20.
et perspcctive. J.-P. Gcnnet (ed.), Pa:is, ed. do CNRS, 1990.
4S Uma discussfio internaciona! sobre a questão figura no n!? 78 do Débat, janeiro­
33 J. Revel, "Uhistoire au ras du sol", in G. Levi, le pouvoir au vil/age. Histoire de'wi fevereiro de 1994.
exorcisle dans le Piémonl di XVII/e siécle, Paris, Gallimard, 1989, pp. 1-XXXIII
(edição italiana, Turim, 1985). 46 Jacques Lc Goff, "Une maladie �cientifique: la colloquite", in Sciences de l'/,omme
et de la société. leure des départemems scieniifiques du CNRS, n. 32, c:fezembro
3"' Para a França, o diagnóstico mais articulado é a obra de Roger Chartier, L'Histoire de 1993, pp. 35.
aujourd'J,ui: .loutes, défis, propositio11s. Eutopias, Universidade de Valcnce, vol.
42. 1994, 24 p.; os diagnósticos britânico e americano são de outra ordem: Davida 47 O panfleto foi reproduzido no Événement du jeudi, 30 de junho-6 de julho de 1994,
Canr.adine, "British history: past, present- and futurc?", Past and Present, nll 116, pp. 51.
198S, pp. 169-191; John Higham, "The futurc of Amcrican history", in Joumal of
48 M. Chaudron, "Éditer les
America History, LXXX, 1994, pp. 1289-1307. sciences de l'hommc. Des livre, des auteurs et dcs
lecteurs", in Commu11icatio11s, · 58, 1994, pp. l 36.
;: L. Stone, "The reviva! of narrative. Reflections on a ncw old hist0ry", in Past a11d
Pr.:s.:m, n. 85, 1979, pp. 3-24, tradução fran..:�so: !t: Débat, n. 4, 1980, pp. 116- "''' Georges Duby, l'Histoire cominue. op. cit., ;-ip. 94.
14�.
50 M. Bloch, Écrire La Société féodalc. lettres a He11ri Berr, 1924-1943, Paris, 1992.
;6 ""Histoire et sciences socialcs·: un tournant critique"!'". A1111ales ESC, XLIII, 1988,
pp. 292. 51 E. Labrousse, "Comment contrôler les men:urialcs? Le test de concordancc",
�,males d'/ristoire sociale, li, 1940, pp. 117-L:;0; J. Dupâquier, La popula1io11
_:· L�m diagnóstico diferente foi formulado por R. Chartier, "Le monde comme rurale du Bassi11 parisic11 à l'époque de Louis XIV, Lille, 1979, pp. 92-145 (estudo
�l!;-réscntation", Amiales ESC, XLIV, 198(j, pp. 150.5-1509. crítico dos dados).

;... G. Eley, "De l'histoire sociale au 'tournant linguistique' en l'historiographie anglo­ 52 A. Graffon, Faussaires e/ critiques. Créatfrité et duplicité c/rez /es érudits
américainc dcs annécs 80.., Genéses, 1, 1992. pp. 163-193. occide11ta11x, Paris, Lcs Belles �ettrcs, 1993 (�dição americana, Princeton, 1990).
. ...., f
:
58 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 59

53 Cf. A tradução recente de um grande texto do século XV: L. Villa la Do11atiC'11 <.s Por exem!]lo, original e inovador o empreendimento em curso, do Atlas de la
de .:::011stalltill, edição e tradução por J.-8: Giard, Paris, Les Belles Lettres, 1993, Révolmio•r Fra11çaise, sob a direção de Claude Langlois e S. Bonin, com 7 volumes
XXI, 149 p. publicados desde 1987.

66 B. Croce, l'H istoire comme penseé et comme actio11, Genebra, Droz, 1968,
s.c les "Protocoles dcs sages de Sioll". !lltroduction à J-étude des "protocoles": uns
faux et ses usages da11s le siécle, editado por P.-A. ·raguieff, Berg lr.tcrnational, p. 38.
1 <;9:.>, 2 vol.1. 296 p ..
67 E. H. Carr, Qu'est-ce que l'Mstoire?, Paris, La Découverte, 1988, p. 78, (edição
ss Cf. por exemplo P. Vidal-Naquet, Les assassins de la mémoire, Paris, La inglesa, Londres, 1961).
Dérouverte, 1987; notemo� que não é indiferente que o autor seja um especialista
68 É o título - "Examen de conscience d'un français" - da terceira parte de l'Étrai,ge
em Grécia antiga, disciplina ainda enraizada em uma longa �radição cãítica.
Défaite, de Marc Bloch, publipado pela prime;:a vez cm 1946; ele é retomado desde
St> M. Bloch, Apologie pour l'/risloire, op. cit. (edição de 1993), pp. 139-155. a introdução de Apologie pour l'histoire.

51 J.-C. Pressac, les Crématoires de Ausclrwitz, la ,nachürerie du meúrtre de masse, 69 Marc Bl�ch, l'Étra11ge Défaite, Folio Histoire, Paris, Gallimard, 1990, p. 150, e
Paris, CNRS, 1993. Os arquivos utilizados, os da "Bauleitung SS" de Auschwitz, Apologie pour l'/ristoire, op. cit., (edição de 1993), pp. 60, 70-71, 280-282.
est.�o localizados em Masco:.: e no museu de Estado d'Oswiecim.
711 Marc Bloch, l'É:ra11ge Défaite, op. cit., pp. 155.
.9C G. Noiriel, "Les enjeux prãtiques de la construction de l'objet. L'exemple de
71· Citado por Marc Bloch, Apologie pour l'l,istoire, op. cit., pp. 77.
l'immigration", in C. Charle (diretor), Histoire sorial, lri�toire g!oba!e?, Paris,
MSH, 1993, pp. 105-115.
72 M. de Certeau, la prise de parole et autres. êcrits politiques, 2ª edição estabelecida
59 Jaoques Ranciêre, Les mots de l'/ristoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Le e apresentada por L Giard, Paris, Le Scuil, 1994, pp. 65.
Set:il, 1992, P?· 149-150.
73
J. Roug�rie, "Fat;l-il départementaliser l'histoire d� France?", A1111ales ESC, XXI,
t.:O Moye1111e, miiieu, celllre. Histoire et usages. Editado por J. Feldman, G Lagneau, 1965, pp. 17S-193.
B. .Matalon, Paris EHESS, 1991.
74M. Agulhon, "Vu des couliss�s", Essais d'eg«>Msioire, Paris, G...iiimard, i987, pp.
61 E. P. Thompson, "Antropology and the discipline of historical context", Midla11d 42-43.
His:ory, 1, 1972, pp. 41-55.
15 J. M. Moriceau, les Fermie�es del'Íle-de-France L'asce11sio11 d'u11 j.,atronal
� C. Klapisch e D. Herlihi, les Toscans et i'eurs familles. Une étude du cataste agricole, XVC-XVIW siecles. Paris, Fayard, 1994.
flor-e11ti11 de 1427, Paris, 197&; A. Zysberg, Les Galéria11s. Vie e destÍlls de 60.000
76 A. Gérard, la Révolutio11 Fra11çaise, mythes er i111erprétatio11s, 1789-1970, Paris,
forçais sur les galeres de Fra11ce, 1680-1748, Paris. Le Seuil, 1987; J.-P. Bardet,
Ro... en aux XVI/e et XVII/e siécle. les mutatio11s d'un espace social, Paris, 1983, Flammarion, 1970.
2 "-.:>lumes.
77
G.G. lggers, "L'histoire sociale et l'historiogr.aphie est-allcmandc depuis 1980", in
63 Urr. uso meditado dessas diversas possibilidades foi r��ilizado de modo convincente Vi11gtieme Siecle, nu 34, abril-junho de 1992. pp. 5-24.
por B. Lcpetit, les \lil/es dans la Fra11ce Moderne . Paris, Albin Michel, 1988 (cf.
711 la Science Mstorique polo11aise dons l'/ris:oriograpl,ie mondiale. Editado por
pp. 445-449). Um exemplo interessante de utilização de um modelo de simulação
a tnulo de avaliação, sem ambição "contrafactual": J. Dupâquier e M. Demonel, Marian Leczyk, Wroclaw, 1990.
"'C� qui fait les families nombreuses",A1111a/es ESC. XXVII, 1972, pp. 1025-1045.
7'J R. Fletcher, "History from below comes to Germany: the new history movement
°'"' J. Heffcr, le Port de New York et le commerce extàieur américain (1860-1900), :n lhe Federal Republic of Germany", in Joun,al of Modem History, LX, 1988,
Paris, t 986. pp. 560.
60 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 61

'"' J. Souchar.y, "Lc na7ismc: déviancc allcmande ou mal de la modernité? Réflcxions Q:? A. Fargc, Le go1ít de /'arcl,ive, Paris, Lc Seuil, 1989, pp. 145. Essa posição
des historicns dans ! 'Allemagne dcs années zéro (1945-1949)", in Vi11gtie111e Siecle, desemboca no apagamento voluntário do historiador para dar a palavra ao
n. 34, abril-junho de 1992, pp. 145-156. documento: ead., Le cours ordin.1ire des e/iases da11 la dté d11 XVII!' siecle,
Paris, Lc Scuil, 1994.
"1 C. Lipp, "Writing hislory as political cullure. Social History versus A/1tagsges­
clzicl,te. A German debate", in Storia dei/a Storiografia, XVII, 1990, pp. 66-100; q3 A. Farge, La vie fragile. Viole11ce, pcuv:,irs et solidarietés à Paris au XVIII' siécle.
1'. Schõttler, "L'érudition -ct aprcs? L.::s hisloriens allcmands avant et aprcs 1945", Paris, Hachetle, 1986.
Ceni:ses, 5, 1991, pp. 172-185.
1 .., A. Farge, Dire et mal dire. L'opi11io11 publique e11 XVIII' siecle, Paris, Le Seuil,
"'- R. J. Evans, "Th� new nationalism and lhe old history: pcrspective on thc West 1992.
Gcmrnn Historikerstreit", in Joumal o[ Modem History, LIX, 1987, pp. 761-
797; os principais textos do debate f�ram publicados cm francês nas Éditions q5 M. de Certcau, L'Abse11t de /'/,istuire, op. cit., pp. 179-180; cf. ainda L'Écrit11re
du Cerf em 1989. de /'histoirc, Paris, Gallimard, 1975, pp. 1O1-120, e o n" 58, de 1994, de
Co1111111111icatio11s, c!edicado à L 'Écriture des scie11ces de /'/,0111111e.
x.J R. Chartier, "L'histoire culturclle aujourd'hui", in Ge11eses, 15, 1994, p. 123.
"'' J. C. D. Clark, E11g/is/, Society, 1688-1832, Cambridge, 198:i.
"' 13. Lepetit, "Proposilions pour une pratique restreinte de l'intcrdisciplinarilé",
Re,·ue de sy11these, 1990. r,p. 331-33&. 07
Um balanço informado: E. Fano (editor), Una e i11d:visfbik Te11rfe1ue ,1//uali dei/a
storiografia s1a11111ite11se, Florença, Ponte alie Grazie, 1991. Cf. Joyce Appleby,
"-' Em p�rticular. B. Lepctit, Les 'lilles da11s la France Modem'.!. Op. cit.; C. Charlc, "Recovering Amcrica's historie diversity: beyond e>·cepti0!:alis!'1", in Joumal of
Les É/ires de la République (1880-1900), Paris, Fayard, 1987. A111erica11 History, LXXIX, 1992, pp. 419-431.

""M. Gauchet, "Changcmant de paradigmc en scicnces socialcs?", Le Débat, n. 50, •s Cf. cm particular os trabalhos·de G. Noiriel, Le creusete fra11çaise, Paris, Le Seuil,
número especial, Matériáux pour servir à /'l,istoir,: i11tellectuelle de la Fra11ce, 198S, e la Tyra1111ie du 11atio11al: /e droit d'asile e11 E11rope (1793-1993), Paris,
1953-1987, 1988, pp. 168-169. Calmann-Lévy, 1991.

'
7
üm:i apresentação crítica dessas tendências cm Lynn Hunt, "History, cullure and "' Peler A. Novick, "That NoblP Dream .._ T'1e "Objcctivity Q11estio11" a11d the
tcxtn , in T/,e New Cultural History, Univcrsity of Californi�, Press, 1989, 1;p. l-22. American Historical Professio.11, Nova Iorque, Cambridge üniversity Press, 1988.

"'' G. Levi, "On microhistory", in P. Burke (editor), New Perspectives i11 Historical 11 w, C. Ginzburg, Lo storico e il giudice. Co11siderazio11i i11 margine ai processo Sofri,
Wri1i11g, Oxford, Polity Prcss, 1991, pp. 93-113. Sobre essa "mudança de Turim, 1991.
paradigma" que não é apenas italiana, cf. também C. Charle, "Micro-histoire sociale
e macro-histoirc socialc. Quclqucs rcflcctions sur lcs effecls des changemenls de 1 111 Um número recente da revista Quademi storici (n. 85, 1994) é dedicado :i prova
méthodcs depuis quinze ans en histoire soci:ile". in Histoire social, histoire em história.
glv!>ale?, Sob a direção de C. Charle, op. cit.. pp. �5-57.
1112 Michel de Certcau, La Faiblesse de croire, texto estabelecido e aprescntac 1o por
"'' E. Grendi, "Microanalisi e sloria sociale", Quademi storici, n. 33, 1972, pp. 506- L. Giard, Paris, Le Seuil, 19S7, pp. 69.
520; C. Ginzburg, "Traces. Racincs de un paradigmc indiciaire", in id., Mythes,
emhle111es, traces. Morp!,o/ogie et histoire, Paris, Fl::immarion, 19S9, pp. 139-1S0 .

.., C. Ginzburg, Le Fro111age et les vers. L'1111ivers d'un 111eu11ier du XVI" siecle, Paris,
r-i�mmarion, 19S0 (edição italiana. Turim, 1979).

''
1
G. Levi, op. cit.; leremos alentamente a aprescnt:1ç:'io de J. Revel, introduç�o
pr..-ciosa à experiência da microstoria.
- zca se �-
UM

Certezas e Descaminhos
da Razão Histórica
P111uPPE Bourn;'

"Nüo lembrar o rosto do homem


que matamos não é melhor do que
fazer um filho estando bêbado."

Louis Aragon,
La Mise à Mor/

Os anos 1990 nascem, por um manifesto de história "experime11-


1al", com um questionamento radical do, métodos críticas da história.
Pretendemos, examinando as certezas e os descaminhos da razão histó­
, ica, discemir as evoluçoes recentes das interrogações dos historiadores
sobre sua própria disciplina, tratando da hipe,.trofia do sujeito do conhe­
cimento, dos prestígios e das_ desilusões do quantitativo, do declínio da
razão geográfica em história, dos indícios, e11fi111, de uma superação do
momento anti-humanista das :iventuras é::i razão histórica.

O último decênio do sécu:o ;a( é inaugurado, no domínio - relati­


vamente pouco freqüente na França - da reflexão dos historiadores em torno
às racionalidades de sua própria disciplina, por uma obra ambiciosa, Alter
histoire [Alter história] (1991), que reúne uma dezena de ensaios de história
experimental 1• À frente da coletânea vem um texto assinado por Daniel Milo:
··Pour une histoirc cxpérimcntalc, ou 1c g:1i s::ivoir" [Por uma história expe­
rimental ou a gaia ciência]. O manifesto da "história lúdica", posto sob o
triplo apadrinhamento de Nietzsche, Groucho Marx e Aristóteles, reivindica,
:iltcmadamcntc, a violação do objeto (histórico) e a onipotência do historia­
dor; o anacronismo metódico (pela superaçiic, da contingência e neutralização
da· intencionalidade dos atores históricos): o distanciamento cm relação ao
objeto (o Verfre111d1111g brcchtiano adapt:-;-::,� :1 história sob as formas do
estranhamento, da "dcs-familiJrização" e da ":.'.es-contcxtualização"); uma
moratória na produção de n"vos documentos: o empobrecimento voluntário
66 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 67

das fontes e a repetição crítica das pesquisas anteriores; a prática sistemática história ("v homem moderno carrega consigo uma enorme carga de pedras,
de uma experimentação arbitrária das hipóteses interpretativas e de um as pedras do indigesto saber", cap. IV); que esse ex�esso de história pode

:1
comparatismo radical, para além dGs séculos e co�tinentes; a ampliação do ser nocivo ao presente e à vida ("o passado deve ser esquecido sob pena
campo dos possíveis históricos; a utilização da quantificação para fins ex­ de se tornar o coveiro do presente, (pois) toda ação exige o esquecimento,
perimentais; o desrespeito ao passado, em todos os casos. como todo organismo necessita, não apenas de luz, mas também de
O que um tal projeto contém de. provocação jubilosa não deve en­ obscuridão", cap. I; "damos mais importância à história que à vida'", cap.
tretanto dissimular uma ambição inte.lectual: constituir os fundamentos de IV; "o excesso dos estudos de história é prejudidal :!OS vivos" cap. II); que
uma outra hist6ria e exaltar a missão de uma nova "raça" de historiadores a proliferação da história se alimenta do surgimento 4a massa ("o desejo
experimentais. Por isso, seria desejável, para início de c.Jnversa, considerar geral de popularizar a ciência, igual ao de feminilizá-la e infantilizá-la",
esse manifesto não tanto como um conjunto de proposições argumentadas, cap. VII; "a idéia muitas v,;-zes penosa de ser epígonos", cap. VIII; "seria
mas (fiel nisso à lição de Nietzsche) como um sintoma que exprime em seu verdade que nós, alemães, para não falar nos povos latinos, ( ...) jamais
tempo as incertezas e os impulsos de um grupo importante de historiadores poderem<',<; ser senão descendentes?", cap. VIII); os limites da piedade ("o
em relação aos métodos, às tradições e aos valores de sua disciplina. prazer que a árvore recebe de suas raízes, a felicidade que se experimenta
por não �e sentir nascido do arbitrário e do �caso, mas saído de um passado
Da hipertrofü1 do sujeito éc c0nhecimento - herdeiro, floração, fruto -, o que desculparia e até justificaria a exis­
A posição elevada conferida ao hi�toriador na produção de saber tência, é isso o que hoje se chama, com uma certa predileção, o sentido
constitui o primeiro e· sem dúvida o princip.:! siT1toma tia cris� intelectual 'histórico", cap. III); e a denegação da objetividade ("os historiadores in­
que o manifesto da história experimental traz à tona. "Violentar o objeto gênuos chamam de objetividade o hábito de medir as opiniõe:; e as ação
é o slogan deste manifesto", conclui Daniel Milo, que atribui ao histo­ passadas com as opiniões correntes no momento em que eles escrevem",
riador poderes ilimitados sobre o objeto de secs estudos. O historiador cap. VI). Em filigrana ao raciocínio nfotzschea�o, há finalmente o velho
experimental constitui o "único sujeito pleno": "O espaço antes acurado bordão do super·homem: "Apenas pela maior força do presente o passado
pelo sujeito histórico parece assim ocupado pelo sujeito historiador." "Ex­ deve ser interpre:ado (.�.). O igual pel0 igual! De outro modo abaixaríeis
perimentar é violentar o objeto": O historiade,r deve ser "conscientemente, o passado a vosso nível. Não acrediteis em uma historiografia que não saia
violentamente ativo", para além das "reticências", das "resistências" e das d.-.. mente dos cérebros mais raros ( ...). Não é o caso de se desprezar os
.. meias-medidas". O passado é sua "vítima passiva"; e as duvidosas metá­ trabalhadores que empurram o carrinho-de-mão, que aterram e peneiram,
foras da violação como a referência ao narcisismo freudiano são explícitas: sob o pretexto de que eles não poderão certamente se tornar grandes
"Qual é o objeto final da história experimental? Qual é o lugar do eu - historiadores ( ...) mas olhá-los como operários e serventes necessários ao
tomado no sentido amplo do termo - historiador nesse projeto? Conhecer serviço do senhor( ...). É o homem superior que escreve a história".
melhor ou diversamente o passado, ou se conhecer melhor? Pois se falamos Para dizer a verdade, a deriva nietzscheana elo historiador onipotente
em matéria prima a propósito do passado estudado, se pedimos o desres­ dos anos 90 se alimenta igualmente de outras fontes, e principalmente cm
peito a ele, torna-se improvável atribuir-lhe uma prioridade no processo de dois momentos da reflexão sobre a história tal como ela, muito esporadi­
imeligibilidade conduzido pelo historiador c�-perimental." camente, se desenvolveu na França no último meio século. Houve, antes
,,
O que essas linhas devem ao "nietzschismo intelectual e moral do da guerra, as duas teses (de inspiração neo-k:mtiana) sustentadas em 1938
s.:egundo século XX, e muito particularmente ao jovem Nietzsche de De por Raymond Aron, sua /ntroduction à lo philosophie de l'histoire. Essai
l':itilité et l'inconvénient des études historiquc.·s pour la vie [Da utilidade sur les limites da l'objectivité historique [IntrodtJção à filosofia da história.
ç Jo inconveniente dos estudos históricos para a vida] (1874)2, não poderia Ensaio sobre os limites da objetividade hist'-1rica] e sua Philosophie critique
ser ignorado - tanto mais que a gala ciência clj história experimental o d..! l'histoire [Filosofia crítica da história] (originalmente: Essai sur la
e:\.-plicita. Conhecemos suas r,rincipais teses: que a época está saturada de theórie d'! l'hi-.toire drrns l'Allemagne conremporai11e [Ensaio sobre a teoria

l'
6� pASSADOS RECOMPOSTOS Qucsiõcs 69

da história na Alemanha contemporânea]), que, à luz da filosofia e da uma vontade de potêt�cia (no nível, enfim derrisório, próprio do _manipulador
sociologia alemãs (Dilthey, Rickcrt, Simmel, Weber), se havi,1m atribuído de textos, de imagens ou de dados), mas de um:! orientação quase sec'.llar
a :nissão de reexaminar criticamente as categorias do conhecimento histó­ que viu uma reavaliação dos fundamentos filosóficos da história crítica e
rico: orientação prolongada no imediato pós-guerra sob a forma de uma positiva da s"!gunda metade do século XIX mudar-se progressivamente cm
análise{fortementc tingida de fenomenologia existencialista ou personalista) um questionamento radical das lógicas e das racionalidad::s do raciocínio
da "subjetividade do historiador" e de uma reavaliação global da histó1ia i1istórico. Avatar distante da agitação cultural que precede e segue 19685 ,
dita positiva, da qual uma obra de Hcnri-Irénéc Marrou, De la c:01111aissa11ce a históriá experimental exprime por sua vez uma posição subjetiva tanto
historique [O conhecimento hist.órico] (1954), e vários artigos de Paul mais violenta por se ornar com os atributos de uma liberdade absoluta, da
Ricoeur reunidos numa coletânea intitulada Histoire et verité {História e inovação e do desrespeito. "No 11ietzschismo, sublir.ha Vinccnt Descambes,
verdade] (1955) constituem as princi;;ais etapas. Mas, ao mesmo tempo em a resistência à arregimentação tor,1a a forma grandiosa de uma teoria geral
que Raymond Aron consagra no fim de sua vida seus últimos escritos às dos signos, com sua ontologia (há apenas interpretações, nada há a inter­
implicações da filo.:.ofia analítica de origem anglo-saxónica sobre o conhe­ pretar que já não seja uma· interpretação) e sua epistemologia (não há
cimento histórico (cursos de 1972-1974 publicados cm 1989 sob o título conhecimento, apenas discursos, ou agcnciamcntos de signos, produzindo
Leço11s sur l'histoire [Lições sobre a história], uma segunda etapa da efeitos de verdade" 6) .•• Nascido jovem demais num mundo velho demais,
rcav:iliação dos fundamentos científicos da produção do discurso histórico o historiador dos anos 90 estaria, por sobredeterminação de sua individua­
se in:iugura na virada dos anos 60 e 70 com (para ser breve) a publicação lidade intelectual e renúncia à verdad" de um conhecimento, votado a
<:las principais sínteses de Michcl Foucault - les Mots et /es choses [As interpretar incessantemente e experimen..ir :nfinita:ncnte os :,ignos, os
palavras e as coisas] (1966); L'Archéologie du savoir [A arqueologia <lo discursos e as imagens de um saber acabado?
saber] (1969) -, das análises de Paul Veyne - Comme11t 011 écrit l'histoire
[Como escrever a história], (1971) - e das reflexões de Michel de Certeau Prestígios e desilusões do q�antitativo
- L 'absent de l'histoire [O ausente da história], (1973); L'écrit de l'histoire Tal não havia sido, entretanto, vinte anos mais cedo, a esperança
[A escrita da história], (1975). dos protagonistas da "nova história", tal como se exprimia at:-avés dos
Esses dois momentos definem no espaço de meio século um percurso
... , relativamente linear: da objetividade à subjetividade; da crítica das fontes
artigos lá um tanto eufóricos que, cm 19,0, Pierre Chaunu consagrou à
história serial 7, e cm 1971; François Furet à história quantitativa 8. A
:' à d:is categorias e modos de escrita. O questionamento da verdade (ou
1 constituição, lá onde as fontes o permitem, de séries temporais homogê­
validade) da história como forma de conhecimento traz, todavia, consigo neas, não apenas nos domínios da economia e da demografia, locais de
um:i dimensão considerável de relativismo: -se alguém estima, como o faz origem e terras eleitas do quantitativo histórico, mas também cm história
meu 1..olega e amigo Michel Foucault, que é preciso, de uma vez por todas, social, política, cultural ou religiosa, permitia prever uma transformação
se !ivrar da mitologia do verdadeiro e do falso··. exclama i:1dignado Aron radical da noção de acontecimento e de "fato histórico" cm geral, cons­
já cm 1972, "o lógico depõe imediatamente as armas"3• Ela implica, por truído e não mais dado, a partir de premissas que dependem ao mesmo
outrc- lado, a emergência crescente do sujeito do conhecimento: "Pode-se tempo da potencialidade da ·fonte (a série quantificável) e de uma pré­
constatar, entre os historiadores recentes", relc,·a com prazer, igualmente definição dos questionamentos a vir e das respostas que a documentação
cm 1972, de Certcau, "que essa rcssurreiç:10 do eu 1,0 disct.:rso histórico pode obter (a composição prévia de campos estatísticos e de interrogações
cor:1cça com a importância crescente, mas aind:: adicional, atribuída à numéricas). "Toda a própria concepção da ::rquivística vê-se radicalmen­
his:ária do sujeito-historiador: os Prefácios, cm extensão, se articulam te transformada justamente no momento em que suas possibilidades se
soc-:-c a história do objeto estudado e precisam o lugar do locutor"�. multiplicam pelo tratamento eletrônico d:i :nformação", observa f-rançois
A hipertrofia do sujeito-historiador. tal como ela se exprime com Furct. A quantificação autorizava a partir d-.:- então o historiador a recolher
vi�,..,r no manifcs:.:i da !-iistóri;:;. experimental. nã0 procede então apenas de fontes a priori estranhas ::: seu objeto e. segundo o tl'rmo cm uso na
1,
1 1

70 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 71

corporação, enviesá-las por uma boa causa, ou seja, as necessidade� de raciocínio informático intervenham diretamente na construção de seu tra­
sua pesquisa (o balanço demográfico de uma população a partir �as hstas balho? Como dar conta de outro modo do declínio relativo da enquc.te
de comunhão pascal; a composição socioprofissional de uma cidade na quantitativa em domínios onde ela havia sido pioneira, como a sociologia
base de uma lista de impostos; a evolução do sentimento da morte a partir religiosa retrospectiva ou a história do livro, justo agora quando as ope­
de testamentos perante tabeliães; a trànsformação dos comportamentos rações computáveis que formam sua base seriam infinitamente inais faci­
se�uais conforme os reeistros paroquiais etc.). As potencialidades mú.l­ litadas? As ações de Gutenberg (para não evocar os copistas que o prece­
tiplas de iniciativa ou de manipulaçãn.que a quantificação oferece não são deram) permanecem sólidas entre o povo historiador do fim do século XX.
certamente estranhas, de resto, ao sentimento de potência, já evocado, que e a onda quantitativa retirou-se por vezes bem rapidamente da praia que
_xx.
1
percorre a prática histórica da segunda metade do sécuio ela um instante pensou ter invadido para sempre.·
Com efeito, a introdução maciça do computador no se10 da pesquisa O segundo perigo sG inscreve num processo de desagrega<;ãú da
histórica a partir do final dos anos 70 constitui ao mesmo tempo um unidade dos saberes históricos e se liga principalmer.te aos domínios para
elemento fundamental n� alargamento das possibilidades e a renovação dos o
os quais computador tomou facilmente praticáveis tarefas antes julgadas
procedimentos e raciocínios. Seu aporte se apresenta já a��ra, enqu�n�o se fastidiosas ou mesmo insuperáveis: em primeiro lugar a econometria retros­
espera um primeiro balanço das pesquisas efetuadas, no mm1mo form1davel. pectiva e a demografia histórica. Procedimentos técnicos sofisticados, como
Nos mais diversos domínios, da econometria à iexicometria, da análise dos a busca de modelizações de tipo matemático, ou o recurso à análise fatorial,
textos à das imagens, das taxas de fccundidad-: aos modelos de desenvolvi­ afastam progressivamente da cultura comum dos historiadores blocos in­
mento dos presidiários às i-ertes urbanas, o instru.ner.to 1nfo:máticu permitiu teiros da pesquisa: comparados com as elaborações mais recentes, o
acum�lar, em uma escala absolutamente inédita.. informações perceptíveis Beauvaisis de Pierre Goubert, o Languedoc de Emmanuel Le Roy Ladurie
ou quantificáveis sob a forma de bases de dados,. multiplicar as elaborações, parecem um pouco exercícios para alunos primários, no momento em que
renovar as interrogações, verificar ou anular interpretações. O computador múltiplos indícios nos fazem infelizmente pensar que as principais aquisi­
foi para O historiador francês das últimas déCJdas, participante ativo da ções da demografia histórica ou da história econômica ·e social do segundo
revolução informática das ciências sociais e leitor assíduo de revistas Pspe­ terço do século XX, apenas muito incompletamente penetraram na forma­
cializadas Histoire et mesure [História e mediiJa, Le Médiéviste et l'Or­ ção geral de professores e _de estudantes de história. A l6gica institucional
dinateur [O medievalista e o computador] etc.),. o veículo de uma mutação e científica dos laboratórios conduz assim, muito paradoxalmente, ao iso­
tecnológica e O vetor de uma revolução metodológica sem precedentes. lamento progressivo das pesquisas mais inovadoras no domínio da história
Três perigos parecem todavia relativizar, nos primórdios dos anos 90, quantificável: o computador, em muitos domínios, aumentou as divisões
0 impacto da transformação induzida pelo recurso ao instrumental disciplinares e favoreceu o desenvolvimento em separado (em africâner:
informático, dissipar até certo ponto as euforias quantitativistas, e alimentar apartheid) das problemáticas. "VivemvS a fragmentação da história", es­
entre uma parte nada desprezível dos historiadores um relativo desencanto. creveu Pierre Nora na abertura de sua ·Bibliothcque des histoires" [Bibli­
A primeira dificuldade diz respeito ao caráter incompleto da revolução oteca das histórias], vetor do brilhante mas efêmero encontro da "nova
informática tal como operou:.se na França, muito progressivamente, durante história" e do grande público culto no meio dos anos 70: o computador
os últimos quinze anos. Ao lado de disciplinas que praticam uma utilização contribuiu sem dúvida de modo mais eficaz para a verificação desse fato
maciça e sistemática do computador, seja a título de base de dados e do que a ampliação multiforme do campo das abordagens históricas.
instrumento de cálculo (demografia, economia... história social ou política), O último perigo disposto na via ascendente que os anos 70 traçavam
sci:.1 sob a forma de corpus indexáveis (análi� de textos ou de imagens), para a história serial foi, de�de a origem. identificado nas exigências par­
q� ;m tos pesquisadores não consideram a tela mleligente que lhes foi of�­ ticulares determinadas pela mutação do estatuto das fontes e do papel do
,
recida pelo último avanço tecnológico da modernidade apenas uma �a�m­ historiador. Quantificar é, com efeito, constituir-se estreitamente prisionei­
na de escrever mais cômoda, ��m que o procedimento, ou, a fortwrz, o ro, a um �ó tempo, de uma série documentária e de uma linha interpretativa
Questões 73
72 PASSADOS RECOMPOSTOS
na Europa, e que provoca ainda hoje, segundo o caso e o humor, a
determinada a priori p::la própria elaboração do material cifrado. A crítica admiração ou o espanto, a hilaridade ou a irritação dos historiadores
Yf t
das fon!es, tal como os mestres eruditos do método histórico, do século italianos, alemães, belgas, espunhóis ou anglo-saxões, cujos r�cortes
XVII ao XX, afirmaram, não perde os seus direitos: apenas se projeta do ;f> associam mais comumente a história, aqui à filosofia, ali à filologia.
um para o múltiplo, do documento isolado aos seus procedimentos de +- Da própria geografia veio, no curso dos anos 70 e 80, a ruptura
bomoaeneização e processamento. A c;onstituição do materiai quantitativo
C,

progressiva de contrato. A geografia de referência dos historiadores era
sobre O qual se funda o raciocínio deve igualmente responder a ex1genc1=is
• A

a geografia lablachiana: geografia humana (demasiado humana?), anco­


da mesma ordem, sob o risco de cair num empirismo por vezes fecundo, rada na percepção das glebas e das culturas, das paisagens e das tradições,
mas sempre, por si mesmo, insuficiente: a quantificação exige então a das permanências estruturais e das lentas transformações históricas; abor­
explicitação dos questionamentos preliminares do historiador assim como d_agem global, história total dos países e dos homens, construída à imagem
a verificação ulterior de sua pertinência'e de s4:!. validade. As interrogações e para a exaltação da França ainda amplamente rural do desvio da virada
e as interpretações finais do historiador serial remetem, enfim, o mais das dos séculos XIX e XX. O questionamento dos pressupostos ideológicos
vezes, às problemáti�as globais dos domínios ronsiderados, expressas nas da construção de Vidal de La Biache e de seus herdeiros, a afirmação
cateaoria
� s mais gerais da linguagem das cifras: alta ou bai�a, aceleração
. rigorosa e por vezes veemente da autonomia do procedimento geográfico,
ou desaceleração, concentração �u difração... A ,quantificação parece assim, as novas perspectivas aher�as pel.a <'artografill. informatizada, a ambição de
mas em escala diferente e segundo vias inéditaS, reencontrar os métodos, uma geografia exclusivamente ce,1trada em torno da noção de espaço em
as questécs e oc; debat�s. da história clássica; e a posicão paroxística do suas acepções antigas (geografia rural, inàustrial, urbana, geografia dos
manifesto da história experimental (quantific-.ar! qt!antificar!) traduz em transportes) ou novas (organização do território, geopolítica, geo-estraté­
verdade, sob a forma de uma fuga para frr.nte, uma inquietação lancinante: gia) conduziram os geógrafqs, no plano intelectual, a uma separação de
que O serial, para além dos seus aportes e seus confortos, não seja aquilo corpos ainda mais paradoxal, porque o eusino das duas disciplinas perma­
por que a razão histórica mudou de base. nece estreitamente unido e porque os historiadores conservam globalmente
o gosto pelos mapas e croquis, quando não a nostalgia das glebas.
O declínio da razão geográfica em his�ória Filha deserdada de amores levados pelo bom ou mau vento das
Quantificar é ainda operar uma rcduçiu do real para fins c�tatís­ "lógicas espaciais", a geografia dos historiadores neste final do século XX
ticüs ou comparativos por abstração provis.õria do dado histórico ou afirma ainda solidamente sua preseT\ça no seio do processo histórico: para
geng,áfico: objeto da maior importância cm uma perspectiva experimen­ ficarmos com um único exemplo, o empreendimento coletivo do Atlas de
tal de erradicação das contingências temporais.. espaciais ou culturais, que la Révolution Française [Atlas da Revolução Francesa] 9, expressão grá­
reprova e rejeita sem apelação "o prazer que 3 árvore tira de suas raízes, fica e cartográfica do acontecimento revolucionário, na curta ou média
a felicidade que se experimenta por não sentir-�c nascido do arbitrário e duração sob seus diversos aspectos, associa estreitamente mapas e esque­
:· - ' t ru to..."
d�... ac�so, mas saído de um passado - hcn.:·= iro, f1 oraçao, mas, elaborações espaciais ou est:itístic:is e discurso histórico, numa ar­
A crise da razão geográfica em história no último decênio do século
ticulação intelectual onde o mapa é a um tempo transcrição geográfica
XX _ que determina por sua vez o enfraquedmento gradual das causali­ do saber histórico, elemento de raciocínio, fonte de interrogação e motivo
dades espaciais no raciocínio histórico - se alimenta todavia, para além dos de interpretação. Igualmente, a história política como a história religiosa
imperativos computáveis dos métodos seriais.,. de fontes mais profundas. A ou a história sócio-econômica continuam a integrar, mais ou menos
dt.:pla formação - a um tempo histórica e g...:,0gráfica - dos historiadores fundamentalmente, o mapa a seus questionamentos. O tempo e o espaço
f:-;.mceses, a utilização sistcmátic� que fazem do mapa (de localização, de da geografia de Vidal de La Biache, c0mo o acontecimento e a duração

1
densidade ou dinâmico) no raciocínio e na exposição, constituem, é sabido, da análise braudcliana, continuam a compor o quadro original de uma
uma especificidade importante do recorte do campo dos saberes tal como reflexão histórica obcecada pela inteligência global do passado.
0 concebeu, no fi:n do século XIX, a Terci;ira República, recorte único
:,,,
'j
'I 74 PASSADOS RECOMPOSTOS
. \.:
?.. :
Questões 75
Não podemos, entretanto, deixar de realçar um certo enfraquecimen­
A casa dos historiadores é todavia, doravante, tão vasta, cada peça,
to da dimensão geográfica das problemáticas dos historindores contempo­ t��.
J·:�i�t
cada porão, cada sótão tão abarrotado - de conhecimentos, de referências,
râneos. A reavaliação, por parte dos geógrafos, dos recortes territoriais
de notícias e querelas - que há qualquer coisa de temerário em se sugerir,
herdados da França do Ancien Régime, ·assim como da Fran'ia revolucio­
nária.. não deixou de influir no &bandono, por parte dos próprios historia­ · mesmo sob a forma de indícios sucintos, as vias que a razão. historiadora,
neste final de século XX, parece adotar para ultrapassar a crise onde a
dore:;, de !!ntidaàes geográficas fechadas ou pré-d�finidas em proveito de
levou o anti-humanismo moribund� dos anos 60. Vamos tomar três, à
quadros temáticos e problen,áticos: a "departamentalização da história da
guisa de. pedras de espera, ou de hipóteses audaciosas, chi lo sa?
França" viveu; monografias rurais ou urbanas, diocesanas ou regionais, são
O primeiro indício repousa na redescoberta, já inquisitorial (a época
agora geralmente concebidas como o quadro espacial de um questionamen­
é tão barroca quanto chicaneira), já patética (mas que seria um historiador
to que lhes é por essência estranho. Ao mesmo tempo, as análises
destituído do sentimento da morte?) do arq�ivo, do documento bruto, dito,
macroscópicas (centradas, em economia como em política, em tomo da
em forma de redundância, linguagem comum, que alimenta "o sentimento
noção de "mercado") assim como, ao contrário, a influência da micro­
ingênuo, 111as profundo, de rasgar um véu, de atravessar a opacidade do
história italiana rn, transtornaram as escalas espaciais das interrogações e
saber e de ter acesso, como após uma longa e incerta viagem, ao essencial
associaram contextos espaciais específicos e moventes a temporalidades ou
dos seres e das coisas" 11• Ingenuidade, no que diz respeito à prática co­
questionamentos particulares. A .uaidJdc de 'uga.:- não existe mais e o
tidiana da classificação e da verificação dos fundos pelos homens do ofício,
espa..;o faz menos sentido: é nessa brecha do continuum espaço-temporal
nestes tempos de elaborações quanti!ativas complexas e de análises finas
· da memória que se engolfa a empresa subversiva de estranhnmento e de
d0s discursos e das configurações retóricas? Provavelmente. Mas t<!lvez
"descontextualização" do historiador experimental.
seja necessário ler na fascinação contemporânea do texto a emoção primi­

r:
!· tiva de uma leitura original, de um encontro que alimenta por sua vez a
Uma crise de inteligibilidade?
i Deportada progressivamente·de seu objeto .para o sujeito-histo­
busca da inteligibilidade para além da acumulação das interpretações e dos

1:
"efeitos de verdade". Já seria alguma coisa.
riador, entregue à mediação (não conclusiva entretanto) do quantita­
Interrogações diversas e contudo convergentes em torno da
tivo. desviada do enraizamento no espaço, a pesquisa da causalidade
narratividade histórica como modo de inteligibilidade constit�em no
"'·,,. em história atravessa assim sua crise fim-de-século. Os paradoxos do
.
ti

anti-humanismo que percorre, há tri!!ta :mos, o conjunto do campo das


mesmo período, na virada dos anos 90, o espaço principal de uma reflexão
inédita e exigente através de obras tão desscmelhantcs na intenção e no
ciências sociais, forneceram até este ponto uma linha interpretativa
conteúdo como as de Paul Ricoeur - Temps et récit [Tempo e relato]
para recolocar essa crise em um contexto explicativo mais geral.
(1983) - e de Jacques Ranciere - Les mots d'histoire [As palavras da
Assim, enquanto o ego do historiador ocupa c omo senhor absoluto o
história] {1992). Se a urdidura ou o "contrato narrativo", se o relato
lugar onde antes reinava o fato bruto e como que ingênuo da idade
histórico cm seu agenciamento tornado infinitamcr.te complexo na era das
do �ientismo, uma reavaliação mais ou menos radical da capacidade
estruturas e da longa duração, reconquistam desde há algum tempo a
da razão humana para alcançar uma verdade do conhecimento do
atenção dos filósofos e dos historiadores, isso se dá provavelmente porque
pass3do rejeita em bloco os grandes modelos explicativos para se
eles permitem fugir da querela mais do que secular saída do "projeto de
deleitar ludicamente com a experimentação sistemática das hipóteses
objetividadc"(Paul Ricocur) da história; mas tambér.1, talvez, porque eles
e ir.tcrprctaçócs "revisitadas" até ao infinito. Senhor do jogo, o his­
autorizam a reintrodução sem pretcnsãc- totalizante da causalidade cm
tori3dor parece por vezes ter perdido a percepção do objetivo de sua
uma perspectiva onde narrar já é explicar.
1
dis:iplina - que não pode ser outra coisa que não a inteligibilidade,
Reintroduzir a noção de �entido é. talvez, a ambição mais secreta,

1
par:: cada geração sucessiva, da n,emória conscrvrida dos homens, das
mas também a questão mais obsedantc que percorre surdamente, com uma
COi$3S e das palav ras que não existem mais.
intensiddc m::is viva ainda por estar mais retida na expressão e na forma,
76 PASSADOS RECOMPO�"TOS Quesrões 77

o trabalbo de numerosos historiadores do último decênio do século. O que Territoire. Les limites rrd111i11istralives. 6. Les Societés politiques. 7. Médeci11e et
sa111é.
o encontro do arquivo provoca, o que o relato torna inteligível, é a p.!rtir
daí 2 busca do sentido - situe-se ele em uma intuição inicial, ur.rn hipótese 111 J. Rcvcl, "L'histoirc au ras du sol", prefácio à tradução francesa llo livro de G.
fundamental, uma temálil:a central, uma interpretação final ou um "pensa­ Levi, Le pouvoir au vil/age. Histoire de'u11 o:orcisle da11s le Pié111011t di XVIII'
mento oculto" - que cabe fornecer-lhe um foco cuja tcmpo�alidade por siécle, Paris, Gallimard, 1989, pp. I-XXX111 (edição italiana, Ti;rim: 1985).
vezes é apenas o pretexto: mas chegaríamos até pretender que o estudo da
história é bom para a vida? 11 A. Farge, Le Go1i1 de l'arc/rive, Paris. Hachettc, 1989, p. 14-15.

Nota�
1 Alter histoire. Essais d'/,istoire cxpéri111e111ale, reunidos por D. S. Milo e A. Boureau,
Paris, Lcs Bcllcs Lcttrcs, coleção "Histoire", dirigida por M. Desgrangcs e P. Yidal­
Naquct, 1991.

! Cit:ido aqui na tradução de i-1. Albert, De l'utilité e/ l'i11co11vé11ic11I des é111des


historiques pour la vie (segunda consideração in:emj)cstiva), Pa,is, Garnier­
Flammarion, 1988, introdução de P.-Y. Bourdil.

3 Leço11s sur l'histoire, Paris, 1989, p. 145.

• M. de Ccrtcau, "Une épistémologic de trnnsition: Paul Veync", in A1111ales ESC,


XXVIII, 1972, p. 1325.

5 L Fcrry, A. Rcnaut, La Penscé 68. Essai sur l'a1:rhhu111a11is111e co111e111porai11e,


Paris, 1985.

6
V. Dc�combcs, "Lc momcn1 français de Nietzsche", in A. Boycr, A. Comtc-Sponvillc,
V. Dcscombes et alii., Porquoi 11011s 11e sommcs pas 11ietzsc/1ée11s, Paris, Grassei,
19'91, p. 113.

7
P. Ch�unu, "L'histoirc séricllc, bilan ct pcrspcctive$'', in Revuc f/istoriqtte, 494,
:970, ;i. 297-320; cf. igualmente "Histoire quantitati\'e ou histoire serial", Cahiers
VWredo Pareio, IllL, 1964, pp.165-176.

" F. Furet, "L'histoirc quantitative et la construction du fait historiquc'', A1;11ales ESC,


XXYI, 1971/1, p. 63-75, retomado cm J. Le Goff. P. Nora (editores), Faire de
l'i-:istoire, t.l - Novos problemas), Paris, 1974. pp. 42-61.

" S. Bonin e C. Langlois (diretores). Atlas de la Ré,·ol11tio11 Fra11çaise, 7 volumes


p-.1blicados desde 1987. l. Ro111es et co1111111111ica1io11s. 2. L 'E11seig11e111e111, l 760-
1815. 3. l,'Ar111ée e; la g1 ..·rre. 4. :..e Territoire. l<<alités e représe11tatio11s. 5. Le
DOIS

História e Ciências Sociais:


Uma Confrontação Instável
JACQUES RE.vEL

Nossas sociedades toma�am-se mais opacas para si mesmas, incer­


tas quanto a seu presente, seu futuro e, com isso, mesmo quanto a seu
passado. Ao ·,•1esmo !empo, os grandes paradigmas unificadc>res que ha­
viam servido de arquitewra abrangente ao desenvolvimento das ciências
sociai5 desmoronaram, e com eles o modelo funcionalista que tinham,
'
1
1 grosso modo, em ccmum. A história global (ou a história total), cujo
projeto havia orientado os esforços de três gerações de historiadores, vru­
se d('sse modo, ao menos provisoriamente, posta elltre parênteses.

A história e as ciências sociais: esse poderia ser o tema de um


concurso acadêmico, se eles ainda hoje existis�em. Poucos argumentos
terão sido mais obst;nadamcntc invocados, ao menos na França, desde o
fim do século XIX. [m 1894 foi publicado o livro de Paul Lacombe, De
l'histoire considérée comme science [Da história considerada como ciên­

.' ,,,.,
j1 �·. cia], 4ue pode ser visto como um dos primeiríssimos de uma longa série.
.••
·, Em 1994, asAnnales abandonam o subtítulo que Lucien Fcbvre e Femand

l f
Braudel lhes haviam encontrado após a guerra, o célebre Économ;.::s,
sociétés, civilizations [Economias, sociedades, civilizações], por uma nova
('5nnula: Histoire, sciences sociales [História, ciências sociais]. Nova,
r:1as cm verdade muito antiga: entre esses dois lim:tcs de um século,
j)oder-sc-ia sem muito esforço estabelecer uma primeira lista das proposi­
ções e dos debates que alimentaram o tema: sem qualquer pretensão de ser
exaustiva, ela contaria muitas dezenas - mais provavelmente centenas - de
intervenções de importância e formas diversas.
Uma tal continuidade não deve, contudo. iludir. Ela induziria ao erro
:iquele que dela tirasse a conclusão de que temos aqui um problema cl.íssico,
e.stabilizado cm seus termos e - por que não? - cm suas soluções. Pois tudo
5-C de-... ao contrário. Durante um século, a confrontação entre a história e as
ciências soci;iis foi o espaç'l de um debate difícil e instável, e que ainda hoje
!. 8(' PASSADOS RECOMPOSTOS Qucscõcs 81

pem.1a!1ece inteiramente aberto. Ela apresenta caracteres contraditórios. Com


efciro, na experiência francesa, tudo se passou como se a história devesse O golpe durkheimiano
m2'.uer, de direito, relações privilegiadas com as ciências sociais pelo fato de Retornemos então à virada dos séculos XIX e XX. Na Univer�idade
ser, no fundo, uma delas. Quatro gerações de historiadores viveram, tácita reconstruída pela jovem Terceira República (e da qual a "Nova Sorbonnc"
ou e..-xplicitamenle, com essa convicção. Mas uma vez exposto o princípio, é o retumbante emblema), a disciplina J-.istórica beneficia-se de uma posição
tudo estava por construir. Tudo, ou seja, as modalidades da coexistência :: prc::mincntc. Frecminência ideológica: a ela é atribuída a missão essencial
da troca entre as diferentes disciplinas. Nesse ponto - aquele onc:: se definem de enunciar a identidade e as expectativas de uma nação ferida por sua derrota
e se organizam práticas -, a evidência parecia nublar-se. Por trás da mesma
_diante da Alemanha - pcnsc�os cm Lavisse. Preeminência cicntíf ü;a: ela
pros:-osição geral, que diz que a história e as ciêr.<:ias sociais possuem objetos, encarna por excelência o método "positivo", a cxigêll'.::ia erudita e, para além
preo:::upaçõcs e procedimentos comun�, sucederam-se, por vezes até se com­ dela, o ideal erudito que deve contribuir para o rearmamento intelectual e
bateram, projetos, modelos de conhecimento e organização de saberes muito moral de um país que prepara a rcvanchc. Preeminência institucional enfim:
profundamente difcl';nciados. Uma palavra pode comodamente resumir esses provid« de uma legitimidade antiga, a disciplina se vê cm via de
aspcetos contrários: a palavra interdisciplinariàade, que, sob variáveis for­ profissionalização rúpida; ela redefine seus currículos e seus padrões, sendo,
mas. serve para rle:;ignar uma espera e permite medir, à revelia, o afastamento a esse título, uma beneficiária particularmente mimada do espetacular cres­
do :ibjetivo. A inlcrdisci!)linaridade é um slogan voluntarista e votivo (é cimento universitário dc:;scs ,,nos. S:::u !11'5!·:>dv - "o método" - torna-se uma
preciso pensar sempre nela), mas ela alimenta. ao mesmo tempo, a má referência quase obrigatória. No essencial, ela se identifica com a crítica
coo:sciênci..i ou a ironia dos eruditos (ela jamais se realiza). erudita de textos, do qual o clássico lrztrtJducti()n au.x étwles historiques
Convém, entretanto, levai a sério essa tensão, e ver nela algo mais (Introdução aos estudos históricos], de Langlois e Seignobos (1898), reca­
do que um lugar-comum da retórica académica. Ela é, ctetivamcnte, pitula os princípios de base para estudantes, mas cujo modelo orienta no
inseparável de um projeto intelectual continuamente reivindicadu na lon­ mesmo momento uma boa parte dos estudos literários. Frente à história, as
ga duração do século, mas descontínuo cm suas realizações assim como outras ciências sociais são recém-chegadas que dificilmente encontram seu
cm sua concepção. Esse projeto, e o debate q-.ic ele alimentou, não é lugar e s.::u reconhecimento. A geografia, tardiamente constituída como dis­
esi,-ecificamcnte francês. Paralelos poderiam ser encontrados na Alema­ ciplina unificada sob o impulso de Vidat de !...a Biache, é a que melhor perfaz
.;i.
nh�. na Itália ou no mundo anglo-saxão, por exemplo, segundo cronolo­ seu caminho, mas permanece na condição de irmã caçula, na órbita da
,,
'! gi.is mais ou menos distanciadas. É impressionante se constatar todavia história, apesar de uma notável fbra-são. A economia permanece tradicional­
que essas diversas experiências não se parecem muito e que elas não se mente acantonada nas faculdades de direito e, ainda aí, cm posição subor­
coc:mnicaram entre si, ou muito pouco. Ocorre que cada uma tomou forma dinada. A psicologia é dividida en!re o ensino da medicina (cm sua parte
e p1,:1ou sentido no seio de um contexto cuilural e institucional muito experimental) e o da filosofia. A lingüístic:? não possui existência autônoma.
p.1.:-:icular, ao qual deve traços irredutíveis. T0davia, hú um:i originalidade A última ciência social cm data, a sociologia, é provavelmente aquela cuja
da Ycrsão francesa, que nos incumbiremos .;-;? car:ictcrizar aqui; ela pode fortuna é a mais paradoxal: a uma csp.:�cular afimiação teórica, que se
certamente ser identificada com três caracteres: mais do que qualquer identifica de início com a obra de Durkheim, i'i multiplicação das frentes de
ou:ra, ela foi voluntarista, e exprimiu-se pM tentativas reiteradas de reflexão crítica e de pesquisa (o que é ilustr:Jdo, a partir de 1898, por L 'A 1111 ée
ccistrução de um espaço ao mesmo tempo e?i:-tcmo!Cgico e institucional; sociologique [O Ano sociológico]), não corresponde uma verdadeira acolllida
m:.:.is do que qualquer outra, ela se desenrolo:.! cm ,·aso fechado e, cm todo no seio do mundo acadêmico. A resistív el c:?írcira de Émile Durkheim e, mais
c::so, permaneceu longamente surda aos dct::1cs estrangeiros; finalmente, ainda, a de seus discípulos, o tcstcmunh:l..71 1 .
a;:-,::nas ela deu ;'t história um lugar de pr,::iciro plano frente às outras É desse lado, o dc uma discipli:-.3 mal reconhecida e ultramino­
ci:::ncias sociais. Para tentar compreender css:1 originalidade, pode ser útil rit:íria, que surge a primeira proposiçjo de t!:na unificação das ciências
re:ornar aos mo,: 1 entc:; succs::ivos dessa confrontaçf10. sociais. Ela constitui, c111 muitos aspectos, uma espécie de golpe
8í. PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 83
epistemológico. Ao método erudito crítico, Durkheim e os seus opõP;m
mesmo de a Primeira Guerrá Mundial dizimar a equipe durkheimiana,
as reoras bem mais ambiciosas do método sociológico; à codificação de
sinais de resistência se manifestaram. Resistências co,1servadoras, em
uma profissão, um plano para a Nganização d:'.S ciências sociais. Ou
face de um conjunto de proposições que questionam, de uma vez, muitas
melhor, "da ciência social", da qual a sociologia seria, segundo eles,
p osições e hábitos adquiridos, mas não apenas elas. As resistências sur­
chamada a definir o cânone evistemológico pr�ritivo e, ao mesmo tem­
gem também do lado daqueles que, med:ndo u "crise da razão" que se
po, garnntir a unidade do conjunto. Pois nada jt.:.Stifica fundamentalmente
abre por esse tempo, estimam que o modelo de científicidade - o modelo
a seus olhos a divisão disciplinar do trabalho, senão as irregularidades da
das ciências da natureza - reivindicado pelos sociólogos ja está obsoleto,
história e a diversidade das competências técnicas locais, que são sem
e que seria conveniente reconstruí-lo sobre novas bases.
dúvida importantes mas que permanecem secundárfas em relação ao
projeto científico de conjunto. Assim mesmo é necessário que c�da �?1ª A alternativa r,�gmática: as "ciências do homem"
das práticas particulares aceite tomar seu lugar no novo espaço c1ent1f1co
É nesse contexto, e em particular a partir desse debate, que deve
definido pelo sociólogo, e que ela resolva, ao mesmo tempo, reformular
ser situa�a e compreendida a outra proposição esboçada então para or­
seus (maus) hábitos de pensamento para se conformar ao manual de
ganizar as relações entre a história e as ciêncins sociais. Ela não possui
encargos que lhe é proposto. Uma série de confrontações tensas vai des�e
e não possuirá jamais a nitidez e a segurança epistemológica do projeto
modo opor os durKhe;mianus - co,numentc representados por Franç01s
. . durkheimiano. Para falar a verdade, ela a;,resenta menos um modelo de
Simiand - aos geógrafos, aos psicólogos e sobretudo aos h1stona dores 2.
cientificidade do que sugere um procedimento e,npírico: provar o movi­
Em face desses últimos, Simiand aproveita a C'casião de urr.. air.plo debate
mento ao caminhar. Em 1900, Henri Ben funda a Revue de synthese
internacional sobre o caráter científico (ou não) da história: ele o faz
r historique [Revista de Síntese Histórica]. A nova revista, como todos os
,J
deslvcando os termos do problema e demonstrando que não é sobre a
!� empreendimentos ulteriores de seu animador, destinava-se a acompanhar
.erudição que pode ser fundada uma tal pretensâ'l à cientificidade, mas
l! a realização de um projeto aesmesurado de síntese enciclopédica dos
sobre a aceitação das regras constitutivas de uma ciência positiva: "Não

,,
l!i conhecimentos. Mas ess� grande arquitetura importa menos do que a
:1 há, por um iado, uma história dos fenômenos sociais e, por outro. uma
maneira de fazer que é escolhida. Trata-se de criar um espaço livre - e,
t.Z ciência desses mesmos fenômenos. Há uma di!:ciplina científica que, para
reconheçamos, fragilmente ordenado apesar da obsessã0 dassificatória de
atinoir
� os fenômenos que são objeto de seu estudo, se serve de um certo
- Berr - de confrontação entre práticas ciectíficas que, as mais das vezes,
método, 0 método histórico". A especificidade da história é entao rede-
se ignoram. E como Berr está convencido de que a história, e não rr.ais
finida - e limitada: ela pode e ela deve abrir a dimensão do tempo para
a filosofia, pode ser o espaço da síntese dos saberes, a primeira ocupa
a experimentação sociológica.
em seu programa um lugar central, melhor: organizador.
Trata-se então, no caso, menos de uma interdisciplinaridade do que
As Amiales, fundadas por M.:!rc moch e Lucien Febvre em 1929,
de algo que poderíamos chamar de a-disciplin�ridade, uma vez que as
tomarão a sucessão ao afinar o projeto, livr:!.':'ldo-o de suas escórias e de suas
disciplinas são reduzidas a especializações ir:e,·itáveis no seio de um
aderências mundanas, dando-lhe ainda a legitimidade universitária que lhe
mesmo projeto de conjunto. Em L 'Année sociologique como em seus
faltava. Bloch e Febvre, cujas posições, ali�, não são exatamente idênticas,
trabalhos pessoais, os discípulos de Durkhcim são o exemplo, tanto ao
são bons exemplos da trajetória que aqui tentamos precisar. Um e outro
passar pelo crivo de suas exigências a produção científica contemporânea,
formaram-se nos primeiros anos do mo'-imento durkheimiano, e ambos
quanto ao penetrar eles mesmos em terrenos ...:e pesquisa especializados
reconheceram sua dívida intelectual em ��lação a Durkheim: sua escolha
:ipós ter adquirido a competência necessária. Esse plano de unificação não
de uma história social e sua recusa às c.0mpartimcntações disciplinares
terá, contudo, um futuro imediato. O que rcYda esse fracasso é uma
datam da época cm que freqüentaram a ectão jovem Amzée sociologique.
relação maciça de forças: por mais brilhante que seja, por mais agressiva
Contudo, eles escolheram não se aliar a uma nova ortodoxia, a uma escola.
que se queira, a sociologia r.30 teve os meios de sua política. Antes
Subscrevera111 à crítk:a do método erudito :nas nem por isso se dispuseram
84 PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 85

a aceitar as regras imperiosas da epistemol o gia s ociológica. A opção de margens d o sist�ma acadêmico (mesm o na marginalidade prestigi osa d o
organizar a tro ca entre disciplinas em to mo da história ganha aq�i toda a
College de France); ela também inclui pesquisadores cuja formução ori­
sua significaç ão. Sem dúvida, Bloch e Febvre são historfado res e o primeiro
ginal era de tipo filosófico, o que foi o caso d ominante entre os sociólo gos
título de sua revista foi, não esqueçamos, Annales d'histoire économique
e antropólogos franceses. Sem forçar muito as c oisas, poder-se-ia assim
et sociale [Anais de história ec onômica]. Resta o fato de que o programa
sugerir a c ompreensão do brcvt= porém intens o moment o estruJuralista -
iniciado a partir de 1929 é o de uma dupla confrontação: po r um lado, entr�
do início dos anos 60 ao início dos 70 - como uma ret omada, em term o s
as múltiplas abordagens do presente, �lustradas pelas ciêndas sociais e qc e
novos, da ambiçri o durkheimiana (é possível perceber nele, simultanea­
devem enriquecer os mo delos de inteligibilidade do passado ; e por outro,
mente, uma tentativa de emancipação da tu tela d os hist o ria� ores, da parte
cm sentido inverso, entre a experiência d o passado e a interpretação d o
das ciências so ciais reunidas sob a bandeira de uma :deol ogia científic:i
c ontemporâneo . É então , de fato : ,:1 complexidac!.e do tempo social que serve
a-histórica, e até anti-histórjca). Viu-se, em to do caso, reaparecer então
de eixo para o enc o ntro interdisciplinar. Esta reorganização se d uplica p or
o pr ograma de um mo del o de cientificidade 11nica, lançando no infern o
um outro desl}zamento significativ o. Para Durkheim e os seus, apenas o
do empirism o todas as práticas eruditas que lhe resistiam. Os historiado ­
métod o poderia pretender u nificar o campo das ciências sociais; já para os
res,ao co ntrári o, jamais deixaram de defender a abertura pragmática. O
historiad ores, este papel caberá ao objeto sup ostamente c omum destas
célebre texto de Fernand Braudel sobre a "lo nga duraçã o", publicado em
ciências, ou seja, o htJmem na sociedade (e não é por acaso que durante
19583, testemu nha essa atitude. Ele opera em duplo nível: reivindicand o
muito tempo, na França, a expressão "ciências do h omem" prevaleceu sobre
o caráter central da dimensão temp0rnl na análise e c ompreensão d os fatos
"ciêndas sociais''). Eis aqui esbo çado um modelo menos brifhante, pNém
sociais, o que significa lembrar o espaço i rrediJtível da história no sei o
sedutor, mais empírico, até mesmo artesanal, e também, de i�ediato, mais
das ciências so ciais; mas também, nu m plano mais estratégico e que
operacional por parecer mais tranqüilizador.
traduz uma antecipação muito precoce da crise por vir, defendendo uma
O imediato vai durar. N ão se trata aqui de evocar, a o meno s para
::oncepç ão mínima, "ecumênica" (o adjC?ti�o é de Braudel) de toda prática
esboçá-lo, o que foi a história das ciências sociais n o sécul o XX. N o temos
da interdisciplinaridade, a serviço da qual "a história - talvez a menos
entretanto que, para a maio ria delas, o reconl:ecimcnto e a instituci o naliza­
estruturada das ciências d o h omem - aceita todas as lições e� sua múltipla
ç ão u niversitária foram adquiridos tardiamente n o s ano s 50 e, s obretud o , vizinhança e se e sforça pa r a repercuti-las". Visã o m o desta, esta de u m
nos 6U. A história benefici ou-se c om essa minoridade prolo ngada. Tes­
terreno comum e de uma 1í1Zgua franca. Ela não · bastará, a curto praz o ,
temu nha este fat o , para além das Amiales, o papel central o cupad� por
para deter a ofensiva estruturalista, mas servirá eficazmente para limitar os
uma instituiçã o que foi seu imediato pr ol o ngamento, a VI Seção da Ec'Jle
danos. Melho r, ela alimentará a estratégia de rec onquista levat!a a cabo -
Pratiq ue des Hautes Étudcs [Esc ola Prática de Alt os Estud os] (ciências
ser:i1pre empiricamente, e provavelmente sem ter clara consciência dist o -
t.conômicas e sociais), fundada s ob o patronato de Lucien Febvre, p or
pelos historiado res n o próprio terreno das ciências sociais.
muit o temp o animada po r Fernand Braudcl, e t o rnada, cm 1975, Éc ole
des Hautes Études en Sciences S ociales [Es.c o la de Alt os Est ud o s em Uma interdisciplinaridade integradora
Ciências Sociais]. Durante muit o tempo dirigida p o r hist oriadores, ela
Uma série de tentativas de hibridização, das quais a antropologia
pode muit o bem servir para ilustrar essa via empírica.
histórica triunfante dos anos 70 foi o exemplo mais espetacular, é testemu­
Se nos detivem os s obre essas duas c o nc�p�ões antigas da interdisci­
nha disso4 • P odemos ler aí um esforço vigoroso para reformular, cm con­
plinaridadc, nã o foi po r g osto da retr ospecti"a, mas po rque elas c o nsti­
junt o, a distribuiçã o das relações de força entre as ciências sociais e as
tuíram, até muito recentemente, os dois pólos de um debate rec o rrente,
regras da troca interdisciplinar. Sem dúvida, a tradiçã o hist orio gráfica cas
mesm o que ele tenha se perpetuado cm con:cxtos profundamente ren o ­
Annales poderia reclamar para si o pi o neirismo de algumas experiências
vad os. A reuniã o cm torno de uma epistemologia u nitária, prescritiva,
que permaneceram, entretanto, individuais e is oladas: a de Marc Bloch, é
veio, o mais das vezes, �e disciplinas minoritárias ou acant o nadas nas
claro Les Rois thaumaturges [Os reis taumaturg os] (1924); Les Caracteres
fi,

,,
86 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 87
'i
11
:•
origüzaux de l'histoire rl.lrale française [Personagens originais da história gráficas das produções desses anos para verificar que se tornou normal, até

·-:�:
·-�-��
rural fran�esa], (1931); La Société Féodale [A sociednde feudal], (1939-40); mesmo imperativo - quase também ritual - para ·os historiadores fundar
depois, uma geração mais· tarde, as experiênciaSs tão diferentes entre si, de seus procedimentos e seus resultados remetendo acs trabalhos dos antro­
-��
A. Dupront ou d� J.-P. Vemant. Mas é numa escala totalmente diferente que ,,{(;_
p6lo�os e dos sociélogos, a partir de agora parceiros privilegiados.
!· se organiza, a partir de então, o confronto. Em torno de alguns grandes �
�-
,,;;:: (

.).
De resto, não é indiferente que a antropologia e a sociologia tenham­
domínios ele investigação - a família e o parente�co, o religioso, o econô­ se tomado as protagonistas da história. Por muito tempo, a geografia e a
mico, o político -, seni ·grande cuidado de ortodoxia teórica - entre as economia pareceram dever representar esse papel, m::� em condições com­
referências dominantes encontraremos certamente Lévi-Strauss, mas tam­ -�� pletamente diferentes. A geografia propunh� a um só tempo, a possibilidade
bém Dumont, Hertz e Mauss, Polanyi, Chayanov, Murr� ou Sah1ins - e nem de uma reflexão sobre a inscrição dos fenômenos sociais no espaço e um
sempre de coerência, a antropologia hist'.5rica assegurou empiricamente a princípio forte de realidade: �la parecia ofe:ecer à análise histórica objetos
presença e as posições dos historiadores sobre a maior parte dos terrenos concretos, visíveis e quase tangíveis. O lugar da economia, por seu lado,
ocupados pelas ciências sociais. Ela, seguramente, fez mais do que isso. foi assocfo�o à ccnvicção mais ou menos explicitada que pretendia que,
Em 1978, André Burguiêre justificava muito lucidamente a atração exercida através dela, se atingiriam os mecanismos ;>esados que orientariam o des­
pela antropologfa nesses anos explicando que, no momento em que nossas tino das sociedades humanas. Em sua própria orga�ização, Le Mediterranée
sociedades contemporâneas renunciavam, por sua própria conta, & concep­ (O Mediterrâneo] de F. Braudel (1949) traduzia bem essas preferências,
,;)
ção de um progresso linear, ela tinha podi�o corresponder "à necessidade com uma p:imeira parte inteiramente consagrada ao diálogo entre o homem
,.;
de reencontrar [no passado] os diferentes '-aminhos da tra11sfo:-mação. e o meio, e un,a segunda aos tempos da atividade econômica. Mas as coisas
inventariá-los, compreender seus mecanismos, afirmar sua pluralidade"5• O mudam nitidamente com a promoção de disciplinas que, como é o caso da

,�;
!� fato é que esse retorno crítico aos hábitos do oficio também foi a ocasião
de um �spetacular movimento de expansão.
antropologia e da sociologia, são de algum modo coextensivas à história,
e que têm em comum com ela uma semelhant� indeterminação de seu
Com efeito é então que parece se abrir desmesuradamente o que ,·;J:.:. objeto. O confront.:> não é mais setorial, limitado. Ele tende, mais ou menos
Emmanuel Le Roy Ladurie chamou de "território do historiador", termo que conscientemente, para uma integração e.ias disciplinas cuja identidade perde
;:
,,r..,.
tit!

!11,
é por si só um programa. Registra-se uma mu1tiplicação, que parece então
sem limite previsível, dos procedimentos e dos objetos. Cada estação, cada
pouco a pouco sua evidência. Tal terá sido talvez o projeto mais ou menos
cor.fesso dos anos 70, e ainda de uma boa parte dos anos 80.
;:
1!� número de revista, cada novo título, parece testemunhar uma incansável
inventividade. Esta aceleração já não é, de resto,. exclusiva da França: breve O tempo dos confrontos?
a encontramos no mundo anglo-saxão (em particular nos EUA), na Itália Tal projeto entretanto não se realizou. Pior, a fé na possibilidade
e na Alemanha. Nesse momento- que é também aquele, provisório, de uma de uma comunidade das ciências sociais encontra-se provavelmente mais
influência máxima dasAnna/es no mundo-, tudo parece poder- logo dever fraca hoje do que há quinze ou vinte anos. Para isso concorreram diversas
- tornar-se objeto de história. Tudo: a família, a sexualidade, as idades, as razões. O espetacular crescimento historiográfico desses anos foi gene­
crenças e os sentimentos, o simbólico e as representações, os confins roso, mas foi mal administrado. A multipliC3ção dos objetos, dos terrenos,
indecisos do biológico e do social, com um interesse mais acentuado pelas mas antes de tudo, das proposições foi a origem de tendências centrífugas.
fonnas sociais, que não se oferecem néccssari3.ffiente tais quais à leitura e Denunciada, reivindicada ou, mais freqüenterr.�nte ainda, aceita como um
à compreensão, precisamente aquelas que as ciências sociais se incumbiram fato, a "fragmentação da história" serviu, r.uito cedo, como sintoma para
de trazer à luz e interpretar. Nesse sentido� P'-"'<ie-se legitimamente pensar qualificar a nova desordem das coisas7 • A fórmllla registrava a prolifc­
que a aliança com elas toma a sucessão da antiga história das mentalidades, :ação dos interesses historicistas. Mas ela manifestava também que, no
da qual amplia o programa, as ambições e os me1os6 • Ela ganha forma de interior da disciplina, a unidade estava cienos assegurada. A própria
uma integração voluntarista: i:>asta prestar atenção às refrrências biblio- dinâmica da pesquisn convidava a formas de especialização mais

., •. J. ,: ·<5 .v ' ' • .


88 pASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 89
a�nçadas, que tornavam ao mesmo tempo a circulação da informação
sugestivo e irritante. Tudo se passa como se, apagados os antigos pontos
mans difícil (pense-se por exemplo na evolução da demografia histórica,
de referência, devêssemos agora tentar re.::onstruir um espaço pensável
simples modalidade da história social geral nos anos 60 que, duas tlécadas
para as ciências sociais. Essa rccon<;trução, entretanto, está apenas come­
depois, tornou-se un�a subdisciplina altamente técnica e fonementc auto­
çando, e é muito cedo para adivinhar hoje aonde ela nos conduzirá. O que
nomizada). Sobretudo, a cumulatividade dos resultados obtidcs pareceu
se·pode fazer, cm troca, é dar atenção às formas que ela adquire sob
mais e mais incerta. O próprio projeto de uma síntese integr2dora dus
r.:>ss::is olhos. A primeira é a de uma "rcdi<;ciplinarização" parcial. A
coahccimentos parecia assim qucstionada8 •
experiência dos anos 70 e 80 terá sido também a de uma maneira de
Essa evolução e esse diagnóstico serão próprios da disciplina his­
confusão dos gêneros. Se nada, no fundo, distingue a história da antro­
tórica? Não se pode assegurar. Será por acaso que, no mesmo momento,
pologia ou da sociologia, qual pode ser o lli.::ro tirado de seu confrontn?
numerosas ciências sociais se, propuseram 2 csiabclcccr um inventário ou
É preciso tornar novamente possíveis entre elas "diferenças de potenciais"
quê, mais significativamente ainda, operaram um retorno crítico sobre sua
(B. Lcpetit), que garantiriam uma circulação efetiva fundada sobre a
própria his 1,6ria? Sem dúvida a maior parte delas hesita cm reconhecer
autonomia e sobre a d:fercnça dos pontos de vista e dos procedimentos
for::nalmcntc que um tempo de perturbaçõc� e de dúvidas chegou, mas os
de trabalho'1. Não se trata então de tornar a corr,partimcntar o espaço
simomas da crise podem ser vistos por todo lado. Eles podem, cm cada
científi:.:o cm nnmc dos particularismos disciplinares, mas sim de abrir
caso, remeter às fo�mas e às contradições de uma história particular. Mas
-· cle:s devem também ser ligados ao próprio projeto de uma comunidade
nele uma pluralidade de projetos que nãe, se recc,br!::m um a outro. Essa
...
· ;:
Ja"' cii:ncias s0ciais, e isso, pelo menos, em cois nívei�.
segunda evolução cm curso parc--:c-mc contribuir para redefinir o papel
da histéria no seio das ciências sociais. Por muito tempo ela fo; pensada
.,,.
;,
O primeiro é aquele, bastante geral, da significação e d2 possibi­
lid:adc do projeto em si. Nascido na virada do sécuio - cm verdade,
como o lugar ecumênico da· síntese futura dos saberes sobre o homem,
ou, cm uma versão menos ambiciosa, como o lugar comum de suas
. �: enraizado nas grandes ideologias científicas do século XIX -, de era
exr,erimcn.tações. Em uma obra importante,. Jean-Claude Passeron,
� in..--:eparável da co;wicção de que uma inteligibilidade de conjunto de
reorquestrando uma temática webcriana, acaba de deslocar tal reflexão
� nossas socieuadcs era possível e que �la garantiria, ao mesmo tempo, a
�- coavcrgência - ao menos tendencial - dos procedimentos e dos resultados
insistindo sobre a historicidade comum ao conjunto das ci.ências sociais 10.

:1
..
' �,., dê!.:> ciências sociais. Tal convicção encontra-se abalada hú pelo menos
A afirmaç:io n::\c possui na�a de uma evidência do senso comum. Ela
propõe o reconhecimento da existência de um regime de cicntificidade
:'t1 vi.r:.1c anos. Nossas sociedades tornaram-se mais opacas cm relação a si
particular, diferente; daquele das ciências nomológicas, no qual o trabalho
m1::,;mas, incertas quanto a seu presente, seu futuro e, com isso, até �·rnnto
de interpretação é constantemente associ:ido à construção do objeto. A
a s:eu passado. No mesmo período, os grandes paradigmas unificadores,
partir de uma reflexão d<:ssc tipo, poderia ser encaminhado, cm termos
qu<;;- serviram de arquitetura englobante ao desenvolvimento das ciências
relativamente inéditos, nos próximos anos, o difícil diúlogo entre os
saçiais, desmoronaram, e com eles o mouclo iurcionalista que possuíam,
:1istoriadorcs e os praticantes profission:iis das outras ciências sociais.
gr�·,sso modo, cm comum. A história global (u:.i história total), cujo projeto
ha.-.-ia orientado os esforços de três gcraç&s de historiadores, viu-se
assim, ao menos provisoriamente, posta en1rc parênteses. Noras
O segundo nível é mais técnico. Entre :!" disciplinas menos seguras 1
G. \Veisz, Tlte E111ergc:11cc: of Modem Uni,•c:rsiti<5 i11 Fra1 1 cc, 1863- 1914, Prince1011,
di: si, de sua unidade, de suas finalidades, o regime da comunidade e da
1983; \V. R. Kcylor, l\cademy a11d Co1111111111::y: Tlte 1-'01111da1io11 of 1/te Fre1 1c/1
tn:,.::a alterou-se profundamente. A interdisci?lin�:ridade que parecia evi­ 1/istorical l'rofessio11. Cambridge, 1975; r-. K. Ringcr, Fic:lds of K11ow/edge. f-rench
<.:c::te, fosse qual fosse a via seguida par;i .:,?.:-rá-la, tornou-se problcmú­ Acadcmic Cullurc in Comparativc Pcrspcc1i·.:. 1890 - 1920, Cambridge - Paris,
ti<.--:.:., e talvez seja melhor assim. Daí a mul!iplicação das respostas. Vi­ 1992. Sobre ;1 sociologia, a ref'crência fund2mcn1:il conlinua sendo V. Karady,
ve.::11os cm um tempo de "anarquia epistemológica", ao mesmo tempo "Durkhcim, les scienccs socialcs el l'Univcr:;ité: bilan d'un semi-échcc", l/e1'11e
fra11çaise de sociologie, 1976, pp. 267-311.
90 PASSADOS RECOMPOSTOS

2 O texto de referência aqui é o artigo de F. Simiand, uMéthode historique et scicncc


TRÊS
so:ialc", Revue de syntlzese /ristoriq11e, 1903, pp. l-22 e 129-157.

3 F. Braudcl, "Histoirc et scicnccs socialcs: la longue duro;c", Annales ESC, XIII,


No Princípio Era o Direito ...
1958, reeditado cm Écrits sur l'/ristoirr., Paris, 1972, pp. 752-3 .
PATRICK NERHOT

l
• Cf.? guisa de exemplo o número especial das AntUJles, Histoire et str11c111re, 3-4,
1971. Um testemunho mais mediatizado.pode ser fornecido pelo balanço-programa
realizado por J.'Lc Goff e P. Nora na obra coletiva Faire de l'/ristoire, Paris, 1974,
3 volumes. Que a história tenha nascido do direíto nessa disputa entre o
verdadeiro e o falso, e que a questão da ver1ade 110 seio do pensamento
5 A. Burguicrc, "L'anthropologie historiquc", in J. Lc Goff, R . Chartier, J. Revcl
ocidental tenha inteira1�1e11te confundido os métodos histórico e jurídico,
(org.), La Nouvelle Histoirc, Paris, 1978, p . 61.
é o q1ie a enquete ilustra. Forma exclusiva do conhecimento da verdade
6
Desta continuidade encontraremos um testemunho significativo no artigo de J. Le
em nossas sociedades, ela se impõe sobre o ordálio ,,os primórdios de
Goff, "Lcs mcntalités. Une histoirc ambigüa", in J. Lc Goff e P. Nora (orgs.), Faire nosso segundo milênio, através da busca judiciária da verdade.
l"histoire, op. cit., Ili, pp. 75-(]1,
...;� E a história nasceu do direito. Nestes tcrmo·s é que seria con­
7
A íórmula apareceu pela primeira vez, até onde sei, na apresentação da "Bibliotéquc veniente estabelecer a relação entre a história e o direito, embora uma
dcs histoir-:s" (Gallir.1ard) por P. Nora, cm 1931: "Nós vivemos a cxplo�ão da
'
I'
tal formulação deixe pairar a pesada ambigüidadc de um "direito"
história..." Ela foi retomada, dessa vez cm chave po!-?.mica, por F. Dossc, "L'Histoirc
i:� en miettcs". Dos A111wles à La Nouvelle Histoire, Paris, La Dccouvcrte, 1987 .
presente desde sempre, sempre idêntico a si ..�esmo. O que é conve­
l�.. niente afirmar vigorosamente, entretanto, e que essa fórm-;ila possui a
!
,1,., " Ci. os dois editoriais sucessivos das A1111ales, "Histoirc ct sciences socialcs: un vantagem de indicar, é que o que nós identificámos pelo termo história
.;i,;l
. '-k wum:int critique", A1111ales ESC, XIII, 1988, pp. 291-3, e "Tcntons l'cxpériéncc", 6 nossc mudo de conhecer e de atestar o verdadeiro (o debate ocorrido
:,·..,..a..� ibid., 1989, pp.1317-23 . Ver também B . LcpctiL J. Rcvcl, "L'cxpcrimentation
há algum tempo na França, cujos participantes queriam definir a his­
.. ..
,:"
,,
·, .
wntre l'arbitraire", ibid., 1992, pp. 261-5.
tória como um romance, assimilar o método historico ao método ro­
manesco, era um enorme absurdo, notadamentc porque demonstrava
i\i • 1'-este ponto concordo com as refl-.:xõ..,s propostas por B. Lcpctit, "Propositions pour
o _trágico desconhecimento, da parte daqueles que defendiam essa
u:ie pratique rcstrcinte de l 'interdisciplinarité", Re,,-rue de synt/rese, 4 ª série, 3, 1990,
P?· 331-8 . hipótese, do lugar ocupado pela "história" na epistéme ocidental). Esse
modo de atestação e de reconhecimento do verdadeiro, portanto, re­
10
Jean-Claude Passeron, Le Raiso1111eme11t sociologiçue. L'espace 11011 poppérien d11
toma, retomou, é nossa tese, o(s) modo(s) de conhecer e de atestar o
rciso1111eme11t 11at11rel, Paris, Nathan, 1991.
verdadeiro próprio(s) ao método jurídico.
Se Michcl de Ccrtcau 1 podia considerar que a história moderna
ocidental começava com a distinção e a cisão entre presente e passado,
é porque, e antes de tudo na nossa opinião, o saber jurídico ocidental,
nisso aliado inseparável dos teólogos (podemos nos referir a csse(s)
tcmpo(s) que Jacques Lc Goff tão maravi!l10samcnte examinou cm seu
estudo sobre o nascimcn;o do purgatório), reescrevia seus mecanismos de
explicação causal identificando seus efeitos de sentido com uma estrutura,
totalmente cristã, do tcmpo2 .
r 92 PASSADOS RECOMPO�"TOS

Que a :1istória tenha nascido do direito nessa disputa entre o ver­


Quescõcs 93

caso para redesenhá-la cuidadosamente, repropor uma outra v;são que não
dadeiro e o falso, e que a questão da verdade no seio do pensamento seguiria com certeza a idéia clássica de umr. "linha divisória" entre o que
ocidental tenha inteiramente confundido os métodos histórico e jurídico, seria da ordem do religicso e da ordcn: do p,ofano por um:: leitura da
é o que a cnqucte ilu:,tra. Forma exclusiva do conhecime�t0 da verdade verdade. Principalmente por essas razões pretendemos, através de nossos
cm nossas sociedades, ela se impõe sobre o ordálio nos primérdios dl: trabalhos atuais e futuros, recomp0r. as temáticas epistemológicas e
nosso segundo milênio, através da busca judiciária da verdade. Demor.s­ hermenêuticas, recomposição que reescreveria outros princípios de dife­
trar nossa tese sobre a articulação entre história e direito é, desse modo, renças que não esses de uma exclusão, na enunciação-reconhecimento do
aventurar-se, primeira e fundamcntal�cntc, cm questões epistemológicas: verdadeiro, entre o que seria da ordem do sagrado e da ordem do profano.
é, com efeito, propor o problema da atestação e da aceitação dos modos Os juristas sempre se voltaram ao culto do "documento autêntico",
de enunciação da verdade no s�-io de nossas s0ciedaJcs. Quando a cnquetc via obrigatória da comprovação da verdade, mas que, evidentemente, e
se torna o modo dominante, primordial, de autentificar a verdade, de mesmo que isso hoje possa parecer obscuro, não podia ser percorrida senão
suscitar cm r;-utros t"!rmos esses materiais atravé.s dos quais se atesta uma quando já pudéssemos identificar um "texto" (lembremos, a propósi!o
verdade, então, talvez, algo que um dia reconheceremos como a "história" disso, ao eventual desatento, que interpretar "corretamente" um texto é
já existe, porém através de mecanismos que pertencem exclusivamente antes de tudo atestar esse "texto", quer dizer, enunciar as regras e proce­
às práticas jurídico-judiciários .. dimentos discursivos diversos pc!os quais se desvela "o" texto). Seja esse
:,;
. . .,
., termo "já", que ocupa um lugar tão particular na filosofia hermenêutica
1 ..
TJma n:)Va linha divisória entre sagrado e profano contemporânea e graças :;o qual tenta-se trad'Jzir os mc::ani<;mos cognitivos
,. Marc Bloch via no ano de 1681, data da publicação do De Diplo­ pelos quais se afirma a atestação de um sentido. Por esse termo "já", nes