Você está na página 1de 176

036850

1 111 1 11 1 111 li li lllll l Ili


L0000043736
... 1 COMPRA

PASSADOS RECOMPOSTOS
CAMPOS E CANTEIROS DA HISTÓRIA

Organização

Jean Bortti.rr
Dominique !'-,,lia

Participam

Philippe Bo..ary
Jacques Rma
Patrick Nerbot
UFRJ .Pascal Ent,d
Reitor Paulo Alcantara Gomes Claude Lan�lois
Vice-reitor José Henrique Vilhena de Paiva · Dominique &rne
CoordemJdora do Forum François Bldaida
de Cii11cia � Cultura Myrian Daudsberg Étimne Frtm:f(Jis
.• Otivier GuyotjCJmnin
EDiTORA UFRJ ·- �·-J,tan-Lcuis G=.lin
Direwra Hcloisa B�uc de Holanda Jean-Yixs Grazier
Editora Executiva Lucia Canedo François Hanog
Coordenadora de Produção Ana Carreiro Heinz-Gerhard Ha11pt
Conselho Editorial Hcloisa Buarque de Holanda (Presidenlc), Dominique falia
Carlos Less:i.. Fernando Lobo Carneiro, Simona Cn-JLtti
Flora Süsselcind, Gilberto Velho, 0/zvm Hupn
Margarida ó: Souza Neves Marclau:r
Hmry Gakil
FUNDAÇÃO GETUL/O \!ARCAS Manuel Rc-yo
Presideme Jorge Oscar de Mcllo Flôrcs Pierre Vda:r
Arundhari Vl771Ulni
EDITORA FGV Timothy Tad:ett
Edirim1 Executiva Alzira Alves de Abreu Antoine de 13=-cque
Coorde11adom Editorial Cristina Mar:-· Pacs da Cunha

,_;:-·,./\.,...t · 1· Eclicora UFRJ


Eclicora FGV
1998

,. · · . ......� .: .. . .. . .
' ,.
L ...
. ...,

Copyright © by Jean Bouticr e Dc'.ninique Juli.t


Tículo do original: Pa.ués recampo.<és SUMÁRIO
Ficha Catalogr:lfica elaborada pela Divisão de
ProcessameNo Técnico-SIBI/UFRJ
APRESENTAÇÃO 9
P285 Passados recomposcos; ca.,1pos e canteiros da história / organiza­
ção Jean Boucicr [e] Oominiquc Julia.: tradução de Marcclla
INTRODUÇÃO
Mortara [e] Anamaria Skinncr. Rio de Janeiro: Editora UFRJ:
Editora FGV, 1998.
Em que Pensam os Historiadores? 21
352 p .. 16 x 23 cm. Jean Boutier e Domi:niq11ef11/ia
1. Boutier, Jean 2. Julia. Oominique 3. Mort�íª· Marcclla,
trad. ·4. França-História.
coo 900 44 1 QUESTÕES

ISBN 85-7108-199-9 Certezas e Descaminhos da Razão Histórica 65


Philippe Bou1ry

Capa História e Ciências Sociais: Uma Confrontação lnscávd 79


Tila Nigrí Jacques Rerrel
Revi.tão
FUNO _.,ÇÃO UNIVERSI0ADe :' ···No Prlncíçio Era o Direito... 91
Cecília Moreira
Josett.: Babo . FE!'.)ER-,._L ·oE RONDÔNIA l -,,..v -· · . ··Fa(rlck Nerboi"°.
Maria Beatriz Guimarães � .. .". _;�-.--... : �- ._ :.".-:7'·
&18t 10TÉC.._ CENTRAL . Pode àFilÓsofia·Escapºar tia-História? 105

�e�oo-,-.1A..13 m t9S , · Pãséai En;çd.... . .


Projelo Gráfica
Ana Carreiro
.,,1,·('1-
Editoração Ele1r,i11ica 0s Efeitos Retrúativos da Edição Sobre à Pesquisa 121
se
- -:· .. J, ----- ---·

Cadu Gomes Claude Langf.ois

Universidade Federal do Ri , ... . Comunidade de Memória e Rigor Crítico 133


Forum de Ciência e Cultur:. Dominiqtie &Jnze
Edicora UFRJ
Av. Pasteur 250/sala 107
Rio de Janeiro - RJ
CEP: 22295-900
Tcl.: (021) 295 1595 r.: 124 a 127 As Responsabilidades do Hismriador E:xpert 145
TclJFax: (021) 542 3899 e (021) 295 1397 François Bédarida
E-mail: cditora@forum.ufrj.br
Os "Tesouros da Scasi" ou a Mi=gem dos Arquivos 155
Edicora Fundação Getulio Vargas Étienne Fr=çois
Praia de Bocafogo, 190 - 6Q andar
22253-900 - Rio de Janeiro - Brasil A Erudição Transfigurada 163
Tel.: (021) 536-9110 - Fax: (021) 536-9155 Olivier G11yotfe".anni11
e-mail: editora@fgv.br
h11p:.'/www.fgv.br/fgv/publicao/livros.h1m A Ascese do Texto ou o Retorno às Fontes 173
Jean-Lo11is Ga.uli11
Apoio
A História Quantitativa Aind:::i. É Necessária? 183
Jean-Yves Gr-enic.-
W
l(f)I Fundação Unive,::itària
José Bonifàcio
t. Arte da Narrativa Histórica 193
Françofs Ha;-tog
- ·�--..,.
APRESENTAÇÃO

, 3 ,MUTAÇÕES

O Lento Surgimento de uma História Comparada 205


Heinz-Gerbard Ha!rpt

A Violê'ncia das Multidõl!s: É Possível Elucidar o Desumano? 217


Dominiquejulia

A Construção das Categorias Sociais 233


Simona Ccrutti

Mulheres/ Homens: uma Questão Subversiva 243


O/wen H1ifton

Depois de 1989, Esse Estranho Comunismo... 251


MarcLazar

A Arqt1eologia na Conquista d:a <;Idade 261


Henri Ga/inié e Manuel Royo

(... ·11 1,. -�Ili';; ::b·.) 1


4 TESTE�UNHO

. A Memória Viva dos Histori2<iores 271


Entrevista com Pierre Vilar

' 1 . :: 1; •·, . -�-


5 FRO�TElRAS

Os Caminhos da Polifonia 301


Jean Boutier e Anmdbati Virmani

A Comunidade Científica Americana: um Risco de Desintegração? 311


Timothy Tackett

Um Mercado Mundial das Idéias: o "Bicentenário" da Revolução 321


Antoine de Baecque

BIBLIOGRAFIAS 335

BIOGRAFIA DOS AUTORES 346


APRESENTAÇÃO

FRANCISCO ÍOSÉ CALAlANS FALCON

2assados recompostos: Campos e can:eiros da História, obra coleti­


va dirigida por Jean Boutier e Dominique Julia, apresenta ao leitor algumas
das preocupações de mais de duas dezenas de_ historiadores, franceses .em
sua maioria, acerca de questões hoje na ordem do dia da Oficina da História.
Tem seqüência assim um movimento historiográfico responsável pela publi­
cação, nestes últimos anos, de obras deste mesmo gênero em diversos países
e tendo em comum certas preocupações quanto aos rumos e tendências
observáveis na historiografia contemporãnea. Da percepção de tais rumos e
tendências deriva-se uma certa percepção, algo gene1alizada per s:nai, de se
estar, provavelmente, em face de uma crise da história. No. âmago desta
perCP.pção encontra-se uma co_mpreensão aguda das implicações epistema­
lógicas dessa crise, vale dizer-se, do que significa para_ as concepções domi­
nantes acerca da natureza do discurso histórico e de seu valor de verdade, ou
seja, ao fim e ao cabo, é a possibilidade mes�a de um discurso histórico
enquanto conhecimento de História que estaria ameaçada.
A partir de uma perspectiva mais abrangente, pode-se situar esta obra
ao taco de inúmeras outras editadas neste final de milênio nos mais ::liversos
semelhantes: avaliar os resultados até agora alcançados e tentar oferecer al­
gumas respostas a novas indagações.
I•
1
No caso específico da historiografia, vem se tornando cada vez mais
necessário afirmar de maneira incisiva e incessante os va!ores destacados
por Eduardo Lourenço num de seus últimos ensaios: o valor da racionalidade,
a importância do sentido, a existência de inteligibilidade e do conceito. 1 As­
sim, contra os apóstolos do caos e da desordem epistemológica comprometi­
dos com o desespero da razão, cabe ao historiador retomar com decisão os
princípios fundamentais de sua própria disciplina. A emergência e dissemi­
nação do irracionalismo e do ceticismo relativista, justamente ironizados por
Eco ao tratar do Irracioi1al, misterioso e enigmático,2 e denunciadus entre
nós por alguns historiadores, como Cardoso,3 constituem o horizonte princi­
pal de referência dos artigos desta coletânea.
Uma das questões subjacentes aos ensaios presentes neste livre é a
demanda cada vez ma_is forte que se exerce sobre a ;itividade historiadora em
1C pASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 11

tempos como estes que estamos vivendo. Tidos como senhores do passado, realidade quanto a objetividade do <.:onhccimento histórico são propostas ao
ou donos da memória, sofrem os profissionais de História duas solicitações leitor sob a capa de.alusões indiretas a questões que estão na primeira linha
opostas: a solicitação daqueles que.desejam conhecer/compreender o pas­ do,; debates atuais. De fato, referir-se a passados é sinalizar-se, simultanea­
sado, e a dos que sonham com antever o fwuro. Confundidos com os mente, tanto no sentido do problema da realidade histórica, enquanto sinô­
"futurólogos", os historiadore:; 'vêem-se instados pela mídia a delinear os nima de passado, como do discurso que se produz sobre este mesmo passa­
rumes mais prováveis d� História, a partir d.i suposição algo ingênua de que do. Ao se propor o caráter recomposto desses passados, convoca-se para a
o seu con!Jecimento do passado constitui passaporte garantido rumo às in­ frente do palcd a figura do historiador enquanto subjetividade decisiva para
certezas do futuro.4 Como se verá em alguns ensaios desta coletânea, a ten­ o trabalho artesanal de a seu modo, segundo sua leitura, recompor um certo
dência a resgatar, na atualidade, a história do tempo presente5 não significa, passado. Difícil não se pensar, imediatamente, nas interpretações que postu­
do ponto de vista dos historiadores que a praticam, qualquer compromisso lam a inexistência, ou a "irrealidade", da História, � sua inacessib:lidade a
com especulações futurológicas. todo e qualquer conhecimento.9
No entanto, bem mais até que o futuro, � certamente o próprio passa­ Os a�tores de Passados rernmpost:1s procuram fazer uma espécie de
do que se tornou um sério problema para seus tradicionais senhores. Passa­ contraponto aos vários descamin_hos da razão historiadora que o título da obra
do, vale frisar, aqui entendido quer como realidade em si mesma, quer como parece, num primeiro momento, incorporar ou, quem sabe, insinuar. Contra os
o objeto por definição·da prática historiadora que a respt!itu dele r,rcduz seu fatores que favoreceram e ainda favorecem tais descaminhos, sublinham eles
próprio discurso. Um discurso, é bom notar, que se quer como cor.hecimen­ os aspectos do ofício capazes de frear os excessos de subjetividade típicos da
to verdndeiro da realidade passada. Assim, se a noção m-'!sma de pas�ado é cultura contemporânea: o estudo da áocu.mentação, os lugares sócio-i11stitu­
passível de interpretações as mais diversas, cabe recorrer à conhecida frase czonais de produção do discurso histórico e as indispensáveis premissas teó­
de Pierre Viiar - a históric fala da História'· - a fim de nos interrogarmos rico-metodológicas de toda pesquisa histórica que se preze. Fica também mui­
sobre a validade ou não, ainda hoje, do que nela se afirma de essencial: a to evidente, na maior parte destes ensaios, uma_ certa ênfase em direção à
"história - disciplina" e a "História - matéria" pressupõem-se mutuamente. h�rmenêutica, a qual parece derivar como que naturalmente do caráter essen­
Com efeito, ante a tão repetida declaração de falência da concepção hegeliana cialmente interpretativo do trabalho historiador que aparentemente admitem.10
de História 1 e os estragos causados à história-disciplina p:é!las análises críti­ Já o subtítulo, se também inova, permite no entanto que se perceba com
cas associadas ao /i11guistic tum, ao 11arrativismo, e à crise da grande teo­ muito mais clareza uma e·v·idente intenção de retificar as eventuais derrapa­
ria/ é extremamente bem-vinda esta publicação de trabalhos sJrios e opor­ gens ou exageros a que o título possa ter conduzido o leit,Jr menos atento.
tunos es"ritos por autênticos especialistas do ramo, isto é, familiarizados A referência aos campos da História serve para quebrar a tradicional
com as verdadeiras dificuldades do processo de escrever textcs de história. rigidez associada às delimitações baseadas em especializações disciplinares
Tal como outras coletâneas do mesmo &êncro, Passados recompos­ que se ignoram às c•1tras. Ao mesmo tempo, a idéia de campos vale como
tos constitui mais uma tentativa de articubr um:1 espécie de estado atual das afirmação da pluralidade dos espaços postos à disposição do conhecime:1to
q:,r.:stões, à maneira das conhecidas coleções C.'io e Nouve/le Clio, mas com histórirn, o sem sentido das fronteiras rígidas e as possibilidades infinitas
uma difcrança essencial: agora, os balanços e p-crspcctivas visam principal­ das trocas com os campos vizinhos - das ciências humanas e sociais.
mente os problemas gerais da disciplina e caci:l autor busca indicar cami­ A alusão a callteiros, certamente disseminados pelos diferentes cam­
nlws e soluções sempre do ponto de vista do h:sroriador. Quaisquer seme­ pos, contém uma outra mensagem: escrever história, como trabalho ce um
lhanças com aqueles antigos manuais ficam na ,.-erdade um tanto esmaeddas tipo específico de profissional, é atividade que possui exigência e �crvidões
quando se busca compreender o título e subtín.:lo deste livro: inevitáveis - formação específica, familiaridade com uma certa prática, obe­
Passados reco111posros: passados (plur:1:). e não simplesmente o pas­ diência a regras ditadas pelo ofício. Cabe à comunidade historiadora, hoje
s:ido; recompostos, vale dizer: refeitos mas não cxatamer.te "reconstituídos" cada vez mais internacio,ializada, reconhecer ou não como 9e história os
ou simplesmente "revelados". Em ambos os ca._,os, tít11lo e subtítulo, tanto a textos que assim se auto-intitu_lam.
12 pASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 13

Não gos:aria de concluir esta parte sem fazer o elogio de mais uma procedentes dC' exterior da oficina, sem apelar, a priori, para sua desquali­
caracterísaca extremamente positiva deste livro: apesar de produzido p�r ficação pura e simples.
historiadores franceses, não espere o leitor n�le encontrer mais uma daque­ Nesse mesmo ensaio, outra surpresa, Uffi quase-espanto do leitor, ao
las coletâneas triunfalistas já tão conhecidas. Bem ao contrário da tradição l�r: "Não que a "escola histórica francesa• constitua ainda um modelo: se ela
das Anna/es, reconhece-se, sim, que existem graves e importantes proble­ mantém um real dinamismo, h� muito tempo não po�ui mais o monopólio
m as a enfrentar, evidencia-se muito bem a tomada de consciência quanto às da inovação metodológica". Eis aqui 1.1ma constatação que chega em muito
relações realmente existent�s entre tai� problemas e os as:,im chamados dt?­ boa hora sobretudo quando se sabe o quão é ainda rara entre nós a consciên­
safios dirigidos à história por um verdadeiro exército de filósofos, lingüistas cia efetiva de um fato na verdade tão simples que Boutier e Julia se limitam
e especialistas em teoria da literatura. a constatá-lo: a consciência de que existem diver:;osuniversos historiográficos
Enfim, registro meu próp�io alívio ao perceber que não mais me en­ na· atualidade, ou seja, a hi�toriografia contemporânea não se resume à das
;
:j
contro diante de outra antologia voltada para aquelas nossas já conhecidas e Annales! Há mais, porém: as aspas para ªa escola histórica francesa" expri­
1
desgastadas q1 :erelas: objetos - novos ou antigos? abordagens: inovadoras/ mem uma certa reserva acerca da própria realidade dessa escola; uma res�r­
_
progressistas ou tradicionais/conservadoras? métodos: quantitativos (empi­ va no mínimo curiosa ein termos de Brasil, se nos lembrarmos de algumas
ristas) 0u qualitativos (teoricamente embasados)? a diferança/oposição en­ tendências voltadas precisamente para a identificação de uma ou várias es­
tre história evenemen!iel/e, historizante, e história conceituai, fundada em colas historiográficas entre n�.
pressupostos teóricos de viés estrutural, é passada em revista, sim, mas como A seguir, breve síntese dos caminhos da historiografia francesa desde
pai te do processe, histórico da própria escrita da História. 1945, se�s sucessos e _ ambigüidades. É come voltar no !empo e rever aquelas
A coletânea está dividida em quatro blocos temáticos intitulados: grandes coleções dos anos 50/60, tais como a Hist6ria Geral das Civiliza­
Questões, Competências, Mutações e Fronteiras; há, ainda, uma Introdução ções, dirigida por Maurice Crouzet, e a coletâneaL'Histoire et ses Méthodes,
e um Testemunho. organizada por Charles Samaran!
Elaborada pelo3 organizadores da obra, a Introdução sintetiza os obje­ Enfim, o tournant decisivo: os três volumes deFaire de l'histoire, sob
tivos e preocupações (iUe norteiam o conjunto das intervenções e ostenta um a direção de Jacques Le Goff e Pierre Nora, 12 espécie de referência obrigató­
título sintomático: Em que pensam os historiadores? É como se já soubessem ria para todos interessados cm travar conhecimento com aNouvelle Histoire:
da resFosta mais provável: Quem afirma que os historiadores pensam? A pro­ Novos Objetos, Novas Abordagens e Novos Problemas. Apesar de Veyne 13 e
va cesta suposição vem logo a seguir: "é por demais conhecida a pouca incli­ de Foucault, 14 a Nova Hist0ria, no Brasil, àquela mesma época,·foi também,
nação dos historiadores pelas questões de natureza reflexiva respeitantes à r1.1a em geral, apenas uma questão de objetos, métodos e abordagens. Em 1978,
disciplina"; os historiadores que se preocupam com a análise dos pressupos­ com a publicação da Enciclopédia da Nova História, organizada por Jacques
tos teóricos de seu própriofazer sempre foram e ainda são uma espécie de avis Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, 15 o triunfo da Nouvelle Histoire
rara.. Afinal, não vem a ser isto exatamente o que um historiador como Elton 11 parecia estar definitivamente fora de questão.
afir::10u e defendeu, ainda recentemente, sem meias palavras, ao denunciar e Vinte anos depois, já não é mais possível continuar-se fiel às certezas
mandar às urtigas as teorias dos cientistas sociais e asfilosofias dos não-histo­ e ao otimismo dos anos 70, pois, muito ou quase tudo daquilo que parecia
riad..."lres (filósofos, lingüistas, literatos) precisamente porque todos eles dcs­ então adquirido definitivamente tomou-se objeto de discussão: a realidade
co0-;.,ecem a prática do historiador, pois, jamais tend�1 pesquisado e muito menos das estruturas; a noção de temporalidades imanentes; a eufor�a da quantifi­
produzido história, como podem pretender agora dizer algo sobre o oficio? cação, ou cliometria, a unida�e e ser,tido da História. A fragmentação da
Boutier e Julia não pactuam, é claro, com o radicalismo de Elton, disciplina fez-se acompanhar da crítica aos seus tradicionais pressupostos
err::-,0ra tratem, até certo ponto, de problemas idênticos; apenas entendem realistas; a objetividade, ou verdade, do conhecimento histórico passou a ser
ele� q:ie a melhor política não é a do avestruz; a auto-reflexão historiadora mediada pelo conflito das interpretações, �, por último, resgatados do limbo
é quem dcv.e proceder ao reconhecimento e análise crítica dessas incursões ao qual tinham sido re1 cgados, os agentes sociais foram trazidos para a frente
M PASSADOS RECOMPOSTOS· Apresentação 15

do palco e suas ações e representações, coletivas ou/e individuais, passar.ara pelo texto; segundo, a tomada de consciência das especificidades da na"ativa
a oc11par lugar de destaque na historiografia. histórica; e, por último, a recuperação sistemática da noção de sentido.
O primeiro bloco, Questões, inicia-se com o ensaio de Boutry- Cer­ Outros ensaios deste mesmo bloco, também interessant�, são os de
tezas e Descaminhos da Razão Histórica. Talvez com o objetivo de apresen­ Jacques Revel � História e Ciências Sociais: Uma Confrnntação Instável­
tar em cores fortes a essência c!o problema que t!m em mira, el� principia no qual se analisa o curso sinuoso da história das Annales do ponto de v·ista
pelo fim: a chamada Históri�Experimental, ou História Lúdica. A mera exis­ a
de suas relações um tanto ambíguas com Sociologia e a Antropologia; de
tência da tal História demor,.stra que não se deve desprezar as inquietações e Patrick Nerhot - No Princípio Era o Direito- a respeito da questão muito
o ceticismo atuais- de alguns bons historiadores em relação aos métodos, atual das afinidades discursivas da história com o direito; de Pascal Engel -
valores e tradições de uma disciplina talvez por demais 3cadêmica· como Pode a Filosofia Escapar da História? - abordando uma das questões mais
parece ser ainda a história. Trata-se, segundo ele, dos resultados lógicos de quentes, hoje em dia, no ca]DpO da históri:.9. das idJias e da história intelectual
uma tendência secular que hipertrofiou cada vez mais o sujeito do conheci­ - a da necessidade e possibilidade da chamada contextualização.
mento, uma tendência que afunda suas raízes no solo nietzscheano e se de­ D,'l bloco a seguir, Competências, destaco três trabalhos mais gerais, ou
senvolve, na França, graças aos cuidados de Aron e de Marrou, desabro­ menos técnicos: R Bédarida � As Respon...::abilidades do Historiador Expert -
chando, finalmente, com Veyne, Ricoeuer e, sobretudo, Foucault e de Certeau. que critica duramente, apoiando-se sobretudo em Michel de Certau, os vários
Um longo percarso, am�. genealogi� que nãfl cie campre aqui discutir, mas revisionismos da atuali<.lade, lamentável abdicação da razão contra a qual se
. que, segundo Boutry, marca a passagem da objetividade à subjetividade, da faz mais urgente do que nun::a, segundo el� afirmar (o historiador) o princí­
crítica das fantes à das categorias e formas de escrila dfl história, ou, como pio de verdade, princípio essencial e em nada incompatível, ao contrário do
seria bem mais claro talvez: o questionamento da verdade da história en­ que alguns possam supor, com o fato de que toda pesquisa histórica inscre­
quanu> forma de conhecimento. ve-se num lugar social. O ensaio a seguir, de Jean-Yves Grenier -A História
No intuito de demonstrar a validade de seu argumento, Boutry exa­ Quantitativa Ainda É Necessária?- retoma e desenvolve alguns pontos já
mina alguns dos momentos e efeitos do processo geral acima descrito so­ tocados por Bcutry e indaga sobretudo dos n!)VOS usos possíveis de uma
bre a historiografia contemporânea: o prestígio e as ilusões do·quantitativo história quantitativa em tempos co1.1.10 os que vivemos hoje aparentemente
(cabe aqui pensar-se cm Furet, Chal1nu, Mauro, e tantos outros, papas da muito mais favoráveis à narrativa e à análise antropológica. Em terceiro lu­
euforia quantitativista que grassou também entre nós, nos anos 60nO); o gar, François Hartog, com A Arte da Narrativa Histórica, oferece-nos uma
declínio da razão geográfica (imposs!'ve! não se pensar em Vidal de La síntese precisa e inteligente das últimas discussões havidas na historiografia
Biache, Mare Bloch, ou, principalmente, Braudel e seus epígonos, adeptos ocidental a respeito de um real ou apenas suposto retorno da narrat;va; mais
de uma geohistória que chegou a fazer parte do currículo mínimo oficial importante, no entanto, é a crítica consistente que faz às chamadas teses
dos cursos de graduação em História e Geografia em nosso país ... ); a crise 11arrativistas ao sublinhar que a narrativa histórica mantém, por definição,
de inteligibilidade que tende a transformar a história num jogo ou sucessão uma relação específica com a verdade pelo simples fato de que ela remete
de experiências, no qual as hipóteses. e interprelações são eternamente sempre a um passado que realmellte exis::.u.
revisiradas e a obra de história vale ou significa bem mais em termos do Após as Questões e Competências7 o terceiro bloco sublinha as Muta­
conhecimento do respectivo historiador e sua época que da história propria­ ções. Entramos então na leitura de temas os mais diversos, inclusive alguns
mente dita (seria aqui a brecha para introduzir, entre outros, o nome de um tanto pontuais, cabendo de fato ao leitN, conforme seus interesses e pre­
Hayden-White). ferências, escolher entre O Lento Surgimento de Uma História Comparada,
Depois de tantos perigos e ameaças, será que a história pode ainda su­ de Heinz Gerhard Haupt, A Violência das Multidões: É Possível Elucidar o
perar c\.xlos esses contratempos? Sim, afirma Boutry, e ela o. vem fazendo a Desumano?, de Dominique Julia, ou, air:·.:fa, A Construção das Categorias
partir de três atitudes básicas dos hi::.toriadores: a red,,scoberta do arquivo, Sociais, de Simone C erutti, e Mulheres/Homens: uma Questão Subversiva,
isto é, dodocumellto bruto, graças, entre outras co� ao fascínio hoje exercido de Olwen Hufton. A tônica aqui recai e.as temáticas mais atuais, aquelas

l
16 PASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 17

precisamente que r.oncentram uma parte significativa das pesquisas e dos principalmente um certo cuidado com a marcação das próprias distâncias em
debates históricos mais polêmicos. relação àquela tradição. Metodologicamente 2berta, ela assim se define quer
Diferentes da lógica seletiva presente nos blocos anteriores, os temas pelo que inclui, quer por tudo que exclui. Inclui, !)Or exemplo, sem as ccstu­
de Fronteiras nada possuem em comum, salvo o fato de.contribuir:::m, cada meiras ironias e restrições, referências a trabalhos Je historiadores de outras
qual a seu modo, para a melhor compreensão do panorama atual da historio­ nacionalidades sobre !emas tipica�entefranceses, a começar, pasme-se, por
grafia. Em Os Caminhos da Polifonia, J. Boutier e A Virmani buscam d�se­ historiadores dedicados ao estudo da Revolução F�ncesa! Do lado das ex­
nhar as linhas mestras da comunidade mundial de historiadores, em função clusões, vale sublinhar-se a ausência de qualquer tipo de abordagem que
tanto de seus progressos evidentes, como dos dilemas que ainda persistem. signifique a valorização unilateral de tal ou qual visão teórica.
Ac analisar A Comunidade Científica Americana: Um Risco de Desintegra­ A juventude se deduz tanto das próprias posições assumidas como
ção?, Timothy Tackett oferece-nos um quadro realista, algo pessimista quem também das datas de publicação dos trabalhos mais importantes de quase
,
sabe, da estrutura e funcionamento de uma comunidade historiadora ainda todos os participantes da coletânea -a década de 80. Naturalmente, poder­
bem pouco conhe�ida entre nós. Muito interessante., enfim, a exposição crí­ se-ia lamentar 4 ausência daqueles nomes nossos velhos conhecidos... Não
tica de Antoine de Baecque acerca do Bicentenário da Revolução, pois, se penso que se deva realmente cobrar essas chamadas presenças obrigatórias.
os números são impressionantes, mais ainda o são as estratégias e mecanis­ Como logo o leitor irá perceber, a injeção de perspectivas diferentes elabora­
mos postos em prática a prete�to �aquela comemoração vishndo, de fato, das por historiadores 1el:tiv:imente nove� pode ser extremamente positiva.
afirmar uma presença cultural em crise - a francesa - à sombra do poder Abertura, juventude, tudo enfim se condensa num certo padrão diante
simbólico in�rente à ,nemória da Revolução Francesa. da crise que hoje parece estar na cabeça de todos os historiadores, padrão
Antes desse último bloco, inseriu-se um documento da maior importância este que incorpora alguns pontos consensuais: 1-Chamemos ou não de cri­
-uma entrevista com Pierre Vilar-sob o títuloA Memória Viva dos Historia­ se a atual situação da historiografia, o fato é que problemas existem na ofici­
dores. A escolha merece todos os elogios. Afinal, Vila:- é o mais antigo dentr\; na da história, embora a natureza e alcance de cada um deles e a das respos­
os historiadores franceses vivos mas é também o menos procurado pela mídia, tas e/ou soluções dos historiadores seja algo ainda muito problemático; 2 -
provavelmefl:te por não ter sido nunca um analista ortodoxo e por ter sido A existência de tais problemas não significa necessariamente uma ameaça
sempre um historiador identificado com p0sições teóricas marxistas. Escolha ou anúncio de desintegração próxim� mas, antes, um verdadeiro desafio,
curiosa também, se se tem presente a ressonância atual de perspectivas ditas no sentido positivo, principalmente se daí resultar, para o historiador, o aban­
pós-marxistas no contexto do chamado pós-moderno! Estão portanto de para­ dono definitivo de sua indifrrenia e/ou sectarismo teóricos e a aceitação da
béns os organizadores, pois, ousaram apresentar-nos Pierre Vilar de �rpo intei­ necessidade de refletir seriamente sobre a natureza de seu próprio/azer. _3 -
ro, vivo e lúcido como de hábito; um historiador competente, sério e coerente. Não há lugar, na história-disciplina, para o ceticismo ou o relativismo radi­
Antes de terminar, creio que são oportunas duas observações finais - cal. O historiador continua a ser, por definição, um realista: a matéria do
sobre o carater inovador da obra e a visão da crL�e da História que dela conhecimento histórico é sempre a História, o singular coletivo no sentido
podemos deduzir. utilizado por Koselleck; quer designemos :i História como a realidade ou o
Inovadora, esta coletânea assim se caracteriza de· duas formas pelo passsado, o fato aqui essencial é sua existência real, e sua acessibilidade ao
menos: por ser francesa e apesar disto não se apr-esentar como uma obra tipo de conhecimento específico e verdadeiro que chamamos de conheci­
fechada, do ponto de vista metodológico; pela juventude relativa de seus mento histórico. As dúvidas existem, não s5o de pequena monta, e têm mui­
colaboradores e assim não incluir, como é de hábito... os famosos nomes con­ to a ver com o descrédito em que caíram as tradicionais ambições empiristas
sagrados e quase obrigatórios da historiografia gaulesa. e teorizantes embasadas no ·pressuposto d3 apreensão/explicação da totali­
Francesa, esta obra não sumen�e inova com,1 surpreende pelas pers­ dade histórica. Ao proporem a pluralidade dos passados recompostos pela
pectivas que seus autores assumem em face da tradição historiográfica das atividade dos historiadores, os colaborado res deste livro não pretenderam
Ann.ales - reconhecimento genérico, muitas dúvidas, algumas críticas e com isto abrir mão do mais essencial: que a h:stória seja uma escrita, que
1
18 PASSADOS RECOMPOSfOS

sua forma intrínseca seja a na"ativa, que o discurso histórico tenha tµdo a
ver com a retórica. Trata-se de aquisiçõ�s import'lDtes sem dúvida alguma. INTRODUÇÃO
O decisivo, porém, é que não se perca de vist:\ a caracidade desse discurso
de dizer algo verdadeiro a respeito de uma realidade passada que constitui
seu referente extradiscursivo. Logo, p�r mais que se pretenda o inverso, o
hi�toriadcr n:io é nem pode ser um autor de ficção pois não é livre para
inventar, imaginar e interpretar - o exercício das suas faculdades criativas e
interpretativas está limitado pelas evidencias documentais disponíveis no
seu próprio tempo e lugar. É_ a partir de protocolos dP. verdade que se identi­
ficam, em derradeira instânda, a história e o historiador como tais.

Notas
1 Os "Tonpos''do Século, ou o Crepúsculo da Consciê11cia Histórica, in Gil, Fernando (Org.),
Balanço do Século. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, pp. 237/250.
2
O Irracional, o Misterioso, o Enigmático, in Gil, Ferna!ldo (Org.), op. cit., pp. 105/117.
3
Cardoso, Cirô F. S., E11saios R�cio11alistas. Rio de Janeiro, Campus, 1988.
' Dumoulin, J. et Moise, Dominique (Org.), L "liistorien. enlre I'etli11dogue et /e futuro­
/oga,?. Paris, Mouton, J 972.
s Diversos autores - Ecrire l'histoire du temps présent. Paris, CNRS, 1993.
"Vilar, Pierre,/11iciació11 ai vocabulario del a11áli.-;is histórico. Barcelona, Critica/Grijalbo,
1980.
7 Anderson, Perry, O Fim da História. De Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
11
Chartiea, R., A História Cultural. E11tre práticas e represemtações. Lisboa, Difel, 1990;
· Slcinncr, Quentin, The Retum of Gra11d Ti,eory i11 the Hwna11 Scie11ces. Cambridge,
Uru,-crsity Press, 1991.
"Zai<bn Filho, Michcl, A crise da razão histórica. Campio.;as, Papirus, 1989.
111 Doss:, François, le tourna,:t illterprétatif et pragmalique d,e J 'historiograpl,ie fra11çaise,
Recife, Simpósio da ANPUH, 1995, texto mimeo.
11 Eltoo. G. R., Retum to Esse11tials. Some reflectio11s 011 doe present stale o/ 1,istorical
stud)·. Cambridge, U niversity Prcss, 1991.
•: Paris.. Gallimard, 1974, 3 vols.; trad. bras.: Rio de Janeim, Francisco Alves, 1976, 3
vois.
'-' Ve)t>e, Paul, Comme111 011 écrit l'/,istoire. Essai d'epistermologie. Paris, Seuil, 1971.
'" foc;oult, Michel, l 'Arc/,éologie du Savoir, Paris, GallimJlrd, 1969; Idem, L 'Ordre du
DiKours. Paris, Gallimard, 1971.
u Rctz - CEPL, Paris, 1978.
JNTRODl'ÇÃO

Em que Pensam os Historiadores?_


JEAN BOUTIER E DOM/NIQUE JULJA

Quando, no silêncio da abjeção,


só se ouve e retinir d:1 corrente do escravo e a voz
do delator; quando tudo treme diante do tirano e é tão
perigoso .estar em suas graças ou merecer sua desgraça,
àparece o historiador, encarregado da vingança dos povos.
·. Nero prospera em vão, Tácito já está no Império.

Chateaubriand
Le Mercure de France
4 de julho de 1�07.

Em que pensam os historiadores? A questão parecerá a muitos uma


piada pois, ao contrário do que ocorre com_ os filósofos, não se espera
dos historiadores que sejam virtuoses do conceito, nem que elaborem
complexas arquiteturas· teóricas. Tanto mais que, à exceção de alguns
textos híbridos entr� biografia e discurso do método, eles não são dados
à auto-análise. É verdade que, desde os anos 60, surgiu· o hábito de
elaborar, episodicam�ntt:, espécies de inventários, conseqüência da ex­
pansão sem precedentes que o conhecimento histórico conheceu a partir
do fim da última Guerra Mundial. Com a conquista _de novos objetos e
de novos territórios, a acumulação de trabalhos eruditos, o aprofunda­
mento dos métodos, o avanço da informática, a prática do historiador foi
grandemente renovada. A aceleração das mudanças nos últimos anos
chegou a levar certos historiadores a falar, na França e fora dela, de
incertezas, de dúvidas, de crises.
A presente coletânea se inscreve assim na urgência de uma reto­
mada da reflexão sobre a profo;são de historiad?r. Suas ambições são,
todavia, modestas: nem balanço sistemático, nem manifesto de uma nova
"nova história", ela pretende primeira:nente destacar a "longa marcha"
das pesquisas históricas de cinqüer.:a anos para cá. A empresa é difícil:
a extraordinária internacionalização da pesquisa histórica, a diversidade
22 pASSADOS RECOMPOSTOS
.! .f:� rt. .
,.:-
Introdução 23

das abordagens, a massa das publicações tornam impossível um panorama A segunda série de questões veio do div6rcio flagrante e sentido
exaustivo, mesmo restrito à escala francesa. Pr{!Cisaremos então nos como intolerável entre a histó�ia universi.tária por um lado e a vulga­
contentar em esboçar as grandes "linhas de fuga" de uma historiografia rização histórica· tal como .era praticada - mediocremente - por histo­
abordada principalmente a partir do ponto de vista francês. Não que a riadores amadores pouco informados das renovaç9es da historiografia,
"esco!a histórica francesa"·constitua aincla um modelo: se efa mantém um por outro. Mudança de geração? Sentimentn de um dever a ser cumprido
!'eal d!namismo, há muito tempo não possui mais o monopólio da inova­ como já havia sugerido Henri-Irénée Marrou em De la r.onnaissance
ção metodológica. Tant0 quanto possível, portanto, conduziremos nosso historique [Do conhecimento histórico]2? Üll simplesmente pressão de
olhar para além das fronteiras. uma demanda social crescente, satisfeita por editores dinâmicos? O fato
Não procuraremos aqui defender um conjunto coerente de propo­ é que os historiadores profissionais continuam aceitando a tarefa de es­
sições. Nem por isso cairemos em uma pseudo-imparcialidade insípida e crever livros d·estinad?s ao grande público mstruído. A partir dos anos 50,
enganosa. Engajados em trabalhos e discussões, compartilhamos com Lucien Febvre concebera uma nova coleção, "Destins du Monde", que
vigor de certas convicções: seria desonesto dar a ilusão de· calá-las. Ao aprc,sentava amplas sínteses realizadas por historiadores profissionais3 •
contrário, esta coletânea pretende participar, no mesmo plano, de alguns "Les grandes civilizations" (Arthaud), coleção dirigida por Raymond
dos debates reais da atualidade. Bk>ch - alguns volumes conheceram uma difusão sem precedentes, como
a Civilisatiun de l'occident médiéval [Civilização do Ocidente Medieval],
O exame periódico de consciência · de Jacques Le Goff - responde, de uma form� mais sistemática, às mesmas
Não é de ontem que ós historiadores se inter.-ogam sob:-e o estatuto preocupações: "Esta coleção - esclarece o editor - corresponde a uma
de sua própria disciplina. Às impaciências de uma geração emergente necessidade nova. Ao desejo de uma leitura agradável, à necessidade da
frente às certezas da histúriografia instalada, às inquietações de uma síntese e das amplas visões de conjunto se acrescentam agora, entre todos
corporação ciosa na defesa de seu território, vêm. por vezes se misturar o,s leitores, o gosto pela precisão, a exigência �e um contato direto com
as reflexões de solitários, cujo lúcido diagnóstico é mal recebido por estar

'
os documentos e os monumentos, a necessidade ainda de um guia que
nas antípodas das correntes dominantes de uma profissão satisfeita com treine o leitur para a análise e o oriente para pesquisas mais especializadas.
seus pressupostos e com seu patrimônio. Apenas a partir dos anos 1960, Assim, nos esforçamos por resolver esse problema dirigindo-nos a alguns
entretanto, surgem as primeiras tentativas sistemáticas e coletivas de eruditos cujo talento de escritor, cuja ampla cultura, a prática de um longo
reflexão sobre a atividade do histodacor, de questionamento de alguns de ensino designavam para levar a bom termo um problema tão complexo".
seus aspectos. Tais tentativas resultaram, provavelmente, de três séries de A vulgarização repousa sobre as mesmas exigências de cientmcidade das
fenômenos, independentes umas das outras. publicações eruditas, o que, por vezes, confunde suas fronteiras: A Re­
A primeira está ligada às transfarmações rápidas do ensino secun­ volução Francesa de François Furet e Denis Richet, que suscitou um
dário, tornado ensino de massa: num momento em que as matemáticas - debate importante, aparece em dois volu.;nes luxuosamente ilustrados da
e particularmente a matemática moderna - substitufa o latim como critério editora Hachette {1965-1966).
de classificação das inteligências, a cultura histórica seria fundamentalmen­ A partir de agora, o "belo" livro vale tanto por seu texto quanto pela
te necCS$ária à formação do homem moderno? Os historiadores travaram qualidade de suas imagens. Aqui nasceu um diálogo regular - que não era
duras batalhas para manter o lugar da história nos programas diante da fácil - entre a pesquisa de ponta e �m público cada vez mais amplo
invasão das ciências exatas, consideradas mais "úteis", para sublinhar seu (renovado, de resto, pela explosão d0-; efetivos universitários). Cada grande
valor "existencial" e cívico, seu antigo papel, insubstituívél, de magistra casa editora tem, doravante, o dever de p•�"ISSuir a sua ou as suas grandes
vitae: 1 Fernand Braudel oú Jacques Lc Goff, introduz.indo no ensino secun­ coleções históricas. Trata-se de vastas síntc:�es, com a coleção "Arts, ldées,
dário a história das civilizações, t�I como ela se de��volvia então em tomo Histoire" (Artes, idéias, histórias], criada em 1964 por Albert Skira, com
da revista Annales, tiveram aqui um papel decisivo. os três v1Jlumes ,fo Georges Duby, Adolescence de la chrétienté occidentale
24 PASSADO� RECOMPOSTOS Introdução 2 5
(Adolescência da cristandade ocidental] (1967), L"Europe des Cathédrales haver c�nsagrado algumas páginas à definição da história, ao tempo e ao
· (A Europa das catedrais] (1966), Fondements d'un nou':'el humanisme espaço, o volume se desdobra seguindo uma arquitetura cl�ica, onde a
[Fundamentos de um novo µumanismo] (1966),. ou as diferentes séries da parte reservada às técnicas (as famosas ciências ditas "auxiliares") é
Histoire de France [História da França] das Éditions �u Seuil, h1auguradas priffiordial: "pesquisa metódica dos testemunhos", "conservação e apre­
pela Histoire de la France Rurale [História da França rural] (1975). Os sentação dos testemunhos", "e,cploraçio cótica dos testemunhos"5•
editores se lançam ainda a uma larga difusão de trabalhos origina�. No No mesmo momento, vários colóquios e números especiais de
momento em que F. Braudel lança uma ambiciosa coleçã:> interdisciplinar revistas inauguram um1 reflexão mais exigente: "A carência de reflexão
- a "Nouvelle Bibliotheque scientifiq�e" [Nova Biblioteca Científica] sobre o que. fazem, de lucidez de seu sentido, entre os historiadores
(Flammarion)-, a coleção "Histoire sans frontiêres" [História sem frontei­ profissionais - nota Alphonse Dupront - tem algo de estarrecedor. ( •..]
ras] (Fayard; 1966), dirigida por,François Fure! e De11is Richet, pretende Se a conversa -girou sobre métodos, e ainda assim muito pouco, já é mais
ocupar o vazio que existe "entre o jornalismo histórico fundado sobre a do que tempo de nos perguntarmos, como homens de boa fé, quanto à
anedota e as t�ses inéditas ou dificilmente acessíveis", cobrir o espaço clareza do que fazemos e para que servimos"6• A discussão prossegue no:;
"entre a curiosidade de ontem, muito comull'!ente limitada ao passado anos 1970, desde Aujourd'hui l'histoire [A histó:-ia hoje] que; no auge da
nacional, e a de hoje, extensiva à Europa e ao IC.undo", restabelecer uma vaga estruturnlista, pretende reafirmar a fecundidade de um retomo de
continuidade "entre as grandes obras estrangeiras inéditas em francês e MMx,7 até ao vasto balanço da Nouvel!e Hk'to:re [Nova história] (Paris,
as pesquisas novas que amadurecem na França e fora dela": daí o apelo Retz, 1978), dirigida por Jacc;ues Le Goff, Roger Chartier e Jacques
a grandes nomes - é aí que· Pierre Goubert publica, em 1968, seu Louis Revel, prolongada pelo Dictionnaire de:s scit!nces Ílistvriques (Dicionário
XIV er 20. millions de franç(l.is [Luís XIV e 20 milhões de francese�], um das ciências históricas] (Paris, PUF, 1986), dirigida por André Burguiere8•
dos primeiros best-sellers da edição histórica - e uma política inteligente Mas essas duas obras, na órbita das AnnGles e da École des Hautes Études
de tradução de obras de peso como as de Eugenia Garin, L'Éducation de en Sciences Sociales (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais], já
l'homme moderne [A educação do homem moderno] (19�8) ou de Eric
ratificaram a explosão da historiografia em múltiplas direções; sobretudo,
J. Hobsbawm, Les Primitif.s de la révol:e dans l'Europe moderne [Os passando-se do balanço sistemático ao arbitrário de ckssificação alfabé­
primitivos da revolta na Europa moderna] (1966). Numa perspectiva si­ tica, o instrumento de trabalho sobrepuja uma encenação fundamentada
milar7 cs primeiros títulos da "Bibliotheque des Histoires" [Biblioteca das do método. Por isso é que o ambiciosoFaire de l'histoire [Fazer história],
histórias] (Gallimard), sob a direção de Pierre Nora, surgem em 1971, publicado em três volumes em 1974 e tornado rapidamente um clássico,
quase ao mesmo tempo em que os da coleção "Universe historiquP." constitui o balanço mais revelador de um verdadeiro momento historio­
(Universo histórico] (Seuil), dirigida por Jacques Julliard e Michel gráfico, que ele permite por isso mesmo apreender9•
\Vinock. A própria escrita da história sentiu os efeitos dessa abertura4 • 1974: o momento "Faire de l'histoire" - vinte anos depois, como
Sobretudo - é a última série de questões.. certamente a mais im­ e
lemos essa "obra coletiva e diversa" qoe pretendia "ilustrar promover"
p3rta::te - a história é levada a redefinir problen:;.iricas, métodos e objetos os "caminhos da pesquisa histórica hoje" - um "novo tipo de história" -
face às ciências sociais e humanas - basta peosar no impulso da socio­
para "esclarecer a história a ser feita", sem ser entretanto explicitamente
logia ou da psicanálise - no momento em que a impressionante expansão
programático?
de seu questionário e de suas curiosidades afa rga continuamente seu Os subtítulos de cada um dos volumes manifestam esse interesse
-território", o que suscita, desde a década de 1960, numerosas publica­ pelas mutações recentes da profissão: ...Novos problemas", que repensam
ções. Algumas delas conservam um aspecto muito t:adicional, tal como a definição da história sob a "provocação" das outras ciências humanas;
o vobme coletivo da E11cyclopédie de la Piéiade [Enciclopédia da "Novas abordagens", que modificam o:s recortes tradicionais em diferen­
plêiade], L'Histoire et ses méthodes [A história e seus métodos] (1961), tes setores bem balizados; "Novos objeLos", que em sua bulimin devorante
i' dirigida por Charles Samaran, antigo diretor dos Archives de France: após a história apropria e que se desenrolam, segunc!'l uma lista à Prévert, do
26 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 27

clima à festa, passando p�lo inconsciente, o corpo doente, ·os jovens e a M. Vovelle; "um lado capital de uma história do essencial"11• Quanto a
cozinha. U,na breve sociologia dos autores destaca três traços fundarµen­ Georges Duby, se ele afirma de saída que "a história d:is sociedades deve
tais. Quase . todos são "parisienses", 30 em 33, e apenas um é "provin­ fundar-se em uma análise das estruturas materiais", é para acrescentar,
ciano" (muito esp�ial, já que se trata de Paul Veyne, futuro professor do imediatamente, que os progressos feitos pela pesquisa histórica nos do­
College de France e dois "estrangeiros"' (Je�n Starobinski, professor em mínios da economia, da demografia e da ecologia no curso dos anos 1940-
Ge:ieora, e H. Zerener, professor em Harvard). Em segundo lugar, um 1970 obrigam à "elaboração de novos questionários" e particul�miente ao
terço dos autores (11) vêm da sexta seção da École Pratique des Hautes estudo dos sistemas de representações, de valores e de crenças a partir
. Étud� presidida então por J. Le Goff; um outro terço (12 autores) dos quais os homens modelam seus comportamentos.
reparte-se entre as diferentes universidades parisienses nascida::; da frag­ Enfim, F aire de l'histoire [Fazer história] a�ompanha - e ao mesmo
mentação que se seguiu aos acontecimentos de m aio de 6?: Paris-! (4), tempo anuncia - a pas�1gem de uma paradigma onde a análise macro­
Paris-IV (2), Paris-VII (3), Paris-VIII (3). Os restantes pertencem aos econômica era primordial para uma história que focaliza· os sistemas
grandes estabelecimentos científicos: College de France (3), CNRS (3), cultun-,is compreendidos em ·um sentido muito amplo. Nem por isso o
Institut d'études politiques (1). A maioria dos autores atingiu a casa dos livro se prende a terminologias em moda: Jacques Le Goff critica a
quarenta: poucos jovens, ainda menos "grandes antigos", as exceções imprecisão e a maleabilidade do termo �entalidades"; mas não se trata
sendo A. Dupront, A. Leroi-Gourlian e P. Vilar. A &usênda m�is espan­ de abandonar O terreno, mesmo se 00 instrumentos conceituais e os
tosa é a de Fernand Braudel; mas ele poderia aceitar não ser o mestre­ métodos aptos para o seu esquadrinhamento ainda faltam.
de-obras? Caberia notar optras ausências, enhe cs "inovadores" recen­ Em segundo lugar, Faire de l'histoire preludia uma fragmentação da
tes, como Maurice Agulhon ou Michel Vovelle. No essencial, trata-se disciplina. E. Le Roy Ladurie, ao afirmar em seu prefácic a Paysans du
de uma geração formada no período imediatamente p6s-guerra, que dá Languedoc [Camponeses do Languedoc) (1966) ter-se lançado à aventura
a ver senão um "pano�ama_ da história atual" - o krmo é explicitamente de uma história "total", suscitara viclent:as críticas. Pierre Vilar, apoian<fo­
recusado -, ao menos as arestas mais vivas da disciplina e seus desea­ se em um retomo teórico a � arx sensivelmente diverso da lei�ra operada
volvimentos mais recentes. então por Louis Althusser e seus dis=ípalos, é quase o único a defender,
A proximidade _dos autores com a última geração de responsáveis apesar dos "sarcasmos", a ambição de uma história total. Com malícia,
pela revista Amzales explica em boa parte a especificidade do livro. Ele Pierre Vilar recusa-se a deixar a presa · pela sombra, a totalidade pela
igno� desse m�o, uma história diplomática e política, muito tempo noyidade: "Toda história 'nova', privada de ambição totalizante, é uma
domin:ada pela figura de P. Renouvin, e marginaliza uma história econí:>­ história previamente envelhecida". Ao contrário, para F. Furet, a "apreensão
mica e social construída sobre o modelo elaborado por C.-E. Labrousse. do global" não é mais que "o horizonte da história": "A historiografia
F. Furet convida a nos voltarmos para a análise "político-ideológica" das contemporânea só progride na medida em que ela delimita seu.projeto[ ...].
sociedades do passado e contesta a evidência segundo a qual o "dinamis­ Mas a análise global do 'sistema dos sistemas' hoje provavelmente está fora
mo da historia da França" seria de natureza econômica: "O investimento de seus meios"12• Michel Serres é ainda mais categórico: "Os sistemas de
escolar., cultural no sentido amplo, e oficial (através dos serviços públi­ totalidade sem exterior, de ·explicação ou compreensão universais e sem
cos), pode ter tido aí um papel mais fundamental que o aumento do lacunas, estruturados por diferenças, leis seriais e quadros sin6ticos,
º.
produto nacionar'1 Para Pierre Chaunu, encarreg:ido todavia de tratar da hierarquizados por referências e funcicnando a motor, ou de planos
história econômica, a história serial e, "ontem, econômica e social", deve escalonados como camadas ou estrat�.. são dessueto� tanto quanto seus
se lanç.at "de assalto sobre o terceiro nível, a saber o essencial, o afetivo, modelos mecânicos de funcionamento, como variações ortogonais a uma
o mectal, o psíquico coletivo... melhor dizendo, os sistemas de civiliza­ ciência morta" 13• O ecumenismo de Fc;ire de l'histoire desemboca numa
ção". Não apenas tratar da civilização escrita ou da imagem, mas estudar forte contradição entre os autores, pouco ciosos de uma coerência de
o sexo. a vida e a morte, para utingir, a exemplo do livro "pioneiro" de conju'lto e'll suas proposições.
28 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 29

A dispersão das referências teóricas é, de resto, proporcional às nitidamente o deslocamento dos interesses dos historiadores à "crise de
divergências. que separam os autores em sua concepção da !tist6ria. Os civilização que afeta, desde 1962, setor a setor, os países que chegam,
grandes ancestrais, Marx e Freud, não estão ausentes. Mona Ozouf su­ progressiva e setorialmente, à era p6s-inãustrial. A crise põe em questão
blinha, a propósito da historiografia acadêmica da festa, o "grande ausen­ as �ransposições laicas dos valores de civilização de cristandade realiza­
te das interpretações", a saber, a "necessidade coletiva[••. ], a necessidade das no século das Luze3, a transposição escato!ógica da finalidade cristã
pulsional da festa"14• A psicologia das profundezas está presente na con­ sobre um crescimento por muito tempo automotivante" 17• Distinguem-se
tribuição de A. Dupront sobre a antropologia religiosa, ainda que _beba' mais com muita nitidez aqui as inquietudes do historiador- e um tanto teólogo
em Jung do que em Freud. A contribuição mais aberta às interrogações da - diante da perda de sentido em nossas sociedades contemporâneas. O
psicanálise é, sem sombra de dúvida, a de Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, acontecimento - como poderia ter sidC' diferen�e depois dos "aconteci­
que sublinham que o corpo, er,. sua alteridade, é •o limite onde tropeça e mentos" de maio de 68? - conquista até o direito a uma colaboração
pára" um saber "agressivo e devorador", que deseja abolir a diferença: a particular, a de P. Nora, enquanto que asAnnales não lhe reservavam lugar
história não l!eve mascarar muito rapidamente as falhas que· atravessam os algum. Mas ele é tratado sobretudo sob seu aspecto mediático "�e atu­
. "textos" de ontem com hipóteses redutoras, mas dar lugar aos silêncios, alidade" e sua projeção espetacular contemporânea; e para além �e uma
atenta ao irJ'ortúnio, ao sofrimento que s6 se diz indiretamente15• fenomenologia formal, o autor, ao comparar o historiador ao geólogo
Quanto ao retorno a Marx, n.inda que a abra pretenda romper com sobre um vulcão em erupção, designa mai� ponti> de vista do que os
o modelo dominante de história econômica, ele surge em vários níveis. O i.nstrumentos para tratar o problema.
objeco prifl.cipal do debate é, no entanto,· a leitura filosófica que Louis Mas é talvez M. De Cert�au quan ma�s lucic!amente situa a falha
Althusser acaba de propor em Pour Marx[Por Marx] e Lire /e Capital[Ler ii:itroduzida pelo acontecimento: para ele, o historiador não deve renunciar
o Capital]; toda a demonstração de· Pierre V ilar se levanta firmemente jamais à relação qu� as séries, as regularidades percebidas "mantêm com
contra seu dogmatismo teórico, seu hegeHani� seu desconhecimento 'particularidades' que lhes .escapam", mas d�ve ocupar-se do particular
abissal da prática histórica contemporânea: "A descoberta de Marx não é como "limite do pensável" 18• Assim ele pontua, atravé:; do modelo do­
essencialmente nem de ordem econômica ,1em de ordem teórica, mas: de minante da história serial, o movimento que conduz ao interesse pelos
ordem sócio-histórica. Ela está no desnudamento eia contradição social que "restos" e pelas "diferenças": "O historiador não é mais o homem capaz
implica a formação espontânea, livre, da mais-valia ('acumulação do ca­ de constituir um império. Nem visa mais o paraíso de uma história global.
pital'), no conjunto coerente do modo de produção que a assegura, e que Ele chega a circular em torno das racionalizações conquistadas. Ele tra­
ela caracteriza".' 6 A fidelidade a Marx encontra-se também no textJ de balha nas margens. Sob esse aspecto, ele se toma um erradio"19•
Micbel de Certeau que, recusando o estatuto "reservado" que Raymond Vinte anos depois. - Forçoso é constatar hoje que a história dos
Aron atribuía aos intelectuais, sublinha que os cortes epistemológicos são anos 90 difere sensivelmente daquilo que, por um momento, apresentou­
indissociavelmente sociais e intelectuais. º.
se como a "nova história"2 É bem verdade, a mudança operou-se com
Em verdade, Paire de l'histoire é um livro datado em suas referên­ freqüência no sentido diagnosticado ou sugerido por Paire d� l'histoire.
cias intelectuais. As obras maiores que, na França, inauguraram novas O "território do historiador" prosseguiu sua expansão com a introdução
questões nas ciências humanas, de Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, de novos objetos: a história das "atitudes coletivas", diante da morte
Michel Foucault ou Louis Althusser, subentcudem as colaborações de (Philippe Ariês, Michel Vovelle), do medo (J. Delumeau) ou da vida (J.
muitos autores. Era o apogeu do período "e:::truturalista". Por outro lado, Gélis), a história dos gestos (J.-C. Schmitt), das cores (M. Pastoureau),
os trabalhos da escola de Frankfurt- então disponíveis apenas em alemão dos prenomes (L. Pérouas, J. Dupâquier) ou dos "dispositivos afetivos"
- eram pouco conhecidos: apenas Paul Veyne e sobretudo M. De Certau (A. Corbin). Novas abordagens continuaram surgindo, levando vastos
fazem referência à sociologia crítica de Jürgen Habermas. O livro é por s�tores a uma reformulação das análises, como a análise das formas da
isso sensívd às mutaç6.!s que afetam o tempo presente? P. Chaunu liga sociabilidade no âmago da história social (M Agulhon), a. inscrição no

lil
30 PASSADOS RECOMPOSTOS lntrodv.ção 31

�spaço das relações e das dinâmicas econômicas de longa duração através a L'Histoire économique et sociale du monde [A história econômica e social
d.is "economias-mundos" (1. Wallerstein)21, o relacionamento das ativida ­ do mundo] ou a L 'Histoire de l'édition française [A história da edição
des econômicas, das estruturas demográficas e das configurações sociais francesa]29, · mais recentemente ainda, e �b a iniciativa do editor italiano
segunde o modelo - hoje fortemente discutido - da "profo-indústria"22, Laterza, a L'Histoire des femmes en Occident [A história das mulheres no
ou a construção da memória nacional pelo trabalho com os "lugares de ocidente], seguida de uma L'Histoire des jeunes [A história dos jovens] e
memória"23• Certos domínios, já definidos, adquiriram visibilidade e le­ agora de uma L'Histoire de l'enfance (A história da infância].:.. nem pela
gitimidade, como a história das empresas, industriais, comerciais ou fi­ inércia das práticas historiográficas. A história social e eco_nômica, por
nanceiras24. Outros constituíram-se, quase que totalmente, como a "his­ muito tempo dominante na França, apagou-se diante do avanço da história
tória do tempo presente" - que é extremamente difícil de se pensar, cultural, mas também da história política,. em história contemporânea30, e
considerando-se a função ctítica da história frente às reconstruções da mais ainda em ,:1ist6ria medieval3 1 e moderna, como t�temunham, por
memória ( ou da amnésia) - que o CNRS institucionalizou ·ao criar, em exemplo, os importantes tràbâlhos consagrados à "gênese do Estado mo-
1978, um Instituto de história do tempo prescnte25 • ' ·demQ"32• A rigidez dos quadros "estruturais" (o econômico, depois o social,
Entretanto, semelhante criação não era tão simples. Por causa, depois o mental, para retomar a trilogia de E. Labrousse) desgastou-se, a
antes de tudo, da antiga e tenaz crença de que a história se institui sobre quantificação - uma das "linguagens de descrição do mundo" preferidas
a separação entre o passado e o· presente - ilnsfo todavia denunciada peles historiadores do pós-guer;a - perdeu terreno, mesmo que, como
desde há muito - para que exish entre o historiador e seu objeto a explica J .-Y. Grenier, per:naneça sendo um instrumento heurístico
distância necessária à "objetividade": só o recuo iibertari:l das "paixões" insubstituível. A realidade histórica é cada vez menos examinada como um
do momento e a história "imediata" deveria ser deixada para o jomàlista. objeto dotado de propriedades que preexistam à análise, mas como um
Em segundo lugar, porque a escola histórica francesa foi fortemente "conjunto de inter-relações que se movem no interior de configurações em
;µarc-.ada pela onipotência concedida à longa duração em detrimento do ��tante · adaptação"33• Simona Cerutti aqui o .de�onstra a partir do pro­
acontecimento: F. Braudel disse sua desconfiança frente ao tempo curto, blema das classificações s<;)Ciais.
"a mais caprichosa, a mais enganosa das durações", pois "tal como a Numa palavra, a passagem das massas às margens, das análises esta­
sentiram, descreveram e viveram os contemporâneos", reconhecendo, en­ tísticas aos estudos de casos, dos objetos às práti�as e às lógicas sociais (como
tretanto, que é a história "mais apaixonante, mais rica em humanidade"26. demonstra Dominique Julia ·a ·propósito da multidão) provocou, entre outras
Pois foi o cará!er traumático dos acontecimentos que inauguram nossa coisas, a .reintrodução dos agentes nos grandes processos !:istóricos e a
contemporaneidade - a Segunda Guerra Mundial e o genocídio nazista diversificação dos instrumentos analíticos. Passar a levar em consideração,
- que tomou necessária a emergência da história do tempo presente. por exemplo, a diferenciação social dos papéis sexuais em um número cres­
François Bédarida recorda aqui mesmo a importância. do papel do exame cente de domínios (cf. o artigo de Olwen Hufton) não foi pequena trans­
por peritos e a responsabilidade social do historiador frente à impostura formação. Notemos igualmente que a chegada, doravante maciça, de histo­
dos negacionistas. Está em jogo a relação da história com a verdade assim riadores estrangeiros ( americanos, ingleses, mas também italianos ou ale­
como de sua função cívica, sem que seja certo que possamos jamais mães) como Robert Damton, E. Weber, R. Paxton ou T. Zeldin, o desen­
"historicizar� totalmente o fenômeno "nazismo", tanto o horror dos cam­ volvimento das grandes revistas anglófonas como French Historical Studies
pos toca os próprios limites de nossa cultura; como escreve F. Furet: "Há [Estudos históricos franceses] (a partir de 1962), French History [História
um mistério do mal na dinâmica das idéias políticas do século XX"27• francesa] (a partir de 1987) ou Modem aNJ Contemporary France [França
Os vinte anos que nos separam de Faire de l'histoire não foram então moderna e contemporânea], favoreceram a renovação das abordagens.
marcados nem por uma falta de dfuanismo- as sínteses coletivas são muito Por que, apesar da riqueza e da abundância de um tal panorama -
numerosas, como as histórias da França 1 ·rural", "urbana", mais recente­ que além do mais é necessariamente inc.omplcto - certos historiadores
mente "religiosa", aL 'Jlistoire de la vie privée LA histtSria da vida privada]28, fal:im nãc apenas de incertezas, de dúvidas, mas também de crise? A
32 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 33

questão � tanto mais importante por não se restringir à França, mas


A profissão de historiador hoje
repetir-se na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos34• O fenômeno não
A história tende a tomar-se u;:n patrimônio comum. Por conseguinte,
datà de hoje: o primeiro alerta remonta ao fim dos anos 70 - momento
todo o mundo pode tomar-se historiador, de sua família, de sua cidadezinha,
de euforia persistente sob o signo da "nova história" -, com o artigo
de sua região, de sua profissão, de sua disciplina ... Diferentemente da
de Lawrence Stone que, à contracorrente de vtrias décadas de prática
histórica, diagnosticava um "retorno ao relato"35• Ele chegar:a a se macemática, da biologia, até m\!smo da sociologia ou da antropologia,
integrar em uma "crise ge.ral das ciências sociaisu36• Trata-se simples­ acontece &inda, muitas vezes, com a história como com a música de
mente de uma transformação dos grandes modelos de inteligibilidade amadores ou a pintura de domingo. Alguns mesmo, como certos juízes de
que, por longos anos, os historiadores utilizaram no exercício de sua Versailles em uma sentença famosa ou cer:o antigo conselheiro do príncipe,
"profissão" (cf. artigo d·.1 Philippe Boutry 37)? Trata-se também dos se erigem pura e simplesmente em historiadores. Donde um risco, clara­
desafios que outras disciplinas podem lançar à história quando ela se mente denunciado por Pierre Vilar: no "comércio da história", as "marcas
esforça r,'Jr historicizar o conjunto de realidades sociais, em particular [ ...] estão muito mal protegidas. Qualquer um pode se dizer hist::>riador.
entre os filósofos - trate-se da filosofia analítica, como apresentada aqui [ ...] Contudo, nada mais difícil e raro do que ser historiador ...'141• Vilar
por Pa�cal Engel, ou da filosofia moral e ética - que recusam a acrescentava, é certo, o epíteto "marxista", mas a observação vale mesmo
historicidade n certas realidades, em nome de um sujeito universal e sem CJ l!pítet0. Num�rm,os tex:os recentes.. que remetem à "profissão de
trans-histórico? Não apenas: é o próprio estatuto da história, enquanto historiador" - às suas "regras", como lembra aqui mesmo François Bédarida
óiscipUna científica, que ·a partir de então é posto em jogo. - testemunham a atualidade dn questão. Se a paternidade da expressão
De um relativo co1_1s�nso passou-se a uma confrontação ambígua, pertence a Marc Bloch, numa obra importante, ainda que inacabada42, ela
onde a história, de resto, está longe de se encontrar em uma posição de pertence daí em diante ao domínio público, para englobar a um tempo um
fraque�a. Sob o choque da "virada lingüística" iniciada nos Estados método - um conjunto de operações técnicas, com
. seus instrumentos, seus
Unidos no fim dos anos 6038, e de uma crítica literária que, levando a procedimentos e sua necessária aprendizagem, e critérioc:; de científicidade
extremos as análises de Paul Ricoeur e, mais recentemente, de Hayden - e uma deontologia, não se deve esquecer a dimcn�ão ética do trabalho
White sobre o relato (cf. o artigo de François Hartog), amalgama '�relato", histórico, como de todo trabalho científico. Certamente foram as exigências
histórico ou não, e ficção, a história tomar-se-ia um simples gênero da "história do tempo presente" que devol,.-eram a essa antiga questão toda
literário, e perderia a partir disso toda pretensão a ser também um discurso a sua urgência, enquanto que a reflexão metodológica recente tendia a
de verdade. Ora, recentes proposições da epistemologia das ciências promover o problema da "escritura histórica", pondo como que entre pa­
sociais reinstalam a história no coração das ciências sociais, não como rênteses a imperiosa exigência de verdade-1:3_
a ciência-rainha, mas como um modelo geral de cientificidadc das ciên­ O "pequeno mundo" dos historiadores? - Desde inícios dos anos
cias sociais: J.-C. Passeron considera a todas como "ciências históricas", 70, os efetivos universitários conheceram um crescimento sem precedente.
frente às ciências da natureza, as únicas que estariam submetidas ao Os historiadores titulares de postos nas uci,·ersidades frances,is passaram
modelo popperiano de validação experimental�. de 302 cm 1963 para 155 cm 1991, ou seja, seu número foi quase quadru­
Em conjunturas diversas, segundo as disciplinas ou o país, a "crise" plicado, os professores de história nas universidades italianas passaram de
se enuncia em termos de sobrevivência - Grã-Bretanha-, de futuro - 252 em 1951 para 1.115 em 1983, e passaram de 1.300 em 1960 para 1.700
Estados Unidos - ou de estatuto - Franç:i, Estados Unidos - da história. em 1970 nas universidades britânicas, qu:mdo eram por volta de 30 cm
Será necessário, por ·isso, dramatizar o momento presente pois, como 190044• As conseqüências são numerosas: a pesquisa profissionalizou-se
lembrava recentemente a historiadora americana Joan W. Scott, "aqueles quase completamente, às custas dos ilustres acadêmicos, e, com algumas
que esperam que os momc�tos de mudança sejam confortáveis e isentos exceções, implantcu-se solidamente. O volume das publicações deu um
de conf!itos ;1ão apr�ndc�am história?"40• salto: de acordo ("'.:>m a bibliografia anual internacional de história da França,
34 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 35

contava-se com cerca de 3.000 publicações (livros, artigos, comunica­ para quem a ·vive, mas tende também a reduzir, até mesmo a fazer
ções ••• ) por ano nos anos 1920, 5.000 por ,·o)ta de 1955, 8.000 em 1960, desaparecer, o indispensáve·l "tempo de reflexão".
9.000 em 1963,. 10.000 em 1970; após "Cm decênio de estagnrição, o cres­ Desde os grandes sucessos editoriais dos anos 70 sobre fundo de
cimento foi retomado: 11.000 em 1979, 12.000 em 1985, mais de 15.000 nostalgia rural (Histoire de la France Rurale. [História ·da França
em 1991. Enquanto os "catedráticos" <los anos 1960 podiam ainda dominar rural]), o Montaillou de E. Le Roy Ladurie . . . )-que alguns acreditaram
uma vasta área, a explosão da produção em todos os setores historiográficos poder interpretar como um açambarcamento da �dição de história pro­
levou a uma especialização mais e mais aguda, a despeito da publicação gramado pela "escola das Annales" -, o imaginário de muitos historia­
regular' de review articles ou do desenvolvimento das bibliografias dores foi povoado de best-sellers ou de Apostrophes. A celebridade do
informatizadas. É preciso notar, de resto, que e�sas últimas operam escolhas historiador é uma realidade recente, como o demonstra a contrario um
drásticas, privilegiando fortemente as publicações em inglês, uma vez que panfleto anti-s7mita recente que se opunha ao nome de Marc Bloch para
os instrumentos informáticos mais potentes encontram-se nos Estados a Universidade de Letras e Ciências Humanas de Strasbourg: um nome
Unidos. É verdade, como lembra oportunamente T. Tackett, que o tamaJ1bo , "não conhecido pelo grande público"47• Ela indubitavelmente modificou
da "comunidade" dos historiadores nos Estados Unidos é sem comparação a relação entre pesquisa e edição. Não há dúvida, um bom número de
com a dos outros países do mundo: lá são publioldos a cada ano mais de livros ainda é submetido a um editor por iniciativa de seu autor (33%
7 .000 livros apena3 sob,e a histór:a d�s Estados Unidos e países da América, dos livros publicados no conjunto do setor de ciências sociais). A no­
contra uns 2.500 na França para todo o conjunto das ciências sociais. vidade - não absoluta - vem sem dúvida da crescente importância da
Esses historiadores, mais numeroso� que :nte�, encontram-se tam­ encomenda editorial (22% dos livros publicados48): ao lado das grandes
bém mais freqüentemente para apresentar problemas e resultados em coleções e das séries históricas, ou das biografias, redigidas agora por
congressos ou seminários, em períodos limitados de ensiná em professores universitários titulados, os editores pretendem suscitar obras
universidades estrangeiras, sobretudo· européias (graças aos programas específicas. Georges Duby, que confessa hayer escrito vários de seus
de cooperação como "Erasmus"), mas também americanas. Tal circula­ livros sob encomenda, lhes reconhece o mérito de sacudir a indolência,
ção possui evidentemente muitas vantagens: acelera a difusão dos re­ de estimular a inteligência49• Eles foram particularmente ativos para
sultados, obriga os pesGuisadores à confrontação, nacional e, mais ain­ produzir vastas sínteses, primeiramente em escala nacional, com co­
da, internacional, o que tende a desclassificar uma historiografia muito edições "bilaterais" logo â seguir - o editor italiano Laterza fez disso
estreitamente "hexagonal", em suas questões mais que em seus objetos. uma especialidade, com a ajuda de historiadores italianos� franceses; os
Mas o "colóquio", mais dissimuladamente, toca a atividade dos histo­ volumes são depois propostos para a tradução em outias línguas-, com
riadores de dois modos. A prática da comemor3ção, em escala nacional coleções agora européias, como a dirigida por Jacques Le Goff.
como na França, cm escala mais local como na ltália45, tornou-se uma Esse real sucesso da história como mercado editorial, que mobi­
das fontes de financiamento das reuniões científicas; ademais, uma lizou - desviou? - uma parte - mc1s Gual? - da corporação, influenciou
demanda social forte exige a apresentação de resultados da pesquisa, profundamente as dinâmicas da pesquisa recente? alterou o equilíbrio
para além dos círculos de especialistas, pel� próprios historiadores. entre a vulgarização e a pesquisa? modificou a própria escritura da
Comemoração e "vulgarização" (sem conotação. pejorativa) podem história? Claude Langlois pr�põe aqui uma perspectiva diferente: qual
perfeitamente se encontrar e multiplicar os en�ontros, como foi o caso a edição necessária para a pesqllisa hi:;tórica? Para além das questões
do Bicentenário da Revolução Fra,1cesa. Compreende-se então facil­ clássicas, que tratam da dh:tância entre pesquisa e vulgarização, da
mente o apelo à moderação no uso dos colóqufos, apelo lançado recen­ necessária publicação, em atenção a um público de especialistas, de
temente por Jacques Le Goff4 6 • A transforr:.:ação do historiador em pesquisas austeras e difíceis mas fundamentais, é importante refletir
globe-trotter - um ex�mplo excepcior.:il mas revelador é apresentado sobre o laço essencial que o editor deveria estabelecer entre a pesquisa
aqui por Antoine de 13aecque - é não apena� uma experiência extenuante e � demar.da social. A esse respeito, a França, como a Itália ou a Espanha,
36 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 37

cncontrnrn-se em uma situação em que a maioria das obras históricas é histórica51 . Seus a�anços decisivos repousaram na inventividade de seus
public.ada por editores comerciais, o que assegura uma larga difusão a autores, na importação, mais ou menos selvagem, de noções ·ou de modelos
esse tipo de livros. Na Grã-Bretanha ou nos Es!ados Unidos, ao con­ explicativos vindos c!as ciências sociais, mais do que na crí\ica metódica
trário. o essencial das obras históricas é publicado por editoras das fontes. À margem da "galáxia Mabillon'", o "novo historiador" encon­
universitárias, especialistas do livro "acadêmi�"- Não estaria aí uma trou-se desarmado, nos anos 80, face às teses "negacionistas" sobre a não­
das razões do aprisionamento dos historiadores ingleses nmna torre de existêneia das câmaras de gás e, mais recentemente ainda, diante da aber­
marfim cujos perigos acabam de ser d�nunciados por D. Cannadine? É tura dos arquivos das antigas democracias populares.·
evidente que se, para retomar uma comparação já utilizada, o editor de Em um livro que deve ser meditado, Anthony Grafton nos lembra
história concebe seu produto como uma fábrica de detergente concebe que o desenvolvimento da crítica na éiJoca moderna alimentou-se da
um novo sabão em pó, o ,�istoriador fica dependente. Mas a oposição sutileza inventiva do� falsários52, quer se trate da famosa "doação de
simplista entre lógicas editoriais e lógicas intelectuais negligencia a Constantino" que deveria legitimar o poder temporal do papado medie­
intcrpen<..'�ração complexa do mundo universitário e d0 meio editorial, val53, ou dos tristemente célebres "protocolos dos sábios de Sion", texto
a divisão dos papéis entre diretor de coleção e diretor comercial, os anti-semita posto em circulação no fim do século passado54. Donde, num
risco� de desclassificação, no campo intelectual, do historiador merce­ primeiro momento, uma retomada dos métodos tradicionais da crítica de
nário ... Todavia, que editor atual esperaria quinze anos para que um textos, tlabo, adas no sé�ub XVII e sistematizadcs pela filologia alemã
Marc Bloch lhe entregasse seu manuscrito de La Sociétê Féodale [A oo século XIX, e uma remissão, na falta de coisa melhor, à velha
�ociedade feudal] 5°? A oposição dos dois sistemas não deve, de resto, Jntroduction aux études historique.ç [Intrnduçãc aos estudos históricos],
ser levada longe demais: os editores comerciais franceses se beneficiam publicada em 1898 e recentemente reeditada: C. V. Langlois e C.
freqüentemente das subvenções do Centro Nacional do Livro (CNL), do Seignobos nela assentaram o "método histórico" sobre um tratamento
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), ou do ministério do de documentos que combinava uma críticà externa voltada para a au­
Ensino Superior e da Pesquisa, quando se trata de publicações de caráter tenticidade - a partir da escritura, da língua, d.as fom,as ou das fontes
cientifico. Não é o caso de se ignorar ou denegrir essa entrada da do documento - a uma crítica interna atenta ao autor e suas intenções
história no espaço mercadológico, sobretudo enquanto uma avaliação e assim ciosa do verídico .. Se essas fórmulas simples podem constituir
séria e serena de suas conseqüências não tiver sido realizada. um poderoso antídoto contra·as falsificações de todo tipo em um período
de manipulação mediática e de aproximações apressadas55, é apenas
As regras da profissão imperfeitamente que dão conta da erudição crítica, ainda menos Jas
Não há história sem aplicação rigorosa das regras de uma profissão. práticas atuais da profissão: esse exercício sistemático de comparação
Essa insistente lembrança - cuja compreensão não é imediata, pois eia e confrontação é a um tempo uma "arte racional" e uma "arte de fineza",
remete tanto a princípios formalizados quanto a0 s:zvoir-fa ire não expresso, afastada de toda regra mecânica; M. Bloch já sublinhou suas formas
adquirido no trabalho ou na atividade de "oficin:i" - retira sua origem de muitas vezes antinômicas e .os seus riscos - como o de sul,,stituir uma
inúmeros fenômenos. A "nova história" fundou-se, entre outras coisas, no linguagem da probabilidade por outra de evidência comum56 •
estudo das massas - a verdade é então assegurada não pela operação crítica Não nos cabe aqui retomar os grandes elementos da "profissão de
mas pela "lei dos grandes números" - e na aecusa da divisão entre docu­ historiador" aos quais M. Bloch consagrou, há. mais de meio século,
mcnt·os "verdadeiros" e "falsos" - todo dccumcnto é útil para o historiador; reflexões mais do que nunca funciamentais. Não pode haver história senão
des� modo ela colocou entre parênteses por um tempo a crítica histórica erudita; a coleta metódica dos dados repousa sobre o recurso, freqüente
ma� tradicional, ao mesmo tempo em que clabor.iva outros métodos adap­ ainda que variável segundo as épocas e os lugares, às técnicas "auxiliares"
tad0$ aos novos tipos de documentos mobilizados, como os testes de - ou "ancilares" - cuja longa lista não cessa de se enriquecer, com a
vali<hm�nto :las sérks estatísticas cm história econômica ou cm demografia introdução, por PXemplo, de métodos físico-químicos em arqueologia ou
,;!

38 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 39

cm História da Arte. Uma arqueologia industrial atenta :ios arquivos veio móvel toma aspecto de flutuações cíclicas; se se considera que a sucessão
recentemente desmontar o processo da "engenharia criminal", a partir do das colheitas sob o Ancien Régime é um fer.ômeno aleatório, como afirmar
estudo da construção dos crematórios de Auschwitz57• Neste quadro, os que os ciclos conjunturais das econoú1ias antigas são fenômenos reais? Mais
progressos da história repousam essencialmente sobre uma lógica da recentemente, os efeitos do uso da média nas estatísticas históricas foram
acumulação: acumulação de instrumentos de trabalho e de dados (repertó­ submetidos a avaliação60• Restaria ainda examinar a utilização de noções
nos de arquivos e de fontes, bibliografias gerais ou especializadas, dicio­ importadas de outras disciplinas, variante do ciássico "anacronismo": as
nários, edições de textos, bancos de dados ... ), acumulação de lrabalhos ... noções elaboradas para descrever, digamos, os bororos ou os nuers podem
Mas não está aí o ess�ncial: a qualidade da produção histórica depende do se aplic,u aos aldeões da Borgonha medieval? Muito dificilmente, pois
questionário elaborado pelo historiador; n validade das respostas obtidas "a disciplina da história é, acima de tudo, a disciplina do contexto"61• Ao
remete, para além dos procedimentos empregados, à pertinência da docu­ afirmar assi,1 a especificiüade disciplinar da história entre as outras ci­
mentação mobilizada em .relação às questões propostas. ências sociais, o historiador britânico E. P. Thompson enunciava uma
A demonstração de Étienne François, aqui mesmo, é, a esc;e res­ regra fundamental da profissão de historiador: um fato, u�a realidade
peito, esclarecedora: os relatos dos "informantes não-oficiais" da antiga social ou cultural, só pode ser analisado no contexto muito preciso, quase
Stasi descrevem a oposição ao regime ou são, antes, o produto da máquina estreito, que o produziu ou fez existir.
político-administrntivc1 .c!a rn!iga RDA e das estratégias complexas de Os instrumentos de trabalho - Durante os anos 1960, no apogeu
seus agentes? Para retomar a velha expressão de Émile Durkheim, o da exploração das grandP,s fontes seriais.. o uso do computador realizou,
historiador, como o sociólogo, constrói seu cbje•o de estudo pela formu­ na França, uma entrada marcante na pesquisa histórica. Ele permitia o
lação de questões ou hipóteses, pela definição das bases documentais e domínio sobre corpus até então inacessíveis por sua �mplitude, permitia
pela escolha dos procedimentos de análises58• Foi neste caminho que a transformá-los em quadros de cifras e gráficos: era, antes de _tudo, uma
reflexão sobre a "profissão" progrediu_ recentemente. fantástica máquina de calcular. Trinta anos mais tarde, a introdução d&
Analisando oMontaillou, vil/age occitan [Montaillou, aldeia occitanna] informática na história parece quase paradoxal: os grandes trabalhos de
de E. Le Roy Ladurie (Paris, Gallimard, 1975), Jacques Ranciere sublinha história quantitativa, de Esquisse du movement des prix et des revenus en
o c11Sto da construção historiográfica. A ctno-sociologia de uma aldeia France au XVII/e siecle [Esboço do movimento dos preços e dos lucros
"cátara" do século XIV só foi possível pelo descarte da heresia que deu lugar na França no século XVIII] de Emest Labrousse (1933) ao monumental
à visita do inquisidor e forneceu o material de arquivos: "O inquisidor Seville et l'Atlantique [Sevilha e o Atlântico] de Pierrr Chaunu (1955-
suprime a heresia ao erradicá-la. ( ...). O historiador, ao contrário, a suprim� 1960), foram elaborados com máquinas de calcular "pré-históricas"; as
ao enraizá-la. ( ...) Era necessário que a heresia fosse para que fosse escrito calculadoras de bolso nos anos 1970, sobretudo a microinformática dos
o que não tinha nenhuma razão de ser: a vida de uma aldeia do Ariegc no anos 1980 colocaram ao alcance de todos um espantoso poder de cálculo
século XIV. É preciso que ela desapareça para que essa vida se reescreva no no. momento em que o "paradigma galileano" deixa de ser central entre
presente de uma história das mentalidades"59• Re�idade enviesada, reduzida, os historiadores que se afastam do serial e do quantitativo.
mutilada? A operação historiográfica é acompanhada por efeitos diversos: a Não é o caso, todavia, de fazer um balanço negativo. As grandes
menos mal conhecida é a ilusão documentária que, como nos lembra Olivier enquetes quantitativas não cessaram da noite para o dia: a possibilidade de
Guyotjeannin, faz tomar por uma mudança nas realidades observadas o que trabalhar com populações consiJeráveis foi banalizada - Christiane Klapisch
é apenas uma modificação do modc de redigir atos administrativos ou notariais e David Herlihy estudaram :ssim os talvez 250.000 toscanos registrados no
ou a aparição de uma documentação antes inexistente. Mais sutil é a produção catast� (cadastro fiscal) estabelecido por Florença em 1427, André Zysberg
de -artefatos" pelos instrumentos utilizados. Há quase vinte anos, J.-C. Pcrrot escrutou a totalidade dos 60.000 conden�dos às galeras da época de Luís
ha,;a atraído a aten'ião para o efeito c!cscoberto pelo economista americano XIV, Jean-Pierre Bardet reconstituiu, a partir de amostragens significativas,
Slutzky: uma série de cifras lançadas ao acaso e substituídas por uma média os corr.portamentos demográficos dos habitantes de Rouen nos séculos
,'.·.··
40 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 41

XVH e XVIII 62• Onde a informática começa a alterar o trabalho do histo­ As transformações dos anos 80 não acarretaram nenhuma perd:1 no
riador é na introdução da possibilidade de traLalhar com dados cada vez domínio dos utensílios fundamentais: a "transfiguração" das técnicas,
mais ricos, dotados de úm número mais e mais elevado de carac�eres ou mais ou menos antigas, da erudição, o uso refletido da cifra e d:1s esta­
de variantes. Os anos 80 co�heceram ainda, na França, o desenvolvimento tísticas, o aprofundamento da· análise cartográfica - uma das originalida­
da análise factorial, no momento em que os h!storiadores complexificavam des francesas65 - enriqueceram e diversificaram a profissão de historiador.
sct&s modelos explicativos dos processos históricos: apreender as correla­ Mas ela não poderia ser reduzida a um conjunto de operações técnicas
ções não entre dois ou três elementos, mas re-5ituar o objeto. C;Studado em uma vez que é, antes de tudo, orientada para a produção de :::entido, trate­
um circuito muito mais diversificado. A informática permite, igualmente, se de uma explicação ou de uma interpretação.
o recurso a modelos formais para avaliar a importância de tal ou tal fator
num processo histórkí>63 • A econom�tria faz assim uma entrada tardia, e Algumas questões atuais, na França e no exterior
prudente, na história econômica com a publicação do grande trabalho de A história, enquanto disciplina, não pára de reformular seus próprios
Jcar.• Heffer sobre o porto de Nova I orque, que recNre a modelos econô­ problemas, sem dúvida porque a evolução do mundo não pára õe modificar
micos, avaliando a cada etapa sua capacidade explicativa<»4 . a percepção das realidades humanas que n0s cercam. É verdade que alguns
Enfim. no momento em que a história retoma o interesse pelos indiví­ não hesitam em pensar que nosso mundo pós-industrial, pós-moderno.
duos e suas trajetórias - as "carreiras", as genealogias, as redes sociais -, o tende a se destacar da �orrente cas trcldi�es que o construíram, abolindo
computador - que não é mais uma calculadora �não secundariamente - toma a "memória longa" e rem'!tendo os historiadores a seus gabinetes. É verdade
a ser o gerente zeloso de ·bancos de dados nominativos: pa!'a C'I estudo de que nos Estados Unidos, país de ''via;anres sem valise�", a história serviu
vastas populações - as dezenas de milhares de dossiêc.; de membros da apenas muito raramente para exaltar a grandeza nacional on ·a primazia
administração espanhola no século XVIII (J.-P. Uedieu), ou as genealogias, americana, diferentemente das outras ciências sociais. Mas os historiadores
abrangendo cerca de vinte gerações, dos habitantes do importante povo"dc britânicos denunciaram recentemente c om _vigor os perigos de um
de Manduna, na Puglia (G. Delille) - mas também de amostragens mais profissionalismo cortado de um público mais vasto, ignorante da demanda
restritas, estudadas de maneira mab intensiva. As possibilidades do compu­ social exterior. Muitos problemas históricos recentes, sejam eles franceses
tador permitem desse modo· a identificação de indivíduos descritos por di­ - em torno de Vichy ou da descolonização -, ou mais amplos - o recru­
ferentes fontes, e o estabelecimento da lista e o encadeamento das variantes descimento dos nacionalismos na Europa,. o retorno de uma extrema-direi­
de um texto através de seus diversos manuscritos (cf. o artigo de J.-L. Gaulin), ta ... -, mostram entretanto como o presente não deixa de interrogar a
a reconstituição do campo semântico de uma palavra cm um corpus ou a história e obrigam o historiador a retomar suas pesquisas, a reformular suas
reconstrução das etapas do trabalho tipográfico cm uma casa de impressão questões, até a mudar seus métodos. Grandes historiadores de nosso século
do século XV a partir do estudo intensivo de alguns incunábulos. Os não pararam de repetir: toda história possui "o caráter de 'história cont�m­
resultados - bem mais confiáveis que aqueles ohtidos por enquete manual porânea'", gostava de dizer o filósofo-historiador Benedetto Croce6<1; a
- s'5 dependem agora de uma realidade fundamental: a qualidade das fontes pesquisa histórica inscreve-se em um vai-e-vem indispcn::;ávcl que nos faz
registradas nas bases dos dados. O rigor formal do computador remete pois "compreender o presente pelo passado.,. e "compreender o passado pelo
o historiador à crítica erudita. A cnquete prosopográfica sobre a alta ad­ presente" (M. Bloch), ela é um "diálogo perpétuo entre o passado e o
ministração espanhola em fins do Anden Régime vem assim obrigar os presente"67, o que Pierre Vilar nos demonstra mais uma vez aqui mesmo.
pes.quisadores a retomar o estudo d"c; instituições políticas da Espanha das Questões sempre novas - Esse diálogo se faz mais insistente quando
Luzes, setor que a historiografia tradicional estimava conhecer bem há a irrupção de um presente trágico obriga o historiador a um exame de
tempos. Se a utilização "galileana" do computador ameaçava "fctichizar" consciência68 • "Devemos crer que a histó:ia nos enganou?" Essas palavras,
os resultados "limpos" saídos da impressora, seu uso mais recente relançou murmuradas por um oficial do Estado-�faior recém-saído da Escola de
a :eflex:io sobr� a constituição da informação e a natureza das fontes. Guerra, peq;,untando-sc, no verão de 19�. no dia seguinte ao desastre de
�I 42 P�oos RECOMPOSTOS

Flandres� sobre os .responsáveis pela derrota, perseguiram por muito tempo Foi assim,' ·no fim dos ànós 1960/oom: o desvio'.1cfúé�"des'i�ü� :inuitcis
o capitão Marc:·BJoch _como uma :espéc!e . 1·ma69.
• de censura a.. sua. d'1sc1p , , , • , ,.

e
• • • \ •, • • • • , 't ! l-"t. · ,.
.. ,_.,

historiadores' franceses; dos·mélhores, de úmã'histórià ecónom1ca�e:soc1al


. · " .·. - • t • - • 1�M.. , f* IA.., ,f '••"" (' 1 e •

Lucidamente,-ele· media como as falhus .da formaçã� :militar, e particular­ para unia históri� das ·mentalid�des·coie�ill>��aró6fbt1\Imi'�erdi�êi�o
1
•i mente um ensino.de estratégia que se referia apenas aos exemplos da guerra retrato econômico e �ocial". da'• l_-'rah�G.i� Lábróu�ê;rpro��i>f 'd�íi1stó� · ·
de 1914-1918, haviam irr.pedido .o, alto comando de 1940 de realizar a ria econômica na Sorbonnéi·lia,,ia ret(imãdÕ; � partir·, dós;ttttds'·50; :o�h�cô�te
r• • •. ··f ··
necessária mudança de idéia diante da Blitzkrieg dos exércitos hitleristas: . , •. l�'. ! ,_;_,; t';"'\ ,·• •, -. •
departamental do país e distribuído' ·a' éada-llDí·'de ·seu�f alunós üilia 'ci:-cuns-
1 4·_ ,,

esse "feitiço Jo passado"'º não seria. a mais terrível acusação contra a crição a ser estudada. As·restrições não tardararii73::havià:ú�a t',audáciâ ·um
legitimidade intelectual e a utilidade pragmática da história? Seria o caso, pouco ingênua" em pensar que a' ambição de um· taI··trabalhà1:aletivó!era
então, de conformar-se ao dito espirituoso qnt; escapou a Charles Seignobos: compatível com ·o "individúalismo' feroz" que·1êv� "tâdt·dohtorando a·afir­
"É 71
· muito útil propor-se questões, mas perigosíssimo responder a elas?" mar a original: dade de seü procedimento; como ·cànfess{Maunce Agulhori,
· -A resposta é evid�ntemente negativa.· A experiência da Segunda cada um desejava escapar '"da 'repútação' de'...serlaté;!éf:fim1d�lsétis;di�· o
Guerra mundial, assim como, ma�s recentemente, a queda do mur .:> dP­ historiador da Somme-Infé'rieure '.ou '-do ai�i�ei-Tertdte"l4.!:Soti�eíudo, r a
Berlim ou o ressurgir ·dos nacionalismos na Iugoslávia, obrigam os his­ história das infra-estruturas havia· à·'partir · de :.éiitão�j:ón\uistadoléàmplo
toriadores, para compreender a opacidade de um presente, a se perguntar direito de cidadania e, nesse tempo :de" ruptunis rêult\lrâisímaio�ei (tránsfor­
sobre a validade dos procedimentos COM os (!Wlis eles explicam as trans­ m.!çâo dos comportamentos demográficos e'sexuàis;:tébriêílió�dÔ,Vaticano
formações. Refletindo sobre o �entido dos acontecimentos de maio de 68 Ii, crise de maio de 68 onde a irrupção doi-unboliéô fiiostrav�-a fiagilidàdc
I <.
1
"
e sobre. a vontade: política de prcenche.i.·-lhes as .falh:is, M. de Certeau
notou:·"Ahistória presente, .a que nós vivemos. nos ensina a compreender
r:
das convenções sociais� ),�(fü�ó' sutp�ilife �qÚê'lé)1blh��r ;'if
se tenha voltado pará fenômenos ·no limite dô·'jfor..sáv�l:1êfon� pdpiilâ�ês;
o�liist�fi�dtites \
(-

de outro. modo a· história passada, que se escreve ou se ensina. O saber feitiçaria, profetismo$','; messianismô§/inas' tanibél1li6 ?sêx���i,lm6tiê�, 1�1'
pode muda�· com . a experiência. Aliás, . sob. o viés desse fenômeno parti­ Ao contrário, a histórWrur�l'cónli�êu:líirií:-irítdJicfstá��;eÍ:lips�­
cular -= a palavra tomada, e retomada --:-, somos · levados n ·um problema após a floração dos ·'trabalhos 1de i hisÍória:--rêgiônal q'tíe/tdóiBeãuváisi�
fundamental que provavelmente a estabilidade social e M sistematizações ao Languedoc� do ·Hurepoix: ao, Midi · toulousian<>tha�i�mtsublinhadd�
que a acompanhavam ontem havfam obliterado: como pode ocorrer uma nos anos 60, a permanênéiaFaté mesmo ii ·cón�ervaoodsmo;de·:socié�
mudança? Como nasce um novo d�a"!2? As crises d_o presente alteram os d ades ru'ra is . fortemenÚ�. �coíttrastàda·s/ e;f dclinea'cicfi'J'âgréisslstemas" .
paradigmas de ontem e o historiador trabalha sempre no presente, mesmo plurisseculares�·· AHistôire ilé IéFrance· Rura/e°1[His'té"tiâ;1<fa -França
que, estudando com as regras da mais estrita erudição um objeto do mais rural] (Lc ScuiJ�· 1975-1976)�·dirigida por ·oeorges·-Dubttf,E: Le··Roy
remoto passado, o faça dt; maneira metafórica.. Lad u rie, :propusera Luma 1síntese · consideradá'� eritãô�têômà"r.defin'i tiva:
A renovação dos assuntos e das problemáticas não nasce jamais in Neste domínio abandon:1do; a história· rura'I' "renasét';hojégraças · a
abstracto. Ela associa em uma alquimia complexa a acuidade de questões opções metodológicas novas (como o cruzamento de uma história
contemporâneas, a constelação intelectual na qual a história se insere_ antropológica das famílias com uma análise econômica -precisa da
(muito particularmente sua relação com as outras ciências sociais, como empresa agrícola) e revela, por trás da ilusória' imobiliciade· estrutural,
o demonstra aqui Jacques Revel), as exigências específicas do campo da algumas descontinuidades: o belíssimo livro de· Jean.:Marc Moriceau
própria disciplina, com seu desenvolvimento interno, suas formas parti­ sobre os fazendeiros da ile-de-Francc entre os séculos XV e XV III
culares de trabalho, os poderes que ali se exercem. valoriza assim a ·ascensão �ocial de um "patronato" agrícola no seio
Como qualquer outra disciplina científica, a história possui suas das elites rurais, seu papel motor na concentração e na modernização

1
dinâmicas internas: ela conhece os entusiasm� e os desânimos dos pes­ das explorações, seus investimentos precoces na educação das crian­
quisadores, ás submissões .e as rebeliões, ela possui suas enquetes "nor­ ças 75. A criação, em 1993, de uma associação que ·agrupa já 500
mais" e suas "revc!uções científicas", para retomiar os termos de T. Kuhn. 1.;storiaõores, seguida do lançamento da revista Histoire et sociétés
:1 44 PASSADOS RECOMPOSTOS
.......

Introdução 45

rurales l História e sociedades rurais] em 1994, no momento cm que Foi preciso a morte do general de Gaulle, o declíni!) do Partido Comunista
os ingleses e sua nova revista Rural History [História Rural] (1991) e sobretudo o desafio que representa,am os estudos americanos (particu­
redescobrem também a história dos campos7 s�o um sinal de que uma larmente os de Robert Paxton) para que a historiografia francesa estudas­
nova geração garante a. continuidade e que a história rural vai retomar se profundamente o regime de Vichy. É evidente que a evolução da
nos próximos anos um crescimento promisscr. historiografia da República Federal está estreitamente ligada ao olhar
A história é uma ciência social, quer dizer: "política". É uma antiga que ela lançou sobre seu passado. Acabada a última · guerra, o
evidência que já foi muitas vezes demonstrada com brio: a historiografia historicismo tradicional, saído da escola prussiana do fi� do século
da Revolução Francesa adere estreitamente à evolução política da França, passado, perdurou até 1960; a partir de uma história centrada sobre a
até mesmo do mundo76• O vigor da história depende então da liberdade política e a diplomacia, e em uma ótica nacionalista, ele não responsa­
de que dispõem os indiví1uos para pensar e agir. Na Alemanha Oriental, bilizava a Alemanh:i pel� Primeira Guerra Mundial e considerava o
a despeito de algumas exceções notáveis, o sistema muito centralizado de terceiro Reich uma aberração na história nacional: em nenhum dos casos
controle• ideológico e político - o.grau de adesão ao partido comunista a Alemanha era culpada. Só se colocou em questão essa aborda6em nos
aumentava em função direta da hierarquia dos postos e a quase totalidade estertores dos anos 1950, com a demonstração dos objetivos imperia­
dos professores de história moderna e contemporânea das universidades listas da política de Guilherme II em 1914, e depois da implicação de
eram membrns do Partido - desembocou o mais das vezes no conformis­ ampios setores da socieda<lc aiemã r.o sucesso do nazismo80• Obra de
mo de um catecismo conceituai e de uma linguagem ritualizada, que jovens historiadores, essa reviravolta historiográfica se desenvolve com
bloquearam ou retardaram as renovações, apesar de alguns espaços de o sucesso político da coalisfo social-Hbcral. Eln instala a história no
liberdadc77• Distâncias consideráveis separaram entretanto as historio­ meio das ciências sociais, afirma a singularidade de uma história alemã
grafias dos diversos países ditos "do Leste" segundo sua resistência à a ser reinterpretada desde o século XIX: 1:1ma industrialização sem re­
dominação do aparelho do Estado e do Partido. volução burguesa, um país dominado pela a_ristocracia proprietária dos
Na Polônia78, as exigências de alinhamento.doutrinal e a severidade Junkers prussianos, um nacional-socialismo como q11e desembocado de
da censura política puderam acarretar o abandono de certos assuntos de uma "via específica" - o sonderweg - na modernidade.
história contemporânea julgados muito explosivos ou a adaptaçfo da his­ Nos anos 80, esse novo paradigma foi por sua vez criticado pelos
tória nacional à conjuntura política, mas não encontraram a mesma adesão defensores de uma corrente historiográfica que, cm nome de uma abor­
maciça. A historiografia polonesa foi capaz de se renovar lá onde os objetos dagem mais cultuial e antropológica das realidades sociais, deseja
em jogo não pareciam decisivos para o poder. Os medievalistas (!esenvol­ reapropriar-se da dimensão subjetiva do viver cotidiano, no nível rc.;gio­
veram desse modo a metodologia original da cultura material a partir de nal, local, até mesmo· individual: as macroformulações das ciências
um programa muito amplo de pesquisas arqueológicas: nesse terreno, com sociais - industrialização, modernização ... - não podem dar conta dr
o �vai das autoridades, e sem que o controle de�t::as últimas pudesse distorcer relação que se elabora entre as contradições materiais da vida e os
os resultados, eles estiveram na ponta da ino,·ação tanto na história da comportamentos dos atores sociais6 :. Se o sucessn desse! Alltagsges­
produção agrária e industrial quanto na história das técnicas, do habitat, da chichte pode ser posto em paralelo com a subida dos "verdes", o avanço
alimentação ou do vestuário. Se a isso se acrcsc-.entam os estudos sobre os à direita dos anos 1980 é marcado por uma tentativa. de banalização do
sistemas mitológicos, as culturas populares uu os excluídos, os historiado­ "nazismo", considerado como o caso extremo de práticas mais larga­
res poloneses puderam propor modelos d::- pcsqt:isa aos países "ocidentais". mente difundidas. Esse "deba1e dos historiadores" - o Historikerstreit
Seria conveniente então nos intcrrogarr.1os sobre as pressões que - dos anos 1986-198882, fortemente ideológico e político, não desem­
afetaram a historiografia dos países ditos ·'livres" durante a guerra fria, boca de fato em nenhum grande avançü metodológico ou científico. As
cendo cm mente que "todas as questões históricas tendem a ser colocadas reformulações dus historiadores .;eriam apenas, por vezes, a simples
simult�near.:cnte ccmo questões políticas", e não somente na Alemanha79• reativação de =livagens antigas?
l 46 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 4 7

significativos dos novos tipos de relações que os historiadores entretêm com


Os Grandes Paradigmas a economia ou a sociologia85• Nenhuma dessas formulações tem ambição
As questões renovada:; não ganham sentido senão no seio de totalizante, elas correspondem bem às necessidades de uma história espe­
modelos de compreensão que tomam sua solução possível. Nos anos 60, cializada, de horizontes limitados; elas concernem, enfim, no essencial, aos
um problema devia integrar-se cm uma história "glob:?l", que pretendia dois domínios que se elevaram ao prime!ID lugar durante os anos 1980: a
dar conta da evolução das sociedades em seu conjunto; a resposta era história política e a história cultural.
obtida pela serialização de documentos e sua avaliação quantitativa. Duas vias se desenham então. Seja (c!COnstruir, em
bases diferentes,
Mapas, diagramas; quadros estatísticos. eram instrumentos indispensáveis uma nova amhição de totalidade, seja propor como- ponto de partida da
para se analisarem relações estáveis que compun�.im sistemas - estruturas análise histórica o que, à margem, resiste freqüentemente à investigação.
- e as transformações temporais que as afetavam, no próprio seio dessa Uma nova -,mbição "totalizante" veio à luz recentemente, a partir
estrutura - a conjuntura. Tal modelo "estrutura-conjuntura", caro a C. E. do político ou do cultural. No primeiro caso, a reflexão mais avançada
Labrousse, a Pierre Vilar e a um grande número de historiadores france­ füi con�uzida em torno da "história cática" da Revolução Francesa pro­
ses, repousava sobre uma representação do universo social vagamente posta por François Furet. Marcel Gauchet pretende desse modo fazer do
derivada do marxismo, o que P. Chaunu denominava o foguete de três político, desembaraçado do "jogo das forças sociais", uma c:nova chave
estágios, onde. o econômico precedia (ou dcter:ninava, segur.do as opções) para a &rquitetura da totalidade" que permitiria "uma recomposição do
o social, e o social o cultural. ãesígnio de uma história total" e autori=aria a construção de um novo
Esse horizont� de referência dos his�oriadcres france!;es terminou paradigma. "Longe de se reduzir a essa parte superficial e transparente
por desaparecer no decorrer dos anos 70. A crise econômica que dava um do funcionamento das sociedades sobre a qual acreditava-se saber tudo,
fim às Trinta Gloriosas e a suas "grandes esperanças", ao mesmo tempo o político constitui o nível mais englobante de sua organização (... ). É
abalou as grandes conceitualizações. Os gn,ndes paradigmas - de dupla do ponto de vista da forma política que a coerência hierárquica da ordem
referência a Marx e a Freud, mas seria necessário provavelmente acrescen­ social e material do Ancien Régime se revela melhor. Do mesmo modo,
tar alguns outros, como Malthus - dão lugar a um arsenal diversificado de é apenas do ponto de vista d0 poder e de sua história que as fraturas
instrumentos e de abordagens teóricas, tomadas de empréstimo no essencial maiores iniciadas por sua lógica, tanto no plano diretamente político como
a outras ciências sociais: as conceitualizações políticas de Tocqueville; a no plano dos fenômenos induzidos, como a separação da economia, se
descontinuidade dos "epistemai" e a microfísica do poder de M. Foucault; tomam plenamente legíveis"86• A outra versão do retomo à totalidade
a "reprodução" social, as "estratégias", os "campos" ou o "habitus" de P. residiria talvez na promoção recente, nos Estados Unidos, dos cultural
Bourdieu; o "espaço público" de J. Habermas; a "configuração" ou a studies, onde o mundo em sua totalidade inscrever-se-ia na esfera das
··interdependência" de N. Elias ... A lista, que se ampliaria se ultrapassás­ práticas e das produções culturais87 •
seml'S as fronteiras, embora revelando pontos C',"'muns - a extraordinária Essas duas tentativas repousam numa lógica semelhante: fundar um
fortuna, quase póstuma, de N. Elias- e divergências- a espanto�a ausê:1cia novo paradigma buscando a instância ao mesmo tempo mais central e
da sociologia compreensiva de Max Weber na França -, permite todavia mais englobante. Outras lógicas partem de uma constatação oposta: a
algumas conclusões gerais. Os historiadores não constroem mais do que construção do objeto histórico, que supõe um recorte específico do real,
anteriormente instrumentos teóricos que lhes seriam próprios, o que indica, é incapaz de dar conta de lados inteiros do "continente história", das
segundo R. Chartier, um "déficit de pensamento-s3; seu "bricolage" tende asperezas, das singularidades, dn3 "qued�s" que resistem à formalização
toda,·ia a se tornar um diálogo mais exigente e mais rigoroso, cm que se e às categorias nas quais as queremos inserir.
mesclam a recusa de uma interdisciplinaridade :ndulgentc84 e um esforço Para responder a esses silêncios, duas estratégias diferentes foram
ativo de .. tradução" conceituai. Os trabalhos de Bernard Lepetit sobre recentemente propostas. A primeira foi desenvolvida pela microstoria italiana
histl,ria urbana ou de Chdstophe Charle sobre hi�tôria �ocial são exemplos .1 par!ir de 1:doardo Grendi, Cario Ginzburg e Giovanni Levi. Trata-se
1 48 PASSADOS RECOMPOSTOS
-=07.::'; ....,,
·-'-';;ll",(·
,:�,
· _. · · Introdução 49

e!:sencialmente, por um deslocamento de foco da objetiva que aumenta o talhando suas palavras excessivamente sob nossas interpretações,.negli­
número e o tipo dos dados possíveis, de fazer emergir outras configurações genciando a particularidade dessas "vidas encalhadas.em_:�rquivos:;tque
onde aparecem, em toda a sua complexidade, concretamente, as relações dizem a violência, a humilhação ou e prazcr92.t,Ess�� ..rida5}�c�i!t���
sociais e as estrntégias individuais e coletivas: considerar· as condutas ·'<1t colhidas no arquivo judiciário e policial sã<;> o pão ;�q�i_d_i��. ��� -���tte
pessoais e os destinos familiares permite, melhor que agregados estatísticos, Farge. Uma perturbação da Clídem social obrigou ás' p����s �-s�. relata�em
compreenderem-se as racionalidades específicas que informam os co::npor­ diante da úUtoridade. Daí a surpresa !)Crpétua :do:. historiador :.à: leit�ra
tamentos de tal ou tal categoria sociaJ, muitas vezes nos interstícios de desses textos, e com o manejo dos obje1os. modest�� que_,a: ele� _foram
sistemas normativos cuja coerência inexiste88• A restrição do campo de reunidos - panos, grãos, cartas de baralho_ - como ·se :9� detaihes. mais
observação não é nem retorno à biografia, nem complacência com a íntimos de uma vida fizessem, para além da m'1rte, uma aparição em nosso
_
monografia local: trata-se, ao cm;trário, mudan.::o de escala, de fazer surgir mundo. Mas esse real nasce de uma prática de poder que ordena o texto
modelos de compreensão mais operatórios, que restituem as margens de segundo as exigências do interrogatório. Não há então :_uma "verdadeira"
. jogo deixadas !.Os atores pelas formas de dominação. Para dar conta disso, palavra popular a se exumar como um tesouro enterrado. , .. _;··: ·
Edoardo Grendi adiantou a noção de "excepc:onal normal", o que pode A partir dessas parcelas de discurso, desses fragmentos de vi�a, é
significar que uma sociedade se lê mais em suas margens que em seu centro; todavia possível reconstruir os modos de racionalidade que regulam-prá­
C. Ginzburg, retomando a comparação com o púlicial investigador, falou ticas e ações, os códigos que regem as relações sociais no bairro, na
,,
do ""'paradigma do indício : .o historiador começa seu trabalho seguindo um oficina ou no botequim, a� r�lações entre homens •eimulheres93• Pois o
indíci0, que não é mais do que um "resto" muitíssimo significativo89 • "populacho" não é esse menino crédul� irncion_a! ·e· violento·iq�e;_ os
Ginsburg analisa os mecanismos de troca entre cultura popular e administradores teimam em ver nele. Seguindo os �mâus discursos"i trans­
cultura erudita no final do século XVI, a partir do processo da Inquisição mitidos pelos inspetores de polícia, ele:,sabe i_ també�" Inanifes��r�iua
contra o moleiro friulano Menocchio, um indivíduo original e eviden­ "opinião"; não a nossa "opinião públi-=a�;ti ll}ensuráyel;_;e: rma�içapµias
temente excepcional que representava o cosmos sob a form� de um "opiniões sobre" (tal ato do rei, tal acontecimento,: tal_oêorrência)/mó_�eir
queijo comido por vermcs90• Le pouvoir au village [O poder na aldeia], e fluidas, saídas de esquemas lógicos com·os,quais_os dtferentes-atores
de G. Levi, começa por um relato minucioso da atividade de um padre reconstruíram sua interpretação dos fatos de que não conhecem senão um
exorcista de aldeia que revela, aumentando-as, as inquietações de uma pedaço. No século XVIII é ·que se enraíza em cada indivíduo a segurança
população rural submetida às incertezas do tempo; ao longo do texto, de que é legítimo julgar e saber. O que faz surgir o arquivo' policial-é. que
ele propõe uma releitura da sociedade rural do Ancien Régime, dcmo:is­ a opinião popular dos períodos antigos não se forja segundo um processo
trando a existência de estratégias ativas na população aldeã através da cumulativo e automático ligado à multiplicação; das, leituras. (libelos,
.i,1álise do sistema das alianças, das política s de transmissão do panfletos, cartazes), mas pela separação das idéias confrontadas com uma
patrimônio ou do mercado de terras. A socicd:iJc Jnt:ga, organizada cm pluralidade de acontecimentos94•
corfü) de amplas "frentes de parentesco" - a família nuclear européia, Diferentemente da microstoria, essa abordagem _repousa �obre a
cara aos demógrafos ingleses do Cambridge Group, é rejeitada entre as importância atribuída ao detalhe quase insignificante e· sobre seu, trata­
noç0es inúteis e enganosas, consegue criar, à sua maneira, formas de mento: aqui, não mais modelos formais para dar conta das racionalidades
segurança cm face das crises e das guerras'j,t . próprias a uma categoria social, mas um retorno voluntário à desordem,
A segunda via divide com a microistór:i.: o projeto de restrição do às descontinuidades, a tudo o que excede ou rompe a normalidade
campo de observação e a preferência pelas m::.rfcns como terreno de ação. majoritária. Daí a atenção dada ao trabalho de escrita que participa da
Ela parte da estranheza muitas vews ignora.::;.i. dos documentos que ai i­ inteligência do material: a história permanece fundamentalmente um relato

1
mentam o trabalho do historiador. São mortos. que falam: não podemos - François Hartog nos :Cmbra - e a /or,.ui desse relato é ·consubstancial
res..�uscitá-lo.; ma:; nos ar;iscamos a "matá-los uma segunda vez" amor- à compreensão do objeto. "Por ter visitado os limites de sua terra, por ter
;��-
}r?·.
50 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 51

sido,como Robi nson, 'comovido ' p elos t raç os da ausência m ar cados nas Há alguns anos, o livro de P. Novick suscitou um amplo debate sobre
margens de uma sociedade, escreve M. d e Certetiu, o historiador retorna a "questão da obj etividade" nos Estados Unidos9'J; a discussão existe tam­
modificado mas não silencioso. O relato põe -se a falar entre contempo­ bém - mais discretamente? - na Fr ança; C. Gil12burg evocou-a·, a seu modo
râneos. Parece-me que ele pode falar do sentido tornado p ossível p ela e em um contexto muito específico, na ltáliarn°. As obras históricas seriam
ausência quando n ão há mais outro lugar senão o discurso. Ele diz então apenas ob ras de ficção, já que a história nãc pode escapar ao relato, que

alguma coisa que se relaciona com toda comu'licação, mas ele o narra em é antes de tudo um gênero literário? Mas se o recurso inevitáve! ao "relato"
forma de len da - para bom entende�or m eia palavra basta - em um não implica no abandono de toda intenção de "verdade", de que tipo de
discurso que o rgàniza uma p resença ausente e que guarda d o sonho ou "verdade" se trata? Mais do que nunca, o histo riador· pretende construir
d o lap so a possibilidade de ser a marca d e uma a!teridade alteran te" .95 fatos " reais", mesmo se essa verdade for parcial, imperfeita, por vezes
As questões do tempo - Mesmo se o mundo dos historiadores tende i nsatisfató ria. Não há irabalho histór ico sem produção erudita d� dados,
a se confun dir hoj e em dia com o planeta, s e uma história "transnacional" apoiada em documentos que não podem assumir um sentido qualquer, ao
s e afirma como um instrum ento indisp ens ável à compreensão de noss o sabm• da subjetividade ou
parqialidade do historiador. Mas nem por isso este
te mpo, os questionamentos contemporâneos não p odem escapar à s preo­ abdicou de sua ver dadeira ambição, que é a de dar sentido aos processos
cupações nacionais. A Grã-Bretanha d os anos 80 se esforça em sublinhar hj stóricos. Seja o método escolhido explicativo ou interpretativo, o resul­
as continuidades de sua história, i ss0 quando há dez enas de �mos_ seu s tad o produ-zido não se avalia jamais pelo brio ou virtuosismo do autor. Os
historia dores haviam posto em e vidên cia seus aspectos pionei r os, com a historiadores do século passado pub licavam, cm anexo a suas obras, do­
precedência de suas revoluç ões, p olítica e d'!p0is i n dustrlal: assim, um cumentos autênticos que chamavam de "provas"; hoje o trabalho histórico
liv ro recen te, e muito discutido, apresenta a sociedade inglesa c omo uma p rova suas análises certamente pela segurança da documer,tação produzida,
s o ciedade de Ancien Régime até o a l v o recer d o século XIX"''· O mas sob retudo p elo rigor dos procedimentos utilizados (lógica do raciocí­
"" excepdonalismo" americano da "escola d o c on senso", fu_n dado s ob re a nio , i nstrumentos estatísticos pertinentes) 1º 1 • O imperativo de verdade, por
experiência da "Fronteira", a ausência de tradições feudais e hierárquicas, muito tempo denegrido como um avatar d o "positivismo", retomou assim
a fort e mobilidade social, deu lugar a uma forte negação dos caracteres em nossos dias ao primeiro lugar uas p reocupações dos historiadores.
constitutivos - "mitos fundad ores''? - d� uma nação americana : raça, Sua reformulação não levou e n tretanto o hi:;:tn riador a uma falsa
etnicidade, "gênero", classes - a diversidade é p rimeira e i n terdita a segura nça dos "fatos". Seu objeto p rivilegiado permanece sendo ainda a

escrita de toda história unificada do país97 • dinâmica das sociedades humanas, mas sua a bordagem mudou prc�unda­
A França também tem suas questões do tempo : a publicação, nos rnentc, à escuta de noss as interrogações mais atuais. A "uerrota" do
últimos dez anos, de um conjunto imp ressi onante de Histoires de France progresso calou a questão, antes preemi nen te, do surgimen to da "moder­
[Histórias da Franç a] muito diferentes cm suas abordagens, sub linha o nidade", seja eco nômica, política ou cultural, e afastou e ssas dinâmicas
retorno de preocupaç ões nacionais; a histó ria do an tigo império colo nial longas que faziam se suceder majestosamer.te as grandes fases da história
faz uma reaparição marcante, muito comumemc s ob a forma de nostalgia da humanidade. A erosão ou o esmigalhame n to das crenç as de todas as
imperial, por vezes em um esforço o rigina l de a n á lise das relaç ões com­ e spécie s abalou as grandes modelizações totalizantes, pon do cm relevo,
plexas entre co lonizadores e colonizados ; os novos p roblemas apresen ­ para além das lógicas do interesse , as tensões entre i ndivíduos e grupos,
ta dos pela in teg r ação social de populações de culturas a fastadas das as distâncias entre práticas e norm as, as falhas que ameaçam a coesão
... tradições" francesas suscitam trabalhos fundamentais sobre o "cadinho frágil das sociedades. O fim brutal e �nesp�rado das "democracias popu­
nacion a1"98• Não se trata aqui de inven tariar e-ssc mosaico d e i nterroga­ lares" convida mesmo a ceder um grande espaço ao imprevis ível. E nvol­
ções específicas, mn s de disti nguir, para além dessa diversidade fu nda ­ vidos cm uma crise gencra!izada das múl:iplas modalidades do "crer",
mentalmente política, algumas gran des questves - necessariamente mais testemunhas das resistê ncias às manipulações mediáticas, os historiadores
abstr atas - mais largame11t e repartidas. instn!aran� no cc.1tro de suas preocupações a questão da "crença'». Em
52 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 53
li,iguagem cor.mm, a palavra tem apenas uma acepção restrita, ligada à imagem de tensões tornadas inacreditáveis no consenso consumidor de uma
esfera religiosa, enquanto que, em verdade, ela remele às dimensões sociedade do espetáculo. Não se trata, em nenhum dos casos, de depreciar
subjetivas da vida social. Essas representações de toc!as as ordens, no essa busca de enraizamento, de subestimar os esforços consideráveis de
ponto de partida áa constituição das identidades» do local ao nacional, do salvaguarda que foram empreendidos. O Mémorial de Caen ou o Historial
individual ao coletivo, desembocam nas formas complexas de adesão e de Péronne são, a esse respait0, sucessos exemplar:s.
de recusa no coração de coesões sociais tornadas bem improváveis. Mas essa onipresença do passado - sintoma inquietante de um
déficit - não ameaça torná-lo sufocante? Apenas duas questões serão
Necessidade da História
propostas. A disciplina histórica não tem por objetivá celebrar tal ou tal
Vivemos um período em que vemos desaparecer sob nossos olhos memória particular ou ressuscitar o que se passou, mas tomar compre­
'tradições plurisseculares: aldei:-;, desertadas, �omplexos mineiros, side­ ensíveis, em toda a sua complexidade, as relações que unem ou dividem
rúrgicos ou têxteis desativados nos lembram cotidianamente o fim de os homens e as mulheres, os diversos grupos sociais, os governantes e
antigos modos·de vida. Mas não se trata apenas de uma págint1 de história os governados... sem apagar nenhuma de suas asperezas. Ao mesruo
que se vira; assistimos a uma cri�e generalizaJa da transmissão cultural: tempo, a história guarda em nossas sociedades democráticas uma função
que c;e tornarnm as crenças e convicções no interior das _igrejas que se cívica insubstituível. Nada pode evitar, a cada geração, o ato que lhe faz
esvaziaram, nos p2rtidos polítkos ou sindicatos? As grandes formas a um tempo receber um passado herdade" e :alter6-lo Cúl função d:is exi­
coletivas que asseguravam no país a transMissão dos va�ores às jovens gências do presente. "A tradição - escreve Michcl de Certeau -, só pode
gerações parecem ter-se apagado. O tempo das procissões cristãs triuP-fais estar morta se permanece intacta, se um� im·enção não a !=ompromete
agora ficou distante, e os· desfiles do Primeiro de Maio são cada vez mais dando-lhe vida, se ela não é transformada por um ato que a rccria"102•
magros. Um certo fio de uma tradição viva foi sem dúvida alguma cortado, Nesse sentido, é o trabalho histórico sobre o passado que, ao instaurar
e os aprendizados passam agora por outra.:; vias. uma distinção fundamental entre história e �emória, torna possível a
No momento em que essa perda é sentida como uma amputação, um apropriação crítica das tradições. Pois são certamente as cmnemorações
desapossamento de si, a "memória" conhec� uma valorização espantosa, aparentemente mais sacrílegas - como o desfile dos tanques alemães nos
com uma busca, por vezes patética, do testemunho marcado pelo duplo �elo Champs-Élysées no dia 14 de julho Je 1994 ou a presença do presidente
da autenticidade e do vivido, ou, inábil, das "'ante-memórias" que repou­ da Alemanha reunificada n·a comemoração da insurreição de Varsóvia no
sariam, intactas, nos depósitos de arquivos. Ao mesmo tempo, os museus 1u de agosto de 1944 - que carregam o futuro.
proliferam, encarregados de suportar a partir de agora o peso de memó:ias
particulares, assim como os espetáculos populares" - dos Misérables
04

[ívliseráveis] de Robert Hossein ao Germinal de Claude Berri, mas também


da representação do combate vendcano no Puy-du-Fou organizado por P. Notas
de Villicrs, ao /Is 0111 tué Jaures [Eles mataran1 Jaurcs] realizado por P.
1 O diretor da Faculdade de Ciências de Paris, M3rc Zamansky, escreveu O\) le Monde
Quiles cm Carmaux. De um lado o modelo patrimonial que, em um espaço
de 10 de abril de 1964: "Diminuiremos facilmente o total de horas do curso
neutro, transforma em objeto os instrumentos cotidianos, o habitat, os
tornando secundárias as disciplinas que de fato o são. Por exemplo: a história...
costumes de um passado já morto, subtraído .ao tempo das "tradições Pode-se ter uma obra de hist�ria aos vinte �nos pela primeira vez.
populares" muitas vezes reinventadas. De out:-·.:,. a exaltação romântica de
combates originais, tanto mais distantes quanto mais as condições de vida 2 Henri-lrénéc Marrou, De la co1111aissa11ce /risti.'lrique, Paris, Seuil, 1954, p. 103. Em
da sociedade contemporânea mudarnm radical:11cntc. De um lado, um in­ seu artigo "Commcnt comprendrc te métier d'historien" para l 'Histoire et ses mé-
1/rodes, Paris, G •. ttimard, 1961, de C. Samaran. Marrou escreveu: "só pode vulgarizar
ventário ctno-histórico que .privilegia os traços de identidade de uma co­
a ciência o erudito verdadeiro, aquele que se situa, por seus trabalhos pessoais, na
munidade (úldeiu, profis::.ão etc.) cm relação aos conflitos. De outro, a ponta da pesquisa, lá vnde a ciência está se produzindo" (pp. 1538-1539).
54 pASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 55
3 A coleção, visando o "grande público instruído", se rc_cusa a ser uma história
pour Pilistoire séricllc, le quantitatif au troisieme niveau", in Mélauges Femand
"univcrs.il" do mundo: ela pretende multiplicar os observn�órios e recusa o euro­ Braudel, t. II, Toulouse: Privat, 1972, p. 105-126.
ccntrismo. Cf. a introdução geral redigida por F. Braudel em A. Varagnac (dir.).
L'Homme avant l'écriture, Paris, 1959, pp. VII-XII. 12 F. Furet, "Le quantitatif en histoire", op. ciL, p. 55.

4 Gccrges Duby se explica em L'Histoire co11ti11u::, publicado pela coitara UFRJ e 13 M. Serres, "Les sciences", in Faire de l'�oire, up. cit., t. II, p. 228.
Z:1har em 1991, Paris, Odile·Jacob, 1991, pp. 133-134. 148, 152. Ver aqui mesmo
o artigo de Claude Langlois. 14 lbid. t. Ili, p. 265.

s Dos 35 colaboradores, 15 são antigos alunos da École des Charles. A obra abre espaço 15 A colaboração de Alain Besançon sobre o imronsciente, consagrada à comparação
todavia para o testemunho sonoro, o cinema, e se abre (com prudência) a "algumas de um mesmo episódio cm dois romances russos dos anos 1860, um de Tchemychevski
novas orientações": a lingüística (Marcel C(?hen), as economias e as sociedades antes e outro de Dostoiévski, p..�ece hoje pouco convincente. lbid, t. III, pp. 31-35.
da era estatística (Philippe Wolff), os dados demográficos e estatísticos (Jean
Mauvrct), a história das mentalidades (Georges Duby). 16 P. Vil, r, "Histoire marxiste, histoire en coa:struction", ibid, t. 1, p. 179.

6
A Oupronl, "Préscnt, passé, histoirc", in Histoire ,:t l'/ris1orie11. Rechercl,es et débats 17 Jbid., t. II, p. 67.
,tu Centre des intL ll�c'uels rat/,ol!qit'!S, Paris. Fay,rd, 1964, p. 18. Cf. ainda
"L'histoirc, �cicnce humaine du temps Frésent" • in Revue de sy11t/,Jse, números IM lbid., t. I, p. 32.
37-39, 1965, e o número especial da Revue e/.: /'e•1seig11eme11t supérieur, 1969,
números 44-45, preparada p�r Robert Mandrou, 1.:om o uíptico ·'L'histoi:-e aprcs 19 Jbid., t. 1., p. 27.
Marx" de Pierre Vilar (pp; 15-26) e "L'histoirc aprês Freud" de A. Dupront (pp.
27-63). :w Para um panorama exaustivo da história medieval francesa, cf. Michel Balard
(diretor}, L'Histoire médiévale en France. B3a11 et perspectives, Par;s, Le Seuil,
7 Aujourd'/rui l'l,istoire, Paris, Éditions sociales, 1974, reúne os artigos publicados
1991.
entre 1967 e 1973 pela Nova Crítica durante uma enquete que, graças às colabo­
racôcs dos mais dinâmicos historiadores desse período (Georgcs Duby, Robert 21 1. Wallerstein, le Systéme du mo11de du .,\i,,,t s:i.écle à 110s jours, Pari�, Flammarion,
M;ndrou, Jean Bouvier. Pierre Vilar etc.), visaviJ uma reflexão teórica sobre a 2 vol., 1980, cm curso.
evolução da historiografia.
22 P. Kriedtkc, H. Mcdick e J. Shlumbohm, lndu:strializatio11 be/ore lt,dustrializatio11.
x A metade dos autores da No�velle Histoire pertence à Écolc des Hautcs Étudcs en Rural bld'-lstry i11 tire Genesis o/Capitalism, P.aris-Cambridge, 1981 (edição alemã,
Scknccs Sociales. Para o Dictio1111aire des scie11ces /,isroriques, essa proporçãu cai Gõttingen, 1977).
par- pouco mais de um quarto. Nos dois casos, a qu3ntidadc de parisienses per­
manece amplamente majoritária, mesmo que, com 95 autores, o Dictiom,aire des 23 Les Lieux de mémoire, P. Nora (diretor), t. . I La République, t. II La Natio11, t. Ili
.w:i i::nces historiques se abra mais largamente aos provincianos (21% dos autores) La Fra11ce, Paris, Gallimard, 1984-1992, 7 "olumcf .
e a ..,s historiadores estrangeiros (10,5%).
24 Para um balanço recente da história dos bano:$ franceses, Hubert Bonin, "L'Histoire
'' Jaccues Lc Goff e P. Nora {editores), Faire de l'/,istoire, t. 1 Nouvcaux problemcs, bancaire françaisc entre l'univcrsité et Jes anrciversaires", L'foformatio11 historique,
t. ti Nouvclles a11proches, t. Ili Nouveaux objets, Paris. Gallimard, 1974, 3 volumes. LV, 1993, pp. 73-77; para a pesquisa italiana.,. Giulio SapelH, "li professor Roverato
e i1 professor Bairati: ovvcro dell'utilità e õca danno della "storia d'impresa' in
lCI F. Furct, "Le quantitatif en histoirc", in Faire de I /zistoire, op. cil., t. 1, p. 59-60.
ltalia", Società e Storia, X, 1987, pp. 949-?75.
11 P. Chaunu, "L'économic. Dépassement ct pcrspcctivc ... Faire ele l'/,isloire, op. cit.,
!S �ode-se remeter aqui ao bciíssimo volume '!m homenagem a F. Bédarida, Écrire
t. 11. pp. 66-67. Em 1962, comentando a tese de Michcl Vovclle sobre l'iété baroque /'/,istoire du temps prése111, Paris, CNRS É.:!itions, 1993.
et .téclrrislia11isalio11, defendida cm 1971, P. Chaunu já fizera um vivo elogio do
'º 1.i ·.1:mtitativo no terceiro nível", então em plena cxp:rnsão: "Un r.�uvcaux champ 26 F. B1.sudel, Écrits �11r /'/,istoire, Paris, Aa:.mmarion, 1969, pp. 12 e 46.

i
56 PASSADOS RECOMPOSfOS Introdução 57
27 f. Furet, "La passion révolutionnaire au xxc siéclc", in le Pensée Politique , 1994, :11 J. C. Passeron, le Raisomreme11t sociologique. l'espace 11011:..popp éri:m du
Écrire l'/zistoire áu xxc siécle, p. 39. raisomiement naturel. Paris, .Nathan, 1991, pp. 24-27.

2:t Todas publicadas, a partir de 1975, pelas Éditions Scuil. ,cc, J. W. Scott, "History in crisis? The others' side -:,f the story.", inAmerica,i Historical
Review, XCIV, 1989, p. 692.
2� P. l..éon (diretor), L'Histoire économique et sociale du mond!!, Paris, A. Colin, 6
volumes, 1978-1982; H.-J. Martin e R. Chartier (diretores), L'Histoire de l'édition 41 Pie1·re Vilar, art. cit., p. 169.
frallçaise, Paris, Promodis, 4 volumes, 1 �83-1986.
42 M. Bloch, Apologie pour l'/ristoire ou le métia d'J,istorie11. Paris, A Colin, !949;
30 R. Rémond (diretor), Pour Ulle /ristoire polilique, Paris, Le Seuil, 1988 [Por uma edição crítica acaba de ser publicada por Êtienne Bloch, Paris, A Colin, 1993.
_
uma /ristória política, publicado pela Editora UFRJ e Editora FGV em 1996];
para a história das relações internacion.a!s, um bllanço problemático recente: 43 Por exemplo, Paul Veyne, Comme11t º" écrit l'/ristoire. Paris, Seuil, 1971.
R. Girault, "De Renouvin à Renouvin", in P. Renouvin (diretor), Histoire des
rel.:ltions illtemalion.• les, nova edição, Paris, Hachette, 1994, t. 1, P!l· 1- 44 C. Langlois e R. Chutier, Les Historiens et l'orga11izàtio11 de la r�clrerclie, Mi­
XXXV III. nistério da Educação Nacional, setembro de 1991, p. 18; Mirella Scardozzi, "Gli
insegnamenti di storia ncll università italianc (1951-1983): tra ·immobilismo e
31 Para um ponto de vista estrangeir�, Charles T. Wood, "The return of medieval frammentazior.e", in: Qt:aderni storici, XX, 19S5, pp. 621; D. Cannadine, art. cit.
politics", in American Historical Review, XCIV, 1989, pp. 391-404. p. 171. A situação é muito menos preocupante do que aquek descrita há dez anos
por Daniel Rache, "Les Historiens aujourd'hui. Remarques pour un débat",
1:: Tra!a-se apeaias de um exemplo entre outros: cf. L'Etat modeme: genese. Biians Vinglieme Siecle, n. 12, 1986, PP· 3-20.
et perspcctive. J.-P. Gcnnet (ed.), Pa:is, ed. do CNRS, 1990.
4S Uma discussfio internaciona! sobre a questão figura no n!? 78 do Débat, janeiro­
33 J. Revel, "Uhistoire au ras du sol", in G. Levi, le pouvoir au vil/age. Histoire de'wi fevereiro de 1994.
exorcisle dans le Piémonl di XVII/e siécle, Paris, Gallimard, 1989, pp. 1-XXXIII
(edição italiana, Turim, 1985). 46 Jacques Lc Goff, "Une maladie �cientifique: la colloquite", in Sciences de l'/,omme
et de la société. leure des départemems scieniifiques du CNRS, n. 32, c:fezembro
3"' Para a França, o diagnóstico mais articulado é a obra de Roger Chartier, L'Histoire de 1993, pp. 35.
aujourd'J,ui: .loutes, défis, propositio11s. Eutopias, Universidade de Valcnce, vol.
42. 1994, 24 p.; os diagnósticos britânico e americano são de outra ordem: Davida 47 O panfleto foi reproduzido no Événement du jeudi, 30 de junho-6 de julho de 1994,
Canr.adine, "British history: past, present- and futurc?", Past and Present, nll 116, pp. 51.
198S, pp. 169-191; John Higham, "The futurc of Amcrican history", in Joumal of
48 M. Chaudron, "Éditer les
America History, LXXX, 1994, pp. 1289-1307. sciences de l'hommc. Des livre, des auteurs et dcs
lecteurs", in Commu11icatio11s, · 58, 1994, pp. l 36.
;: L. Stone, "The reviva! of narrative. Reflections on a ncw old hist0ry", in Past a11d
Pr.:s.:m, n. 85, 1979, pp. 3-24, tradução fran..:�so: !t: Débat, n. 4, 1980, pp. 116- "''' Georges Duby, l'Histoire cominue. op. cit., ;-ip. 94.
14�.
50 M. Bloch, Écrire La Société féodalc. lettres a He11ri Berr, 1924-1943, Paris, 1992.
;6 ""Histoire et sciences socialcs·: un tournant critique"!'". A1111ales ESC, XLIII, 1988,
pp. 292. 51 E. Labrousse, "Comment contrôler les men:urialcs? Le test de concordancc",
�,males d'/ristoire sociale, li, 1940, pp. 117-L:;0; J. Dupâquier, La popula1io11
_:· L�m diagnóstico diferente foi formulado por R. Chartier, "Le monde comme rurale du Bassi11 parisic11 à l'époque de Louis XIV, Lille, 1979, pp. 92-145 (estudo
�l!;-réscntation", Amiales ESC, XLIV, 198(j, pp. 150.5-1509. crítico dos dados).

;... G. Eley, "De l'histoire sociale au 'tournant linguistique' en l'historiographie anglo­ 52 A. Graffon, Faussaires e/ critiques. Créatfrité et duplicité c/rez /es érudits
américainc dcs annécs 80.., Genéses, 1, 1992. pp. 163-193. occide11ta11x, Paris, Lcs Belles �ettrcs, 1993 (�dição americana, Princeton, 1990).
. ...., f
:
58 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 59

53 Cf. A tradução recente de um grande texto do século XV: L. Villa la Do11atiC'11 <.s Por exem!]lo, original e inovador o empreendimento em curso, do Atlas de la
de .:::011stalltill, edição e tradução por J.-8: Giard, Paris, Les Belles Lettres, 1993, Révolmio•r Fra11çaise, sob a direção de Claude Langlois e S. Bonin, com 7 volumes
XXI, 149 p. publicados desde 1987.

66 B. Croce, l'H istoire comme penseé et comme actio11, Genebra, Droz, 1968,
s.c les "Protocoles dcs sages de Sioll". !lltroduction à J-étude des "protocoles": uns
faux et ses usages da11s le siécle, editado por P.-A. ·raguieff, Berg lr.tcrnational, p. 38.
1 <;9:.>, 2 vol.1. 296 p ..
67 E. H. Carr, Qu'est-ce que l'Mstoire?, Paris, La Découverte, 1988, p. 78, (edição
ss Cf. por exemplo P. Vidal-Naquet, Les assassins de la mémoire, Paris, La inglesa, Londres, 1961).
Dérouverte, 1987; notemo� que não é indiferente que o autor seja um especialista
68 É o título - "Examen de conscience d'un français" - da terceira parte de l'Étrai,ge
em Grécia antiga, disciplina ainda enraizada em uma longa �radição cãítica.
Défaite, de Marc Bloch, publipado pela prime;:a vez cm 1946; ele é retomado desde
St> M. Bloch, Apologie pour l'/risloire, op. cit. (edição de 1993), pp. 139-155. a introdução de Apologie pour l'histoire.

51 J.-C. Pressac, les Crématoires de Ausclrwitz, la ,nachürerie du meúrtre de masse, 69 Marc Bl�ch, l'Étra11ge Défaite, Folio Histoire, Paris, Gallimard, 1990, p. 150, e
Paris, CNRS, 1993. Os arquivos utilizados, os da "Bauleitung SS" de Auschwitz, Apologie pour l'/ristoire, op. cit., (edição de 1993), pp. 60, 70-71, 280-282.
est.�o localizados em Masco:.: e no museu de Estado d'Oswiecim.
711 Marc Bloch, l'É:ra11ge Défaite, op. cit., pp. 155.
.9C G. Noiriel, "Les enjeux prãtiques de la construction de l'objet. L'exemple de
71· Citado por Marc Bloch, Apologie pour l'l,istoire, op. cit., pp. 77.
l'immigration", in C. Charle (diretor), Histoire sorial, lri�toire g!oba!e?, Paris,
MSH, 1993, pp. 105-115.
72 M. de Certeau, la prise de parole et autres. êcrits politiques, 2ª edição estabelecida
59 Jaoques Ranciêre, Les mots de l'/ristoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Le e apresentada por L Giard, Paris, Le Scuil, 1994, pp. 65.
Set:il, 1992, P?· 149-150.
73
J. Roug�rie, "Fat;l-il départementaliser l'histoire d� France?", A1111ales ESC, XXI,
t.:O Moye1111e, miiieu, celllre. Histoire et usages. Editado por J. Feldman, G Lagneau, 1965, pp. 17S-193.
B. .Matalon, Paris EHESS, 1991.
74M. Agulhon, "Vu des couliss�s", Essais d'eg«>Msioire, Paris, G...iiimard, i987, pp.
61 E. P. Thompson, "Antropology and the discipline of historical context", Midla11d 42-43.
His:ory, 1, 1972, pp. 41-55.
15 J. M. Moriceau, les Fermie�es del'Íle-de-France L'asce11sio11 d'u11 j.,atronal
� C. Klapisch e D. Herlihi, les Toscans et i'eurs familles. Une étude du cataste agricole, XVC-XVIW siecles. Paris, Fayard, 1994.
flor-e11ti11 de 1427, Paris, 197&; A. Zysberg, Les Galéria11s. Vie e destÍlls de 60.000
76 A. Gérard, la Révolutio11 Fra11çaise, mythes er i111erprétatio11s, 1789-1970, Paris,
forçais sur les galeres de Fra11ce, 1680-1748, Paris. Le Seuil, 1987; J.-P. Bardet,
Ro... en aux XVI/e et XVII/e siécle. les mutatio11s d'un espace social, Paris, 1983, Flammarion, 1970.
2 "-.:>lumes.
77
G.G. lggers, "L'histoire sociale et l'historiogr.aphie est-allcmandc depuis 1980", in
63 Urr. uso meditado dessas diversas possibilidades foi r��ilizado de modo convincente Vi11gtieme Siecle, nu 34, abril-junho de 1992. pp. 5-24.
por B. Lcpetit, les \lil/es dans la Fra11ce Moderne . Paris, Albin Michel, 1988 (cf.
711 la Science Mstorique polo11aise dons l'/ris:oriograpl,ie mondiale. Editado por
pp. 445-449). Um exemplo interessante de utilização de um modelo de simulação
a tnulo de avaliação, sem ambição "contrafactual": J. Dupâquier e M. Demonel, Marian Leczyk, Wroclaw, 1990.
"'C� qui fait les families nombreuses",A1111a/es ESC. XXVII, 1972, pp. 1025-1045.
7'J R. Fletcher, "History from below comes to Germany: the new history movement
°'"' J. Heffcr, le Port de New York et le commerce extàieur américain (1860-1900), :n lhe Federal Republic of Germany", in Joun,al of Modem History, LX, 1988,
Paris, t 986. pp. 560.
60 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 61

'"' J. Souchar.y, "Lc na7ismc: déviancc allcmande ou mal de la modernité? Réflcxions Q:? A. Fargc, Le go1ít de /'arcl,ive, Paris, Lc Seuil, 1989, pp. 145. Essa posição
des historicns dans ! 'Allemagne dcs années zéro (1945-1949)", in Vi11gtie111e Siecle, desemboca no apagamento voluntário do historiador para dar a palavra ao
n. 34, abril-junho de 1992, pp. 145-156. documento: ead., Le cours ordin.1ire des e/iases da11 la dté d11 XVII!' siecle,
Paris, Lc Scuil, 1994.
"1 C. Lipp, "Writing hislory as political cullure. Social History versus A/1tagsges­
clzicl,te. A German debate", in Storia dei/a Storiografia, XVII, 1990, pp. 66-100; q3 A. Farge, La vie fragile. Viole11ce, pcuv:,irs et solidarietés à Paris au XVIII' siécle.
1'. Schõttler, "L'érudition -ct aprcs? L.::s hisloriens allcmands avant et aprcs 1945", Paris, Hachetle, 1986.
Ceni:ses, 5, 1991, pp. 172-185.
1 .., A. Farge, Dire et mal dire. L'opi11io11 publique e11 XVIII' siecle, Paris, Le Seuil,
"'- R. J. Evans, "Th� new nationalism and lhe old history: pcrspective on thc West 1992.
Gcmrnn Historikerstreit", in Joumal o[ Modem History, LIX, 1987, pp. 761-
797; os principais textos do debate f�ram publicados cm francês nas Éditions q5 M. de Certcau, L'Abse11t de /'/,istuire, op. cit., pp. 179-180; cf. ainda L'Écrit11re
du Cerf em 1989. de /'histoirc, Paris, Gallimard, 1975, pp. 1O1-120, e o n" 58, de 1994, de
Co1111111111icatio11s, c!edicado à L 'Écriture des scie11ces de /'/,0111111e.
x.J R. Chartier, "L'histoire culturclle aujourd'hui", in Ge11eses, 15, 1994, p. 123.
"'' J. C. D. Clark, E11g/is/, Society, 1688-1832, Cambridge, 198:i.
"' 13. Lepetit, "Proposilions pour une pratique restreinte de l'intcrdisciplinarilé",
Re,·ue de sy11these, 1990. r,p. 331-33&. 07
Um balanço informado: E. Fano (editor), Una e i11d:visfbik Te11rfe1ue ,1//uali dei/a
storiografia s1a11111ite11se, Florença, Ponte alie Grazie, 1991. Cf. Joyce Appleby,
"-' Em p�rticular. B. Lepctit, Les 'lilles da11s la France Modem'.!. Op. cit.; C. Charlc, "Recovering Amcrica's historie diversity: beyond e>·cepti0!:alis!'1", in Joumal of
Les É/ires de la République (1880-1900), Paris, Fayard, 1987. A111erica11 History, LXXIX, 1992, pp. 419-431.

""M. Gauchet, "Changcmant de paradigmc en scicnces socialcs?", Le Débat, n. 50, •s Cf. cm particular os trabalhos·de G. Noiriel, Le creusete fra11çaise, Paris, Le Seuil,
número especial, Matériáux pour servir à /'l,istoir,: i11tellectuelle de la Fra11ce, 198S, e la Tyra1111ie du 11atio11al: /e droit d'asile e11 E11rope (1793-1993), Paris,
1953-1987, 1988, pp. 168-169. Calmann-Lévy, 1991.

'
7
üm:i apresentação crítica dessas tendências cm Lynn Hunt, "History, cullure and "' Peler A. Novick, "That NoblP Dream .._ T'1e "Objcctivity Q11estio11" a11d the
tcxtn , in T/,e New Cultural History, Univcrsity of Californi�, Press, 1989, 1;p. l-22. American Historical Professio.11, Nova Iorque, Cambridge üniversity Press, 1988.

"'' G. Levi, "On microhistory", in P. Burke (editor), New Perspectives i11 Historical 11 w, C. Ginzburg, Lo storico e il giudice. Co11siderazio11i i11 margine ai processo Sofri,
Wri1i11g, Oxford, Polity Prcss, 1991, pp. 93-113. Sobre essa "mudança de Turim, 1991.
paradigma" que não é apenas italiana, cf. também C. Charle, "Micro-histoire sociale
e macro-histoirc socialc. Quclqucs rcflcctions sur lcs effecls des changemenls de 1 111 Um número recente da revista Quademi storici (n. 85, 1994) é dedicado :i prova
méthodcs depuis quinze ans en histoire soci:ile". in Histoire social, histoire em história.
glv!>ale?, Sob a direção de C. Charle, op. cit.. pp. �5-57.
1112 Michel de Certcau, La Faiblesse de croire, texto estabelecido e aprescntac 1o por
"'' E. Grendi, "Microanalisi e sloria sociale", Quademi storici, n. 33, 1972, pp. 506- L. Giard, Paris, Le Seuil, 19S7, pp. 69.
520; C. Ginzburg, "Traces. Racincs de un paradigmc indiciaire", in id., Mythes,
emhle111es, traces. Morp!,o/ogie et histoire, Paris, Fl::immarion, 19S9, pp. 139-1S0 .

.., C. Ginzburg, Le Fro111age et les vers. L'1111ivers d'un 111eu11ier du XVI" siecle, Paris,
r-i�mmarion, 19S0 (edição italiana. Turim, 1979).

''
1
G. Levi, op. cit.; leremos alentamente a aprescnt:1ç:'io de J. Revel, introduç�o
pr..-ciosa à experiência da microstoria.
- zca se �-
UM

Certezas e Descaminhos
da Razão Histórica
P111uPPE Bourn;'

"Nüo lembrar o rosto do homem


que matamos não é melhor do que
fazer um filho estando bêbado."

Louis Aragon,
La Mise à Mor/

Os anos 1990 nascem, por um manifesto de história "experime11-


1al", com um questionamento radical do, métodos críticas da história.
Pretendemos, examinando as certezas e os descaminhos da razão histó­
, ica, discemir as evoluçoes recentes das interrogações dos historiadores
sobre sua própria disciplina, tratando da hipe,.trofia do sujeito do conhe­
cimento, dos prestígios e das_ desilusões do quantitativo, do declínio da
razão geográfica em história, dos indícios, e11fi111, de uma superação do
momento anti-humanista das :iventuras é::i razão histórica.

O último decênio do sécu:o ;a( é inaugurado, no domínio - relati­


vamente pouco freqüente na França - da reflexão dos historiadores em torno
às racionalidades de sua própria disciplina, por uma obra ambiciosa, Alter
histoire [Alter história] (1991), que reúne uma dezena de ensaios de história
experimental 1• À frente da coletânea vem um texto assinado por Daniel Milo:
··Pour une histoirc cxpérimcntalc, ou 1c g:1i s::ivoir" [Por uma história expe­
rimental ou a gaia ciência]. O manifesto da "história lúdica", posto sob o
triplo apadrinhamento de Nietzsche, Groucho Marx e Aristóteles, reivindica,
:iltcmadamcntc, a violação do objeto (histórico) e a onipotência do historia­
dor; o anacronismo metódico (pela superaçiic, da contingência e neutralização
da· intencionalidade dos atores históricos): o distanciamento cm relação ao
objeto (o Verfre111d1111g brcchtiano adapt:-;-::,� :1 história sob as formas do
estranhamento, da "dcs-familiJrização" e da ":.'.es-contcxtualização"); uma
moratória na produção de n"vos documentos: o empobrecimento voluntário
66 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 67

das fontes e a repetição crítica das pesquisas anteriores; a prática sistemática história ("v homem moderno carrega consigo uma enorme carga de pedras,
de uma experimentação arbitrária das hipóteses interpretativas e de um as pedras do indigesto saber", cap. IV); que esse ex�esso de história pode

:1
comparatismo radical, para além dGs séculos e co�tinentes; a ampliação do ser nocivo ao presente e à vida ("o passado deve ser esquecido sob pena
campo dos possíveis históricos; a utilização da quantificação para fins ex­ de se tornar o coveiro do presente, (pois) toda ação exige o esquecimento,
perimentais; o desrespeito ao passado, em todos os casos. como todo organismo necessita, não apenas de luz, mas também de
O que um tal projeto contém de. provocação jubilosa não deve en­ obscuridão", cap. I; "damos mais importância à história que à vida'", cap.
tretanto dissimular uma ambição inte.lectual: constituir os fundamentos de IV; "o excesso dos estudos de história é prejudidal :!OS vivos" cap. II); que
uma outra hist6ria e exaltar a missão de uma nova "raça" de historiadores a proliferação da história se alimenta do surgimento 4a massa ("o desejo
experimentais. Por isso, seria desejável, para início de c.Jnversa, considerar geral de popularizar a ciência, igual ao de feminilizá-la e infantilizá-la",
esse manifesto não tanto como um conjunto de proposições argumentadas, cap. VII; "a idéia muitas v,;-zes penosa de ser epígonos", cap. VIII; "seria
mas (fiel nisso à lição de Nietzsche) como um sintoma que exprime em seu verdade que nós, alemães, para não falar nos povos latinos, ( ...) jamais
tempo as incertezas e os impulsos de um grupo importante de historiadores poderem<',<; ser senão descendentes?", cap. VIII); os limites da piedade ("o
em relação aos métodos, às tradições e aos valores de sua disciplina. prazer que a árvore recebe de suas raízes, a felicidade que se experimenta
por não �e sentir nascido do arbitrário e do �caso, mas saído de um passado
Da hipertrofü1 do sujeito éc c0nhecimento - herdeiro, floração, fruto -, o que desculparia e até justificaria a exis­
A posição elevada conferida ao hi�toriador na produção de saber tência, é isso o que hoje se chama, com uma certa predileção, o sentido
constitui o primeiro e· sem dúvida o princip.:! siT1toma tia cris� intelectual 'histórico", cap. III); e a denegação da objetividade ("os historiadores in­
que o manifesto da história experimental traz à tona. "Violentar o objeto gênuos chamam de objetividade o hábito de medir as opiniõe:; e as ação
é o slogan deste manifesto", conclui Daniel Milo, que atribui ao histo­ passadas com as opiniões correntes no momento em que eles escrevem",
riador poderes ilimitados sobre o objeto de secs estudos. O historiador cap. VI). Em filigrana ao raciocínio nfotzschea�o, há finalmente o velho
experimental constitui o "único sujeito pleno": "O espaço antes acurado bordão do super·homem: "Apenas pela maior força do presente o passado
pelo sujeito histórico parece assim ocupado pelo sujeito historiador." "Ex­ deve ser interpre:ado (.�.). O igual pel0 igual! De outro modo abaixaríeis
perimentar é violentar o objeto": O historiade,r deve ser "conscientemente, o passado a vosso nível. Não acrediteis em uma historiografia que não saia
violentamente ativo", para além das "reticências", das "resistências" e das d.-.. mente dos cérebros mais raros ( ...). Não é o caso de se desprezar os
.. meias-medidas". O passado é sua "vítima passiva"; e as duvidosas metá­ trabalhadores que empurram o carrinho-de-mão, que aterram e peneiram,
foras da violação como a referência ao narcisismo freudiano são explícitas: sob o pretexto de que eles não poderão certamente se tornar grandes
"Qual é o objeto final da história experimental? Qual é o lugar do eu - historiadores ( ...) mas olhá-los como operários e serventes necessários ao
tomado no sentido amplo do termo - historiador nesse projeto? Conhecer serviço do senhor( ...). É o homem superior que escreve a história".
melhor ou diversamente o passado, ou se conhecer melhor? Pois se falamos Para dizer a verdade, a deriva nietzscheana elo historiador onipotente
em matéria prima a propósito do passado estudado, se pedimos o desres­ dos anos 90 se alimenta igualmente de outras fontes, e principalmente cm
peito a ele, torna-se improvável atribuir-lhe uma prioridade no processo de dois momentos da reflexão sobre a história tal como ela, muito esporadi­
imeligibilidade conduzido pelo historiador c�-perimental." camente, se desenvolveu na França no último meio século. Houve, antes
,,
O que essas linhas devem ao "nietzschismo intelectual e moral do da guerra, as duas teses (de inspiração neo-k:mtiana) sustentadas em 1938
s.:egundo século XX, e muito particularmente ao jovem Nietzsche de De por Raymond Aron, sua /ntroduction à lo philosophie de l'histoire. Essai
l':itilité et l'inconvénient des études historiquc.·s pour la vie [Da utilidade sur les limites da l'objectivité historique [IntrodtJção à filosofia da história.
ç Jo inconveniente dos estudos históricos para a vida] (1874)2, não poderia Ensaio sobre os limites da objetividade hist'-1rica] e sua Philosophie critique
ser ignorado - tanto mais que a gala ciência clj história experimental o d..! l'histoire [Filosofia crítica da história] (originalmente: Essai sur la
e:\.-plicita. Conhecemos suas r,rincipais teses: que a época está saturada de theórie d'! l'hi-.toire drrns l'Allemagne conremporai11e [Ensaio sobre a teoria

l'
6� pASSADOS RECOMPOSTOS Qucsiõcs 69

da história na Alemanha contemporânea]), que, à luz da filosofia e da uma vontade de potêt�cia (no nível, enfim derrisório, próprio do _manipulador
sociologia alemãs (Dilthey, Rickcrt, Simmel, Weber), se havi,1m atribuído de textos, de imagens ou de dados), mas de um:! orientação quase sec'.llar
a :nissão de reexaminar criticamente as categorias do conhecimento histó­ que viu uma reavaliação dos fundamentos filosóficos da história crítica e
rico: orientação prolongada no imediato pós-guerra sob a forma de uma positiva da s"!gunda metade do século XIX mudar-se progressivamente cm
análise{fortementc tingida de fenomenologia existencialista ou personalista) um questionamento radical das lógicas e das racionalidad::s do raciocínio
da "subjetividade do historiador" e de uma reavaliação global da histó1ia i1istórico. Avatar distante da agitação cultural que precede e segue 19685 ,
dita positiva, da qual uma obra de Hcnri-Irénéc Marrou, De la c:01111aissa11ce a históriá experimental exprime por sua vez uma posição subjetiva tanto
historique [O conhecimento hist.órico] (1954), e vários artigos de Paul mais violenta por se ornar com os atributos de uma liberdade absoluta, da
Ricoeur reunidos numa coletânea intitulada Histoire et verité {História e inovação e do desrespeito. "No 11ietzschismo, sublir.ha Vinccnt Descambes,
verdade] (1955) constituem as princi;;ais etapas. Mas, ao mesmo tempo em a resistência à arregimentação tor,1a a forma grandiosa de uma teoria geral
que Raymond Aron consagra no fim de sua vida seus últimos escritos às dos signos, com sua ontologia (há apenas interpretações, nada há a inter­
implicações da filo.:.ofia analítica de origem anglo-saxónica sobre o conhe­ pretar que já não seja uma· interpretação) e sua epistemologia (não há
cimento histórico (cursos de 1972-1974 publicados cm 1989 sob o título conhecimento, apenas discursos, ou agcnciamcntos de signos, produzindo
Leço11s sur l'histoire [Lições sobre a história], uma segunda etapa da efeitos de verdade" 6) .•• Nascido jovem demais num mundo velho demais,
rcav:iliação dos fundamentos científicos da produção do discurso histórico o historiador dos anos 90 estaria, por sobredeterminação de sua individua­
se in:iugura na virada dos anos 60 e 70 com (para ser breve) a publicação lidade intelectual e renúncia à verdad" de um conhecimento, votado a
<:las principais sínteses de Michcl Foucault - les Mots et /es choses [As interpretar incessantemente e experimen..ir :nfinita:ncnte os :,ignos, os
palavras e as coisas] (1966); L'Archéologie du savoir [A arqueologia <lo discursos e as imagens de um saber acabado?
saber] (1969) -, das análises de Paul Veyne - Comme11t 011 écrit l'histoire
[Como escrever a história], (1971) - e das reflexões de Michel de Certeau Prestígios e desilusões do q�antitativo
- L 'absent de l'histoire [O ausente da história], (1973); L'écrit de l'histoire Tal não havia sido, entretanto, vinte anos mais cedo, a esperança
[A escrita da história], (1975). dos protagonistas da "nova história", tal como se exprimia at:-avés dos
Esses dois momentos definem no espaço de meio século um percurso
... , relativamente linear: da objetividade à subjetividade; da crítica das fontes
artigos lá um tanto eufóricos que, cm 19,0, Pierre Chaunu consagrou à
história serial 7, e cm 1971; François Furet à história quantitativa 8. A
:' à d:is categorias e modos de escrita. O questionamento da verdade (ou
1 constituição, lá onde as fontes o permitem, de séries temporais homogê­
validade) da história como forma de conhecimento traz, todavia, consigo neas, não apenas nos domínios da economia e da demografia, locais de
um:i dimensão considerável de relativismo: -se alguém estima, como o faz origem e terras eleitas do quantitativo histórico, mas também cm história
meu 1..olega e amigo Michel Foucault, que é preciso, de uma vez por todas, social, política, cultural ou religiosa, permitia prever uma transformação
se !ivrar da mitologia do verdadeiro e do falso··. exclama i:1dignado Aron radical da noção de acontecimento e de "fato histórico" cm geral, cons­
já cm 1972, "o lógico depõe imediatamente as armas"3• Ela implica, por truído e não mais dado, a partir de premissas que dependem ao mesmo
outrc- lado, a emergência crescente do sujeito do conhecimento: "Pode-se tempo da potencialidade da ·fonte (a série quantificável) e de uma pré­
constatar, entre os historiadores recentes", relc,·a com prazer, igualmente definição dos questionamentos a vir e das respostas que a documentação
cm 1972, de Certcau, "que essa rcssurreiç:10 do eu 1,0 disct.:rso histórico pode obter (a composição prévia de campos estatísticos e de interrogações
cor:1cça com a importância crescente, mas aind:: adicional, atribuída à numéricas). "Toda a própria concepção da ::rquivística vê-se radicalmen­
his:ária do sujeito-historiador: os Prefácios, cm extensão, se articulam te transformada justamente no momento em que suas possibilidades se
soc-:-c a história do objeto estudado e precisam o lugar do locutor"�. multiplicam pelo tratamento eletrônico d:i :nformação", observa f-rançois
A hipertrofia do sujeito-historiador. tal como ela se exprime com Furct. A quantificação autorizava a partir d-.:- então o historiador a recolher
vi�,..,r no manifcs:.:i da !-iistóri;:;. experimental. nã0 procede então apenas de fontes a priori estranhas ::: seu objeto e. segundo o tl'rmo cm uso na
1,
1 1

70 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 71

corporação, enviesá-las por uma boa causa, ou seja, as necessidade� de raciocínio informático intervenham diretamente na construção de seu tra­
sua pesquisa (o balanço demográfico de uma população a partir �as hstas balho? Como dar conta de outro modo do declínio relativo da enquc.te
de comunhão pascal; a composição socioprofissional de uma cidade na quantitativa em domínios onde ela havia sido pioneira, como a sociologia
base de uma lista de impostos; a evolução do sentimento da morte a partir religiosa retrospectiva ou a história do livro, justo agora quando as ope­
de testamentos perante tabeliães; a trànsformação dos comportamentos rações computáveis que formam sua base seriam infinitamente inais faci­
se�uais conforme os reeistros paroquiais etc.). As potencialidades mú.l­ litadas? As ações de Gutenberg (para não evocar os copistas que o prece­
tiplas de iniciativa ou de manipulaçãn.que a quantificação oferece não são deram) permanecem sólidas entre o povo historiador do fim do século XX.
certamente estranhas, de resto, ao sentimento de potência, já evocado, que e a onda quantitativa retirou-se por vezes bem rapidamente da praia que
_xx.
1
percorre a prática histórica da segunda metade do sécuio ela um instante pensou ter invadido para sempre.·
Com efeito, a introdução maciça do computador no se10 da pesquisa O segundo perigo sG inscreve num processo de desagrega<;ãú da
histórica a partir do final dos anos 70 constitui ao mesmo tempo um unidade dos saberes históricos e se liga principalmer.te aos domínios para
elemento fundamental n� alargamento das possibilidades e a renovação dos o
os quais computador tomou facilmente praticáveis tarefas antes julgadas
procedimentos e raciocínios. Seu aporte se apresenta já a��ra, enqu�n�o se fastidiosas ou mesmo insuperáveis: em primeiro lugar a econometria retros­
espera um primeiro balanço das pesquisas efetuadas, no mm1mo form1davel. pectiva e a demografia histórica. Procedimentos técnicos sofisticados, como
Nos mais diversos domínios, da econometria à iexicometria, da análise dos a busca de modelizações de tipo matemático, ou o recurso à análise fatorial,
textos à das imagens, das taxas de fccundidad-: aos modelos de desenvolvi­ afastam progressivamente da cultura comum dos historiadores blocos in­
mento dos presidiários às i-ertes urbanas, o instru.ner.to 1nfo:máticu permitiu teiros da pesquisa: comparados com as elaborações mais recentes, o
acum�lar, em uma escala absolutamente inédita.. informações perceptíveis Beauvaisis de Pierre Goubert, o Languedoc de Emmanuel Le Roy Ladurie
ou quantificáveis sob a forma de bases de dados,. multiplicar as elaborações, parecem um pouco exercícios para alunos primários, no momento em que
renovar as interrogações, verificar ou anular interpretações. O computador múltiplos indícios nos fazem infelizmente pensar que as principais aquisi­
foi para O historiador francês das últimas déCJdas, participante ativo da ções da demografia histórica ou da história econômica ·e social do segundo
revolução informática das ciências sociais e leitor assíduo de revistas Pspe­ terço do século XX, apenas muito incompletamente penetraram na forma­
cializadas Histoire et mesure [História e mediiJa, Le Médiéviste et l'Or­ ção geral de professores e _de estudantes de história. A l6gica institucional
dinateur [O medievalista e o computador] etc.),. o veículo de uma mutação e científica dos laboratórios conduz assim, muito paradoxalmente, ao iso­
tecnológica e O vetor de uma revolução metodológica sem precedentes. lamento progressivo das pesquisas mais inovadoras no domínio da história
Três perigos parecem todavia relativizar, nos primórdios dos anos 90, quantificável: o computador, em muitos domínios, aumentou as divisões
0 impacto da transformação induzida pelo recurso ao instrumental disciplinares e favoreceu o desenvolvimento em separado (em africâner:
informático, dissipar até certo ponto as euforias quantitativistas, e alimentar apartheid) das problemáticas. "VivemvS a fragmentação da história", es­
entre uma parte nada desprezível dos historiadores um relativo desencanto. creveu Pierre Nora na abertura de sua ·Bibliothcque des histoires" [Bibli­
A primeira dificuldade diz respeito ao caráter incompleto da revolução oteca das histórias], vetor do brilhante mas efêmero encontro da "nova
informática tal como operou:.se na França, muito progressivamente, durante história" e do grande público culto no meio dos anos 70: o computador
os últimos quinze anos. Ao lado de disciplinas que praticam uma utilização contribuiu sem dúvida de modo mais eficaz para a verificação desse fato
maciça e sistemática do computador, seja a título de base de dados e do que a ampliação multiforme do campo das abordagens históricas.
instrumento de cálculo (demografia, economia... história social ou política), O último perigo disposto na via ascendente que os anos 70 traçavam
sci:.1 sob a forma de corpus indexáveis (análi� de textos ou de imagens), para a história serial foi, de�de a origem. identificado nas exigências par­
q� ;m tos pesquisadores não consideram a tela mleligente que lhes foi of�­ ticulares determinadas pela mutação do estatuto das fontes e do papel do
,
recida pelo último avanço tecnológico da modernidade apenas uma �a�m­ historiador. Quantificar é, com efeito, constituir-se estreitamente prisionei­
na de escrever mais cômoda, ��m que o procedimento, ou, a fortwrz, o ro, a um �ó tempo, de uma série documentária e de uma linha interpretativa
Questões 73
72 PASSADOS RECOMPOSTOS
na Europa, e que provoca ainda hoje, segundo o caso e o humor, a
determinada a priori p::la própria elaboração do material cifrado. A crítica admiração ou o espanto, a hilaridade ou a irritação dos historiadores
Yf t
das fon!es, tal como os mestres eruditos do método histórico, do século italianos, alemães, belgas, espunhóis ou anglo-saxões, cujos r�cortes
XVII ao XX, afirmaram, não perde os seus direitos: apenas se projeta do ;f> associam mais comumente a história, aqui à filosofia, ali à filologia.
um para o múltiplo, do documento isolado aos seus procedimentos de +- Da própria geografia veio, no curso dos anos 70 e 80, a ruptura
bomoaeneização e processamento. A c;onstituição do materiai quantitativo
C,

progressiva de contrato. A geografia de referência dos historiadores era
sobre O qual se funda o raciocínio deve igualmente responder a ex1genc1=is
• A

a geografia lablachiana: geografia humana (demasiado humana?), anco­


da mesma ordem, sob o risco de cair num empirismo por vezes fecundo, rada na percepção das glebas e das culturas, das paisagens e das tradições,
mas sempre, por si mesmo, insuficiente: a quantificação exige então a das permanências estruturais e das lentas transformações históricas; abor­
explicitação dos questionamentos preliminares do historiador assim como d_agem global, história total dos países e dos homens, construída à imagem
a verificação ulterior de sua pertinência'e de s4:!. validade. As interrogações e para a exaltação da França ainda amplamente rural do desvio da virada
e as interpretações finais do historiador serial remetem, enfim, o mais das dos séculos XIX e XX. O questionamento dos pressupostos ideológicos
vezes, às problemáti�as globais dos domínios ronsiderados, expressas nas da construção de Vidal de La Biache e de seus herdeiros, a afirmação
cateaoria
� s mais gerais da linguagem das cifras: alta ou bai�a, aceleração
. rigorosa e por vezes veemente da autonomia do procedimento geográfico,
ou desaceleração, concentração �u difração... A ,quantificação parece assim, as novas perspectivas aher�as pel.a <'artografill. informatizada, a ambição de
mas em escala diferente e segundo vias inéditaS, reencontrar os métodos, uma geografia exclusivamente ce,1trada em torno da noção de espaço em
as questécs e oc; debat�s. da história clássica; e a posicão paroxística do suas acepções antigas (geografia rural, inàustrial, urbana, geografia dos
manifesto da história experimental (quantific-.ar! qt!antificar!) traduz em transportes) ou novas (organização do território, geopolítica, geo-estraté­
verdade, sob a forma de uma fuga para frr.nte, uma inquietação lancinante: gia) conduziram os geógrafqs, no plano intelectual, a uma separação de
que O serial, para além dos seus aportes e seus confortos, não seja aquilo corpos ainda mais paradoxal, porque o eusino das duas disciplinas perma­
por que a razão histórica mudou de base. nece estreitamente unido e porque os historiadores conservam globalmente
o gosto pelos mapas e croquis, quando não a nostalgia das glebas.
O declínio da razão geográfica em his�ória Filha deserdada de amores levados pelo bom ou mau vento das
Quantificar é ainda operar uma rcduçiu do real para fins c�tatís­ "lógicas espaciais", a geografia dos historiadores neste final do século XX
ticüs ou comparativos por abstração provis.õria do dado histórico ou afirma ainda solidamente sua preseT\ça no seio do processo histórico: para
geng,áfico: objeto da maior importância cm uma perspectiva experimen­ ficarmos com um único exemplo, o empreendimento coletivo do Atlas de
tal de erradicação das contingências temporais.. espaciais ou culturais, que la Révolution Française [Atlas da Revolução Francesa] 9, expressão grá­
reprova e rejeita sem apelação "o prazer que 3 árvore tira de suas raízes, fica e cartográfica do acontecimento revolucionário, na curta ou média
a felicidade que se experimenta por não sentir-�c nascido do arbitrário e duração sob seus diversos aspectos, associa estreitamente mapas e esque­
:· - ' t ru to..."
d�... ac�so, mas saído de um passado - hcn.:·= iro, f1 oraçao, mas, elaborações espaciais ou est:itístic:is e discurso histórico, numa ar­
A crise da razão geográfica em história no último decênio do século
ticulação intelectual onde o mapa é a um tempo transcrição geográfica
XX _ que determina por sua vez o enfraquedmento gradual das causali­ do saber histórico, elemento de raciocínio, fonte de interrogação e motivo
dades espaciais no raciocínio histórico - se alimenta todavia, para além dos de interpretação. Igualmente, a história política como a história religiosa
imperativos computáveis dos métodos seriais.,. de fontes mais profundas. A ou a história sócio-econômica continuam a integrar, mais ou menos
dt.:pla formação - a um tempo histórica e g...:,0gráfica - dos historiadores fundamentalmente, o mapa a seus questionamentos. O tempo e o espaço
f:-;.mceses, a utilização sistcmátic� que fazem do mapa (de localização, de da geografia de Vidal de La Biache, c0mo o acontecimento e a duração

1
densidade ou dinâmico) no raciocínio e na exposição, constituem, é sabido, da análise braudcliana, continuam a compor o quadro original de uma
uma especificidade importante do recorte do campo dos saberes tal como reflexão histórica obcecada pela inteligência global do passado.
0 concebeu, no fi:n do século XIX, a Terci;ira República, recorte único
:,,,
'j
'I 74 PASSADOS RECOMPOSTOS
. \.:
?.. :
Questões 75
Não podemos, entretanto, deixar de realçar um certo enfraquecimen­
A casa dos historiadores é todavia, doravante, tão vasta, cada peça,
to da dimensão geográfica das problemáticas dos historindores contempo­ t��.
J·:�i�t
cada porão, cada sótão tão abarrotado - de conhecimentos, de referências,
râneos. A reavaliação, por parte dos geógrafos, dos recortes territoriais
de notícias e querelas - que há qualquer coisa de temerário em se sugerir,
herdados da França do Ancien Régime, ·assim como da Fran'ia revolucio­
nária.. não deixou de influir no &bandono, por parte dos próprios historia­ · mesmo sob a forma de indícios sucintos, as vias que a razão. historiadora,
neste final de século XX, parece adotar para ultrapassar a crise onde a
dore:;, de !!ntidaàes geográficas fechadas ou pré-d�finidas em proveito de
levou o anti-humanismo moribund� dos anos 60. Vamos tomar três, à
quadros temáticos e problen,áticos: a "departamentalização da história da
guisa de. pedras de espera, ou de hipóteses audaciosas, chi lo sa?
França" viveu; monografias rurais ou urbanas, diocesanas ou regionais, são
O primeiro indício repousa na redescoberta, já inquisitorial (a época
agora geralmente concebidas como o quadro espacial de um questionamen­
é tão barroca quanto chicaneira), já patética (mas que seria um historiador
to que lhes é por essência estranho. Ao mesmo tempo, as análises
destituído do sentimento da morte?) do arq�ivo, do documento bruto, dito,
macroscópicas (centradas, em economia como em política, em tomo da
em forma de redundância, linguagem comum, que alimenta "o sentimento
noção de "mercado") assim como, ao contrário, a influência da micro­
ingênuo, 111as profundo, de rasgar um véu, de atravessar a opacidade do
história italiana rn, transtornaram as escalas espaciais das interrogações e
saber e de ter acesso, como após uma longa e incerta viagem, ao essencial
associaram contextos espaciais específicos e moventes a temporalidades ou
dos seres e das coisas" 11• Ingenuidade, no que diz respeito à prática co­
questionamentos particulares. A .uaidJdc de 'uga.:- não existe mais e o
tidiana da classificação e da verificação dos fundos pelos homens do ofício,
espa..;o faz menos sentido: é nessa brecha do continuum espaço-temporal
nestes tempos de elaborações quanti!ativas complexas e de análises finas
· da memória que se engolfa a empresa subversiva de estranhnmento e de
d0s discursos e das configurações retóricas? Provavelmente. Mas t<!lvez
"descontextualização" do historiador experimental.
seja necessário ler na fascinação contemporânea do texto a emoção primi­

r:
!· tiva de uma leitura original, de um encontro que alimenta por sua vez a
Uma crise de inteligibilidade?
i Deportada progressivamente·de seu objeto .para o sujeito-histo­
busca da inteligibilidade para além da acumulação das interpretações e dos

1:
"efeitos de verdade". Já seria alguma coisa.
riador, entregue à mediação (não conclusiva entretanto) do quantita­
Interrogações diversas e contudo convergentes em torno da
tivo. desviada do enraizamento no espaço, a pesquisa da causalidade
narratividade histórica como modo de inteligibilidade constit�em no
"'·,,. em história atravessa assim sua crise fim-de-século. Os paradoxos do
.
ti

anti-humanismo que percorre, há tri!!ta :mos, o conjunto do campo das


mesmo período, na virada dos anos 90, o espaço principal de uma reflexão
inédita e exigente através de obras tão desscmelhantcs na intenção e no
ciências sociais, forneceram até este ponto uma linha interpretativa
conteúdo como as de Paul Ricoeur - Temps et récit [Tempo e relato]
para recolocar essa crise em um contexto explicativo mais geral.
(1983) - e de Jacques Ranciere - Les mots d'histoire [As palavras da
Assim, enquanto o ego do historiador ocupa c omo senhor absoluto o
história] {1992). Se a urdidura ou o "contrato narrativo", se o relato
lugar onde antes reinava o fato bruto e como que ingênuo da idade
histórico cm seu agenciamento tornado infinitamcr.te complexo na era das
do �ientismo, uma reavaliação mais ou menos radical da capacidade
estruturas e da longa duração, reconquistam desde há algum tempo a
da razão humana para alcançar uma verdade do conhecimento do
atenção dos filósofos e dos historiadores, isso se dá provavelmente porque
pass3do rejeita em bloco os grandes modelos explicativos para se
eles permitem fugir da querela mais do que secular saída do "projeto de
deleitar ludicamente com a experimentação sistemática das hipóteses
objetividadc"(Paul Ricocur) da história; mas tambér.1, talvez, porque eles
e ir.tcrprctaçócs "revisitadas" até ao infinito. Senhor do jogo, o his­
autorizam a reintrodução sem pretcnsãc- totalizante da causalidade cm
tori3dor parece por vezes ter perdido a percepção do objetivo de sua
uma perspectiva onde narrar já é explicar.
1
dis:iplina - que não pode ser outra coisa que não a inteligibilidade,
Reintroduzir a noção de �entido é. talvez, a ambição mais secreta,

1
par:: cada geração sucessiva, da n,emória conscrvrida dos homens, das
mas também a questão mais obsedantc que percorre surdamente, com uma
COi$3S e das palav ras que não existem mais.
intensiddc m::is viva ainda por estar mais retida na expressão e na forma,
76 PASSADOS RECOMPO�"TOS Quesrões 77

o trabalbo de numerosos historiadores do último decênio do século. O que Territoire. Les limites rrd111i11istralives. 6. Les Societés politiques. 7. Médeci11e et
sa111é.
o encontro do arquivo provoca, o que o relato torna inteligível, é a p.!rtir
daí 2 busca do sentido - situe-se ele em uma intuição inicial, ur.rn hipótese 111 J. Rcvcl, "L'histoirc au ras du sol", prefácio à tradução francesa llo livro de G.
fundamental, uma temálil:a central, uma interpretação final ou um "pensa­ Levi, Le pouvoir au vil/age. Histoire de'u11 o:orcisle da11s le Pié111011t di XVIII'
mento oculto" - que cabe fornecer-lhe um foco cuja tcmpo�alidade por siécle, Paris, Gallimard, 1989, pp. I-XXX111 (edição italiana, Ti;rim: 1985).
vezes é apenas o pretexto: mas chegaríamos até pretender que o estudo da
história é bom para a vida? 11 A. Farge, Le Go1i1 de l'arc/rive, Paris. Hachettc, 1989, p. 14-15.

Nota�
1 Alter histoire. Essais d'/,istoire cxpéri111e111ale, reunidos por D. S. Milo e A. Boureau,
Paris, Lcs Bcllcs Lcttrcs, coleção "Histoire", dirigida por M. Desgrangcs e P. Yidal­
Naquct, 1991.

! Cit:ido aqui na tradução de i-1. Albert, De l'utilité e/ l'i11co11vé11ic11I des é111des


historiques pour la vie (segunda consideração in:emj)cstiva), Pa,is, Garnier­
Flammarion, 1988, introdução de P.-Y. Bourdil.

3 Leço11s sur l'histoire, Paris, 1989, p. 145.

• M. de Ccrtcau, "Une épistémologic de trnnsition: Paul Veync", in A1111ales ESC,


XXVIII, 1972, p. 1325.

5 L Fcrry, A. Rcnaut, La Penscé 68. Essai sur l'a1:rhhu111a11is111e co111e111porai11e,


Paris, 1985.

6
V. Dc�combcs, "Lc momcn1 français de Nietzsche", in A. Boycr, A. Comtc-Sponvillc,
V. Dcscombes et alii., Porquoi 11011s 11e sommcs pas 11ietzsc/1ée11s, Paris, Grassei,
19'91, p. 113.

7
P. Ch�unu, "L'histoirc séricllc, bilan ct pcrspcctive$'', in Revuc f/istoriqtte, 494,
:970, ;i. 297-320; cf. igualmente "Histoire quantitati\'e ou histoire serial", Cahiers
VWredo Pareio, IllL, 1964, pp.165-176.

" F. Furet, "L'histoirc quantitative et la construction du fait historiquc'', A1;11ales ESC,


XXYI, 1971/1, p. 63-75, retomado cm J. Le Goff. P. Nora (editores), Faire de
l'i-:istoire, t.l - Novos problemas), Paris, 1974. pp. 42-61.

" S. Bonin e C. Langlois (diretores). Atlas de la Ré,·ol11tio11 Fra11çaise, 7 volumes


p-.1blicados desde 1987. l. Ro111es et co1111111111ica1io11s. 2. L 'E11seig11e111e111, l 760-
1815. 3. l,'Ar111ée e; la g1 ..·rre. 4. :..e Territoire. l<<alités e représe11tatio11s. 5. Le
DOIS

História e Ciências Sociais:


Uma Confrontação Instável
JACQUES RE.vEL

Nossas sociedades toma�am-se mais opacas para si mesmas, incer­


tas quanto a seu presente, seu futuro e, com isso, mesmo quanto a seu
passado. Ao ·,•1esmo !empo, os grandes paradigmas unificadc>res que ha­
viam servido de arquitewra abrangente ao desenvolvimento das ciências
sociai5 desmoronaram, e com eles o modelo funcionalista que tinham,
'
1
1 grosso modo, em ccmum. A história global (ou a história total), cujo
projeto havia orientado os esforços de três gerações de historiadores, vru­
se d('sse modo, ao menos provisoriamente, posta elltre parênteses.

A história e as ciências sociais: esse poderia ser o tema de um


concurso acadêmico, se eles ainda hoje existis�em. Poucos argumentos
terão sido mais obst;nadamcntc invocados, ao menos na França, desde o
fim do século XIX. [m 1894 foi publicado o livro de Paul Lacombe, De
l'histoire considérée comme science [Da história considerada como ciên­

.' ,,,.,
j1 �·. cia], 4ue pode ser visto como um dos primeiríssimos de uma longa série.
.••
·, Em 1994, asAnnales abandonam o subtítulo que Lucien Fcbvre e Femand

l f
Braudel lhes haviam encontrado após a guerra, o célebre Économ;.::s,
sociétés, civilizations [Economias, sociedades, civilizações], por uma nova
('5nnula: Histoire, sciences sociales [História, ciências sociais]. Nova,
r:1as cm verdade muito antiga: entre esses dois lim:tcs de um século,
j)oder-sc-ia sem muito esforço estabelecer uma primeira lista das proposi­
ções e dos debates que alimentaram o tema: sem qualquer pretensão de ser
exaustiva, ela contaria muitas dezenas - mais provavelmente centenas - de
intervenções de importância e formas diversas.
Uma tal continuidade não deve, contudo. iludir. Ela induziria ao erro
:iquele que dela tirasse a conclusão de que temos aqui um problema cl.íssico,
e.stabilizado cm seus termos e - por que não? - cm suas soluções. Pois tudo
5-C de-... ao contrário. Durante um século, a confrontação entre a história e as
ciências soci;iis foi o espaç'l de um debate difícil e instável, e que ainda hoje
!. 8(' PASSADOS RECOMPOSTOS Qucscõcs 81

pem.1a!1ece inteiramente aberto. Ela apresenta caracteres contraditórios. Com


efciro, na experiência francesa, tudo se passou como se a história devesse O golpe durkheimiano
m2'.uer, de direito, relações privilegiadas com as ciências sociais pelo fato de Retornemos então à virada dos séculos XIX e XX. Na Univer�idade
ser, no fundo, uma delas. Quatro gerações de historiadores viveram, tácita reconstruída pela jovem Terceira República (e da qual a "Nova Sorbonnc"
ou e..-xplicitamenle, com essa convicção. Mas uma vez exposto o princípio, é o retumbante emblema), a disciplina J-.istórica beneficia-se de uma posição
tudo estava por construir. Tudo, ou seja, as modalidades da coexistência :: prc::mincntc. Frecminência ideológica: a ela é atribuída a missão essencial
da troca entre as diferentes disciplinas. Nesse ponto - aquele onc:: se definem de enunciar a identidade e as expectativas de uma nação ferida por sua derrota
e se organizam práticas -, a evidência parecia nublar-se. Por trás da mesma
_diante da Alemanha - pcnsc�os cm Lavisse. Preeminência cicntíf ü;a: ela
pros:-osição geral, que diz que a história e as ciêr.<:ias sociais possuem objetos, encarna por excelência o método "positivo", a cxigêll'.::ia erudita e, para além
preo:::upaçõcs e procedimentos comun�, sucederam-se, por vezes até se com­ dela, o ideal erudito que deve contribuir para o rearmamento intelectual e
bateram, projetos, modelos de conhecimento e organização de saberes muito moral de um país que prepara a rcvanchc. Preeminência institucional enfim:
profundamente difcl';nciados. Uma palavra pode comodamente resumir esses provid« de uma legitimidade antiga, a disciplina se vê cm via de
aspcetos contrários: a palavra interdisciplinariàade, que, sob variáveis for­ profissionalização rúpida; ela redefine seus currículos e seus padrões, sendo,
mas. serve para rle:;ignar uma espera e permite medir, à revelia, o afastamento a esse título, uma beneficiária particularmente mimada do espetacular cres­
do :ibjetivo. A inlcrdisci!)linaridade é um slogan voluntarista e votivo (é cimento universitário dc:;scs ,,nos. S:::u !11'5!·:>dv - "o método" - torna-se uma
preciso pensar sempre nela), mas ela alimenta. ao mesmo tempo, a má referência quase obrigatória. No essencial, ela se identifica com a crítica
coo:sciênci..i ou a ironia dos eruditos (ela jamais se realiza). erudita de textos, do qual o clássico lrztrtJducti()n au.x étwles historiques
Convém, entretanto, levai a sério essa tensão, e ver nela algo mais (Introdução aos estudos históricos], de Langlois e Seignobos (1898), reca­
do que um lugar-comum da retórica académica. Ela é, ctetivamcnte, pitula os princípios de base para estudantes, mas cujo modelo orienta no
inseparável de um projeto intelectual continuamente reivindicadu na lon­ mesmo momento uma boa parte dos estudos literários. Frente à história, as
ga duração do século, mas descontínuo cm suas realizações assim como outras ciências sociais são recém-chegadas que dificilmente encontram seu
cm sua concepção. Esse projeto, e o debate q-.ic ele alimentou, não é lugar e s.::u reconhecimento. A geografia, tardiamente constituída como dis­
esi,-ecificamcnte francês. Paralelos poderiam ser encontrados na Alema­ ciplina unificada sob o impulso de Vidat de !...a Biache, é a que melhor perfaz
.;i.
nh�. na Itália ou no mundo anglo-saxão, por exemplo, segundo cronolo­ seu caminho, mas permanece na condição de irmã caçula, na órbita da
,,
'! gi.is mais ou menos distanciadas. É impressionante se constatar todavia história, apesar de uma notável fbra-são. A economia permanece tradicional­
que essas diversas experiências não se parecem muito e que elas não se mente acantonada nas faculdades de direito e, ainda aí, cm posição subor­
coc:mnicaram entre si, ou muito pouco. Ocorre que cada uma tomou forma dinada. A psicologia é dividida en!re o ensino da medicina (cm sua parte
e p1,:1ou sentido no seio de um contexto cuilural e institucional muito experimental) e o da filosofia. A lingüístic:? não possui existência autônoma.
p.1.:-:icular, ao qual deve traços irredutíveis. T0davia, hú um:i originalidade A última ciência social cm data, a sociologia, é provavelmente aquela cuja
da Ycrsão francesa, que nos incumbiremos .;-;? car:ictcrizar aqui; ela pode fortuna é a mais paradoxal: a uma csp.:�cular afimiação teórica, que se
certamente ser identificada com três caracteres: mais do que qualquer identifica de início com a obra de Durkheim, i'i multiplicação das frentes de
ou:ra, ela foi voluntarista, e exprimiu-se pM tentativas reiteradas de reflexão crítica e de pesquisa (o que é ilustr:Jdo, a partir de 1898, por L 'A 1111 ée
ccistrução de um espaço ao mesmo tempo e?i:-tcmo!Cgico e institucional; sociologique [O Ano sociológico]), não corresponde uma verdadeira acolllida
m:.:.is do que qualquer outra, ela se desenrolo:.! cm ,·aso fechado e, cm todo no seio do mundo acadêmico. A resistív el c:?írcira de Émile Durkheim e, mais
c::so, permaneceu longamente surda aos dct::1cs estrangeiros; finalmente, ainda, a de seus discípulos, o tcstcmunh:l..71 1 .
a;:-,::nas ela deu ;'t história um lugar de pr,::iciro plano frente às outras É desse lado, o dc uma discipli:-.3 mal reconhecida e ultramino­
ci:::ncias sociais. Para tentar compreender css:1 originalidade, pode ser útil rit:íria, que surge a primeira proposiçjo de t!:na unificação das ciências
re:ornar aos mo,: 1 entc:; succs::ivos dessa confrontaçf10. sociais. Ela constitui, c111 muitos aspectos, uma espécie de golpe
8í. PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 83
epistemológico. Ao método erudito crítico, Durkheim e os seus opõP;m
mesmo de a Primeira Guerrá Mundial dizimar a equipe durkheimiana,
as reoras bem mais ambiciosas do método sociológico; à codificação de
sinais de resistência se manifestaram. Resistências co,1servadoras, em
uma profissão, um plano para a Nganização d:'.S ciências sociais. Ou
face de um conjunto de proposições que questionam, de uma vez, muitas
melhor, "da ciência social", da qual a sociologia seria, segundo eles,
p osições e hábitos adquiridos, mas não apenas elas. As resistências sur­
chamada a definir o cânone evistemológico pr�ritivo e, ao mesmo tem­
gem também do lado daqueles que, med:ndo u "crise da razão" que se
po, garnntir a unidade do conjunto. Pois nada jt.:.Stifica fundamentalmente
abre por esse tempo, estimam que o modelo de científicidade - o modelo
a seus olhos a divisão disciplinar do trabalho, senão as irregularidades da
das ciências da natureza - reivindicado pelos sociólogos ja está obsoleto,
história e a diversidade das competências técnicas locais, que são sem
e que seria conveniente reconstruí-lo sobre novas bases.
dúvida importantes mas que permanecem secundárfas em relação ao
projeto científico de conjunto. Assim mesmo é necessário que c�da �?1ª A alternativa r,�gmática: as "ciências do homem"
das práticas particulares aceite tomar seu lugar no novo espaço c1ent1f1co
É nesse contexto, e em particular a partir desse debate, que deve
definido pelo sociólogo, e que ela resolva, ao mesmo tempo, reformular
ser situa�a e compreendida a outra proposição esboçada então para or­
seus (maus) hábitos de pensamento para se conformar ao manual de
ganizar as relações entre a história e as ciêncins sociais. Ela não possui
encargos que lhe é proposto. Uma série de confrontações tensas vai des�e
e não possuirá jamais a nitidez e a segurança epistemológica do projeto
modo opor os durKhe;mianus - co,numentc representados por Franç01s
. . durkheimiano. Para falar a verdade, ela a;,resenta menos um modelo de
Simiand - aos geógrafos, aos psicólogos e sobretudo aos h1stona dores 2.
cientificidade do que sugere um procedimento e,npírico: provar o movi­
Em face desses últimos, Simiand aproveita a C'casião de urr.. air.plo debate
mento ao caminhar. Em 1900, Henri Ben funda a Revue de synthese
internacional sobre o caráter científico (ou não) da história: ele o faz
r historique [Revista de Síntese Histórica]. A nova revista, como todos os
,J
deslvcando os termos do problema e demonstrando que não é sobre a
!� empreendimentos ulteriores de seu animador, destinava-se a acompanhar
.erudição que pode ser fundada uma tal pretensâ'l à cientificidade, mas
l! a realização de um projeto aesmesurado de síntese enciclopédica dos
sobre a aceitação das regras constitutivas de uma ciência positiva: "Não

,,
l!i conhecimentos. Mas ess� grande arquitetura importa menos do que a
:1 há, por um iado, uma história dos fenômenos sociais e, por outro. uma
maneira de fazer que é escolhida. Trata-se de criar um espaço livre - e,
t.Z ciência desses mesmos fenômenos. Há uma di!:ciplina científica que, para
reconheçamos, fragilmente ordenado apesar da obsessã0 dassificatória de
atinoir
� os fenômenos que são objeto de seu estudo, se serve de um certo
- Berr - de confrontação entre práticas ciectíficas que, as mais das vezes,
método, 0 método histórico". A especificidade da história é entao rede-
se ignoram. E como Berr está convencido de que a história, e não rr.ais
finida - e limitada: ela pode e ela deve abrir a dimensão do tempo para
a filosofia, pode ser o espaço da síntese dos saberes, a primeira ocupa
a experimentação sociológica.
em seu programa um lugar central, melhor: organizador.
Trata-se então, no caso, menos de uma interdisciplinaridade do que
As Amiales, fundadas por M.:!rc moch e Lucien Febvre em 1929,
de algo que poderíamos chamar de a-disciplin�ridade, uma vez que as
tomarão a sucessão ao afinar o projeto, livr:!.':'ldo-o de suas escórias e de suas
disciplinas são reduzidas a especializações ir:e,·itáveis no seio de um
aderências mundanas, dando-lhe ainda a legitimidade universitária que lhe
mesmo projeto de conjunto. Em L 'Année sociologique como em seus
faltava. Bloch e Febvre, cujas posições, ali�, não são exatamente idênticas,
trabalhos pessoais, os discípulos de Durkhcim são o exemplo, tanto ao
são bons exemplos da trajetória que aqui tentamos precisar. Um e outro
passar pelo crivo de suas exigências a produção científica contemporânea,
formaram-se nos primeiros anos do mo'-imento durkheimiano, e ambos
quanto ao penetrar eles mesmos em terrenos ...:e pesquisa especializados
reconheceram sua dívida intelectual em ��lação a Durkheim: sua escolha
:ipós ter adquirido a competência necessária. Esse plano de unificação não
de uma história social e sua recusa às c.0mpartimcntações disciplinares
terá, contudo, um futuro imediato. O que rcYda esse fracasso é uma
datam da época cm que freqüentaram a ectão jovem Amzée sociologique.
relação maciça de forças: por mais brilhante que seja, por mais agressiva
Contudo, eles escolheram não se aliar a uma nova ortodoxia, a uma escola.
que se queira, a sociologia r.30 teve os meios de sua política. Antes
Subscrevera111 à crítk:a do método erudito :nas nem por isso se dispuseram
84 PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 85

a aceitar as regras imperiosas da epistemol o gia s ociológica. A opção de margens d o sist�ma acadêmico (mesm o na marginalidade prestigi osa d o
organizar a tro ca entre disciplinas em to mo da história ganha aq�i toda a
College de France); ela também inclui pesquisadores cuja formução ori­
sua significaç ão. Sem dúvida, Bloch e Febvre são historfado res e o primeiro
ginal era de tipo filosófico, o que foi o caso d ominante entre os sociólo gos
título de sua revista foi, não esqueçamos, Annales d'histoire économique
e antropólogos franceses. Sem forçar muito as c oisas, poder-se-ia assim
et sociale [Anais de história ec onômica]. Resta o fato de que o programa
sugerir a c ompreensão do brcvt= porém intens o moment o estruJuralista -
iniciado a partir de 1929 é o de uma dupla confrontação: po r um lado, entr�
do início dos anos 60 ao início dos 70 - como uma ret omada, em term o s
as múltiplas abordagens do presente, �lustradas pelas ciêndas sociais e qc e
novos, da ambiçri o durkheimiana (é possível perceber nele, simultanea­
devem enriquecer os mo delos de inteligibilidade do passado ; e por outro,
mente, uma tentativa de emancipação da tu tela d os hist o ria� ores, da parte
cm sentido inverso, entre a experiência d o passado e a interpretação d o
das ciências so ciais reunidas sob a bandeira de uma :deol ogia científic:i
c ontemporâneo . É então , de fato : ,:1 complexidac!.e do tempo social que serve
a-histórica, e até anti-histórjca). Viu-se, em to do caso, reaparecer então
de eixo para o enc o ntro interdisciplinar. Esta reorganização se d uplica p or
o pr ograma de um mo del o de cientificidade 11nica, lançando no infern o
um outro desl}zamento significativ o. Para Durkheim e os seus, apenas o
do empirism o todas as práticas eruditas que lhe resistiam. Os historiado ­
métod o poderia pretender u nificar o campo das ciências sociais; já para os
res,ao co ntrári o, jamais deixaram de defender a abertura pragmática. O
historiad ores, este papel caberá ao objeto sup ostamente c omum destas
célebre texto de Fernand Braudel sobre a "lo nga duraçã o", publicado em
ciências, ou seja, o htJmem na sociedade (e não é por acaso que durante
19583, testemu nha essa atitude. Ele opera em duplo nível: reivindicand o
muito tempo, na França, a expressão "ciências do h omem" prevaleceu sobre
o caráter central da dimensão temp0rnl na análise e c ompreensão d os fatos
"ciêndas sociais''). Eis aqui esbo çado um modelo menos brifhante, pNém
sociais, o que significa lembrar o espaço i rrediJtível da história no sei o
sedutor, mais empírico, até mesmo artesanal, e também, de i�ediato, mais
das ciências so ciais; mas também, nu m plano mais estratégico e que
operacional por parecer mais tranqüilizador.
traduz uma antecipação muito precoce da crise por vir, defendendo uma
O imediato vai durar. N ão se trata aqui de evocar, a o meno s para
::oncepç ão mínima, "ecumênica" (o adjC?ti�o é de Braudel) de toda prática
esboçá-lo, o que foi a história das ciências sociais n o sécul o XX. N o temos
da interdisciplinaridade, a serviço da qual "a história - talvez a menos
entretanto que, para a maio ria delas, o reconl:ecimcnto e a instituci o naliza­
estruturada das ciências d o h omem - aceita todas as lições e� sua múltipla
ç ão u niversitária foram adquiridos tardiamente n o s ano s 50 e, s obretud o , vizinhança e se e sforça pa r a repercuti-las". Visã o m o desta, esta de u m
nos 6U. A história benefici ou-se c om essa minoridade prolo ngada. Tes­
terreno comum e de uma 1í1Zgua franca. Ela não · bastará, a curto praz o ,
temu nha este fat o , para além das Amiales, o papel central o cupad� por
para deter a ofensiva estruturalista, mas servirá eficazmente para limitar os
uma instituiçã o que foi seu imediato pr ol o ngamento, a VI Seção da Ec'Jle
danos. Melho r, ela alimentará a estratégia de rec onquista levat!a a cabo -
Pratiq ue des Hautes Étudcs [Esc ola Prática de Alt os Estud os] (ciências
ser:i1pre empiricamente, e provavelmente sem ter clara consciência dist o -
t.conômicas e sociais), fundada s ob o patronato de Lucien Febvre, p or
pelos historiado res n o próprio terreno das ciências sociais.
muit o temp o animada po r Fernand Braudcl, e t o rnada, cm 1975, Éc ole
des Hautes Études en Sciences S ociales [Es.c o la de Alt os Est ud o s em Uma interdisciplinaridade integradora
Ciências Sociais]. Durante muit o tempo dirigida p o r hist oriadores, ela
Uma série de tentativas de hibridização, das quais a antropologia
pode muit o bem servir para ilustrar essa via empírica.
histórica triunfante dos anos 70 foi o exemplo mais espetacular, é testemu­
Se nos detivem os s obre essas duas c o nc�p�ões antigas da interdisci­
nha disso4 • P odemos ler aí um esforço vigoroso para reformular, cm con­
plinaridadc, nã o foi po r g osto da retr ospecti"a, mas po rque elas c o nsti­
junt o, a distribuiçã o das relações de força entre as ciências sociais e as
tuíram, até muito recentemente, os dois pólos de um debate rec o rrente,
regras da troca interdisciplinar. Sem dúvida, a tradiçã o hist orio gráfica cas
mesm o que ele tenha se perpetuado cm con:cxtos profundamente ren o ­
Annales poderia reclamar para si o pi o neirismo de algumas experiências
vad os. A reuniã o cm torno de uma epistemologia u nitária, prescritiva,
que permaneceram, entretanto, individuais e is oladas: a de Marc Bloch, é
veio, o mais das vezes, �e disciplinas minoritárias ou acant o nadas nas
claro Les Rois thaumaturges [Os reis taumaturg os] (1924); Les Caracteres
fi,

,,
86 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 87
'i
11
:•
origüzaux de l'histoire rl.lrale française [Personagens originais da história gráficas das produções desses anos para verificar que se tornou normal, até

·-:�:
·-�-��
rural fran�esa], (1931); La Société Féodale [A sociednde feudal], (1939-40); mesmo imperativo - quase também ritual - para ·os historiadores fundar
depois, uma geração mais· tarde, as experiênciaSs tão diferentes entre si, de seus procedimentos e seus resultados remetendo acs trabalhos dos antro­
-��
A. Dupront ou d� J.-P. Vemant. Mas é numa escala totalmente diferente que ,,{(;_
p6lo�os e dos sociélogos, a partir de agora parceiros privilegiados.
!· se organiza, a partir de então, o confronto. Em torno de alguns grandes �
�-
,,;;:: (

.).
De resto, não é indiferente que a antropologia e a sociologia tenham­
domínios ele investigação - a família e o parente�co, o religioso, o econô­ se tomado as protagonistas da história. Por muito tempo, a geografia e a
mico, o político -, seni ·grande cuidado de ortodoxia teórica - entre as economia pareceram dever representar esse papel, m::� em condições com­
referências dominantes encontraremos certamente Lévi-Strauss, mas tam­ -�� pletamente diferentes. A geografia propunh� a um só tempo, a possibilidade
bém Dumont, Hertz e Mauss, Polanyi, Chayanov, Murr� ou Sah1ins - e nem de uma reflexão sobre a inscrição dos fenômenos sociais no espaço e um
sempre de coerência, a antropologia hist'.5rica assegurou empiricamente a princípio forte de realidade: �la parecia ofe:ecer à análise histórica objetos
presença e as posições dos historiadores sobre a maior parte dos terrenos concretos, visíveis e quase tangíveis. O lugar da economia, por seu lado,
ocupados pelas ciências sociais. Ela, seguramente, fez mais do que isso. foi assocfo�o à ccnvicção mais ou menos explicitada que pretendia que,
Em 1978, André Burguiêre justificava muito lucidamente a atração exercida através dela, se atingiriam os mecanismos ;>esados que orientariam o des­
pela antropologfa nesses anos explicando que, no momento em que nossas tino das sociedades humanas. Em sua própria orga�ização, Le Mediterranée
sociedades contemporâneas renunciavam, por sua própria conta, & concep­ (O Mediterrâneo] de F. Braudel (1949) traduzia bem essas preferências,
,;)
ção de um progresso linear, ela tinha podi�o corresponder "à necessidade com uma p:imeira parte inteiramente consagrada ao diálogo entre o homem
,.;
de reencontrar [no passado] os diferentes '-aminhos da tra11sfo:-mação. e o meio, e un,a segunda aos tempos da atividade econômica. Mas as coisas
inventariá-los, compreender seus mecanismos, afirmar sua pluralidade"5• O mudam nitidamente com a promoção de disciplinas que, como é o caso da

,�;
!� fato é que esse retorno crítico aos hábitos do oficio também foi a ocasião
de um �spetacular movimento de expansão.
antropologia e da sociologia, são de algum modo coextensivas à história,
e que têm em comum com ela uma semelhant� indeterminação de seu
Com efeito é então que parece se abrir desmesuradamente o que ,·;J:.:. objeto. O confront.:> não é mais setorial, limitado. Ele tende, mais ou menos
Emmanuel Le Roy Ladurie chamou de "território do historiador", termo que conscientemente, para uma integração e.ias disciplinas cuja identidade perde
;:
,,r..,.
tit!

!11,
é por si só um programa. Registra-se uma mu1tiplicação, que parece então
sem limite previsível, dos procedimentos e dos objetos. Cada estação, cada
pouco a pouco sua evidência. Tal terá sido talvez o projeto mais ou menos
cor.fesso dos anos 70, e ainda de uma boa parte dos anos 80.
;:
1!� número de revista, cada novo título, parece testemunhar uma incansável
inventividade. Esta aceleração já não é, de resto,. exclusiva da França: breve O tempo dos confrontos?
a encontramos no mundo anglo-saxão (em particular nos EUA), na Itália Tal projeto entretanto não se realizou. Pior, a fé na possibilidade
e na Alemanha. Nesse momento- que é também aquele, provisório, de uma de uma comunidade das ciências sociais encontra-se provavelmente mais
influência máxima dasAnna/es no mundo-, tudo parece poder- logo dever fraca hoje do que há quinze ou vinte anos. Para isso concorreram diversas
- tornar-se objeto de história. Tudo: a família, a sexualidade, as idades, as razões. O espetacular crescimento historiográfico desses anos foi gene­
crenças e os sentimentos, o simbólico e as representações, os confins roso, mas foi mal administrado. A multipliC3ção dos objetos, dos terrenos,
indecisos do biológico e do social, com um interesse mais acentuado pelas mas antes de tudo, das proposições foi a origem de tendências centrífugas.
fonnas sociais, que não se oferecem néccssari3.ffiente tais quais à leitura e Denunciada, reivindicada ou, mais freqüenterr.�nte ainda, aceita como um
à compreensão, precisamente aquelas que as ciências sociais se incumbiram fato, a "fragmentação da história" serviu, r.uito cedo, como sintoma para
de trazer à luz e interpretar. Nesse sentido� P'-"'<ie-se legitimamente pensar qualificar a nova desordem das coisas7 • A fórmllla registrava a prolifc­
que a aliança com elas toma a sucessão da antiga história das mentalidades, :ação dos interesses historicistas. Mas ela manifestava também que, no
da qual amplia o programa, as ambições e os me1os6 • Ela ganha forma de interior da disciplina, a unidade estava cienos assegurada. A própria
uma integração voluntarista: i:>asta prestar atenção às refrrências biblio- dinâmica da pesquisn convidava a formas de especialização mais

., •. J. ,: ·<5 .v ' ' • .


88 pASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 89
a�nçadas, que tornavam ao mesmo tempo a circulação da informação
sugestivo e irritante. Tudo se passa como se, apagados os antigos pontos
mans difícil (pense-se por exemplo na evolução da demografia histórica,
de referência, devêssemos agora tentar re.::onstruir um espaço pensável
simples modalidade da história social geral nos anos 60 que, duas tlécadas
para as ciências sociais. Essa rccon<;trução, entretanto, está apenas come­
depois, tornou-se un�a subdisciplina altamente técnica e fonementc auto­
çando, e é muito cedo para adivinhar hoje aonde ela nos conduzirá. O que
nomizada). Sobretudo, a cumulatividade dos resultados obtidcs pareceu
se·pode fazer, cm troca, é dar atenção às formas que ela adquire sob
mais e mais incerta. O próprio projeto de uma síntese integr2dora dus
r.:>ss::is olhos. A primeira é a de uma "rcdi<;ciplinarização" parcial. A
coahccimentos parecia assim qucstionada8 •
experiência dos anos 70 e 80 terá sido também a de uma maneira de
Essa evolução e esse diagnóstico serão próprios da disciplina his­
confusão dos gêneros. Se nada, no fundo, distingue a história da antro­
tórica? Não se pode assegurar. Será por acaso que, no mesmo momento,
pologia ou da sociologia, qual pode ser o lli.::ro tirado de seu confrontn?
numerosas ciências sociais se, propuseram 2 csiabclcccr um inventário ou
É preciso tornar novamente possíveis entre elas "diferenças de potenciais"
quê, mais significativamente ainda, operaram um retorno crítico sobre sua
(B. Lcpetit), que garantiriam uma circulação efetiva fundada sobre a
própria his 1,6ria? Sem dúvida a maior parte delas hesita cm reconhecer
autonomia e sobre a d:fercnça dos pontos de vista e dos procedimentos
for::nalmcntc que um tempo de perturbaçõc� e de dúvidas chegou, mas os
de trabalho'1. Não se trata então de tornar a corr,partimcntar o espaço
simomas da crise podem ser vistos por todo lado. Eles podem, cm cada
científi:.:o cm nnmc dos particularismos disciplinares, mas sim de abrir
caso, remeter às fo�mas e às contradições de uma história particular. Mas
-· cle:s devem também ser ligados ao próprio projeto de uma comunidade
nele uma pluralidade de projetos que nãe, se recc,br!::m um a outro. Essa
...
· ;:
Ja"' cii:ncias s0ciais, e isso, pelo menos, em cois nívei�.
segunda evolução cm curso parc--:c-mc contribuir para redefinir o papel
da histéria no seio das ciências sociais. Por muito tempo ela fo; pensada
.,,.
;,
O primeiro é aquele, bastante geral, da significação e d2 possibi­
lid:adc do projeto em si. Nascido na virada do sécuio - cm verdade,
como o lugar ecumênico da· síntese futura dos saberes sobre o homem,
ou, cm uma versão menos ambiciosa, como o lugar comum de suas
. �: enraizado nas grandes ideologias científicas do século XIX -, de era
exr,erimcn.tações. Em uma obra importante,. Jean-Claude Passeron,
� in..--:eparável da co;wicção de que uma inteligibilidade de conjunto de
reorquestrando uma temática webcriana, acaba de deslocar tal reflexão
� nossas socieuadcs era possível e que �la garantiria, ao mesmo tempo, a
�- coavcrgência - ao menos tendencial - dos procedimentos e dos resultados
insistindo sobre a historicidade comum ao conjunto das ci.ências sociais 10.

:1
..
' �,., dê!.:> ciências sociais. Tal convicção encontra-se abalada hú pelo menos
A afirmaç:io n::\c possui na�a de uma evidência do senso comum. Ela
propõe o reconhecimento da existência de um regime de cicntificidade
:'t1 vi.r:.1c anos. Nossas sociedades tornaram-se mais opacas cm relação a si
particular, diferente; daquele das ciências nomológicas, no qual o trabalho
m1::,;mas, incertas quanto a seu presente, seu futuro e, com isso, até �·rnnto
de interpretação é constantemente associ:ido à construção do objeto. A
a s:eu passado. No mesmo período, os grandes paradigmas unificadores,
partir de uma reflexão d<:ssc tipo, poderia ser encaminhado, cm termos
qu<;;- serviram de arquitetura englobante ao desenvolvimento das ciências
relativamente inéditos, nos próximos anos, o difícil diúlogo entre os
saçiais, desmoronaram, e com eles o mouclo iurcionalista que possuíam,
:1istoriadorcs e os praticantes profission:iis das outras ciências sociais.
gr�·,sso modo, cm comum. A história global (u:.i história total), cujo projeto
ha.-.-ia orientado os esforços de três gcraç&s de historiadores, viu-se
assim, ao menos provisoriamente, posta en1rc parênteses. Noras
O segundo nível é mais técnico. Entre :!" disciplinas menos seguras 1
G. \Veisz, Tlte E111ergc:11cc: of Modem Uni,•c:rsiti<5 i11 Fra1 1 cc, 1863- 1914, Prince1011,
di: si, de sua unidade, de suas finalidades, o regime da comunidade e da
1983; \V. R. Kcylor, l\cademy a11d Co1111111111::y: Tlte 1-'01111da1io11 of 1/te Fre1 1c/1
tn:,.::a alterou-se profundamente. A interdisci?lin�:ridade que parecia evi­ 1/istorical l'rofessio11. Cambridge, 1975; r-. K. Ringcr, Fic:lds of K11ow/edge. f-rench
<.:c::te, fosse qual fosse a via seguida par;i .:,?.:-rá-la, tornou-se problcmú­ Acadcmic Cullurc in Comparativc Pcrspcc1i·.:. 1890 - 1920, Cambridge - Paris,
ti<.--:.:., e talvez seja melhor assim. Daí a mul!iplicação das respostas. Vi­ 1992. Sobre ;1 sociologia, a ref'crência fund2mcn1:il conlinua sendo V. Karady,
ve.::11os cm um tempo de "anarquia epistemológica", ao mesmo tempo "Durkhcim, les scienccs socialcs el l'Univcr:;ité: bilan d'un semi-échcc", l/e1'11e
fra11çaise de sociologie, 1976, pp. 267-311.
90 PASSADOS RECOMPOSTOS

2 O texto de referência aqui é o artigo de F. Simiand, uMéthode historique et scicncc


TRÊS
so:ialc", Revue de syntlzese /ristoriq11e, 1903, pp. l-22 e 129-157.

3 F. Braudcl, "Histoirc et scicnccs socialcs: la longue duro;c", Annales ESC, XIII,


No Princípio Era o Direito ...
1958, reeditado cm Écrits sur l'/ristoirr., Paris, 1972, pp. 752-3 .
PATRICK NERHOT

l
• Cf.? guisa de exemplo o número especial das AntUJles, Histoire et str11c111re, 3-4,
1971. Um testemunho mais mediatizado.pode ser fornecido pelo balanço-programa
realizado por J.'Lc Goff e P. Nora na obra coletiva Faire de l'/ristoire, Paris, 1974,
3 volumes. Que a história tenha nascido do direíto nessa disputa entre o
verdadeiro e o falso, e que a questão da ver1ade 110 seio do pensamento
5 A. Burguicrc, "L'anthropologie historiquc", in J. Lc Goff, R . Chartier, J. Revcl
ocidental tenha inteira1�1e11te confundido os métodos histórico e jurídico,
(org.), La Nouvelle Histoirc, Paris, 1978, p . 61.
é o q1ie a enquete ilustra. Forma exclusiva do conhecimento da verdade
6
Desta continuidade encontraremos um testemunho significativo no artigo de J. Le
em nossas sociedades, ela se impõe sobre o ordálio ,,os primórdios de
Goff, "Lcs mcntalités. Une histoirc ambigüa", in J. Lc Goff e P. Nora (orgs.), Faire nosso segundo milênio, através da busca judiciária da verdade.
l"histoire, op. cit., Ili, pp. 75-(]1,
...;� E a história nasceu do direito. Nestes tcrmo·s é que seria con­
7
A íórmula apareceu pela primeira vez, até onde sei, na apresentação da "Bibliotéquc veniente estabelecer a relação entre a história e o direito, embora uma
dcs histoir-:s" (Gallir.1ard) por P. Nora, cm 1931: "Nós vivemos a cxplo�ão da
'
I'
tal formulação deixe pairar a pesada ambigüidadc de um "direito"
história..." Ela foi retomada, dessa vez cm chave po!-?.mica, por F. Dossc, "L'Histoirc
i:� en miettcs". Dos A111wles à La Nouvelle Histoire, Paris, La Dccouvcrte, 1987 .
presente desde sempre, sempre idêntico a si ..�esmo. O que é conve­
l�.. niente afirmar vigorosamente, entretanto, e que essa fórm-;ila possui a
!
,1,., " Ci. os dois editoriais sucessivos das A1111ales, "Histoirc ct sciences socialcs: un vantagem de indicar, é que o que nós identificámos pelo termo história
.;i,;l
. '-k wum:int critique", A1111ales ESC, XIII, 1988, pp. 291-3, e "Tcntons l'cxpériéncc", 6 nossc mudo de conhecer e de atestar o verdadeiro (o debate ocorrido
:,·..,..a..� ibid., 1989, pp.1317-23 . Ver também B . LcpctiL J. Rcvcl, "L'cxpcrimentation
há algum tempo na França, cujos participantes queriam definir a his­
.. ..
,:"
,,
·, .
wntre l'arbitraire", ibid., 1992, pp. 261-5.
tória como um romance, assimilar o método historico ao método ro­
manesco, era um enorme absurdo, notadamentc porque demonstrava
i\i • 1'-este ponto concordo com as refl-.:xõ..,s propostas por B. Lcpctit, "Propositions pour
o _trágico desconhecimento, da parte daqueles que defendiam essa
u:ie pratique rcstrcinte de l 'interdisciplinarité", Re,,-rue de synt/rese, 4 ª série, 3, 1990,
P?· 331-8 . hipótese, do lugar ocupado pela "história" na epistéme ocidental). Esse
modo de atestação e de reconhecimento do verdadeiro, portanto, re­
10
Jean-Claude Passeron, Le Raiso1111eme11t sociologiçue. L'espace 11011 poppérien d11
toma, retomou, é nossa tese, o(s) modo(s) de conhecer e de atestar o
rciso1111eme11t 11at11rel, Paris, Nathan, 1991.
verdadeiro próprio(s) ao método jurídico.
Se Michcl de Ccrtcau 1 podia considerar que a história moderna
ocidental começava com a distinção e a cisão entre presente e passado,
é porque, e antes de tudo na nossa opinião, o saber jurídico ocidental,
nisso aliado inseparável dos teólogos (podemos nos referir a csse(s)
tcmpo(s) que Jacques Lc Goff tão maravi!l10samcnte examinou cm seu
estudo sobre o nascimcn;o do purgatório), reescrevia seus mecanismos de
explicação causal identificando seus efeitos de sentido com uma estrutura,
totalmente cristã, do tcmpo2 .
r 92 PASSADOS RECOMPO�"TOS

Que a :1istória tenha nascido do direito nessa disputa entre o ver­


Quescõcs 93

caso para redesenhá-la cuidadosamente, repropor uma outra v;são que não
dadeiro e o falso, e que a questão da verdade no seio do pensamento seguiria com certeza a idéia clássica de umr. "linha divisória" entre o que
ocidental tenha inteiramente confundido os métodos histórico e jurídico, seria da ordem do religicso e da ordcn: do p,ofano por um:: leitura da
é o que a cnqucte ilu:,tra. Forma exclusiva do conhecime�t0 da verdade verdade. Principalmente por essas razões pretendemos, através de nossos
cm nossas sociedades, ela se impõe sobre o ordálio nos primérdios dl: trabalhos atuais e futuros, recomp0r. as temáticas epistemológicas e
nosso segundo milênio, através da busca judiciária da verdade. Demor.s­ hermenêuticas, recomposição que reescreveria outros princípios de dife­
trar nossa tese sobre a articulação entre história e direito é, desse modo, renças que não esses de uma exclusão, na enunciação-reconhecimento do
aventurar-se, primeira e fundamcntal�cntc, cm questões epistemológicas: verdadeiro, entre o que seria da ordem do sagrado e da ordem do profano.
é, com efeito, propor o problema da atestação e da aceitação dos modos Os juristas sempre se voltaram ao culto do "documento autêntico",
de enunciação da verdade no s�-io de nossas s0ciedaJcs. Quando a cnquetc via obrigatória da comprovação da verdade, mas que, evidentemente, e
se torna o modo dominante, primordial, de autentificar a verdade, de mesmo que isso hoje possa parecer obscuro, não podia ser percorrida senão
suscitar cm r;-utros t"!rmos esses materiais atravé.s dos quais se atesta uma quando já pudéssemos identificar um "texto" (lembremos, a propósi!o
verdade, então, talvez, algo que um dia reconheceremos como a "história" disso, ao eventual desatento, que interpretar "corretamente" um texto é
já existe, porém através de mecanismos que pertencem exclusivamente antes de tudo atestar esse "texto", quer dizer, enunciar as regras e proce­
às práticas jurídico-judiciários .. dimentos discursivos diversos pc!os quais se desvela "o" texto). Seja esse
:,;
. . .,
., termo "já", que ocupa um lugar tão particular na filosofia hermenêutica
1 ..
TJma n:)Va linha divisória entre sagrado e profano contemporânea e graças :;o qual tenta-se trad'Jzir os mc::ani<;mos cognitivos
,. Marc Bloch via no ano de 1681, data da publicação do De Diplo­ pelos quais se afirma a atestação de um sentido. Por esse termo "já", nessa
1
1 •• .
;>·
1 '- macica de Dom Mabillon, uma àata extremamente i111portantc para o perspectiva filosófica, entende-se estar sublinhada a idéia de um movimento
j1�7 pensamento, porque nessa ocasião estabelecia-se definitiv.::mente a c.;rítica perpétuo no princípio do sentido, isto é '. de mec�nismos segundo os quais
dos documentos de arquivo. Segundo uma síntese recente, as origens da compreender, interpretar, não consiste jamais em identificar pontos origi­
escola metódica dos historiadores JJi"Ofissionais, também nomeados nários (e seu equivalente que são os pontos de chegada), quer dizer, pontos
upositivistas", tornam-se mais claras se examinadas à luz dos eruditos do sempre !lrescntcs (parad::s do sentido) que bastaria então identificar na
sécu:o XVII, mais do que a partir dos escritos de Auguste Comte3 • Todos própria forma da presença, presença eterna, presença imutável, para atestar
têm razão certamente, entretanto é preciso perceber que tudo isso ocorre o verdadeiro. Tornar a pcí.::01.-er historicamente essa via equivale a abrir
porque a escola metódica saiu dos procedimentos da crítica textual (da esse espaço, nem acabado nem definido, a priori da ratio ocidental que
prática da dúvida metódica) na "leitura" dos testemunhos, quer dizer, poderia se esboçar a partir dos pontos de referência fundamentais que foram
desses saberes que participam da identificação do verdadeiro utilizados a exegese medieval e sua inseparável crítica "humanista", levada a cabo por
pcll1 método jurídico, desse modo efetivamente bem jurídico de atestar juristas como Lorcnzo Valla4 , e que repercutiria sobre o que Foucault
o s.:ntido "autêntico" de um texto. chamou período "clássico" ou a aventura solitária da linguagcm5 • Assim,
O projeto da modernidade sempre foi separar cuidadosamente o pensar essa relação entre história e direito obriga a uma reflexão que
que fosse da competência de um conhecimento científico autêntico (ne­ inscreve cm seu princípio a questão da racionalidade.
cessitado de uma auto-interrogação, que tr:·dicionalmente se chama
epi:-temologia) desse outro modo de saber, nã�1 mais ligado ao conheci­ Identidade de método
mento elas "leis naturais" do mundo, mas que é. também tradicionalmente, Uma tal reflexão não pode cm nenhum caso, todos terão compre­
:ipr.:scntado como estando ligado a cspccui.1çõcs cujos fundamentos endido, dar-se por satisfeita com a época contemporânea. Um filósofo
per.·.1ancccsscm principalmente teológicos. S1..., brc essa separação acha­ do direito escocês, N. MacCormick\ rara definir o método jurídico
mo:,; que seria conveniente nos interrogarmos, senão para negá-la cm todo adianta esses quatro r-ontos: a) pesquisar os fatos; b) interpretar os fatos;
94 PASSADOS RECOMPOSTOS ·
Quesiões () 5
c) interpretar as regras; d) apreciá-las cm rclaç:io ao conjunto dns regras Vejamos o exemplo da crítica textual "humanista" (que mais tarde
jurídicas consideradas como um sistema tanto qPanto sua integração nessa será identificada como a "filologia"). Ela se inscreve em uma perspectiva
ordem. Tainc, citado por Bourdé e Martin7 , já dizia, definindo o método
que permanece fundamentalmente cristã nú próprio momen_to em que
histórico e antecipando os Langlois e Seignobos: a) pesquisar os fatos; constrói suas oposições semânticas às leituras católicas. O historicismc,
b) classificá-los disting.;indo cada classe de fotos; c) defini-los; cl) esta­ já o dissemos, pretende estar traduzindo u:na verdade "atestada histori­
li
bc!eccr as rciaç6es de dependência entre as diversas definições para ver camente". Esse é o primeiro gesto fundamental de nossa filosofia herme­
cm que medida fo�mam um sistema. Notemos de passagem que os nêutica; ele retoma, já o dissemos, Heidegger e Derrid_a, mas se acom­
hcrmeneutas mais finos apreciarão que "a interpretação de um::. r'.!gra"
panha de uma outra distinção, fundamental, e que dessa vez nos é mais
entre os juristas tem por nome: "definição do.s f'ltos" entre os historia­
específica (apesar de nos sentirmos muito próximos do filósofo francês),
dores mas o que é, efetivamente, uma regra interpretada senão esse efeito
a distinção entre histfria e passado.
de sentido que já se introduz no que se chama "o fato"?
Como quer que seja, o método histórico. tal como se define já no História e passado
século XIX, é idêntico cm todos os pontos ao método jurídico atual
Quando se "escreve a história", o "sentido", a "realidade" são essas
(apresentado aliás muito dogmaticamente por um jurista que ainda por
variações significativas às quais se referia Michel de Certeau, e se ins­
cima pertcnc..: a uma ::scc!a ::ng!óf0nc1, definida tradicionalmente como
crevem a�sim, é banal dizê-lo hoje, r.uma linha, homogênea, do tempo,
completamente estranha às escolas continentais!. .. ) e essa identidade nos
traduzindo assim uma relação de causalidade (racionalidade formal): a
interroga vigorosamente. Tal identidade de méiodo, 1;ue H. G. Gadamer 8
dissipação do mistério, do tempo presente, pela instauraçãe,, no presente,
jamais percebeu, deve ser. pensada muito s.eriamentc e, longe de nos
de uma figuração ambivalente passado-futuro. Com cfe:to, o que sempre
cnvulvcr cm uma reflexão sobre a "modernidade", nos envolve ao con­
se perde de vista, sem dúvida porque isso parece realmente banal, é que
trário cm uma reflexão que trata da questão da racionalidade e que se
todas as nossas interrogações remetem sempre a uma só e mesma questão:
qualifica por três termos: ocidental, cristã, pré-moderna.
a que consiste cm identificar o que constitui realmente problema para o
Historicismo f'. historicidade ator histórico, a saber, seu própriG tempo! Se soubéssemos, sem a menor
ambigüidade possível, quem nós somos, se a questão do se11tido que é o
A questão da racional idade, assim colocada, não se reduz a
nosso já estivesse totalmente resolvida, estaria resolvida ao mesmo tempo
historicismo, mas se inscreve na questão da historicidade. Que se deve
a questão filosófica, por exemplo nessa forma particular que é a p<!Squisa
entender por tal distinção? Digamos antes de tudo, fiéis nisso à filosofia
histórica. É a razão pela qual um sentido, no presente, se dabora pela
hcmienêutica de Heidegger e D-.:rrida9 , que :l questão da historicidade
. ' . 10 constituição de um passado, se elabora n·essa variação ou diferença; nesse
pretende propor o problema do sentido corno "abertura d a 1m;tona " .
gesto hermenêutico, o presente não é jamais presente, mas já futuro. E
Cor:1 isso, distinguimos a questão da historicid::dc de todos esses conjun­
a questão do "limite" tal como surgi:i, nós 1-:!mbramos, nos diversos tra­
tos Je explicações históricas que "descreve.--:-:- ,·erdades p:issadas (histo­
balhos que tratavam de questões de métod0 nos anos 70 11 é uma tradução,
ricismo); fazemos, ao contrário, da questão co. historicidade o que toma entre outras possíveis, disso.
possível a enunciação dessas verdades, e ;;!. !faduzimos então como a Historicizamos assim o "atual" ou, o que dá no mesmo, efetuamos,
"al'crtura cio sentido". Tocamos aí a gr:ince questão de toda filosofia
no presente, efeitos de sentido (noções ue �situação", de "acontecimento",
hcm1enêutica; essa distinção é não apcn:is c-&,eencial no que concerne i:i
de "fato"), e isso só se pode fazer a partir de argumentos (cuja natureza,
enunciaçr10-rcconhecimcnto da verdade, mas ,:imbém pelo descarte tcó­
aqui, pouco importa) aos quais é reconhecido o estatuto de verdade. Nós
ric,, da hipótese relativista. Esse postulac. ja "abertura da história" fazemos acontecer alguma coisa, que podemos chamar o acontecimento
introduz efetivamente à hipótese ele "condiç'x-s de possibilidade" para a (poderíamos também chamá-lo "fato", "situação" ... ); nesse gesto, só o
enunciação-reconhecimento ele toda proposiç;j0 de verdade. esp:rito :::streito pode ver o triunfo cio pensamento subjetivista, pois se
96 PASS1\DOS RECOMPO�TOS
Q11esiões 97
trata de n;ida menos que da experiência da racionalidade ocidental, desse Um processo de sentido de uma escrita indica fundamentalmente
raciocínio pelo qual um sentido (presente) se elabora, articulando um aquilo por que uma verdade se atesta (nüSSo "texto"). Se no5 referirmos
passado (testemunho de uma verdade, e tudo est:í n:ssa atestação eviden­ ainda à experiência do j�rista, o conceito de ,egra (onipotência da "norma"
temente), e já valendo como um futuro previsível. n·a cabeça do jurista contemporâneo) se exprime como uma projeção no
futuro (comportamentos prc�critos e então autorizados, proibidos...) pela
Nas fontes da racionalidade ocidental � qual comportamentos serão qualificados, a partir da reconstrução de pas­
Dessa historicidade, abertura d;:i história, que está no princípio dos sados, e valer�o como o sentido (presente) da regra. Um passado_ é passado
signos que atestam e pelos quais se reconhece a verdade do mundo, desco­ desde que é sentido, atestação de um presente; o passado permanece fun­
brimos as primeiras formas históricas nesses s:ibcres dos teólogos e dos damentalmente testemunho do presente, r,e, presente, mas notemos bem
juristas, para quem apenas p,;a escrita se chc:gari:i. a verdade do mundo, que todavia, que um presente não pode pretender um sentido senão através
recompunham cm outros termos uma linguagem de signos, redesenhavam os dessa diferença, desde que é inferido de um passado. O passado está no
contornos (diferenças) do "texto": é preciso se repensar aqui, cm particular, princípio do sentido, dissipa o mistério do presente, faz então oconcr o
o que foi a exegese medieval como o signo do que nós chamávamos ainda acontecimento: eis o que propõe como problenw filosófico a questão da
(,á pouso "experiência da racionalidade ocidental", onde o texto tornava-se "história", e compreendemos ainda um pouco melhor como a reflexão

.,....:1�, uma articulação entre o Antigo e o Novo Tr.stamcnto, onde esses signos
2nunciavam, enunciavam graças à construção dessa leitura tão específica
epistcmo;ógica t:stá intima111cr,tc ligada à reflexão hem:enêutica.

que foi n hermenêutica da "doutrina dos quatro sentidos" da sacra scrip 111ra.

..�·
A questão da tradição
.,, Aqui o "sentido literal'" era o Antigo Testamento, o que quer dizer "his­ Nossa rápida apresentação do alcance filosófico de todo disc.urso
�� tória", ou seja, relato verdadeiro de acontecimentos passados, mas ele não histórico, nos dirão, já está bem densa, senão pesada, maciça, mas nos
-�
:'
era sentido se/Ião enqua//to articulado no Novo Testamento, isto é, a essas permitiremos incluir um novo problema que _não podemos deixar de
-�· três interpretações que eram a alegoria, a moral e a nnagogia 12. mencionar nesse muito, por demais, rápido trabalho, e que é o problema
: �·i
Começa então algo de decisivo pa.a a racionalidade ocidental, onde ria tradição. Queremos insistir sobre esse ponto, pois é �ssa própria idéia
1 ·n
. i.;,, se inscrevem todas as nossas batalhas (historicismos) do sentido e que que c�tá no princípio C:a hermenêutica desenvolvida pelos historiadores,
�­
1} convida, e começamos a entrever por quê, a jamais afastar demais da talvez também, por vezes, sem dar muita atenção, hermenêutica sem a
l ·;:
t�I reflexão epistemológica a reflexão hermenêutica. qual eles seguramente nüo escreveriam a história tal como a escrevem.
Um passado é um transporte de sentido: a partir do momc:1to cm Existe, de fato, uma idéia bem banal para nossa cultura, qpc consiste cm
que se trata de enunciar o sentido (de um escrito, portanto de um traço dizer que o "isso que somos" já está escrito no que nos é anterior, que,
':uc já anuncia sentido), um passado é inferido, por mais discreta qu<.: em outros termos, somos esse resultado de um passado, que nos formou,
?ossa ser essa inferência (tal como, por cxcmp!,1 . "a história da palavra"); deformou, e com o qual é preciso negociar _iá que queremos dar conta de
istl) ocorre sempre, e nessa inferência rccnc'-1 :1tramos nossa questão da -nós mesmos", de nossa ''identidade". O passado é de al6 um m:>do esse
�história", que se situa então, cm nossa perspectiva, 110 próprio princípio -necessário" já que se discute a questão de nosso presente. Como nossa
de 11111a reflexão epistemológica. Um jurista, por exemplo, seria absolu­ perspectiva hermenêutica aborda essa questão?
:amcnte incapaz de trabalhar do modo comc.., '-' faz sem nossa "história": Se, como vimos, o passado faz ocorrer, tal como definimos esse
ess:1 proposição que, na base dos postu!ados que enunciamos, corre o processo, o acontecimento, então se dissoh·e o conceito de "tradição",
�isco de parecer uma redundância, pretende .:-m verdade sublinhar que enquanto esse processo ele sentido tal comü ele pretende ser e que rapi­
esses materiais que o jurista aciona no cxcí<:'.cio cotidiano e por vezes jamcntc apresentamos. A tradição seria é'fetivamcntc esse pedaço de
;:mito modesto de seu ofício são a cxprcss:lo cio que uma sociedade sentido que chegaria .:;azinho e inteiro até .. nós", "hoje", configurando
�cconhe.::c co;·.10 o qt..:: participa da atestação e da cnunciaçfto ela verdade. assim - ligando, co::10 uma espécie de transcendr.ncia, o observador que
98 PJ\SSAOOS RECOMPOSTOS
Q11estões 99

serí:imos - o sentido autêntico, filosofia da história, que vale como a o "ator" renasce, não é sob a forma de um nco-subjetivismo, assim como
verdade (nosso presente). Porque a tradiçfi.o jamais chega sozinha, porque pretendemos afastar, por essa crítica à o,ltolog!a, a referência objetivista.
a fazemos chegar, diríamos, dessa tão c.nraiz ... da hermenêutica da tiadição, Pela concepção que esboçamos do "passado", longe de postular um
que da é o mundo da grande ilusão. A tradição é sem dúvida um "tes­ sempre cognoscível (identidade, meta.física da presença), concebemos, ao
temunho", ela não é "ide:llcgia", a tradição é e�sc passado tal como o contrário, o processo hermenêutico c0mo a enunciação de regras, prin­
definimos, quer dizer, condição de p0ssibilidade onde se inscreve nossa cípios etc., que se aplicam. É porque nosso "presente" se abre à pr0blt,­
racionalidade ocidental; a tradição desse modo não depende da elocu­ mática, à questão do sentido, que um pa:,sado é invocado e já nos ensina,
bração, e o trabalho do jurista (leiamos, igualmente, do historiador) o "nós", nos informa sobre "nós mesmos".
demonstra todos os d_ias, mas ela pcrmancc.e um testemunho para uma A hermenêutica assim concebida redesenha um espaço que escapa
autentificação de um presente, ela é um mecanismo específico da nossa à evidência dc��c vestígio, a modernidade, que a filosofia alemã quis
civilização cristã para suscitar efeitos de senticio. Sem dúvida captaremos identificar - a partir de Kant -, recompõe os materiais pelos quais ela
verdade na escrita do passado, é esse, de reste, o postulado de par•.ida, , rcspor.dc à questão do sentido, atesta traços que exprimem ·estes lermos
o objeto de nossa racionalidade, mas nesse mecanismo de sentido, o que mais ou menos precisos, mais uu menos claros, de "pré-moderno", "cris­
está em jogo é a questão da "história", que nos faz penetrar no mistério tão", "racionalidade", que no entanto já orientam nosso conceito de his­
'•7, do presente mais do que no "sauido" rio pass::ido. tória; da reescreve esse "texto" que permite construir as certezas e as
,..,l
provas, reinstaura ritmos históricos etc., como efeitos de sentido. A his­
A racionalidade, uma experiênci,, um movimento
tória é uma especulação que abre para o mistério do prescntc14 ; tentamos
A história é um processo que constrói e o passado, um objeto identificar, através desses estudos de epistemoloi:;ia e de hermenêutica,
... .. construído. A história é nossa experiência da racionalidade na sua ten­ uma forma, a de um passado (já futuro entretanto) suspenso à abertura
f.· t;itiva de dizer o verdadeiro, ela é urr. sentido que se constrói como um do sentido. É, assim, muito ilusório conceber o passado como esse objeto
�i
,,,. "a posteriori". No ato de dizer o verdadeira, o sentido é projeção de inerte, sempre semelhante, disponível, presl!ntc passado e passado presen­
·ti passados, "efeitos de sentido", que atestam ess.a misteriosa certeza de um te, essa forma universal que taóos os homens de todos os tempos, de todos
,,�-1.!:
presc,1tc, "nós", "hoje". O scntidc, é, pois, a ['ecomposição de passados, os séculos, de todos os continentes e de todas as civilizações teriam
·��i
desvelados, fugitivos efeitos de sentido cntret:3.nto e que são os testemu­ sempre reconhecido da mesnia maneira.
:-�t:i
;1,, .

nhos de uma enciuctc cujos atores só se rccoc.hcccm a posteriori: movi­ Um processo de sentido não se cumpre senão cm um esp1ço já aberto,
mento sem "origem" e sem "fim" (o que não significa necessariamente dizíamos, que chamamos historicidade. A filosofia do dirl:ito, que é também
sem objetivo), cadeia ini1,tcrrupla de significantes. filosofia da "História", se dedica à interrogação dessa historicidade.
Estamos no próprio âmago da reflexão h·ermcnêutica contemporânea Historicidade e historicismo nos convidam a nos interrogar sobre esse
e. para concluir nossa conversa, podemos rapic:imcnte evocá-la a partir de --texto" onde está escrita nossa vcrdodc do mundo (sempre única quando
um conceito essencial que encontramos cm ?articular cm Heidegger e ela se afirma, sempre plural e polêmica tão logo afirmada). Este ponto é
Gadamer 13 • Referimo-nos, no início de nosso rs::xto, à historicidade, "abc1- essencial: a questão da historicidade supõe um só "texto", que abriga a
tur:1 da história", historicidade que terá sido r_:-.3duzida por esses dois filó­ verdade do mundo, a questão da Históri:1. O relativismo, para dizer de modo
sofos como "espera", "horizonte de espera". E.,1 nossa concepção, a idéia simples, fica assim fora de propósi,o. Uma filosofia do direito, da "Histó­
de espera é abandonada cm proveito da de �oovimcnto", o que significa ria", se interroga assim particul:�rmenic sobre a diferença (sempre renova­
que não há um passado que já, sempre já presente, indique (o sentido). da) oralidade-escrita, que engaja nossa experiência da racionalidade e ocupa
Queremos reconhecer o princípio do sentido _-,1mo o que se constrói sem um espaço singular, e que vê a noção de causa corresponder ao efeito de
ponto de partida e sem J)OIIIO de c/ie},,Ufa (�e:éis", C01110 O presente), por­ sentido, ou leitura, de uma escrita (hcnnenêutica) que (rc)constituímos no
tanto, como um p;·occsso que já é movimcntl.."'. E se cm nossa concepção ex,Jlt) mom n nto cm que "descobrimos'· o sentido (clesvclamento).
1 i Questõe� \01

maneira essencial, o que se reconhece, o que se reconhecia (vestígios em


História e direito parte também perdidos), como a história e o direito.
Essa historicidade é traduzida por css::.s construções, história real
do mundo, da qual quisemos reconhecer um momento decisivo em uma
conjunção entre juridicismo e teologia. Q•.ie o Ocidente cristão, pré­ Notas
mojcrno, renove as experiências da racionalidade, nós i,1duzimos forte­ 1 L'Écriture de l'l,istoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 9.

mente desses signos que são as cstrµturas ten.,porárias, esses segmentos


� Não é fácil falar cm tão poucas páginas do que constitu;, j:í há vários anos,
de tempo linear, dotados de sentido (causalidade). "Historia est reremi
um aspecto essencial de nosso trabalho. A questão da história atravessa,
ges1ar11m narratio", dizia Hugucs de Saint-Victor; o verdadeiro se prova efetivamente, 111ais ou menos conscicnt.:mente, mais ou.menos explicitamente,
por princípios que rcr,,nstroem o pa:,sado e se estrutura como um relato, nossas pesquisas de filo:;ofia do direito. Remetemos aqui a nossas publica­
gesta temporum; a história é assim uma representação, descriptio ções, que puderam tratar estas questões de maneira menos alusiva: P. Ncrhot
temj.':Jntm, mas ela é também e finalmente uma certeza, temporum (org.), lnterpretatio11 a1ul re ality. Essays irz Epistemology, Her111e11�111ic� a,,d
certitudo; a cronologia tornou-se uma preocupação constante, obsedante, Jurisprnde11ce, Dordrecht-Boston-Londrcs, Kluwers Acadcrnics Publishers,
1990, cm particular páginas 193-226; Legal K11owledge a11d Analogy. Frag­
de -.im tempo tomado integralmente mensurá,·el, uma medida única (que
mentes a/ L�gal Epistemology, Her111e11eu1ics a11d Li11guistics, Dordrccht­
nos anuncia já a racional idade filológica). Boston-Londrcs, Kluwcrs Academics Publishers, 1991, cm particular páginas
Se o "Ocidente cristão, racional, pré-moderno" é esse "Texto" 183-1 CJS. P. Ncrhot, /l Dir:110, lo scrillo, il senso. Saggio di Er111e11e11tica
paricular, à leitura do qual se exercem a epistemologia e a !1ermenêutica,
t Giuridica, Ferrara, Corso EéitorP., : 992; uova ed:ção modificada, Pádua,
então uma tal especificidade se inscreve nessa indisscciabilidadc entre Cedam, 1994; Law, Wrili11g, Mea11i11g. An Essay i11 Legal Hermeneutics,
Edimburgo, Edinburgh University Prcss, 1992; L'ipotesi perduta dclla legge,
méwdo histórico e método jurídico. Os conhecimentos diversos e sempre
Pádua, Cedam, 1994.
renovados que participaram, que ainda participam, do que reconhecemos
como a história, são inseparáveis desses conhecimentos que eram, que :; G. Bourdé e 1-1. Martin, Les Écoles Historiques, Paris, Lc .3euil, 1983
'p. 8?-·
são. opcrames no método jurídico. A história não se separa em nada deste
méwdo, tudo o que se reconhece como o pensamento ocidental na ex­ ' Por exemplo, seu c::lebre Traité :/e la do11a1io11 de Co11s1a11ti11, tradução francesa
periência da racionalidade traduz exatamente essa indistinção entre a por A. Bonncau, Paris, 1879; texto entretanto incompleto, sendo a versão inglesa
superior: Tire Trcatise o/ Lore11zo Valia 011 the Do1ratio11 o/ Co11sta111i11e, C.B.
his,ória e o direito. Ainda uma vez, o fato de o ofício do historiador ter
Colcman, Yale Univcrsity Prcss-, 1922. J.B. Giard acaba de publicar uma n0va
suas regras, que não coincidem forçosamente com as rc;ras que um versão francesa desse tratado com uma introdução de Carlu Ginzburg. O melhor
jurista pode utilizar, remete a um problema, diferente, que não tínhamos exemplo que podemos oferecer dessa crítica textual humanista é a demonstração
a intenção de tratar; e a dogmática jurídica se afastará muitas vezes de que Valia faz da impostura que representava esse documento a partir do tcrmc
nu::1erosas regras que o historiador consider;.:7:í como essenciais ao cxcr­ "Augusto"; podemos também remeter a nosso estudo, Lm,1 Writi11g, Mea11i 11 g, ;\ 11
Essay i11 Legal Nem1 e11e111ics, op. cit., pp. lú�- 109.
cíc:o honesto de sua profissão (pensemos ..-specialmentc no papel da
ficção cm certos raciocínios jurídicos). Michel Foucault, Les Mots el les c/zoses, Puis. Gallimard, 1966.
A experiência da racionalidade ociden::il. e essa será a nossa con­
clc.são, tal como tentam traduzi-la as pc·�?cctivas hermenêuticas e n Nosso scmin,írio de filosofia do direito no lnstitm.:i Universitário Europeu, fevereiro
epistemológicas, se apresenta como :sses sai:--::-rcs, sempre renovados, que de 1989.
cc::heccm e reconhecem, instituem e interpr,:-1am esses signos que cons­
Op. cit., p. 1 OS.
tit:.2c111 u111 "Texto" (que não é o livro), que :1ão é jamais desde sempre
e cesdc já dado a ler, 111as que se institui cor:10 u111a escrita cujos modos ' Remelemos ;1qui essencialmente a sua obra \la,:.! et mér/rvdc (traduç:io francesa),
de '.citt.�a lhe s::io constitutivos e nos quais ?articipam, participaram de Paris, Lc Scui:, 1976.
102 PASSADOS RECOMPOSTOS.
Questões 103

'' Heidegger, Étre et temps, Paris, Gallimard, 19S6; Q11estio11s, 1-IV, Gallimard, 1968;
c orresponde ao que é lido. Essa aventura solitária da linguagem é já um
Qu'est-ce q11'1111e c/1ose, Galliniard, 1971; C/rémiJ1s qui 11e 111i:11e111 11111/e pari,
positivismo, e muito precisamente pela razão que in:licamos. Para um estudo
Gallimard, 1962. Jacques iJcrrida, L'Écriture el la différe11ce, Lc Seuil, l<l67; De
sistemático da exegese medieval, remelemos cv'dentcmcnte a 1-1. de Lubac, Exégese
ln gra111111ntologie, Éd. de Minuit, 1Ç72; Marges d<? la p/rilosop/rie, Éd. de Minuit,
medieval, Les Quatre Se11s de L'Écriture, Aubier-Mcntaignc, 1961, 4 volumes.
1972; Ln Dissé111inatio11, Lc Seuil, 1972. Li111i1ed /1:k, versão francesa, Éd. Galiléc,
Para essa "hermenêutica do olhar", chamemo-la assim, remetemos a nosso último
1987. Se Jacques Derrida, com su� filosofia hcrmenêu,ica, retoma a especulação
trab:ilho, L'ipotesi perduta dei/a Legge, op. cir., 1994.
filosófica de Heidegger, dela ele se separa profundamente por rechaçar sistema­
ticamente tod:: "metafísica da presença", a ponto, de resto, de se poder dizer que 13 Être et temps, op. cit.; Verdade e método, op. cit.
°
a "desconstrução" começada pelo filósofo francês é uma espécie de anti­
hermenêutica heidcggcriana. 1" Os notários, parn dar um exemplo bem simples, cm particular os notários
1" Tomemos o exemplo utilizado por Heidegger cm Ché111i11s qui 11e 111i:11en111111/e pari, florentinos, mas não apenas esses, cscrcviar.' passados sob a forma de um relato
que retomava em t�dos os pontos a 111a,1eira de se escreverem os contratos.
op. cil.: "A ciência (... ) não é um advento inaugural da verdade, mas sempre a
exploração de uma região do verdadeiro já abcrt:i, o que se faz conccber.'.lo e
fundando (no modo da prova) como exato o que, cm sua esfera, mostra-se como
t:il de um modo possível e necessário". Sempre para confrontar, muito csqucmatica­
rnc1,tc esse fi;ósofo com Jacques Dcrrida, o que c,·idcntcmcntc criaria um problc­
t ll13 p:ira este último, cm uma rcfi"cxão comu a qul ll,1zc:11os aqui, é esse algo que
'I"
�e mostra... cm sua esfera. J::í hf! de algum modo significado, o que o filósofo
:!.
francês não aceitaria porque, para c!c, os n·.cca� i!.,nos do �entido não remetem
senão a uma só cadeia ele significantes. Esse último dirá, de resto, referindo-se aos

... .: tr:i:.ialhos do filóscfo alemão: (é) "a determinação do ser cm presença ou cm é1a111ité
(fato d·c estar sendo) que é integrada pelo pensamento da diferença. Tal questão

�l n:io pode surgir e se deixar compreender sem que se abra ... a diferença do ser cm
relação ao sendo. Primeira conseqüência: a difcrcnç.a não existe". Jacques Dcrrida,
l:i;

�,
�ii Marges de la plrilosop/1ie, op. cit., p. 22.
1;;
-1:
.;i j 11 Michel de Ccrteau, L'Écriture de l'/risloire, op. ci1.; Michcl f-oucaull, L'Arc/réologie
J11 savoir, Gallimard, 1969.

12 O leitor ter;í compreendido que nosso "sentido literal" é sensivc:mentc diferente


do "sentido literal" da sacra scrip111ra. Este sentido literal, que é instituído por
nossa exegese, é, com efeito, o "relato de acontecimentos verdadeiros"; cm outros
termos, ele pretende opor-se a esses outros relatos. evidentemente contemporâneos
,':1 anteriores ao telllpo tia exegese, que mistura·-��, indiferentemente o que podia
ser toJ11ado por verdadeiro e o que era complctarr:enlc imaginado. tkssa medida,
c·ssc sentido literal concerne ao que consideramo;; hoje como a "história". Ele
pertencia portanto ao que reconhecemos hoje como pertencente ao domínio da
epistemologia, não era já então o que identificamo:; hoje como um "sentido literal",
que não traduz scn:io uma só hermenêutica. [ss:i <;Jestão do "sentido literal", mais
uma vez como a entendemos hoje, só surgirá q�Jndo a escrita do mundo for a
t'�crit:1 de um livro: os primeiros trabalhos de Fc_:ault poderiam ser retomados a
partir dessa �:,ave, quando o que é visto for j:í un:� .:scrita, o que é lido, "aventura
�olitária da linguagem", dizia esse filósofo, o que t;;lvcz não esteja totalmente exato
cm sua formulação. pois a linguagem é um texro q1•� enuncia que o que é vis/o
QUATRC

Pode a Filosofia
Escapar da História?
PASCAL ENGEl

Há, e/li filosofia, 11111 certo número ue problel/las que, embora suas
formulações diviljam So!gundo os autores, as escolas, os estilos de pe11-
same/lto e as épocas, têm uma situação basrante permanente ou durável
para que possamos reconhecê-los, apesar da variedade de fornw.',1ções
e respostas. Por mais diversas que elas scjom segundo os contextos
históricos, essas respostas apresentam similaridades suficientes para que
possamos ainda hoje COlllpr<!endê-las e �valiá-las, e dizer se as co11Si­
1: deralllos corretas ou não.
,.
1

A meu ver, a filosofia pode se cumprir sem que se faça necessa­


5:
.,
riamente história da filosofia. Esta declaração, para muitos escandalosa,
me parece profundamente banal. Para precisar ll)CU ponto de vista, ten­
tarei, de modo esquemático, defender duas idéias. A prir.1eira é a de que
fazer filosofia não é essencialmente uma atividade ele historiador, mas
uma atividade de busca da verdade, ainda que se trate de um tipo de
_, ....-erdade específico, de ordcni sobretudo conceituai e não empírica ou
-f:! demonstrativa. A segunda é que um dos meios de se chegar a esse gênero
de verdade - mas de modo algum o único - é ler os au1nres do passado,
:iinda que essa leitura não tçnha um objetivo principalmente histórico,
mas argumentativo: ela visa avaliar as teses desses autores para observar
se élas podem contribuir ainda para nossa compreensão dos problemas
à:1 filosofia, que süo, cm uma medida muito ;lmpla, indc;Jcnden'.cs de suas
f,xmulaçõcs específicas ao longo da história dessa disciplina.
A cultura filosófica contemporânea, ao menos na França e na maior
�:lflc dos países europeus (cm particul:ir na Alemanha e na Itália), é quase
tütalmentc histórica. O ensino da filosofia consiste, cm sua maior parte, cm
um ensino da história da filosofia, e mesmo quando um curso ganha um
:::;;pecto um pouco "sistcmútico", o mestre e seus alunos se sentem um
pouco perdidos quando se navega sem referência ao que X ou Y (tal grande
figura da históri.:: da filosofia) disse sobre o n<;sunlo. O curso é melhor
106 PASSADOS RECOMPOSTOS Q11cs1õcs 107

comprer.ndido e recebido se ele se chama (por exemplo) "o problema do também as ciências, a literatura, a crítica Ji«erária ou artística, os discursos
conhecimento em X" ou "a questão inoral de X a Y ". Os programas dos religiosos e a teologia etc. Pode ser o historiador de uma doutrina filosó­
exames e dos conc�1rsos testam principaimente a aptidã0 dos candidatos a fi,:;a única, singularizada por um aULor, importante ou não, trate-se de
conhecer os "grandes autores" dessa história. A maior parte dos exercícios Descartes ou de um "pequeno cartesiano�, ciu de uma escola como o
propostos são cxplica�ões de textos, e quandc- eles têm que escrever "dis­ estoicismo. Pode praticar diforcnte.; tipos de história. Pode, como os
sertações", fica implícito que sc•1s raciocínios deverão se apoiar nesses grandes historiadores alemães do século XIX, realizar uma história sis­
grandes a;.itores, e propor alguma coisa como uma perspectiva histórica. Os temática, visando tratar a obra como um nodo articul_ado e orgânico, um
estudantes assimilaram esse estilo tão totalmente, que se acreditam ainda sistema. Pode ser partidário de um tipo de história estruturalista, como
hoje Obrigados a propor dissertações Cl,l três !)artes, cada uma "fazendo aquela ilustrada brilhantemente pela escola de Gueroult. Pode ser um
falar", como um ver.tríloquo, um grande autor, e a última oferecendo em historiador h� 16eliano, para quem cada obra é a encarnação do devir da
geral a última palavra a alguma grande figura contemporânea - segundo Idéia. Pode ser heideggeriano, e pensar que analisa a história da metafísica
as épocas Nietzsche, Marx, Freud, Heidegger ou Husserl. Quando cu seguia, como "história" do esquecimento do ser. P0dc ainda rejeitar toda análise
na Sorbonnc, o curso de Ferdinand Alquié, um desses grandes mestres da sistemática, e se consagrar principalmente à análise de textos isolados.
instituição, ele dizia, desde a primeira aula, que não se critica um grande :'luma palavra, poderá praticar a história segundo tal on tal método, e ser
. ;t. filosofo, m.is que àcvemo:; si.npiesrncl'.te aprender ::i lê-lo. O concurso de um mais ou menos bom historiador. Mas o que quer que faça, admite-se
':]: agrégation testa principalmente a capacidade de dominar a história da
....
,•: 1
em geral que ele faz i:ma história filosófica da filosofia.

..
filosofia. Ásperos confrontos opõem os �x...mii,adcres para saber "quem" Portanto, história da filosofia não é simplcsml!ntt; um meio de fazer
,. i
estará no programa, e muitas vezes é a consagração de uma carreira quando filosofia, é a meio certo, o único possível. Algun:; historiadores da filosofia

..:..,�l. o "seu" autor atinge o estatuto de "autor de agrégation". Quando um se perguntam se pode haver uma história científica da filosofia, que não
,:

estudante escolhe um assunto de dissertação ou de tese, ele se propõe o recorra, implicitamen!e, às opções filosóficzs próprias do historiador. Outros
i,.s".: exame da obra de X, ou do problema Z "em X". Se ele entrar mais tarde pensam que não é possível. Mas qualquer cpJe seja a resposta a essa pergun­

...� -1
,•
n:? profissão de professor e pesquisador, ele es.'.:rcver:í artigos e livros sobre ta, não há salvação fora da história. Apenas ela garante a seriedade, apenas
., ,1

I( ;;
,:1
: 12 1 autor, sobre tal questão cm X ou Y. Quando escrever artigos que não ela nos oferece alguma coisa tangível, :!'·:iliável e ensinável. Isso não
� ::; i
sejam explicitamente históricos, seu estilo ser5 contudo implicitamente tal. significa que na França só éxistam filósofos que se consagram à história
;::1''�ii:.,
•.1, .

Em face de um prvbkma dado, ele não se perguntará: "Que resposta de sua disciplina, que não existam autores a.riginais que sãc bastante indife­
p0derei dar a este problema?" ou "Tal proposição filosófica será verdadei­ rentes à necessidade de inscrever seu trab:tlho cm uma tradição, e capazes
r.i?", mas sim: "Que resposta o grande filósofo X deu a este problema?". de escrever livros relativamente liberados cios constrangimentos do comen­
Ele pratican'í muitas vezes o método da "iIL'-Criçfio": por exemplo, frente tário e da análise históric:-i. Mas esses auto,:-es são raros, e são, as mais das
à questão da causalidade, ele buscará inscre,·,:,r a contribuição de X ou de vezes, mais "pensadores" do que filósofos ::io sentido acadêmico do termo.
Y no conjunto das concepções da caus;ilid�.::.-:: consirlerado sob o ângulo Quando escreveram trabalhos históricos a.._71es de desenvolver "suas pró­
dl:' um relato histórico 1• Pode-se responder q-:.ic tais práticas exegéticas e prias idéias", tende-se freqüentemente a p•ensar que eles se perderam, ex­
d:.' comentário não fazem necessariamente d.!quclcs que as têm historiado­ traviaram um pouco, que teria sido melhor :,::.e permanecessem historiadores.
rt":S, preocupados em descrever a letra das doutrinas e cm situá-Ias numa
p·:.'rspcctiva histórica. Nosso e:,tudantc dis?-."-e, notoriamente, de muitas Fora da história: elogio do "st?nso com.um. crítico"
n::rnciras de fazer história da filosofia. Ele po.:le ser um simples doxógrafo, Esta preeminência da história com,:, garantia de seriedade cxplica­
r,·1:itando as opiniões dos filósofos ilustres. Pode ser um historiador das se, se pensarmos na situação contempori_7ea da filosofia entre as outras
idéias, atento li m::incira como elas .. asccm, � propagam, morrem e rcnas­ disciplinas. Fora algumas brilhantes exceç,:-,es, os filósofos, mais ou menos
c,em através de •ipos de discurso que nflo incluem somente a filosofia, mas ., parti1 de Kant, não sflo mais cientist:2.s. Sua formaçüo é, cm geral,
108
T
PASSADOS RECOMPOS OS Questões 109

::ssencialmentc literária, e o sistema das "duas culturas" atingiu, na França, a :avor das quais, ou contra as quais, os filósofo� do passado apresentaram
proporções inquietantes. Um filósofo q:.ic se interessar pelas ciências razões ou objeções, e a favor cias quais, ou contra as quais, nós podemos
granjeará sua credibilidade como filósofo, cm geral, de sua familiaridade apresentar razões e objeções. Essas questões mertcem ser ainda discutidas
co!l1 outra disciplina: será também matemático, biólogo, ou lógico (de e retomadas, porque não estão resolvidas, e ainda nos solicitam. Refiro­
preferência, uma ciência "dura") e, caso mais comum, precisamente me a questões como as da relação entr::: o mental e o físico, da natureza
historiador de sua disciplina "secundária" (que se to,nará também, muitü:; e da existência dos universais, da origem e da possibilidade do conhe­
vezes, sua d·isciplina primeira). Nada fo:a do normal: ::. filosofia é uma cimento, da natureza da significação, da realidade do$ valores morais, do
disciplina muito vaga cm suas fronteiras, muito pouco segura de seus tempo e da mudança, das entidades materiais e das entidades matemáticas,
resultados e de seus métodos, para poder se desenvolver sem referência e assim por diante. Algumas dc�sas questões apresentam, sem dúvida, em
a um discurso julr�ado mais "cie:1tífico", mais -sério". Precisa de um tutor. certas épocas e cm certos contextos, um aspecto mais problemático que
Quando o filósofo tiver formação exclusivamente literária, de onde retirará cm outros, e existem diferenças de acento. Certos problemas assumem
.:1 garantia da seriedade? De seu conhecimcnw profundo de uma língua, nomes diferentes segundo as épocas, ou são menos marc3i,tes que outros.
o grego, o latim, o árabe, ou m:tra, de seu conhecimento filológico, uma Mas, sejam quais· forem as diferenças, existe um fundo comum,
série de domínios que estarão, novamente, a serviço da história, a única reconhecível, algo que eu não recearia chamar de philosophia pere1111is,
:;I disciplina entre as ciências "-humanas" que parece haver resistido ao se este termo não estivesse t:io :011o•ado. H:í também um fundo comum
·'!''
ceticismo que inspiram ainda a psicologia, a lingüística ou a sociologia. de respostas: é possível, apesar da variedade de formas que tomam essas
..
:t',
,
Não lamento esse · estado de coisas. Ele permite que nossos alunos teses, caracterizar de inar.eiru tram,-hi:,tóri:a o que é o empirismo, o
'i
estejam, quando comparados aos que se formaram em outras tradições, platonismo, o nominalismo, o utilitarismo, o realismo ou o ideali�mo cm
,.
., ,.

1
bem mais informados quanto às obras do pa..."-Satlo, e lhes fornece uma diversos domínios. E existe uma maneira comum de proceder: os filósofos
��
cultura muito mais profunda Ele ainda foi o responsável pela produção propõem argumentos em aµoio a uma tese oµ contra ela, e a validade

'
il de tratalhos admiráveis, que fazem hoje d:i escola francesa cm história desses argumentos pode ser avaliada. No ent:mto, a filosofia não é a
1;,; da filosofia uma das melhures do mundo. Lamento apenas que tal estado ciência: ela não pode trazer, cm geral, uma confirmação empírica de suas
..
.·ujj"
de coisas seja exclusivo, que se tenha a impressão de c;ue não é possível teses, nem pode demonstrá-las matematicamente. Existem, entretanto,


-.!!li se fazer filosofia rigorosa fora das disciplinas bistóricas, e que toda saída cânones de raciocínio: são ·os que a lógic:i nos oferece. Neste sentido, as
para fora desse território seja vista como u:n mergulho perigoso nos justifr::ações das teses filosóficas não são retóricas. Contudo, um
abismos da especulação desenfreada, ou na express�:) ideológica ou argumento não consiste apenas em regras lógi�as que respeitamos para
religiosa. Pois existe, parece-me, uma outra m'"-',eira de se fazer filosofia, delas tirarmos conclusões: as premissas podem ser mais ou menos
sem por isso se tornar um "pensador"ou um de::;:ses "filósofos e <.:scritorcs" plausíveis, as conclusões, mais ou menos acreditáveis. Devemos cc:tificar­
que assinam as p,íginas culturais dos jorn:iis. T:il maneira repousa sobre nos de que as premissas não são recusJdas pelo adversário, sem o que
as seguintes idéias (banais). Há, cm filosi.:;:'i:i, um certo número de faremos uma petição ele princípio, m:is essas premissas devem também
problemas que, embora suas formulações divirj.:im segundo os autores, as ser admissíveis. Por quais critérios? Só vejo três: o senso comum, a
escolas, os estilos de pensamento e as épocas. iêm uma situação bastante ciência, e algo mais difuso, que podemos denominar a possibilidade
permanente ou durável para que poss:11�10s reconhecê-los, apesar da conceptual. Como Pcircc, eu creio que a filosofia e a ciência se fundam
variedade das formulações e das respostas. Po� mais diversas que sejam, num "senso comum crítico". Isso não faz da filosofia e da ciência dis­
segundo os contextos históricos, essas rcspost.l.S :-iprcscntam similaridades ciplinas idênticas: quando muito, pode-se esperar certa· cnntinuidadc entre
suficientes para que possamos ainda hoj� co::-.?reenclê-las e avaliá-las, e as duas. A investigação filosófica produz, na maioria das vezes, teses
dizer se as consideramos corretas ou n:10. É ?Ossívcl extraí-las de seu conceituais ou a priori, determinando o que nós pensamos cm geral e o
contexto, e discuti-las, considerando-as como teses, teorias, ou conjecturas que é p0.,sívcl pensar. Este senso do p-:-ssívcl (e cio impossível) conceituai,
T
J 10 PASSADOS RECOMPOS OS Questões 111

do pensável, é o que distingue a filosofia das ciências, e a aproxima da reinventando o estilo e a prática dos filósofos medievais, tão depreciados
lógica, e, às vezes, também da ficção científica. As experiências de desde a Renascença? E sobretudo, ela nãc confundirá, sob a aparência de
pensamento são, muitas vezes, o melhor :ncio de cxplorrr as p0ssibilidadcs uma investigação "intemporal" relativa à verdade de teses e de análises
conceituais. Mas isso não subtrai a filosofia à crítica, permitindo-lhe julgadas pertinentes por uma escola de pensamento, sua figura histórica
inventar qualquer possibilidac!e: só a argumentação serve de garantia particular com a philosophia pere11nis? É inegável que os problemas técnicos
in:ersubjetiva da correção das idéias. mencionados acima adquiriram sua forma numa tradição, que seu ..:aráter
Acabo de descrever cm grandes linhas as idéias de base de uma certa "urgente" ou "digno de interesse" está muito ligado aos interesses temporais
concepção racionalista da filosofia. Os principais defensores desta concep­ de uma comunidade de pesquisadores num momento determinado. Mas isso
ção, no universo intelectual de hoje, pa recem-me ser os filósofos "analí­ não implica que essas questões, por mais antiquadas que possam parecer,
ticos". Eles acr<,ditam que existe algo como ter ou não ter razão cm filo­ estejam ser; relação com a;; questões mais perenes. Tomemos, por exemplo,
sofia, que se podem enunciar teses e submetê-las à crítica, que quanto mais 0 problema dos enunciados condicionais contrafactuais, do tipo se p fosse
se é claro e argumentativo no estilo, tanto mais se terá oportunidarlc de ser 0 caso, então q seria o caso. Os filósofos analíticos se perguntam qual é
criticado e, por conseguinte, de ir para a frente. A tradição contemporânea, a semântica desses enunciados, isto é, em que condições são verdadeiros
que remonta a Fregc e a Russell, me parece uma das melhores encarnações
.l
ou falsos. Isso parece ser uma questão de pura lingüística. Mas implica
cie:s:-e estiio. O., filós')fo5 dcs<;a tr.:::dição trabalham, cm geral, mais na escala também problemas muito tradicionais: o da natureza do possível, por
1-\
"I' .
do artigo que na do livro: pretendem produzir contribuições curtas sobre oposição ao real, e o d(I natureza de todas as noções que a isso se ligam:
..
i.::L,,•i1 assuntos específicos que, cm geral, recebem re!"?Ostas, e o debate pode se as de potencialidade e de ato, de disposição, de r.iodalidade, mas também

--·� ·
,
, li
dc:senvolver. Um artigo é tanto mais importante quanto maior o número de
: ·:; éiscussões qcc suscitou. O filósofo analítico não se considera um gênio,
a do papel dos condicionais cm nossa compreensão das ações e das
..,_.. , .'
'
nem sente a necessidade de sê-lo. Não procura produzir um sistema, nem
decisões, ou ainda da avaliação da probabilidade de um acontecimento.
Quem diria que essas questões não são "'gran_des qucstõ�s" filosófica�?
ser um "autor". O que ele visa é sobretudo ao reconhecimento de uma }'osso prever a resposta de um filósofo formado na tradição historicista
contribuição a um trabalho coletivo 2. descrita acima. Ele admitirá que essas questões siio bem tradicionais, mas
contestará que ainda possam ser propostas hoje, justamente porque, em
Questões "já resoivià::is"? sua opinião, essas questões· não podem mais ter, no contexto presente, o
Quais são as ']UC!::tõcs sobre as quais es:;,cs filósofos discutem? Se sentido que possuíam na filosofia antiga ou clássica.
abrinnos uma revista de filosofia analítica, le�cmos artigos sobre (por Nisso reside talvez a divergência mais prvfunda entre o filósofo
exemplo) os condicion:iis contrafactuais, os p:?radoxos sorites, a teoria continental típico e o filósofo analítico típico. O primeiro sustenta a tese
funcionalista dos estados mentais, a teoria disposicional do valor, os cérebros mctafilosófica seguinte: os problemas filosóficos "tradicionais" coloca­
cm tinas, a teoria combinatória das possibilida..:cs, os relatos de atitudes vam-se apenas no contexto histórico no qual ainda tinham um sentido,
pro;-,1sicionais, ou o predicado "vrcu" de Gooc:-:1:rn, temas estes que nãu isto é, no qual a filosofia era conccbid:1 como uma busca da verdade,
dirãl) nada ao leigo, e que farão com que ele � pergunte como pode se segundo uma perspectiva que um kantiano descreveria como "dogmática"
tratar, neles, dos "grandes problemas" de que falei acima. Não devemos nos e não crítica; mas nós não podemos mais. depois de Kant (Hegel, Marx,
iluc:r: a filosofia é hoje uma disciplina muito t.:'-cnica, e a maneira como Nietzsche, Heidegger), colol:ar os r,roble:nas assim. É por isso que, aos
os filósofos analíticos discutem ,:s "grandes" qu<-�tõcs parece muitas vezes olhos dos filósofos pós �pós-kantianos. pós-hegelianos etc.), a atitude
sepultá-las sob discussões de detalhe, que se 3figurarão aos olhos dos analítica é essencialmente ingênua, de uma ingenuidade que ignora
lci:,,�cs exteriores como perfeitamente escolás1t,·.1s. 1\ palavra cst,í dita: a precisamente a inscrição histórica dos poblcmas e sua caducidade. O
tr.:..:i,::f10 analítica contemporânea, CC"ll sua prctc�:-r10 de tratar de questões filósofo analítico reivindica, ao contrário. esta ingenuidade. Ele sustenta
cono:idcradas independentemente de seus antcccJ�ntcs históricos, não estará a tcs� mctafilosófica inversa: por mais iotcrcssantcs e convincentes que
r' 112 PASSADOS RECOMPOSTOS Q11escões 1 13

r,:>ssam ser as posições "críticas" cm filosofia propostas desde Kant, e por


mais historicamente determinadas que sejam as questões sobre as quais A histórh como jurisprudência
os filósofos discutem, essas posições críticas não foram estabelecidas, e Se adctarmos a atitude qut: descrevi, a hi.-;tória da filosofia não é
nã0 mostram de m odo algum que problemas como o dos universais, da o tribunal de segunda instância, ou mesmo o supremo tribunal de justiça
realidade do mundo exterior etc., cessam de se propGr ou, por se proporem dos problemas filosóficos; nem o lribur.al de primeira instância (ou, pelo
" dogmaticamcnie", são insolúveis. Ele também n::o admite que essa� menos, o único tribunal de primeira instância). Podemos levantar questões
questões cessem de se propor porque t-.:riam sido rcs:)lvidas. Michcl filo.,;óficas, e tentar responder, sem nos referirmos nc�essariamente aos
Serres diz que os filósofos analíticos só propõem questões "já resolvidas", grandes filósofos do passado. Esta atitude tem sido muitas vezes ilustrada
pois ele reconhece, cm certas problemáticas contemporâneas analíticas, pelos filósofos analíticos. Alguns dele-;, com_o A. J. Ayer ou W.V.O.
questões que sua ,cultura histórisa o leva a julgar datadas, discutidas ad Quine, cxcluír:un essa disciplina dos departamentos em que ensinavam.
nauseam nos séculos passados. Mas, mesmo que a falta de cultura histórica Em conseqüência, seus alunos e seus discípulos discutiram de preferência
P,Ossa dar aos estudantes formados na tradição analítica a falsa impressão as teses de Aycr e de Quine, ou de seus contemporâneos i,nedialos! Não
de lidar com um problema novo, cm nome de que se pode dizer que esses creio que, com isso, a filosofia lcnh:1 necessariamente perdido, salvo,
problemas foram "resolvidos"? Em que, por exemplo, o problema do evidentemente, quando essa atitude era imitada por filósofos de menor
sentido dos nomes próprios, o da natureza aas essências, ou o da indução, envergadura. Mas, fi,1.ilmenlc, cm que P.sta s:tuação difere da maneira como
··1;,.,.r t' <'. respeito dos quais os filósofos analíticos ainda discutem asperamente, as escolas filosóficas se constituíam no passado? Contudo, essa atitude
!,;',
for;:.m resolvidos 3? Não é porque 1iossa cultura histórica nos faz reco­ voluntariamente anistórica é uma ficçã0: º" filósofos discutem quase sempre
h; f nhecer que um problema já foi tratado por filósofos do passado, sob uma as teses dos outros filósofos, quer sejam � não afastados no tempo, e os
forma mais ou menos semelhante, ou mais ou menos diferente, que temos filósofos analíticos não fogem a esta regra: muitas vezes, encontramos neles
o direito de dizer que esse problema já rcceteu uma solução, :)U q:.ic a referências ao que disseram os autores do passaqo, no próprio contexto de
abundâ:i.cia das discussões passadas que não alcançaram resultados suas discussões acerca de questões "contemporâneas". Não se trata de negar
l.i,1fíveis prova que é inúiil continuar discutindo sobre ele. De fato,
Serres adota uma atitude positivista: ele pcns:i que o� problemas filo­
sóficos que não foram resolvidos pela ciência só podem ser problemas
t a história. Isso equivale a reconhecer a valãd:ir!c do ponto de vista histori­
cista, que eu estou critic.ando aqui? Não, pois tudo depende da maneira
como se faz essa discussão. Para retomar 2 metáfora jurídica, direi que as
met2.físicos vãos, que não é necessário cxamin:ir de novo. E os historia­ teses dos outros filósofos e as do passaào deveriam ser, para um autor
dor<'.'.s que pensam que não vale a pena retomar este ou '.'.qucle problema coi1temporâneo, a jurisprudência cm filosofia 4• OP.vcmos nos referir a elas,
tradicional justamente porque já foi discutido. adotam implicitamente, mas essas teses Hão estão, por assim dizer, fechadas sob a relação "X j,í
ou 2. idéia de que esse problema já recebeu uma solução satis[Jtória cm disse que p..., e é inútil voltar a isso" (o ql!e se pode chamar de fechcme!llo
cerco autor, ou então a idéia de que c�sas qucstócs não têm solução. Não histórico). A jurisprudência evolui, ú medida que se apresentam novos
digl' que essas possibilidades devam ser excluís:as. Mas não vejo cm que casos (que, muito freqüentemente, vêm da ciência, ma� também das outras
isso foi mostrado. De fato, cu também suspeito que, cm filosofia, a formas de saber e prática). Pode-se modifid-la, e cada filósofo se r,sforça
maioria das respostas aos problemas tradicion:1is é conhecida. Sabe-se, por contribuir para a jurisprudência. Mas da não está fechada.
por exemplo, qual é a resposta "r('alista" ao problema dos universais, Esta concepção jurisprudcncial é, muitas vezes, criticada. Ela tende
qual é a resposta "nominalista". Mas isto n;it, significa que a questão a levar os filósofos analíticos a fazerem c0mo se tal tese, suponhamos de
tcnh:i sido resolvida, nem que não s� possa fazer progressos cm sua Aristóteles, pudesse ainda ser avaliacb, e=1 termos contemporâneos, um
cor::?rccnsão. O progresso cm filosofia se ;;:cndc muito raramente �1 pouco como se Aristóteles tivesse puo::.:-aJo recentemente um artigo
natl!rcza das posições e das teses defendidas. Prende-se ú natureza dos numa rcvisia, e pudesse se Jispor a nos :csponder cm nossos próprios
mécç,dos, das estratégias de argumentação. termos. Como dizia maldosamente o his1oriador da filosofia Michael
n1
,1 114 PASSADOS RECOMPO�-ros Qi1escões 115

f.J ! · Ayers, :! respeito do filósofo analítico Jonathan Bcnnctt, que se tornou


famoso nesse tipo de leitura, princip:iimentc a propósito de Locke, Berke­
ley, Hume e Espinosa, isso equivale a fazer como se compreender esses
forma de anacronismo, mas um verdadeiro erro sobre a própria natureza
do pensamento de 0ccam. De um lado, por<.JUC, para ele, esse pensamento
é inseparável de sua teologia, e de outro, porque o próprio "mundo" de
autores não fosse mais difícil, ou mais fácil, que compreender o próprio

n, ·
que falava 0ccam não pode, segundo ele, ser o mesmo de que fala o
I3ennett 5• É inegável que isso ieva a distorçées. Critica-se, por exemplo, filósofo de hoje: "Nós argumcntaruos longamente, cm outro lugar, contra
certo intérprete de Aristóteles, que procura u tilizar as categorias da lógica a idéia de uma continuidade fcnomcnológ:ca do mundo, e contra o
i: 1 contemporânea para compreender a lógica e a metafísica deste último, ou
que confronta as teses de Aristóteles a respeito da alma com teses contem­
preconceito a favor da realidade que leva, cm nossa opinião, indevida­
mente, ;: crer que os Antigos viam o mundo como nós o vemos. Nosso
porâneas, como o funcionalismo e a te0ria materialista da identidade do relativismo histórico se prende ao fato de que toda tese é, para nós,
espírito e do corpo 6• É evidente que os intérpretes podem cometer erros, relativa ao .illlndo que a viu nascer e a reclama, ao mesmo tempo, para
e que tal ou tal reconstrução de uma doutrina do passado em termos ser 1111111do. O relativismo bem compreendido é um holismo, e, por esta
contemporâneos pode ser julgada incorreta, porque não se apli:::a à letra razão, é também descontinuista". (De Libera, ibid., p. 161.)
de um autor, ou deforma seu verdadeiro pen...s;amento - caso possa ser Tem-se a impressão de se estar lendo um texto de Kuhn sobre os
mostrado que essas reconstruções são infiéis. Eu diria que depende dos ?aradigmas, ou de Foucault sobre a descontinuidade das epistemai. Com
casos, dos tipos de recon:;trnção. Mas temos também, freqüentemente, a �feito, a posição defendida aqui é claramente um relativismo. No entanto,
impressão de que é a p1ópria idéia de uma reconstrução, ou de uma embora, notoriamente, o historiado, possa ser levado para o relativismo
reinterpretação, de uma doutr:na do pas�aco e;.:1 tf'rmos contemporâneos, e para o descontinuismo, não é de modo algum evidente que esta posição
ou mesmo simplesmente de uma confrontaç-5o entre as doutrinas do seja filosoficamente justificada. Ela repousa na idéia de que existem,
passado e os pontos de vista presentes, que é ilegítima, um pouco como segundo épocas ou segmentos variados, "esquemas conceptuais" ou de
se não se pudesse compreeendcr o universo de pensamento de um filósofo pensamento, i11trad11zíveis no idioma de "outro" esquema, e que, por
senão do interior, e como se a única base de medida ela verdade das teses conseguinte, não há referente único dos discursos cm questão: De Libera
de um filósofo fosse o próprio autor, e o contexto do saber que lhe era parece ignorar que esta idéia foi criticada vigorosamente por numerosos
contemporâneo. filósofos contemporâneos 8. Nii.o procurarc: :1qui repetir esses ·argumentos.
Bastará uma ilustração intuit"iva. Quando Aristóteles fala da lua, designa
Contra o relativismo por acaso um astro diferente daquele de que nós falar.1os hoje? Indis­
Encontra-se um exemplo bastante paradigmático dessa atituc..le na cutivelmente, ele tem uma ·visão do mundo "sublunar" inteiramente
recente reação do historiador da filosofia medieval Alain de Libera a um diferente da que nós temos hoje, e mesmo aqueles de nossos contcm­
livro do historiador "analítico" da filosofia Claude Panaccio sobr'! porfmcos que ignoram t!1do da astronomia têm dele uma visão totalmente
Guillaume d'0ccam 7. Panaceia propõe uma leic:na de 0ccam que permite distinta da que tinham os Antigos. Mas ser:í que disso resulta que estes não
confrontar seus pontos de vista com os· problemas da filosofia analíti..:a estavam falando da mesma coisa? Existe, é verdade, um sentido, ao qual,
de hoje, em particular no que diz respeito à questão do nominalismo, à s,rovavclmentc, de Libera faz alusão, cm que as propriedades que atribuímos
e.la referência dos signos, ou à da linguagem mental. Desde o início, ele 3 um objeto fazem deste um objeto diferente, se lhe atribuirmos outras
admite separar essas questões das posições de O.:carn cm teologia, e poder ?ropriedades contraditórias com as primeiras. Por exemplo, é possível
avaliar aquelas independentemente dcst:is. P:?.ra ele, o importante em ::icrcditar, neste sentido, que o doutor Jckyll e Mr. Hydc são dois indivíduos
filosofia é a formulação e a avaliação de tcs�. e é porque os filósofos distintos. ou que a estrela da tarde não é a e:-trela da manhã. Mas este não
do passado formularam tais teses, que a hist1..·�ia é possível e tem uma ,é o caso cm relação à lua de que falavam os A n. tigos. Eles não a confundiam
significação filosófica, já que se p,1dc "traduzi-1::!s num idioma filosófico com outro planeta. Talvez dissessem coisas distintas de nós (e falsas), mas
de hoje". De !....ibera vê, nessa maneira de !)•�")ceder, não somente uma :ião se enganavam quanto ao referente. Nesre sentido, é falso dizer que o
116 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 11 7

mundo de Aristóteles era totalmente diferente do nosso, e que nós não heidcggcriano entende por Dasei11, porque não vivo no mesmo "universo"
estamos falando da mesma coisa. de pensamento. Ora, por mais difícil que possa ser para mim, creio poder
Devem existir muitos objetos e �ropriedades para os quais se dá compreender o que ele cnlcndc com isso, e criticá-lo. Desconfio que os
a 1,1esma coisa, e isso basta para garantir uma compreensão num grande que sustentam o contrário acreditam que a discussão racional é impossível,
número de casos, já que podemos tradu:,:ir o grego. De Libera responderia e que só é possível a exegese histórica do que foi pensado..
provavelmente que, se isso é talvez verdade para objetos mundano.; Nada disto implica que não haja incompreensões, causadas muitas
habituais, é muito menos certo para os ubjetos teóricos, ou pelo menos vezes pela ignorância da história do pensamento. Se nãó podemos fazer
não empíricos·, de que se trata em filosofia: a alma, o corpo, ou os filosofia totalmente livres da gravidade, desligados de qualquer conheci­
universais. Mas, mesmo que Aristóteles tivesse uma concepção da alma mento histórico, é igualmente r.rrado n0s privarmos do que disseram os
totalmente diferr,,tc da nossa, 0u da de Descartes, deve-se deduzir que autores do passad0, pois isso ainda pode nos servir e ser fonte permanente
ele não estava falando da mesma coisa? Quando os gregos diziam que de inspiração. Existe contudo um bom uso da história cm filosofia, que
,) medo está nos joelhos, designavam por acaso uma emoção tão consiste em supor que os filósofos do passado procuraram visar a verdade
prnfundamentc distinta? Afinal de contas, eram humanos, e não primatas, e dar razões do que eles afirmam, q11c o que nós fazemos não é muito
não tão diferentes, genética e biologicamente, de nós. Se um marciano diferente, e que é isso que nos permite nos comunicarmos com eles, para
ou um leão pudessem nos falar, !)Ode ser, corno dizia Wittgenstcin, que além da história 10 •
nós não pudéssemos compreendê-los. Mas existe uma continuidade
cognitiva, natural, suficiente para que possamos coinpara�, compreender,
Notas
e discutir as opiniões dos humanos do passado. Sem o que, duvido que
1 Devo essa observação a J. Proust, cm sua ir.tradução ao número de Philosophie,
a própria história fosse possível, se levássemos o relativismo até a
35, 1992, sobre Philosophic contincntalc ct philosophic analytiquc.
"descontinuidade fenomenal" de que fala de Libera. Quanto ao "holismo"
que ek invoca, parece-me ou trivial ou absurdo. Se o holismo significa 2 Uma boa ilustração das diferenças entre este estilo e o das práticas "continentais"
que existem laços de interdependência recíproca entre as teses de um correntes é o número de pessoas a quem, cm geral, o autor de um artigo
filósofo cm diversos domínios, e entre sua ohra e a d.:! seus contempo­ agradece. Uma anedota o relembra. Há alguns anos, uma polêmica opôs o
filósofo americano J. Searlc e J. Dcrrida. Scarlc criticava, de modo efetive> e
râneos, quem o negaria? Mas se o holismo significa que a "realidade" de
breve, algumas proposições fantasistas que Derrida fazia a respeito da teoria dos
que fala um filósofo é sempre interna ao "mundo" que ele r,labora e ao atos de linguagem de Austin. Dcrrida respondeu num longo texto empolado, e,
que elaboram seus contemporftncos, não vejo como dis:inguir a filosofia sobretudo, tendo notado que Scarlc, no fim de scJ artigo, agradecia a alguns
da literatura, que, ela também, constrói "mundos" coerentes. colegas e amigos por suas observações. fez como se estivesse respondendo, não
É possível compreender as teses de Occam sobre a semântica a um indivíduo, e sim a uma sociedade anônima; daí o título de sua r-:sposta,
Limiled Jnk Uogo de palavras!) (cf. J. Dcrrida. Li111i1ed /11k, Pnris, Galiléc, 1990,
independentemente de sua teologia, ou a:, de Descartes sobre a metafísica
e J. Scarlc, Po11r réilérer les différc1:.:es, trad. fr. J. Proust, Combas, L'Éclat,
independentemente de sua física? ProvaYelm.:ntc não, se nós nos interes­
1990). No fundo, Dcrrida estava surpreso com o fatc, de se poder escrever cm
., 1 sarmos unicamente por Occam, por Descarte.s. O que cu reivindico é o comum com v;írias pessoas, elaborar os textos num trabalho mais ou menos
direito de separar certas teses de outras par:1 avaliá-las. Ora, é evidente coletivo. Sua reação era bem típica da atitude dos filósofos continentais, para
que as teorias de Occam sobre a :,cmântica ::iinda podem ser discutidas os quais se escreve sozinho (como foi notado freqüentemente, foram os filósofos
pelos contemporâneos. Se não p'.ldcsscm sê-lc-. as críticas que os contem­ que mais insistiram na ",norte do au10r", que finalmente se encon1rara111 mais
depressa na condição de "autores").
porâneos dirigiram ü teoria das suposições. por exemplo, não teriam
nenhum sentido '1• Pi0r ainda, a discussão r;:iciona! dentro do próprio 3
L:m de meus colegas me fez observar, um dia. que a teoria segundo a qual o sentido
conrexto contemporâneo também não teria nenhum sentido. Pois isso dos nomes próprios é dado por uma descrição definida "j:í" se encontrava cm
sigr.;ficari:1 que cu não posso, por exemplo. compreender o que um Antíste,,c. Em si, a observação é intcre� 0 antc. Mas o que é que ela prova? Que

j 1
118 PASSADOS RECOMPOSTOS Quescões l 19

Rus.s;:11 teve predecessores? Quem o negaria? Que, porque 11ihil 11ovi s11b sole, não n. 189, Universidade do Québcc cm Montreal, 1994), que aborda os mesmos temas,
vale a pena discutir disso? Leibniz rc:ata que mostraram a Casaubon a Sorbo1111e e defende, muito mais claramente do guc cu faço aqui, idéias similares, através de uma
dizendo-lhe: "Aqui se tem discutido durarite scculos", e que ele rc::pondcu: "O que resposta a de Libera. Só posso, pois, recomendar a leitura de seu ensaio.
foi que concluíram?". O fatu de que as discussões cm filosofia não chegam a uma
conclusão significa, por acaso, que elas nunca chegarão a uma conclusão? Está
errado. O acordo e o progresso podem ser obtiú<1s cm certos pontos. Por exemplo,
hoje conhecemos as implicações da teoria do sentido dos nomes próprios como
descri-.õcs muito melhor que há vinte séculos.

• Tiro esta terminologia de 1. lshiguro, "La philüsophic analytique et l'histoire de


la philosophi!:", Critiq11e, 1981, número espcci:11 sobre Les p/rilosvphes a11glo­
saxo11s par eux-111ê111es.

5 M . .-\yers, "Analytical philosophy and the history of philosophy", in J. I'.ée, M. Aycrs


e A. Westoby (cd.), Philosophy a,ul its Past, Bri�hton, 1 !Jrvcstcr Press, 1978, p. 54.

• A orimeira c,í1ica foi dirigida a J. Vuillcmin a propósito de seu livro De la logique


º
à la théologie, Pari5, Flammarion, ; 96 /. Por 111;,a reviravolta bastante irónica das
coisas, foi o próprio J. V:iillcmin que me criticou no segundo ponto, quando cu
aprovava O. Charles por ter" cor.,id<:radc Aristó,clc� como 11111 "materialista não
reducionista" (cf. O. Charles,Aristote's Plrilosophy ofAc1io11, Londres, Ouckworth,
19S5, e 111inha resenha deste livro, "Aristote ct la philosophie de l'action", L'Ãge
de la scie11ce, III, 1990).

7 C. Panaccio, Les Mots, les Co11cepls e/ les Choses. La sé111a111ique de G11illm1111e


d'Occam et le 110111i11alis111e d' aujourd' /rui, 1'1ontrca! e Paris, Bcllarmin e Yrin,
1991. A. de Lib.:ra, "Retour d.: la philosophic médiévale?", Le Débnt, n. 72, 1992,
pp. 155-169. Não é por acaso que tomo o exemplo de um filósofo "escolástico":
como vimos acirna, existem similaridades ind uvidáveis (menos a teologia,
jusiamcnte) entre o estilo das discussões escolástic:is e o da filosofia analítica
contemporânea, e, na minha opinião, essas similaridades sflo positivas. É por isso
que estou ainda mais espantado porque um historiador que quer, como de Libera,
fazer "retorno" à Idade Média, insiste tanto, ao contr:írio, na desco111i1111idadc cm
relação à filosofia contemporânea, quando é ju�tamcnte css:i continuidade que me
i n:,rcssiona.

s Em particular D. Davidson, "On lhe vcry idca ot a conceptual scheme", in lnq11iries


i11r,> Ji-111/, mui /11terprctatio11, Oxford, 1984. tr:id. ír. P. Engcl, E11q11étes s11r la
vérité cl l'i111erpré1a1io11, Nimcs, J. Ch:imbon. 1993.

·• Por cxc111plo, P. T. Gcach, Uefere11ce wul Gc11crality, C,1íncll University Prcss, 1962
� ; •168.

1
" Quando cu estava acabando a rcdaç�o deste :migo, 1,)111Ci conhecimento do de C.
P:rn:iccio, "[,..: la rcconstruction cn histoirc de la ;·'.1ilosophie" (Calriers d'épistémologie, '
1.

111
CINCO

Os Efeitos Retroativos
da Edição Sobre a Pesquisa
CLAUDE LANGLO/S

Não existe pesquisa histórica sem livro que lhe publique os resul­
tados. Que estratégias 11111· historiador ansioso por publicar dese11volve
para ati11gir um público mais amplo que seus pares, 1111111 mercado editoria,f
• 1
complexo e diversificado? Às custas da pesq111sa histórica?

��-;,1':,
·,j
�:"J:�.
Aus ol!10s Je nossos colega<; do setc,r científico, nós oulros, his­
toriadores, somos tidos por originais, pois, para divulgarmos nossas
pesquisas, não �ecorrcmos c!Jrii;atoriamente às revistas cor:1 com:tê in­
ternacional de leitura, necessariamente escritas em inglês, mas lemos a
f" presunção de publicar livros em francês. e até mesmo de sustentar que
:·� ' aí se encontra o csc;encial do trabalho científico que produzimos. Nós
1a �
t:.
fazemos questão do livro, portanto da edição, pela própria natureza de
�;p nossa disciplina, que exige, vale lembrar, que a dcmonstraçã0 passe
,,, li prioritariamente pela narração.
�!lj
�n.
r.·' Acrescentemos a essa especialidade disciplinar uma p��ticulari­
dade bem nacional, que também nos torna suspeitos: na França, a
história interessa um grande público, ela se vende bem, é comprada em
revistas, cm livros de bolso, cm coleções de luxo. Sem dúvida, os
editores se queixam regularmente da conjuntura advcrsa 1 , da concor­
rência infernal da fotocópia, do gosto escasso dos jovens pela leitura
I etc. /\pesar disso, o fato é que o fr:mc<?s gosta dos livros de história,
i' que os professores universitários sabem disso, e qu-: acabou de vez o
tempo da separação dos gêneros: aos historiadores convencionais ou
"alimentares", as grandes tiragens. ao� historiadores universitários, a
magra história -:icnlífica 2 .
Depois de lembrar essas evidênci:is, explicitemos a questão que

i ,:
nos é proposta: esta conjuntura euitu=::il estruturalmente favorável à
hi!:lória tem sobre a pesquisa efeitos induzidos? Efeitos rc•.roativos?
Sfcitos perversos? Ou 1,cnhum efeito? Dcix:indo-sc claro que o interesse

1;
122 PASSADOS RECOMPO�í"OS
Questões I 23

ü., "cultural" pela história teria, de maneira global, um efeito "mais para Receamos que a resposta a esta última pergunta seja negativa, porque
favorável", para falar a Iinguager.1 das sondagens. nem todas as "histórias" são igu<!lmentc vulgarizáveis, nem todos os setores
� Todavia, se aceitarmos :-iartir do ponto de vista pessoal do histo­ ou todos os períodos intercss<'m igualmente o público, porque, enfim, a
riador, a abordagem é diferente. Este último deseja inicialmente ser inovação verdadeira custa a abrir caminho. Mas o "efeito público" não rege
public.ado; se possível, sê-lc "bem", isto é, pelos cuidados de um editor tudo. Existem setores protegidos, dentro 1; fora da Universidade. Iruaginc­
.:om suas próprias instalações; cm seguida, ter uma "boa crítica"; ser lido, mos, por exemplo, uma instituição bem ;:quinhoada, que asscgu1..: a um
é evidente, portanto, ter uma boa tiragem; ser lido por muito tempo, se pequeno número de pesquisado�cs selecionados a possi�ilidade de dedicar
possí ..·el, portanto, entrar numa coleção de bolso; enfim ser vulgarizado, a sua pesquisa um tempo bastante generoso, e que, após a defesa da tese,
por si próprio e por outrem: duas gi'.rantias são melhores que uma! E a lhes ofereça a possibilidade de editá-la integralmente numa coleção de
pesquisa nisso tudo?, dir-sc-á. Tomemos apenas um exemplo: o que é prestígi,o . Tudo leva a pensai que, nessas condições, não haverá penúria no
mais importante, nessa perspectiva? Uma crític.a fundamentada e sem campo científico coberto por essa instituição, se, além do mais, forem
complacência numa revista francesa, ou mesmo americana; ;Jrestigiosa, regularmente oferecidos cargos aos que tiverem seguido esse caminho
que upareccrá três anos após a publicação da obra, ou alguns artigos glorioso4 . Imaginemo� agora uma instituição de tipo bem diferente, antiga,
necess.ariamentc rápidos emle Monde, Le Figaro e alguns hebdomadários, mas sempre prestigiosa, envelhecida, mas que guardou no país uma influ­
CjU� ?rovocar:i:> c:n colegas e jovcos pesquisadnres a vontade imediata de ência real, que não pode viver sem manter uma relação íntima e renovada
lê-Ia? O prazer um tanto solitário de contemplar pilhas de exemplares não com seu passado e, particularmente, com suas origens, embora, muitas
vendidos de uma obra que você de<;ejava prc'.iuzir, mas que não se vende, vezes, ela tenha tido dificuldade cm deixar os pesquisadores exercerem sua
ou a possibilidade de escrever um manual, que lhe permitirá fazer conhe­ profissão em total independência, que dispõe, além do mais, de editoras
cer st.:as idéias a um grande público de estudantes? próprias, relativamente indcpencicntes, e, no que concerne a algumas,
Mas se cada historiador deseja que sua pesquisa pessoal - antes de desejosas de ter uma política de pu0licação cie�tífica, principalmente em
tudo, sua tese - seja editada, o que ocorre na realidade? Desde que a matéria histórica: é presumível que os que trabalham nesse domínio tenham
,.. defesa deixou de ser feita em exemplar impresso. que o número das teses menos dificuldaJes que outros para serem editados, e que esta vantagem

il d'Étar aumentou a partir dos anos 60, e que seu tamanho aumentou possa5 facilitar a pesquisa nesse setor, no míni!110 aumentando, pela massa

1 desmedidamente, não foram mais editadas todas. E o que dizer da tese das publicações, sua importfmcia cm relaç-5o aos outros.
de troisieme cycle (gr:iduação)! E sem dúvida também da nova tese. Como
as teses representam, pois, títulos e páginas demais para um m.::rcado,
A estreiteza do primeiro mercado
apesar de tudo, restrito, faz-se uma seleção. Mas quem seleciona? Como? Como já se pressente por este último exemplo, a medida do efeito
E com que critérios? Este inevitável procedimento de eliminação suscita retroativo da edição sobre a pesquisa remete à própria estruturação do
ainda 1.."lutras interrogações. Em cada caso individual, quando o autor é mercado editorial, particularm()ntc heterogêneo. Pode-se assim distinguir,
forçac .� a passar de 2.000 páginas datilografa-::!.S :i 600 páginas impres­ para simplificar, quatro setores diferentes, parcialmente imbricados. Um
sas, o que está na partida se encontra na chegada? Em outras paiavras, primeiro mercado, mais estritamente cientíiico, é constituído pelas rcvis­
troca-se - e, em caso afirmativo, isso pcrmar:ece dentro de limites cas e publicações das imprensas universitárias (teses, colóquios e diversos
accit.lseis? - um aumento de legibilidade por u::na perda inevitável de -instrumentos" da pesqui,;a). É subvcncion3do, visa um público reduzido,
cientif:cidadc3? Se consider<!rmos o processo e:::::i sua totalidade, pode­ o que explica tiragens üs vezes inferiores a 500 exemplares, porque as
remos ::icresccntar outra interrogação: passando ce II teses defendidas a bibliotecas universitárias não são ricas, os historiadores profissionais não
11/2 oc 11/3 obras impressas, cncontrarcmn:; :-. .: chegada os mesmos
podem comprar tudo, e os editores. co:110 muitas PME (Pe1i1es e/
cquilíi:-�ios entre países cstudarlos, entre pcríc,.jos e entre temas ele .\1oye1111es Elllreprises) [Pequenas e Médi2S Empresas], têm dificuldades
pcsqui,-a que os existentes na partida? em exportar, tanto para a Europa como para os Estados Unidos. O segundo
) 24 pASSADOS RECOMPOSTOS Questões 125

mercado - este, privado - é conhecido do grande público, pelo menos pares. Disso também deriva, talvez, uma a:itude duravelmcnte ambígua
através dos editores mais à vista, como Le Scuil, Gallimard, Fayard, Albin dos próprios historiadores .::m relação ao sucesso editorial, individualmen­
M íchcl, mas também Aubier, Le Cerf, sem falar c;:m outros, alguns dos te desej2do, mas colet:vame1;,te suspeito.
quais aparecem ou desparecem segundo a c:mjuntura. Os editores deste Poder-se-ia, pois, considerar que, cm relação a um conjunto homo­
grupo, que obedecem estritamente às leis do mercado, íiram no mínimo gêueo que :::e definiria como "a pesquisa", a edição se encontra, na maioria
2.000 exemr,lares, comercializam sem dificuldarlc os livros de hi�tória, dos casos, na mesma situação que aquela analisada pelo historiador das
mas por tempo limitado, como aconter,e com as oútr,is obr;;s de grande ciências, quando estuda os processos da vulgarização científica nos sé­
consumo. As coleções, felizmente, fornecem, a uma parte desses títulos, culos passados. Redução, sedução, até mesmo, às vezes, ilusão6• Redução
urna vida mais longa que a um romance sem leitores. dos sinais mais visíveis da i!cgibilidadc científica; recurso inevitável a
O terceiro mercado - os ma1:uais para esrudantcs da universidade processos de sedução, mesmo modestos; coabitação, enfim, com uma
- surgiu cm �cados dos anos 60: os editores de livros didáticos perce­ história não-científica, que deseja se enfeitar com as plumas do pavão.
beram que o forte crescimento do púbiico estudantil criava uma nova Esta promiscuidade se explica cm parte pelo fato de que os editores que
nece.,;sidade de obras de iniciação. Os editore� de livros didáticos como tomam o risco de perder dinheiro com "bons" (cientificamente falando)
Nathan, Masson e Armand Colin, tentaram imp!antar-se nesse mercado, livros, precisam ganhar dinheiro com livros menos bons, comercialmente

r"f
com cxitc de�igual, enquanto os .editores mais clássicos, a partir de suas n1ais vendá'veis; mas cambém pelo fato c!e que a opinião pública, como
coleções de bolso, também procuraram aproveirar esse novo público. O alguém o lembrava recentemente, a propósito da atitude dos pretensos
,. quarto mercado é mais antigo e permanece sempre importante, já que se historiadores "revisionista:;"7, air.da 1 )enrn que qualquer pessoa, cc:1tanto
trata do livro de história para o Primeiro Grau (r.olleges) e· sobretudo o que fale do passado de maneira aparentemente fundamentada, pode se
Segundo (lycées). Os secretários de educ.;ção e os professores universi!á­ proclamar historiador sem ser acusado de usurpação de título.
rios disputam tradicionalmente entre si a d:reção lucrativa dest:is últimas Resta a pergunta formulada: como apreciar o "efeito retroativo" de
obr25; as mudanças de programa têm sido por mu.ito tempo uma boa fonte tal situação editorial sobre a pcsqu_isa? Na falta de enquetc sistemática,
de lucro para editores e autores, garantindo, se a repartição do bolo for procuremos tirar algum ensinamento da situação dos anos 1960-1980,
eqüitativa, tiragens substanciais. A situação atuaA - crise oblige - reduz levando em consideração dois aspectos diferentes, a amplitude da tese
as perspectivas de lucro. d'État e a evolução da conjuntura editorial. Salvo caso excepcio11Jl, a
Ora, num conjunto editorial amplo, mas heterogêneo, o mercado grande tese não era publicável para um editor, que "jogava a to:ilha" acima
propriamente científico permanece estreito, por ser insuficientemente de 600 ou 700 páginas: os infelizes autores deviam, portanto, retalhar e
alimentado pelas aquisições institucionais (bibliorccas) e individuais (es­ cortar - horrível automutilação - ou, se se recusassem a isso, reescrever
tudantes e professores). Em conseqüência disso, se compar..!�mos a situa­ completamente sua tese; com mais sorte, tinham a possibilidad(' de juntar
ção francesa com a dos Estados Unidos, nos d;JJemos conta de que, do uma versão vulgarizada, elaborada por eles, cm coleções que impunham
outr<..� lado do Atlântico, o mercado do livr0 de nistória parece ser mais outras restrições, como Champs, Arclzives (Campos, Arquivos] ou La vie
homogêneo, e refletir melhor a produção cicncífica, ao passo que, na q11otidie1111e [A vida cotodiana]. A conseqüência de tudo isso'! Prolongando
Franç�1, existe uma original interpenetração de uw público escolar, de um em mais dois ou três anos o "tempo da tese", atrasar mais ainda para a
público "culto" e de um público "científico". Mas, enquanto nos Estados coletividade o acesso à inovação que ela devia constituir; mas também, para
Uniucis a pesquisa me parece bastante estirnul:l.ja pela existência desse o autor, extenuado pur esse penoso acréscimo de trabalho, limitar as pró­
vast'-' mercado, alimentado também por maior competição entre univer­ prias capacidades de se renovar investindo cm outro campo de investigação.
sidaccs e t.:ntre ;1istoriadores, na frança ela �cri.2. Je certa forma, contida É verdade que, nesses mesmos anos 60, a conjuntura favorável
por um sistema híbrido que impõe ao historiad,">r dirigir-se, quando es­ podia compensar a morcsidadc da gestão - inclusive editorial - da tese.
crev<-', a um público mais amplo que aquele. por Jemais limitado, de seus A ch"gada maciça de estudantes, como vimos, tornava necess ári a a rápida
1 126 PASSADOS RECOMPm,os Que.Hões 12 7

colocação de novos manuais no mercado. Para os mais ditosos, então, la propagande, Dessinateurs et dessins poliriques sous l'Occupation [De­
depois da tese, a síntese; depois do Loir-et-Cher ou do Mâco1111ais, a senhos da propaganda, Desenhistas e desenhos políticos durante a Ocu­
sociedade francesa ou o mundo medicval 8 . Ou seja, a p0ssibil:dade imedia­ pação], uma parte de sua tese consagrada aos Dessinateurs de presse et
ta, não somente de vulgarizar suas intuições pessoais, mas também de dessi11 politique en Fra,1ce des a1111ées 1920 à la Libératio11 [Desenhistas
"modelizar" sua abordagem peculiar. E, sem d;'.ivid::, isso foi inicialmente de imprensa e desenho político na França, dos anos 20 até a Libertação].
benéfr::o pa,a a pesqui:,a dtcrior. Mas a conjuntura ::conômica se inverteu Apesar do recente entusiasmo pela "imagem", o editor - o CNRS, o que
r;,pidamente, e o crescimento dos estudantes se estabilizou. Os editores é o cúmulo! - despedaça, escolhe o que é mais vendá·1el, ao passo qt..e
procuraram tornar suas coleções lucrativas sem renovar seus títulos nem o mais novo, o que diz respeito ao período entre as duas guerras, perma­
refundir seus manuais: com isso, a vulgarização dos anos 6/J, alimentada nece por enquanto inacessível, a não ser para aqueles que aceitarem ler
pelas pesquisas mais recentes, estava inevitavelmente envelhecida, vinte a versão datilografada desta tc�e.
anos mais tardc9 • A renovação dos manuais do ensino superior, atualmente Contudo, não seria justo acusar apenas os editores: os historia­
em curso, está, no entanto, longe de chegar ao fim. Seria preciso poder dores se prcst�m a práticas cujo efeito perv erso percebem ta{dc demais.
medir as conseqüências desses sobressaltos edi10riais, mas a formação É o caso da tirania dos aniversários, do Cer.tcnário ao Milenário, pas­
inicial dos jovens historiadores, base indispcns.:ívcl para uma pesquisa sando por t0das as gamas intermediárias. O que fazer diante desses
futur.:!, sofreu, provavel111cn'.c, co:n o ;;fa_s:an:cn10 :-�cs::cnte entre a apresen­ eventos programados, que são também momentos de sucesso editorial?
tação escolar e os resultados efetivos da pesqu:s3 num setor determinado. Permanecer dignamente afastado, para escapar a todo c_ompromisso com
a mídia? Ou prot:urar tirar o melhor proveito, inciividual e coletivamen­
Em l,usca das estratégias editoriais te, de uma conjuntura morr.entaneamcnte benéfica? Tomemos o ex:implo
f.( 1' M�s é de foi ma ainda mais ampla que a edição universitária é do Bicentenário (a Revolução) - mas a demonstração seria também
r, tributária das políticas, evidentemente mutáveis... das casas editoras. Há válida para o Milenário (os Capelos) ou 0 Sen�i-milenáriu (descoberta
quase uma década, os historiadores do religioso te-cem louvores às Éditions da América). Sua hi.;toriografia estava dormitando: nos anos 60-70, a
�1
f
du Cerf; mas, ai;tes que uma nova equipe investisse na história, esta _já história nova se fazia cm outra parte. A !]Csquisa tirou benefício dos

r
velha casa editora dominicana tinha dc:xado pass:i, o trabalho monumen­ holofotes dirigidos durante vários anos para a Revolução? Tirou, szm
tal de Étiennc Fouilloux sobre a história do ccu:11cnismo 10 - cm que, no dúvid.:. alguma, e de diferentes maneiras: pela massa de colóquios 1 1,
cntan!O, o padre Congar, uma glória co::cil;ária local, ocupava um lugar onde a novidade se manifestou ao lado do mais convencional e do
1. seleto - somente porque, então, a casa não se otcrcssava pela história. inevitavelmente repetitivo; por alguns deslocamentos temáticos e p�o­
Os outros historiadores são gratos a Fayard por publicar há alguns anos blemáticos, que poderão aproveitar a outros setores da história; pela
teses e mais teses, mas esta opção é recente. E scr.í durável? Não está t,adução de obras estrangeiras, como o Tackctt 12, e a publicação de
t:io lc'ngc o tempo cm que a mesma casa editora se restringia impcrturba­ novos instrumentos coletivos, tais como o Atl.'ls de la Révol11tio11
Yc!r::c'ntc ü biografia, valor seguro e sem risco. �m outros termos, pode­ ;-=-,-ançaise (Atlas da Revolução Frances:i], Les Rappons à l'Empereur
se li,;ar a difusão da pesquisa a estratégias cdit....--iriais privadas, necessa­ sur le progres des scie11ces [Os Relatórios ao Imperador sobre o pro­
riamente sujeitas a mudanças? gresso das ciências], ou os Cours de l'Écolc 11or111ale de l'an Ilf [Cursos
Outra crítica, feita freqüentemente ü ediç:.':o: seguir, em história, o da Écolc normale do ano III]. Em contrapartida, é v�rdade, todas as
gosto do público, o que leva a distorções prt'_iuciciais. Um caso é o contradições de um mercado normal são kvadas ao paroxismo. Sem
inter._,.ssc duradouro por Vichy: a pesquisa sobr_; esse período fica bcne­ falar cm verdadeiros efeitos perversos. Passada a f.::sta, adeus ao santo,
fici;:;-.::i, mas, e o resto, tudo que não é nem c�1ri1amcntc francês, nem ,1u melhor, Adieu 89 [Adeus S9] 13 ! O t.:-mpo - longo - da produção
muit�1 contemporâneo, nem prioritariamente conjuntura 1 ? Tomemos um só científica se concilia mal com aquele. mais curto, dos "aniversários".
exen:?IO: Christian Dclportc acaba de publicar, com o título Crayons de A saturação editorial agr. também contra publicações ulteriores: será
128 PASSADOS RECOMPOSTOS Q11cstõcs 129

difícil, nos próxir.:os dez anos, publicar algo sobre a Revolução, en­ u.niversitário. Não se poderia dizer o mesmo da história das ciências, onde
quanto se pode esperar que o mais novo, as teses dos qu-:: começaram se encontraria uma distorção semelhante entre a qualidade das publica­
a trabalhar no momento do Bicentenário, ainda esteja por vir. ções e a presença muito limitada desta hi:,tória no mesmo cnsino 16 ?
O mesmo acontece com a política de autor. Os editores a favore­ Deveríamos então retomar o elogio da marginalidade, afirmando que é nas
cem, sempre cm busca de novosM011taillo11, mas os próprios historiadores fror.teiras da instituição 4uc se elabora a verdadeira novidade?
não são insensíveis a isso. Com efeito, a notoriedade - científica? Na realidaC:e, tal registro nos leva a 110s interrogarmos sobre o que,
mediática? - passa quase sempre por uma produção con!1ecida, senão �té agora, foi considerado como um todo, "a pesquisa", a respeito da qual
abundante, como se pode ver a propósito da enfiada de historiadores que temos o direito de nos perguntarmos se, no futuro, ela não vai ser mais
Pierre Nora reuniu cm seus ensaios de e go-história. Existem, é verdade, sistematicamente dissociada. De um lado, uma pesqaisa ligada prioritaria­
os contra-exemplos - uma forte no,toriedadc "científica" e um fraco re­ oente à gestão de uma carreira universitária, com uma produção inicial
conhecimento por parte do grande público -, mas o próprio fato de se (nova tese, habilitação), que permitirá a seleção dos docentes e lhes dará
insistir na cxistênr;ia desses historiadores "ascéticos"14, como no caso de � possibilidade, em contrapartida das pesadas tarefas de ensino nos primei­
filhos de operários que alcançam altas funções, m'Jstra bem que, segundo ros ciclos, de controlar, através dos terceiros ciclos, o rccrutàmento da nova
o ditado, as exceções estão aí para confirmar a regra. De qualquer modo, g.eração de docentes-pesquisadores. 17 De outro lado, pesquisadores vitalí­
existem na França verdadeiros "au:ores" historiadores, escritores prolífi­ cios, menos docer,tes 01.1 nãu úoc..:ntcs, Jg1upados cm instituições mais
cos como Chaunu, regulares como Duby, Le Roy Ladurie ou Delumeau, orientadas, algumas, para a busca da inovação, a criação de redes interna­
como Corbin ou Ch .. rticr, mais raros como Agulhon, Furet ou Roche... cionais e a presença nas estruturas editori:-.is 1 \ o:.itrao;, para a produção de
Paremos a enumeração - trata-se de exemplos, não de lista de instrumentos de trabalho e a permanência da erudição em setores conside­
laureados - e voltemos a nossa interrogação. É possível mec.iir as conse­ r .1dos como marginais, mas cientificamente indispensáveis. Não haveria
qüências dessa política de "autores" sobre a pesquisa histórica mais glo­ então o risco de se estabelecerem três categoria� distintas de docentes­
bal? Será que ela acabo:i atraindo os estudantes para os setores assim pesquisadores - desigualmente docentes e desigualmente pesquisadores -
't.
focalizados pela atualidade editorial? De fatu, rodemos nos perguntar se is quais corresponderiam produções editoriais diferentes, conforme se
a simples capacidade de produzir "objetos históricos" novos, de notorie­ pivilegiassc, ,iqui a pesquisa erudita, lá, .: promoção da inovação, acolá,
dade imed:ata, é suficiente para induzir uma pesquisa no setor explorado, :1 capacidade de produzir maciçamente teses e fornecer regularmente sín­

mobilizando os estudantes, portanto, os futuros pesquisadores, ou se, ao teses escolares? Se essas três maneiras de fazer pesquisa divergirem de­
contrário, é preciso que essa produção seja também apoiada por uma rr:ais 19 , principalmente sendo levadas f1 frente por instituições sem ligação
posição institucional dos autores na Universidade, que permita dispor de entre si, haverá, sem dúvida, um risco, a médio prazo, para o futuro da
meios - humanos e financeiros - para realizar t:il pesquisa. Com efeito, pesquisa histórica na França. Esperemos que este "roteiro-catástrofe" não
certos contra-exemplos mostrariam que existem outros c;1sos de relevo �:i_ssc de ficção histórica, e voltemos mais ajuizadamcnte a nossa conversa.
que ;:-;:ircccm contradizer essa regra do111in:111tc: F,1dc1110s, de fato, cncon­
tr.ir setores nos quais a produção científica é re::il, mas permanece mar­ O preço d<l virrude?
ginal e sem poder sobre a instituição univcrsitáriJ. Não era uma situação Até agora, colocamos a edição cm posição de exterioridade cm
dcst<:' gênero que evocava recentemente, a propós:10 d:1 filosofia medieval, r-:?]ação à própria pesquisa, o que não é exatamente o caso, primeiro
Alain de Libcra 15 , quase que retomando as Ct':Jstataçõcs desoladas de ;:-<1rque os editores confiam freqüentemente responsabilidades editoriais
Étienne Gilson, há sessenta anos: uma pcsquis::: de qualidade, marcada � historiadores, mas sobretudo porque, se lcmbr:irmos que a história é,
pela ;,roclução regular ele obras cicntí1icas, mas c-.:_ios autores permanecem _,, mesmo 1cmpo, demonstração e n:irraç:;o. \·cremos que o papel daquele
continaclc'.: nos estabelecimentos de pesquisa co:110 o CNRS ou a EPHE, �ue "sabe" fazer - ou mandar fazer - li\"fus é capital, já que atinge o
porque esse setor da filosofia ainda nf10 tem seu lugar no ensino ;:-róprio âmago da prática chntífica histórica. Pensamos logo nas coleções
1lij
1 ]0 PASSADOS RECOMPOSTOS Qt'.estões 131

prestigiosas lançadas pelas grandes casas editoras, nas obras de encomen­ 3 Tra,a-sc de ur.11 questão importante, que não se pode liquidar no espaço exíguo de uma
da que se tornaram imediatamente referências, como o Duby-Mandrou 20, nota. Dig.1111;:;s apenas que este trabalho de redução se opera de três maneiras, igual­
onde uma geração de historiadores aprendeu '"a nova história" antes que mente prejudiciais, embora os efeitos sejam diferentes, segundo cada prática: cortes
profundos no aparnto crítico, desaparecimento de uma das partes do texto, contração
esta fosse rotulada. Mas há mais coisas: La Droite en Frc.nce [A Direita
do conjunto. Acrescentemos que, às vezes, o editor vê mais claramente onde se situa o
na França] de René Rémond, !..a Républiq11e a1: vil/age [A República na núcleo duro da demonstração, e que suas exigências podem ter efeitos benéficos tanto
alceia] ele Mau.ice Agulhon, os Lieux de mémoire [Lugares de memória] para o aulor como para seus lci1orcs.

l· de Pierre Nora por acaso não representam, de modo evidentemente dife­


rente em cada caso, "produtos" em que a inter-•enção editorial, aqui, para ' Sugerimos aos que não têm imaginação e não gostam dc·cnigmas que procurem na

1 suscitar uma síntese brilhante, ali, para fazer editar separadamente a porção
mais original de uma ampla te5c, acolá, enfim, para fazer nascer uma
direção cio Tibre uma instituído prestigiosa e mais que centenária, que corresponderia
bastante bem a esta descrição.

interrogação coletiva de uma geração de hi5toriadores sobre um objeto 5 Não causará muita surpresa que o autor, especialista de história religiosa, tome um
novo, "cria" - parcialmr.nte, apressamo-nos cm acrescentar - um "objeto" exemplo nu1;1 campo que conhi.:cc. Não é preciso acrescentar que, na França, o catoli­
singular, que marca duravelmente a paisagem historiográfica e, por conse­ cismo é religião "dominante", se é que este termo ainda tem um sentido em nossos

1 guinte, muda o rumo da pesquisa futura? dias, e que as Éditions du Ccrf, como foi lembrado, por ocas;ão de um recente salão do
livro, nüm "grande jornal ela tarde", tentam im;x>r-sc como o editor de referência para
Chegando ao térr1ino cte5.te breve percmso, temos consciência de ter
tudo que diz respeito às ciências das religiões.
mu!tiplicado as perguntas, mais do que oferecido respostas francas; de ter
.' enfocado as relações complexas que unem edição e pesquisa histórica, mais
1 •
1
Tiro o binõmio reduçãoiscdução de J. Poirier; \'Cr, por exemplo, "La vulgarisation
::1 ',.

do que medido esses muito reais, mas dificilmente apreensíveis, "efeitos médicalc cn France au milicu du XIXc sicclc, Mignc cn situalion", in C. Langlois e F.

tt j retro?tivos", que havíamos recebido a missão de descobrir e descrever. É Laplanchc, La Scie11ce calholique, P�ris, Science cn situation-Ccrf, 1992, p. 208.
verdade, também, que não é habitual formular as perguntas desta maneira,
:ili1

;'.[
!Ir,
principalmente porque, na matéria, o observador não pode se dissociar do
7
C. Charlc el alii, "L'historicn el les falsifica•eurs", Le Moode, 29 de abril de 1993, p. 14.

que observa, e, portanto, toda análise se tom:? auto-análise, toda crítica,


;il:ru-
• Para os distraídos - o� os mais novos-, Geo,�e!' Dupcux e Gcorges Duby.
autocrítica, e que é preciso virtude - ou inco11scifncia - para no_s engajarmos
num caminho perigoso onde corremos o ris-.'"'O de nos indispormos, ao
:l!1· mesmo tempo, com nossos editore�, c0m no.,sos colegas ... e com nós
• Sem ter empreendido uma cnquet� sistemática, p:irecc comprovado qu" os catáiogos àc
A. Colin, de Masson ou de F. Nathan se rcno":ar:im pouco durante muito tempo, e que
i(l
,. " a "Nouvcllc Clio", nas PUf-, dormitou um pouco no mesmo período.
mesmos. É muito de uma só vez, e para um só homem!
111
Les CaJ/wliques el l'U11i1é c/1rélie1111e du XIXe au XXe siecle, 1.007 páginas, é verda­
de! A obra é publicada em 1982 pelas Éd. du Centurion. Pra1iq11es de la co11fessio11,
primeira obra da coleção "Cerf-histoirc", é pt.:blicada cm 1983. Neste meio tempo,
Noras
uma nova equipe chegava às Écl. clu Cerf.
' E. provavelmente, na conjuntura atual, sua queixa é j<.:;;tificada. Digamos logo aqi:i no
início, para não ter que voltar ao assunto, e também p.:ira evitar qualquer mal-enlcndi­ "Os diversos balanços editoriais, necessariamente p2rciais, são mencionados num número
d0. que nossa an:ílisc pretende ser mais estrutural q�c conjuntural. Ela quer ajudar a especial da revista Préface, cm 1989; cm Rechaclzes s11r la Révol111io11 (Paris, La
c,,mprccndcr a singularidade francesa - e mesmos= excepcionalidade - e não visa Découvcrtc, 1991), que dá o estreito ponto de vis::? do lz��titut d'histoire de la Révolulion
r�rmitir tomar o pulso - conjuntural - ela prnduç�r; ::istórica, nem avaliar o lugar da (Paris-1); ou ainda nas notas do livro de Kapl:a::. citado a seguir (nota 13). O "efeito
história nas ciências humanas. 13icentcn:\rio" pode ser mcdiclo com muit::i precis:lc ;xlo númerode indicações bibliogr:íficas
da lJibliograpltie a111111c/lc de 1'/zisrr>ire de Fra1:c,!. Entre 19S2 e 1986, anos ainda calmos,
: .-\;'cnas uma data: 1978, o lançamento de L'llisroire. ·-:na publicação "grande público" a parte da Rcvoluçüo se encontrava esta�iliz:ió num nível fraco (5%). Em 1987-1988,

l.
- tiragem intermediária entre as rcvist:1s com 1níblic-�' mui,J grande e as revistas cicn­ chega a vanguarda do l3iccntcn;irio: a Rcvoluç:k• pnha - a custo - dois pontos (6,7%).
tíiicas - feita com a particip,1ção de historiadores uG.ivcrsit:írio:;. 1989: ccntc�as de livros; e a< revistas não faltaram :lC\ encontro: a produção foi multiplicada
J 32 PASSADOS RECOMPOSTOS

por três ::m relação ao período de referência (15,7%), sem que, no entanto, a produção
g1obal aumentas,;,:- significativamente; com efeito, numerosas revistas - sobretudo
SEtS
regionais-consagraram ao evento um número especial, sem modificar o volume de suas
publicações. Em seguida, vem a inevitável baixa: 1990, cerca de 12% (11,8); 1991,10%.
Comunidade de Memória
12 T. Tackell, La Révolu1io11, l'Église, la France. L.: serme11I de 1791, Paris, Éd. du Cerf,
1986. e Rigor Crítico
DOM/NIQUE BORNE
"Título da obra q�e S. Kaplan acaba de publicar sobre o Bicentenário da Revolução,
Paris, Fayard, 1993.

"Entre os mais famosos, A. Dupront, cujr,"processo de be.::,ificação" -se assim podemos O ellsino da história co1:trib11i para n construção de cidadãos
dizer - foi aberto com a publicação de uma série de anigos, reunidos sob o título Du enrnizados numa comwzidade de memória livremente escolhida, e "não
Sacré, Paris, Galli,manl, 1987, e cuj0 "processo de canoniznção" está sendo preparado
remerosnmente preservada, sem nrrogância, aberta a outras solidariedades
com a publicação - tudo acontece - de sua tese, defendida há cerca de quarenta anos.
que não a da nação. Mas o professor de história ensina também o rigor
•� A. de Libera, "Rt.tour d<: la philornphie médiévalc"?", Le Débat, 1992, n. 72, pp. 155-169. crítico. Quando é necessário ordenar 11111 discurso sobre o mundo, confusa­
mente desenhado pelos furores ele uma aa,alídade lançada, se,:i hierarquia
•• Acrescentemos ui:1 argumento suplemen:ar: a história das ciências é, provavelmente, nem recuo, para as telas de televisão, c111ão a história pode ajudar a tomar
um dos can?is por on'Je poderia passar uma cultura ''científic:i", que falta terrivelmen­ essa distância, indispensável ao exercícic do po1smne,1to livre.
te na formação de base dos estudantes de Segundo Gl"<.u. Fala-se muito cm incultura
no domínio religioso. De acordo. Mas a incultur.1 cientifica é, sem dúvida, igualmente

1
evidente e, na nossa opinião, igualmente prejudicial.
A França é um dos raros países ocider:tais que ligam o ensino da

!.,[,,' 17 Uma boa oportunidade pa,a verificar a justeza das teses de Bourdieu sobre a reprodu­
çã.:i. que nJo perde,·am nacla de sua pertinência.
história ao da geografia. A aliança das duas disciplinas nasce co�1 a III
República. Ela permitia que se apresentasse o hexágono nacional como
:r
,11· uma "pessoa" rica da diversiJade de seus terroirs [suas províncias] e
"O que corresponderia bastante uc111 às uric.:nla<;Ü<:s da EHESS.
:!1 de uma história providencial. A odisséia terrestre dos dois heróis do
Tour de la France par deux en/a11ts [A voha da França por duas crian­
ti "Nos últimos anos, a paisagem científica se modificou profundamente pelo efeito con­
ju�:ido da aposentadoria da gcraç.io recrutada JX'r volt:2 de 1960, da criaçfio de novos ças] faz sentir carnalmentc a harmonia de povoados ligados como num
c:irgos para atender ao recente crescimento dos cfeti,·os universit5rios, e, enfim, da feixe para formar a nação.
política 111:iis sistemática de bolsas par:1 teses (Jivers:is categorias de beneficiários). A função cívica da história é, então, uma evidência. Ela acompanha
Portanto, a Univcrsid:ide cresceu, a pesquisa uni\'ersitiiria (equipes e pesquisadores)
o fim dos terroirs: a história, como a geopafia, amplia, nas dimensões
:·:: bcneíiciada com auxílios subst:111ciais e - ,·::;,ercr:·0s - duráveis. M:1is modestas
fo�am as mudanças permitindo uma real circul:i.,:;io d.=s pessoas e o fim da compar­
..:ia nação, um quadro de referência até então limitado às frontcirl's de ur.1
ti,1cntaçfio das instituições. cantão. A história dá uma cultura de participação. Seu ensino é logica­
mente contemporâneo da construção da rede ferroviária e da constituição
"· H isroire de la cil'ili.rntirm française, /'1'/oye11 Á ge-.\"Xe siécle, 1 ed. 1958, Paris, A. Coli 11, de um mercado nacional. A história tembér.i é cívica, porque o discurso
2 vol.
da democracia republicana é constantemen,c alimentado por lembranças
:1istóricas, que se enraízam numa dupla cultura: a Antiguidade greco­
�,1mana oferece, com seu feixe de c:xemp:,1, uma mina inesgot.ível de
modelos; a narração da longa marcha p:!ra a emancipação do servo
medieval e do burguês ela� primeiras comunas, ligados cm aliança, cm
JJ4 PASSADOS RECOMP0�7·os Questões 135
1789, para derrubar o Ancien Régimc e procl::i mar enfim a alvorada da entre as di:::ciplinas dominan'tcs. A demanda social junto aos professores
liberdade, dá sentido ao combate republicano contra todas as forças que é tão forte, que. por vezes, eles são submersos pelas comemorações e
recusam o progresso, e puxam a F:ança para un: pass::.do de obscura:1- celebrações, e o<; campos que se lhes pede lavrar para seus alunos (da
tismo. Ao mesmo tempo, a expansão colonial manifesta a influência cultura religiosa à segurança rodoviária, da história da arte à educação
civilizaC:ora da França no mundo. A geografia, a das manchas cor de rosa para o desenvolvimento... ) se estendem desmesuradamente.
no r=lan;sfério, é aqu;, mais uma vez, a auxiliar indispensável de uma
história que inscreve a col0nização na_ lógica de uma irradiação ao mesmo A situação: dos horários, dos professores, dos programas
tempo espiritual e material da nação. Alguns dados numéricos não são inúteis para analisar a importância
Veio, cm seguida, o tempo da dúvida. No pcrícdo entre as duas do ensino da história e da geografia ( o par é inc\issociável nos horários).
guerras, a vitória de 1918 ainda figurava como prolongamento do grande No college (Primeiro Grau), .:.10 quinto até o oitavo ano, os alunos recc!Jem
combate pelo direito e pela liberdade, mas a suspeita roeu rapidamente as duas horas e meia por semana, ao que se deve acrescentar uma hora de
certezas. A história cor,tribuía para fundar a unidade da nação, mas ela educação c1',ica. No lycée (Segundo Grau)., o horário varia, segundo as
também servia para fazer a guerra. E se alguns podiam ler a Revolução seções, entre três e quatro horas semanais; o horár:o é mais reduzido nas
Russa de 1917 como o prolongamento da Revolução Francesa, com os seções científicas. A história e a gcogr:ifia estão totalmente ausentes na
bolcheviques cumpri11clu milagrosament1..: as p;cmcssas ainda não rc:ilizadas série terminal da:; seções de tecnologia industrial, e seu lugar é pequeno
de 1789, aí também as decepções venceram as certezas. A descolonização, nos lycées profissionais.
enfim, tornou menos límpida a história da ir.adiaçr\::i d:i I-rar.�a. O que Para ministrar este ensino, contam-se cerca de 40.000 docentes de
estava em questão, não era apenas uma visão teleológica ela história; a diversas categorias: agrégés, certifiés, adjoi11ts d'e11seig11eme11t, maftres
históiia erudita, a das A1111ates, denunciava um ensino excessivamente
·' centrado no acontecimento e no político, que ignor:iva as longas durações,
au.xiliaires, professores de ensino geral de college ... a maior parte dos
quais possuem, pelo menos, a licença, de história ou de geografia. Estes
os ritmos lentos do econômico, do social e das mentalidades. A narração dados não levam cm conta nem os professores primários (ou professores
histórica, de um regime para outro, de grande homem para grande homem, das escolas), nem os professores de letras-história dos lycées profissionais
tomava-se ridicul.1!ncntc obsoleta. Enfim, as crít:cas cm relação a um ensino que, tanto uns como os outros, ensina!!! a his!ória e a geogr:i�::i como parte
etnocêntrico, estritamente "hexagonal", multiplicavam-se. de seu serviço. O recrutamcn.to tornou-se maciço: na sessão de 1994 do
O ensino da história devia, pois, enfrentar um duplo desafio: CAPES (Certificai d'aptitude au professoral de l'e11seig11eme111 seco11-
como reinventar uma abordagem que levasse cm conta o novo lugar da daire) (Certificado de aptidão ao magistéri ...1 secundário], mais de 1.200
França no mundo, e juntar os elementos que desenhassem uma nova candidatos foram aprovados.
culrnra de participação? Como produzir outra forma de discurso histó­ Esses professores lecionam cm co:-.dições materiais ainda desiguais
ric(• que pudesse refletir, junto aos alunos. cs avanços da ciência his­ de um estabelecimento a outro, mas que, ée modo geral, estão melhoran­
tór:.::i? Os pedagogos que, no mesmo pcríoc.k,. jcnunciavam o embruteci­ do. Quase sempre, há uma ou várias salas e:Specialmentc equipadas (tela,
mento inútil provocado pela memorização p;;ssiva dos acontecimentos, cortinas ...); o projetor de diapositivos, bem como o retroprojetor, já são
e insistiam, ao contrário, nas necessárias ap:c-ndizagens metodológicas, de uso banal. Mas, se o vídeo não é m:lis excepcional, a utilização
apr...-•veitavam dessa conjuntura para aumcnw: sua influência./\ descon­ didática da informática e do videodisco ainda é rara. Enfim, os centros
tru,;ão do modelo atingia pois, ao mesmo ce:::·.po, o fundo e a forma da de documentação e de informação (COI . que existem cm todos os
narração histórica. estabelecimentos, reúnem os recursos dc,cumcntários, e permitem o
E, no entanto, a história continua se::.:,, ensinada. Melhor ainda, trabalho autônomo dos alunos.
o lugar da história não é muito contestado: 2 rec..:ntc reforma do lycée Os programas atuais foram implcme:,tados, progressivamente, de
(se:Cundo grau) a inscreve, nas seções literárias e econômicas e sociais, 19S6 a 19G9; nu college, estuda-se a 10::il idade do desenvolvimento
135 PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 137

históri:::o: a históri:."! antiga, na sexta série, a história medieval e o século


Que história ensinar?
XVI, na quinta. O programa da quarta série se estende do século XVII
até 1914, o da terceira, de 1914 aos nossos dias. No lycée, o programa A primeira controvérsia sr: refere à rep::rtição, no currículo e:;co­
da segunda série começa por uma recordação das -estruturas do Ancien lar,_ dos diferentes períodos da história. Será razoável percorrer, no college,
Régime, e prossegue com o estudo da Revolução e c1 o séc�lo XIX até a a tota!idadc do campo histórico, qu,1ncto são cada vez mais numerosos os
década de 1880. Na primeira série, estuda-se o período que vai da década a!•mc:; da oitava série que continuam seus estudos no lycée? O que se
de 1880 até 1945. Enfim, na série .terminal, o programa parte de um justificava quando oita\'a série era uma série final de estudos, será ainda
balanço, cm 1945, da Segunda Guerra Mundial, e se estende até os nossos indispensável? Deve-se, então, repartir, pelo conjunto da escolaridade, da
dias. A finalidade é clara: para os alunos do primeiro grau, uma visão de quinta série à última série, o tempo histórico? Seria re:::ncontrar uma velha
conjunto da continuidade histórica, �' uma retomada dos períodos histó­ tradição, quando a Grécia estava confortável na quinta série, Roma na
ricos mais recentes, no lycée. O privilégio concedido então à época con­ sexta, a Idade Média na sétima ... Mas essa organização, puramente cro­
temporânea se expi;ca, cm parte, pela conjuntura política; Jean-Pierre nológica, dos progra;nas, é, ela própria, criticada: por que os períodos
Chevenement era ministro da Educação quando esses programas foram mais antigos seriam reservados às crianças mais novas? Não seria bom,
promulgados. Por acaso não era urgente, na perspectiva do Bicentenário, no lycée, consagrar-se a um aprofundamento, cm outra escala: histórica,
restabelecer um ensino obrigatório da Revolução F:anccsa na segunda do conjunto dos pcrfodos cstuJa<.ios .10 co!lege? Já nos anos GQ, o "pro­
série? Fazer começar o programa da primeira sfric na décadü de 1880 não graw.a Braudel" introduzia na última série, após o estudo cronológico do
permitiria pôr ew evidência a importância das fundações republicanas? período 1914-1945, uma vasta retrospecti\·1, sob a fonr.a d::: um estudo
De modo mais geral, esses programas respondem à idéia de que a história das "civilizações", pondo em evidência tanto suas raízes históricas como
contemporânea deve ajudar na compreensão do mundo de hoje, e que ela set:s aspectos contemporâneos. É preciso dizer que, muito rapidamente,
�1

é, p ortanto, indispensável para preparar a'J exercício da profissão de esta última parte do programa foi "esquecida" pelos professores. Um
cidadão. É necessário, pois, reforçar seu ensino no final do currículo pouco mais tarde (1982), o programa da ·primei�a série do segundo grau
escolar. Aliás, na terceira série, como na série terminal, o programa se tentava, pur sua vez, explorar as origens da civilização ocidental. Este
estende "até os nossos dias". programa, temático, amplamente consagrad::i às longas durações, foi di­
Esses programas não são apenas marcados pela "tradição republica­ versamente recebido e tratado; foi substituído cm 1987: criticava-se nele
na", eles testemunham também a influência de uma importante corrente o esquecimento da cronologia, uma Jiluiç5o da história nacional (a Re­
pedagógica, que visa teorizar as modalidades da aprendizagem, e que, volução Francesa de 1789 não é tratada obrigatoriamente, e o século XIX
fortemente influenciada pelas "idéias 1968", denuncia a "aula magistral", é bastante descurado). Este primeiro debate, cm que as associações de
prccon;za a atividade do aluno, que eleve consrri:ir, ele próprio, seu saber. especialistas dos diferentes períodos desempenham, normalmente, seu
Trat::i-sc menos ele fazer "aprender", que de :·:;zer refletir. /\s instruções papel, complica-se então. Ele desemboca numa oposição entre O crono­
oficiais pedem aos docentes que proponham poblcmáticas cm lugar ele lógico e o temático, que repousa, por Yczcs. na idéia de que o cronológico
desenvolver uma cronologia n::irranclo histórias. Cada programa está orien­ responderia apenas a um objetivo de memorização passiva, e que somente
tado cm torno de um tema, cuja elucidação dc,·e ser o centro dr. interesse a abordagem temática comportaria a inteligência e a reflexão. Contra­
durante todo o ano: por exemplo, a noção de c:Yilizaç�10 na sexta série. O partida, enfim, da vontade de cxaustivid:?dc, muitas vezes denunciada
trabalho a partir de documentos - a evolução -:os r,1anuais o comprova - pelos professores de história, o "peso" do:; programas explicaria seu tão
ocupa uma parte importante elo tempo escol;,�. Sem dúvida, a maneira ele freqüente inacabamcnto.
ensinar mudou mais que os conteúdos cio:; p:1.'-,;ramas. Apesar de tudo, a O segundo grande debate diz rcspci:-.., ao lugar reservado à história
história permanece uma disciplina "sensível", r.l� centro ele todos os clcba1cs nacional. Menos exclusiva do q:1c �1s veze:,: se d::: (assim, no college, ela
políticos, e as polé.mic�,.; sobre os programas :iunca acabaram. não é objeto de um estudo r:ronológico sistcmátic0, pelo menos até a
!38 PASSADOS RECOMPOSTOS . Com/Jccê11cias 139

Revolução), ela é, entretanto, muito presente, e de modo bem particular, orientou seu ensino de acordo com uma ideologia do progresso, que
para a época contemporânea. Aliás, esta história nacion:::l mudou. Muitas reservava à França um papel particular em sua realização. Hoje, duvida­
vezes, é caricaturada como vã sucessão de reinados, c;uando ela se prende se do progresso, afirma-se menos frcqüe::itementc a excepcionalidade
cada vez mais à evolução da vida dos franceses. O fato é, entretanto, que, francesa. O ensir.o ainc.ia pode, sem dúvida, afirmar finalidades cívicas e
se os ataques contra um ensino da história dr.masiadamcnte franco-francês culturais, mas hesita em ser o vetor de certezas milit;,ntcs. Esta mutação
estão rr.enc,:; na moda que na época brilhante do teícciro-mundismo, algu­ deve ser assumida como libertadora.
mas perguntas verdadeiras pe:manccem. Deve-se, pelo menos cm relação
à época contemporânea (e o problema· se apresenta também na geografia), As finalidades de um ensino
continuar a analisar a história e o espaço da nação indepen rientementc da Ensinar a história é, cm primeiro lugar, levar os alunos a se
história e do espaço europeus? Na épOC;\ da globalização das trocas, não apropriarem de uma linguagcll', específica. !'�este sentido, os conteúdos
seria preciso descrever o apagamento progressivo das especificidades na­ do ensino são inseparáveis das modalidades de sua transmissão. Apro­
cionais? Inserir o estudo da França num estudo mais vasto da Europa seria priar-se de ut:,a lingt.:agem não passa por uma simples memorização, e
então um ato de voluntarismo político ou u m respeito a realidades sim pela aprendizagem das operações intelectuais que permitem a cons­
verificáveis? Reafirmar, ao contrário, a permanência de uma história nacio­ trução de um discurso. Como o historiador, mas no nível que lhe é
nal �ria ajudar ao enraizar;iento, civi,,mu ot: fo,r:1� oposta de voluntarismo? próprio, o aluno deve descobrir, analisar, classificar. Em suma, operar
Isso mostra bem que o trabalho do prcfessor de história não pode um ordenamento no tempo. Tal document0, escrito ou figurado, é cui­
escapar às pressões vindas da sociedade. E essas prcssõr.s são 1:1u1J1erosas. da<lornm<;:nte identificado e inscrito numa cronologia, depois é poste em
A opinião pública se indigna periodicamente com as ignorâncias, reais ou relação com outros documentos escritos ou figurados. Pouco a pouco,
suposta:;, dos alunos; a imprensa publica sondagens naturalmente os alunos aprendem as operações que conduzem a "fazer história". A
"ac:1brunhadoras". Mas, por um lado, nenhuma enquetc anterior de refe­ história não é dada a priori, el;i. se constrói. Manipular dados e, com­

l!E'�
rência permite concluir que houve, de fato, degradação do saber histórico, binando-os, produzir sentido: a história é uma aprendizagem do exer­
e, por outro Jadu, as perguntas feitas, excessivamente pontuais, não podem cício do pensamento lógico e crítico.
'Q . dar conta da cultura histórica adquir:da. Quantos jornalistas, que ficam Fazer história com os alunos é também transportá-los no tempo: a
r� indignados ao constatar que os alunos do Segundo Grau não têm o reflexo
"1515" quando se lhes diz "Marignar.", .são capazes de explicar quem
história fala à imaginação, desenhando a figura do outro, dos outros. Uma
�l Juwsa contra quem em Marignan, e por quê? Outras interrogações são mais
turma de quinta série compreende a democracia grega quando o professor
t0rna reais os escravos citas, que, com um3 corda pintada de vermeJh;;o,
razoáveis. Num mundo cujas evoluções recentes foram brutais, os pontos empurravam os cidadãos para a ecclesia, o orador que se coroa de murta,
de referência tradicionais, que se enraizavam numa cultura católica e :: justiça popular ela Heliéia; outra turma e:.::trcmecc ao sopro da "Grande
rur2.l, desaparecem. É verdade que os alunos n::i�1 sabem o que é um arado .--\rméc", quando o sol de Austcrlitz hesit2 antes de i!uminar a vitória.
ou �m cstcrroador, assim como não sabem o que é um sacramento ou Assim, ora ativos e construindo a nistória, ora sob o encanto da
Pentecostes. É verdade que o próprio calendário, ritmado por festas re­ :1arração, os alunos se familiarizam com a vida e a morte dos homens,
ligiosas, tornou-se hermético para eles. Dcv.:--sc levar cm conta esta :2 guerra, a paz, o poder. O ensino da história é, pois, uma aprendizagem
cv1..1iução? Ou, ao contrário, o ensino da história deve suprir uma forma­ -:ia liberdade, mas também da tolerância: c0mprc..,ndcr o mundo é afastar
çãc religiosa cm via de dcsaparecimcnw? Ss.'ri::, no caso, a título de �-. medo que nasce do desconhecido. Mas. para que a tolerância sozinha
cor::::crvação de um patrimônio cultural. Mas. pode-se tratar a religião :1ão leve ao relativismo, a história deve t:!mbém dar a cada um o scnti­
co:-_:o se trata um monumento histórico? ::1cnto ele pertencer a uma comunidade: d :ada a uma geografia capaz de
O que ilustram essas dificulcades? Todo ensi'.10 é uma busca de 3prce1,dcr os territórios, a história leva a partilhar de um patrimônio e de
sentido, explícita ou implícita. P0r muito tempo, o professor de história uma cultura, i'itO é, de um cisterna de imagens, de referências e de valores.
14-0 PASSADOS RECOMPO�TOS Q11esrões 14 1

Esta cultura dá uma identidade. Ela é também libertadora. Os alu­ professor de história ensina também o rigor crítico. Quando é neccss.írio
nos, submetiáos, quase permanentemente, a um fluxo de imagens e de ordenar um discurso sobre o mundo, confusamente desenhado pelos
palavras não hierarquizadas, devem adquirir pontos de reforência, grades furores de uma atualidade lançada, sem hierarquia nem recuo, para as
de leitura, um olhar crítico. É por isso, aliás, que é indispensável prolon­ telas de tele·,isão, então a história pode ajudar _a tomar essa distância
gar os programas até os nossos dias. Deste modo, a hi�tória não exibe indispensável ao exercício do pensamc!lto livre.
mais apenas os gestos das civilizações mortas; ela afirma a continuid .. de
da humanidade e ilumina o presente.
A definição dos objetivos permite uma abordagem dos problemas
de programa. Deve-se percorrer rapidamente o conjunto da história (pelo
menos do Mediterrâneo e da Europ�)? Sim, para que os alunos dominem
algumas grandes referências_ cronológicas e possam situar os t_empos fortes
do dcsenvolvimer,to histórico. Mas esta abordagem deve ser seletiva e
e,itar o enciclopedismo (como diz Jacques Lc Goff, "demasiada crono­
logia mata a cmnologia"); ela deve também deixar ao professor uma
liberdade suficiente para que ·possa modular seu ensino cm função das
imerrogações do presente; que redatür de programa poderia imaginar, há
apenas cinco anos, que ·seria preciso C\'0car a Bósnia-Herzegovina? Em
i· seguida, os programas devem atribuir seu lugar natural à história nacional,
patrimônio comum de um povo.
No lycée, a história contemporânea é indispensável para a formação
do cidadão, mas deve �cr possív�l retomar certos grandes temas dos
períodos abordados no ccllege. Entretanto, est<! abordagem não pode ser
concebida como uma sucessão de temas especializados. A história escolar
deve pern·,anecer "total" e inscrever-se sempre numa trama cronológica.
Por que, então, não abordar alguns grandes momentos da história da
ci,·ilização ocidental (Atenas no século V, a França de são Luís, o século
d25 Luzes etc.), sem afastar possíveis incursões na China dos Ming ou
nos Andes dos Incas?
Mas não serão os programas ,... sempre objeto de polêmica - que
tr�nsformarão, como num passe de mágica, o ensino da história. Os docen­
te::': e a maneira como são formados são mais importantes que os programas,
e ainda mais capital é a coerência da missão que a nação lhes confia.
Estas poucas observações não constituem uma Joutrin::i. Talvez elas
pc-rmitam medir objetivos. O ensino d:i história rontribui para construir
cijadãos enraizados numa comunidade de memória livremente escolhida,
e ::ião temerosamente preservada, sem :HrogCrncia, aberta a outras solida­
ric-dades ,1 uc não a de nação. Assim. é necessário que se cruzem os
c2111inhos da particip:i'são nu,,,a comunidade e os da tolerância. Mas o
1
t:
II
COMPETÊNCIAS

1:
ti'
�J.

f · f.

�I -
t{
. Q''

l
J1
J,
UM

As Responsabilidades
do Historiador Expert
FRANÇOIS BÉDARIDA

Na verdade, não se trata de modo algum com _essa reivindicação


de alçar o historiador à patente de áugure da cidade, mas de afirmar
que a sua palavra, nr. observância estrila das regras do ofício e em
resposta aos q11estio11a111e11tos do tempo presente, à parte desviá-lo de
sua vocação, é, por outro lado, perfeitamente legítima, restituindo à
história sua densic!.?de significun,:!. Come, disse bem Mir:hel de
Cateau, toda pesquisa histórica inscreve-se em algum lugar na so­
ciedade. Em função desse lugar social e dP.sse m�io de elc!;oração é
que os questionamentos se formulam, que se definem e apuram os
métodos e esboçam-se riscos e uma trajetória.

De início, afirmemos: pesquisa sobre o tempo presente, função de


expertise e 1esponsabilidade social do historiador caminham lado a lado.
Efetivamente, nossa sociedade, tão apaixon3d:1 por história e tão ávida da
inteligibilidade de seu passado, está mais do que nunca ansiosa por
compreender os grandes dramas de sé..:ulo: na interseção da memória -
para aqueles que viveram aquele tempo - e na da história - para as
gerações que aprenderam esses drama� nos livros, mas que observam em
toda parte suas marcas abrasadoras. O histeriador se acha então intimado
a esclarecer o caso e a fornecer um fio condutor, aliando função crítica
e função cívica - [1s quais a demanda so-:-ial para mostrar-se generosa
acrescenta muitas vezes uma função ética. Temos aí, portanto, o modesto
pesquisador proclamado expert, com ou sem 0 seu consentimento. Certamen­
te, como ressaltava recentemente Georges Duby (Le Monde, 23/01/1996),
o bom historiador deve estar atento a tud��- ;, começar pela atenção ao
mundo que o cerca, mas para ele o cami:iho é estreito quando precisa
defender um lugar e definir a sua missão relativamente aos mitos, aos
preconceitos e tis deformações da consci-ência :::oletiva e da memória
comum. Sem perder de vista (?'le ele próprio contribui para a elaboraçf10
J 4é PASSADOS RECOMPO!>íOS.
Competências 14 7
e construção dessa consc1cncia e dessa memória, uma vez que nisso explicando 'lue nem um nem outro existiram e que as suas biografias não
consi.,te uma de suas funções vitais na sociedade.
passam de uma armaçiio 1 ?
Propomo-nos aqui, apoiados cm um exemplo cont�mporâneo - a De fato, na base do procedimento dos ncgaci0nistas, discernimos
história do genocídio nazista -, esboçar rapidamente os ensinamentos e
três v1c1os reàibitónos. Primeiramente, por trás de uma proclamada
os limites de um procedimento um pouco incon:um, no qual o saber do cientificidadc, todos os seus escritos refletem as ap'.lrências enganadoras
histNiador, cm l.iga: dr. distribuir-se unicamente no campo científico, é do método hipercrítico. O procedimento consiste cm recusar cm bl0co a
solicitado a intervir na esfera pública, a fim de se pronunciar sobre os
massa de documentação, apontando acusatoriamcntc as lacunas ou os
graves riscos da sociedade diante de um amplo processo negacionista erros que esta pode comportar; e cm desqualificar todos os testemunhos,
conduzido por falsificadores da história. argüindo a inexatidão de detalhes mínimos. Como se após um jantar cm
família, com o pretexto de q1·,� um dos convidados se enganou ao relatar
Revisionismo e abolição da razão
0 cardápio, se deduzisse que o jantar não aconteceu! Chega-se assim -
Na verdade, não sr. trata de modo algum com essa reivindicação pecado grav!ssimo l:Ontra o método histórico - a selecionar à vontade nas
de alçar o historiador à patente de áugurc da cité, mas _ de afirmar que sua fontes, desprezando a maior parte delas alegando rigor crítico, a calar de
palavra, na observância estrita das regras do ofício e em resposta aos modo si�tcmático os dados que vão de encontro à tese adiantada, a ignorar
questionamentos do t.::r.iro present::, t p:::tc d-:c::vi::-lo de sua vocação, é, desenvoltamcnte qualquer contexto social, po!ítico, ideológico, que final­
por cutro lado, perfeitamente legítima, restituindo à história sua densida­
mente nunca são levados cm conta.
de significante. Como disse bem Michcl de Ccrteau, toda p�sqcisa his­ Outra fachada do Potcnkin: para além das aparências de um:; argu­
tórica inscreve-se em algum lugar na sociedade. Em função desse lugar
mentação fortalecida por uma lógica ríspida e pretensiosa, n:: verdade,
social e desse meio de claboraç5o é que os questionamentos se formulam, quando se examinam de perto os textos negacionistas, encontram-se neles
que se definem e apuram os métodos, e esboçam-se riscos e uma traje­ somente vipcrinas e infundadas denúncias de car(ttcr repetitivo ou ladainhas
tória. A isso se deve a renovação a um ritmo veloz das problemáticas de afírmaçõcs peremptórias e desarticuladas, sem qualquer enraizamento no
contemporânc::!; sobre o totalitarismo, o racismo, o Estado, os direitos terreno de uma história dominada por uma mecânica implacável e plena de
humanos e o crime contra a humanidade. Tudo i-;so tendo como pano de
gritos e sussurros, de aflição e de piedade. As falhas de raciocínio
fundo a crise do hum.mismo e da concepção do homem como figura
superabundam aí, à imagem desse Wit:: de Freud, que Nadine fresco citava,
soberana do universo.
cm um notável artigo nos Tcmps Modemcs [Tempos Modernos] ("Lcs
No que concerne ao nazismo, a primeira impostura dos negacionistas redrcsseurs de mort" [Os redentores d:i morte], 1980), no qual dcsmo,,tava
é se arrogarem o título de revisio11istas: um termo cm si mesmo mais do
um a um os mecanismos das "fa11risso1111eries": A tomou emprestado a
que honroso, elogioso mesmo, uma vez que caracteriza o procedimento de
B um caldeirão de cobre. Quando o devolve, 13 se queixa de que o
base do trabalho histórico. Contudo, da parte dos defensores obsessivos do
caldeirão tem um enorme furo que o t,1rna imprestável. Observem a defesa
anti-semitismo, trata-se exclusivamente de ncg::.: um dos acontecimentos
de A: "ln: Nunca pedi caldeirão algum a 13; 2u:·o caldeirão tinha um furo
máximos do nosso tempo, um dos mais indubit:íveis, um dos mais traba­
quando B me emprestou; 3!!: Entreguei o caldeirão intacto". Como não
lhados: um conjunto maciço de dados incontorn:Í\'Cis, ::itcstado por dezenas
concluir, diante de tal arbitrariedade. pelo charlatanismo?
de milhares de documentos, de testemunhas, à<? vestígios; materiais, ao Em terceiro lugar, o ncgacionismo por in1ciro repousa num esquema
mesmo tempo, coerentes cm sua dispcrsf10 e conYcrgcntes cm sua diver­
histórico tão gasto quanto simplista: a teoria Jo complô o constitui de ponta
sidade: cm suma, um imenso aparato cruuico. O que se poderia dizer de
a ponta. De acordo com a tese dcsc1wolvid:1 nd 11<111sca111, o genocídio dos
um indivíduo que tivesse a pretensão de ··rever· :1 história das Cruzadas,
judeus não passaria de uma gigant.:,:;cca mentira imaginada e construída,
afirm:rndo que elas nunca ocorreram; a história ée Joa?ca d'Arc, pretenden­ inteiramente forjada devido a uma aliança monstruos;i entre o capitalismo
do que ela não foi queimada; a história de Cr,..,mwell ou ele Napoleão, impcrialist;, e o ;;omuni:;mo stalinista. devido também ;1 cum plicidade cios
148 PASSADOS RECOMPOSTOS Corn/Jetênci�s 149

vencedores e pscudovíti,nas e à cadeia dos Estados, dos governos e das da subjetividade do historiador a ponto de permitir reescrever de qual­
opiniões ilusórias, tudo isso sob o patrocínio de Israel, condutor do jo�o quer modo a história. Pois o essencial do procedi!nento era a decifra­
maléfico do processo, em detrimento da pobre Alemanha vilipendiada e ção das componentes do passado, seu encadeamento, sua hierarquiza­
explorada até o fim do .nundu. Ora, qualquer um sabe que todas as ção, em suma, sua participação no conjunto do esquema interpretativo.
explicações históricas baseadas no tema da conjuração e do complô tra­ Nessa óptica, tanto era legítimo pret:::nder que dcterminad.: batalha ou
duzem não somente uma completa abdicação da razão, mas pertencem, ato Jipiomático tinha apenas uma importância muito secundária rela­
por natureza, ao campo da obsessão e po primitivo em busca de um bode tivamente às grandes forças coletivas e aos movimentos de longa
expiatório. Acrescentemos que, se cm certas acusações rituais proferidas duração, quanto também não ocorreria a ninguém apagá-los da histó­
contra maquiavélicos orqucstradorcs clandestinos (franco-mações. jesuí­ ria, negando sua própria existência.
tas, o Komintcrn ... ), poderíamos ter a il·/são de dcsco!.lrir a participação Mas quando foi preciso, dian:e d:is teses ·negacionistas, conferir
de minorias, agindo estruturadas cm organizações secretas e dinâmicas, de maneira pública e notória uma chancela de cientificidade aos "fatos"
os negacionistas, no q·;c lhes diz respeito, imaginam um complô englo­ melhor estabelecidos por meio século de pesquisa histórica, e depois
bando milhões e milhões de pessoas dos países, das formações sociais e transmitir na situação pedagógica as principais aquisições naquela pcs­
dos sistemas id<.:ológicos ferozmente hostis uns aos outros. Pergunta-se quisa2, vi-me confrontado ao difícil problema do par subjetividade/
quem, com exceção dos ant;-semitas manifestos, poclc dar crédito a objetividade. Lembrei-me, então, do que 1-i�nnah l\rcndt escreveu num
clocubrações tão delin..ntcs. célebre:: artigo de 19503 sobre a aplicaçã0 da ciência social ao estudo
do fenômeno concentracionário: esse fenôr.ieno, Jizia ela, obr:ga os
A objetividade dos faros históricos pesquisadores cm ciências sociais e os historiadores "a reconsiderarem
Mas é preciso ir mais adiante. Pois o que está fundamentalmente em seus a priori fundamentais".
jogo é o problema da objetividade em história, uma vez que a resposta dos Observemos que, paralelamente, o retorn9 inflexível do aconteci­
historiadores profissionais com,iste em contrapor a solidez maciça dos fatos mento na historiografia contemporânea obrigou a reabilitar o estatuto do
às afirmações gratuitas dos negacionistas. Aliás, qu::ado se recorre a um factual, que desprezamos muito depressa, assimilando-o aos preceitos
experr, será que lhe pedimos outra coisa senão que emita sua opinião sobre positivistas. Tantc que todos os profissionais de Clio estão prontos a
a base de dado" objetiva, única fiadora de sua credibilidade? Ora, justa­ admitir que os limites da objetividade cm história dependem do próprio
mente o passado seria objetivável? E o que é um -fato" em história? Velho objeto histórico: seus limites avançam ou recuam de acordo com a na­
problema na verdade, que nesse estágio recupera toda a sua acuidade e que tureza desse último. Por outro lado, o fato. cm vez de encontrar-se �m
é importante apreender no corpo a corpo. estado bruto no interior de não sei qual dado inscrito na natureza, deve
Que me permitam citar aqui a minha experiência pessoal. Como ser definido como uma relação entre fenômenos, eles próprios atestados
a maior parte dos historiadores de minha ger:1ç:io, sempre considerei, por vestígios e sinais visíveis.
na linha de Raymond Aron e de cncontru aos preceitos positivistas, A partir daí a operação histórica consiste, após ter reunido, criti­
que toda interpretação histórica depende de um sistema de referência cado e dissecado o conjunto dos documentos disponíveis, cm estabelecer
�ubj::ccnte e que, por conseguinte, qualquer :inálisc de um "dado" encadeamentos entre os diversos componentes do objeto estudado - de
remete à subjetividade do historiador. Em outras palav,·as, os "fatos" acordo com um método adaptado a cada caso - e a construir um discurso
originam-se de uma escolha, pois já estão constituídcs pela introdução atribuindo-lhes coerência e sentido. Por outro lado, não esqueçamos a
de um sentido na "objetividade", ainda que provenham ele materiais dimensão transdisciplinar, ou seja, o concurso precioso - e "objetivo" -
oriunJos das sombras dos arquivos e rcv..:l;1th.•s pelo engenho do his­ trazido para o campo estudado pelas ciêr.cias auxiliares, tais como a
toriador. Contt,do, essa historicização não ia d:1r. de modo algum, num :uqucologia, a lingüística, a história d:is técnicas, a psicologia, a medicina
relativismo gencralizr-do. i:-111 que '.)S dados seri::im malcáveis ao sabor ou a biologia. Em suma, é prcc;:;o ressaltar vigorosamente q11c a pesq uisa
11
1 50 pASSADOS RECOMPO!ffOS Com/Jetên:ias 151

l cm história não é compatível com qualquer coisa. Contra as perversas
tentativas dos falsificadores, sua dimensão científica, pc,r imperfeita que
O prime:ro cânone consiste cm reconhecer a historicidade do
objeto histórico a (re)construir e a explicar. Nesse caso, ninguém
seja, deve ser ressaltada com energia. Não é essa, diás, ::. condição de contestará a realidade de um cio de dependência c_ntrc a escolha dos
validade de qualquer expertise? fatos e o ato de interp�ctação. Mas o que se procura primo:dialmcntc
Outro ponto a ser levado t:m consideração: quando se ab0rda um através do discurso, e a fortiori com a expertise do historiador, são
fcnôrr.c!1o co porte do gcaocídio nazista, é claro que se deve privilegiar, os sinais por meio dos quais Lima sociedade se pensa, se exprim-:: e se
na tradição de Durkhcim e de Tocqucvillc, de Vida! de la Biache e de historiciza. Mas assim como a objetividade não se confunde com !l
Max Weber, a noção de organização, de estrutura ou de sistema, a fim indiferença, a historicização não se confunde com o ��!ativismo ab­
de evitar perder-se na poeira dos acontecimentos. Sem minimizar a soluto à moda pós-moderna.
dimensão subjetiva no trabalho do historiador, tudo concorre para que Segundo cânone: concei�os de base do proccdiincn.to histórico -
se afirme, sem rodeios, que a história deve ser tão objetiva quanto tempo, memória, testemunho, liberdade - não há como jogar fora, de
possível - ainda que se tr ..te nesse caso de um voto irrcalizávcl4 - cm repente, a noç�o de verdade, proclamando que, nesse domínio, só há
vez de perder-se nos meandros das desconstruções pós-modernas, nas verdades relativas e parciais (e mesmo, às vezes, partidárias). Essas
quais só flutuam ilusórias representações, frágeis embarcações derivan­ verdade:; contingentes e instrumentais perturbaram, sem dúvida, uma
do ao acaso das corrcr,t1.:s da ficção. D..: o:..i::; a mais - e o fato é história frágil e falível, mas q:.ic se quer acesso à verdade e busca de
significati•10 - dentre os defensores da escola pós-moderna, até mesmo sentido. Seria isso uma razão para entregar-se, sob o efeito de uma
os relativistas mais radicais tiveram o grande cuid:1dc de afirmar ma modéstia excessiva, às suspeitas e às dúvidas epistemológica.;, até mesmo
distância do ncgacionismo. Assim, eles recusaram-se constantemente a ao masoquismo? Não minimizemos igualmente a dimensão científica no
duvidar da experiência única que foi a Shoah, experiência para a qual trabalho do historiador: quero dizer o método crítico com seus processos

l
adrr.itcm que não foram encontrados até então modcs de representação testados e seus instrumentos bem afiados. Aí é que reside :> verdadeiro
adequados. No entanto, na lógica relativista à Haydcn White, tão ciosa profissionalismo cm !1istória - e não cm alguma filiação corporativa à
catcgorict dos prnfcssorcs de história. K.nal de contas, diante da crise
í::
de liberar-se do fetichismo dos fatos, não há outra realidade a não S()r
cst:1, construída pelo historiador cm função d� sua sensibilidade, de sua atual dos objetos históricos e do perigo de uma história às migalhas, 11m
i
ideologia e de sua cultura. Assim como se rcjei1a, cm literatura, a fixidez dos rel:'.édios não estaria numa reabilitação elevada e firme do princípio
do 1exto ou, cm filosofia, a fixidez da i inguagem, do mesmo modo, cm de verdade? O que, com isso, garantiria um acréscimo de credibilidade
,. à expertise histo1 iadora.
his1ória, acha-se banida a fixidez do passado. uma vez que uma "rela­
tividade inexpugnável" decorre do recurso :J. narrativa histórica como Enfim, na medida cm que toda busca da verdade está ligada a um
meio de representação desse passado, todo -icxto" tornando-se então c01pus de valores, a interface entre históri.i e ética, enquanto uma e outra
1
"pretexto" e toda história, ficção. Apcs:1r de 1udo, uma coisa é querer permanecem separadas por uma linha de demarcação nítida, pode mostrar­
pr�ricar um historicismo a todo custo, outra, i querer apagar o passado s:: tão fecunda quanto necessária, contanto que seja enunciada claramente
neg:mdo que ele tenha jamais cxistido 5 • e inteligentemente articulada. Tanto mais que, quanto mais o objeto his­
tórico responde por riscos fundamentais t3is como a vida e a morte do
O princípio da verd:1de homem, mais o diálogo parece necessário. Aliás, diante de semelhantes
Para terminar, convém depreender os r;ês <.:ânoncs que qualquer riscos, como poderia o discurso histórico, observando o rigor e a sobrie­
� ex�rtise histórica deve respeitar - sem falar. evidentemente, dos impc­ dade de praxe, permanecer impessoal e gélido? Queira-se ou não, a
r;;::Yos sempre categóricos da deontologia p;�'iissional e das exigências história é, e deve continuar scncio, uma .:isciplina humanista.
àa escrita, que requer uma grande lcg;bil iJad<.? e uma .. tenção sem trégua Na verdade conhecemos as múltipl:!.s derivações que, no passado,
à comunicação6• a confusão entre história e ética não deixou de suscitar, quer sejam as
J 52 P,\SSADOS RECOMPOSTOS
Compccências 153
"lições" de u1:1a história moralizadora e pregadora ou o cinismo maquiavélico • Pode-se notar que os totalitJrismos contemporâneos, na sua versão comunista como na
de uma história r'!duziJa à Realpolitik, ou ainda, uma visiio shakespeariana �ua versão nazista, contribuíram paradoxalmente para encor�jar uma volta à idéia de
do por:ir dominada pelo reino anárquico das paixões individuais. Niio é objetividade, na r.1cd:da cm que esta ap:!�eceu como o antídoto ao conhecimento dos
espíritos pela propaganda assim como às fabulaçõcs e mentiras oficiais. Dessa aspira­
menos legítimo, quando se trat:i de acontecimentos de tal alcance e signifi­ ção a dados objetivos, confiáveis e seguros, dá testemunho o recente artigo, "Lcs
cação, querer inserir uma dimensão ética, que poderia situar-se sem muita Amiales vics de Moscou", do historiador russo Youri Bcsserncrtny, A1111ales ESC,
1992, pp. 245-259.
dificuldade no interstício criado pelo c!istanciamento entre o objeto histórico
e o sujeito historiador. Pois cntiio o acontecimento assume uma dimensão 5 Ver sobre esse assunto as estimulantes an;ílises e rcílcxõcs (uma delas urna contribui­
ção de Haydcn White) in f'ricdl;indcr (cd.), Probing Jlte Limits of /lepre::e111a1io11:
meta-histórica ao mesmo tempo que sua dimensão histórica.
11azis111 aiul 1/re "Fi11al S0!111io11 ", Harvard Univcrsity Prcss, 1992. Cf. também J. Young,
Nessa via, referia-me naturalmente às intuições de Péguy nas úl­ Wri1i11g and lle111riti11g fite /-l o/oca11s1 (198S), cns:iio de aplicaçã'1 das teorias de White
tim:is páginas de C/io onde, refletindo sobre "o mistério mesmo do acon­ aos documentos sobre o genocídio.

tecimento e d::i história", ou melhor ai�da, "o mistério uo acontecimento 'Como exemplo de recurso aos historiadores-experts pode-se também citar, numa atua­
do acontecimento", !ntroduz, na fala da musa, este pensamento: "Há lidade ainda próxima, mas cm um contexto totalmente diferente - o caso Touvicr que
apaixonou a opinião francesa-, o caso da comissão de especialistas reunida pelo
pontos críticos do acontecimento como há pontos críticos de temperatura, cardeal Dccourtray e de seu relatório (To111·ier et l'Eglise, Paris, f'ayard, 1992), cujo
pontos de fusfo, de congelamento [ ... ]; d.:! coagulação; de cristalização". procedimento e riscos, aliás, evoquei (Le Débat, n.70, 1992).
E ela continua, "há no aconteçime:1to certos estados de sobrefusão que
não se precipitam, que não se cristalizam, que não se determinam senão
pela introdução de um fragmento do acontecimento foturo". Esse é o
segredo do acontecimento, fonte de perturbações e renovações tão pro­
fundas que, "de repente, vamos dar cm um novo povo, cm üm novo
·: I

r;1.
mundo, em um novo homem". Basta aplicar semelhante visão a0 acon­
,1
tecimento Shoah para avaliar o quanto podem pesar as míseras denegações
de alguns falsificadores nu que concerne :1 esse ::ipclo vindo dos extremos
de um saber histórico pleno de sentido e de poder de meditação.

l'
Noras
' O termo armaç<io (s11perc/rerie) é o mesmo utilizado para designar o genocídio dos
jc.:cus por um dos chefes de fila do ncgacioni,mo. Anhur 13rntz, no seu livro T/re
Gr.:at 1-/om: of the XXt/r Ce11111ry (observe-se que /roca pode ser traduiido por "fors:1"
,
"'lc ;ro , "canular"...).

°ॺ Foi o que se esforçou por fazer, por um lado, o colóq:iio internacional organizado na
s,,rbonnc cm 1987 sobre A política 11azis1a de extermí11io, cuja� atas foram editadas
p,:r Albin-Michcl cm 1989, e, por outro, o opúscul,) redigido cm homenagem aos
'.,:' .000 professores de história dos liceus e colé;;.ios fr::inccses, sob o título Le Nazis111e
.tt !e Cé11ocide, produzido e difundido pelas edições Nathan cm 19$9, reeditado cm
li-. ;o de bolso pelas Pr.:sscs Pockct cm 1992.

' H ...\rendi, "Sucial sci.:ncc tcchnics and thc study o:· conccntr:1tion camps", Je111is/1
Social Studies, XII, 1950, pp. 49-64.

J ·'·-! ._,, ·.:• fllUCitl Utíl� IUIU!At 1t llllllhll


- ......... � t
DOIS

05 "Tesouros" da Stasi
ou a Miragem dos Arquives
ÉTIENNE F'IIANÇUIS

A abertura dos arquivos das antigas democracias populares é motivo


de fascínio: a verdade por tanto 'tempo escondida �staria finalmente ace.:,­
sível? A manipulação desses {1.rquivos, mais do que a de qualquer outro,
requer exigência crítica e rigor metodológico, considerando o risco de se
cair novamente nas armadilhas dos aparelhos totalitários.

Após a queda do muro de Berlim e o desmoronamento da RDA, os


historiadores e a opinião pública experirne;1taram por algum tempo a sen­
sação de estar vivendo uma situação única e uma oportunidade inesperada:
de repente, tinham diante de si arquivos superabundantes e bem classifi­
cados; ao mesmo tempo, uma administração competente e liberal respondia
prontamente por eles, quase sem destruição nem -solução de continuidade.
Tratava-se não aper.as dos arquivos da temível polícia política - a "Stasi",
com seus seis milhões de dossiês individuais, mas, mais genericamente, de
rndos os _arquivos produzidos_ por um E.swdo que tinha a maíiia do papel
e do documento escrito, e do qual ninguém podia intitular-se herdeiro ou
defensor, uma ve� que ele literalmente implodira, antes de vir a ampliar a
República Federal e ser absorvido por eia.
As esperanças suscitadas foram imensas: depois de quarenta anos de
uma penosa ditadura (ela própria succdem.;0 aos doze anos de nazismo),
e que, l1 medida que se burocratizava e se enfraquecia, recorrera - com o
concurso de um aparelho hipertrofiado (S0.000 permanentes e pelo menos
150.000 "colaboradores oficiosos") - sistematicamente à vigilância poli­
cial, à denúncia, à intimidação, estabelecendo como sistema e princípio de
sobrevivência a prática do segredo, da suspeita, do fichamento, poder-se­
ia enfim, pensava-se, mergulhando nos arquivos, reapropriar o passado,
Yoltar a ser senhor de um:: histfiria da qu:il se havia sido despossuído.
Poder-se-ia compreender o que tornara possível a ditadura, explicar para
si mesmo como ela funcionara e porque havia durado tanto tempo,
156 PASSADOS RECOMPm7-0S Co111/1etências 157

de;;:.mascarar os culpados e os cúmplices, em suma, não somente fazer brotar profunda do que se pensara até então. O terceiro relaciona-se com as.
a verdade (pois o desmoronamento do regime e seu balanço de falência dimensões tomadas pelo ano 1968 na RDA - com os esforços desenvol­
111ostrariam com evidência absoluta que tudo aquilo que o regime dizia de vidos prontamente pelo Estado e o Partido para <'.bafar ainda cm embri:io
si mesmo não pac;sava de ilusão) mas, ao mesmo tempo, libertar-se. toda forma de contágio ideológico e de contestação, para sufocar qualquer
rcrigo de derrapagem, j)ara reforçar a ap�ecnsão da população, das emprc­
O ilusório segredo dos arquivos �as e da ju\.cntudc, para aperfeiçoar o si!:tema de enquadramento, de con­
Quatro anos se passaram depois dessa louca esperança, e é forçoso trole e de domínio exercido sobre os espíritos, para finalmente convcucer
reconhecer que as decepções são con1paráveis à dcs·proporção das expec­ a União Soviética e os outros países do pacto de Var;óvia a intervir mi­
tativas do ponto de partida. Confrontados a possibilidades inesperadas, litarmente na Tchecoslováquia.
mas também a problemas insusr,eitados, historiadore::; e usuários (vítimas Muito rapidamente, no entanto, renuncia-se a essas pretensões e
da repressão que consultavam seus dossiês individuais, tribunais que começa-se a perceber que tudo não é assim tão simples, que os novos
'1
deveriam pro11,unciar-se sobre a culpa dos dignatários e dos agentes do arquivos não falam a verdade por si só, que, como todos os outros
antigo regime, administrações que teriam de gerir a herança da RDA) arquivos, eles devem ser submetidos a uma crítica exigente das fontes,
tiveram de redescobrir, não sem dificuldades, o realismo, e aprender a que seu manuseio só pode ser feito se forem respeitadas as precauções
mt'<iéstia. éticas e metcd::ilógicas clei�1cr.tarr,s, e .:iuc mesmo bem utilizados, e
A paixão com que todos se puseram a trabalhar não deixou de dar interrogados a partir de questões pertinentes, não dispensam o histori­
res-.iltado::. Ao laco dos a�ontecimcntos mais cspeta.::ularcs e C:e maior carga ador de seu trabalho habitual de reconstitui c:;ão e de interpretação - e
emocional (exibir as estruturas de vigilância do regime e das ramificações não têm resposta para tudo. Quatro exigências se depreendem através
de espionagem interna, identificar" informantes oficiosos" <.:te.), cvocar-sc­ <lesse reexame.
:, A primeira é ressaltar a imperiosa necessidade da crítica das
á, a título de exemplo, o trabalho de reexame e de reescrita �tualmcntC:: cm
andamento - devido exatamente à abertura dos arquivos - de três momentos fontes. De imediato, efetivamente, os usuários, ·inicialmente arrebatados
cssenciriis da históna da RDA. O primcir._, diz respeito à história da repres­ �cio entusiasmo diante das fontes abundantes e livremente acessíveis,
são stalinista, não apenas com a reconstituição de suas dimensões maci '_:as, são remetidos às regras elementares do ofício, dificultosamcnte
arbitrá�ias e assassinas, mas-também com todo o trabalho de reestruturação edificadas por gerações de- prútica historiadora: Quem constituiu as
dos memoriais instalados nos antigos campos de concentração de fontes? Em que condições? Par..; quê? O que expressam? O que dizem,
Bu.::.hcnwald, Oranicnburgo/Sachscnhausen e Ravcnsbrück, alçados pr,la o que não dizem? A maior parte dos arquiYOS da RDA são efetivamente
RDA à categoria de santuúrios da resistência comunista e antifascista, e nos arquivos da superestrutura político-administrativo-policial, produzidos
q•13is se quer pôr cm prática agora uma visão mais diferenciada das coisas '?Or um regime de tipo autoritário e ideológico, que se servia de modo
e i:1tcgrar o período posterior a 1945, sem com isso situar no mesmo plano r>astantc intenso da propaganda política. Todos, por essa razão, inclusive
e� :mos 1933- 1945 e os anos 1945/1 ll..:9-: qs9. O segundo momento .='S mais secretos, encobrem tanto quanto rc\·elam. Os arquivos da polícia

co:1ccrnc ao levante de junho de 1953, que nos dias de hoje parece ter sido ,ou os relatórios dos "informantes oficiosos", por exemplo, têm também
be:11 mais do que uma revolta operária contra a ampliação das normas s,or função acobertar aqueles que os redigem, fazer com que seus autores
re:rrcntcs aos opcr.írios da construção ci,·il que tr:•balhavam na construção :::ejam tidos por eficientes, sendo, o mais das vezes, redigidos de modo
d:.:. Stalinallee, já que veio dar numa politizaçã,� extraordinariamente rápida -:iuc agraciem àqueles que os vão ler, pJra que se obtenham vantagens
d,, movimento (com convocação de eleições livre:� e de reunificação), ?ªra seus autores, promoções, ou simplesmente tranqüilidade, e para
�---:�hando o interior, as pequenas cidades e u:�::1 parte cio campo, e mcrgu­ .::ue comprometam terceiros sobre os qi.::iis poder-se-ia, cm seguida,
lr.::.ndc o partido comunista - totalmente desamparado diante de um levante :·azer pressão. Em tal regime de suspeita. jc repressão constante, mas
qi.:c não previra e que não chegava a compreerdcr - numa crise muito mais muitas vezes intermitente, tudo é dissimulação, tudo também é expressão
( 58 T
PASSADOS RECOMPOS OS
1
Compecências 159
1.
de desconfiança, de suspeita. Deve-se, por essa razão, considerá-lo
imagem que o regime queria dar - ao passo que convém, ao contrário,
'-omo a palavra do Evangelho? Acreditando-se CJUe, indo ao cerne do
recuperar sua complexidade, suas contradições, suas discordâncias.
sistema e abrindo os dossiês mais secretos, ter-se-ia enfim a verdade
A terceira exigência consiste cm ressaltar q;,ie as fontes não dizem
objetiva, a prova irrefutável, não se tenta antecipar a decepção, ou, pior,
tudo, não podem dizer tudo - mesmo quando as lemos escrupulosamente
não se corre o risco de ci!ir na armadilha que consiste cm pensar que
e formulamos as perguntas certas. Num sistema cm que controles e vi­
havic1 um maes:ro clandestino que regeria t•Jdo cm segredo, um grand�
<>ilância são fortes e múltiplos, todos aqueles que estão disiantes com
m:mipulador que puxaria os cordões das marionetes? Com isso, não se
;::;,

relação à linguagem oficial e às normas do Estado evitam expressar-se


estaria sucumbindo à teoria do complô cm que acreditavam precisamen­
publicamente, só deixam poucas fontes escritas (são numerosos os teste­
te (ou fingiam acreditar) os dirigentes do regime? N:ida poderia ser pior munhos nesse sentido de dissidentes, mas também de pastores protestan­
do que considerar ao pé da ietra o que dizem os arquivos, pois com o tes) ou mascaram sua diferfnça sob as ap:uências da conformidade. Não
pretexto da denúncia purificadora, cair-se-ia na armadilha que se pre­ esqueçamos, enfim, que toda uma série de processos essenciais à com­
tende denunciar, acreditando na imagem que o regime defunto quis dar preensão ;la história real da RDA foram tão discretos no seu desenrolar
de si mesmo - ao passo que, precisamente, as condições de seu desmo­ (condição de seu sucesso posterior), tãc subterrâneos, que o aparelho
ronamento demonstram a sua vaidade. A leitura dessas fontes não se policial, por desenvolvido e curioso que tenha sido, não os percebeu.

t.�-
improvisa; ela é :1!'! par•icul:;.nr.en!c difícil ?ara os leitores ocidentais Quando e como se deu o desligamento emocional de numerosos habitan­
1ue não passaram pela expcriên.,;ia imediata das sociedades socialistas, tes (finaÍraente majoritários) da RDA, a passagem da adesão (total ou
,. de seus códigos e de suas linguagens. Falsamente familiar, sua língua prcial) à suomissão resignada, depois à simples aparência de lealdade?
i,;!. deve ser pacientemente decifrada para recuperar as intenções muitas Quando e como esse distanciamento secreto transformou-se cm distancia­
vezes complexas dos autores e as lógicas implícitas de sua expressão mento ofensivo, indo dar na afirmação da dúvida, o fim do medo e da
(e de seus silêncios), pois, aí, como em qualquer outro lugar, nada é mais submissão? Por que, afinal, o aparelhe de controle e de vigilância nada
enganador do que a aparência da evidência. viu? Como entender que, como dizia Clemenceau de Poincaré, esse
A :;egunda exigência - de uma banalidade tal que se tem pouca aparelho tenha sabido de tudo e nada er.tendido? Tantas perguntas essen­

r
vontade de lembrar tão evidente parc..:c (m:is as situações de exceção ciais, e sobre as quais o historiador tem o dever de constituir su:i docu­
c:uacterizam-sc também pelo fato de que nelas esquecem-se freqüente­ m ...ntação - tendo para isso o recurso não somente às fontes escritas, mas
mente os escrúpulos e as cvidênc;as da "normalidade") - é não esquecer às fontes orais (oral ltistory).
que as fontes só começam a falar a partir do momento cm que as A quarta exigência é finalmente urna exigência ética, rcqt::.:rendo
interrogamos, e que a qualidade das respostas que elas. podem dar do pesquisador que seja particularmente escrupuloso e prudente, e que
coincide com a qualidade das questões que se formulam. Típica dos seja guiado por uma concepção rigorosa da verdade histórica. Essa exi­
erros de óptica freqüentemente cometidos (o:J dessas más questões), que gência de verdade é tanto mais impcrativ:i quant0 os riscos midiáticos,
ir:;pedcm avançar na descoberta, é a ilus:io �uc consiste cm ver tudo cm �mocionais e políticos do questio11amcnc�1 acerca do passado próximo
fi..:nção do fim, como se tudo estivesse de antemão condenado ao tra­ mantêm-se fortes, e os regimes defuntos, dos quais se deseja justamente
c2sso e ao desmoronamento - ora a RDA durou mais de quarenta anos manter distância, faziam uso _abundante d:i reescritura ideológica da his­
-. considerando a permanência do regime dos primórdios até o fin1 - tória e da manipulação do passado. Num ta! contexto, não se pode, não
a�� passo que convém, ao contrário, intcrr .:igar-sc acerca de possíveis se deve não cuidar do que se diz, e as d;mcnsõcs éticas do trabalho do
rupturas/etapas na evolução interna (considerar os quarenta anos como historiador tornam-se particularmente imperativas. Pois a história que se
u::1 todo significa tomar ao pé da lctr:1 ::: ::cçf10 de permanência, pcr­ trata de escrever ou de reescrever é, cm muitos casos, a história de homens
m:rnentemcnte recriada pelo regime), ou essa outra ilusão que seria a e mulheres que sofreram, que foram feridos, que estão marcados para
de acreditar que a realidade social e cultural da RDA correspondia à sempre e que reclam:im por justiça.
160 PJ\SSJ\00S RECOMPOSTOS Competências 161

exigência autocrítica que os jornalistas começaram a fazê-lo depois do


O imprevisto e o contingente? Camboja ou Timisoara. Mas a questão não se resume a isso. Muito do que
Para além enfim desse retorno às exigências p[imeiras do ofício, aconteceu antes e depois de 1989 era efetivamente imprevisívei <! surp;e­
surgem dois questionamentos profundos, um próprio dos alemães, o outro endentc, novo e cm ruptura - lembrando-nos que a i1istória é também feita
de alcance mais geral, que levam a pensar que os requestionamentos d-:: surgimentos e inov�ções, de acasos e de contingência, de liberdade e
ocorridos atualmente são mais do que simples ajustes. de espontaneidade. A verdadeira qucstã::i que se formula desde cnião é
O primeiro diz respeito ao lugar que se concede t história da RDA saber como considerar em sua justa medida a dimensão do imprevisto, da
na história da Alemanha. Esses quarenta anos de história efetivamente não surpresa e do acaso na história, como repensar essa última nas su.is dimen­
são unicamente uma história por escrever (ou por reescrever), mas tam­ sões de abertura e de contingência, como, por cons�guinte, modificar nossos
bém desafio de memória e um;,,memória por ..1ssumir - pelos alemães do modos de apresentação e de escrita do passado.
Leste e também pelos do Oeste. Trata-se de um desafio que condiciona Muito longe de proporcionar resposta para tudo, a abertura dos
o sucesso da •mificação alemã e cuja importância nunca é demais acen­ arquivos vai dar, ao contrário, num chamado ao trabalho, à exigência
tuar, pois o que está em jogo, finalmente, é ..1 integração do passado da metodológica e ética, à mpdéstia, à humildade, ao requestionamento das
RDA - em t::idas as suas dimensões - como parte constitutiva do passado certezas adquiridas. Em 1989, não foi somente o muro de Berlim que caiu,
alemão - sem que !)úr isso sejam requcstionad:is as aquisições da RFA e mas tambéni -- �ome�amcs �pe:1as a 110s dar conta - uma certa m�ncira

-l­
de sua nova relação com o passado e com a his.!ória (enraizamento europeu de pensar, de fazer e de escrever a história.
e ocidental, conversão democrática, rejeição do nacionalismo etc.).
A segunda questão ..:onsistc cm saber como pensar o imprevisto e

·1 reintroduzir a contingência na escrita histórica.. O ano de 1989 foi efetiva­


mente uma surpresa total, que ninguém J-:avia previsto - e o que vem
acontecendo desde então continua a frustrar os roteiros previsíveis. Essa

; .. constatação é sem dúvida alentadora - amda que seja na medida cm que


anula as teses sobre o "fim da história" invocadas durante algum tempo.
Mas é preciso não se deixar enganar quanto às suas implicações profundas
e quanto ao fato de que tal constatação rcp6c cm questão algumas das
legitimidades sobre as quais estava cstabclcciêo o trabalho dos historido­
rcs: ela não somente confirma a incapacidade da história de prolongar-se
em prospectiva, mas ainda revela a precariedade de nossos saberes, os
limites, a fragilidade e o caráter profuncl:1mcr_:c rclati\'O e determinado de
nossas reconstruções - ainda que seja cvidcnci:.ndo mais ainda a docilidade
da história, a quem se pode pedir que c:-:plic;ue tudo, e que se deixa tão
facilmente instrumentalizar pelos poderes vifcntes. Todo historiador que
tr:1balha com a RDA vê-se confrontado cm u:-:1 i,1omcnto qualquer com a
questão da cegueira da disciplina: timid:1mer·e colocada depois de 1989,
a questão ele saber porque os cspecialist:is d:.1 RDA criaram tantas ilusões
a seu respeito enquanto ela ainda vivia é ur.::i questão que estú longe ele

1
ter sido resolvida e para a qual seria conven:;:-nte que historiadores, cicn­
ti:-tas políticr's e p-.:squisa��ores de ciências soci:iis pensassem com a mesma
11:

TRÊS

A Erudição Transfigurada
Ouv1ER GurorJEANNJN

Durante muito tempo, a erudição manteria relações ambí­


1
guas com a história. A d•,?lomática, a paleográfica ou a heráldica
1 ainda eram, quando muito, ciências "auxiliares", enquanto já
1
participaoam no mesmo plano da re,wvação dos suportes histó­
ricos mais atuais.

A erudição muitas vezes é mal ju]:gada. Sem ir além do Trésor


! de la La,,gle Française [O tesouro <la língua francesa], onde se lê
i�diretamente o ideal do "mais preocup;ado com cultura do GUe com
:j." erudição" (Anatole France) e, positivamente, a desesperadora aridez
·1 intelectual do pesquisador perdido em "poeirentos trabalhos de erudi­
:1
i'
ção" (Simone de Beauvoir). Na melhor d-as hipóteses trabalho gratuito,
ªliberal", a erudição serviria apenas par.a proporcionar prnzer a quem
a pratica. E no entanto, ela aparece de pou1ta a ponta no livro-mestre de
Blandine Barret-Kriegel sobre a pesquisa! histórica nos séculos XVII e
i!1 ! 1 X\/III 1 • Não ver nisso senão a última moda, capaz de misturar um
indício de recuo e uma pitada de pós-modernismo, seria fácil demai<;.
l Pois a erudição e as disciplinas "auxiliares" da história, às qu .. is eia
freqüentemente se encontra associada, �.,citaram de modo inflexível,
tanto ou quanto explicitamente, em numernsos trabalhos históricos: não
exatamente na prática, que nunca as dei.--cara de lado, mas no discurso,
que as reivindicou, às vezes com ostentilição. O período medieval, cm
• I
que vamos nos deter mais particularme.nte aqui, manifestou-o ainda
melhor pelo fato de suas fontes estarem inicialmente bastante difíceis
e dispersas para que viessem a necessicar de um destacado "aparato
erudito", e bastante numerosas a ponto je deixarem um vasto campo
I ivrc para o trabalho do historiador. A heráldica, a sigilografia, ou
disciplinas mais austeras como a paleog.:-afia e a diplomática, vieram,
puis, não mais alimentar "querelas de er..iditos", mas contribuir para a
reflexão '>obrr as sociedades medievais.
164 PASSADOS RECOMPOSTOS Com/>ecências 165

tratado - sobre a história dos retóricos, que contrapõe à história cien­


Os gafanhotos do Senhor J assemin tífica. O título corresponde a um programa: Duas maneiras de e:;crever
"Quantas montanhas dialéticas serão necessárias para elevar os a ·história, ao passo que o subtítulo restringe o campo (Crítica de
espíritos, um dia, à noção de que, em história, é o 'fato' que vem a Bossuet, de Augustin Thierry e de Fustel de Coulanges). Mesmo se o
ser a planta rara, raríssima, e por demais preciosa: quanto às 'idéias', autor se perde um pouco no camir.ho, ele declara, r,o prefácio, buscar
estas chovem, formigam, devoram a verdade que se esforçava por uma "explicação para o fenômeno psicológico" por meio do qual um
crescer. Quem nos livrará dessa praga de gafanhotos?" Na sua infeliz espírito brilhante poderia passar ao largo das aquisições <la crítica (e da
resposta a un1 pesado ata(iuc de Lucien Fcbvre2, Henri Jassemin, autor ·erudição), como uma constatação clínica que pode ter sido formulada
de uma história da Câmara das contas parisienses na Idade Média, cum grano salis: "Cheguei_ à conclusão de que as !eis que regem a
replicou dando de certa forr.!a o testamento espiritual de um positi­ inteligência de um historiador f:lósofo, e aquelas a que a inteligência
vismo declinante. A aposta ultrapassa o âmbito de uma obra que se de um erudito obedece podem ser às vezes bastante diferentes, e que
tornou, invo:untariamcntc, e cm parte, pelo menos, bastante injusta­ pôr os dois de acordo � tarefa que apresenta, pelo menos em certos
mente, emblemática dos limites de uma história estrita dàs instituições. casos, dificuldades quase insuperáveis". Essa nova bgitimidade baseia­
Através de simplificações e torções sucessivas, o debate sobre o modo se em gr'lnde parte na crítica. Começando a praticar em larga escala a
de estudar uma instituição 'transformou-se ein ponto de atrito entre pilhagem intelectual que não deixariam mJis de l:::d0, os historiadores
erudição da crítica e crítica da crudiçãc. Mas erudição, crítica e ci­ importam tudo o que podem e que diz respeito a métodos e conceitos;
ências auxiliares mantêm entre si relações mais complexas do que método alemão, filologia, de preferência, já então constit-.Jída em ciên­
pode parecer à primeira vista. cia. Para perceber isso basta reler o plano da lntroduction ause étude�
A erudição histórica é, numa larga escala, uma criação dos grandes historiques [Introdução aos estudos históricos], de Charles-Victor
arqueólogos do século XVII, descobridor� polivalentes, ao mesmo tempo Lang!ois e Charles Seignobos (1898), que, .sinal dos tempos, acaba
que pesquisadores insaciáveis, vivendo em perfeita simbiose com a socie­ justamente de ser reeditada3 e que descreve e prescreve suces.;ivamente
dade política e as grandes aventuras intelectuais de seu século - simbiose a crítica da restituição, a crítica da proveniência, a classifi:::ação crítica
talvez mais profunda, e em todo caso mais feli7, do que a cln positivismo das fonte!;, a crítica da erudição, a crítica da interpretação, a crítica
com a ciência experimental; o método cartesiano, o processo classificatório interna negativa da sincerid.ade e da exatidão, todas operações de análise
de que as ciências da vida iriam também aproveitar fornecem referências instalando-se an!es ca determinação dos fatos particulares e· as opera­
essenciais a seu trabalho. Mabillon, que est:ibeleceu os fundamentos da ções de síntese. Mas por engrandecerem demais a "crítica", conferem­
diplomática (1681); de Cangc, os da lexicografia do latim medieval (1678), lhe uma posição ambígua. Palavra-mestra, espinha dorsal do método, a
p:ira não citar mais do que dois exemplos, não oferecem apenas instru­ crítica se encontra em toda parte, por demais presente para que não
mentos de trabalho ou conselhos. Herdeiros de um século XVI que ins­ termine por acantonar-se, cm suas ambições, contra a corrente.
cicuiu como dogma o corte com o passado, contemporâneos de uma nação Para a crítica são fornecidas armas pelas "ciências Juxilia;cs".
e de uma monarquia recém-criadas, eles fornecem terra firme para o Langlois e Scignobos ainda se acreditam obrigados a pôr a expressão
historiador, elaborando procedimentos tidos hoje em dia como refinados, entre parêntesis e declaram mesmo que não a empregam sem alguma
mas sempre funcionais, de investigação e de validaç;io dos "vestígios" reserva, mas preferem-na, no entanto, a "ciências satélites" ou "ciências
monumentais/documentais. ancilarcs". Pois, na expressão, não é a pJlavra "auxiliar" que os inco­
O segundo período importante instala-se dois séculos mais tarde, moda, mas, a "ciência": estatuto científico que não reconhecem àquela
quando a história pretende ser c:ência. P:ira sentir o que se passava filologia, que arregimentam com a tranqüila audácia do parisiense su­
então, basta abrir o livro em que, cm 1896, Henri d' Arbois de Jubainvillc ficientemente distante de Hcidclbcrg e Leipzig. Técnicas auxiliares,
expõe uma série de obsl,;rvaçõcs polêmicas - mais do que um verdadeiro amores ancilares culp,."dos, o essencial para eles é dispor na história-
1
I· Co�pecências 167
166 PASSADOS RECOMPOSTOS

1 c:iência-mestra, pedras bem talhadas, conforme o modelo da servidão documento vinha responder a um número diverso e cm todo caso,
/' medieval. Alcnnçaram demasiada repercussão, e, para considerar um só insuspeitado, de questões.
1 O documento tornava-se instável, mesmo se seu estatuto permane­
exemplo, é suficiente ver de que modo, no Manual de diplomarique
[Manual de diplomática] (1894) de Arthur Giry, brilhantes intuições, ci� privilegiado. Uma outra etapa devia ser vencida qua�do se deitou por
q 1.1e se desenvolvem ainda hoje, sobre uma diplomática comparativa terra um outro credo positivista, relacionado ao estatuto do verdadeiro e
aberta aos temas id�ológicos e à circulação c;os mndelos entre chance­ do falso. Confrontado ao letrado que mente, o documento de arquivos
larias, são a c�da página contidas -pelas exigências de um.i profissão parecera, por muito tempo, possuir um valor intrínseco mínimo (funcio­
nal, é árido; repetitivo, está sobrecarregado de fórmulas), mas garantia ur.1
positivista, quase monacal sobre o modelo beneditino.
Auxiliar do positivismo triunfante, a erudição crítica não ma tão testemunho mais seguro (o autor não se representa para a posteridade).
cedo ser salva da pesada servidão pelo declínio deste. Muito pelo contrário, Uma vez afastada a suspei,ta de falsidade, ele caía bem, no caso de dizê­
recebeu os golpes que lhe eram destinados por sua excessiva identificação lo bem. E era o caso de se confundir autenticidade e sinceridade. E
a €le. Continuavam existindo duas maneiras de· se escrever a história·' a também, ,de se deixar de lado o essencial: ele próprio produto da história,
legitimidade do empreendimento e dos métodos críticos encontrando-se o mais modesto pergaminho rabiscado µelo mais simples dos copistas
efetivamente confirmaca, o homem por abater não era mais o historiador­ também é uma representação, a conjunção de uma necessidade· de csc:rito
rctórico, ainda que ele continuasse n brilhar, mas agora fo,a da corporação; e de normas de escriia. Nova dificuldade, portanto, no caminho do his­
o erudito limitado tornava-se o modelo dJ outra (má) maneira de escrever toriador. Nova riqueza também. Charles-Victor Langlois, confrontado aos
a história. A representação esquemática tinha e ainda tem vida difícil, textos literários, observara que de fato a "m.::ntira" estava em toda parte.
enquanto que os trabalhos históricos, alimcntad-Os pelas grandes pesquisas Mas o que se tornara uma aporia ("todas as testemunhas mentem") abria
u m novo caminho ("a mentira das testemunhas é rtveladora"): ao deslo­

�hn:
monográficas, prevalecendo-se de uma científicidade ainda maior, viam
tornar-se pesado o aparato erudito. O debate encobriu, no entanto, uma car-se, o estatuto da "mentira" deslocava L!.Illbém· a d:reção da pesquisa.
No sentido estri'.o, o "falso" tornava-se objeto de.história, como revelador
evolução mais secreta, e de um alcance bem diferente, a do próprio e:;tatuto

l:
acerca do falsário, e não foi por ac�:;o que os estudos sobre a falsificação
do documento, e não o artesão-historiador.
de documentos ganharam novo impulso6• M:as para além das falsificações,
1 t A revolução documental· e historiador era incitado a -uma "desmontagem" do documento (J. Le
' li
1 Goff). A crítica, em seu sentido ctimológic.o de olhar, um olhar fértil em
E se trata, de fato, de uma verdadeira "revolução documental",
questionamento, reencontrava seu lugar. Relativizando, no sentido forte
se nos permitirmos retomar a expressão de Jacques !e Goff 4 , revolução
tranqüila e profunda, que prolongou as conquistas históricas do século do termo, as fontes, essa evolução pôde levar ao niilismo e ganhar o
XX. Essa revolução faz-se cm duas direções. Primeiramente, ao credo Msentido deletério" que Lucicn Fcbvrc recriminava na erudição ininteli­
positivista implícito da equivalência entre documento e questão (formu­ gente: mas não é porque um documento mente que se pode fazê-lo dizer
lar a questão, saber encontrar os documentos que respondem a ela), qualquer coisa. Mais amplamente ainda de que uma decifração, trata-se
sucedeu a era da polivalência: cm um prirneÚo momento, com uma da própria forma do documento - procedimentos de composição, normas
prodigiosa bulimia intelectual, mostrou-se que não apenas as questões de apresentação, formulário - que, por Sll2 vez, tornou-se objeto de his­
se desdobram até o infinito, mas também que vários tipos de documen­ tória. Desse modo, o historiador conquisto-·1 um novo território cm que,
tos podiam responder a uma questão do historiador: documentos diver­ para ser preciso, o centro encontra-se cm rnda parte e a circunferência,
em parte alguma, na proporção do que esci cm jogo: a reapropriação, ao
sificados encontrados no caminho, mas também documentos que ele
próprio constituía (a forma dos campos lida no cadastro moderno por mesmo tempo global e lúcitla, da fonte, e Í::>.;-o no âmbito de uma "história
Marc Bloch, historiador dos campos 5 ), e que vieram exigir novas com­ !'.)tal", de preferência a "global", de que, entre os medicvistas, Jacques
Le Goff e Pierre Toubert tornaram-se os àefcnsorcs em 1977.
petências do historiador. Posição inversa m.!S conseqüe-nte, um mesmo
11• I
!68 PASSADOS RECOMPOSTOS
Comt,erências 169

'l
através de uma cronologia fina (aqui complicada, e nisso reside a di­

.111. ·!
A. hc,nra recuperada das ciências auxilia·res
ficuldade, por uma variedade particularista das experiência;;); permit�m
Essa dupla evolução, do estatuto das fontes e do olhar lançado sobre igualmente ver que, em 1050, não se redig<! um ato de ,venda co,n9 em
elas, permitiu celcbr.!r novas núpcias entre história e ciências auxiliares, a 1120, nem como em 1180, e perguntar por quê. De um períodq a ouiro,
1' primeira descobrindo um novo objeto, as segundas vivificadas, vendo n·o complexo entrecruzamento das gramaturas dos d�cumentos e �a
! j1 abater-se sobre elas um alimento conceituai e não uma praga de gafanhcios. pressão das necessidades (até mesmo da influência do tab.elião, �'erso­
Os documentos de arquivos, cm seu duplo estatuto de escritos e de nagem cultural de rdevo, sobre seus contemporâneos), o diplomatista
títulos, são sem dúvida aqueles que resistiram por mais tempo, tanto assim põe assim, ao serviço do historiador, observações permitindo-lhe explo­
que, desde os anos 1950-1960, as operações estatísticas e a magia rar as informações (opção positivista); mas elab01a também um material
informática até poderiam dar uma, ilusão de cientificiC:ade beneficiadas histórico, em que a evolução das formas do documento torna-se um
pelos resultados de sua seriação. No entanto, a etapa foi importante por documento, revelador, no _primeiro caso, da explosão dos intercâmbios
ter servido, melh,:,r do que a história positivista (que já prescrevia rasgar e do numerário, no outro, do "renascimento" do direito romano com o
o invólucro das fórmulas para extrair o metal precioso do "fato"), para que este acarreta (e legitima) de mudança do poder. E no mesmo tempo,
desmontar o documento, romper, portanto, com o respeito (com a pregui­ longe de acumular os conhecimentos, esses foram desfeitos. r O ato
ça) de seu leitor. Mas, no que ,.;oncerne a certas irregularidades, ela cartorial permite conhecer um poucu pior (ou simplP.smente um pou-::o
) .:
I•
contribuiu para alçar ao nível de dado, objetivo e intangível, as informa­ menos) o testador ou o proprietário d0 que se acreditava, mas conhece-
,j ções ''re!iracias" do documento. A arquivística e a diplomática intervêm se melhor o tabelião.
i\'1 ::i·� _,.,
.'
l ,,i. aqui. Louis Stouff deu uma bela ilustração disso no caso arlesiano, çara A paleografia deixou mais cedo �e ser um catálogo de- abrevia­
demonstrar até que ponto as pretensas evoluções . desviaàas das séries ções e de formas permitindo o deciframento e a datação das escrituras9 •
1\,1!
poderiam estar desnaturadas pelo estado da documentação,_ ela própria
,.
·�· i 1; Uma revolução foi tranqüilamente realizada, h� muitas décadas,quando
reflexo de vicissitudes posteriores (destruições cegas) ou de uma organi­ a escrita na sua materialidade não foi mais concebida como um cnnjunto
I'� i: zação socioprofissional (métodos e divisão Jo trabalho no próprio cartó­ de sinais justapostos, mas como o produlo de uma dinâmic?., o correr
1
rio, relação com os clientes): semelhante evolução, pode, desse modo, da pena determinando ·o ductus da escrita. Era um meio notável ·de
1 I' limitar-se à simples passagem, na pscudo-"série" estatística, do registro leitura e de ensino das escritas difíceis (baixa Antiguidade, época
detalhado de um tabelião a outro7 • moderna), mas também u·m requestionamento da concepção das evolu­
1 ·1'
Mas há também um aspecto qualitativo. Aqui ainda refreada pelo ções gráficas, portanto também, a mais lm;igo prazo, do próprio P-statuto
positivismo, a diplomática manteve, sem desenvolvê-la, toda a riqueza das da escrita. A pesquisa estava também melhor aparelhada para atacai- a

l
atas para o estudo da expressão de temas ideológicos fortes nos preâm­ questão dos ateliês de escrita como manuscritos "pessoais" (autógrafos
bulos dos documentos, eclisiologia no século À1 ou concepção do poder de autores), cm que suas curiosidades fora:n alimentar as da codicologia.
rca� na baixa Idade Média, ao mesmo tempo que pressentia a dificuldade Emanação da paleografia no que concerr:� ao estudo do supNte m.!is
cies.se estudo: sua defesa e ilustração viria cm 1957, por intermédio de um do que a escrita propriamente dita, a disc�plina nasceu toda aparelhada
diplomatista e historiador austríaco, Hcinrich Fichtenau. Mais tarde e com novas curiosidades. Pesquisas pioneiras, realizadas, como para a
mais dificilmente ainda é o próprio estatuto do ato c�-::rito que pôde tornar­ paleografia, nos anos 1930, já haviam escudado os modos de produção
se objeto de pesquisa, como Dominiquc Barthélemy o demonstrou no que do livro universitário: a observação de m..--.destos vestígios, gráficos ou
concerne aos habitantes de Vcndôme (Loir-ct-Chcr) da Idade Média ccn­ materiais, nos manuscritos conservados, permitia compreender como as
tr..il�. E para retomar o exemplo cartorial, os estudos diplomáticos abun­ autoridades universitárias tinham reagido diante de duas necessidades
dantes realizados na Itália sobre uma produção cartorial inigualável pela contraditórias: o controle d0s textos copi.zdus e sua reprodução manus­
sua quantidade e sua !'rccociclade permitem balizar a_ evolução das formas, crita cm larga escala par:: um público numeroso. Muito rapidamente, a
Corn/1etênciru 1 71
170 PASSADOS RECOMPOSTOS

histórico. Nesse estado de coisas, muitas vezes deplorável quanto aos


codicologia respondeu à estimulação da história material do livro im­
resultado:;, as responsabilidades, é verdade, são bem divididas entre os

1
presso, multiplicando os estudos de atcliés de cópia e de bibliotec2s.
q·ue desprezam e os preguiçosos.
Aperfeiçoamento da arte, já medieval, da catalografia dos livros, a
Menos sc1pletivas do qu_c esclarecedoras, as ciências auxiliares justa­
codicologia voltou-se resolutamente para a história cultural. Não se trata
põem, por um lado corpus de dados e de técnicas de análises, por outro,
l, mais, em ligação com uma história de arte concebida como uma história
observações propícias a alimentar a reflexão wbrc o estatuto da fonte no meio
11 das obras-primas, dr, estàbelecer o mapa dos "grandes centros" de es­
l1l1 '
produtor e debaixo do olhar do historiador 11 • Muito conhecidG pela arqueo­
l crita e de estampa, nem de estabelecer sua filiação. Não se trata mais
logia, onde suscitou virulentas polêmicas, o problema· de seu estatuto face
ou não somente, de fazer, em ligação com a "história das obras e da�
'll idéias", o inventário dos manuscritos de obras lite�árias e doutrinais. O
à disciplina histórica no seu conjunto pôde parecer regulado por uma nova
importação terminológica alemã: as "ciências auxiliares" (Hilfswisse11s­
quantitativo serviu para o estudo ua difusão e da circulação dos manus­
chafte11, o que já fica melho1') seriam de prefer6ncia "ciências fundamcnt:iis"
critos; o qualitativo mais refinado, perseguindo o menor signo, permitiu
(Grundwi� senschaften), com um campo específico tão evidente quanto seus
compreender melhor as atitudes do possuidor de livros.
métodos eram bem experimentados. A filologia, a numismática, a epigrafia
Fantasia de colecionador ou passatempo nobiliário nostálgico, a
mostravam o caminho. Mas seria suscitar um nov..1 risco de corte, provindo
1 heráldica não é mais absolutamente a auxiliar que permite descobrir 0
'1 do refinamento e da tecnicidade de alb"Umas das pesquisas comprometidas.
possuidor de um manuscrito du o comandicário de um vitral. O brasão é
Pois se o consenso faz-se em cima das aquisições, na verdade muito par�iais
um "monumento" acerca do qual progressivamente se percebeu todo 0
e marcantes. existe sempre, em sentido inverso, um possível retomo do
il' ., ' peso simbólico. Sua língua, seu lugar nas mJJ1ifestaçõcs do parecer fora�
portanfo intimamente penetradas. Vivificada pelas _questões da antropo­
recalcado, em que o especialista se entrincheira numa cicntificid_ade hermé­
! tica. Situação em que se enc0ntram, de resto, discirlinas irmãs, como a
li
l�gi� histórica (em particular a história das estruturas familiares) e da
l l, _
1
história da liturgia ou a história do direito �ue retomam, elas. também, de
hrstona cultural (semântica, percepção da cor, de que Michel Pastoureau
!i •i 11 modo acentuado ao próprio cerne da história medieval. Situação enfim que
• '( 1
faz a exploração que se conhcce 1º), a "ciência do brasão" se cons:ituiu
1 1: coP-xiste com um inquietante balanc:o: jamais tão bem reconhecidas, as
desse modo não mais como adjunta ocasional da crítica, mas cc:no uma
:r:\. ;•.
• ! disciplina, autÕi1oma, pois ela também trabalhava e renovava um corpus
"auxiliares" nunca foram tão pouco ensinadas. A hora sem dúvida não é
para proàução de uma nova História e seüS n,étodos, mcr:c:; ainda para uma
documental sobre a base de métodos específicos.
nova Introdução aos estudos históricos: os historiadores franceses parecem
preferir a interiorização dos preceitos de oosc 12 • A profusão das pesqui,,as
Auxiliares ou fundamentais?
e a explosão do campo documental tomam tanto mais urgente a repartição
Os cortes, sabe-se, não estão sempre onde se acredita. Lucien
das experiências.
Fehvre via ainda cm Mabillon um grande uprovedor de matéria-prima
Pouco importa afinal o dcstin0 que a língua reservará à palavra
h:,,:tórica": uma fórmula bem no espírito de Charles Seignobos, no que
"erudição". Há um, sem dúvida, que me:.:-ccria um melhor destino: o de
1. e;;ta pressupunha, quando nüo um procedimento cm dois tempos (o
crítica, se quisermos entendê-lo em sentido mais amplo. O exame crítico
dcx:umcnto, depois a construção), pelo menos uma repartição de papéis
dos poucos vestígios que conseguiram st:bsistir das sociedades passadas,
e das intervenções (um erudito e um historiador). Por conta disso,
como palavras gélidas que é preciso csqu;:,ntar, a maior parte conservados
er.tendc-sc de fato que alguns se percam pelo caminho, ou não possam
porque estavam melhor preparados, out:..1s, pelo mais puro acaso, esse
st:hir muito alto: prazeres refinados da erudição, dando voltas, psico­
exame permite, portanto, sentir um pouc-....1 menos mal, um pouco menos
lc-gicamcntc valorizantes, por natureza inc0111unicáveis. Ou que outros
friamente o homem per dct•ás de seus v-::5-tígios, e isto não é o essencial?
qccimem etapas. Que os terceiros, enfim. sif.:im com muito esforço todo
o caminho. Compreende-se também que se pense freqüentemente, e
Sl'hrctudo na França, que uma cdiçüo de textos não � um trabalho
172 PASSADOS RECOMPOSTOS

Notas QUATRO
' B. �arret-Kriegel, les Historiens e/ la Monarc/rie, v. II, La Défaite de l'ér,,dition,
Paris, PUF, 1988. ·
2 A:males d'Histoire économique et sociale, março e jwh<:>, 1934.
A Ascese do Texto ou
o Retorno às Fontes
' c.y. Langlois, C. Seignobos, /11troductio11 aux i.Oldes lzistoriques, Paris, 1898,
reimpressão com um prefácio de M. Rebérioux, Paris, Kimé, 1992. JEAN-LOUIS GAULIN

• J. Lc Goff, "Documento/monumento", in Enciclonedia


r Einaudi ' t. v. Turim ' 1978 ' pp.
38-48.

' M. Bloch, les Caracteres origi11a1.1: de l'/ristoire rurale française' Paris-Oslo 1911 · O trabalho de p.iblicação das fontes é um dos mais tradicionai.,·
1· ' '
reedição, Paris, Colin, 1988. em história medieval. Mas, por essa razão, seria preciso abandonar as
edições críticas dos textos como os historiadores franceses parecem
'A. Grafton, Fa!,ssaires et critiques. Créativité et duplicité c/1 ez les érudits occidentau.x'
Paris, Les Belles l..ettres, 1993 (edição original, Pri1i.ceton, 1990). decididos a fazer (diferentemente de seus colegas alemães)? f\. insi;fici­
ência quantitativa e qualitativa das fontes publicadas constitui na rea­
7
L Stcuff, "l..es registres de notaires d' Arles (debúc XIV• siccle - 1460): quelques
problcmes posés par l'utilisation dcs archives notari:l-J::s", Provence /ristorique, XXV, lidade um freio à reno•,ação das prohlemáticas. Devido ao poder das
1975, pp. 305-324. técnicas informáticas, a hi:;túria cultural dos textos medievais, que daqui
para frente leva em conta o conjunto das variantes, ganha uma nova
1
D. l:farthéle'lly, la Société dans /e comté de Vcndõm,e-' de J'an mille au XIV< siecle'
· significação, e as bases de dados documentais oferecem ferramentas
Paris, Fayard, 1993.
maleáveis e infinitcmente mais atuantes para responder às múltiplas
'�io-me aqui �a análise de D. Muzerelle, "Un si ceie� paléographie Jatine en Fr:ince",
m Un seco/o d, paleografia e diplomatica (1887-1986), Roma, 1988, pp. 131-158. interrogações dos historiadores.

''" M. Pastoureau, Trai!é d'/réraldiquc, 3. ed., Paris, Pic-.ard, 1993.


A edição crítica dos textos e documento_s da história da Idade
" Para_ um último balanço, ver o relatório coletivo "S.::ienccs auxiliaires de f'his!oire Média continua sendo, há muitas décadas, o parente pobre de uma
méd1évale", in l'Histoire médiévalc c11 Francc: bilan: et perspectives, textos reunidos disciplina em outros aspectos muito õinâmica l . As dificuldades pró­
por M. Balard, Paris, l..e Seuil, 1991, pp. 471-499.
prias ao estabelecimento e " impressão das fontes escritas são apa­
,z \�r particularmer.te F. Furet, l'Atclier de l'/ristoirc, P:zris, Flammarion, 1982: sobre as rentemente suficientes para explicar essa situação. Publicar coletâ­
diferenças de abordagem em numerosos outros paÍS<!:s europeus, pode-se tomar como
exemplo o recente manual universitário de J. Pycke, La Critique /ristorique, Louvain- neas de títulos, testamentos ou tratados jurídicos exige competências
1:i Neuve, 1992. específicas e muita paciência da parte dos pesquisadores. É preciso
também que estes possam contar com instituições capazes de finan­

,. ciar as custosas publicações e prever :i sua programação no longo


prazo. Mas tal esforço, ao mesmo tempo individual e coletivo, ainda
teria sentido hoje cm dia? Os historiadores da alta Idade Média - que
se deve aqui estender até o final do século XII - podem, efe,ivamen­
te, apoiar-se na massa dos textos � dos documentos já publicados.
Sua tarefa principal não é evidentemente de completar esse corpus
de fontes legado pelos eruditos dos séculos passados, e sim submetê­
lo a novas interrogações, e renovar a sua interpretação. As pesquisas
referentes ao fim da Idade Média apóiam-se numa outra ordem
174 PASSADOS RECOMPOSTOS Competências 175

documental, muito próxima desta que o historiador dos tempos mo­ nascia er!l 1875; passados nove anos, a Escola Francesa de Roma lançava-
dernos faz uso. A investigação histórica, conduzida nos depósitos se ;:ia publicação dos registros da chancelaria pontífice.
dos arquivos, desenterra uma massa de documentos cada vez maior, Essas poucas datas balizam a mola da história positivis!a elabo,ada
do século XIII ao XVI. Esses múltipios documentos inéditos, sus­ no século XlX. Essa história baseava-se no dogma absoluto do documento
cetíveis de tratamentos !!m série, não pedem evidentemente ser ob­ _ interpretado então no sentido mais estrito de texto - cuja crítica !evada
jeto de publicaçi'ío, a não ser na forma de "trechos selecionados". ao extremo deveria per:nitir que a autenticidade fosse garantida: "a c;ince­
A questão das fontes e de sua publicaçJi.0 parece c.olocar-se hoje, ridade e a exatidão", preliminares de toda e qualquer utilização. Na s11a
no entanto, com uma acuidade nova. Na prática, assiste-se - há ?0uco busca de verdade absoluta, semelhante história acharia na filologia uma
tempo - à retomada de empresas antigas, assim como às iniciativas novas aliada natural e tranqüilizadora. Ciência nova, nascida na Alemanha, na
em matéria de edição de fo11tes, em língua original ou em tradução. De primeira metade do século XIX, e introduzid:\ na França por G. Paris, a
1
um ponto de vista técnico, a informática já modificou os procedimentos filologia destacava-se por estabelecer a nrdade de um texto a pariir das
de estabelecimento dos textos, e mais radicalmente ainda a reprodução diversa� versões conse.-vadas. A eliminação dos erros cometidos, volunta­
e a interrogação das fontes precedentemente publicadas (tratamento de riamente ou não, por copistas descuidados ou malfazejos deveria permitir
texto, leituras ópticas, apresentação de um número significativo de obras :emontar, valendo-se de muita paciência crítica, até o ·texto original dese­
li em CD-ROM). Enfim, !10 ei:t;ico ele inr.erte-ra teórica característico elas jado por seu autor. No final do século, o manual ce Langlois e -Seignobos
ciências históricas há vários anos, a publicação das fontes poderia cons­ estabelecia logicamente a análise dos textos no cerne da aprendizagem do
tituir, com ou sem razão, um ponto de enraizamento, um valor-refúgio. of:cio do !1istoriador2. Para fazer história era preciso, primeiramente, esta­
Por todos esses motivos, parece oportuno redefinir o estatuto da publi­ belecer de modo crítico seus .documenlos.. C. Langlois, aliás, praticara ele
c-:,ção das fontes no seio da atividade dos historiadores da Idade Média. mesmo a publicação das for,tes sendo responsável Feio primeiro volume da
A s páginas que se seguem não constituem de forma alguma, portanto, uma série dos Documentos financeiros da Cole.tii.nea dos historiador;1s da Fran­
vistoria da publicação das fontes documentais e narrativas. Após chamar ça, promovid2 pela Academia das inscrições e belas-letras a partir de 1899.
atenção para as relações estabelecidas entre a interpretação das fontes e Desde então, esse movirr::::nto propiciou inúmeros resultados e
·-1 sua publicação, gostaríamos m11ito simplesmente de delinear os limites da encontrou também dificuldadl!S que não temos o propósito de retomar. É
11 situação atual e, depois, imaginar as formas e as finalidades que o esforço preciso cm compensação .insistir nos requestionamentos de que foram
de publicação das fontes pode nsst:mir hoje em dia. alvo tanto a história erudita como a prática da publicação das fontes,
primitivamente tão próximas uma da outra.
Mor_ta a rainha filologia A primeira ruptura, de ordem historiográfica, foi provocada pelos
1 .!
No século XIX, o desenvolvimento d a história erudita dava-se lado fundadores das Annales no período compreendido entre as duas grandes
a lado à publicação das fontes históricas. Os empreendimentos editoriais guerras. A nova história forjou-se em parte contra o dogma das fontes
cr2.m numerosos, dinâmicos e ambiciosos. Pela empresa alemã dos escritas, ela se dizia "revogação do pri\-ilégio exclusivo do escrito, e a
Mo11ume11ta Germa11iae Historica (1826), trabalho pioneiro de edição fortiori, do texto3 " (K. Pomian). O historiador devia multiplicar e diver­
crítica das fontes medievais, respondem desde 1834, sob o impulso do sificar os objetos do passado suscetíveis de iluminar suas pesquisas. Foi
ministro e historiador Guizo!, a "Coleção dos documentos inéditos sobre então, por exemplo, que, segundo uma rerspectiva inaugurada pelo pró­
a história da França", que está na origem :lo Comitê dos trabalhos his­ prio March Bloch, a história do campo àcixou de confundir-se com uma
tóricos e científicos (CTHS). De 1844 a 1S55, o abade Migne e seus história da condição jurídica dos homens e das instituições senhoriais.
c�,!aboradores publicaram a Patrologia !aúna, ou seja, 221 volumes Inscrita no longo prazo, aberta ao com;:::Hativismo, atenta à contribuição
abrangendo um conjunto inigualável de text".'s eclesiásticos do fim da da geografia e da sociologia, a história rural deveria também diversificar
Antiguidade e da Idade Média. A sociedade dos t(!xtos antigos franceses suas fontes: interpretar não mais unicamente textos, mas também
176 PASSADOS RECOMPOSTOS Com/1ecências 177

ferrameP.tas agrícolas e objetos conservados nos museus, ou então ainda, quando �lcs ascendem ao estágio da pesquisa. É tanto mais difícil :!nsinar
títulos, mapas, cadastros e imagens4 • O i nvestimento desses novos e as técnicas de análise das fontes em documeatos traduzidos e reela­
ap,!ixonantes territórios históricos, que completam e fazem concorrên.::ia borados, isto é, já interpretados.
à história baseada na documentação escrita, explica em parte o desinte­ Declínio relativo do primado das fontes escritas, progresso e espe­
1 resse :elativo que pôde conhecer desde então - e especialmente na F�ança cialização das·disciplinas que conconcm JJªra a publicação de documen­
11 • - a publicação das fontes escrit�s. Sem dúvida esse era o preço a pagar tos, preparação t§cnica insuficiente dos aprendizes historiadores, essas
pela renovação das ciências históricas. Acrescentemos de todo modo que são as principais razões das dificuldades atuais da edição de textos.
os herdeiros dc.M._ Bloch esqueceram talvez muito depressa que este não Constata-se então, sem surpresa, que a renovação das problemáti­
se recusou a editar uma Vida, inédito de Édouard, o Confessor, como cas não é mais seguida pelos progressos no domír.io das publicações de
trabalho preparatório aos Reis taumaturgos, esse livro :ião tendo equiva­ fontes. É lamentável, por exemplo, que � muito recentes pesquisas rea­
lente na historiografia francesa5• lizadas em história urbana há duas décadas não tenham descoberto um
Num segu_ndo tempo, as inovações realizadas pelos. técnicos da corpus significativo de fontes impressas. Mais acentuada na França do
edição dos textos explicam - de modo aparentemente paradoxal - os que em outros lugares - a obstinação e o vigor da edição alemã suscitam
resultados quantitativamente modestos da edição de fontes medievais. A há muito tempo a admiração e a inveja do historiador francês -, essa

l';'
paleografia e a codicologia realizaram efetivamente imensos progressos: situação que pr;v;legia o c0n1cntário e:n detrimento da renovação da
1°•1
1
estudo das tintas, das mãos, do pergaminho ou do papel, da paginação, documentação condiciona um retomo à pesquisa histórica.
da el1caderriação, dos sistemas de referências (indicação dos cadernos, Não nos deteremos no fato de qu(' mesrr..o nos pri:neiros séculos

. ,. i
ri
1:
dos capítulos, dos quadros e índices). Elas deixaram de ser técnicas
auxiliares e constituíram-se como ci&ncias autônomas, disi:,0ndo de sóli­
da Idade Média - pobres cm documentos e proporcionalmente melhor
cobertos pcia publicação de fontes - um crescimento do corpus das fontes
1' das instituições (Écolc dcs Charles, École pratique des hautes études, disponíveis ainda é possível. A invenção de 110':os testemunhos escritos
Institui de recherche et d'histoire des textes) e de revistas especializadas é um acontecimento e diz respeito freqüentemente aos textos e dor.umen­
1 1: (Scriptorit::11, Revue d'histoire des textes). Essas disciplinas trazendo tos chegados até nós cm más condições de conservação. A exploração de
1 :;
novas exigências fazem da edição de tC;xtos um exercício mais árduo do tais descobcrl:is, apesar disso, é importante. Foi desse modo, por exemplo,
', ! ,..•i que nuno1, a que o historiador se dedica com inquietação e risco. Mais que a descoberta e a edição de documentos contábeis do século VII
1'1 rigorosa, a edição dos textos antigos tornou-se também mais ambiciosa. provindo da abadia Saint-Martii-, de Tours melhorou nosso conhecimento
N5.o se trata mais de apenas publicar testemunhos do passado (�� um da economia rural do começo da Idade Média7.
ritmo moderado em razão das exigências crescentes), mas também de A insuficiência quantitativa e qualitativa. das fontes publicadas
elaborar uma verdadeira história das fontes manuscritas, de sua produção tende a tornar-se um freio à exploração de certos domínios da história.
e conservação. O estudo das escritas e de seus suportes veio dar Os esforços consagrados ao livro manuscrito fornecem uma ilustração
loficamentc, desse modo, numa história material do livro medieval. disso. Devendo sua problcm:ítica a uma cultura renovada de vinte anos
Outros fatores contribuem para explicar o esgotamento do filão para cá pelos historiadOícs do livro impresso8 , os especialistas cm manus­
das edições críticas. Pensemos, especialmente, no lento declínio do critos medievais tentam reconstituir as condições de produção, de circu­
ensino cm latim, língua cujo conhecimento contin•ia sendo indispensá­ lação e de consulta do livro manuscrito. Múltiplas listas de livros,
vel ao medicvista6. Tendo deixado de ser uma língua de civilização estabelecidas por ocasião de empréstimo:; ou de vendas, assim como
veiculada pelo ensino secundário, nem por isso o lat:m tornou-se uma catálogos estabelecidos pelos bibliotecários ou possuidores medievais,
cs,:.-�cialidade cuja aprendizagem - cficazr.1entc organizada pelas foram conservados; ora, p:ira essa fonte fundamental, só dispomos atual­
universicl aclcs segundo o modelo das línguas raras - poderia permitir aos mente na França - diferentemente dos pesquisadores alemães, austríacos
estudantes voluntários adquirirem a base que freqüentemente lhes falta e ingleses, e salvo exccçõ"S significativas. como a biblioteca da abadia
178 PASSADOS RECOMPOSTOS Compeiências 179

de Clairvaux - de edições muito dispersas, incompletas e muitas vezP,s rnúl.iplas bibliotecas. Não seria preciso também, nessas condições ,
envelhecidas. Essa lacuna torna muito difíceis as pesquisas que têm por redesco!,rir u escrito, o texto que se impôe preliminarmente aos histo­
objeto as coleções antigas de livws, limita o c0tejo dos manuscritos riadores face _a qualquer ·interpretação?
subsistentes e menções antigas, e, definitivamente, cria obstáculo para a
compreensão da cultura medieval. Repensar o trabalho de edição
A inadequação das fontes impressas às questões que os historia­ Semelhante "retorno às fontes" parece caracterizar muitas das
dores gostariam de dirigir-lhes é cada vez mais manifesta. Sabe-se das orientações atuais da pesquisa de que se beneficiam os técnicos da
fragilidades das edições realizadas nó século XIX e no começo do sécul0 informática. Duas abordagens prestam-se muito particularmente a um
XX: tendência a unificar o conteúdo de um manuscrito em lugar de trabalho em profundidade sobre as fontes.
acentuar os diferentes extratos de composição, redução da cópia aliviada Para uma história cultural
, dos textos medievais - Tirar plenamente
de fórmulas julgadas secundárias, respeito desigual da ordem original, da proveito das fontes narrativas implica renunciar ao dogma do estabele-
paginação e dos títulos, recomposição artificial de coletâneas nunca tendo cimento do '.'texto original" como objetivo final, e único, do trabalho de
existido sob a forma produzida pelo editor. Uma recente reflexão consa­ edição. Essa noção foi abalada hoje por uma melhor compreensão da
grada aos cartulários permitiu determinar as distorções que existem entre difíci! gestação das obras medievais. Mais <X'mplexas do que a filologia
as edições antigas e ;;s prob!emá,ic::.s ;;:uais. Co:etâneas de títulos ates­ do século XIX supunha, 0ssa::; não tiveram sempre, a b<::m dizer, um autor
.• ii·
tando .?S propriedades de uma pessoa ou de uma instituição, esses que liberasse, em determinado momento, um texto considerado definitivo
./
cartulários foram durante muito tempo utilizartos como reserntórios de i:;or ele. Os tex:os medievais apresentam remanejamentos, estados suces­
informações brutas. Estão daqui pra frente incluídos e analisados como sivos reduzindo ou ampliando o precedente. Os copistas inte�vinham
proàu!os culturais, cuja confecção é tão importante quanto o conteúdo. pessoalmente em um texto que julgavam pertencer tan,0 a eles quanto a
Se não for possível ter cm vista reedições de cartnlários (existem ainda um autor cujo estatuto moral não estava definido. Suas ir.tervençõ<::s não
inéditos), estudos pontuais rejuvenescem as edições antigas e tornam sua são redutíveis exclusivamente aos erros que a fi!Ôlogia tradicional detecta.
i.
1� utilização m::.is confiável 9• Certos copis:as acrescentavam ou cc:ta-..':!Ill o texto, interpretavam o
:_;
É lícito enfim perguntar-se se, colocado diante de uma documen­ conteúdo, corrigiam, às vezes, a forma. Po:r essa razão aceita-se melhor
taç5o cujo essencial está publicado há muito tempo, e que poder-se-ia relacionar a uma ilusória unidade uma diversidade que é emblemática da
classificar de "dormente", o historiador não corre o risco da sobreinter­ produção cultural da Idade Média. Essa diversidade reivindicada, esse
pretação. Desse ponto de vista, a reedição de fontes antigas por meio "excesso alegre" de que B. Ccrquiglini demonstrou o interesse para o
de procedimentos novos e muito cômocos (CD-ROM) até pode acentuar conhecimento dos textos literários cm francês antigo, aplica-se a uma
a fossilização dessas publicações (de qualidade nem sempre exemplar), parte extensa da produção narrativa medie·,•al.
afastar ainda mais os usuários de sua produç;?o. O primado que se fica Um austero tratado de agricultura, corno o que o italiano Pietro de
ten::ido a conceder à reprodução das fontes ji impressas, de preferência Crcsccnzi escreveu no começo do século ."\.-V I, poderá dar um exemplo
ao estabelecimento de fontes novas, pode também parecer paradoxal se disso. Redigida em latim, essa obra volum.:lsa intitulada Liber ruralium
se pensa nos cuidados de que são objeto, no mesmo momento, a rca­ commodorum foi-nos transmitida por cerc2 de 130 manuscritos conser­
liz:.,ção de corpus de fontes não escritas. A :nqucologia medieval luta vados em umas sessenta bibliotecas através da Furopa. Esses manuscritos,
há muitas décadas para dotar-se de instrumcnt0s de referência (catálo­ que se multiplicavam até que uma vcrsã0 impressa fosse editada cm
gos de cerâmica por exemplo). Os especialistas cm iconografia tomam Veneza em 1471, permitem reconstituir a tistória da difusão do tratado.
ini1..·iativas no momento atual no sentido de im·cntariar c tornar rapida­ No momento em que o texto circulav:i e er3 objeto ele cópias há muitos
mente consultáveis por meio de \'idcodiscos rcpr:::duçõcs elas milhares ano::: na Itália do norte, uma tentativa ocorreu para estabilizar seu con­
de estampas que ornamentam o� livros manuscritos e estão dispersas cm teúdo: uma verdadeira edição tornou-se di:yonível na forma de cadernos
180 PASSADOS RECOMPOSTOS Com/Jetências 181

(os peciae) cada um deles fornecendo uma parte do texto, que os copistas esse trabalho tradicional: um ganho Jc tempo, se se procede a uma
podiam alugar uas oficinas de livreiros. De acordo com uma prática �ptação direta do documento; enriquecimento permanente de uma base
difundida nos meios· universitários, muitas cópias eram desse modo d ocumental, se@ misturar fichas e fichários; uma grande facilidad� de
efetuadas a partir de um mP-smo exemplar, o que limitava_ cm princípio tratamento; a interconexão de bases realizaJas a partir de fontes diferen­
os riscos de erros e permitia uma difusão mais rápida dos livros. Apesar tes ... Finalmente é possível, a toda hora, "'publicar" tudo ou parte dos
dessas precauções, as cópias realiz:.das mais tarde no século XIV, depois dados acum:.:lad'Js, no papel, mas também, muito simplesmente, no
no século XV, apresentam variantes importantes e muitas vezes "positi­ disquete, o que é menos dispendioso e permite, além do mais, atualizá­
vas" com relação aos manuscritos mais antigos: explicações de termos los periodicamente. Obrigações e dificuldades novas surgem contudo,
técnicos, comentários às vezes situados à margem do texto, às vezes quer se trate da difícil _questão da indexação dos nomes de pessoas ou
introduzidos no próprio texto. No momento d.e transcre,.'er os capítulos então da padronização e do ir.tcrcâmbio de dados entre usuários 10 •
dedicados à vinha e ao vinho, um copista indica uma Juração de fermen­ Uma forma de retorno às fontes é, portanto, perceptível nos his­
tação diferente da9ucla aconselhada por Crescenzi, um outi'o, dá uma toriadores, uma forma de re11ovatio, dir-se-ia na Idade Média. É notável
receita pessoal de cozimento dos vinhos para melhorar a conservação e que esse recrudescimento de imeresse pelas fontes inéditas, mas também
guardá-los por "quatro anos" (era muito tempo na época). Todas essas editadas, coincida com uma revolução das técnicas de escrita, conserva­
intervenções, que a filologia çl.:ssica teria considerado co;no erros a ção, publica�ão e questionamc11to dos dados.
serem corrigidos, desenvolvimentos ilegítimos a serem suprimidos, de­ Um vasto campo encontra-se aberto para os editores· de textos
vem ser intcrpctadas como am certo _número de testemunhos de vitali­ narrativos como para os historiadores de arquivos. Muito mais do que no
·., dade de um texto, do interesse que os leitores experimentaram em lê-lo,
e em retranscrevê-lo. A edição de um texto n5.o é mais dcs_d� então um
passado, os historiadores deverão trabalhar em equipe para levar a cabo
seus projetos, como a constituição de vastos bancos de dados. Esse retorno
·li trabalho de depuração, de eliminação das escórias, mas um inv'!ntário e às fontes não por elas mesmas, mas a fim Je fazer melhor a história, ou
• 1
i 1
uma história das modifica�ões do texto, de suas variantes, q que complica seja, de acordo com as palavras de Michel Foucault, a fim de "conferir
certamente e trabalha do editor de textos, ma:: :?bre também caminho para e5tatuto e elaboração a uma massa documental de que (a sociedade) não
I'.'
:,; uma história total da cultura escrita. se separa" 11, manifesta uma dupla exigêí,cia de inventividade e de rigor:
Em r!ireção às bases de dados documentais - No domínio das terá chegado a hora àc uma nova ascese do texto?
fontes documentais, diversas tentativas ocorreram há muitos anos para
rc:lúvar as abordagens devido à informática. Corpus restritos de docu­
mentos são captados no computador e geram questionamentos lexicais
acerca do modelo praticado a partir do final dos anos 1970 por especia­ Notas
listas de literatura. Pode-se assim delimitar muito rapidamente a data de
' Bibliogrnpl,ie de /'lústoire 111ét/ifrnle e11 Frn11ce ( l 065- l 990), textos reunidos por M.
aparecimento de uma palavra, estabelecer a l:stagcm das formas dessa Balard, Paris, Publications de !;1 Sorbonnc, 1992.
pr.'.avra, dos termos que lhe estavam associaáos.
Confrontado à documentação cm grande parte inédita do fim da : C.V. Langlois e C. Scignobos, /111rod11ctio11 a11x étude:.< historiq11es, Paris, 1898; reedição,
Idade Média, o historiador pode doravante substituir p0r fichários informa­ Paris, Ed. Kimé, 1992.
tizados os fichários realizados antigamente à mão. Na massa de séries
' K. Pomian, "L'heurc des/\11110/es" cm P. Nora (dir.), Lcs lie11x de 111é111oire, li. Ln Nntion,
homogêneas (atas de tabcliüo, contabilidade senhorial, registros fiscais
1, Gnllimard, 1986, pp. 377-429.
etc.), ele pode escolher extrair as informações consideradas como prin­
cip:iis (no!".lcs de pessoas, de lugares, estruturas de parentesco e de ali­ • M. Bloch, les Cnrncleres origi11(111x de /'l,istoire r.1rn/e ,'rnnçaise, Paris-Oslo, 1931,
ança, tipo de transações... ). A informática 1raz significativas melhorias a reedição com prefácio de P. Toubcn, Paris, A. Coli'"- 198S; cf. P. Touben, "Marc Illoch
lSZ PASSADOS RECOMPOSTOS

e il dopo: la storia agraria e lc/\111,a/cs (1929-l 9S5)", Quademi slorici, XXV, 1990, pp.
4--%-499.
1
' 1

" 0q'l CINCO ·, ,J··.:.


,,, !, !_j I JL'l 1.
' �L Bloch, "La vic de saint Edouard le Confesscur par Osbert de Clare", Analec!a ' JI :; ; ! r·. ;, . •:ir .1i!q :::JTÍer.,ll�,;1 ;, e 1
Bolla11dia11a, XLI, 1923, pp. 5-131, reimpressão em /d., Mélanges /,isloriques, Paris,
1983, l 2, pp. 988-1030; Les Rc:s //,auma/Llrge.!. Écu1es sur /e caraclere sumalllrel I' A História·Quantitàtivá :w,!r.u.,;i , ;;�Jlt; ,... , ;
ntiribué à la p1:issai:::e royale parliculiere111e11/ e11 France et e11A11gleterre, Estrasburgo, . ,.lJ.,Ainda.É Necessária?
.... i�ó··@u.1,... • . ;) }�.,
,..
)
1924; nov;; cd;ção com u,n prefácio de J. Lc Gc�f, Paris, Gallim�rd, 19_83.
]EAN-YVES 'GRENIER
'A constat;c; ão nflo é nova mas não provocou verdadeira reação nas uni�ers'i'dades france­ 1• • r

sas, cf. as palavras de A. Vernet, "La publication des sources nar�atives et littéraires", , � ,-:-,,, r
an Te11da11ces, perspeclives e/ 111é1/iodes de l'/iis1oire médiéva/e. Atas do centésimo
Em história, o númer7 foi por muit.J tempo umci das linguagens
"'Congrcs national des sociétés savantes", 1975, Paris, 1977, pp. 19�-213.
possíveis numa descrição que não aceita o aproximativ,o ou o subjetivo.
1
p_ Gasnault e J. V ézin (ed.), Doc11111e11!:: comptables de Sa/111-Marlin de Tours à l'époque Num tempc• desacreditado, em benefício da narrativa· ou da análise
mérovi11gie1111e, Paris, CTHS, 1975. antropológica, a história ·quantitativa faz-se portadora de ambições
diferentes, voltadas para a formalização ou a elaboração de novos
• R Chartier e D. Roche, "L.: livre: un ci,an);.!mcnt e'-: ;x-rsp�ctive", in J. Lc Goff e P. Nora
instrumentos de i11vestigação. "'; (
(dir.), Faire de /'l,istoire, Ili, Nouveaux objets, Paris. 1974, pp. 115-136.
..
• Lcs Cartulaires. Atas da mesa-redonda organizada pela École nationale des chartes e o . ' A história quantitativa ·não faz mais grande sucesso. Está longe o
GRD 121 do CNRS (Paris, 5-7 dezembro 1991), reunidas por O. Guyotjeannin, L. tempo em que F. Furet poderia falar de seu pap'el dominante, e de sua
Morelle e M. Parisse, Paris, 1993 (Mémoires et documents de l 'École des chartes, 39). capacidade de renovar a · pesquisa histórica. A grande linhagem dos su­
cessores de E. Labrousse,' que soube instalar,. !)OS anos 1960, o número
'º J_ P. Genet (ed.), S1a11dardisa1io11 e/ éclwnge des ba=s de do1111ées /1is1oriques, atas da
e a série no cerne eia escrita·e da demonstração historiadoras, não garantiu
terceira mes�-redonda intern;1cional realizada no LISH (CNRS), Paris, 15-16 maio 1987,
Paris, 1988 . continuadores capazes ou desejosos oe ferpetuar a tradição quantitativa
ou serial. Isso não quer dizer que o número tenha desaparecido dos livros
11 M. Foucault, L'Arcl,éologie d11 savoir, Paris, Gallinurd, 1969, p. 14. de história, longe disso, mas sua prática é menos categórica do que antes.
Algumas constatações editoriais comprovam-no, sejam elas ·as dificulda­
des de uma jove_m revista como Histoire et Mesure (publicada a par'.ir de
1986) em promover abordagens estatísticas históricas nova, ou o fato das
últimas grandes teses de história econômica serem pouco ou quase nada
quantitativas. Daqui pra frente, o recurso ao quantitativo deve ser justi­
ficado; sua necessidade não é mais evidente.
Quais são as causas dessa diminuição, tanto mais surpreendente
que coincide com o desenvolvimento da microinformática que facilitou
consideravelmente as operações técnicas e acelerou os cálculos? É pre­
ciso considerar a intervenção de muitos as:,ectos. Primeiramente, a fraca
formação matemática dos historiadores, evidenciada por se ·encontrarem
disponíveis programas estatísticos difíceis de dominar. Além disso, a
·organização menos hierarquizada dos laboratórios· ou dos centros de pes­
quisa e a c!imer.::;ão ma::; igualitária e indi-.;dualista do !rabalho fazem com
18-4 pASSADOS RECOMPOSTOS Com/>ecências 185

que a coleta e a daboração dos dados sejam hoje menos fáceis e que, história. Comprovam-no, sem dúvida, a critica do estruturalismo, de todo
em todo caso, esteja fora de moda; esse tipo coleta volta se d0ravante
0
projeto formalista, mas também o sucesso de ab0cdagens que abrem mão
mais facilmente para outras fontes, os textos em primei�o lugar (o que da idéia de lei cm proveito de uma abordagem voltada para princípios
abre, aliás, igualmente pc1ra possíveis formalizações quantitativas). organizadores mais flexíveis, como a de N. Elias. Mais :;ignificativo, talvez,
1 parn compreender a evolução recente, é 'J rápido progresso ·da micro­
!1 Crítica do paradigma "galilaico" ·nis!ória. Sub ,nú!tiplas formas, que hoje P.m dia ultrapassam o projeto
Basicamente essa evolução _contemporânea de ur..1 desinteresse italiano fundador da microstoria, a micro-história inverte a perspectiva
crescente pela 'história econômica, deve ser ressituada num contexto de historiográfica'. Trata-se menos, no presente caso, de sua preocupaç:io em
crise, ou pelo menos de requestionamento, da explicação histórica. O considerar o acontecimento ou a biografia revista como entidades históricas
historiador privilegiou durante mP;to tempo um;:. representação implícita essenciais, o que possibilitaâa uma má abordagem macro-histórica quan­
do mundo qúe apresentava duas características. A primeira era que seu titativa, do que a passagem do paradigma galilaico ao paradigma indiciai,
domínio de estur!os organizava-se em múltiplas_ totalidades econômicas, para ficar na terminologia de C. Ginzburg. Para seus seguidores, o dilema
sociais ou culturais. Trata-se, pois, de referenciar esses agregados pre­ é o seguinte: "Ou garantir um estatuto científico fraco para chegar a
1, eristentes (classes ou categorias sociais, variáveis -econômicas... ); para resultados significativos, ou garantir um estatuto científico importante para
11 isso, o critério quantitativo impõe-se como o mais eficaz para identificar chegar a· resul:adcs des::>r�zfveis". Em outrns palavras, os progressos da
, ··11 historiografia passam pela recusa do mito da_ objetivação e do método

!,:·
e classificar. Ora, seu uso não causa problem:i, pois à id0ia de agregado
'Í' está ass0ciada, pelo menos implicitamente, a de homogeneidade. Alér.:J. científico e pela aceitação do privilégio concedido à interpretação e à
reconstrução a partir de vestígios e de índices. Já ficou claro que a micro­
;. h do mais, a articulação dos _diferentes conjuntos é imediata, uma vez que
é moldada nas diversas escalas de análise do sistema - do sistema mundo história está distanciada do quantitativo; aliás, a moldura ultralocal quase
,r .
. '·r. · ir
oi J
1 1::1
I•
à monografia local - que têm cada uma seu lugar, cabendo à macro-história,
no entanto, um privilégio ou uma validade superior. Em outras palavras,
não o possibilitaria. Da mesma maneira, mais fundamentalmente, a preo­
cupação dominante não é mais a busca de concomitâncias estáveis pela
seriaçãc com finalidades de generalização, mas, ao contrário, essa última
1 ri;':::.
essa visão hierarquizada permite resolver a Fimeira vista a questão da
relação entre grandezas, o que atribui ao número um estatuto de linguagerr. é atingida paradoxalmente pelo indiviJua.l,. pelo viés do "excepcional nor­
universal, o mais adequado para descrever o mundo histórico. mal" ou pelo encadeamento dos pontos de vista analíticos. A singularidade
Íl I
A segunda característica é a inscrição pelo historiador de sua reconstruída supera a regularid.ide déscric.a. Desse modo, nada pode estar
atividade em u m paradigma de conhecimento muito mais amplo, e mais oposto do que, de um lado, o quadro estatístico objetivando.
1 4 paradigma galilaico, para retomar a expressão de C. Ginzburg. Trata-se, quantitativamente os grupos sociais e sua tipologia ou o conceito de classes
no ;::-resente caso, de pensar o mundo histórico menos como regido pelas que define os limites desses grupos, e, de ou.tro, a localização das redes
le:s do que por relações estáveis entre variáveis. O tratalho do historiador internacionais que constroem os contornO:S imprecisos e nunca repetíveis
c0nsistc em fazer aparecer essa estrutura preexistente, ela também sus­ da relação social cujos conteúdo e substân..:-ia são inacessíveis a uma abor­
cetível, como o são as totalidades, de um conhecimento cifrado ou de uma dagem conceituai ou tipológica. No entanto, a cesura é completa emre o
af:'ordagem quantitativa, em razão da constância dessas relações que recorte do tempo histórico por interméàio de temporalidades preesta­
permite supor relações estáveis. Em suma. no mesn:.0 movimento, supõe­ belecidas (tendência secular, movimento longo, ciclo...), o que limita a
se uma forte coerência do real e uma adequaçã0 sem intervalo da abor­ investigação desses movimentos par� cada época histórica, e a
d:zgcm quantitativa utilizada. reconstituição dos tempos vividos, de sua arquitetura própria a cada enti­
Essa representação implícita há algum tempo modificou-se cm pro­ dade estudada, dos quais resultam seriaç0es temporais que são também
ft:.ndidaà..: em razão do questionamento sobre a razão da reinquisição acerca construções progressivas, jamais previsíveis, verdadeiro desafio à referên­
d:?. preexistênciP das totalid�dcs em que repousava a demonstração em cia de constantes e de relações imutáveis.
186 PASSADOS RECOMPOSTOS
Competências 187
A resposta à questão-título que motiva esse artigo deve levar em
dos efeitos de limiar, tão numerosos em economia ou em demografia, cuja
conta essa evolução recente. A transformação do questionário do histori­
localização é essencial, uma vez que modifica em profu:1didade a dinâ­
ador, o deslocamento de seus centros de· intere�e e, m:iis ainda, do quP. ele
mica dos conjuntos ecológicos ou sociais_ Ora, essa localização_ não tem
admite como forma pertinente de demonstração modificam o recurso ao
interesse se não se ultrapassa a simples demonstração de sua existência
quant:tativo e - o que lhe es,á consuhstnncialmente ligado - à formalizaçãc.
para chegar a uma avaliação exata que só !)Ode �er cifrada. Um exemplo
No· entanco, mais do que nunca, n re:,posta deve se.r positiva ou,
foi fornecido por B. Lepetit e J. F. Royer que mostraram que o t;imanho
para melhor dizê-lo, nu:1ca talvez as condições historiográficas foram tão
1.
das cidades é uma variável explicativa, "um objeto da história", do cres­
favoráveis para dar à medida toda sua dimensão heurística. Desde então
cimento urbano. Trabalhando com cidades de mais de 5.000 habitantes
o recurso ao número é ao mesmo tempo pertinente, nc sentido mais amplo
em 1806, os autores mostraram a importância do limiar de 5.800 habi­
da palavra, e legítimo, se ele se insP.i-e em um dos três momentos seguintes
tantes que distingue doi�, grupos estati:,--ticamente robustos: abaixo, o
que definem tantos modos de intervenção no seio da demonstração ou da
dinamismo é fraco; acima, o tamanho, muito diverso, não é mais um fator
reflexão histórica.
significa:ivo de diferenciação das taxas de crescimento. Sobre a signifi­
O primeiro aspecto que justifica essa resposta positiva _ é do campo
cação desse limiar, a estatística é evidentemente silenciosa, màs ela abre
da função de medida própria ao uso do número. Essa função é a primeira
?,na uma interpretação histórica que tem oportunidade de se exercer sobre
a acorrer ao pensürr.ento, mas. ela r.ão d:!ixa de causar problema. Efeti­
um objeto pertinente.
vamente, um dos fatores mais perniciosos (mas também o mais exato) da
Para O segundo caso, os exemplos interessantes dizem respeito
desqualificação do quantitativo em história foi a confusfo freqüente, e as
freqüe�temente a reflexões teóricas que não encontram justific:itiva his­
mais das vezes implícita, entre a expressão de uma problemática por um
tórica senão com uma aplicação numérica.. As reflexões de P. T. Hoffman
laêo e a instalação de um dispositivo estatístico (dados e método) do
sobre a produtividade agrícola francesa em longo prazo são uma ilustra­
outro. Muitas vezes, o segundo pressupunha o ·primeiro e o historiador
ção disso. Seu estudo se baseia ni\ análise de 809 contratos provind �s dos
achava ou demonstrava, sem nem sempre dar-se conta disso, o que estava
arquivos de Notre-Dame de Paris entre 1450 e 1789, para construir um
contido nu seu método como hipótese implícita. A decomposição canônica
índice da produtividade total dos fatorcS suficientemente sólido do ponto
dos movimentos conjunturais p:ua mostrar a validade da abordagem em
'fll de vista quantitativo permitindo retraçar uma evolução de longo prazo
l'f)' termos de equilíbrio econômico (ou demo-econômico) de longo prazo é
I')' mais confiável do que a proposta tradicionalmente apenas pelas dízimas.
um exemplo bem conhecido. Para téntar fugir dessa armadilha, é neces­
1 Essa abordagem é verdadeiramente nova em história rural por propor uma
sário que não se finja ignorá-la: é ela, ao contrário, que permite desvincular
medida da evolução de uma variável essencial pelo viés de ur.1 índice
as duas formas legítimas da funçãc de medida.
construído a partir de hipóteses econômÍC3S explicitadas (sobre a medida
Num primeiro caso, a formalização quantitativa não passa de au­
da produtividade dos fatores, em particular). o que permite ao mesmo tempo
xiliar, claramente submetida aos interesses históricos expressos em outro
ter uma apreciação crítica da sua validade e atribuir-lhe uma significação
lugar e numa linguagem própria. Seu objetivo pode então ser duplo: seja
'1 histórica que poderá ser, segundo o caso, trivial ou inovadora.
o de fornecer respostas (em termos, muitas vezes, de invalidação de
Um outro jovem historiador americano, J. L. Rosenthal, propõe
hipóteses) para perguntas motivadas por uma problemática histórica
uma ilustração dessa capacidade da medida de gerar questões interessan­
ampla, a única capaz de dar um sentido a resultados quantitativos que não
tes. Seu trabalho se situa na corrente instirudonalista da teoria econômica,
podem por si só adquirir uma significação; seja o de autorizar a formu-
amplamente aberta às preocupações hi::foicas a partir dos irabalh �s de
1 aç.ão de perguntas ou a emergência de problemas que não seria possível
Douolass North. Duas questões centrais o estruturam: cm que medida a
es:3belecer ou basificar-se fora da linguagem cifrada. Não são poucos os
mol:ura institucional que rcgu!a os direic�-.s de propriedade freia o desen­
exemplos de semelhantes estudos que demons'.ram, na prática, a perti­
volvimento agrícola no Antigo Regime, e as reformas oriundas da Revo­
nência do raciocínio quantit;itivo. Citemos, para o primeiro caso, o estudo
lução simpli;icaram significativamente - portanto melhoraram - a estrutura
188 PASSADOS RECOMPOTTOS Competências 189

,jos direitos sobre as propriedades territoriais? A partir do exemplo da diferenciando as hipóteses teóricas para chegar a resultados condicionais,
drenagem na Normandia e da irrigação na Provence, a abordlgem quan­ e, portanto, de uma validade melhor controlada. Somente nessas condições
titativa mostra que nem a evolução da tecnologia, nem a dos preços será possível dar uma maior visibilidade a trabalh0s tão notáveis, por exem­
relativos podem explicar o fracasso agrícola do século XVIII. Por outro plo, como os de F. Bourguignon e M. Lévy-Lcboyer sobre a economia
_ lado, um modelo formal da teoria dos jogos, conceb:do a partir de hipó- francesa no século XIX, que não suscitaram talvez o ciebate esperado.
teses coerentes com as realidades do século XVIII e alimentaóo p':'clos
dados quantitativos pertencendo ao _mesmo período, mostra que um sis­ A quantificação como formalização
tema mal definido de direitos de propriedade, com custos elevados para A segunda contribuição da história quantitativa reside na sua ca­
litígios, era ao mesmo tempo parte integrante da própria estrutura do pacidade de renovar a formulação intelectual d.JS problemas e de propor
Antigo Regime - portanto imrnssível de ser reformado sem revolução - caminhos originais - às vc::es contra-intuitivos - para sua ·conceitua­
e muito ineficiente no controle do uso da água. Ao contrário, depois de lização. É claro que nos distanciamos a qui do processo quantitativo tra­
1820, irrigaç:;.o e dr.!nagem se desenvolvem. dicional que faz do número um simples índice de grandeza,· com finali­
E m um segundo caso, a invenção conceituai situa-se, ao contrário, dades de descrição estatística. A dimensão formalizadora é que, ao con­
na medida e não mais na. expressão de um problema que se trata de trário, é central; em certos aspectos é o caso, de fato, de uma mudança
aoordar em parte pélo quantitativo. Todos os trabalhos que se podem de paradigma. É preciso distinguir d0;s óe seus aspectos. O primei!O pode
reagrupar sob a etiqueta de "econometria retrospecti\•a" - eles se multi­ ser qualificado de formalização quantitativa, no ·sentido de que propõe
plicaram consideravelmente de uma década pra cá -, herança da New novos instrumentos para interpretar dad()S �eaic;; 0 sc..gundo é antes do
economic history de R. Foge!, pertencem a essa corrente. O nún:ero está campo dos modelos de reflexão, pois sugere conceitos de análises dife­
no cerne da operação histórica uma vez que a problemática se elabora e rentes. Eis alguns exemplos:
exprime através do processo de medida que contém de maneirá explícita l - A questão das temporalidades ilustra muit� bem o primeiro aspecto.
todos os motivos da demonstração. A principal tarefa da "cliometria" (no Viu-se que a história quantitativa tradicional baseava-se numa rlecomposi­
sentido próprio, é de efetivamente exprim;r quantitativamente as corre­ ção estatística que se tornou canônica (a do modelo Labroussc-Braudel,
lações entre a evolução de grandes agregados (poupança, produção, l:On­ poder-se-ia dizer) e acabou por impregnar todas as representações históricas
sumo... ) cuja teoria prevê a existência. Essa operação é muito poderosa do tempo. Uma evolução diferente é entrevista, desde que uma outra abor­
uma vez que permite ao mesmo tempo uma descrição cifrada completa dagem em análise das sérit:s temporais ganhou impulso, primeiramente
de uma economia antiga e uma reflexão argumentada sobre a pertinê11cia entre os estatísticos, depois entre os· economistas, durante os anos 1980.
de hipóteses teóricas que não é possível testar mas avaliar empiricamente. Trata-se, para ser suscinto, de i11terrogar-se acerca do estatuto da tendência,
Eia só tem, no entanto, um alcance metafórico. Trata-se, efetivamente, de de decidir se ela é de fato determinista (o que está implicitamente suposto
uo:i ficção argumentada, mas passível de revisão caso mudem-se os muitas vezes) ou se ela apresenta uma dimensão aleatória mais ou menos
princípios de inteligibilidade, que não se deveria tomar pelo real. A exata forte. A distinção é essencial, já que modifica a natureza da diniimica
;1preciação dessa história quantitativa não está, portanto, na aceitação temporal, quer seja o estatuto do acaso ou a explicação dos ciclos. Os novos
incondicional nem na recusa completa da formalização - duas atitudes questionamentos dessa decomposição, que se tornará, talvez, ela também
que produzem o mesmo efeito de descrédito com relaçã0 à história quan­ canônica, são im.portantes como se pode verificar do lado da teoria econô­
tit:!tiva - mas ela deve levar a sério o distar.ciamcnto específico criado mica com o desenvolvimento· da teoria dos ciclos reais. Os historiadores
por essa problematização quantitativa. O que supõe, por um lado, intcrro­ ainda não trabalharam suficientemente com esses métodos, excluindo cer­
g":-se sobre o modo de associar as ª'luisições e resultados da econometria tos setores como a demografia histórica p2.ra os quais a natureza da dinâ­
re-.rospectiva com diferentes abordagens, cm que a distância do real (que mica temporal causa problema, mas revisõ...s históricas ·são previsíveis, não
o historiador :rnnc:i alcanç:i) é diferente; por outro, multiplicar os modelos, somente quanto à arG:iitetura das temporalidades mas também com a
190 PASSAOOS RECOMPOSTOS Co'Tlpetências 191

introdução de novas questões bastante variadas sobre a dcpcndên.:ia de supor que o próprio mecanismo encontra-se, ao mesmo tempo, efetiva­
muito longo prazo ou a influência do impacto de u111 acontecimento brutal. mente presente e invisível? A pergunta não é trivial e autoriza uma
Ai ainda, os problemas de interpretação são num(;rosos - e os t..-:stes argumentação muito diferente para questões históricas antigas. O mesmo
estatísticos revelam-se, nesse caso, pouco eficientes - e seria falso con­ acontece cem as ::bordagens, melhores conhecidas nas ciências humanas,
siderar essas abordagens C0?10 Sup�rÍ:>res OU mais verdadeiras do que as centradas na auto-organização. Estas também propõem modelos tempo­
.;.:itedores: sua p eriinência está em outro lugar, ou seja, na sua capacidade· rais novos que interessam ao historiador. Não deixa, de fato, de ser
de deslocar questões (; representações. interessante observar que, em certas condições, um sistema de equaçõe!:
2 - A formalização quantitativa assim concebida não está muito distante diferenciais não lineares, longe de conduzir apenas ao tempo da dinâmica
dos modelos de pensamento de que vamos falar agnr.i. A diferença é que, clássica, pode dar explicações acerca das características importantes do
no momento, ao menos, esses medeios se prestam pouco ou quase nada tempo histórico: por exell)plo, pôr cm evidênc:a a existência das trajetó­
à aplicação direta sobre dados históricos. Ficaremos satisfeitos com al­ rias de bifurcação geradas de maneira endógena, isto é, privilegiar a
gumas ilustrações desse fato. mudanç:i cm detrimento das continuidades, as regularidades não­
A reflexão sobre as ·escalas tornou-se central nas ciências sociais deterministas de preferência às recorri:ncias estáveis. As dificuldades
e, como já se viu, na história, com o debate micro/macro. A dificuldade le;;vantadas por essa abordagem são numerosas, seja ela a· validade da
cm pensar essa diaiética acentua, ou que !>e trat'l de �m falso p:oblema, descrição de ur.1 processo histórico por um sistema de equações diferen­
ou que é necessário deslocar os modelos implícitos de pensamento. Ora, ciais ou a identificação de trajetórias teóricas (e de suas bifurcações) com
esses últimos inspiram-sé muitas vezes na :ísir.a clássica, c0m :is noções os Jesenvolvimemos temporais reais). Mas �sse é o pr _eço a ser pago pela
de continuidade e de encaixe de escalas. Desenvolvimentos matemáticos renovação das quest6cs.
re'-"<!ntes acerca da geometria dos fractais demonstraram que outras repre­ O último aspecto penence ao campo da epistemologia ao qual as
sentações - às vezes contra-intuitivas - da relação entre g�andczas são considerações precedentes já nos tinham conduzido. É evidente que a
válidas. Se a invariância possível dos fenômenos em todas .as escabs , do utilização da rr.edida para fins primeiramente heurísticos, tendo em vista
macro ao micro, é uma das contribuições mais conhecidas dos t�abalhos formular questões e sugerir novas interpretações, suscita questões delica­
de B. Mandelb:ot, as outras cor,seqüências ,;obre a forte variabilidade da das, não costumeiras para o historiador. Com isso, não se corre o risco
escala pertinente para apreender o desenvolvimento de um fenômeno ou Je mergulhar em um universo metafórico. de forçar o real em desenhos
de um ponto de vista analítico, o caráter arbitrário das distinções que são analíticos, a seu modo muito coercitivos? A dificuldade é real e força a
menos do campo da evidência ou apenas da lógica do que da escolha de associar, mais do que antes, um pensamento acerca da validade das de- ·
u m observador, todas essas considerações novas sobre os efeitos do focal monstrações a outro, acerca do conteúdo. O processo quantitativo tem,
utilizado devem ser levadas em conta pelo historiador, menos para inva­ no entanto, um outro interesse epistemológico, o de barreira para contro­
lid:ir as antigas grades de análise do que para multiplicá-las. lar o valor ou a força do discurso histórico. Nesse sentido, 'é possível
Deve-se fazer o mesmo uso das reflexões acerca da dinâmica de invocar cm seu auxílio argumentos similares aos utilizados para
caos. Desse modo, a faculdade de certos processos ao mesmo tempo desvincular a história da ficção. Efetivamente, a idéia de uma validação
simples e bastante deterministas em engendrar formas temporais que por ela mesma da demonstração histórica. como nas ciências da natureza,
apresentam todas as características de um encaminhamento aleatório deve está daí em diante caduca. A história não ;"Crtcncc ao campo da prova no
dar o que pensar. O historiador encontra-se, muitas vezes, efetivamente sentido clássico, e o universo de Popper lhe é estranho. Apenas a multipli­
às voltas com essa mesma dualidade, ou seja, os esquemas de análise de cidade e a convergência das dcmonstraçôcs são probantes. A validação
conteúdo determinista e as observações rebeldes de uma ordenação sim­ é apenas relativa. Nessa moldura, o int�rcssc do quantitativo é triplo.
p les: deve-se resolver a contradição associandu acasos imprevistos, que Primeiramente, ele constitui uma maneira entre outras de descrever um
tomariam menos visíveis u;:-i mecanismo bem dctcrmin;ido, ou se deve fenômeno: pouco importa aqui que esta seja considerada inferior ou
1,1

J 92 PASSt.DOS RECOMPOSTOS

superior a escritas mais literárias ou intuitivas. s6 conta o fato de tratar­


se de uma descrição suplementar não redundante. Em seguida, a análise SEl3
estatística concribui para definir o universo dos possíveis. Se ela não
pode vnlidar por si mesma, pode conferir uma plausibilidade variável
A Arte da Narrativa Histórica
às afirmações propostas. Assim, se é fácil mostrar que rr,uitas decom­
posições de séries l:ronológicns são possíveis, isso não significa que FuANço1s HMITOG
todas o sejam, Ol! que tucias tenham a mesma pertinê!-1cia quantitativa.
Finalmente, o número - bruto ou elaborado - é uma referência, ou
melhor dizendo, um índice. Do mesmo modo que um fragmento de texto Se um homem esclarecido se dedicasse a
escrever sobre as regras da história, poderia observar
.JU de um caco de ânfora, ele orienta a-intuição. Nesse sentido, pertence
que um excelente historiador t.!Jvez seja ainda
ao campo do paradigma indiciai evocado acima: desqualificar o paradig­ mais raro do que um grande poeta.
ma galilaico não basta, portanto, para eliminar o recurso ao quantita­
Féne/011
tivo. Somente as modalidades da história quantitativa mudam. Aposte­
mos: essa mudança está apenas começando.
Narrativa entre outras, a história singulariza-se, no entanto, pela
relação específica que mantém com a ve,·dade, pois ela tem, de fato, a
prcten::ão de remeter a um pass:ido que realmente existiu. O que pode
então, a partir daí, diferenci11.r o enredo histórico e o e;zredo romanesco?

A história conta? Não, é AJain Dccaux qu_em conta. Mas, ele n1:o
tem repre�entado para muitas pessoas, cm nossas telas de televisão, o
rosto e q voz da história? Não elogiávamos precisamente seus talentos d::
contador de história? Aliás, não costumamos ler, cm historiadores pro­
fissionais querendo divulgar um livro de história, que este se lê como um
romance? Lemo-lo de cabo a rabo, livro universitário, sério, ele foge ao
suposto térlio do gênero. Nessa fórmula elogiosa, tão gasta quanto fre­
qüentemente empregada, tudo está contido no como: cu, que estou lhe
recomendando, a você, leitor não-especialista, garanto-lhe que se trata de
foto de história - de acontecimentos realmente ocorridos, de um fenôme­
no histórico verdadeiramente explicado, de arquivos inéditos examinados,
! de, efetivamente, novos conhecimentos-, mas, não obstante ou além do
mais, o livro pode ser lido: a montagem, o enredo, a escrita fazem com
que você, leitor, possa mergulhar nele como numa obra de ficção, cntrc­
far-se ao prazer da leitura, instruir-se e divertir-se ao mesmo tempo.
Como um romance quer efetivamente dizer as aparências de um romance,
mas não um romance, menos ainda um romance histórico, pois este põe
a serviço da ficção o detalhe que foz soar \·erdadeiro. Pelo como indica­
!'C que o leitor sai supostamente ganhar.':lo !1')S dois tabuleiros.
) 94 PASSADOS RECOMPOSTOS
Competências 195

Então a história conta? De modo algum, responderão esses mcs-


1nos historiadores profissionais, há lugares para isso e há muito tempo Eclipse da narrativa
quf. a "história-narrativa" não é mais nosso caso. Reportem-se, portanto, Chegando a esse ponto, um balizamento histórico pode ser útil.
aos sarcasmos ditos por Lucien Fcbvrc, nos anos 1930, a propósito da Quando se fala de rejeição da narrativa por parte dos historiadores das
história-narrativa, "historicizante", évé11eme-11tielle ou "história-bata­ Annales, o que se quer indicar com isso? Primeiramente uma polêmica
lhas"! E, melhor ainda, vocês sabem que 2 história constituiu-se em instalada co;-itra a história pm,it:vis,a então dominante. Com o que se
disciplinas, na segunda metade do século À7X, optando, pautada no queria romper? Com a "história-narrativa" (ou historicizante ou évéme11-
modelo das ciências naturais, pela ciência contra a arte. Ciência de tielle, sendo essas palavras praticamente sinônimas); mas nessa expressão
observação, ciência de análise, leitora de docamentos, que um dia talvez desvalorizante, em nenhum momento, a narrativa enquanto tal foi proble­
desembocará na síntese e na libertação das leis. Lembrem-se das ,'.:lbjur­ matizada. A história-narrativa é simplesmente a que põe em primeiro
gações reiteradas de Fustel de Coulangcs ou das instruções minuciosas plano os indivíduos e os acontecimentos. Seu novo questionamento efe­
de Langlois e de Seignobos'. Para ela, a narrativ;::, é sinônimo. de afetação tua-se debaixo da pressão das jovens ciências sociais, para quem o objeto
ou de ingenuidade (a crônica medieval é ingênua). da ciência não é mais o indivíduo, mas os grupos sociais, não mais a
No entanto, na série dos retornos anunci2dos a que nos acostuma­ seqüência dos acontecimentos em sua superficialidade, mas o "fato social
ra'TI os últimos quinze anos, não faltaram nem o do acontecimento nem total". Tornando-se econômica e social, a história entende com isso, ;10
o da narrativa. Com o título "retorno à narrati'-.i", o historiador Lawrence que lhe diz respeito, contribuir para a construção dessa nova ciência da
Sto�e lev.. nto1 1 essa dificuldade até ent::o imprevista, desde 1979, apre­ sociedade sobrP, si própria. Passando do nacional (sua preocupação maior
sentando um primeiro "demonstrativo das mudanças operadas na moda durante o sP-culo XIX) ao social, a história logo deixa de lado a narrativa
historiadora". Mas o que ele designava por nan-.ativa ou narração não tinha das origens, a narração contínua GOS faustos da nação, pelo recitativo da
sido de modo algum problematizado. Era somente uma "abreviação cô­ conjuntura" ( ela quantifica, constrói séries, ergue quadros e curvas). Não
moda", pcrmitind0 descrever um fenômeno de tomada Je distância com se contentando mais com a ordem da sucessão e com o fio da cronologia
relação às diferentes formas da história cicntffica até então predominan­ (subentendido apenas pela idéia de progresso), de mil maneiras, ela
tes 1. Descritivo talvez, o termo não era, conrudo, neutro. compara, ciosa cm fazer aparecer repetições e rcmanescências. Em seu
Com mais seriedade, foi de um filÓ$ofo que veio a reflexão microscópio, o acontecimento não é mais �visível", não é mais legível:
maior sobre a questão da narrativa (cm su:? relação com a história). por si mesmo ele não é nada, ou quase nada, e a luz que projeta é
Em Temps et récit [Tempo e narrativa], Paul Ricoeur, cioso de sondar totalmente tomda de empréstimo. O temp,o com que ele trabalha não é
o mistério do tempo, considera succssivame·[lte a história e a ficção e mais o do acontecimento, muito suscinto e não significativo, mas um
chega a conclusão de que não pode�ia haver bistória sem elo, por tênue tempo social também, que ciclos, conjunturas, estruturas e crises escon­
que seja, com a narrativa2 • Filósofo, situandc..'-SC na tradição hermcnêu­ dem. Com suas oscilações e seus movimer:tos de grande amplidão, suas
tic;.;., bom conhecedor da filosofia da história anglo-saxónica, Ricocur camadas profundas e suas lentidões, esse novo tempo histórico (que
transformou-se para esse fim no leitor cuid:.:doso e inventivo dos his­ conduz para o longo prazo braudeliano) não sabe o que fazer com o
toriadores franceses contemporâneos que, na insígnia dos Annales, 3contccimcnto e com a história política. Assim, a história proclama que,
quiseram precisamente dar as costas ii "histc..-íria-narrativa". Começan­ re;rndiando-o, abandona-se com isso a narr21iva. É suficiente, pois, recu­
do por Braudel e seu Méditerranée, livro bússola dessa nova história. sar o acontecimento e o indivíduo para csc:;.?ar à narrativa? Inversamente,
Com certeza, existe aí tima aposta impor:antc para quem diz que.. é suficiente evocar o retorno do acontecimento e do indivíduo para con­

história e narrativa não s5o totalmente sq:: .uávcis: como classificar, cluir pelo retorno da narrativa?
cnt:io, essa história? Ela seria a exceção ou C!Jantcria então um cio com Quando Lucien Fcbvre, refletindo s ......,bre o objeto da história, con­
a narrativa ou com uma forma de narrativ.!!? cluía "os fatos são fatos", ele aproximava o historiador de histologista,
196 PASSADO:; RECOMPOSTOS
Com/1c1ências 197
que só vê através da ocular de seu microscópio aquilo que ele "preparou" ainda um pouco mais, a perspectiva historiográfica, seria preferível então
preliminarmente. Denunciando uma concepção obsoleta da ciência (essa falar de uma ocultação (de modo algum deliberada) da questão da nar­
que n história positivista invocava tendo permanecido cm Claude Bernard), rativa, muito anterior ao combate das Annales contra a história positivista
ele acredit�va estar conduzindo a história para o lado da ciência viva, e e em favor de uma história social (o real é social), muito anterior também
de modo algui;1, aproximando-a da na�rativa de ficção. O historiador ao r,ombate, travado na segunda metade do século-XIX, em favor de uma
constrói seu obj:!to, c0mo o cientist?, n::o como o ror.1ancista. Com essa história não mais arte, mas ciência, mais Freocupada em conhecer do que
fórmula, Febvre não pensava de modo algum em vê-lo c0mo um mestre ressuscitar o passado, história, em todo caso, muito pouco évémentielle.
de enredo. "Os fatos são fatos" Úa um requisitório em favor de uma Onde o historiador, transformado em homem de arquivos, observa, esta­
história mais científica ou verdadeiramente científica, um convite a pensar belece os fatos (como o filólogo estabelece um texto) e os expõe sem
so0re suas condições de elaboração (e a levar Péguy a mentir, recrimi­ pesquisa e sem lustro: tais como são.
nando aos historiadores fazerem comumente história sem meditar nos
seus limites e nas condições da história), mas, de nenhum modo, um História e retórica
questionamento sobre a escrita da história: sobre a narrativa. Durante todo o tempo que, efetivamente, permanece operatória a
Depois disso, a história manteve e reformulou essa ambição de distinção entre res gestae e historia rerum gestarum, as ações realizadas
m:i.is ciência (portanto, de mais real ou mais verdade), p:inciplmcntc pelo por urn lado e sua narração pelo outro, a questão da narrativa não se
uso da referência marxista ou, num plano mais técnico, pelo recurso ao coloca. Ou, em outras palavras, é evidente que o trabalho do historiador,
computador. Sem tornar-se uma crítica epistemológica, a história mos­ S.:!U lalePto, sua originalidade cum relação a seus predecessores, em re­
trou-se ainda m.:is ciosa das condições de sua prçidução e mais consciente sumo tudo aquilo em função do que um príncipe a ele recorreria decorre
de que seus objetos não eram dadcs nas fontes, mas prouuzidos: era do seu domínio da arte da exposição. Em tal regime de historicidade, a
preciso que ela pnmeiramcntc estabelecesse as perguntas, formulasse as história pertence claramente ao campo da rctór_ica, e pode ser justamente
hipóteses, construísse os modelos, muito mais do que· contar o que se definida, segundo a fórmula de Cícero, corno opus aratorium maxime. Ela
passara. Ao final de um artigo provocador e famoso ("Le_ discours de é obra oratória por excelência: o ormor, o orador mas também o homem
l 'histoire" [O discurso da história], 1967), dedicado a examinar se algum político, é o homem mais capaz de escrever. O que não significa, de
tr2ço específico distinguia narrativa histórica e narrativa fictícia, ao nível nenhum modo, que a história disj.,ense a exigência de verdade; pelo
das modalidades da própria narração, Roland Barthcs observava que "o contrário, ela se afirma com lux veritatis (luz de verdade). Existe todo um
apagamento (quanch não desaparecimento) da narração na ciência histó­ estoque de fórmulas famosas do mesmo Cícero que retomam e vão trans­
rica atual, que procura falar das estruturas mais do que das cronologias", mitir essa vulgata helenística até a época moderna.
era o índice de uma mutaçã0 ("o signo da história é, daqui pra frente, menos Corolário dessa definiçã" é a concepção, de Cícero também (e mais
o real que o intcligível" 3). A expressão é aceitável se acrescentarmos que amplamente, helenística), da história corn0 "exemplo": ela é coletânea de
o :cal, assim visado, encontra-se datado, e é o do realismo - do romance
,. re.alista -, concebido como imitação do real. O inteligível não é, portanto,
exempla e "mestrr. de vida" (1,ragisrra virGc:). Esse é o tema das lições da
história. Almejando formai o cidadão, esdarecer o homem político, ela
oponível sem mais dizer ao real, mas, simplesmente, a um certo real. deve também poder servir à instrução do homem particular. Narrativa das
Sem querer jogar com as palavras, viu-se portanto a história mo­ inconstâncias da sorte, ela deve ajudar a suportar as viradas da sorte, e
derna praticamente renunciar à narrativa. sem nunca colocar a questão da propõe exemplos a imitar ou a evitar. Eb se torna desde então, de bom
n.::rrativa enquanto tal. Desse modo, cm lugar de se falar de abandono, grado, "biografia": mais ciosa ainda do que não se vê imediatamente, atenta
Sêria preferível, cóm Ricoeur, falar de .. eclipse" da narrativa (não a vc­ a tudo que Plutarco chamará os "signos da :.:.�ma", brinca com o encadeamen­
n:,)s, mas ela está sempre presente e será de outro modo visíve!: o "rc­ to admiração, emulação, imitação. 1-:istória filosófica, quer dizer moral, ou
tL"mo"? - e suas facilidades de pronto-para-pensar). Se prolr)llgarmos, se_ia, esse espelho estendido cm que cada un'. atr.ivés dos retratos escovados
19S PASSADOS RECOMPOSTOS
Compecências 199
e as anedotas contadas, pode observar-se, tendo em vis!a agir e tornar-se
1r..- mclhc�. Com essa história de finalidades mais éticas do que políticas, ou Como ela poderia ainda continuar srndo exemplar quando, co�o observa
mesmo s:mplcsmente, cí•. 1icas, passou-se e.ia cidade ao Império ·Romano, ou Tocqueville c?nfro11tado às perturbações da Revolução Francesa, o passJdo
de Cícero a Plutarco, cujas Vidas marcaram de modo perma'1ente, para além não aclara mais o futuro,' quando a distância vai se forjando entre campo de
.'1 Ja Antiguidade,' as maneiras de escrever e os usos da história.
experiência e horizonte <le espera, entre aquilo que se conheceu e o que se
Assim, ainda no século XVIII, Cícero e Plutarco são parafrase­ espera (ou teme)? A lógica· do progres�o é quem determina que o exemplar
ados e desvinculados, no muito difundido Traité des études (1726) do dê o lugar ao ·.ínico. O passado torna-se ult�apússado.
abade Rollin, onde a história é aprésentada como a "escolha comum do Mas com a história-Geschichte, a questão da narrativa, da nafiação
não mais se coloca. Há ocultação dessa din::ensão: a história em si mesma
gênero !�Uinano". Nessa perspectiva, mesmo a história pagã pode ser
é, por hipótese, res gestae e historia rerum gcstarum no mesmo movimento,
"s.ilva": a partir do momento cm que se Lhe reconhece um valor de
os acontecimentos e s..ia narração. Pois a história fala e, no limite, fala por
forn1ação para os príncipes primeiramente, mas também para os súdito�,
si mesma. O bom historiador seria, justamente, o homem que se apagasse
contá-la é lícito, aprendê-la é ú! il.
diante dela: nfio aquele que, a exemplo de Michelct, leva-a a falai, sobre­
O conceito de Geschichte tudo nos seus silêncios, mas aquele que a deixa falar, simplesmente.
ou a história cqnhecimento de si mesma Entre a concepçiio retórica da história e a posição d;, historicismo,
há lugar para estados intermediários. Como Féncior., com seu Projet d'wz
Ora, a segunda metade do século XV�II assis!irá, na Alemanha
inicü!lment:::, a0 abandono progressivo dcs..;e::- topai e a expressão de um
traité sur l'histoire [Projeto de um tratado sobre a história] (1716). Propon­
do à Academia que ela mandasse escrever tal livro, ele forntcc suas linhas
novo regime de historicidade. O tema da h.istória magistra vitne, se
gerais e é levado, nessas circunstâncias, a esboçar sua própria concepção
ainda é retomado ritualisticamcnte, esvazia-se de sentido verdadeiro e
da história. Se cot11cça ressaltando o tema ciccriano ou estimulado pelas
a divisão res gestae/ historia rerum gestarum não parece mais pertinen­
lições da história, passa rapidamente da reiórica à poética, comparando a
te. Assistiu-se entre os séculos XVI e XVIII a uma pror;ressiva au­
tonomização da história, que os filósofos e os historiaC:ores alemães vão história ao poema épico (e citando, dessa vez, Horácio). O historiador -
prossegue - deve "vê-la inteiramente num só olhar... mostrar sua unidade
ratificar formando e impondo pouco a p,ouco o conceito de Die
e retirar, p c; assim dizer, de _uma só fonte tc-..dos os p íincipais acontecimen­
c�schichte: a história no singular, a históri.:-c ::m si, a História4• Daqui
pa.ra frente está caduco o dispositivo que d eterminava que houvesse, de tos que dela dependem". Fénelon não é, todavia, um historidsta ava11t /a
um lado, os acontecimentos, os fatos e gestos do príncipe por exemplo,
/e/Ire ou um inventor da i1istória cm si, tendo nela própria seu começo e
e do outro, sua exposição, sua apresentação, a narrativa que deles fazia seu fim (sua própria visada, seu te/os cm linguagem aristotélica). Pois 0
1 + que justifica o desvio pela poética é, antes de tudo, o fato de se levar cm
a :$Ua historiografia. Não, há uma história q�e evolui depressa: história
pn.,cesso ou processus, história progresso p:-incipalmente. Nessa nova consideração o leitor. É para esse último que o historiador deve fazer com
m�) ldura conceituai a história definir-se-á, fi::almente, segundo a fórmu­ que sua história pareça "um pouco" com \.� poema épico, tendo o cuidado
de "mostrar-lhe as relações" e de "fazê-l...1 chegar ao desfecho". Nesse
la de Droysen, como o conhecimento de si mesma.
aspecto ele se desvincula totalmente do erudito que "segue seu gosto sem
Sem dúvida, saiu-se do espaço da retórica, que pressupunha a divisão
consultar o do público" e acumula página atrás de página os achados de
cn:re res gestae/ historia e onde a questão da narrativa enquanto tal não se
sua "insaciável curiosidade"5. A poética é, p-uis, também polêmica. De resto
..:1.'·Íocava, ou melhor, não causava problc111a ep:stemológico sério. Tomando
Fénelon passa da retórica à poética, aproximando historiador e poeta, até
d<' empréstimo primeiramente ao tribunal e às técnicas de inquérito judicial,
concluir, com um sorriso sem dúvida, que l!'.11 excelente historiador é talvez
o :1istoriador reconhecido como mestre c111 a�::c:s oratórias, devia então im­
ainda mais raro do que um grande poeta.
pn:..�sionar, mas sobretudo convencer seu audi�.: rio, guiado por uma lógica
Essa abordagem poética, a história-Geschichte, nem ignorou, nem
d:i persuasão. Do mesmo modo desfez-se o velbo tópos das Ii1:ões da história.
proibiu. Mas para ela é a própria história. por si mesma, que é épica. o
Com/mências 20 l


200 pASSADOS RECOMPOSTOS
e de acontecimentos. Tendo por coroláno que o acontecimento não é
historiador não)em �e faz.er como se ela o fosse, situando-se do. pon\g
!· .... ,, ,,.� .... , ..i Stmpre: OU simplesmente: esse resplandecer breve, limitado ao terceiro
de :vista do leitor. Ela•tem em.si :nesma seu começo e seuifim, seuJelos ""
tt· 't't�-
J . 1 H " !I • .Lif ,0,:1 ,,,� t .1 i..- .1dl ., ·· ,.- ,... ,•. 11•·· ,
,, .. i � • . .\ ... ..,
n(ye;, 01,1_de, f? acar.t_on�d?�P.\'-!??·�Br_au_del: ,Çom funções. dive,rsas, o
próprjo: .sua,Nisadar.t1�eu,;sentido:íll<!ib .• , ",.•·) r1111: l 'n "ii,111 J:u:f..>n r;ün
acontecimento pertence a todos os,níveis e pode _ser mais,prccisamy_nte
., .. Ju1Mas,11ao,1torn?�"'se_..; !:Jisciplina,1!a·. história. desconfiou �dess_a: 1�is�9
definido e-orno "uma variante do enredo"'_ T êm-se aí uma nova confir­
romântica., Pr�te?den?o f serAaí. para frente ciên�ia positiva, 1 .9bjcth;a,
m' ação .-de· q'u e rej�itâr o' :i'é:ontecimento não significa fazer desaparecer
apoiada em fatos, ela Jimil0u ·suas ainbi1sões, com R:mke, i;::ontentand9� .,. • 1
a narrativa (nem o acontecimento), mas transformá-los. A polêmica
se cm dizer co�o .âs �oisas aconteceram (wie es eigentlich gewese_n). Para
.�rrebatava, C?mo é normal, e. d�ixâva de lado a cpistcmologi�. O longo
sabê-lo e dizê-lo .era !1ecessário e .suficiente freqüentar longall!ente os.
prazo não é o inimigo da, narrativa, simplesmente.

r
arquivos. o wie (como) - onde se abriga no entanto a questão da elabo­
Assim, a história não cessou de dizer os fatos e gestos dos ho7-1ens,
ração· da narrativa,- ·1:1ão tir1!la então por que ser ainda mais ,pi:obl�g1a­
de contar, não a mesma narrativa, mas narrativas de formas diversas. Da
J tizado,· uma· vez ,que .a história convertera-se em conhecimento ,de- si
história-retóric_� à história-Ge::�l! iclzié e pMa além,,as exigências, os pres­
mesma. Globalmente, os séculos XIX e XX viram a afirmaçãq e-a.ênfase
supostos e as f ormas de empregá-los variaram sem dúvida amplamente, mas
- com o marxismo-, até me�mo o endurecimento das ambições científicas
a interrogação acerca da narrativa (a narrativa enq11anto tal), esta, é recente.
da história-Geschichte (mas paralelamente t:imbém sua �rítica ,e seu re­
'f ' �

i
Tornaram-na po�sível a saída ou o abandono da história-Gesclzichte, pro­
questionamento radicá!). Acumulando fatos, o hist0r:ador buscava. ou
cesso e progresso, e a reintrodução do historiador na história; mas tamtém,
vcrificavà as leis da História. O que não passa, é claro, de um esquema,
a par�ir do papel prepondf'.rante ocupad0 fl"!-la lingüístka nos anos 1960, as
qu� dá lugar a múltiplas variantes e adaptações, através d:1s.contril:;uições

:1
interrogações voltadas para o signo e a representação. Também a história
da sçciologia e da _economia principalmente. A história social dasA1111ales,
pode ser tratada como (e não reduzida a) um texto.
pela qual' começa�os;1.representa uma dessas variantes ,muito flexível. ·
Voltamos então a Barthes, com uma out :a fórmula provocante: "O
Mas,, em todos os cas_os considf'.rados, a narrativa não estava na)ordem
fato não tem jamai'i senão uma existência lingüística". Cnde se pode ler
do dia. Exceto por "iecusá�la na f orma .de história-narrativa;1 O que, não
o máximo do ceticismo, ou simplesmente m confirmação de que entre "uma
tocava na questão ,da narrativa, na medida em que o objeto primeiro do
narrativa .e um curso de acontecimentos, nãí.o há uma relação de reprodução,
dcbatC recaía no c:::ontecimento e não n3 n2rr:?.tiva. Renunciar à história-
narrativa, quer dizer, .à história évé11eme11tiellc era deixar de lado não a de reduplicação, de equivalência", mas, c..:>mo o precisa ainda Ricoeur,
narrativa, mas simplesmente un.a forma particular de narrativa. "uma relação metafórica". Assim, para designar a relação da narrativa
Efetivamente, Paul Ricoeur, leitor de La Méditerranée de Braudel, histórica com o passado "real", ele prefere falar de "representância" ou de
"lugar-tenência" (cm lugar de representaç::ão), indicando com isso a parte
f; não encontrou dificuldades em fazer aparecer no livro, com seus três

l ,!Stágios voluntariamente distintos, a trama de uma narrativa. O declínio de construção - a narrativa traz à linguagem um análogo ("o ser como do
do Mediterrâneo, e sua saída da grande história, este é o enredo global, acontecimento passado"), mas também de dependência com relação à
mas virtual, para o qual concorrem os três níveis e as três temporalidades. efetividade do passado ("o ter sido do acoc.1ecimc11to passado). Finalmente,
I· Ao passo que um romancista os teria "misturado numa única narrativa, para que surja a questão da narrativa, bast:a que o historiador acabe por se

it1 Br:rndcl age analiticamente_, por distinção de níveis, deixando às inter­ fazer esta simples pergunta, que lhe fo i sc,prada por Michel de Certeau: o

,1 ferências o cuidado de engendrar uma imagem implícita do todo. Assim que é que eu estou fazendo quando faço história?
é que se obtém um quase-enredo virtual, repartido cm vários subcnrc­
!1

li
dos"6. O interesse maior da análise de Ricocur não é dizer: "Vocês
Noras
111 acreditavam ter rompido com a narrativa, não foi nada disso, ou pelo
menos isso não é assim tão simples", mas enfatizar que Braudcl inven­ 1 L SlOne, "Rctour au récil ou réf!cxions sur Uí!J!: nouvcllc vicillc histoirc", Le Débat,
IL 4, 1980, PP· 118-142.
tou um novo tipo de enredo como conjugação de estruturas, de cicios
1\I
!li
202 PASSADOS RECOMPOSTOS

III
2 P. Ricocur, Temps et Récit, Paris, Lc Scuil, 19S3-1985, 3 volumes . A questão central
é a do tempo e de sua irrcprc�cntabilidadc: a historiografia só 0cupa, portanto, um
mom.:nto da pesquisa e a afi,mação de um cio, mesmo mínimo, entre história e
narrativa, depende, ela mesma da hipótese ;irincipal, segundo a qual. não há meios
de existir um tempo pensado fora da narrativa.
MUTAÇÕES
3 R. Barthes, "Le discours de l'h:stoire" retomado em Le Brnisse111e11t de la la11g;;e,
Pari�, Lc Seuil, 19S4, p. 153-166.

4
R. Koscllcck, le Futur passé. Co111rib11tio11 à la séma11tiq11e des temps lt istoriques,
trad. fr. Faris, Ed. da EHESS, 1990; livro importante, inteiramente às voltas com
essa questão, ver especialmente pp. 42-53.

5 Essa breve aparição do erudito é propícia a indicar que entre a história-rctóric:: e


a história-Geschichte, e para essa q•1estão da narrativa que nos �cupa, existe o vasto
campo da histéria erudita.

• F. Ricocur, Temps et Rfrit, t . í, -p. 300. Ricoeur 0pera com as noçõc!:; de enredo
(111111/ios) e de construção de enredo que toma emprestado à PC>ética de Aristóteles
� v0lta-sc a encontrar a poética, mas dessa vez ar!icada 11ão mais à história como
processo, mas à história como texto).

1
UM

O Lento Surgimento
de Uma História Comparada
. HEINZ-GER/íARD HAUPT

Com uma tal tradição da historiografia, da politização dos dehates


históricos e da defi11ição específica do miw fundador da França contem­
porânea, os estudos compar.:tistns não podiam ,<;e impor 11a Fra11ça.
1 Ape11as com a i11temacio11alização da pesquisa e da vida u11iversitária,
ii essa lacu11a surge clarame11te. Como, na T1U1ior pnrte das declarações de
rrincípio sobre o trabalho histórico e as perspectivas de pesquisa, a
menção da história compara4a não falta, podemos interpretar essa lem­
brança comu u.� sinal encorajador para o futuro.

"Estudar paralelamente sociedades ao mesmo tempo vizinhas e con­


temporâneas, constantemente influenciadas um3:s pelas outras, sujeitas cm
seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua !.incronização, à
ação das mesmas grandes causas, e remont:ando, ao menos parcialmente, a
uma origem comum." Eis o pwgrama que Marc Bloch propôs já desde 1928
para "uma história comparada das sociedad� européias 1 ", programa que ele
começou a realizar cm suas obras sobre o campo ou a sociedade feudal2 .
Sua proposta de inaugurar no College de. Francc um ensino de
história comparada das sociedades curopéãas destinava-se a dar uma base
institucional a esse programa científ;co ambicioso. Este foi posto cm
surdina durante muito tempo, e só recentemente a tomada de consciência
1, de uma lacuna nos traball�os francesc:, fez seu caminho. É assim que, num
editorial que reafirma seu projeto interdisciplinar, a revista A1111ales
Économies Sociétés Civilisatio11s menciona também a exigência do
·'comparatismo", embora observando que sua "prática continua a excc­
ção"3. A recentíssima revista Ge11eses, el;J. também, inclui cm seu progra­
ma a exigência de reduzir "nossas insul::.sidades e ... estimular a cultura
comparatista de que temos necessidade'··!.
Provavelmente, o artigo de Marc B[.:.ch teve mais efeito no exterior

l
que na pr0pria França. As abordagens e re2.lizaçõcc em história r:omparada
206 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 207

dos séculos XIX e XX, de que vamos falar aqui, são raras na hi5toriografia estribada numa tradição universitária mais anglo-saxônica que francesa.
francesa. M::smo as Annales não lhe reservaram um espaço adequado, A própria região é freqüentemente um qu:idro cômodo, um pretexto para
como constata Lucette Valensi: "A própria revista não apresenta uma executar um estudo, mas raramente um problema para str aproximado
rubrica regular sobre a história comparada, e seu sumário per:nanecerá das concepções P, realidades espaciais de outros países europeus8• En­
fiel às classificações tradicionais, por seqüências cronológicas, por áreas tretanto, dois setores têm uma tradição comparatista declarada: a demo­
li
grafia histórica e a históri:i econômica.
·I ge0>gráficas ou por setores disciplinares" 5• Nas colunas das revistas de
Retomando os métodos da demografia, algumas obras procuraram
história francesa, os artigos comparativos são a exceção.
Isto não significa que a histo�iografia fra�cesa esteja fechada em confrontar modelos nacionais de aumento da população ou de urbanização,
si mesma. Cor:io em outros países europeus, na França também se veri­ das taxas de natalidade e mortalidade. A Histoire de la population mondiale
ficou uma internacionalização da discussão científica. Por ocasião dos [Históri? da população mundial], editada por Marcel Reinhard, André
congressos e da composição de números especiais de revistas científicas, Armengaud e Jacques Dupâquier, era um exemplo dessa abordagem, que
a evolução das historiografias cstrangc:ras é freqüentcment� levada em ainda existe9 • Ao abandonar o plano nacional e privilegiar o quadro local e
conta. Assuntos que ultrapassam os limites nacionais são colocados no regional, a comparação se tomou mais difícil e mais rara. Na medida em que
programa da agrégation, e especialistas da história de outros países as pesquisas incluem doravante o estudo das condições múltiplas de produção
c:.ir:::?eus são nomeados pél.ra cargos universitários. Até mesmo a edição dos dados m,;méricos, e integram os fatores sociais e cultur:iis, a construçno
francesa - por mais tímido que seja seu esforço de tradução - começou de modelos nacionais e sua comparação � tornaram mais aleatórias. Essa
a trariuzir a!guma::; da:; gr::indes teses de história.corrtemporânea, originá­ concentração d2 pesqúisa numa crítica rigorosa das fontes e dos mecanismos
rias, é verdade, as mais das vezes, dos Estados Unidos. Os melhores demográficos foi acom!)anhada de um estreitamento do quadro geográfico10 •
trabralhos incluem também, em sua bibliografia, livros estrangeiros, e já As Annales .!:: démographie hisforique [Anais de demografia histórica] dos
se admite que é impossível escrever a história da França dos séculos XIX dez últimos anos, com exceção de alguns artigos que escolhem a escala
e XX sem o conhecimento de uma rica produção anglo-saxônica. A nacional como base de comparação, têm publicado sobretudo monografias
missão histórica francesa na Alemanha (Gõttingen) e a Escola frar,cesa limitadas a um município ou a.uma região. Portanto, a demografia histórica,
de Rema, por sua parte, facilitam o acesso à cultura historiográfica alemã na França, tem utilizado a comparação - e continua a utilizá-la - mas com
e it:aliana; todavia, seu eco entre os historiadores f1anceses permanece o objetivo de confrontar cifras globais. Ê bastante raro que expiicações
11111
lirmtado. Portanto, se um galocentrismo existe- e, de fato, existe-, seria obtidas durante o trabalho comparativo se integrem numa reflexão sobre a
falsc generalizá-lo e exagerá-106 • evolução demográfica da França nos séculos XIX e XX.
Como em outros países europeus, os estudos sobre o crescimento
A história comparada na França: industrial tinham rapidamente aciquirido uma dimensão comparativa. Já,
setores e limites nos anos 60, o debate sobre a hipótese do take-off de W. W. Rostow, embora
Com efeito, a historiografia francesa em sua totalidade não recusa limitado à justaposição de monografias n3cionais11 , englobava diferentes
a c1..1mparação. Entretanto, esta é antes implícita que explícita. Os es­ países europeus. Um dos pioneiros da comparação em história econômica
tud1..-.s locais ou regionais se referem freqüentemente ao contexto nacio­ foi François Crouzct que, depois de sua tese acerca dos efeitos do bloqueio
nal: neles, este ou aquele problema nacional é analisado na configuração continental sobre a economia britânica, confrontou a evolução na França
que assume no interior de uma região ou de uma cidade. Porém, os e na Inglaterra. Ao comparar as taxas de crescimento dos dois países,
estudos que, partindo de uma problemática particular, comparam entre François Crouzet e Maurice Lévy-Lcboyer encontraram provas do atraso
si exemplos locais ou regionais são cxtrem:!mente raros 7 ; as am'íliscs industrial da França, e da influência nefasta da Revolução de 1789 sobre
regfonais são comparadas mais com o nível nacional que com outras sua arrancada econômica e industrial. Esses trabalhos se inscrevem na
experiências regionais, e a comparação entre cidades ou regiées cst.: revisão de uma imagem positiva da Revolução Francesa cm vigor nos anos
208 PASSADOS RECOMPO�-ros Mutações 209

60- Eles vão ao encontro de abordagens americanas, que procuraram na sobre o ensino agrícola nos dois países, ou de Eervé Joly sobre os enge­
1,, estrutura social francesa e na mentalidade pré-in:lustrial dos empresários nheiros de minas e os Bergasscssoren.. _ A comparaçã0 frar.co-alemã é mais
1 um obstáculo ao crescimento econômi.:o e à inovação 1:.i. difundida que a com a Inglaterra, e isso é C'!rtamente também resultado de
l
,1
A idéia subjacente a essas interpretações, a saber, que a Inglaterra
deve ser o modelo que permite medi� a trajetória francesa, foi abalada no
uma vontade política e da ação do CNRS 15 • Um excmpÍo animador de uma
abordagem comparativa ampla é o manual de Jean-Luc Pinol, que trata da
decorrer da última década. Com efeito, a atenção se focalizou mais nas vida urbana e da cidade como estrutura na Alemanha, na França, na Ingl::­
condições de crescimento existentes na Fr:mça que nas (;Orrespondências terra e nos Estados Unidos, pro-::urando estabelecer relações e referências.
com o exemplçi inglês. Nesse contexta, as pequenas empresas foram Ao contrário, Gérard Noiriel; animador de uma rede européia de história
interpretadas menos como indicadores do atraso que <..:orno resposta às comparativa, promete uma comparação no título de sua última obra, mas,
condições partir.ulares do mercado e do sistema de produção cm vigor na na realidade, permanece fechado nos limites da França 16 • Persistem, toda­
França. For.:.m sobretqdo Jean Bouvier e seus alunos que se concentraram via, as reticências de fundo: duas grandes teses utilizaram a comparação
nos caminhos franceses em direção ao capitalismo. A formulação de como princípio de pesquisa e de explicação. Joel Mich�l estudou os mi­
Bouvier é categórica: "To:la nação é outra_ A França nunca foi inferior neiros na Bélgica, na Inglaterra, na Alem:mha e na França entre 1890 e
nem superior a qualquer outra nação legitimamente comparável pelo 1914; uma das chaves de sua explicação reside no município, que tem
avanço do desenvo!vimento, a� dimensões e níveis rc!ativos deste, seus estruturas semelhantes nos quatro países. Frédéric 13arbier investigou a
ritmos e velocidades. Nem inferior nem superior à Bélgica ou à Itália, por produçiio, o consumo e a distribuição do livro na França e na Alemanha
exemplo_ Porque, à semelhança de toda nação e de todo Estado, a França no século XIX 17 , Pois bem - e é sintomático-, passados oito ano!;, estes
foi naturalmente outra do que seus vizinhos" 13. dois trabalhos ainda não estão publicados.
Essa abordag'.:m revisionista, que recusava qualquer medeio domi­ Esta lacuna antiga é ainda mais surpreendente, porque algumas das
nante e coercitivo, p0dia ser interpretada em dois sentidos: seja uma condições que, em outros lügares, favoreceram o desenvolvimento da
concentração nas condições específict1s da França, comparadas com as história comparada, também se encontram reunidas na França. Para co­
do� outros países europeus, .seja uma insistência na lógica interna da meçar, uma tradição sociológica insistindo na importância da comparação
evolução econômica da França, livre de todo modelo exterior. Na história existiu, sim, e muito cedo. Émile Durkheim constatá nas Regles de la
econômica, parece que prevaicçcu a segunda inteíprctação. É assim que méthode sociologique [Reg(as do método sociológico]: "O mé.todo com­
os artigos publicados na revista Histoire, éco110111ie et société são dedi­ parativo é o único que convém à sociologia" 1 8_ É o melhor para descobrir
cados unicamente à França, sem a menor comparação. Existem, no en­ causalidades e, finalmente, também leis. Exemplos tiradoi: de várias so­
tanto, alguns indícios de uma mudança de ótica. Algumas contribuições ciedades num estágio análogo de cvolu�o devem ajudar os sociólogos
fr�,cesas a um recente colóquio internacional, consagrado à influência da ·'a descobrir relações gerais, leis verificáveis nas sociedades difcrentes" 19•
tecnologia e da pesquisa na evolução industrial na França e na Alemanha, Por outro lado, a unicidade de um fenômeno excluía, para Durkheim, o
c;-:::;,lobavam uma dimensão comparativa lJ _ trabalho comparativo e, por conseguinte.:;. análise sociológica:"/\ própria
Essa mudança é perceptível cm outros domínios, mais ou menos definição da economia nacional exclui � possibilidade de verdadeiras leis
pr0ximos. Entre os trabalhos recentes, ou em fase de elaboração, cabe científicas, já que concebe seu objeto cc-mo único e exclui a compara­
m<?ncionar as publicações de Patrick Fridcnson sobre a estrutura de orga­ ção"20. Embora Durkheim te,1ha feito reserv as à conccpçiio de uma ciência
niz..:içiio e a política de pessoal nas grandes indústrias alemiis e francesas, h� 1mana agrupando todas as ciências soó3is e garantindo a primazia da
os lrabalhos de Étiennc François sobre a alfabetização e as iconografias na sociologia, suas posições foram, assim o-esmo, interpretadas como o im­
F,-�nça e na Alemanha, a pesquisa promissora Je Maurice Garden sobre a perial ismo ele uma disciplina que provoc:;.·.·a vivas reações, principalm<.:nte
ho:11copatia nos dois países, os trabalhos cm curso de Christophe Charle entre os historiadores. Era por isso que LuciP-n Febvre se opunha ao
soorc os professores universitários cm Berlim e em Paris, de Thicrry Nadau ·'sociologismo" mais que Marc Bloch.
,.1,
, 210 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mutações 211

11
Na Alemanha, a hipótese segundo a qual a história alemã teria

j 1·.
relações entre países25. Pode se exercer pelo menos em três direçõP.s. Em
seguido um "caminho particular" (Sorulenveg) capaz de explí:::ar o nacio­
primeiro lugar, pode orientar a escolha das problemáticas e das diretrizes

q
nal-socialismo e sua vitória em 1933, provocou pesquisas comparativas. Na
de uma pesqi.:isa, e permitir uma melhor definição do campo de análise.
França também, pafticularidades nacionais se encontram cada vez mais

1. :
l'1
1
Com efeito, os exemplos_ estrangeiros e as historiografias dos outros
situadas no centro da pesquisa histórica, cm parte no rnstro do Bicentenário
países podem ampliar o horizonte das problemáti..:as. Em segundo lugar,
da Rt:volução Francesa. O caminho específico em direção ao capitalismo
monografias históricas, quer sejam nacionais ou regionais, podem con­
na França já foi mencionado. Maurice Agulhou, que afirma que a demo­
frontar, numa introdução ou num capítulo final, a evolução particulaí com
cracia antecede� a modemic}ade na França, insiste numa especificidade da
a de outros países, servindo-se da literatura secundária. Neste caso, podem
' 1 França. Enfim, o início precoce, na França, da diminuição da natalidade e
1' testar o valor das explicações propostas e ser obrigadas a uma escritura
da contracepção pode ser considerado como um traço específico da França.
mais analítica. Enfim, estudos partindo de uma problemática comum
E o que dizer, enfim, dos "lugares de memória" nos quais a história francesa
podem analisar estruturas, processos e mentalidades em duas ou mais
se condensa e se reifica21 ? Contrariamente à tradição germânica, essas
sociedades, seja para acentuar diferenças, seja para encontrar analogias,
afirmações não buscam provas numa an5lise comparativa, num �lhar para
de qualquer maneira, para ampliar a base documentária e propor uma
além das fronteiras, mas se inscrevem mais num debate interno à França.
interpretação das evoluções baseada no conhecimento de realidades so­
A história comparativa não encontra lugar nesse contexto.
ciais, l'!Conômicas e políticas diferentes.
Enfim, tanto na história ·das relações internacionais como na his­
É certo, a história comparad� não oferec.! uma metodologia con­
tória políiica, existem tradições de análise comparativa em outros países
firmada. As perguntas que Lucette Valensi levanta devem, de fato, ser
europeus. Certamente, teses importantes anaiisaram a rede de trocas di­
propostas de novo a pwi:,ósito de cada tipo e cada exemplo de compa­
plomáticas, econômicas, políticas e culturais, mas, na tradição de Pierre
ração: "Como decidir que dois objetos são con1paráveis? Como compará­
Renouvin, quase nunca tomaram a comparação co�o objetivo, nem pro­
los? Que escala de comparação adotar? E so\Jretuclo, por que compa­
curaram confrontar problemas que se apresentavam em diferentes socie­ _
rar"26? E claro que existem também exemplos de más comparações. Mas
dades. Nesse contexto, colóquios franco-alemães ou franco-i!alicmos,
temos numerosos exemplos de obras que, apesar de escolherem o caminho
assi:n como a série de encontros sobre as grandes potências na Europa
..
da história comparada, corr.-!spondcm bem a alguns dos princípios da
no sécuio XX, saiientam mais a importância àe redes internacionais do
, escola histórica francesa: à história-problema, a reflexão aprofundada
1111 que reais pesquisas comparativas22. A "nova história política", por sua
sobre as fontes e seu valor, a descnbcrta de abordagens e de visões novas,
vez, relega a comparação ao capítulo sobre as relações internacionais e
o desencravamento das probkmáticas etc. As dificuldades de uma história
se concentra no modelo francês. Este se encontra também no centro dos
comparada mencionadas por certos autores franceses não são específicas
estudos de história das mentalidades que são dedicados aos fenômenos
da França, mas aparecem em todos os países europeus. A resistência ao
nacionais, regionais e locais, renunciando totalmente a uma confrontação
comparatismo deve, pois, ter motivos particulares. Pelo menos três podem
com outras realidades nacionais, embora esta seja bastante promissora23 .
ser mencionados (numa boa tradição francesa).
1 - A tradição de história regional e loecJ da historiografia francesa, que
As razões de um atnso
foi no passado uma de suas riquezas, toma a comparação mais difícil, mas
Quais são as razões desse ãtraso da historiografia francesa? Os não impossível. Com efeito, esse quadro pode se revelar ideal para certo
historiad0res franceses respondem geralmente que o próprio método
tipo de pesquisas comparativas, permitindo comparar recortes, e visões
comparativo é vago. Com efeito, a comparação não deve ser confundida
diferentes do espaço. Essa primazia do regional e do local, no entanto, está
com certas sínteses internacionais tais como. por exemplo, a Histoire fortemente embasada nas condições materi3is e sociais da vida universitária
économique et sociale du monde [História econômica e social do mundo], francesa. Ela tem também uma dimensão mctodológica27 • Um dos princi­
dirigida por Pierre Léon24 . Ela não se reduz tampouco à história das pais motivos do pouco uso da compar�ção deve ser procurado num::
2[2 PASSADOS RECOMPOSTOS Mwações 213

escritura da história, que privilegia a individualidade histórica em relaçãc universais ou limitados à burguesia, e unicame.nte aos homens da produ­
às problemáticas de import'incia mais geral. O temor dP, que modelos ção capitalista ou aos de um mundo de pequenos produtores? Todas essas
teóricos pudessem deformar a leitura dos materiais históricos se exprimiu questões podiam ser discutidas num estrit0 quadro nacional. Na medida
numa recusa de todo "sociologismo". Contra este, celebraram-se os méritos em que essa perspectiva se alargou, ela se interessou sobretudo pela
da análise de casos e se considerou que o conhecimento histórico progre­ influência da Revobção Francesa na Europa e no mundo.
diria por uma acumulação desses esturios de casos. É a;:;sim que, já em 1922, Com uma tal tradição da historiografia, da politização dos debates
Lucicn Febvre formula essa posição, marcando distância em relação a históricos e da d�finição específica do mito fu'ndador da França contem­
Durkhcim, mas 'também a Bloch: "Quando possuirmos mais algumas boas porânea, os estudos comparatistas não podiam se impor. Apenas com a
monografias regionais novas - então, só então, reunindo seus· dados, com­ internaciona!ização d'l pesquisa e da vida universitária essa lacuna surge
parando-os, confrontando-os minuciosamente, poderemos retomar a ques­ claramente. Como, na maior parte das declarações de princípio sobre o
tão de conjunto, fazer com que dê um passo novo e decisivo - tenha êxito. trabalho histórico e as perspectivas de pesquisa, a menção da história
Proceder de outro modo, seria partirmos, munidos de duas ou três idéias comparada não falta, podemos interpre,ar essa lembrança cc,mo um sinal
simples e grosseiras, para uma espécie de rápida excursão. Seria, na maioria encorajador para o futuro. Talvez, nesse contexto, a exortação de Marc
dos casos, deixarmos de ver o particular, o indivíduo, o irregular, isto é, Bloch adquira mais peso: "A história comparada, tornada mais fácil de
cm suma, o mais intcrcssantc"28• Como a história comparada busca, além se conhecer e ele se utilizar, anim[!rá com seu espírito os estudos locais,
do caso iridividual, traços comuns ou estruturas gerais, visa mesmo apre­ sem os quais ela nada pode, mas que, sem ela, a nada chegariam. Numa
ender os mecanismos de funcionar.1en:o de diferentes sociedades em sua palavra, deixe.nos, por favor, de falar eternamente de história nacional
importância respectiva, e se volta para casos diversos em busca de expli­ para história nacional, sem nos compreendermos"29. ·
cações mais substanciosas para problemas ou informações tão estranhos
que podem subverter a conceptualizacão haoitual, ela está longe da apo­
logia de Lucien Febvre. Tanto em sua prática da pesquisa ·como em seu
Notas
estilo uni·,1ersitário, a historiografia francesa se aproximou mais dos prin­ 1 M. Bloch, "Pour une histoi�e comparée des sociétés européennes", in Méla11ges
cípios de Febvre que dos de Bloch. /ris;oriques, Paris, 1963, t. 1, p.19. Sobre a abordagem de Bloch, W. H. Sewell Jr,
2 - A maior parte dos paradigmas da história contemporânea foi formu­ "Marc Bloch and the logic of comparative history", Histc.-y a11d Tl,eory, 6, 1967,
1PI pp. 208-218; A. O. Hill, B. H. Hill jr (ed.), "Forum Marc Bloch and comparative
lada no decorrer dos últimos cinqüenta -:1nos, não cm comparação com
history", America11 Historical Review, LXXXV, l C)S0, pp. 828-853; D. Romagnoli,
outras nações, e sim em relação co1,1 posições de política interior. Ques­ "La comparazione nell'opera úi Marc Bloch: pratica e teoria", in P. Rossi (ed.),
tões importantes como a Revolução de 1789, a laicidade e o marxismo, La storia compara/a. Approcci e prospe11i1•e, Milão, 1990, pp. l 10-128. Sobretudo
dividiram durante anos o mundo dos historiadores e orientaram a pesquisa H. Atsma, A Burguicre (ed.), More Bloc/1 aujo,:.·d'/,ui. Histoire comparée et
histórica. Mesmú no momento em que as fren!es políticas se dissolvem, scie11ces sociales, Paris, 1990, pp. 255-336 (em particular, o artigo de Maurice
Aymard, "Histoire et comparaison", pp. 271-2,S).
elas continuam a exercer um poder inegável sobre as classificações e as
definições da comunidade universitária. � Ver o estudo de R. Hilton, "Seigneurie françaisc et manoir anglais. fifly years la ter",
3 - Na França, a consciência de um "caminho particular" é - comparada in Atsma, Burguicrc, op. cit., pp. 173-182.
com a que vigura na Alemanha - de outra natureza. Ela não se origina
do fascismc, e sim do papel da França revolucionária. O debate não se
3
"HislOire el sciences sociales. Un toumant critique?'',A1111a/es ESC, XLIII, 1988, p. 292.
concentra na questão das condições exatas que, na França, deram ao 4
Ge11eses, 1, 1990, p. 3.
"sfrulo da revolução" (l�ric Hobsbawm) um3 forma e uma irradiação
particulares, e sim na natureza específica da missão revolucionária. A 5 L. Valcnsi, "Retour d'Orient. De quelques usages du comparatisme", in Atsma,
rrança foi o exemplo da democracia direta ou representativa, de valores Burguicre, op. cit., p. 309. A exceção que confirma a regra é o artigv de N. :....
214 PASSADOS RECOMPOSTOS Mucações 215

15 P. Fridenson, "Herrschaft im Wirlschaftsuntcrnebmen. Deutschland und Frankreich;


Green, "L'histoire comparative et )e champ des études migratoires", A.111,,1/es ESC
XLV, 1990, pp 1335-1350. 1880-1914", in J. Kocka (ed.), Biirgert11111 im XIX Jahr/11mdcrt. Deutscli/and im
intemationalcn Verg leic:1, Munique, 1988, II, pp. 65-91; !3. François, "Alphabe­
6
Cf., per exemplo, vários números do Mouvemcnt social sobre "Les nationalis.::ions tisicrung und Lesefàhigkeit in Frankreich und Deutschland", in Fra11kreic/1 im
Zeitalter der Franzosischen Revolution, Frankfurt, 1989, pp. 407-425; M. Garden,
d'aprcs guerre en Europe occidentale" (n. 134), "L'atelier et la boutique" (n. 108)
c,u "Mémoires et histoirc3 de 1968" (n. 143). A revista Vingtieme Siecle também "L'histoire de l'homéopathic en Franl:e, 1830-1949", in 0. Faure (ed.), Praticiens,
procura integrar a dimensão internacional. paticnts et militants de l'/romeopatl:ie (1800-1940), Lyon, 1992, P?· 59-84; A.
1
Collereau, "Problemes de conceptualisation c-o111parative ::le !'industria!isation:
,11 7 As comparações sistemáticas de evoluções regionais são bastante raras: L. P. Moch, l'exemple des ouvriers de la chaussure en France et en Grande-Bretagne", in S.
L. Tilly, "Joining the urban world; occupation, family and migration in threc French Magril, C. Topalov (ed.), Vil/es ouvrieres, 1900-1950, Paris, 1989, pp. 41-82.
cities", Comparutive Studies ·;11 History and /-1:story, 27, 1985.
16 J .-L. Pino), Lt! Monde des vil/es au XIXe siecle, Paris, 1991; G. Noiriel,La Tyra1111ie
8
P. Ayçoberry, "L'histoire régionale en France. Oricntations politiques et méthodo­ du 11atio11al: /e droit d'asile en Europe (1793-1993), Paris, 1991.
logiques du début du XIXe siecle à nos jours", in G. A. Ritter, R. Yier,'iaus (ec.),
Aspccts de la recherc/1c historique en France et <!li Allemagne, Gõttingen, 1981, 17 J. Michcl, Le Mouvement ouvrier c/rez les mineurs d'Europe occide11tale. Étude
pp. 193-201. comparative des an11ées 1880-1914, tese de dout<X3do "d'État", Universidade de Lyon-
11, 198'7, 7 vol.; F. Barbier, Livre, éco110111ie e/ société i11dustrie/le e11 Allemag11e et e11
'' M. Reinhard, A. A�mtngJud, L Dupâquier, /-!isroire générale de la population Fra11ce au X/Xe siecle, tese de doutorado "d'Éut", Universidade de Paris-IV, 191;7.
mowiiale, Paris, 1968; cf. também J. Dupâquier (ed.), Histoire de /a population
18 É. Durkheim, Les Rcgles de la méthode sociologique, Paris, 1977, p. 124; cf. R.
française, Pari:;, PIJF, 4 lume�, 1988-1991.
N. Dellah, "Durkheim and History", in R. A. Nisbet (ed.), É11;i/e D11rkhd111,
10 .-\.
Perrenoud, "Alténuation dcs crises et déclin de la mortalité", A.111,a/es de démographie Englewood Cliffs, 1965, pp. 153-176, e o artig.._--, de V. Karady, Rev11e fra11çaise de
sociologie, 17 (2), 1976.
historique, 1989, pp. 13-29; J. Yallin, "La mortalité cn Europe de 1720 à 1914: tendancc
à long terme et changement de structure par sexe ct par âge", ibid., pp. 31-54.
19
É. Durkheim, "Sociologie et sciences sociales"(l 903), in id. La Scie11ce et l'Action
11 J. Marczewski, /11troductio11 à l'!•istoire quantitatin�., Genebra, 1965; \V. W. Rostow politique, F. C. Filloux (ed.), Paris, 1987, p- 156.
(ed.), T/:e Economies of Take-O/f into Sustained GrO'wt/1, Londres, i 963, pp. 119-138.
20 É Durkh�im, Oc:r.::-cs, !1::ris, 1975, 1, p. 148; R. Charticr, J. Rcve!, "Lucicn Fcbvre
12 F. Crouzet, De la supériorité de l'Anglet,:rre =r la France: /'éco110111ique et et les sciences sociales", Hisiorie11s et géogra.p/res, LXIX, 1979, pp. 427-442.
l'imaginaire XV/1�-XXe siecles, Paris, 1985; id., �Lcs conséquences économiques
21
Cf. P. Nora (ed.), Les lieux de ·�émoire, Paris, 7 vol. J 9S4-1992.
de la Révolution. A propos d'un inCdit de sir Francis d'lvernois", Annales histori­
ques de la Révolution française, 39, 1967, pp. JS:2-217, 336-362; H. Bonin, "La 22 R. Poidevin, Les Relations éco110111iq11es e-r fi11a11cieres entre la Fra11ce et
Révolution française a-t-elle brisé l'esprit d'cntrcprise?", L'information historique,
i'Allcmagne de 1898 à 1914; Paris, 1969; R. Girault, E111pru11ts russes et
47, 1985, pp. 193-204; M. Lévy-Leboyer, "Lcs prc..:cssus d'industrialisation: lc cas
i11vestisse111e111s /rançais e11 Russie, 1887-19/4. Paris, 1973; R. Girault, R. Frank,
de l'Anglcterre et de la France", Rcv11e historiq1-c·, 129, 1968, pp. 281-298.
La Puissa11cc cn Europe, 1938-40, Paris, 1984: Comité d'histoire de la Deuxicmc
Guerre mondiale, François et Britamiiques da.ns la drôle de guerre, Paris, J 979;
i; P. O'Brien e C. Keyder, Economic Growt/r in Britai11 and France. 1780-1914,
do mesmo Comitê, La France et l'Allcmagnt!. 1932-36, Paris, 19S0.
Londres, 1978; J. Bouvier, "Libres propos autour d'une démarche révisionniste"
in P. Fridenson e A. Strauss (ed.), Le Capita/is.me /rançais X!Xe-XXe siec/e/
23 R. Rémond (ed.), Pour 1111c histoire politique. Paris, 1988. Para uma comparação
Rlocages et dy11amis111es d'1111e croissance, Paris. 1987, pp. 11-27.
bem-sucedida de construções mentais, cf. M. kismann, Das Vaterla11d der Fci11de.
S111die11 wm 11atio11ale11 Fei11dbegriff 1111d Sd:->stvcrs1ii11d11is i11 Dc111schla11d 1111d
'' Y. Cohen, K. Manfrass (ed.), Frankrc,ch _,,d De11tschla1ul Forsc/r1111g.
Fra11kreic/r, 1792-1918, Diss. Universitat Biei<fcld, 1990; C. Tacke, Herma1111 um/
Tcc/11wlogie wul i11d11striclle E11twick/1111g im XIX 1111d XX Jahr/11111dcrt, Munich,
Vercingétorix, Zwei 11atio11ale Symbole in D.:-.utscli/a11d wul Frankrciclr, lese de
1990 (cf. as contribuições de A. Broder, A. Belt�an, P. Fridcnson, A. Hcrlea, E.
doutorado, Institui universitaire europécn, l �:!.
Chadeau, F. Caron).
216 PASSADOS RECOMPOSTOS

�· P. Léon (ed.), Histoire éco110111iq11e et social,: du monde, 6 volumes, Paris, 1978-1982.

::s Cf., entretanto, a abordagc� promissora e inovadora de M. Espagne, M. Werner DOIS


(ed.), Tra11sferts c11/t11rels, les relations intercultureUes da11s /'espace fra11co­
aUe111a11d (XV/1/e-XXe s,ec/es), Paris, 1988.
A Violência das Multidões:
:Y. L. V�lensi, artigo citado, p. 311. É Possível Elucidar o Desumano?
:7 Cf. o artigo interessante de R. Chartier, "Sciences sociales et découpage régional", DOM/NIQUE ]UU/\
_
/\eles de la recherc/1e e11 sciences sociales, n. 35, 1989, pp. 27-36.

::>< L. Pebvre, La 7erre e/ l'évo/11tio11 h11111ai11e. /11trod11ctio11 géographique à /'l,istoire,


O estudo das feridas da história, de suas paixões e de suas febres
Paris, 1922 (1970), p.· 92 e segs.
sociais, dos estigmas que estas deixam, ainda pode nos ensinar muita
� M. Bloeh, artigo citado, p. 40. Este artigo já estava no prelo quando o 11. 17 coisa sobre a relação patológica <1,1e !lma sociedade 1 ,·antém consigo
(setembro de !994) da revista Ge11eses publicou o interessantíssimo dossiê "Lc mesma. A estran 11eza perturbadora que emana dos fenômenos percebidos
comparntisme en histoire et ses enjeux: l'excmplc franco-allemand", com artigos de por nós (mas também pelos contemporâneos) como i11s�nsatos revela as
P. Schõttler, S. Kott e Th. Nadau, M. Esp:igne (pp. 102-121). Só posso remeter o
pergw1:as qu� e CNpv social formula a respeito de sua própria identidade
leitor para o mesmo.
e os perigos que tenta exorcizar segundo o registro próprio de sua época.

A história da multidão constituiu por muito tempo um dos pontos


cegos da pesquisa na França, e, muito provavelmente, esse atraso não é
um ac.;aso. Esboçaremos aqui apenas algumas �tapas desse percurso, que
é também uma reviravolta. No curso de um século, o olhar do historiador
se deslocou: os fantas1�1as que a "animalidade" das multidões em movi­
mento suscitava no estudioso fechado em seu gabinete foram substituídos
por uma análise das lógica·s práticas que determinaram a ação das mes­
mas, chegando a uma busca· das coerências que podem dar conta do que
Alphonse Dupront cham<!va de "prática do inexpiável": trata-se de "re­
conhecer com uma lucidez espantada, por vezes_ ferida, mesmo que isso
nos choque, a organicidade de um mundo ::iutro, coerente até no atroz,
no anormal ou no estranho" 1• Em surr.3, o que denominamos hoje o
"desumano", o horror d::is massacres. r2111oém deve ser elucidado.
Os traumatismos revolucionários que cscandem a história nacional
no decorrer do século XIX pesam forterr:ente na análise que empreendem
no final do mesmo os pensadores das di,·ersas disciplinas. Pouco importa
que Hippolyte Tainc afirme, ao encct3r " capítulo revolucionário de seu
Origines de ln Fra11ce co11te111porni11e [O�igens da Franca contemporânea]
(1878), que não devemos procurar cn: :;-..ia obra alusões aos debates con­
tcmporfmeos: "Escrevi como se tivesse tido por tema as revoluções de
Florença ou de !'.tenas [ ... ] Estimava demais minha profü<;ão d-: histor:ador
Mutações 219
218 PASSADOS RECOMPOSTOS

careteiro, sanguinário e lúbrico, que mata com uma risada de escárnio e


para fazer outra me escondcndo" 2• A verdade é que os medos suscitados cabriola por sobre os estragos que fez"7• Trio obscdante quanto a animal
pela Comuna estão de fato presentes cm sua obra: a multidão é um é a metáfora médica, que c1prcsenla a sociedade francesa como vítima das
"animal", o motim popular, "um movimcc.10 de bruto cxasperarlo pela patologias mais rep...:gnantes, entregue à úlcera, aos abcessos, ao pulular dos
necessidade e enlouquecido por uma suspemta"3; na manhã do dia 14 de parasitas: semelhante acs efeitos crescentes do al<:oolismo no operário ctos
julho de 1789, "como um elefante domesticado que_ de repente voltasse bairros urbanos pobres 110 for. co século XJX, rissim a Fra:1ça do fim do
a ser selvagem, o povo, com um gesto, derruba seu cornaca habitual, e Ancien Régimc, "enfraquecida pele:; jejuns sob a monarquia, embriagada
os novos guias que toler;,, cmpoleiradcs cm seu pescoço, só estão lá pela pela má aguardente do Contrai social e de vinte outras bebidas adulteradas
mostra; de agora em diante, ele anda a seu modo, liberto da razão deles, ou fortes, depois subitamente golpeada na cabeça: de imediato, vacilou com
entregue a su:is sensações, seus instintm e seus apetites"4• Para Taine, tal todns seus membros pelo jogo incoerente e pelos impulsos contraditório:.
::!prcciação decorre simplesmente das leis dementares da fisiologia e da de seus órgãos desencontrados"º.
psicologia: a razão não é um dom inato, e sim "um estado de equilíbrio Só insiscimos aqui nas palavras de Tainc, porque sua maneira de
instável, que depende do estado niio mcr,-os instável do l:érebro, dos ver a multidão será amplamente partilhada e retomada. Com efeito, no
nervos, do sangue e do estômago". Port:into, se juntarmos "mulheres que final do século XIX nasce uma nova ciência social: a psicologia das
têm fome e homens que beberam", e os dcix:armos "inflamar-se com seus multidões, ligada ao mesmo tempo à antropologia crimin::l e às teor;as
próprios g�itos, -::om n espt:rà, com o contágio recíproco de sua emoção
de Charco! sobre o hipnotismo e a sugcstã-:/1 • Ela também deve muito às
�� crescente", teremos apenas um "tumulto de loucos perigosos". Quanto às apreensões geradas pela irrupção das massas na vida política e pelos

r!
li
i\f complexas opcrdções mentais que as idéias gerais exigem, se sua gênese
� conflitos sociais da époc-a, quer se trate das grc;:vcs, do "boulangismo" ou
já constitui um milagre nos espíritos &upcriores, o que será no camponês
.1 da violência d.. ., manifestações comcmorativrs do dia l ll de maio, a p::rtir
1i1. ou no trabalhador braçal? Se o cérebro deles é incapaz de raciocinar e de 1889. Na Itália, Scipiu Sighele. discípulo do criminologista Cesare

Í!
de apreender o sentido dos dogmas (como o da soberania do povo) que Lombroso e autor dela folia delinquente [A multidão delinqüente) (1891),
lhe pregam "energúmenos perigosos", em co,mpcnsação, sob o influxo da
�:\ �voz vibrante" dos tribuno.,, despertam nele:- "por contágio os instintos
atribui à multidão uma predisposição para o mal, por ser "um terreno cm
que o micróbio do mal se desenvolve muito facilmente, enquanto o
-�1
J da carne e do sangue, as cobiças pessoais� as surdas inimizades [... ) micróbio do bem quase sempre morre". Numa multidão, os seres moral­
sempre prontas a se dcsenfrcarcm"5• mente fracos, as mulheres e as crianças com deficiente força de vontade,
JII
A explosão da Revolução Francesa é, pois, analisada como o emergir são presa fácil de hipnotizadores que lhes sugerem ações ilícitas. Na
de uma selvageria, quando sol:,c à superfície wda a escória de uma socie­ mesma hora, na França, Gabriel Tarde, magistrado da província, que, cm
dade, a mais vil ralé, vagabundos, bandidos e "estrangeiros _vindos não se suas doutas obras de direito, se !ransfonnou cm sociólogo, funda sua
s::bc de onde"<•. De fato, a explicação fundancntal da conflagração revo­ psicologia coletiva numa visão análoga; a sociedade repousa na imitação,
!t:cionária reside, para Tainc, no encontro cr.:rc as teorias quiméricas dos que é "uma espécie de sonambulismo[... ]. Ter apenas idéias sugeridas e
juristas do fim do Ancicn R6gime, iargamen:e divulgadas por alguns mi­ julgá-las espontâneas, eis a ilusão própria ao sonâmbulo e também ao
lhares de "Maquiavel de praça pública". e a eobriaguez de "vários milhões homem social" 111• Explicam-se assim os delírios das massas, e Gabriel
de selvagens" que, libertos de qualquer prcssJio, interior ou exterior - não Tarde utiliza freqüentemente tanto a metáfora da propagação da faísca
existe mais governo -, deixam as paixões mais brutais irromperem. O elétrica, quanto a do contágio febril, para dar conta dos excessos aos quais
vínculo social se desfez: "Pelo isolamcnw 00s indivíduos, cada homem as multidões se entregam: "As multidões não são apenas crédulas, são
r<:'.::aiu cm sua fraqueza original, e tod., po<l,::-r pertence aos ajuntamentos loucas. Muitos dos caracteres que obsCíYamos nelas, elas possuem cm
t<'mporários que, na poeira humana, se lcv·2.ntam como turbilhões". De comum com os hóspedes de nossos asilos: hipertrofia de orgulllo, into­
r:;-pcntc, dos homens antes contidos pelo trab,.:1lho lento de uma civilização lerância, imoderação cm tudo. Como os loucos, sempre vão para os dois
.::..,tiga, "vê-se sair e bárbaro, pior aimb, o animal primitivo, o macaco
220 PASSADOS RECOMPOSTOS . Mucações ZZ l

pólos da excitação e da depressão, ora heroicamente furiosas, ora aniqui­ é possível apreender o jogo dos atores, sua sensibilidade política bem como
ladas pelo pânico. Têm verdadeiras alucinações coletivas: os homens sua percepção da conjuntura, mas sobretudo, maciç�n1en(c, a contradição
reunidos acreditam ver ou ouvir coisas que isoladamente não vêem nem crescente entre o gesto e o disc:.irso.
ouvem mais" 1 1• Além de louca, a multidão, embora "quase sempre" A palavra da greve é tanto mais vigorosa, áspcrà, selvagem, quanto
composta de elementos m::sculinos, é também mu!her, segundo Gabriel a violência dos gestos tende a se tornar excepcional: apenas tim décimo
Tarde, "por seu capricho r0tineirn, sua dociEdnde revoltada, su:.: credu­ düs greves - um quarto daqu;::las dos mineiros - deram lugar a manifc�­
lidade, seu nervnsismo, se�s bruscos :;aitos psicológicos do furor à ter­ taçõcs de represálias; menos de 4% degeneraram em violências, e a
nura, da exasperação à gargalhadà" 12. proporção alcança apenas 9% no terreno das minas. Nas 2.900 greves que
Como vemos, a psicologia das multidões é fortemente dominada estudou, Michelle Pcrrot constatou u m únicq caso de assassinato: na
pelos P.Slereé!ipos dominantes da época. Disso também não escapa manhã do dia 20 de fevereiro de 1886, os mineiros de Decazeville atiram
Gustave Le Bon, polígrafo positivista que, depois de mulliplicar obras de pela janela o engenheiro Walrin, cuja arrogância provocara sua exaspera­
vulgarização científica, publica em 1895 La Psyc!tologie des foules [A ção. A violência operária se apresenta as mais das vczc� seg1mda, dian:c
psicologia das multidões], livro que será traàuzido para dezessete línguas da resistência obstinada de patrões agressivos. Afinal de contas, a vio­
e granjeará a seu autor a notoriedaclc 13 • A obra não tem nada de original lência operária foi, de certo modo, "domesticada e canalizada", "civi­
e se limita a reunir os temas já desenvolvido.s por Taine, Sighe:e e Tard::: \iz;icla" no sentido forte do termo, subordinada às necessidades da p:o­
com o advento da era das multidões, comeÇ3 a da força cega do número dução e, de modo progressivo, tornada dependente da ordem indus­
e da deslr:.iição das grandes civilizações -'envelhecidas". Impulsivas, trial Hí_ Tanto a c:uantifjcação como o estudo lex t.ual revelam assim a
móveis, irritáveis, crédulas _r: impressionáveis, pouco aptas ao raciocínio, deformação à qual os psicólogos das multidões haviam submetido o
as multidões se d--ixam dominar pelas alucnnacõcs coletivas e pelas su­ acontecimento. A visão épica de um Zola pintando a insurreição selva­
gestões quase hipnól:cas de uni agitador capn de agir sobre elas por suas gem dos mineiros cm Germinal - embora as notas redigidas durante sua
afirmações repelidas e pelo contágio emocional que estas suscitam: "as permanência em Anzin atestem o cuidado dó detalhe colhidn na reali­
rr.:.iltidõcs são por toda parte femininas" e, '""como as mülheres, elas vão dade - pertence, de fato, à criação liter.íria.
logo aos cxtremos" 14• Sabe-se tudo o que Aéolf Hitler tirará desta ideolo­
gia no Mei11 Kampf 1�. A racionaliqade das revoltas populares
ill Ao tomar, há uns vinte anos, a greve operária de 1871 a 1890 como Um dos primeiros historiadores que criticaram a visão redutora do
objeto de estudo, Michellc Perrot abordou justamente o fenômeno que "doutor" Le Bon, sublinhando a ign0rf.ncia do mesmo cm matéria de
suscitara os mais vivos pavores da burgucsi;L Ora, reconstituindo meticu­ documentação histórica, é Georges Lefebvrc. Seu estudo exemplar de La
losamente as séries de conflitos do trabalho em seus componentes profis­ Grande Peur de 1789 [ O grande medo de 1789] (1932) permanece ainda
sionais bem como cm suas estruturas reivindicativas, dedicando-se a esta­ hoje um modelo de análise histórica. Baseando-se numa crítica aguda do
i:--:?leccr por uma estrita quantificação as re;c:::iridaclcs (sazonais, mensais, conjunto de fontes disponíveis (à qual T::iinc não se dedicara) e numa
semanais) e as oscilações das greves, sua rê"lação com a conjuntura eco­ erudição sem falhas, Gcorgcs Lcfebvre refuta inicialmente algumas hipó­
n�'lmica e o clima político geral, a autora cocseguiu apreender as articula­ teses sumárias: não, as agitações revolucionárias da primavera de 1789
Ç.)CS principais e os traços dominantes da revolta, e demonstrar assim como não são obra de "briga11ds" [bandidos] - o lermo na época distingue
::. ·'psicologia das multidões" se apóia cm gDnclc parte cm fantasmas. Se Simplesmente um agrupamento que perturba a ordem-, e sim do "povinho
a fisionomia social da greve é nitidamente ?rolctária, sua natureza, suas das cidades e do campo que, impelido pela fome e acreditando estar de
: -ivindicaçõcs
.. e suas modalidades variam e�1 função cios temperamentos acordo com o rei", investe contra os :�:postos, os direitos feudais e o
p:-ofissionais e da qualidade dos atores; sua explicação, aliás, nf10 pode se dízi::10. As revoltas agrárias cio verão também n�o são obra de malfeitores,
re.sumir numa simples sociologia. É no mOVL..71Cnto, na própria prúlica, que e os autos de prisão permitem restituir a composição social muito

1 :-'-4,j· .., , . . ·'· �' PWDltlC OtlnRSl!MGt IUlfllAL lt INlllll


222 PASSADOS RECOMPOSTOS
1 1
Mutações 223
•11
diversificada dos participantes: trata-se de artesãos e pequrnos comer­ em seu componente revolucionário, "agressivo", como na ocasião dos
'

]
ciantes, de !Hestadores de serviços nas vinhas, de granjeiros e meeiros, motins, das revoltas, das insurreições; por outro lado, eliminavam outros
de lavradores e moleiros, muitos dos quais são proprietários, mas também tipos de rr.ultidões, como as presentes às cerimônias e às procissões, ou
,1 de burgueses do campo, às vezes na primeira fila dos insurretos i 7 • Com às execuções capitais, ou ainda as multidões convulsionárias que se
efeito, atento à longa duração, Georges Lefebvre recoloca o Grande esprc.mia!Tl em Saint-Médard, "material fascinante para o psicólogo das
Medo na continuidade dos motii1S da penúria e da luta secular contra multidões, mas de um interesse acessó.:io para o historiador"20. Em
os açambarcadores. No entanto, o que mais lhe interessa é analisar de segundo lugar, eles repousavam num modelo teleológico i1nplícito,
modo preciso .os vetores da inform·ação; reconstitui assim os itinerários segundo o qual o movimento sans-culotre é o paradigma pelo qual se
·1
dos pânicos, lncaliza sua irradiação, e demonstra a inanidade da tese do julga a maturidade de um motim: desse ponto de vista, os motins da
"complô aristocrático"; não houve nem "mão invisível" nem universa­ fume do século XVIII, assim como a guerra das Farinhas de 1775,
lidade do fenômeno. pertencem ao domínio da "espontaneidade" e da "inocência política" 21.
A partir daí, o historiador é remetido para o problen;rn essencial: Finalmente, eles se baseavam no postulado de que existe uma adequação
segundo que lógicas funciona o rumor? Quais têm sido seus canais rigorosa entre as palavras de ordem, as idéias e os objetivos dos mili­
(reuniões de feira ou de botequim, mas também viajantes, padres, tantes sa11s-culottes dos clubs por um lado, e os sentimentos e os inte­
ge11ciar:naria, mensageiros ou ,postilhões)? Segu11do que modalidade um resses das multidões revolucionárias por outro22. Sem dúvióa, a relaçáo
rumor se deforma no curso da propagação oral, e como se dá a apro­ é muito menos simples, e também não é ce1 to que se possa deduzir tão
priação? A análi�e de Georges Lefebvre desemboca a::sim na formação diretamente a significação política de uma revolta a partir da simples
de uma mentalidade coletiva, na gênese das representações, e ele pode composição social de seus participantes.
então reconstituir a extraordinária complexidade do acontecimento, no Uma primeira reorientação da pesquisa consistiu, pois, em não
qual vêm se encaixar sentimentos ancestrais (memória popular do an­
tratar mais os motins como comport.irnentos. "espasmódicos", que res­
tagonismo entre senhores e camponeses, irritação em tempo de penúria
ponderiam como que mecanicamente à fome e à miséria nascidas da
contra os privilegiados) e impressões forjadas recentemente pela própria penúria, mas sim cm considerar como uma expressão política própria
atualidade política (papel das assembléias eleitorais e da redação dos
os discursos e os gestos dos atores, que são animado::; pela convicçã0
cadernos de queixas na construção de um rei bem, preocupado em
partilhada de defenderem ·os direitos trn.dicionais e os costumes, e de
aliviar a miséria de seus súditos, e na representação coletiva de um tipo
serem aprovados pelo conjunto da comunidade: comportamentos por
abstrato de senhor que se·"Opõe às reforma�). Portanto, não foi por acaso muito tempo julgados "C:esviados" ou "'erráticos" têm sua construção
que a violência camponesa se atirou contra os símbolos mais fortes da própria, e estão ligados a sistemas de representações que exprimem os
dominação senhorial: castelos, títulos feudais, oapéis das justiças senho­ valores, as normas e as rcstriçéies sobre os quais a sociedade deveria
riais, assentos na igreja. Ao recusar as interpretações preguiçosas, rcpou!>ar. Aquilo que se poderia denominar uma economia moral da
Georgcs Lcfcbvre levava pela primeira ,·cz o leitor a compreender o
multidão estima o motim legítimo, descia:! que uma certa ordem econô­
evento que permanecera o mais enigmático da Revolução Franccsa 18 . mica e social tenha sido rompida: o historiador inglês Edward P.
Nos últimos vinte anos, a renovação dos estudos sobre as mul­
Thompson fez uma demonstração magistral disso em relação aos motins
tidões se realizou cm direções múltiplas. 1'üo se trata mais de interessar­ inokscs d;:. fome no século XVIII:_,_ O motim não é mais percebido
o
se :ipcnas, como fizera no início dos anos 60 ü historiador inglês George como desordem, e sim como um restatx-lecimcnto da ordem, uma pe-
Rudé, a partir dos arquivos policiais, pela composição social das mul­ tição dirigida �1 autoridade paternal do re: cm favor do bem comum, para
til:l'',es da Revolução Francesa 19 : tais e�tuc'-'� tiveram o enorme mérito o retorno ao justo preço dos gêneros ali:nentícios. Existe, de fato, uma
de rcfutn r definitivamente a lenda negra fabricada por Taine, mas so­ racionalidade própria das formas de açõe.s populares, que se funda nun,a
fri:im de um:i tríplice fraqueza. Primeiro, só consideravam a multidão experiência pi urissecular.
Mutações 225
224 PASSADOS RECOMPOSTOS

Esta análise foi amplament e confirmada pelos trabalhos recente:; do multidões convidadas para os espetáculos outorgados pela monarquia (quer
se trate i:las festas reais ou das execuções públicas) ou sublevadas em
historiador americano S'.even L. Kaplan: partindo dos mecanismos que
regulam o mercado dos cercais sob o Ancicn Régimc24 , ele se interessou "emoção" popular, Esta história e1:1 fragmentos permite à autora afastar-se
do discurso dos administradores da antiga monarquia, que dava à multidão
pela recorrência, ao longo do século XVIII, do sistema de representações,
seu duplo rosto contraditório, multidão anim:il e impulsiva e multidão
profundamente �nraizado na consciência coletiva, que infere a existência
emotiva, capaz de dizer sua alegria e de agradecer a seu soberano,
de um "complô de fome": cada vez que o abaskcimento normal do pão
A.o contrário dessa visão homogênea e monolítica, é possível dis­
ou de grãos fica iuterrompido por um período prolongado, imediatameute
tinguir comportamentos diferenciados, lógicos, organizados, adaptados
reaparece um'mesmo modelo de percepção, comum aos meios mais di­
aos lugares e às circunstâncias, sob a aparência da impulsividade; o que
versos, dos mais modestos aos mais favorecidos: os ministros, os finan­
motiva a ação popular é uma "construção de sentido fundada na leitura
cistas e seu entourage são acusados de estimular um complô visando levar
do que foi visto e percebido"27, A análise exemplar do caso dos raptos
o povo à fome_ Na visão popular, o governo não exerceu o papel regulador
de crianças em Paris é uma demonstração brilhante dessa visão, Em maic
que lhe cabia, e deixou que se desenvolvessem as ilegalidades no comér­
de 1750, corre o boato, na capita;, de que os homens do �hefe de polícia
cio (cstocagcns secretas, exportações ilícitas, até mesmo destruição de
Berryer raptam crianças para levá-las não se sabe aonde; o motim cresce
grãos). Recusando tanto a explicação pela paranóia coletiva de uma
em diversos bairros, um oficial de polícia é assassinado pela multidão,
psicose alucinatória,. quanto ·a interpretação por uma patologia social,
e seu cadáver é arrastado para a frente da residência do chefe de polícia,
K:!plan mostra, ao contrário, como a obsessão do complô, inscrita no mais
Através do estudo minucioso dos testemunhos, relatos e <iepoimentos,
profundo das "angústias de urr.a sociedade prato-industrial ainda sujeita
através da análise precisa das formas da violência, dos gestos e dos gritos,
à tirania do trigo", se desenrola logicamente no interior do sistema das
pode-se ler "o motim como um texto que os atores improvisam, embora
representações através das quais os atores percebem as estruturas econô­
seguindo antigos roteiros [ ... ]; ao escolherem lugares, situações, ao de­
micas e as redes do poder. A obsessão da .:onspiração contribuiu muito para
terminarem formas de represálias, os amotinados inventam, de episódio
politizar o problema da subsistência e para dessacralizar a monarquia,
em episódio, a significação de sua revolta"28, Contrariamente: à opinião
dcsatnndo o laço místico que unia a pessoa do rei a seu povo25 .
de Michelet, o motim de 1750 não prenuncia as jornadas de 1789; ele
Ao lado do grande exemplo dos motins provocados pelos grãos, o
exprime, cm sua forma ax:caica e numa linouaoem política antioa
b ' a
exame atento dos arquivos da polícia e da justiça parisienses no século e, �

n XVIII permitiu recentemente a Arkttc Farge reconstruir com finura a


irritação popular em face da invasão crescente do Estado e de sua polícia
na vida cotidiana, mas também a nece5S:dade de restaura� os laços de
lógica das ações e dos discursos jos grupos capturados na rede da ordem
amor e fidelidade que unem a autoridade paterna do soberano a seu povo:
repressiva, ou que procuram simplesmente o delegado do bairro, e res­
como pode Luis XV ser um rei de vida se, novo Herodes, manda mas­
tituir assim os modos cotidianos de racionalidade do povo26 . Recusando
sacrar os inocentes? Aqui também se trata, cm realidade, de recompor
p:irtir de clas�ificaçõcs preestabelecidas nu de categorias sociais predeter­
uma ordem que foi destruída: raptar crianças em nome da autoridade real
minadas, trabalhando diretamente sobre os documentos (cujos limites ela
é, justamente, ferir o caráter sagrado d:>. missão do monarca.
reconhece, pois foi uma prática de poder que os fez nascer e que modela
sua forma), ela foz cntüo surgir das próprias práticas as regras de funcio­ O horror dos massacres
n:imcnto d"s relações sociais, e opera, pela reconstrução de trajetórias
No centro dessas reconstruções, o historiador enfrenta o que jus­
cada ve= singulares, e também pela atençüo ao detalhe significativo, um
tamente pode se apresentar como o mais irracional, o mais desumano: a
dcslocamen10 d:1s questões cm rclaçfio às teorias globalizantes, muitas
violência e seu cortejo de horrores. É preciso porém, para apreendcr-ll;es
,·czcs cegas. D:.1 família para a oficina, do t.iairro para a cidade inteira,
o sentido, não aplicar aos fenômenos nosso próprio sistema de represen­
a :rntora recoloca os objetos das disputas, tensões, conflitos que surgem
tações. Lembraremos aqui somente dois livros recentes, que colocaram no
entre casais ou amantes, operários e patrões, bem como no meio de

1
ij[li 226 PASSADOS RECOMPOSTOS Mwações 227

r;!
1 â:nago de sua trama os próprios massacr es. Em seu livru sobre a violência distúrbios religiosos. Não somente a denúncia profética do herege pelos
no tempo das guerras de religião, Denis Crouzet recusa desde o início os pregadores mergulh.? os ouvintes num funcionamento mental que opera
modelos historiográficos que quiseram explicar ::: mudança religiosa ape­ uma fusão er.trc enunciadores e receptores, e os impele, para reafirmar
nas. pelas variávci� econômicas e sociais, cm particular a histori.ografia sua fidelidade a Deus, a um desaposs:imento de si, mas os próprios
Ili
li:1
anglo-americana e sua interpretação sociológica da Reforma; se esta não gestos da violência "são uma Palavra, u m sistema coerente de signos
é mais considerada como a revolução '"universalista" dos pobres e dos dispostos de tal maneira qt1 e eles enunciam a VP-rd1de profztica" 31•
l op,imidos, d� acordo com o modele proposto; já em 1899, por Henri Através do furor gestual nos corpos martirizados dos huguenotes, atra­
1
JtJ Hauser, os his,toriadores dos ancs 1960-1980 não teriam por acaso sim­
plesmente invertido o quadro inicial de explicação, associando desta vez
vés das inumeráveis marcas que os desfiguram ou os deformam, emerge
todo um ritual de nomeação do mal. As chacinas coletivas têm a função
. _,,
de desvelar o animal imundo, de fazer aparecer a verdade profetizada,
'1
a mensagem divulgada pela Reforma à expressão social vivida por certos
grupos ou certas profissões urbanas (impressores em Lyon, estudados por de fazer surgir o monstruoso que se mascara sob o invólucro corporal.
N.Z. Davis, ou artesãos do têxtil cm Rouen, analisados por P. 13enedic.t), A violência marca, pois, o reencontro com a ordem da realização de um
que estariam mais especialmente pred;spostos a aceitar e compreender Deus vingador. Se, tão freqüentemente, as criancinhás são encarregadas
essa mensagem? O rcducionismo antropológico, que "desistoriciza" os da lapidação final dos hereges, é porque sua inocência, 2bençoad: por
massacres, para neles ler o sur�ir de um "'inconsciente coletivo" vindo da Cristo, marca a presença do Espírito de Deus na violência profética que
noite dos tempos, não é melhor que a interpretação cultural, qt1c faz dos elas cumprem, e anuncia a iminência da purificação escatológica. É
11:
·li moti11s religiosos uma "rica categoria" no interior elo sistema dos gestos
violentos da Europa pré-industrial2\J. Para D. Crouzet, a uma crise reli­
razoável, aliás, pensar, lendo os rituais de agressão que opõem os
meninos aos huguenote�, que o imaginário católico reutilizou, numa

1.��
giosa correspondem pulsões religiosas: os corr.hatz do fiel papista foram nova configuração, os elementos portadores da estrutura simbólica que
º_
"comb:1tes por Deus, com Deus, cm Deus"3 A violência religiosa do opnnha meninos e judeus na Idade Média32•
século XVI não se explica pela relação estreita que manteria com ::is As guerras de religião são, pois, guerras santas, a pulsão de cruzada
valores de uma comunidade e o sentido que esta tem de sua identidade, 11âo está ausente delas, e a violência que nelas se manifesta é uma vio­
e siT"l, antes, pelo desligamento que ela introduz em relação ao tempo do lência da posse de Deus: as contribuições da antropologia foram aqui
lfl' .. cotidiano e da comunidade, peio desprendimento mon�entâneo de toda
determinação "mundana". Daí a atenção dirigida para o roteiro dos rituais,
essenciais para extrair uma interpretação coerente de uma agressão reli­
giosa que foi capaz de chegar até r antropofagia33 • É verdade que, se o
para a força de uma carga simbólica que já n50 é imediatamente iegívcl estudo do imaginário dos disc,usos e do sistema das crenças dos atores
por nossa consciência contemporânea. Os prcg.idores católicos dos anos é extremamente precioso para compreender a morfologia dos massacres,
1545-1560 mantiveram os fiéis num clima profético que anuncia a ele é muito menos produtivo para explicar o próprio desencadeamento da
iminência do Julgamento de Deus e do ca$tigo final: no limiar da catás­ •,iolência, a passagem para o ato, e cm nenhum caso exclui o recurso a

l1
trofe, só a violência contra o herege po,iaia rcc0nstituir a aliança com 0utras análises. A interpretação da Saint-B:irthélemy, a partir de uma
Deus, já então perdida. Considerando que, por sua parte, os huguenotes reconstrução hipotética do imaginário de Carlos IX, como um "crime
se entregam a uma agressão simbólica cxtrcman.entc forte (que talvez seja oumanista", um "crime de Amor, destinado a impedir que um ciclo in­
o sinal de um protestantismo mais 1 adical, m:iis "revolucionário"), ocu­ finito de :;ofrime!ltos e desumanidades pudesse abater-se sobre o reino",
pando as igrejas e destruindo altares e imagens dos santos, a explosão de :;nrece muito frágil, perigosa e pouco con,·incente34• A noite da Saint­
violência dos anos 1560-1562 se explica melhor. Barthélemy não foi um sonho, e a origem dos massacres não foi espon­
A violência católica deve, pois, Sl': exar.1inacla no campo especí­ :2nea. A reconstrução que o historiador tenta das lógicas do acontecir.�en­
fico elo sagrado do século XVI: retomando uma prol�lcmática cara a eu não pode se perder unicamente nas representações que os atores con­
Alphonse Dupront, D. Crouzct -analisa a dinf1mica sacra no âmago dos temporâneos deram dele.
: !1 228 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mutações 229

11.
:,
Três séculos mais tarde, o assassinato ritual de um jovem nobre, "canibal", precisamente porque é sentido ainda como próximo. Muito
torturado e depois queimado vivo a 16 de agosto de 1870 no local da feira freqüentemente, a historiografia "dcsreali:t.ou" o sécul.:, XIX, "seus
da comuna de Hautefaye (Dord0gne), na presença de uma multidao de massacres são pasteurizados" e "o sangue das revoluções cuidadosa­
.1 minte lavado", como se fosse preciso re,.-obrir sistcmaticamen�e o hor­
il trezentas a oitocentas pessoas, que o acusa de ter gritado "Viva a Repú­
blica", fascinou por seu horror as imaginações contemporâneas. Sua sig­ ror. Essa história "pudibunda e doce [ ... ] decapita a história das repre­
nificação permanecia um enigma, pois, como observc1va Gat,riel Tc1rde, sentações; desqualifica a priori toda tentativa visando a. discernir a
evolução das sensibilid.ades coletivas; bloqueia a busca das figuras do
':i "nenhum dos camponeses de Hautefaye qüc mataram a fogo lento M. de
Moneys teria sido capaz, isoladaménte, não apenas de perpetrar, mas de horror e das práticas da crueldade"17• Ao contrário, o estudo exemplar
querer esse abominável assassinato"35• Retomando este dossiê, rapida­ do Vil/age des cannibales [Aldeia dos canibais] restitui a coerência e
mente esquecido pelos historiadores, para tentar compreender essa forma a lógica de um drama - um gesto pol;tico - que foram deliberadamente
de crueldade, que se tornou estranha e insuportável para os homens do renegada_s pela sociedade e ocultadas pela República em seu início: o
fim do século XIX, Alain Corbin explorou todas as pistas possíveis de massacre se apresentava como o renascer obsceno de um outrora que
explicações. As notícias desastrosas da guerra, com todos os sinais parecia afastado para sempre.
anunciadores da derrota diante dos Prussianos, esquentaram os espíritos, A este propósito, o estudo das feridas da história, de suas paixões
num momento cm que este vil?rejo do Nontronnais não só celebra a festa e de suas febres sociais, dos estigmas que elas deixam, ainda pode nos
nacional do soberano (15 de agosto), como também conhece uma vida ensinar muita coisa sobre a relação p:Hológica que uma s0ciedade
intensa de rek.ções por causa da feira do gado. O infeliz Alain de Moneys man,é:n consigo mesma. A estranheza perturbadora que emana dos
é, de fato, uma vítima expiatória: ele paga a análise política lúcida enun­ fenômenos percebidos por nós (mas !ambém pelos contemporâneos)
ciada imprudentemer,:e alguns dias antes, cm outro local de feira, por seu como insensatos, revela as perguntas que o corpo social formula a
primo Cami!Ie de Maillard, depois da leitura do jornal: "O Imperador está respeito de sua própria identidade, e os alarmes que se propõe conjurar
perdido". Em 16 de agosto, Camille de Mail!ard compreendeu que era segundo seu léxico próprio38 • É tarefa do historiador desatar, através de
mel!:or fugir rapidamente do local de feira. O rumor ac:.isa Alain de suas operações, esta meada complexa, e propor um sentido que nunca
Moneys de ser um "prussiano" que gritou "Viva a República". é éstabelecido de uma vez por todas.
Tratou-se, pois, de desmanchar um complô, de queimar um "prus­
siano" do interior, de prevenir uma catástrofe iminente, purificando a
comunidade nacional (e não mais apenas local) desse monstro estranho Notas
que é um nobre ao mesmo tempo "republicano" e "prussiano". A fas­ 1
A. Dupront, Du Sacré. Croisades et pelerinages. lmages et langages, Paris, Gallimard,
cinação que exerceu o massacre de Hautcfaye deriva da revelação da 1987, pp. 222-224.
distância entre a sensibilidade já dominante no século XIX "e os com­
portamentos camponeses, indiferentes à modificação dos limites do 2
H. Taine, Les Origines de la Fra11ce co111c·111por.;i11�, Paris, coleção "Bouquins", edi­
tolerável"36. Em relação à violência do século XVI, os ritos do massacre ções Robert Laffont, 1986, t. 1, p. 314.
e o sistema sacrifical do suplício se desfizeram: nasceu uma nova sen­
3
lbid., p. 333.
sibilidade. O espetáculo da dor e do sangue derramado tornou-se into­
lerável: permanece público só o espetáculo da execução capital, que em '/bid., p. 341.
Paris se deslocou significativamente da antiga "place de Greve" para a
"barricrc Saint-Jacques". No entanto, não houve supressão da violência � lbid., pp. 178- 179.
no século XIX, mas antes urna maior intolerância ao dcsvclamcnto da
crueldade coletiva: deseja-se exorcizar o �selvagem", o "bárbaro", o '' /bid., pp. 342-343.
230 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mutações 231
1
Jbid., pp. 350-351.
21
[bid., p. 31.
• lbid., ll· 562.
22
G. Rudé, La Foule, op. cit., p. '.!26. Para uma crítica de G. Rudé, cf. C. Lut.:as, "The
crowd and politics", in C. Lucas (ed.), TJ,e Political Cu/Jure of 1/,e Fre11c/1 Revolution,
• Sobre esses pontos, cf. S. Barrows, Miroirs défor-na11ts. Réflcxio11s s_ur la fcule e11
Oxford, 1988, pp. 259-283.
Fra•1ce à la fi11 du XIXe siecle, Paris, Aubier, 1990.
u E. P. Thompson, "The morJI economy of thc eni;lish crowd in the eighteenth
1
• G. Tarde, Les fois d'! l'i111itatio11 (1890), citado por S. Barrows, op. cit., pp. 124-125.
century", Past ,md Present, n. 51), 197i, pp. 76-136, trad. fr. in Gauthier e G.
R. Ikni (dir.), La Guerrc du bié au XV!!/e siecle. La criliq11c pop11/aire conlre
11 G. Tarde, L'O1Ji11io11 et la Foufe (1901), na edição das Prcsses Universitaires de France,
/e /ibéralis111e éco110111ique au XVII/e siecle, Montreuil, Éd. de la Passion, 1988,
Paris, 1989, p. 67.
pp. 31-92.
12
/óid., p. 163.
2< S. L. Kaplan, Les Venlres de Paris. Pouvoir el approvisiom1e111e11t da11s la France
d'A11cie11 Régime, Paris. Fayard, 1988.
,; Sobre Gustave Lc Bon, cf. R.A. Nye, T/,e Ori!'.i11s of Crowd Psyc/10/ogy. C,'ustave Le
B011 and t/,e Crisis of Mass Democracy i11 t/,e TJ,ird Republic, Londres, Sage
u S. L. Kaplan, Le Complút de fami11e: /zistoire d'1111e ru111e11r 011 XVII/e siecle, Paris, A.
Publications, 1975.
Colin, 19S2. Sobre a politização do motim do trigo sob a Revolução, :eia-se a ar.álise
do pap.:I das mulheres durante as jornadas revolucionárias de abril-maio de 1795 em
'' G. Lc Bon, Psyc/,o/ogie des fou/es, Presses Universitaires de France, coleção
1: D. Godincau, Citoye1111es tricoteuses. Les femmes du peup/c à Paris penda/li la
'l �Quadrige", 1963, pp. 19 � 25.
IJ Révo/111io11, Aix-en-Provence, A1inéa, 1988, pp. 287-354.

1r
'� Cf. A. Hitler, Mo11 Combat, tradução de Mei11 Kam;:1/, Paris, Houvelle_s Éditions !atines, 21,
A. Farge, La \lie ;.-agi/e. Violcuce, pou1•oirs e! solidarités à Paris au XVIII e siecle,
1934, p. 51: "Assim como a mulher é pouco sensibilizada por raciocínios abstratos,
Paris, Hachettc, 1986.
experimenta 11ma indefjnível aspiração sentimental por uma atitude inteira e se subme-
1e ao forte enquanto domina o fraco, a massa prefere: o senhor ao suplicante, e se sen'.e 27 lbid., p. 296.
mais tranqüilizada por uma doutrina que não admite outra junto dela a não ser por uma
tolerância liberal". A respeito da iníluência verossirnel c!a tradução alemã de Le Bon 2s A Fargc, J. Revel, Logiques de l<' Joule. L'affairc des e11/eve111e111s d'e11fa111s à Paris
.,
!l
!'ohre Hitler, cf. A. Stein, "Ado!f Hitler und G!:!stave Le Bcn", Gesc!:ic!:tc i1:
H'isse11sc/,af1 u11d Unterric/11, t. VI, 1955, pp. 362-::3<58 .
(1750), Paris, Hachette, 19S8, p. 63.

2• É essa a interpretação de N. Zemon Da,is em sua análise dos ritos de violc;ncia, Les
•• �1. Perrot, Les Ouvriers e11 greve. Fra11ce, 1871-1890, Paris-La Haye, Mouton, 1974,
Cul111res d11 peuple. Riwcls, savoirs e1 résisra11ces a11 XV /e siecle, Paris, Aubier­
:! tomos.
Montaignc, 1979, pp. 251-307.

" G. Lefebvre, La Grande Peur de1789, prefácio de Jacques Revel, Paris, A. Colin,
30 D. Crouzet, Les C11erriers de Dieu. La viole11ce au tc111ps des lro11bles de reliein11, vcrs
; 988, p. 65; pp. 120-141.
/525-vers 1560, Seysscl, Champvallon, 1990, í'· 75.

'·' Leia-se também o artigo de G. Lcfcbvre, "Foules rév1.."llu1ionnaires", escrito igualmente


JI /bid., p. 239.
cm 1932, publicado in Études sur la Révo/11tio11 frcnçaise, 2. ed. revista, Paris, PUF,
1963, pp. 371-372.
n Cf. o I iv,o recent� de C. Fabrc-Vassas, La Bêre si11guliere. Les j11ifs, les c/1rétie11s e/ /e
coc/,011, Paris, Gallimard, 1994.
,., G. Rudé, Tlze Crowd in t/,e Fre11cl1 Revolu1io11, Oxfur j_ Oxford University Press, 1959:
:rJdução francesa, La Foule dans la Révol11tio11 _(rcr.çaise, Paris, Maspero, 19S2.
H D. Crouzct, op. cir., pp. 3 19-41O.
�, G. Rudé, TJ,c Crowd in Hislory. J\ Study of Popular Disturbai:::es i11 Fra11cc a11d
H D. Crouzct, La N11i1 de la Sai111-Barrhéle111y. U11 révc perd11 de la Re11aissa11cc, Paris,
E11gla11d, 1730-/848, New York, John Weilcy and S.ons, 1964, p. 4.
Fayard, 1994, p. 487.
11
1 232 PASSADOS RECOMPOSTOS

n G. Tarde, L'Opi11io11 et la Joule, Paris, PUf, rccd., 1989, p. ! 55.


TRÉS
,. A. Corbin, Le Vil/age des ca1111ibales, Paris, Aubier-Montaigne, 1990, ·p. 121.

n lbid., pp. 137-138. A Construção das Categorias Sociais


� Cf. M. de Certeau, "Historicités mystiques", in Rec/10.:hes de scie11ce religieuse, i. 73, S!MONA CERU7TI

1
i'
1985, pp. 325:354.

Foi p.. la crítica de uma imagem esclerosada das estruturas sociais,


originada de uma visão exterior e não contextual do interesse, que nume­
rosos trabalhos históricos propuseram, nestes últimos anos, um retomo às
fontes, uma atençcío renovada para :z linguagem dos dc.�umentos e as
categorias dos atores sociais. O confronto entre modos de descrição
internos ou externos às lógicas do passado - éticos ou aparentes - ocupa

ir�,.1
de agora em diante um lugar central no debate historiográfico.

1j
Há algun:; an.:is, 0s historiadores vivem urP-a c1 ise de legitimidade
de-sua disciplina, que provém em parte da opacidade do objeto histórico.
Sua especificidade, que se apresenta cada vez menos evidente, está sendo

1 :1
submetida a uma rediscussão radical. O mal-�star é ainda maior porque
1 o debate sucede a um período de relativa segurança, devida ao uso de
1$ · modelos, de paradigmas e de metodologias ditos "fortes". Nos .:.nos 50
l, e pO, uma grande parte da historiografia européia tentou superar um sólido
n complexo de inferioridade· em relação aos instrun,entos de análise e de
verificação utilizados pelas ciências da natureza. Com efeito, se a adoção
da quantificação como modo de organiz..1ção e de leitura dos dados foi
maciça, foi, entre outras coisas, para conseguir uma garantia de credibili­
dade das hipóteses de trabalho. Através das "leis numéricas", constituíra­
se a ambição de elaborar uma disciplin2 enfim "científica". A mesma
ambição transparece, como lembrou o histuriJdor inglês Lawrence S1one 1 ,
na imagem adotada por certas revistas históricas (durante os anos 1950,
Past and Present, a mais prestigiosa das publicações anglo-saxônicas,
trazia o subtítulo Revue d'histoire scienrifique).
Os exemplos mais típicos dessa atitude se encontram entre os
"cliometricistas" nos Estados Unidos, m:is também na Europa, e sobre­
tudo na f-rança, onde por muito tempo se definiu o objeto da pesquisa
históricJ através da constituição de séries - quer .,e trate de objetos, de

1
gêneros alimentícios, de preços ou de indivíduos. É nes�e contexto c:ue
,, 11

1!
234 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mucaçõcs 235
se situa o imenso sucesso de um modo de organização dos fato,, e das

!
história francesa, que levou a definir os grupos profissionais como um
análises, conhecido pelo nome de classificação socioprofissional. Em
instrumento de identificação dos indivíduos. Estes autores subl:nharam
tomo dessa grade de leitura das realidades sociais, neutra apenas em
1 particularmente quanto essa forma de leitura era o resultado de um
1 aparência, surgiu um debate que me parece capital _ s e quisermos cor.1pre­ compromisso entre a vontade de conciliar uma pretensa continuidade da
e'ld�r o objetivo do trabalho do historiador durante os últimos anos. organização corporativa do Ancicn Régimc, e :1 noção, _mais moderna
embora vaga, de "meio ::;ocial"', que em p,incípio r::mcte ao mesmo
A crítica das categorias "socioprofissionais"
tempo a um estatuto e a um modo de vida. Como Dcsrosieres e T hévenot
Os estudos dedicados às sociedades do Ancien Régimc, cm parti­ apontam, o inventor do termo "socioprofissional'\ interrogado sobre a
cular sociedades urbanas, têm início freqüentemente com uma apresen­
às preferência que dava a esta expressão cm relação àquela, mais simples,
(::tção preliminar da população, de sua fisionomia social, de seus modos
de "categoria social", respondeu: "Se tivéssemos escolhido essa palavra,
d.e produção e de suas hierarquias internas. Muitas vezes, essa apresen­ teríamos sido criticados por todos. A esquerda julgaria que não eram
tacão toma dois caminhos que não se exck ::m necessariamente:, por um verdadeiras classes sociais, e a direita gritaria, ao contrário, que eram
lado, a descrição de "tipos" representativos das diferentes ordens sociais
classes sociais. Ao contrário, com 'socioprofissional ', ninguém disse
,. (o nobre, o burguês, o comerciante), por outro, a classific.:ação por cate­
g0ria::; p�ofissionais. Tem-se d�do muit:i. importância a este segundo ca ·
nada". Por trás desta pilhéria, entrevê-se um autêntico prob!ema: sob a
aparência de uma descrição aparentemente neutra, a sír.tesc entre a
rninho. tido como capaz de prestar conta globalmente dos caracteres profissão e o estatuto social delimita grupos segundo critérios compre­
fundamentais do es!)aço urbaro. A repartição dos hai.Jit:mtes por setores
ensíveis para os pesquisadores, mas que não correspondem :-icccssaria­
de atividade podia, ao mesmo tempo, dar uma imagem das orientações mcnte à experiência dos atores sociais.
econômicas da cidade (a indústria, as manufaturas, os serviços), e remeter Entre os historiadores, a reflexão relativa a essas grades de lei­
a sua estratificação social, já que, mesmo implicitamente, ela desenhava
:ura, suscitada por sondagens empíricas, foi talvez menos explícita,
a escala das hierarquias. Assim, os quadros por profissões, tão freqüentes
porém mais precoce. Já no início dos anos 1970, certos pesquisadores
n:as monografias francesas, se encarregavam de fornecer coordenadas
começaram a sublinhar a pouca eficácia dessa classificação num domí­
e:;;senciais; num segundo tempo, uma análise pormenorizada podia apli­
nio cruci3!, o d3 con1j:::.r:1ç5o, onde, just:!n1cntc, sua adoção deveria se
c:ar-sc a aspectos mais particulares da vida social. mostrar particularmente útil. De fato, as categorias pareciam incapazes
Um amplo debate, que remonta principalmente aos anos 1960-
de se adaptar à diversidade das situa�ões, que se apresentavam cada vez
1 <no ' desenvolveu-se cm tomo desses critérios, de início fundados uni- mais complexas e irredutíveis umas às outras. Assim, reuniam-se nos
c-�ente numa nomenclatura profissional; ora, esta foi se enriquecendo, mesmos compartimentos indivíduos que exerciam, na realidade, pro­
a...-is poucos, com variáveis sócio-econômicas tais C'1mO o nível de vida, fissées diferentes, mantinham relações diferentes com o sistema de
o setor de atividade ou os vínculos de dependência entre as profissões. produção e se beneficiavam de um estat:.ito social diferente. Esse tipo
:S:3 França, o modelo foi tirado d:1s grad.-:s cs,�bclccidas pelo INSEE, cuja de classificação se mostrava forçado, inepto a levar cm conta impor­
h.ipótesc inicial era precisamente construir categorias cm que a profissão tantes especificidades locais.
r:.:assc emparelhada com o meio social. Ao longo dos anos seguintes, novas etapas foram vencidas: a crítica
Rcccntcmcntc, as categorias sociopr0fissionais foram objeto de contrária a esses critérios "exteriores" se aperfeiçoou, fundando-se cm
;:-�ofundas críticas, formuladas por sociól0gos e demógrafos. Alain duas orucns de considerações. Em prime ir ...� lugar, seu aspecto parcial: eles
Dcsrosiercs e Laurcnt Thcvcnot, cm particul:ir, cm Les Catégories socio­ negligenciam ou, no pior dos casos, ocul::im certos componentes funda­
;: ··ofessio1111elles [ As categorias socioprofiss:011:1 is] (Paris, 1988), se in­ mentais das sociedades que pretendem ar.::dis:ir. Em seguida, pelo con:rá­
tc·rrogaram scbrc o modo de elaboração dessas classifi1...açõcs, qucstio­ rio, eles "criam" grupos sociais cuja existência ainda não foi provada.
c.ando seu carátc:r "natural" e evocando o caminho indissociável da Delineou-se assim uma reflexão mais gcrnl quanto :1 maneira de descrever
Mucações 237
236 PASSADOS RECOM!'OSTOS

os membros da mesma categori:i. De fato, é esta última noção que coloca


as sociedades do passado, quanto à eficácia de instrumentos e de um
a classificação como um modo de representação plausível da sociedade e
vocabulário estranhos à cxpcriênci:i dos a!ores sociais.
reduz a inq:iietant;! disparidade dcs comp<>rtamentus de grupo. �ta questão
· Uma série de estudos, inaugurada por Natalic Zemon Davis cm sua
se situa no âmago do trabalho do historiador.
11 obra sobre Lyon no século XVI2, subverteu profumlamente a imagem tradi­

r
.11 cional da estratificação social numa cidade de Ancicn P.égimc. Na origem
desta mudança está um princípio aparentemente simi,les: cons:ste cm reler
Uma noção preguiçosa.: o "interesse"
Enquanto objeto de estudo, o grupo é sem dúvida uma unidade mais
os documentq_s de uma maneira aprofundada, prestando atenção a sua lingua­
tranqüilizadora que os indivíduos, e não é por acaso que um grande
gem. O resultado foi uma multiplicação dos atores sociais. Por exemplo, em
número de análi::es desembocam na produção de grupos para o uso dos
Lyon, durante a Renascença, a idade e o sexo não constituíam apenas variá-
pesquisadores. Segundo A. Desrosieres, a própria noção de média esta­
' ..-eis no. interior d:i escala formada pelas profissões, mas representavam tam­
tística desempenha essa função: já que exprime um valor que não pertence
bém grupos sociais autôn0mos, que ocupavam um lugar reconhecido dentro
a um elemento isolado, ela confirma a exi.,tência do grupo com<1 realidade
da estratificação urbana. Atribuíam-se a esses grupos funções de ordem e de
supra-individual3 • A utilização que se faz muitas vezes do conceito de
c-ontrole, eram menciunados nos estatutos, manifestando assim sua legitimi­
"interesse" é um bom exemplo desta atitude.
dade no plano jurídico. Ora, esses grupos de idade e de sexo teriar:i sido
Numa obra justamr.ntc célebre, o economista Albert Hirschman
invisíveis caso se tivesse adoiado uma classificação socioprofissional: e no
examinou o processo pelo qual, nos séculos XVII e XVIII, a noção de
entanto estavam prcsc�tes no espírito dos contemporâneos, e permanecem
li .::.ssenciais p ara se compreender o comportamento deles.
"interesse", q�e tinl:a u:na acepção muito ampla, fôde ser assim:lada às
simples vantagens materiais ou econômicas4 • Acima de tudo, ele mostra
Ao mesmo tempo que dissimula certos atores sociais, a classifica­
quanto o extraordinário sucesso de que gozava essa noção era ditado pelo
ção inventa outros, sem se preocupar muito com sua existência na socie­
efeito tranqüilizador que lhe era atribuído: tinha-se enfim definido uma base
dade analisada. Esta crítica se apóia numa constatação apar.:!ntcmentc
que podia dar uma ordem plausível à sociedad·c. Seu principal mérito era
evidente, mas crucial. A taxinomia não é um instrumento neutro, que
a idéia, que dela derivava, da continuidade e da permanência dos compor­
Yisaria unicamente refletir as realidades. Ela encontra sua justificação
numa idéía forte da verdade � do saber: um modelo :iristoté!ico segundo tamentos sociais. Da continuidade à previsibilidade, havia apenas um passo,
o qual conhecer é sinônimo de "fazer aparecer", de revelar o que já existia e nisso reside a principal razão do entusiasmo que esn noção suscitou.
em estado latente. Neste sentido, a classiLcação não é uma das intcrprc­
Entretanto, este efeito tranqüilizador não seduziu somente os homens
dos séculos XVII e XVIIl: ele explica, parece-me, o foto de que 0s histo­
1 1
t:ições possíveis da realidade, e sim seu espelho direto. Por conseguinte,
'-1 próprio ato de "classificar" não seria mais que uma ordenação do real.
riadores adotam freqüentemente - e de modo muitas vezes irrefletido - o
critério do "interesse". Diante de uma disp<:rsão possível dos comportamentos
Na realidade, reunir indivíduos cm categorias definidas pelo setor de
.11ividadc nüo tem nada de natural: ao Ct'ntrário, postula-se com isso mesmo individuais, ele oferece a vantagem de fornecer um denominador comum a
:i existência de grupos sociais, pelo menos de uma maneira implícita. Os
um certo número de sujeitos. Basta falar em interesse para folar cm grupos,
que exercem a profissüo de comerciante, de advogado, ou cntüo os que se cm outras palavras, para efetuar o dcslizamentu do indivíduo ao grupo, tão
encontram na categoria de nobres, torn:1111-sc os componentes de um corpus tranqüilizaclor para quem pretende analisar os comportamentos sociais.
que a taxinomia apresenta como coerente. Pouco importa se não partilha­ Foi pela crítica dessa imagem esclerosada das estruturas sociais,
\·am os mesmos interesses ou os mesmos ideais: a classificaçüo ignora o originada de uma visüo exterior e não contextual do interesse, que nu­
;,roblcma da validade de seus próprios nitéri,1s aos olhos dos protagonistas merosos trabalhos históricos propuscrar.1. nestes últimos anos, um retorno
Ja época e, sob a aparência de uma lcitur:i neutra da realidade, reifica às fontes, uma atcnçüo renovada para ::: linguagem dos documentos e as
grupos sociais. /\través dela, clcsliza-sc assim do indivíduo cm dircçüo ao categorias ::los atores sociais. O confrcnto entre modas de descrição in­
grupo, já que a classificaçüo subcntcrn.k a noçf10 ele interesse comum para ternos ou externos às lógicas do passado ocupa um lugar central no debate
238 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 239

historiográfico atual. Ele tem abalado mt.:itas certezas apressadas quanto raçosos problemas de interpretação para os historiadores da "nova esquer­
ao caráter objetivo da :!nálisc histórica. da", como observaram recentemente D. Mayficld e S. Thorné. Em outras
palavras, a adesão a ideologias que não correspondem aos · intcr<;sses·
1' A linguistic turn: uma renúncia evidentes de um grupo detenr.inado, legitima o divórcio entre os "discur­
Esta rcflexi;o, entretanto, chegou a resultados diversos. For um lado, sos" e o plano do social. Opera-se cntãc uma reviravolta completa cm
certos trabalhos (cs de Natalie Davis são o ruelhor exemplo) analisam o relação ao paradigma que se pretende coobatcr: no limite, os indivídaos
vocabulário dos atores sociais para compreender as interpretações e as pro­ desaparecem deste tipo de análises, que cc:icernem antes de tudo às
posições relativas à estratificação social: esforçam-se por reconstituir os construções narrativas. E são os semiólogos, ::iais que os especialistas das
sistemas de sentido inerent% às classificações sociais do passado, sem se ciências sociais, que se tornam a referência dos historiadores.
courentar em subsrituí-los às categorias socioprofissionais, mas examinando Esta nova inte�disciplinaridade merece um tempo de reflexão. Ela
sua gênese, sua utilização eventual ou os coníliros dos quais se originaram: se assemelha mais a uma renúncia do que a uma verdadeira convergência
Aborda-se pois a estratificação através de uma leitun atenta dos discurso�. de temas e de problemáticas. Se este tipo de trabalhos postula, como
que a ela se referem, juntamente com o comportamento dos protagonistas. dissemos, a autonomia da linguagem, é devido à inadequação dos instru­
Por outro lado, uma corrente histórica já abundante proclamou a mentos de análise dos historiadores para explicar, por exemplo, a distân­
"dis.so:uç::o elo rndal"; ela rejeita radic:almcn�e toda análise dos compor­ cia entre ideologia e comportamento social. Uma visão mecânica e ríg:da
tamenros do passado em termos que impliquem na consideração da expe­ ela estratificação, que faz corresponder interesses específicos aos diferen­
riência dos atore:� e de S'!us int'.!res:;es (materiais ou outros). NcstP- ca:.o, as tes papéis exercicos pelos :ndivíduos, deixa de lado as discordâncias e
análises da linguagem não servem de ponto de partida para a exploração as contradições que surgem constantemente na análise.
dos processos sociais que a produziram. Pelo contrário, elas são restritas, Entretanto, optandc por atribuir às linguagens umn autonomia abso­
pois o essencial é a "construção discursiva", considerada como reveladora luta e por negar-lhes qualquer relaçãc com os comportamentos, desiste-se
do universo cultural dos que a adotaram. Portamo, a linguistic tum (virada de fato de enfrentar essas contradiç�cs: co11stata-se uma dificuldade sem
lingüística) volta a questionar seriamente a pertinência do social como procurar resolvê-la. O requestionamento das certezas disciplinares - entre
conrcxto da análisc5: apresenta-se· mesmo, no espírito de seus defensores, as quais, sem dúvida, os modos de descrição e de interpretação fornecidos
como uma maneira de ultrapassar um determinismo sociológico GUe teria pelas categorias socioprofissionais - se traduz por uma atitude globalmente
por de:nasiado tempo caracterizado os trabalhos históricos. passiva. Ou, cm caso extremo, por uma forn1a de ceticismo, comum hoje
É importante observar que muitos dcsse.s trabalhos se ocupam de a numerosos historiadores, quanro às possibilidades explicativas das ciên­
fcnômencs ou correntes políticos. É que as explicações cm termos "sociais" cias sociais, seus objetivos e sua aptidão para ter acesso à realidade.
- que determinariam motivações e interesses a partir da posição dos indi­
víduos na escala· hierárquica - parecem rcsrriti"as, insuficientes. Ao con­ As identidades sociais: d:1s tr:ijetórias individuais
trário de uma ótica "ontológica" dos grupos e das classes, a abordagem às solidaried:1des
linfüística se propõe a analisá-los como construções di�cursivas: atribui­ Todavia, as análises lingüísticas po.::cm conduzir a outras direções.
se :io discurso a capacidade agrcgativa e a faculdade de gerar a solidarie­ Não somente elas ajudam a conceber o q!.:e foram no passado os critérios
dade social que faltam visivelmente aos simples interesses materiais. Assim da estratificação social e a rediscutir o� critérios atuais do historiador,
a linguagem pode abstrair-se dos atores que .1 utilizam. como também, dispensando uma atenção crítica às linguagens, permitem
Com efeito, constataram-se freqüentemente rupturas importantes formular de uma maneira menos rígid:i. 3 noçf10 de interesse, na qual,
cnt:c o ordenamento político e as condiçúcs ::1:itcriais. Não é por acaso ..:omo vimos, a classificação socioprof>,:ionnl funda sua legitimidade.
que :t linguistic t11r11 se desenvolveu num mundo anglo-saxôni...:o, num Entretanto, é necessário que o discurso !="ermancça o ponto de partida, e
m 0mcnto cm que rcagani.,;mo e thatchcrismo -populares" criavam cmba- nflo o resultado da pesquisa. De certa a:::.:icira, é preciso reintroduzir na
'11 ·1 240 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 241

análise os atores sociais que utilizavam essas linguagens. Esta acepção relações, ou mais em termos de aglomerações humanas que de ligaçfles
do contexto, cada vez mais difundida entre os historiadores, é a que entre seus compone!1tes e o mundo que os cerca.
parece a mais rica cm desenvolvimentos ülteriores. Esta perspectiva relacional parece-me susceptí·;el de reformular
Partindo dos indivíduos, recompondo-lhes o percurso social e a relação entre as normlts e os comportamentos: ela enriquece a idéia
tentando reconstituir-lhes as escolhas, e pesquisador se interroga sobre que temos das primeiras, já que elas não são determinadas_ de uma vez
a experiência deles e, por conseguinte, sobre o modo de form�ção d.:: por todas pelo lugar que o i_ndivíduo ocupa na escala social e profis­
sua identidade social. Esforça-se por desenhar seu ho�izonte, e para isso sional, e sim produzidas e negociadas no ;nterior dos vínculos sociais.
define seus interesses muito além.da profissão ou do estatuto oficial. É Por outro lado, ela pode contribuir a definir a experiência e, por con­
u.nrn perspectiva que também parte da constatação dos limites das ca­ seguinte, os interesses dos atores, pois, ao reconstruir as interrelações,
tegorias, mas que, longe d� se traduzir por uma renúncia, se propõe a o pesquisador não pode se limitar a nn'eis de análise preestabelecidos
redisc�tir os pressupostos e a enfrentar as contradições das mesmas. (as relações de produção, de mercado etc.). O percurso dos indivíduos
Nãc, se trata tanto de negar o fato de os indivíduos pertencerem a no interior de diferentes meios - a fam.11ia, o trabalho, a vida soei�! -
categorias profissionais, mas de examinar como as relações sociais criam desenha seu horizonte social.
solidariedades e alianças e, afinal de contas, grupos estáveis. Assim, a Esta perspectiva implica também intercâmbio com outras discipli­
rni:;tura entre os "discursos''. e; os comportamentos vai constituir um na:;: �cm clúvida alguma com uma forma de antropologia '·relacional"
problema para o historiador, que não poderá livrar-se dele isolando cada e antifuncionalista, que se desenvolveu sobretudo a partir dos anos 1970
u.m dos dois termos. Este problem:i não consistirá apenas em reconstruir no mundo anglo-saxônico, e cuja repei-cussão junto aos historiadores
�o que as pessoas Jiziam", a maneira como interpretavam o universo franceses permanece até agora limitada". Os que orientaram seus traba­
em que viviam, ou as idcolog;;,s de que se nutriam, mas wmbém cm lhos mais para a análise das redes soei.a.is tecidas pelos indivíduos - do
compreender como alguém pode, muitas v._;zes, pronunciar palavras em que para os sistemas normativos que em princípio regulam seu compor­
contradição com seus próprios atos. tamento - .obedeceram a motivações análo"gas às que evocamos. A
Debruça�-sc sobre o percurso dos indivíduos testemunha uma gr:m­ questão é conseguir compreender do interior as formas ado!adas p::ia
dc ambiçãe,. À noção de uma vida social regida por normas exteriores, estratificação da sociedade que se pretende analisar e as razões dessas
a um comportamento que se define a favor ou contra essas normas, opõe- formas. Nesta base, a interdisciplinaridade não represent;, nem uma
5<! uma visão menos linear, porém mais capaz de explicar a relação que rer.úncia nem um plágio, e a "crise das certezas" pode se traduzir por
lL"11e os indivíduos ao mundo em que evoluem. Pode-se ver o indivíduo um enriquecimento salutar.
como um ser racional e social que pretende atingir um certo número de
o,hjctivos. Os impedimentos e os limites de suas cn?acidadcs de escolha
<:-?pendem essencialmente das características de suas relações com ou­
::;:-m: inscrevem-se na rede dos compror.;:ssos, das expectativas e dos Notas
bços de reciprocidade que a vida em sociedade lhes impõe. Por conse­ 1
L. Stone, "The revivai of narrative: reílcctions on a new old history", l'ast and l'resent,
g:uinte, é o próprio processo social que se situa no centro da análise, e n. 85, 1979, trad. fr., Le Débat, n. 4, 19S0, pç. 119-122.
F·ôrtanto as interações dos indivíduos cm di\·ersos contextos sociais mais
c_ue as simples instituições. Das estruturas e das instituições, o foco da ' N. z.
Davis, Les C11/t11res du peuple. Uituel::. sal'oirs et résistances au XV/e sii:cle,
Paris, Aubicr, 1979 (tracl. de Society a,u/ Cu.:.:::.rre i11 Early Modem 1:rance, Stanford
;_;_,,álise se desloca para o processo e as inter:içõcs. Resolve-se assim o que
University Press, 1975).
,:: con:,idcrou como uma ambigi.iidadc .::7is,cmológica fundamental da
ciência ocidental: a tendência a criar fols:!S unidades de análise - o fato ' A. Desrosicres, M::sses, i11divid11s, 111oye1111eo'. la statist ique sacia/e r.!1 X/Xe sii:cle,
oc pensar mais cm termos de unidades individuais que de sistemas de Paris, Hermes, 198S.
242 PASSADOS RECOMPOSTOS

• Albert O. Hirschman,la Passio,1 e/ /es /ntérêls. Justificn1i�11s poliliques du capi,alisme


ava111 so11 apogée, Paris, P�F. 1980 (cd. original, Priuccton l_!nivcrsity Prcss, 1977): ! • <. QUATRO
.• · .,. ·F
lt '. •,. '}1 !.;Vil . 'J,· ' . , , . .� -'l
' Cf. G. Eley, "De l'histoirc socialc au 'tourna.it linguistiquc' dans l'historiographic anglo-
américainc dcs anné'cs 1980'i, Ge11es�s, 7, 1992,. pp. 163-193. .. .. · · Mulheres / Homens: 11"'
L, �1. . . . .!. ., ...J:.
Uma Questão Subversiva
� D. Mayfield e S. ThÓrnc, "Social history and its disconle11ts: Garcth Stcdman Jones and ,.. ,,.n·.a ,-1c,!!. :.>,·
j,'
the politics of languagc", Súcial Hislory, maio 1992. ,. OLIVEN HUFTON

li 7
. ' ( ' 1_ J ' ,: ' •.

Refiro-me aos trabalhos de F. Barth, cm particular '''Modcls of social organization",


Occasio11al Papers of Ú,e Roy.1/ A11t/1r�pological fastitute, 23, 1966, e Proce�s a11d
Form i11 Social li/e, Londres, 1980. Quem imaginaria hoje em dia uma história da religião e das prá­
: I•
:1 ticas religiosas sem se referir à distinção dos sexos para explicar a
participação diferente das mulheres e dos homens? Quem pensaria em
escrever uma hi:itória das indústrias té.xteis sem evocar a mão-de-obra
extremamente barata das operárias que permitiu a decolagem para o
crescimento, e quem escreveria uma história dos modos de consumo sem
levar em conta a procurn divergente de cada sexo? Quem, em 1995, se
debruçaria sobre a estrutura histórica. das migrações sem considerar as
'. .·
mulheres que permaneceram 110 lugn,- para cuidar da terra, indispensá-
(

:1 veis para a comunidade?

Em Le Deu.xieme Sexe [O segundo sexo] (1949), Simone de Beau­


voir fez duas 'Jbservações de importância considerável para a escrita da

,1:
,. história das mulheres. A primeira era que as mulheres não tinham história
e não podiam, por isso, orgulhar-se de si próprias. A segunda era que não
se nasce mulher, fica-se muiher; que as mulheres são o produto de um
1 processo complexo de aculturação, de urr.J construção histórica do espírito
!
que determina seu papel social e seu comportamento diante do mundo.
Nenhuma dessas observações era original. Jane Austen, pela boca de uma
de suas heroínas, se lastimava de que as mulheres, com exceção de um
punhado de "inúteis", estivessem ausentes da história, o que, na opinião
dela, fazia com que a história se inclinasse de um só lado; era uma escolha
deliberada dos historiadores, uma vez que - todo mundo sabe disso - a
história era uma in·,enção. Desde o século XVII, as escritoras feministas
haviam insistido '10 fato de que as mulheres eram produto de uma educação
irnpcrfcita: suas faculdades de raciocínio e suas realizações históricas não
podiam ser comparadas às dos homens, pois elas tinham sido privadas de
instrução e condicionadas para exercer um papel secundário e subordinado,
cm suma, tornadas insignificantes. Ora, as observações de S. de Beauvoir,
244 PASSADOS RECOMPO�"TOS Muwções 245

apoiadas num discurso filosófico erudito envolvendo os grandes filósofos, Clark, então relativamente pouco conhecida. Sua obra, The Worki11g Life
Marx e Freud, intervinham num momento singularmente apropriado. Seu of Women in Seventeenth Ce11tury E11gla1;d [A vida das mulheres trabalha­
discurso iria tornar-se um dos textos fundadores do movimento das mulhe­ doras no século XVII na Inglaterra] (1919), tornou-se um clássico nos anos
res que estava começando pelo fim dos anos 1960, movimento por sua vez 1970, e forneceu o pano de fundo ao debate sobre a deterioração da posição
originado pelo dos direitos cívicos. das mulhe�es no capitalismo: o livro esboçava o retrato de uma vigorosa
Um dos primeiros objetivos desse movimento consistia em a!Jrccnder mulher ele lavrador, a qual tinha levado uma existência útil e produtiva que
o passado legítimo das mulhcrJS, cm introduz;-Jas na história. Ao mesmo a :1ascente economia de mercado havia destruído. A tese era sedutora e se
tempo, supunha-se, a exploração dessa história evidenciaria que as mulhe­ tornou uma das primeiras formulações gerais sobre a história das mulheres
res haviam sido tratadas injustamente. A história da opressão da mulher, na sociedade, mas - e isto é significatiYo - tais generalizações iam ser
da qu::J a exclusão c!a história era apenas uma manifestacão entre outras, submetidas a controle rigoroso e modificação por uma nova geração de
ficaria então clara. A mulh�r emergeria sob formas diferentes, mas antes pesquisadores. Verificou-se que a própria A. Clark era uma solteirona da
de mais nada, talvez, como vítima de uma conspiração masculina tendente classe média com sólidas origens burgues:is, cuja visão era influenciadc: por
a fazê-la calar. Apareceriam assim heroínas, que não eram necessariamente sua incapacidade de evadir-s2 de seu papel de mulher solteira enclausurada
rainhas, amantes de reis e santas, e sim mulheres conscientes de sua em casa. A vida de trabalho ela mulher do lavrador lhe parecia útil e
s1tua<:ião difícil de mulheres, que teriam tentado remediá-la, lançar-se dinâmica em relação à s:.ia própria situação, mas ela não se dava conta de
nessa c0rrida de obstáculos, para perceber que os obstáculos tinham sido que descrevia npenas uma ínfima minoria de mulheres, e que a camponesa
de repente elevados ou redistribuídos sorrate tra!nente. Antes de tudo, esse levava uma vida ,·ude marcada pela pobre.:a, afastada ele qualquer sociedade
e�;ercício permitiria à geração do "agora" - e nenhuma outra geração ideal. Em resumo, A. Clark, apesar de sua formação histórica e de seu
estava mais presente nos anos 1960 - dizer: "Nós estávamo� lá". conhecimento do assunto, interpretava este assunto à luz de seus próprios
Em suma, r.ssa história devia fazer p:rrte de u:n processo dr. c0ns­ desgostos, e escreveu assim um grande livro errôneo: grande porque for­
cientização; era um exercício d:! orgulho, uma declaração dirigida aos neceu uma hipótese e algumas prov�, mas talvez mais ainda porque seu
historiadores e aos professores de história, para dizer que, uma vez que questionamento levou uma nova geração de historiadores do trabalho a
pelo menos 50%, senão mais, de toda turma eram mulheres, essa porcen­ compreender melhor a vida profissional das mulheres e sua posição no
t:igem tinha direito a um passado. "Por acaso as mulheres tiveram uma mercado de trabalho, tanto na sociedade pré-industrial como na industrial.
Renascença?" perguntou Joan Gado] Kelly, r·ergunta seguida automatica­ O espírito de pesquisa que se manifestava nos anos 60 era ao mesmo
mente por uma segunda: "E se não for o c.:so, por que não" 1 ? tempo militante e vivificador. Sua dir.flmica impelia jovens pesquisadores
As primeiras histórias das mulheres :-oram lançadas nos Estados ambiciosos a estender as investigações c0m técnicas científicas que favo­
Unidos, por uma boa razão. A universidaée americana era sensível às reciam a profissionalização do campo de pesquisa. Se a história das mu­
forças cio mercado - pelo menos abstr:1indc' os membros ela lvy League lheres conheceu sua primeira exprcssãc :-:�;1is aparente na América, a Grã­
t,·írculo das velhas universidades prestigio:-._s dos Estados do Leste) que, Brctanha, a frança e os Países Baix0s :-::c1 vinham muito atrás, apesar do
graças a seu prestígio, podiam se permitir o '.:ixo do conservadorismo. As aparecimento de importantes diferenças. '.'::1 América, a história das mulhe­
1Urmas ele história estavam sofrendo um ['." :ocesso de feminização e a res fazia parte, cada vez mais, de urr: :1111álgama multidisciplinar - os
clientela procurava obt::r uma aprcci:1ç;io -.:.::: seu passado. Era preciso wo111e11's st11dic:s - cm que a literatur:::. ;1 antropologia, a sociologia e a
f,,rnecer manuais e estabelecer bibliog.ufi;,, Este exercício revelou que, filosofia representavam também um :=- .:�,el importante. Em numcrosas
entre as gcraçôcs antcriorc� de mulheres. e,.:�itoras haviam buscado uma universidades, os estudos sobre ;1s mu:;-:,'ícs f:m1111 incorporados aos pro­
c·:-.pcriência 11itida111cnte feminina, e prcJ· . .:uu sua redescoberta e a gramas univcrsit.írios. Na Europ:1. n lk,::1\"olvimento interveio no quadro
reedição de suas obras, vendidas cm qu:inti-.:..!dC bem maior que a ediç;10 tradicional elas disciplinas, e coexistiu ,-,1 111 outros aspectos do processo
,,riginal. Um exemplo significativo no mune._' :111glo-saxôuico é o de Alice histórico para reforçá-los o:.: complct:í-:,��-
i:
Mutações 247
246 PASSADOS RECOMPOSTOS

importado para as línguas românicas. A noção de uma gender history que


Certos campos de pesquisa histórica se revelavam mais recepti­
se interessa pelo processo de definição tanto do masculino como do
vos, mais acolhedores que outros. O reconhecimento das mulheres como
feminino numa sociedade particular, em lugar de uma história dedicada
tais incomodava freqüeniemente muitos professores universitários, que
apenas às mulheres, era amplamcn!e aceitável, ao mesmo tempo para um
tinham levado tranqüilamente sua vida de historiadores constitucionais
vasto conjunto de historiadores de matéria social, econômica e cultural,
políticos ou intelectuais sem refletir no desequilíbrio do passado ne�
e vara numerosos cientistas que se tinham consagrado inicialmente a
perceber o que uma abordagem baseada na distinção dos sexos trazia
arrancar as mulheres ao esq11ecimento.
para sua disciplina. Alguns viam _nisso uma intriga feminista, e consi­
Já em 1984, numa importante coleção de er,saios, Michelle Perrot
deravam pouco respeitável o fato de se ocupar da história das mulheres.
lançava a s�guinte pergunta: Uma história das mulheres é possível? E
Os historiadores da família ernm mais favoráveis, e o acento posto na
o m�terial contido no vo!ume sugeria inevitavelmente a resposta: pro­
demografia, componente importante da abordagem das Annales, que
vavelmente não. As mulheres viviam em função dos homens, e suas
resultara também na constituição do "Cambridge Population Group" na
vidas eram freqüentemente percebidas através de um prisma masculino.
Grã-Bretanha, ajudava a entender a lógica de tal evolu'ião. Os historia­
O mercado distinguia os sexos: o trabalho dos homens e o ·trabalho das
dores da sociedade e da cultura, os que estudavam a criminalidade e as
mulheres eram avaliados diferentemente� havia profissões de homem e
p ráticas religiosas, também estavam receptivos e prontos para integrar
·profissões de mulher, assim como mercadorias cujo valor refletia a
esta nova d1mensiio a suas :-ináliscs; será que existe uma dicotomia entre
produção por um ou pelo outro sexo. A Igreja era outro e�paço marcado
comportamentos masculino e feminino diante deste ou daquele proble­
pela distinção sexual: as mulher\!s eram excluídas da hierarqu_ia secular,
ma, e, na afirmativa, por quê? A nova hi!;tória cultural, lidando com a
a vida religiosa regular tomava formas diferentes conforme a ordem ou
construção e a transmissão de idéias e de atitudes expressas, por exem­
a congregação fosse para horuens ou par.a mulheres. Quando, no século
plo, nos rituais, i:ias tradições ou nas formulações dos textos, se dava
XVII, Mary Ward tentou constituir uma ordem de mulheres missionárias
conta de que as hipótese:; sobre o papel dos homens e das mulheres
semelhante à dos jesuítas, o papado ficou atrapalhado. Incapaz de as­
criticava� as questões de que ela se ocup�va. Nenhum documento,
sociar a Igreja a mulheres errantes, jogou-a logo na cadeia. A ampla
nenhuma imagem, nenhuma cerimônia era neutra, e sim incluía, qual­
obra social da Contra-Reforma que florescia na França, produzindo não
quer que fosse a sociedade, julgamentos de valor a serem decodificados
somente as Irmãs de Caridade mas também centenas de ordens e de
- entre os quais os que diziam respeito aos papéis respectivos dos dois
congregações votadas ao cuidado dos dL,.entes, dos pobres e dos inváli­
sexos - para interpretar sua significação. As noções de um comporta­
dos 2, dotou a Igreja em seu conjunto d� características distintivas. Os
mento mais de acordo com um dos dois sexc·s podiam ser indicadores
historiadores da educação se davam conta de que a educação não era
de distinção entre as culturas. O véu muçulmano, por exemplo, era 0
dada igualmente para os dois sexos. que $CU conteúdo mudava conforme
resumo de um conjunto de atitudes e de crenças próprias ao islã.
os sexos para corresponder ao que devi� convir ao homem ou à mulher.
Nas mãos dos historiadores da cultura. 3 distinção sexual tornava­
Nas estatísticas criminais, os cri:::i;.l��: � do sexo masculino eram de
s.; um instrumento analítico para ser uciliza...:-..) ao mesmo tempo que as
cinco a seis vezes mais numerosos que ..:-:� criminosos do sexo feminino,
distinções segundo a raça ou a classe social. Tanto quanto as mulheres,
mas as mulheres eram vítimas de um cri:::c violento mais freqüentemente
e� homens se tornavam então o produtt1 de ura processo de aculturação:
que os homens. Quanto às condenações. variavam para corresponder ao
1
t:::ham pois sido fabricados e não tinham n:.:.�ddo assim. Seria artificial
1 que era considerado como apropriado :..:. :ada sexo. Por que a preocupa­
e exagerado isolar as mulheres. quando imp\.�nava pôr cm contexto ho­
ção penal se prendia mais às píl)!-titu ::.:.� que a sua clientela? Por que
:::;;>ns e mulheres, para perceber a dinân:ica .:ultural de uma sociedade.
80% dos casos de bruxaria eram J.:: :-:-· _: hcrcs?
C :·nlra ·as práticas fechadas uns wome11 s .sr: •.;·ies. tal aborua�cm contri­
Essas perguntas e essas rcprcscnt::..;õcs favoreceram a metamorfose
b:.:ía para transformar a hi�tória das mulher-:� cm ge1U!er hi.;tory. É so­
da história das mulheres numa gender ii:.-rory, e fizeram do sexo um dos
r::�nte c:n inglês que o "gênero" tem 11ma cc1 r1-."ltação sexual; teve que ser
!

248 PASSADOS RECOMPOST(?S Mutações 249


I
temas de estudo dos historiadores do sociocultural. Ora, esta trans­ Este debate é salutar. ·Ele nos lembra que o enriquecimento do
formação não se fez sem debate. Agender history é a história das mulheres campo histórico pela introdução da distinção social dos sexos se produziu
separada de qualquer programa fominista, menos militánte, menos de modo desigual, segundo os -::ontextos nacicnais mais ou menos recep­
engajada do ponto de vista político, e portaato mais. objetiva? Ou se trata tivos. Provavelmente, tal processo poderá ser um dia analisado com
de um processo em que, mais uma vez, é atribuído às mulheres um papel proveito. Com toda evidência, teve melhor êxito nos lugares em que os
secundário no discurso? historiadores não tiveram medo de novas perspectivas, e também não
É claro que gender não é um conceito sem preconceitos. Não procuraram impor julgamentos de valor sobre o que deve ser um campo
responde necessariamente à preocupação prioritária das feministas ·dos legítimo de pesquisa para um historiador.
anos 1960, que queriam dar às mulheres o lugar que lhes era devido no Um grande colóquio organizado de dois em dois anos nos Estados
passado e explicar por que. muita.'i vezes, elas não figuram na história Unidos, a "Berkshire Conference", que atrai vários milhares de cientistas
, ,
escrita. E também provável que, sem a insistência militante das primeiras dos dois sexos, constitui agora uma estrutura internacional para conferências
protagonistas da história das mulheres, talvez o sexo nunca fosse desco­ sobre a história das mulheres. As revistas especializadas j:í. remontam a mais
berto como instrumento da análise histórica. Um debate verdadeiramente de dois decênios, e seus nomes, tais como Feminist Studies, Signs, Pénélope,
pungente figura num dos últimos números da Irish Historical Review3. a r�vista italiana Memoria, e a recentíssima publicação Gender and History,
Poucas m�lheres se viram negar seu passado tão radicalmente quanto as revelam aiguinas c!as mudanças ocorridtis. Outra� revistas, como History
irlandesas, que, sem exceção, foram riscadas da história; as instituições Workshop, incorporaram como assunto pem1anente a história das mulheres.
históricas oficiais, extremament� lentas em recuperar o at�aso, parecem Os editores descobriram que as m:.ilhcres compram livros sobre a� mulhe­
mesmo persistir numa espécie de distorção historiográfica. Uma obra res. A casa editora Laterza, que havia encomendado a Storia delle Donne
1 inovadora recente, editada por Margarci. Mac Curtain e Mary O 'Dow::i 4, (História da Mulher], realizada �ob a direção geral de Georges Duby e
.:i
:·. apresenta uma rica coletânea de ensaios, cientificamente inatacáveis, sobre Michelle Perrot 6, estava pasmáda com o sucesso obtido por essa obra. Esse
diferentes aspectos da existência e das atividades das mulheres na polí­ monumento em cinco volumes propõe abordagens muito divergentes no que
tica. no direito e na gt:�rra, na religião, na literatura e na educação, bem diz respeito às mulheres e a suas relações, tais como emergiram no decorrer
como na família e no trabalho doméstico. A presidente da República dos dois últimos decênios; apesar de seu título, a obra trata igualmente dos
a..--sistiu pessoalmente à apresentação do volume. A publicação constituía homens, das idéias sobre os sexos, das mentalidades, da maneira corr.:> os
uma experiência histórica vivificante num nível que ia além da simples Europeus concebiam sua vida de família, seu trabalho, sua religião, e como
informação. Dava às cientistas, às estudantes, às leitoras irlandesas a cons­ viviam no interior dos horizontes mentais da vida cotidiana. Vinte anos
ciênciá de pertencer a uma coletividade, experiência que as outras mulheres atrás, tal exerdcio teria sido impossível. Só os misóginos obstinados podem
ocidentais haviam conhecido mais de vinte anos antes. Re·.:elava quanto ainda negar a evidência de um semelhante enriquecimento da história.
r�tava por fazer, e algumas das potencialidades do que podia ser desco­ Quem imaginaria hoje cm dia t.!::1a história da religião e das
':--:::w. Ora, cm sua resenha de obras rcccnccs ::;.._·jrc a história das mulheres práticas religiosas sem se referir à dis::::.;ão dos sexos para explicar a
iriandesas, David Fitzpatrick, historiador irlandês de grande valor, qua­ participação diferente das mulheres e dl"1s homens? Quen, pensaria cm
Eficava a história das mulheres de "gueto sorr.brio cm que os homens e escrever uma história das indústrias têxteis sem evocar a mão-de-obra
� r:.:.:...,ierosas mulheres não se aventuram púí meJo ou por dcsprezo"5• Em
'r1 extremamente barata das operárias, que permitiu a decolagem para o
s:.::l resposta, Mac Curtain e O'Dowdjulgam qt.:e o estado atual da historio­ crescimento, e quem escreveria uma his�--;ria dos modos de consumo sem
;:2.fia irlandesa dá pouca latitude a cstudç1 s ce�tinados a tomar verdadci­ levar em conta a procura divergente de ..·;ida sexo? Quem, cm 1995, se
� .::1ente c1n co,1sidcração os sexos; é pr�'..:-:� _, �·'-1is continuar o cmprccn­ debruçaria sobre a estrutura histôric;:i : .:-f. migrações sem considerar as
c::nento, principalmente explorando os c.for:iíni;,.1s cm que ele pode entrar mulheres que permanec�ram no lugar ? �ua se ocuparem com a !erra,
e=1 colisão com a história nacional. indisr,ensávcis para a com1.1nidadc?
250 PASSADOS RECOMPOSTOS

As perguntas deste gênero são inumeráveis. Um exercício come­


çado para tornar as mulheres cor.scientes de si próprias deu assim origem
à conceptualização da difercr.ciaçãc social dos �exos, que está invadindo
'
1:
·
•.

CINCO

o conjunto da disciplina histórica. O que começou por um assalto, pros­ Depois de 1989,
·;.
·, segue - ::;e completa - pela persuasão e pela infiltração. Esse Estranho Comunismo
MARC LAZAR

Notas Depois da queda do muro de Berlim, seria absurdo e perigoso votar


o "comunismo" ao esquecimPnto. A no,•idade de uma situação política
1
J. Gadol Keily, "Did womcn have a Rcnaissancc?", in R. Bridenthal e C. Koonz.(ed.),
Becoming Visib/e: Wome11 Íll Europea11 Society, Boston, Houghton Mifflin, 2• ed., inespera!ta incita mais do que nunca a um esforço exigente de compreensão
1987. de um fenômeno que é parte integrante da história européia, e mundial.

= C. Langlois, Le Catlro/icisme au fémi11i11, Paris, Lc Cerf, 1984, continu:i o estudo dessa Teria o comunismo se tornado, no sentido vulgar da expressão, uma
obra feminina depois da Revolução.
"história antiga"? A incredulidade de que a opinião pública francesa fez
1
M. Mac Curtain e M. O'Dowd, "An Agenda for women's history in _lreland", /ris/, alarde até 1991 quanto ao fim do comunismo estava na medida do que
Historica/ Studies, XXVlfl, 1Ç92. este representara, ao mesmo tempo, nas relações internacionais e na
realidade nacional 1• Mas a irreversibilidade das rupturas no Leste acabou
"Wome11 in Ear/y Modem lre/a11d, Dublin, 1991. por impor-se, e o comunismo é co:1sider:ido como um caso arquivado. A
desafeição para com ele não é apenas uma '1pinião política., mas uma
, D. Fitzpatrick, "Women, gender and thc writing of lrish history", in Jrish Historical
atitude de conjunto: o comunismo está afundando nas águas frias da
Studies, XXVH, 1991.
indiferença, engoHndo com ele cerca de um quarto do planeta, antes de
• A obra foi publicada depois cm francês: Histoire des femmes, Paris, Plon, 5 volumes tudo na China, mas também no Sudeste da Ásia, na África ou em Cuba.
1991-1992. Está atualmente traduzida cm várias línguas. A mídia já não se interessa.muito por um assunto que antes enchia páginas
e páginas. Ocasionalmente, rompe-se o silêncio com a publicação ruidosa
de arquivos, como foi o caso recentemente com o livro de Thierry Wolton,
que desencadeou novamente as paixões em torno da figura de Jean
Moulin 2, com o de Arkadi Vaksberg, descrevendo a vida dos dirigentes
comunistas internacionais cm Moscou, 0u com as Memórias "do super­
espião soviético Pavcl Soudoplatov ··�. E�::1 busca do "sensacional", ainda
mais impressionante porque, manifestamcnte, a realidade dos serviços de
informação soviéticos ultrapassa a ficçã0 à qual nos acostumara um John
Lc Carré, não desmente a tendência fun,famental; quase de um dia para
outro, o comunismo, que obcecava noss,."' presente, foi rejeitado para um
passado aparentemente distante.
O rr.cio das ciências humanas n5c .:-:-capou a semelhante inclinação.
Assim, até uma data muito recente, nur.1i:-rosos manuscritos de qualidade
enfocando o comunismo ou tudo que Ir:.? está ligado (o mundo operário,
252 PASSADOS RECOMPOSTOS Mucaçõcs 253

por exemplo) têm sido recusados por grandes editores, que alegam ausência maneira se perpetuou, não compreenderemos nosso tempo. Não se trata
de público 4• Estranha atitude. Pois, na frança pelo menos, o estudo do simplesmente de escrever a história dos fatos, mas do que se passou nos
corr.unismo atesta uma forte vitalidade, a ponto de representar um dos mais modos de relações entre os homens, no mundo de suas crenças, nos núcleos
preciosos elementos da história do tempo presente. Constituiu-se como uma míticos em torno dos quais se organi::am suas formas de adesão a si próprios
verdadeira disciplina universitária, com professores, estuda!1tes, pesquisa­ e aos -:,utros. Se o comunismo não tivesse modificado a vivência dos
dores, um CeP.tro de estudos de história e de sociologia c1o comunismo homens, se não tivesse transformado as relações de você a mim, de mim
dirigido por Annic Kriegel e Stéphanc Courtois junto à Universidade de ao outro, as ligações das pessoas entre si [...], não teria acontecido nada.
Paris X-Nanterrc, uma revista, Commu11isme5. cuja qualidade foi unanime­ [... ] É tudo isso que se trata de compreender e de repensar" 8• Bonito
mente saudada na França e no estrangeiro. Em dez anos, esta publicação programa, que constata que o desaparecimento, pelo menos na Europa,
mostrou sua capacidade de desbravar novos territórios de investigação e de desse esl i "anho comunismo faz dele um verdadeiro assunto histórico, mais
criar uma metoct'ologia original. C0m efeito. enquanto fenômeno total, o circunscrito no tempo do que antes, desembaraçado dos "efeitos de teoria"
comunismo SUj)Unha uma história total, mobilizando o conjunto das ciên­ (P. Bourdieu). O que estimula a renovar as interrogações.
cias ln;manas (em particular,· a sociologia, a ciência política, a antropologia,
a etnologia). Seu estudo permitiu transcender as fronteiras das disciplinas URSS/França: diversidade dos comunis=11os?
para chegar a uma história so�ial do político ou a uma sociologia histórica 'laf!10!: indicar aqui algumas pistas. Não sem ter previamente <leli­
do político, que restitui sua espessura social e desvela sua signficação mitado o campo de exploração. Deve-se falar de um comunismo ou de
profunda, quase existencial, fruto do enconrro entre um projeto político comunismos? Velho debate. Existe, com efeito, uma grande diversidade de
1:
inédito e comportamentos, tr;;dições, culturas e estratégias de diversos correntes, de movimentos, de grupclhos que se declaram comunistas. Aliás,
i
l:J
grupos, especialme!1te operários e campo�escs, cm momentos históricos é um;;. de suas características retinir de rupturas, de cisões ou de cismas,
particulares das sociedades onde se implantou. que engendram outras tantas tendências, facções, frações, correntes, grupos
,-l Votar o comunismo ao esquecimento é pois ao mesmo tempo ou partidos, cada um dos quais pretende possuir a verdade e acusa os outros
:ibsurdo e perigoso. Absurdo: o que se diria dos que desenvolvessem uma de traição e de desvio. Quanto a nós, consideraremos apenas o "comunismo
argumentação scmelh:mtc a propósito do na:z.ismo? Absurdo ainda, porque bolchevique", posto cm prática na Rússia a partir de 1917, e que constitui
o comunismo é parte integrante tia história européia, já que nasceu no a experiência fundadora q legitimadora de um movimento mundial, cujas
coração do velho continente, de seus debates ideológicos e de suas rea­ pretensões ce.ntr:ilizadoras e unitárias fazem dele um fenômeno único, não
lidades sociais e políticas. Mas perigoso taobém. Com efeito, querer se obstante a diversidade das formas assumidas. Esta unicidade e rsta diver­
livrar de uma lembrança pungente entcrrand0-a no mais fundo da amnésia sidade são os próprios componentes do comunismo. Este, enquanto ideal
coletiva provocaria infalivelmente seu retomo obsessivo sob a forma de tipo à Max Weber, comporta duas dimensões ligadas entre si: a dimensão
uma verdadeira síndrome. Daí, aliás, o dcb�1c atual nos países ex-comu­ teleológica provém de seu projeto revolucionário universalista, e implica
nistas sobre a depuraç:10 e a maneira de ,: :.::ir o passado 6 . Além disso, uma estratégia, uma hierarquia de org�:-.:z:ições centralizadas e uma ideo­
embora destruído no Leste e cm via de de.saparccimcnto no Oeste, o ,
logia de conjunto; a dimensão "societária. é constituída pelas relações que
comunismo pesa nas transições dcmocrátic:ls, oneradas por sua "herança cada PC tece com a sociedade a que pertence.
gigantesca, problemática" 7, ou na dcscst;l:-ilizaçiio e na fragmentação A prodigiosa extensão do comunismo (1,enhum continente foi
eleitoral da Europa ocidental, devidas, cm ç: .1rtc não desprezível, ao forte poupado) obriga a proceder de modo seletivo. Limitar-nos-emos a dois
recuo dos partidos comunistas, cm p:1rticul;l: na frai1ça e na Itália. Como exemplos, a URSS e o comunismo ocidental numa de suas terras de
explicou o filósofo Jean-Toussaint Desa:�::: "A chapa de chumbo do predileção, a França, a fim de capt:ir o ;:-.:e o desmoronamento da primeira
comunismo não caiu cio céu, e não pnde cis::saparcccr como por milagre. e o declínio de um dos dois mais poJerosos PC da Europa ocidental
Enquanto não compreendermos de que se cor:·.pôc, como se instalou, de que modificaram na inteligência deles.
,,e
254 pASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 255
,s
1 '.·
n-
.. � J<l
Inicialmente, um lembrete. Há uns vinte a nos, os estudos de ,,·

0utr a se concentrava na estratégia, julgando que sua elaboração era deter­ �•a
sovietologia se dividiam em duas grandes correntes opostas 9• De um lado, minada por imperativos antes de tudo nadonais15; ambas as variantes vi­ �a
6- l

l�
a escola totalitária, insptrada pelos filósofos do tot a litadsmo ou pelos savam, pois, demonstrar o caráter essencialmente .francês do PCF.
politólogos, essencialmente de origem americ an� quis estabelecer os i

critérios distintivos dos regimes totalitários 10: a a nálise dela estava centra­ A pesquisa recente ou a fragmentação das certezas

da no partido único, seu �aráter' monolítico, sua ideologia oficial, seu
recurso sistemático à mentir a, sua onipotência, seu terror, sua tentativa
O que foi que os acontecimentos recentes mudara m 11essas perccp­
ções? A crise do PCF, que se manifestou com evidência em 1981 com
ra
de absorver a socie�ade em suas redes, de mobilizar as m assas ou aind a o fracasso da candidatura de Georges Marchais - à eleição t>residencial,
de forjar uma nova humanidade. Daí uma forte a tenção à política, à provocou um processo de desagregação, durante o qual "o reboco do
ideologi a e à idéia d:i permanência de um sistema que se edificou esma­ muro comunista,se solta em l:ugos pedaços"16, pondo a descoberto os
gando tudo em sua passagem. Por outro lado, desde o fim dos anos 70,
afirmou-se uma escola revisionista, que criticava as implicações políticas
materiais desiguais que haviam permitido a construção do e_difício. Ime-
, diat amente, como num movimento de pêndulo.. os pesquisadores tiveram t

dos pa rtidários do totalitarismo (muito embor a seus próprios tr'1balhos tendência a abandonar a dimensão teleológica do PCF ( ainda mais porque �('

tenh am t ambém pressupostos e con seqüências políticos), e queria apre­

1
os arquivos não estavam disponíveis), e a se precipitar sobre sua con sis­
ender a URSS com outros instrum�ntos. Refutando a noção de totalita­ tência "societária". Assim, já que se destruía a representação mítica de \:.
rismo, relativizando o lugar da política e da ideologia tais como se ex­ "partido da classe operária" que o PCF dera de si próprio, numerosos
primiam oficialmente, ela privilegiou a aborda�em social. A URSS foi trãb alhos puser am em foco a complexidade dos encontros entre PCF e

'
então percebida na longa duração russ� e a partir de "baixo". O objetivo c omunidades operárias ou camponesas, e o tipo de dominação estabelecida
consistia em delimitar a influência dos movimentos de fundo, que afeta­ pelo PCF nos ecossistemas sociais e políticos: o Partido prestava serviços,
vam a so�iedade em sua inércia � suas rupturas, sobre as (?rien t ações e desenvolvia sociabilidade, difundia v alores, :-eassumia, modificar.do-lhes

f
a s decisões políticas. Esta escola chegou a fal a r num consenso e numa _ o sen tido, tradições políticas, ou inventava novas,' org anizava mobiliza­
a utonomi a das instituções sociais que se teriam progressivamente reali­ ções rituais, simbólicas ou festivas, fornecia uma mitologia, dava uma
zado n a URSS, resultando num "polimorfismo institucional "11• Gorbachev identidade local, social, nacional e internacional a populações desenrai­
teria �ncarnado perfeitamente essas transforma ções. zadas, traumatizadas, em busca de estabilidade, cujas condições de tra­
Na França, o estudo do comunismo se dividiu segundo duas prin­ b a lho e de vida valorizava, e que enraizava em territórios 17•
cipais sensibilidades historiográficas • Annic Kriegel, com sua tese pionei­
12 '.
Do mesmo modo, a observação do declínio do PCF não se limitou fâ
ra, depois no resto de sua obra, sublinhava a originalidade irredutível do a dissertar sobre a habilidade tática de François Mitterrand: ele foi apre­ at
comunismo na França. P;oduto de um enxerto estrangeiro ocorrido ao final endido em termos sociológicos, ligando-o às mutações do mundo industrial, )r
de um acidente histórico, o PCF rompia com uma t.:-3dição do movimento operário e urbano, e examinando desse ponto de vista suas respostas po­ �j1
operário francês, pelo fato de pertencer a um siste:--:::i comunista mundial líticas e culturais 18• Assim, as pesquisas ins:'!":iam nas funções sociais e â•
inédito na história das internacionais operárias, e de ter montado uma 1u
a ntropológicas cumpridas pelo PCF. Com isso. aliás, corriam o risco de lâ
organização radicalmente nova, da qual ela tentou 2.liás a etnografia 13• A reduzir o PCF a um simples prestador de scrvi;os e de identidades, esque­
leitura da obra de Annic Kricgel feita pela historiogrtlia surgida das fileiras cendo que foi um partido político que consegdu, graças a suas estruturas
comunistas, que procurava conquistar uma parte :eal de autonomia cm organizacionais, a seus dirigentes, a sua cstr:1.:égia, a sua cultura política, I<
relação à direção do Partido, era bastante parcial: guardava apenas, no homogeneizar essa diversidade "francesa, antr..-·?Ológica, operária "19, ultra­ =i
essencial. a idéia de um PCF apêndice do comunisr.:�' internacional. Contra p3.ssar essas diferentes "artes de viver" 111, r: .:..: :1 forjar uma entidade que
ela. duas abor�agens eram propostas: uma se conce::trava na implantação, adquirisse sentido para os que a ela pertencia=::. Ora, a abertura dos arqui­
sublinhando a inserção do PCF no centro das rcalüfades do hexágono 14 , a vos cm Moscou, mas também cm Paris (tem:-:- o PCF decidido abrir uma
li
;l·f i' Mutações 257
·I
256 PASSADOS RECOMPOSTOS

p.?rte de seus fundos até aí inacessíveis para o pós-1944), faz com que, já Inversamente, por trás da fachada monolítica dos partidos, desco­
agora e num futuro próximo, o pêndulo volte a se posicionar em direção brem-se por vezes as rivalidadP.s entre instâncias burocráticas, os engui­
ao centro, no ponto de equilíbrio entre o político e o societário. ças. da máquina organizacional, Oli enfrentamentos internos no seio dos
Com toda evidência, a possibilidade de acesso, segundo modali­ grupos dirigentes, assim como a dur�za, a desconfiança e a suspeição que
dades muito variadas, às fontes, por muito tempo �antidas secretas, de reinavam quase sempre nessas altas esferas. O trabalho empreendido por
numerosos partidos comunistas e da Internacional comur,is.ta, inaugura alguns pesquisadores, como, por exemplo, Nicolas Werth, nos arquivos
uma fase radicalmente nova da pesquisa21 • Assim, o debc:te entre escola do partido soviético, devia intcoduzir uma distinção salutar entre a inten­
totalitária e escola revisionista deveria mudar de natureza. Já a perestroika ção totalitária e as condições de sua realização. A primeira já é incon­
tinha embaralhado as cartas. Não existia mais uma verdade oficial, e a testável. Ela se caracteriza, especinlmente nos anos 30, por uma violência
história se tornav� parte interes5ada d0 debate político que estava no estarrecedora, uma brutalidade inaudita, uma vontáde efetiva de subverter
auge22• Mas o fim da URSS, que seguiu o golpe de Estado fracassado de alto a baixo os quadros sociais existentes antes da Revolução e de
C?ntra Gorbachev em 1991, acabou de abalar as certezas das duas grandes a:-regimentar uma população traumatizada. Os historiadores que desco­
historiografias existentes. Os partidários do totalitarismo revelaram-se brem esses papéis cuidadosamente colecionados por uma burocracia
incapazes de admitir a possibilidade de uma reforma interior do Partido minuciosa, versão moderna e hipcrtecnicizada daquela do Egito faraôni­
e do regime, e os "revisionistas" viram se estilhaçar seu famoso consenso co, têm a sen:;açio estranha de explorar essas "pirâmides" ou esses "pa­
entre o Partido e alg!.lmas frações da sociedade. As duas correntes, embor� lácios dos sonhos" descritos por numerosos escritores, como Isman
neg:issem, foram finalmente fascinadas por seu objeto de estudo e prisio­ Kadaré, opositores do sistema comunista e geniais visionários24 • Mas o
neiras de sua metodologia: ambas só podiam pensar o comunismo em sua que transparece também nesta documentação oficial, e suscita uma quan­

'1
perenidade, a primeira porque o acreditava quase que imutável, a segunda tidade de pesquisas específicas, é a dominação de um pequeno grupo de
peia preocupação de demonstrar seu enraizamento no mais fundo das dirigentes todo-poderosos sobre o dispositivo central do poder; esta elite
realidad'!s sociais e históriéas da Rússia. tende, por todos os meios - que se trata agora àe explorar e de reconstituir
A superação previsível das disputas científicas é auspiciosa. As (repressão, corrupção, mobilização de uma pluralidade de redes, forma­
primeiras pesquisas fundadas cm arquivos delimitam melhor a especifici­ ção de clientelas)--a est�bclccer seu domínio, até as regiões mais remotas
dade e a realidade do projeto, da organização e do poder comunista. Os da periferia, sobre todos os grupos étnicos e sociais em decomposição 011
documentos do Komintern (que funcionou de 1919 a 1943), tanto da em formação25 • Porque as realidades econômicas e sociais são mais
org:inização como dos principais responsáveis� permitem �nalisar melhor complexas do que deixava pensar a propaganda oficial, e as resistências
a estratégia comunista, avaliar de perto o empreendimento mundial de à imposição de uma nova ordem tomam uma grande variedade de cami­
subversão de um aparelho superorganizado, em que o centro (Moscou) nhos26. Tanto que, em lugar de opor o social à ideologia ou ao político,
tenta controlar os mínimos detalhes cta ativióde das diferentes seções o observador tenta, de preferência, apredar sua interação, a exemplo de
nacionais e dos militantes, dú um lugar fun(b:::rntal à doutrina, exige uma Alain Bium, que aplica a demografia l::�: ..�rica à URSS e restitui o� ajustes
submissão completa de seus aderentes. e recorre a todas as práticas - variáveis conforme as Repúblicas e as grandes zonas cultl!rais - dos
possíveis e imagináveis para penetrar nas sodcdadcs ocidentais. As bio­ comportamentos vitais das populações diante da gigantesca e inédita ten­
grafias dos dirigentes, cerca de 5.00() no c;.ssc do PCF, a quantidade dos tativa de remodelagem da sociedade e:7.prccndida pelo rcgimc27•
rel:itórios extraordinariamente detalhados e F:-ccisos sobre o estado das Ainda mais func!amcntalmente. na URSS, nos países do Leste,
forças em cada país. aprofundam o coahcci:::cnto dos PC, e cm breve como naqueles em que houve poderos-..'5- PC que não chegaram ao poder
ter.:po renovarão a sociologia do comunis:::: do período entre as duas central, se deveria progredir na comr" � � � :1::-ão geral do que representou o

1
guerras, na espera da abertura mais complet� .:.)s fundos do pós-Segunda comunismo como continuid:tdc e rup::.::�1 cm relação à religião, à ulopia,
Guerra Mundial 23• às correntes culturais e política3 de c;::...::.1 história nacional, às estratégias
258 PASSADOS RECOMPOSTOS Mwações 259

dc inscrç:10 na modcrnizac/10, 011" li11sc:i de idc11tid:1dc dos .itorcs sociais. '' W. llcrclnwilch, "l.:i ·s,1vié1nln)',ic' :ipr�s k p111sch. Vcrs 11nc g11érison"/'', l'olitix,
Resumindo, trata-se de apreender a que necessidades sociais e culturais n. 18, 1992, pp. 7-20. Eslc artigo not(1vcl se apúia numa bibliugrafia exaustiva.

correspondia esse fenômeno. O que não deixa de ser uma maneira de nos
JO Numa literatura gigantesca, indicaremos aqui apenas a obra de sínlese mais recente
interrogarmos sobre nosso presente pós-comunista. e de mais fácil acesso: 13. l3adic, G. l-lcrmct, Politiq11e comparée, Paris, PUF, 1990,
Quem disse que o estudo do comunismo era história antiga? 404 p.

11 M. Ferro, "Y a+il trop de démocra1ic cn URSS?". /\111rales ESC, XL, 1985, p. 820.

12 Simplificamos excessivamente um dor,ínio de estudos particularmente rico, ao


Notas
qual a ciência política cm especial trouxe· contribuições que escapam a esta
1 Ver, por exemplo, as sondagens de novembro de 1989 e setembrc de 1991, in Sofres, distinção.
l'État de /'opinio11 1991, apresentado por O. Duhamel e J. Jaffré, Paris, L'.! Scuil,
1991, 296 p., e L'É,at de l'opinion 1992, apresentado por O. Duhamcl e J. Jaffré, 13 A. Kricgel, /\11x origines drr cornm111is111e [rançais, Paris, Flammarion, 1969, 442 p.;
Paris, I e Seuil, 1992, 259 p. le Systême co1111111111iste mowlial, Pa:is, PUí', 1984, 272 p.; les Cc>mm1mistes
[rançais /920-/070, Pa1 is, Lc Scuil, rccd. 1985, 404 p..
2 T. Wulto11, l,e (,"ro111/ //ccrutc111ent. J';11is, (;1:1��-�t. l'/'1. 1 , '11lll p.
14 J. Girault, S11r l'imp/antalion du l'arli co1111111111iste fra11çais dans l'e11tre-de11x­
3 A. Vaksbcrg, Hótel Lux. les partis frêres au service de l'lntemationale co11111111niste, g11erres, Paris, Éditions socialcs, J 977, 347 p. Entre os trabalhos monográficos
Paris, Fayard, 1993; I'. Soudoplatov. /\. Soudoplatov, Missio11s spéciales, Paris, Lc que se inserem nesta filiação, querer.1os assinalar A. Fourcault, Bobig11y ba11/ie11e
Seuil, 1994, 613 p. rouge, Paris, Éditior,s ouvricrcs-Prcsscs de la Fondation Nationale dcs Sciences
Politiques, 1986, 215 p.
4
Dois exemplos entre outros: J.-P. Molinari, Les Ouvriers co11111111nistes, Thonon-les­
l3airis, L' Albatros, 1991, 367 p., e M. Vcrrct, La Cu/urre ouvrii:re, Saint-Sébastien, 15 Ver a teorização que dela fazem R. Martcili, "Notion d.-: stratégic et histoire du
ACL Édition, 1988, 297 p. lnvcrsa111e11tc, assinalemos, para nos congratular com PCF", Ca/riers d'histoi.-e de l'IRM, n. 5, 1981, pp. 8-42, e S.Wolikow, Lc Parti
isso, a public,1ção de um sólido volume de G.-G. Moullec e N. Werth, intitulado communistc français ct I' lntcrnationalc communistc (1925-1933), tese "d'État",
Rapports secrets soviétiques, 192/-/991. !,a société russe dans /es documents Universidade de Paris VIII, 1990, pp. 20-26.
confidentiels, Paris, Gallimard 1994, 676 p., bem como a excelente iniciativa
editorial do Seuil, que anuncia uma grande colcçiill "Archivcs du communismc", 16 S. Courtois, "Construction ct déconstruction du communis111c", Commrmisme, n.
dirigida por S. Courtois e N. \Vcrth. 15-16, 1987, p. 52.

·1 /1 rcvistn r111111111111ix111,•, que· puhlk.1 ,p1:11rn 111·11111·1t1s pnr 1111,1, i' rdit11d11 pnr L' Âge 17 A título de exemplos, n1111rn produção jn ngnra importnntc, vc,: "Cornrnunismc
u'hom111c. rru11�11ln ct r.11clé1é11 ouvrlcres", C,'111111111111/:.mc, 11. l.'í-16, 1987; "Lc com111unls1110
français et ses municipaliiés", Comm1111isme, n. 22-23, 1990; J.-P. 13runct, Sai11t­
� Ver o debate entre V. Havei e A. Michnik in G. Mink e J.-C. Szurck (dir.), Cel étrange De�1is, /a·'ville ra11ge. Socialisme et C0/111/lllllis:ne C/1 banlieue ouvriere 1890-1939,
po�·/co111111r111isme. /?11pt11re et transition.� en E11rope centra/e et orienta/e, Paris, Prcsscs Paris, Hactiette, 1980, 462 p.; M. 1-lastings, Hal/11i11 la Ro11ge, 1919-1939, Aspects
du CNRS/L1 Découverte, l 992, pp. 17-48; os dossiês "Poids el c11jecx dcs épura­ d'rm commi1nis111e identitaire, Lille, Presscs universitaircs de Lillc, 1991, 438 p.;
tions", la Nouvelle 1\/temative, n. 21, nwrço de 1991; "Lcs régimes postcornmunistcs G. Noiricl, longuy, lmmigrés et p,olétaires, 1880-1980, Paris, PUF, l 984, 396 p.
ct la mémoirc du lcmps préscnt", La Nouvelle A ltenrative, n. 32, dezembro de 1993,
"La justice du poslcommunisme", /,a Norrvellc: A lternative, 11. 35, se lembro de 1994, IR G. Noiricl, les 011vriers dons la société fra11çnise, XIXe-XXe siecle, Paris; Lc Scuil,
e "Mémorial", Les cal,iers d'lristoire .meia/e, n. 2, primavera de 1994. l 986, 321_p.; Ouvriers, 011vrii:rcs, 1111 co11ti11c111 morcelé et silencieux, Autrcment,
janeiro de 1992, 220 p.; J.-P. Terrail, Dcslins ouvriers. la fin d'ui;e classe?, Paris,
V. Havei, op. cit., p. 18. PUF, 1990, 275 p. Para 11111 balanço completo desses trabalhos, ver M. Lazar,
'1
7

"Communismc ct histoirc du temps préscnt", comunicação ao colóquio "Marc Bloch


R Un cntrcticn avcc J.-T. Dcsanti, Lc Mo11de, 1O de março de 1992. ct lc temj,s préscnt", 13- l 4 de junho de 1994, Paris, EHESS, atas a serem publicadas.
260 PASSADOS RECOMPO�TOS

1 11
J.-J>. Molinari, op. cit., p. 211.
SEIS
211 J. Chesne:111x, /.e PC/·; 1111 nrt de ,·ii•re, Paris, Mauricc N:l(Jc:rn, 19�10, 212 p.
. i

21 c�re os problemas metodológicos suscitados por esses arquivos, ver o artigo c'e
� A Arqueologia
E. François nesta obra.
à Conquista da Cidade
22 N. Werth, "La transparcnce et la mémoirc. Les Soviétiqucs :1 la rccherche de Jeur
HENRI CALINIÉ E MANUEL ROYO
passé", in Vingtii!me Siêc/e, n. 21, janeiro-março de 1989, p. 5-27.

23 Sobre a apreciação relativa à contribuição destes arquivos, ver especialmente S.


Courtois, "Archives du communismc: mort cl'une mémoire, naissance d'une Se a política de conservação do patrimônio, que a criação de setores
histoire", in Le Débnt, n. 77, novembro-dezembro de 1993, pp. 145-156, e as para pedestres e a restauração dos centros urbanos e dos bairros antigos
respostas de F. Bédarioa, "Du bon usage de l'histoire du temps présent" e de P.
testemunham cada dia mai.\� parece fazer dos arqueófogos os interlo­
Vidal-Naquct, "Propos d'un méch:rnt pamphlét:iirc", /,e /Nlm t, n. 79, março-abril
cutores dos responsáveis pelo futt:rn das cidades, sua posição permanece
de 1994, pp . 183-! CJ2; M. Lazar, "Cn1111111111isme ct histoirc du tcmps présent", op.
cit. Já foram p11hlic:1dns tlncu111r111i1·, 11·sprit:111d11 :1s regras his1t,rkas: ver "l.cs ambíKua. 1,·stcrmmlws da formnçlio do sub.mio atual das cidades, é
archivcs du com1111111is111c", in Com11111111.rn11:, 11. 3:!-33-34, fCJ'•J; "Lcs cummunistcs diffcil que eles participem de srw destruiçiio, cm nome de outros interes­
et la CGT", Comm1111is me, n. 35-37, 1994; "Le PCF ct l'lnternationale", in Cal,iers ses que não os do conhecimento histórico, mas também fites é impossível
d'Histoire de l'lnstitut de re cl,ercltcs mnrxistcs, n. 52-53, verão-inverno de 1993 recusar completamente uma evoluçiio sobre a qual fundam a leritimidade
e P. Buton, l.es lc11demni11s qui d(:c/l(t11/e11t. Le Parti c01111111111is1e frnuçnfs à la
de seu procedimento.
Uhéra tion, Paris, Presses de la FNSI'. J ()IJJ, 352 p.

24 Ver, a este propósito, J. Rupnik, "L1: 101alit.1risme v.r de l'Est", (soh a direção de A arqueologia não se interessaria mais pelo Belo? Ao vermos os
G. Hermet, com a colahoraç:io de P. llassncr e J. Rupnik), in To1nlitarismes, Paris, restos que os arqueólcgos expõem quando os museus lhes abrem as portas,
Economica, 1984, pp. 43-71. às vezes duvidaríamos. Ela é pelo menos ainda "uma e indivisível"? Ao
percorrer os títulos das publicações arqueológica�, vê-.ie a disciplina se
25 Ver, por exemplo, "Passé et préscnt rcligieux cn URSS", Revue tl'Étu des
atomizar: arqueologia agrária, náutica, industrial, ambiental, "moderna",
Compa ratives Est-Ouest, n. 3-4, setc.:mbro-dczcmhro de 1993.
"experimental" ... A irrupção das ciêrcias exatas - matemática e física -,
2'' Estas reflexões devem muito às con11111icaçi'ics dedicadas ao cstadc, do� trabalhos das ciências da natureza ou da terra - e das técnicas de análise ou de
snhrc n URSS e aprcscnladas por W lkrdowilch r N. \Vnlh no Sl'lllin:írin da imaAens que as acompanham - transtornou profundamente nos últimos
1,·vi'illl ('1m11111111iw11• 1111 l111c·111 d11 :111,, .I,· 1•1•11 V,, N \V,·,tl i , "Il i - la '.,11 vlc'l 11l11i:1r vinlc 1111w: a alu11dagc111 :1,q11c1M1gica. A :uq11c11111clria, uinda engatinhando
cn générnl cl dcs :rrchivcs russcs 1.:11 p:11 1il.lllic1", /.e INIJt1J, 11. 77, novcmbru­
nos anos 50, aproveitou amplamente esses avanços técnicos para oferecer
dczembro de 1993, pp. 127-144.
à arqueoiogia de campo propriamente dita novos meio� de análise. no
27 A. Bium, Naitre, 1•i11re et 111011rir e11 URSS, Paris, Pl•.)ll, J 91)4, 273 p. estabelecimento das cronologias e no conhecimento dos ambientes de vida.
O impacto desta especialização teve por conseqüência limitar o espaço. da
abordagem no terreno, fazendo da arqueologia o ponto àc encontro de
várias disciplinas e abrindo assim seu campo de estudo à longa duração.
Obrigada a r�corrcr a diferentes técnicas que nem sempre pode
dominar, a arqueologia é levada cada vez mais a orquestrar resultados, cuja
. �r�;..
significação, freqüentemente, só adquire todo seu valor depois de ultrapas­

j
sada a estrita aplicação a um pedodo determinado. Apareceram assim ·{/
i'l Mutações 263
i'i 262 PASSADOS RECOMPO!ITOS
.,.
I'

i vos que cnccr�


fenômenos < 1 c evolução que a cspccializ,,ç:io liislúr ica de cada um impedia cúbicos, este solo do qual hoje se sabe que constitui 1�rqu
:
:� !

':1" ,
•!.
de levar em conta plenamente. Tudo isso contribuiu para ampliar o campo ram, eles também, a história, ameaçada, das cidad e s.
scer a ar.:
Espaço, tempo, destruição, eis o maelstrom que f ez na
·j ,i
cronolflgico e o campo temático tradicionais: arqueologia clássica, medie­
1:.·
._::..-
ção
.:1;
na prop
':ªI, oriental, cgitologia... O Belo e o Uno, outrora unidos sob a tutela que ologia urbana. Numerosos arqueólogos se encontram
!i; osi .,,: ...

ogia do
-�

.�: . ,{:'l':
urbana signif ica mai a que l
:1,:; acadêmica da história da arte e da arqueologia, cederam lugar a uma Babel que subentende que arqueologia
s r o
·: ;-.'· -. \-..t·:
evitar qualquer mal­
urbano do que arqueologia das coisas urbanas. Para
li
de práticas: entre estas, a arqueologia urbana, recém-aparecida, a primeira ,'(_,;,

e, t ermo unívoco
i,.··-•.

a acrescentar à pluridisciplinaridadc, já agora habitual, a longa duração. entendido , pr eferiremos falar em arque ologia da cidad . ��r
a m orfologia d o
que define o estudo dos p:-ocessos que det erminaram
.;� r

Do monumento à cidade espaço urbanizado pré-industrial


das aglom erações.
Durante muito tempo, para os arqueólogos, a cidade apresentou as
características de um mercado onde cada um vinha, ao sabor d e suas
Espécie de espaço
conjunto
A cidade é por natureza, aos olhos do arqueólogo, um
··,';; ..

necessidades, comprar aquilo de que precisava: este do forum, aqu ele de


catego ria do e paç o à qual
um templo, outro de um bairro de habitações salpicado de mosaicos, e fechado, de limites definidos, uma verdadeira
s

i ns nprccn facil­ dc
nindn outro de umn hnsílica p:ike1c1 isl:"t. Assim se dcsmcmhrnva uma cslfio nssocindns Í l mçõcs cspccíficns. A nrqucolog a
veis: espaços
aglomeração . Nas mais vastas ou mais famosas, multiplicavam-se, amon­ m ente, porque estão concentradas cm lugares identificá
e religio sos, estab eleéi­
toavam-se as concessões. Os aroueól ogos medievalistas se uniram, com públicos, sistemas defensivos, monumentos civis
Partin do do
atraso, a seus colegas especialistas cm Antiguidade, e foi a vez dos mentos do comércio e do artesanato, lugares funerários.·
se regressiva,
castelos, das igrejas, das necrópoles. Em tudo isso, nada de cidade. Ela estado atual da cidade, tudo isso se presta ao tipo de análi
, feita de cama­
era objeto de história, não de arqueologia. Cabia aos textos estabelec er ·próprio do estudo da longa duração. Por sua constituição
mais ou _meno s abundan tes
os vínculos entre os monumentos, elucidar as sociedades que haviam das cronológicas, que deixaram vestígios
recess o a fizera m aban­
erigido esses edifícios. conforme suas fases de desenvolvimento ou de
passado a cidade
,
Nas últimas décadas, vários fenômenos contribuíram para fazer as donar, destruir ou conservar as construções herdadas do
que segue de p erto
coisas evolnírem. Dois são de ordem científica, um de nrdem urbanística: é o produto da longa duração. Seu dcser.volvimento,
s, econôm icas, religio sas, se traduz \
dos monumentos da Antiguidade, os arqueólogos passaram para a apre ­ a evolução das condições sociopolítica
ões ou contra ções do tecido urbano . Uma di conscq ilências § :
ensão da cidade, inicialmente antiga, cm sua dimensão espacial. Interes­ po� dilataç
s

saram-se p elo que revelava da organização das sociedades a totalidade do desse movimento é o afunda mento dos ilíveis de ocupa çã mais an tigos, l
> ::. · i ·
o
t
rerido :irhnnn, stHn mnis li� limit:11,·111 11 11lg1111� c-ilil'it'i11�i 1i,l11:i ro11111
r eveladores. J>aralclamentc, as técnicas da arqueologia se aperfeiçoaram
htim cnmo II l'<'l'llfll�rnçno t' 11 1n,nsforn111çfin llns constrm,õeR quo
respondem mais às ncccssic..ladcs para as quais foram criada
ni\o cor•
s. Antes mesmo '� �/l .
e permitiram a compreensão das estruturas cm materiais leves que, du­ da Revolução, quantos monumentos antigos ou medicvaic;, civis
ou rcligio� :_.:Y\ ili
rante muito tempo, não se soubera distinguir no solo. Enfim, a reestru­ sos, n ão scrvi'."m, �orno depósitos �e p�dra ou com� g ran j a s? ''· ·· :S1;'.jf1
- as ,.·.K\�4
turação dos centros históricos fez compreender a amplitude do que se . Sf.' o pnnc1p10 de tal cvoluçao nao tem em s1 nada de novo
p erdia e qu e, de agora em diant e, se sabia ver. Foi na Europa meridional
qu e a topografia histórica, a apreensão global do espaço, se impôs; foi
fontes escritas o explicitaram há muito tempo - suas man
terreno são, ao contrário, mais confusas para captar , quand o º conside;.' �t�15r�:1·. .:'.
i fe stações·rió ,�PJfJJdi:

na Europa do Norte que as técnicas se aperfeiçoaram, nos lugares onde ramos na longa duração. Os vestíg
ios "históricos", por sua singulari�ª�,e_;{'.[il' · :; ·
a construção tradicional era de madeira, e não de pedra, e por 1.:onseguint e e sua monumentalidade, são outros tantos marcadore
s c ronológicos · .
que . f���·l
. .
cidad es, impon do delas image n s tão fortés J�� ..
deixava raros vestígios que era preciso apreender com !!tenção. É por toda mascaram a evolução das
s tP.rmas de Clun 1�a11,
a parte qu e as obras, parques de estacionamento no subsolo, construções quanto r edutoras. A hist?ria de Paris s e reduziria � . �
me e 11 torre E,ffel ? A de Roma , ao Co liseu, ao V�ttcano'.
sub terrân eas c omo as linhas do metrô, retiram, por milhares de metros Notre -D a �t{�

........
�· '"� f ,�• • ''

..
1 .
• " ,,

• ·� ,·
Muwções 265

praça Navona? O !lapel da arqueologia urhana é ir além dessas primeiras e. no qual as funçfles urbanas que apontam, cada um a seu modo, histo­
impressões, remontar mais longe do que permitem fazer a geografia riadores e �eógrafos, concernem à totalidade das partes desse espaço.
histórica e a históiia do espaço edificado, aproximando os elementos que Se, por muito tempo, a arqueologia serviu aos historiadores para
estão acima do solo dos que nele estão enterrados. A singularidade do reforçar a teoria das passagens inscritas no espaço urbano de uma forma
espaço edificado, por sua repartição ou seu modo de construção, torna de sociedade a outra, desde o Homo politicus da Antiguida·:le até o Homo
sensível, para quem nele circula, uma verd:idcira hierarquia entre diferen­ oeconomicus da Idade Média, por exemplo, esta nova abordagem está
tes espaços urbanizad'Js. Outros indícios são perceptíveis através da at\!nta à profusão das situações particulares escondidas por este movimento
densidade e da hierarquização do habitat ou do traçado das ruas. Revelam ·· de conjun!o, as quais, de um certo ponto de vista, o tornam tão caduco.
a existência de um "parcelário fóssil". A originalidade do procedimento Paradoxalmente, procurar não favorecer desde o início nenhum período
arqueológico recente reside então numa abordagem sem limite cronoló­ e ne�hum lugar leva a colocá-los melhor cm perspccHva e, por conse­
gico, que associa estreitamente os dados da escavação, os da geografia guinte, a medir melhor aqueles cujo impacto sobre o desenvolvimento
histórica, os da an.ílise do espaço edificado e os das fonte� escritas. Não supei"ou o dos outros.
se trata mais, como no passado, de dar conta tia diversidade histórica Já se percebe o enriquecimento, cm qualidade e cm C]Unntidndc, dos
da paisêlgcm urlia11a cm três im:1gr11·, 111uilas vezes cslereolipadas (a fundos documcntfir iw; cxis1c11lcs, co1110 11 das nccr(,polcs ar,tigas ou o dns
cidade antiga, medieval e enfim moderna), nuas sim da gênese das muralhas do Baixo Império. Discerne-se também a abertura de novos
cidades, isto é, dos processos de transformação revelados pela acumu­ dossiês, o da casa urban.i, medieval e moderna, o do artesanato dos
lação, pelo apagamento e pela substituição das formas de ocupação do períodos recentes etc. Estes poucos exemplos estão longe de refletir a
solo. Neste senti<lo, a arqueologia urbana não po<lc deixar de intcrrogür­ amplidão do campo explorado e a variedade da base documentária, cm
se a partir do estado atual do espaço urbano. quantidade como cm diversidade dos assuntos e das fontes, que a arqueo­
logia urbana começou a c::mstituir, e que estimula a ucscnvolver outro tipo
Palco e a tores de questionamento, o da identidade das cidades atuais, e isso através da
Para o historiador, a cidade é o lugar da história, o palco cm que multiplicidade das práticas reveladas por nossas fontes. Ao mesmo tempo,
se desenrola a ação. Para o arqueólogo. a cidade, enquanto palco, é objeto essas pesquisas tcm:íticas, regularmente alimentadas por novas descober­
de história. As duas abordagens são menos complementares uo que motivo tas, permitiram desenvolver t1111 estudo da morfogênesc das cidades.
para olhares diferentes, cujo objetivo comum, todavia, permanece o de Apesar de serem de um tipo um pouco particular, porque fundamental­
compreender o papel e a evolução das sociedades que se sucederam num mente voltados para a grstão futura d,, patrimônio urbano, os documentos
IIICHIUO l11g111. Mc:,11111 q111111d11 lih1ori:id11w, ,: :i1q11n1l111�11·1 ll'n1111·111 :a 1111111 ele avaliru;ao arq11c•11l11, ,ic·a cl:1�i ,·iclaclc·s p:111i,·ip:1111 clcsla :ilinrdagcm ntrn•
1

fonte comum, sua apreensão dos fenômenos, seu enfoque, levariam muitas vés da longa duração. Nenhum dos volumes publicados até agora, na
vezes a crer que recorreram a dois documentos distintos. Para o historiador, Suéi:ia, mi Inglaterra, nos Países Baixos ou na França, pr�tende restituir
a cidade é o lugar do poder, da troca, da cultu:a, o lugar onde se exercem a história das aglom�rações cm questão, à moda das coleções históricas
os confrontos, as tensões e os conflitos, onde nasceu o mundo moderno. que já existem, e cujo objetivo é esse mesmo. O objeto desses novos
No pior dos casos, ela se resume ao quadro de onde emergem monumen­ estudos é estabelecer a 1 igação entre sociedade e espaço.
tos como o fórum ou a prefeitura, cujo v:1lor deriva inteiramente da função Um exemplo concreto vai :lustrar o assunto: cm 1973, M. Biddle,
que exercem. Para o ar'-]ueólogo, o espaço urbano não se divide nem em The Future of the Lo11do11's Past [O futuro do passado de Londres],
cronologicamente nem topograficamcnte; é o revelador da evolução lcuta constatava, a partir das fontes tradicionais, que se a Londres medieval se
das sociedades urbanas. É espaço antes c.lc ser monumento, o que significa inscrevia nos limites da nglomcração antign, nada permitia compreender
que obedece a regras, a um processo de evolução que deve ser possível o que se tinha passado nas .. eras sombrias" da alta Idade Média. Se nestes
esquematizar, ainda que isso nunca tenha sido verdadeiramente tentado, vinte anos as escavações arqueológicas não se tivessem liberado da
266 PASSADOS lll:C:OMPOSTOS Mutações 267

problcmáticn Jwhitm1l, o av:mço ser ia fraco. E111 co111pe11saçao, reconsi­ intL·rcsscs que niiu os do conhecimento hist(nico, mus tumbém lhes 6
derar a questão a partir dos dados de escavações periféric as permitiu ao impossível recus a r \.!Ompleta ment� um a evolução sobre a qu al fundam
mesmo M. Biddlc cm 1986, num a rtigo intitulado "London on thc Strand", a legitimid a de de seu procedimento.
propor a transferência da atividade da alta Idade Média pélra fora dos Há, na cidade cúmo no inferno, vários círculos, e a competência
limites do recinto cercado por muralhas. Semelhante deslizamento, que do arqueólogo só se exerce num deles, o mais central, o da cidade pré­
teria ficado invisível à luz das fontes históricas tradicionais, só se percebe industrial. Em superfície, isso significa muito pouco cm relação à medida
colocando as questões na perspectiva arqueológica. Assim se pode enfim de nossas cidades contemporâneas. Nos centros históricos, o movimento
explicar a dupla denominação, há muito tempo conhecida, da Londres da pendular d as Folíticas de urbanização vai da reestruturação à conservação:
a lta Id ade Média , Lundenburgh e Lwulenvic: de um lado, a cidade cercad a ora se arrasa p ara reconstruir, ora se fixa restaurando. Mas é fora desse
de muraJh as, sede da a dministração e da elite, do outro, a aglomeração �spaço muito reduzido que, com algumas exceções, se decide realmente o
mercantil, que concentra as atividades e a população. desenvolvimento da cidade, nas ZAC (zones d'aménagement concerté)
Por sua própria naturez a, as fontes dos historiadores e dos arqueó­ [zonas de urbanização combinada] da periferia e outras ZUP (zones à
logos exprimem ritmos diferentes, l', por conscg11intc, hisllírias paralelas. urlmniser cn prioritl) (zonas a scrcrn urbanizadas cm prioridade].
Reconhecê-lo nfi11 é querer :1limcnl:11 11111 dchatc csté1 il s11lnc a a1110110111ia Existe a ciência de um passado urhann que se revela como um todo
ou a pretensa especificidade d a disciplina arqueológica. Muito pelo con­ homogêneo cm suas condições de instalação durante cerca de dois mi­
trário, o imp acto Ja arqueologia urbana sobre a cidade contemporâne a lênios, até meados de nosso século; em seguida, outra história urba na,
pode fazer d a arqueologi a o ator mais ou menos voluntário de uma bem recente, com a idade de meio século, que não tem nenhuma ligação
política do p atrimônio, da qual se apresenta tanto como o refém quanto com esse passado terminado e antiquado. Durante dois mil anos, com o
como o abonador. único recurso d a energi a anim al, os h abit antes modelaram pouco a pouco
a s cidades. O urbanismo neoclássico é uma fachada que não a b alou as
O arqueólogo na cidade estruturas topográficas nem ultrapassou as avenidas. No século XIX e no
Gestão do patrimônio urbano e abordagem global são, com efeito, começo do século XX, as ddadcs históricas conheceram sobretudo
aconse.:iüênci a normal de semelhante procedimento, com toda a ambigüi­ excr�scênci as. Quaisquer que tenham sido, os meios utilizados ficar am
da dc que cerca naturalmente a passagem do conhcdmento dos processos modestos, na escala urbana. É preciso, claro, excluir algumas das grandes
do p assado às opções de urbanização presente. cidades pré-industriais, mais marcadas que as outras, como Bordf!aux ou
O arqueólogo, pela natureza de suas observações, deve ser capaz N antes, mas o grosso da armadura urbana conservou, até uma data recent�,
de prod11;dr uma l'Xpl icnçiio de conj1111111 das 11111d:i111;as 11,·11rrid:is dl'Sdl' umn fisionomia dl' ddadl' lll''llll'll:I.
a origem no tecido urbano. Isso sig11 ri 1ca que ele e uh1 igado, ao mesmo As políticas brutais do pós-guerra <..leixarum c.Jc existir, 6 certo,
tempo em que sua abordagem se alarga, a sair dos limites precisos do a c abou-se com a produção do espaço cm hipercentro, m as nele se injeta
conhecimento formal. A difusão de suas conclusões, por pouco que agora c�nserv ação, isto é, representação urbana - ,,ocês s abem como é,
faç a o esforço de torná-las a cessíveis ao não-especialista, o engaja de as ruas tortuosas da Idade Média - das fachadas e da ga leri a comercial
um a m aneira ou de outra junto aos urbanizadores contemporâneos. Se no subsolo, insidioso ressurgimento da produção de espaço. Podemos
a polític a de conservação do patrimúnio, que a criação de setores par a hoje estar certos de que a cidade histórica, de origem a ntiga ou medieval,
pedestres e a restauração dos centros urbanos e cios bairros antigos é um lugar de cons�mo, tal como está integrada, enquistada n a cidade
testemunh a m ca da dia mais, parece fazer dos arqueôlogos os interlocu­ ·._,:f�.,
contemporânea. Rétorno tis fontes? Em todo caso, ,aqui nos encontramos
tores dos responsáveis pelo futuro das cidades, sua posiçiio permanece '���:-:
bem longe da cidade, lugar privilegiado da troca, da reflexão, do com­
;�J �
a mbígua. Testemunhas da formação uo subsolo atual das cidades, é promisso. Quando conhecemos um pouco os recursos locais, ficamos
.,Jii
difícil que eles p a rticipem de sua destruição, cm nome de outros esp a ntados, assombrados, com o caráter pré-fabrica do, seri al, e por ·\;'. �:.��;�
-: �'. �r-i�!j �.
. Ir;(
. :. �� ; �·
··t:.:···�
\ � �-\,-- t·,:�-
T
268 PASSADOS RECOMPOS OS

conseguinte com a uniformização que se apodera pouco a pouco da


paisagem das cidades. Essa história não precisa de história. No momento
IV
cm que se revela uma pr.ítica que suspende r.s especializações cronoló­
gicas, há um pouco de amargura cm ter que parar ;1s portas do presente. TESTEMUNHO
"":.::�
.•..

UM

A Memória Viva
dos Historiadores
1
J
ENTREVISTA COM PIERRE .VILAR 1

'
l
Pierre Vilar é um dos ·mestres da história francesa do século XX.
Pela primeira vez, ele se entrega ao jogo da entrevista. Ao longo de
uma vida que se confunde com o século, reflete com paixão e probidade
sobre o sentido de uma profissão que une a compreensão exigente do
i tempo presente à observação das múltiplas dimensões do passado de
j
nossas sociedades.

1 Numa época em que os historiadores são freqüentemente solicita­
dos a darem sua opinião (autorizada?) sobre qualquer tema de atualidade,
não é de se admirar que Pierre Vilar - um dos maiores historiadores
franceses deste século - permaneça desconhecido do grande público.
Diante da reflexão apressada ou do espetáculo, ele sempre deu prioridade
a um debate intelectual que não deixou de suscitar, com paixão, rigor e
probidade. Dentro do mundo universitário, nunca ocupou posição de
poder. Foi por seu magistério, na VI seção da École pratique des hautes
études, na École normale supérieure e na Sorbonne, que Pierre Vilar foi
um extraordinário estimulador de vocações de historiadores. Sem dúvida
porque permaneceu fiel ao ensino da história como problema e cuidou de
armar seus ouvintes de rigor metodológico: "O excesso de preocupação
metodológica na pesquisa", escreve ·no prefácio de La Catalogne dans
l'Espagne moderne [A Catalunha na Espanha moderna] (1962), "será
sempre preferível à ausência de preocupação". E continua: "Não seria
necessário dar aos jovens historiadores um mínimo de familiaridade com
a economia, a demografia, a sociologia, que diversificaria seus instrumentos
de análise e os preservaria també:::1 de entusiasmos muito rápidos?" Isto
equivalia a apontar a estreiteza de uma formação monodisciplinar, na qual
, . dominavam. ainda amplamente a história política e diplomática.
Três traços fundamentais caracterizam sem dúvida o procedimento
intelectual de Pierre Vilar.
272 PASSADOS RECOMPO�--ros Tesc�numlw 273

J:m primeiro lugar, a prcocupacão de fundar o trabalho histórico �- A descoberta da Catalunha nos anos 1930
numa teoria gl obnl permitindo dar conta de todos os aspectos da história
humana cm sua complexidade, e recusando o recorte da história cm Senhor Vila,; tendo nascido pouco depois deste século, o senhor
setores estanques. Aqui, a reflexão sobre Marx - como "única teoria é ntunlmente a memória vivn de uma geração excepcional de historia­
existente da história" - é essencial, e o aprofundamento teórico se operou dores franceses que,. depois daquela dos fu11dadores dos Annalcs, fez a
durante seu cativeiro num Ojlng na Alemanha, longe ele seus dossiês e historiografia francesa contemporânea. Como o senhor viveu essa aven­
ele seus livros: "Eu sei, escreve ele no mesmo prefácio, que esta obra não tura coletiva?
seria a mesma se cu não tivesse adquirido, no longo parêntese de meu Eu iniciei de fato meus trabalhos nos anos 1925-30. O que sem
cativeiro, o gosto ele uma teorização que ajude realmente a tornar patente dúvida caracterizou meu itinerário inicial foi que me senti, não histo­
a anatomia elas sociedades, e o desgosto das teorizações apressadas, das riador, e sim geógrafo. O que me interessava era o mundo atual. Quando
construções 'na moda"'. tinha apenas 13 ou 14 anos, já me perguntava: "O que se passou em
Em segundo lugar, Pierre Vilar tem dialogado incessantemente 1917?" Ora, eram os geógrafos que nos faziam apreender este mundo
com as ciências humanas vizinhas. Confronto, mais que debate ou atual. N·o domínio, hoje muito na moda, da ecologia, Maximilien Sarre 2
polêmica: com uma inabalável vontade de compreender, mas com uma publicara trabalhos importantes sobre as relações entre o homem e a terra,
prcucupaçf1 0 de rigor na crítica, Pierre Vilar, _atento às grandes ob ra s de isto é, as relações técnicas e sua evolução, desde que, com a agricultura,
seu tempo (Keynes, Schumpctcr, Rostow, ·c. Clark, Aron, Ricocur, a humanidade teve início. Eram também os geógrafos que nos apresen­
Poucault, Althusscr. .. ), tem se mostrado hostil a qualquer csqucma­ tavam o território - dividido cm p::iíscs, cad::i um com suas características

1
tização, a qualquer especialização abusiva, bem como a qualquer redu­ próprias - no começo do livro de Marc Bloch sobre a história rural. Todos
ção simplificadora. esses problemas me pareciam fundamentais. Ora, os historiadores come­
Enfim, Pierre Vilar é um observador agudo ele seu tempo. Em çaram a abordá-los enquanto, pcssoaimentc, cu ainda estudava geografia.
Barcelona, cm julho de J936, quando chega a notícia do levante militar cio Assim, fui incitado a ver uma história diferente da que se fazia, graças,
general Pranco, um de seus colegas, possuído "de paixão exclusiva pela especialmente, aos histciadorcs ela Antiguidade, na Sorbo11t1e, como
Espanha exclusiva e tradicional", lhe �1firma:."É uma questão de três dias". Gustave Bloch, ou mesmo Jérômc Carcopino, que nos davam a impressão
"Nesse momento, testemunha Vilar, uma gargalhada inesperada, bastante de se interessar pelo conjunto desses problemas, cm particular pelas
insolente, nos surpreendeu. Tínhamos esquecido a presença, a poucos passos relações entre o homem e a terra, ou entre o homem e a técnica.
de nós, da ama ele meu filho, uma galega analfabct.1, totalmente indiferente No fim de J 929, no momento exato cm que cu saía como geógrafo
à política, e que no entanto acompanhara avidamente nossas palavras. Era, da École normale Supérieure - onde começara rncus trabalhos como
diante do evento, a instintiva reação popular: 'Ah! Eles pensam nos vencer geógrafo-, foi publicado o primeiro número elas Annales. Ficamos muito
cm três dias? Pois bem, eles vão ver!' Assim intervinham, cm julho ele entusiasmados. Na equipe elas An11nies, havia numerosos geógrafos: Jules
1936, nos dois extremos da sociedade espanhola, as paixões e os interesses Sion, Albert Dernangeon, até certo ponto Raoul Blanchard 3. Sentimo-nos
de classe". Deste modo, o presente vem modificar permanentemente as então familiares com a visão geográfica das coisas, e ao mesmo tempo
questões dos historiadores, obrigando-os a um procedimento retrospectivo com a visão histórica.
que os leva do conhecido para o desconhecido, que os faz descobrirem Foi então que, para meu próprio trabalho, fui a Barcelona. Queria
mi.;danças e continuidades... Essa curiosidade renovada nunca é gratuita: estudar uma questão que podia parecer banal: como se instalou uma indús­
o fato é que a compreensão exigente do presente é inseparável cio conhe­ tria têxtil nos vales descéndentcs ao redor de Barcelona? Esbarrei com um
cimento do passado. "Nenhum de meus trabalhos sobre o pass;1do espanhol, problema que absolutamente não esperava, para o qual não estava prepa­
mesmo muito distante, observava ele rcccntcmcntc, me pareceu estranho ;1 rado: o nacionalismo catalão. Quando, uns trinta e cinco anos mais tarde,

l
apreensão cio presente". publiquei Ln Ca1nlog11e, cm 1962, alguns, entre os quais Pcrnancl Braudcl,
274 PASSADOS RECOMPOSTOS
Tescemunlio 275
pensaram que cu me havia interessado pelo problema catalão por ser catalão
tínhamos formado o qué'sc chamava então um "soviet"; éramos quatro,
- de fato, nasci cm Frontignan, no Hérault. Braudcl - e isto me lisonjeava
Henri-Irénéc Marrou, Alphon_sc Dupront, Jean Bruhat e cu mesmo, pe:-­
- me comparava a Lucicn Pcbvrc e sua paixão pela Franchc-Comté, ou a
sonalidadcs e interesses muito diferentes: Bruhat, comunista militante e
Henri Pircnnc e seu interesse pela Bélgica. Comigo deu-se o contrário: foi
especialista do movimento operário, Dupront, um dos construtores de uma
por não ser catalüo que fui impressionado pelo catalanismo. Eu fo ra à
história do sagrado coletivo, Marrou, católico, historiador talentoso de
Catalunha para propor um problema quase puramente econômico, e perce­
santo Agostinho e da Antiguidade tardia. Tínhamos organizado isso de
bera que isso me levava a propor um problema nacional.
maneira inabitual. Cada um de nós devia expor, não a questão que co­
Com efeito, a primeira coisa que as pessoas me diziam, fossem elas
nhecia melhor, mas a que dominava menos, c;abcndo aos que a conheciam
da classe ;!ta ou camponeses ou operários, era: nós somos catalães. Isso
bem corrigir, adaptar a exposição. Assim, me aconteceu trabalhar, durante
me impressionou, e cu comecei a me questionar sobre um problema que,
três ou quatro semanas, na questão do Sacerdócio e do Império, sob o
evidentemente, não era geográfico. Era econômico? Até certo ponto. Ao
olhar vigilante de Hcnri-Irénéc Marrou e ele Alphonsc Dupront, o que
estudar a indústria catalã, cu tinha visto e entr'cvistado pcs_soas que liga­
constitui uma lembrança francamente original... Portanto, a história não
vam o fato industrial ao fato catalüo: porque nós somos os ún!cos indus­
me era totalmente estranha.
triais da Espanha, diziam eles, a Espanha nos olha de certa �aneira, nós
Uma vez em Barcelona, descobri rapidamente a necessidade de não
olhamos ;:: Espanh� de outra ;-;iancira. Mas cnt;'io, esse fenômeno catalão,
falar de modo muito vago de questões econômicas. A Catalunha possuía
desde quando existe? Desde 1910, com a publicaçüo de um =Jivro funda­
ur.::i indt;:;tria no século XVIII. Esta era documentada por arquivos ex­
mental, La Nacionalitat catala,w, ele Prat ele la Riba? Desde 1906, data
tremamente precisos, como livros de contas que registravam escrupulo­
do primeiro congresso da língua catalã - era minha data de nascimento,
samente, por exemplo, os salários. Foi nesse momento que descobri Ernest
por conseguinte isso me divertia? Ou então desde 1892, com as Bases de
Labroussc 4 , depois François Simiand (por intermédio de Labroussc)5,
Manresa, isto é, a primeira formulaçüo política do catalanismo? Foi assim,
Earl J. Hamilton 6, que trabalhava na questão dos preços na Espanha desde
remontando cada vez mais longe no passado, que, finalmente, me tornei
0 século XVI, e mesmo antes. Encontrava-me então diante de outra
historiador, e pratiquei o que sempre chamo, cm duas palavras, de história
necessidade imprevista, a d� fazer a estatística intcrvir
_ na história, o que
retrospectiva. Isso me permitia voltar atrás, contanto que nunca esqueces­
também me pareceu essencial.
se as condicõcs materiais, geográficas de um lado, e técnicas do outro;
Lembro-me de ter cli�r:utido sobre tudo isso com um homem que
era possível então colocar outras questões, como questões de língua, de
desempenhou um papel político na Espanha, Carlos Pi Sunycr, que foi
colonização etc. A partir de certo momento, não vi mais que uma única
sucessivamente secretário ela federação têxtil, dcp�is, com a República,
ciência. Nesse sentido, as Annales tinham inaugurado muita coisa: ocu­
prefeito de Barcelona, deputado, enfim ministro, um dos grandes perso­
par-se ao mesmo tempo das condições materiais, geográficas e técnicas
nagens durante a Guerra Civil. Por interesse, ele escrevera livros de
elas coisas, observar em que medida essas condições intervêm na orga­
história econômica, sem dúv.icla fragmentários, porém excelentes. Quan­
nização social e, a partir dn organização social, ver surgirem fenômenos
do, muito mais tarde, o reencontrei, cm Caraeas, confidenciou-me que
políticos, fenômenos de poder, fenômenos de nacionalidade... com a con­
meu livro lhe revelara a possibilidade de falar ele economia em relação
dição, bem-entendido, de só tratar disso tudo cm conjunto. 13cm sei que
aos séculos passados, de ligar a economia i:1 geografia, como as relações
é um pouco ambicioso querer fazer da história uma ciência universal, mas
entre a terra e as instalações humanas, as questões hidráulicas, sobretudo
foi assim mesmo. que cu a concebi inicialmente.
de tomar essas questões como um todo. Foram esse desvio pela economia
i

Uma vez que, parti,ulo de interrogações geográfi;;as, o senhor 1


e minha posição de estr�ngciro que me levaram a colocar os problemas
encontrou a história, quais foram seus guias nesse caminho inesperado?
de maneira diferente daquela como os catalães tinham o hábito de tratá­
Gostaria de esclarecer. Quando cu estava na École norma/e, fre­
los. Um catalão, que mais tarde foi ministro da Saúde na Espanha, gostava

1
qüentava muito os historiadores. No tempo da preparação da agrégarion,
de fazer alusão à primeira aula minha que ouvira na École des l,a11tes

J
,ir:1·
1,:,·
i· t
'i
276 PASSADOS RECOMrosros

ét!tdes; muitos jovens catalães assistiam a minhas conferências porque


·--�·
·>�7 ,�·
·�;�- ·-�---�.--
. \·;
,�.{.1�-
'-+�
- .1 -·� _.,.. ..,.__, -.
- ---=-·- -�,!' :-.,.

Testemunho 277

Apesar disso, não me parece rer havido tanto debate. Febvre, depois
nelas eu tratava de questões que era impossível examinar na Espanha, Braudel, nunca participavam dos grandes congressos internacionais.
então cm pleno franquismo: ele ficara estupefato. Esperava por certas Labrousse, que, ao contrário, representava um grande papel nesses con­
análises sobre a nação, pelo processo da Espanha, ou por afirmações gressos, não pertencia realmente à "escola das Amzales"; sem dúvida, ele
marxistas. Ora, cu estava estudando as contas, entre 1720 e 1734, de uma e,
colaborava, mas ficava à pai::te nos congressos, nunca o vi discutir esses
propriedade catalã cuja contabilidade havia sido encontrada. Não me problemas. Bem entendido, sempre havia historiadores que procuravam
associo totalmente à crítica um tanto dura que rebvre fazia da história pensar de modo mais amplo que o cantinho de que se ocupavam. Refiro­
à maneir� de Seignobos, porque ninguém jamais escreveu história pura­ me a A. Dupront, que tratou de "História e psicanálise", depois de
mente política e diplomática. Mas é verdade que, para muitos, a história "História e linguagem " 9; mas Dupront também não era um homem das
é a política, as relações diplomáticas e os fatos militares. O que a tese Annales. Ele estava à parte, não estava em contradição.
de Raymond Aron veio confirmar cm I 93� 7: a história, dizia Aron, Talvez o senhor queira se referir a algumas discussões como aquela
consiste cm restituir a imprevisibilidade das coisas, como na política no sobre o "feudalismo". Para definir o regime feudal,_ eu tinha reunido um
momento atual. Eu creio que é justamente o inverso: é vcr�adc que não dia, em meu seminário da École des hautes études, Ernest Labrousse,
podemos saber o que vai se passar, diplomática ou politicamente, nos dois Roland Mousnier w, Don Claudio Sanchez Albornoz JJ e Boris Porchnev 12;
próximos meses, mas o historiador, porque já sabe como isso acaba, pod�, saímos sem saber o que era o regime feudal, mas foi extremamente inte­
ao contrário, explicar porque as coisas evoluem desta ou daquela maneira. ressante. Para Don Claudio, medievalista dos períodos antigos, o regime
É por isso que eu sempre fui o anti-Aron por excelência. feudal era antes de tudo um fato jurídico; para Mousnier, à dimensão
O historiador deve saber distinguir o que há de acaso e o que há jurídica vinha necessariamente se ácrescentar a dimensão social, a da
de necessidade. O problema havia sido posto pelos dois livros de Pierre sociedade de ordens; para Labrousse, que se interessava pelo século XVIII
Vendryes 8• Ele tomava o exemplo da destruição da esquadra de Bonaparte na França, era preciso atentar para a articulação clero-nobreza-terceiro
cm Abukir por uma tempestade. Ora, cu não penso que a França e a estado; para Porchncv, que tinha estudado as revoltas populares do século
Europa teriam evoluído de uma maneira tão diferente se a esquadra de XVII, o feudalismo devia ser ligado a fenômenos úgrários muito precisos.
Bonaparte não tivesse sido destruída. É absurdo fazer do acontecimento Se a discussão tinha uma aparência teórica, resultava, no fim de contas, que
algo que desencadeia coisas importantes. eles não estavam cm desacordo: era uma questão de vocabulário ou de
perspectiva, e não um verdadeiro debate. Para Labrousse, a "crise [econô­
As condições do trabalho histórico mica] do tipo antigo" não podia ser exatamente a mesma no século XVIII
Durante sua vida, em várias ocasiões, o senhor afirmou su�s e no século XIX: não existia mais dízimo nem direitos senhoriais; no
posições e suas convicções. Quais foram, na sua opiniiío, os grandes entanto, as revoltas que ela podia oc�sionar eram muito próximas, sempre
debates que animaram os historiadores? que a circulação dos cereais encontrava algumas dificuldades e os insurretos
Não sei se a palavra "debate" convém realmente. Sem dúvida, o responsabilizavam o governo pela carestia... A discussão tomava um aspec­
aparecimento da escola das Amwles - não gosto do termo, porque penso que to político, mas não tocava muitos pontos fundame_ntais.
jamais houve "escola" no sentido preciso da palavra - havia produzido um Penso que foi só depois de 1960-1970, talvez um pouco ·depois de
pouco o efeito de uma bomba no meio dos historiadores. Núo de todos, pois 1968 - uma data simbólica - que o debate se abriu, após um abandono do
um historiador da arte como !lcnri Focillon, por exemplo, já prnticava uma qual a École des lzautes études foi o teatro. A VI seção da École pratique
história que encarava os fenômenos cm seu conjunto. Mas havia ainda todos des hautes études, escola· criada no Segundo Império por V. Duruy, nunca
aqueles para quem a his�ória era a sucessão dos ministérios ou as causas se tinha constituído: os juristas e os economistas, que poderiam tê-la cons­
imediatas da guerra de 1914. Saber, por exemplo, se a imprensa francesa tinha tituído, não se ·interessavam pela pesquisa e pela reflexão teóricas. Fcbvre,
sido comprada pela diplomacia russa. Esses tentavam �esistir, com vigor. vendo aí uma espécie de vazio, julgou que cabia aos historiadores estruturar
., . ..._, ....., -�·"'t:!..-.--·· ...�.--.. -,.':'_.. -.... , •.

2 78 pASSADOS RECOMPOS'fO? . Testemunho 279

as ciências humanas e sociais cercando-se de etnólogos, psicólogos, lingüis­ luz... Não é uma escola que se forma então - eu não gosto desíí:. palavra,
tas etc. Assim, os historiadores não ignorMiam essas ciências, que lhes são como não gosto do termo "escola das Annales". Muito simplesmente, os
necessárias, e estas, por sua vez, adquiririam um pouco de espírito histórico. historiadores se encontram entre· si segundo as necessidades que eles
Desse projeto intelectual nasceu, em 1947, a VI seção. A concepção de . próprios sentem. Já faz quinze ou vinte anos que eu não freqüento mais
Febvre se manteve, penso cu, durante uns bons vinte anos. Entrei nela em assiduamente a comunidade dos historiadores. Antes, meu grupo de tra­
1951- dois anos após ter sido expulso da Espanha-, ao mesmo tempo que balho foi ao mesmo temp() a École des hautes études, de Lucien Febvre,
Jean Meuvret e Charles Bettclheirr., e, por iniciativa de Lucien Febvre, �l e a escola que chamarei, por exemplo, "Estrutura/conjuntura", em torno
Fcrnand Braudel, Erncst Labrousse e Georges Lcfcbvre. Éramos então vinte de E. Labrousse. Naquele momento, éramos suficientemente compactos
ou trinta, e 'tínhamos a impressão de estar criando algo. Mas a partir de certo j e produtivos para que todo mundo pudesse compreender de que se tratava.
momento, as ciências humanas e sociais vizinhas ganharam tanta importân­ 'i Desde então, tornou-se extremamente fragmentado.
1
cia que, finalmente - sobretudo a partir da prçsidência de um não-histo­ l O senhor pensa que pessoas como Febvre, de um lado, e Labrousse,
riador, Marc Augé, um grande etnólogo, para quem a história é provavel­ do outro, nos anos 50-60, propuseram um modelo de trabalho que do­
mente a menos segura, a menos científica das ciências sociais .·-, a École minou além de nossas fronteiras e ajudaram a u_nificar o trabalho his­
se tornou uma espécie de enciclopédia das ciências sociais em sua totali­ tórico, em escala internacional?
dade, onde a história não teve mais papel de direção, nem como ensinada _Nisso estou inteiramente de acordo. Exprimirei apenas uma reser­
nem como ensinante. Isso, � claro, não está desprovido de sentido: significa _va: F�bvrc ou Labrousse não devem ser vis t os simplesmente como
· que, na evolução das l::�ncias sociais, e mesmo cm geral, a história não tem homens que exerciam uma dominação sobre estruturas, digamos, mate­
absolutamente mais o sentido de diretriz, ou de síntese, que, por exemplo, riais ou universitárias.
Lucien Febvre quisera lhe dar. Insistirei noutra coisa: as pessoas se agrupavam em tomo deles, não
Talvez os grandes debates se desenvolvessem nos congressos his­ porque eles estivcsse1n na moda, mas porque - permita-me um pastichc
tóricos internacionais, onde se enfrentavam sistemas ou escolas? de De Gaulle - nós tínhamos uma certa idéia da história. Era isso· que,
Nos congressos, eu nunca percebi realmente escolas, nem mesmo apesar das diferenças consi�eráveis que podiam existir entre pessoas
escolas nacionais. Nosso método consistia sobretudo cm propor grandes como J. Meuvrct, P. Goubert ou cu próprio, fazia a solidez de nosso grupo,
questões. Eu acompanhei, cm geral, os grandes debates sobre as nacio­ que constituía uma verdadeira comunidade de trabalho, unida pela mesma
nalidades. As longas apresentações dos congressos são muito instrutivas, concepção da história.
mesmo para os estudantes, porque nelas as pessoas explicavam o que
tinham procurado, o que quiseram fazer, examinavam as objeções que O historiador e o aconteciménto
tinham sido feitas... Além disso, a cada cinco ou. dez anos, esses congres­ O senhor desconfia dos "aco,�tecimentos". No elltallto, um certo
sos oforeciam atualizações neste ou naquele domínio. Mais que uma número de acontecimelltos importantes não imprimiram uma marca
comur,idac!e intcm.icional de historiadores, existiam reagrupamentos por profunda em sua vida de homem e de historiador?
especialidades, freqüentemente em torno de grandes especialistas, que É evidente; é impossível, sobretudo quando se é historiador, não
todos nós admirávamos. É certo que o papel representado por um Hamil­ sentir os "acontecimentos". Coloco a palavra entre_ aspas porque, é óbvio,
ton no domínio da história dos preços ou da história da Espanha foi os acontecimentos são de dimensão muito diferente. Ter vivido na Espanha
considerável. Os laços que podíamos manter ficavam r.-.uito individuais. - num país que não era o meu e onde, por conseguinte, eu podia observar
É aí que ap�rece a situação muito paradoxal do historiador. É os acontecimentos com certa distância - durante a República, ter vivido
· certamente um trabalhador solitário. Mas não é mais solitário na medida a preparação da Guerra Civil- deixei a Espanha desde os primeiros dias
em que se interessa por Uf!la questão: um certo número de pessoas se do conflito -, tudo isso não podia deixar-me indiferente. Ainda mais
reagrupam então, cm torno dessa questão, cm torno daquele que traz certa porque eu via chegar os outros grandes acontecimentos que levaram à
... ., ,.,_. ....... ·�:-: .,

280 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunhá 281

Guerra Mundial. Não seríamos historiadores se não formulássemos para meus companheiros: quando eu lhes falava da Espanha, alguns se 'ínte­
nós mesmos as perguntas suscitadas precisamente pelos grandes "acon­ ressavam pelo aspecto pitoresco; outros perguntavam: "Afinal, o que se
tecimentos", os que abalam as condições gerais de uma nação, de um passou na Espanha enquanto você lá escava?"; outros enfim gostavam de
continente ou do mundo. .i
pensar que a Espanha tinha sido um grande país católico, ou mn grande
O cativeiro também me tornou muito sensível aos acontecimentos; país de colonização. -Em lugar de ter como interlocutores estudantes -
foi um período durante o qual vivemos m, J.contecimentos dia a dia. Eu espíritos jovens -, como quando estava no ensino secundário, ou especia­
estava em Nurembcrg; gozávamos lá de uma espécie de quase-liberalis­ listas, como quando estava em ambientes de historiadores ou de geógrafos,
mo, pois_� os Alemães se julgavam definitivamente vitoriosos. Tinham eu descobria as curiosidades, os interesses de pess�as de todas as catego­
reunido 10.000 oficiais de todas as nações. Quando a guerra começou no rias. Isso constituiu uma verdadeira lição.
Leste, fomos transferidos, porque começavam a chegar prisioneiros. .Depois da Segunda Guerra Mundial, o que foi que marcou sua
Prisioneiros: isto significa, neste caso, mull�eres, crianças, velhos que reflexão de historiador?
morriam em torno de nós. Fomos então instalados na Polônia, não muito Evidentemente, tivemos a impressão de que o mundo se dividia
longe de Dantzig; depois, bruscamente, por acaso, cu fui trqnsferido para em dois: procuravam mostrar-nos face a face dois mundos que se des­
o Tirol. Mais tarde, quando a guerra atingiu a Itália, e a frente de batalha truiriam reciprocamente, de um lado o comunismo, de outro - não se
subiu novamente para o norte, fomos deslocados do Tirol até o meio da dizia o capJtalismo, pois ninguém procurava pensar o fenômeno com
Áustria; enfim, quando a Hungria começou a ser invadida, fomos envia­ . esse nome:.._ o Ocidente, o fenômeno ocidenta!, a civi!ização ocidental...
dos para Hamiovcr. Devo di�cr que, se jamais seguimos os acontecimen­ Confesso que isso me irritava um pouco. É evidente que nós víamos,
tos, foi certamente nesse momento, ·porque deles dependia nosso destino. nesse momento, tudo que fora apostado, antes da guerra, nessa divisão
F. Braudel declarou que, durante seu cativeiro, sua concepctio da entre um mundo comunista e um mundo não comunista, todos os dramas

j "longa duraçiio" o ajudou, contra as dificuldades do presente, a conservar


a esperança 110 jilluro: os acomecimelllos eram apenas a superfície e11ga-
que isso pudera provocar, pois, até a declaração de guerra de 1939, tudo
repousara, no espírito dos dirigentes ingleses e frànceses, e. de certos
1wsa de uma história que devia levar à derrota de Hi:le,: .. dirigentes americanos, sobre a avaliação do que era, ou não era, pro­
Também estou de acordo. A história n.ão pode se desenvolver sem veitoso para a União Soviética. De tanto colocar a questão nesses ter­
a estabilidade a muito longo prazo de um certo número de fatores. Somente, mos, tinham acabado por nos arrastar num face a face com Hitler.
a "longa duração" é uma realidade variável, e o resultado depende do tempo Mussolini, e toda a Europa· simpatizante do fascismo ... Tendo vivido
que as pessoas lhe concedem. Na escala humana, isto é, para si mesmo, isso, eu me perguntava para que dramas - até o af_rontamento atômico?
só se pode, obviamente, contar com os acontecimentos. Se, ao contrário, - este mundo doravante dividido cm dois nos arrastaria.
se procura considerar o destino da humanidade, é coisa bem diferente. A descolonizaçlio desempenhoú �1111 papel importante em sua reflexão?
De fato, o cativeiro me permitiu desenvolver minha reflexão sobre Sim e não. Confesso que não esperava por ela. Mas, ao mesmo
a história er.quanto disc:plina. De duas maneiras. ·uma, confrontando-me tempo, pareceu-me tão importante quanto os fenômenos revolucionários.
com a história tal como ela era vista por meus companheiros de cativeiro, Andei pensando nisso nestes últimos tempos, porque se tem falado muito
que representavam uma boa parte da sociedade francesa, dos professores na desintegração do império soviético. Se, nos anos 1925-1930, a nós,
primários até os grandes aristocratas, ou aos maiores financistas - pode­ alunos de Dcmangeon, especialista do império britânico, a n�s, testemu­
se dizer as classes dirigentes?-, com exclusão das classes popdares, visto nhas da Exposição colonial de Paris de 1931, tivessem dito: "Daqui a
que se tratava de um campo de oficiais. Outra, ensinando a meus compa­ trinta anos, não haverá niais nem império francês nem império britânico",
nheiros. Com efeito, cad.( um procurava ensinar aquilo e�n que se sentia teríamos todos dado uma gargalhada. E, no entanto, foi o que se passou.
mais sólido. Tive, por exemplo, uma aula de Georges Vedei sobre o direito A descolonização foi para mim uma espécie de boa surpresa, mas tam­
internacional. O cativeiro me mostrou assim aquilo por q_ue se interessavam bém, muito rapidamente, uma grande decepção. Porque a colonização, e
282 PASSADOS RECOMPOSTOS Tescemunlto 283

a descolonização, foram fracassos. Se o senhor olha para a África, só há -­ sentimentos. Entretanto, cu não estava contra: havíamos redigido, com
Estados que não se sustentam, nações que não se constituem. A América Albert Soboul e Jacques Drnz, um artigo, que não foi publicado, para
Latina, outro conjunto descolonizado - não esqueçamos -, conhece as protestar contra um artigo de Raymond Aron cm Le Figaro, que se diria
mesmas dificuldades. Mesmo as nações que lutaram à maneira do Vietnã redigido pelo pere Gillcnormand ele Os Miserâveis, um burguês legitimista
não conseguem se constituir economicamente. Tudo isso é dcccpcionantc. transtornado ao ver construir barricadas. Sem dúvida, se tivéssemos que
Veja a incapacidade da Argélia, por exemplo, cm se constituir numa escolher o campo, estaríamos cio lado dos estudantes, mas sustentávamos,
verdadeira nação moclcrn:i, ou aquilo que se passa no Oriente Médio. ao mesmo tempo, que eles não sabiam o que estavam fazendo. O perigo
Efetivamente, a descolonização desempenhou um papel considerável na é um pensamento revolucionário que se transfC'rma em mística revoluci­
evolução ele minha reflexão. onária. Não se deve esquecer que Pol Pot foi formado na Paris de 1968.
Tamanha sensibilidade em relação ao mundo atual levou o senhor Sustentar, por exemplo, que os camponeses são o único valor, e, por
a um engajamento político? conseguinte, suprimir tudo que não é camponês, é totalmente absurdo,
Talvez o senhor fique admirado se eu lhe responder não. Entrctan- mas estava na mentalidade de 1968. E era perigoso.
' Também não penso que a subvcrsiío universitária l,:nha sido posi­
to, cm minha infância, a distinção fundamental em meu. vilarejo era
política, entre os republicanos e os muito raros - os "reacionários" - que tiva. É evidente que não se podia mais conservar a Sorbonnc tal como
não o eram. Pcrtc::nço à mesma geração que Sartre, que via todos os dias, era antigamente. Mas as mudanças foram feitas na maior desordem in­
durante três ano�, quando cu estava na École norn:�le. T;-;c numerosos telectual. No início, quando foi fundada a Universidade de Paris I, cu
amigos comunistas. Participei, cm 1939, ela criaçiío de La Pensée, revista fiquei muito feliz cm me encontrar ao lado eles ccon0mistas e dos s0ci6-
cio Partido Comunista, mas que pretendia ter uma visão um tanto ampla logos. Íamos finalmente trabalhar juntos. Mas isso só durou três sessões;
das coisas. Mas nunca tive a idéia de fazer política, pois sempre estive em seguida, cada um voltou para sua faculdade. Ouvi até dizer - com
convencido de que um homem político é de foto impotente, e não pode reserva: não verifiquei, mas não me cspantari.\ - que Raymond Barre
realmente agir sobre as coisas. proibia seus estudantes de irem ao curso de h;stória ·econômica, com o
Permita-me uma curiosidade: o senhor disse recentemente que pretexto de que não conhecíamos nada ele economia. Nós tínhamos na­
1968, do ponto de vista universitrírio, tinha sido uma catástrofe. Entre­ turalmente muitas razões para lhe dizer que ele não conhecia nada de
tanto, o senhor nâo é um historiador i11sensível às revoltas e aos movi­ hü;tória, mas eu teria preferido dizer que tinha havido algumas reuniões
mentos sociais. que nos tinham dado algumas ilusões. Em determinado momento, profes­
• sores de ciências, de literatura e de história tinham resolvido lançar cm

1
Achei, precisamente, que maio ele 68 era uma deformação do ima­
ginário rcvolucionúrio. Eu tinha sucedido a Labrousse na cadeira ele comum um programa de pesquisa sobre a noçiío ele· limiar: a noção de
história econômica na Sorbonne cm 1965. Lembro-me ele uma discussão limiar nas ciências, a noção de limiar na história, a noção de limiar cm
com Dupront, que me divertiu. Foi durante os acontecimentos; os profes­ sociologia; era fascinante. Isso nunca deu em nada, pois é raro que a�
sores da Sorbonne cstavum reunidos no Instituto de história ela arte, na pessoas queiram realmente fazer um esforço de síntese.
ruc Michclci, e Oupront me disse: "Enfim ! Você não vai me dizer que
não há um complô atrás disso. A estes jovens, ensinaram-lhes a fazer 1 A ambição da roralidade
barricadas". Eu disse: "Não. Não vou lhe dizer que leram Lcs Misé ra bles O se11hor é, 110 entanto, 11111 dos historiadores que tiveram o cui­
(Os Miseráveis], porque o livro é lido cada vez menos, n'rns basta que dado de manter relações com as discipli11as vizi11has, de discutir com
tenham visto uma elas três ou quatro versões cinematográficas". ·Com elas. O senhor leu muito cedo Paul Ricoew; debateu com Raymond Aron,
efeito, havia nisso tudo um pouco dessa espécie de romantismo. Acima dialogou com /lltlwsser, reagiu a certas publicações de Michel Foucault
de tudo, o que me incomodava era um pensamento falsamente revoluci­ - em particulr!r Lcs Mots ct lcs choscs [As palavras e as coisasjl.1. Por
onário, um pensamento de intelectual que fabricava para si idéias ou · que o senhor julgava i111porta11le i111cr vir nessas discussões?
·11_i1f,
1� 1

:I�
284 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunho 285

Quando cu lia os historiadores, a maioria, p·arecc-me, tinha reagido Eu reajo muito mal. É pena ver historiadores, formados numa
positivamente naquele momento à lição das Amzales, e os historiadores disciplina que quer levar cm conta todos os fatores, não se interessarem
do puro acontecimento eram considerados historiadores sem grande im­ mais senão por um, quando muito por dois dos fatores. Estou pensando,
portância. Em compensação, permitiam-se falar em história pessoas que por exemplo, cm Jean-Claude Perrot, autor de um trabalho admirável de
jamais a tinham estudado. Eu constatava que Aron falava de história como história total sobre Caen, o qual, por um período determinado - aqui, o
dela falavam os filósofos e os sociólogos alemães dos anos 1880-1900. século XVIII - leva tudo em consideração, desde o �!emento demográfico,
l
Constatava que Althusser dizia: "Marx inventou o continente história.,, .1 o campo, até tudo que resta da Idade Média através dos conventos, mas
sem se pe�guntar: "Como os historiadores escutaram esta lição?"· Em também tudo que pode haver de novo através das sociedades de pensa­

.J .
particular, eu o acusava de falar sobre história tendo simplesmente citado mento etc. Certamente, compreendo que, depois de trabalhar como fizera,
Febvre, Labrousse e Braudel entre aspas, como pessoas de quem talvez ele possa ter tido algumas dúvidas sobre essa "totalidade" que queriam
fosse conveniente falar. Tudo isso me parecia. muito superficial.
Quanto a Foucault, trata-se de outra coisa. Ele chamou atenção para
l impor-lhe. Todavia, depois dessa leitura, cu sei verdadeiramente o que era
então uma cidade francesa, em sua complexidade. Sei que não posso
coisas de extrema importância como crimes e castigos ,. loucura e qualificá-la simplesmente por essa execução sensacional com cantos
internação, regras sociais e vida sexual...; quando quis, em seguida, estudá­ religiosos, que parece nos levar de volta ao século XIV, porque sei que
las historicamente, debruço�-se sobre textos. Quando os textos não dizi­ havia também, ao lado disso, numerosos elementos de mudança. Ora,
am o que ele tinha vontade de ouvir, então não os tomava wdos, f;1"lia J�an-Claudc Pcrrot se interessa agora pelo nascimento da economia
suas seleções. Para dizer a verdade, não creio que ele tenh� tratado como matemática: problema fascinante mas, ao mesmo tempo, extremamente
um verdadeiro historiador as excelentes questões que propôs. Não penso, restrito. Esta especialização me preocupa. Aliás, esta evolução tem estado
tampouco, f!Ue o historiador possa propor essas questões como simples no centro de minhas preocupações há vários anos, e cu venho anotando
problemas, separados dos conjuntos históricos nos quais se inserem, como uma quantidade de reflexões a esse propósito. Recentemente, na última
aquela execução cm Caen, por volta de 1760, descrita por Jean-Claude ve� em que participei de uma reunião na École des lzautes études, tínha­
Pcrrot 1 4, cm que o homem que está sendo submetido ao suplício da roda mos peJido a Jacques Le Goff uma intervenção sobre um tema impor­
canta o Veni creator ao mesmo tempo cm que.a multidão. E isso, apenas tante: o exemplo e a generalização. Ou seja: quando um medievalista
trinta anos antes que a Revolução Francesa inventasse, por sua vez, a estuda uma aldeia, ele está descrevendo o sistema feudal? J. Le Goff
guilhotina. Em suma, uma medida de eutanásia, que substitui os suplícios apresentou seu trabalho sobre a biografia de São Luís. Para explicar suas
de todas as espécies por uma morte brutal. Como estudar esse gênero de intenções, ele nos pintou um verdadeiro quadro, que �u chamo de histó­
problemas sem recolocá-los no conjunto histórico que os propõe? Mas ria total: eis um rei que é ao mesmo tempo o rei menino, o rei justiceiro,
Foucault agia de modo diferente: indicava inicialmente como propunha o rei cruzado etc. Mas ele rejeitou logo a expressão de história total
o problema, depois, através de alguns textos, partia em busca de algumas porque, na opinião dele, esta se contentaria em adicionar várias histó­
indicações. Não creio que fosse o bom método.
Através de sua polêmica com Foucault, o se�ihor propõe, de fato,
duas questões diferentes. Uma, clássica, de método: o rigor 11a seleção
i1
rias. Aí, cu não estou mais de acordo: não se adiciona, combina-se, o
que é totalmente diferente da história praticada por Ernest Lavisse. Em
sua Histoire de France [História da França], publicada no i-;omeço do
1

dos documelltos, e em sua leiwra. A outra, mais ampla e mais debatida, século, Lavisse acrescentava, depois de desenvolvimentos essencial­
referente a sua concepçiio da pesquisa histórica: a impossibilidade de mente factuais e políticos, um capítulo sobre a economia, depois sobre
uma história que não "global". Como o senhor considera a evolução as artes, e assim por diante: É isto a história adicional, que esquece que
das pesquisas J,istóricas que, nos zíltimos vime anos, privilegiaram a a história é um conjunto, no interior do qual há interconexões contínuas.
especialização, as sondagens setoriais, collfrariando o que o senhor É bem verdade que um historiador, atualmente, não pode pretender
sempre defendeu? rlnminar todas as especialidades necessárias, como a psicanálise ou n
••. _: '"'. <r:""".· � ,. '"�----- --:.�, - -�. 4 '•"' ..,

286 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunho 287


i!
J
.T
econo:-;.,1ia matemática Mas, de qualquer maneira, se ignorarmos a reali­ num carro de bois, enquanto agora a mais simples diarista ou enfermeira
dade em seu conju_nto, sobre quê elas nos esclarecerão? Sobre absoluta­ chega ao mesmo lugar em seu carro, e mesmo, muitas vezes, com seu
i: mente nada. Isso é extremamente grave. Prefiro um historiador que con­ celular. Nem tudo muda, pois, no mesmo ritmo, e a diferença entre esses
j
fesse não se sentir competente para fazer a análise psicanalítica de certo ritmos é essencial para o historiador. Aí, os problemas técnicos são fun­
personagem ou, o que seria muito mais importante, de certo fenômeno damen.tais. Braudel, que perdia freqüentemente suas fichas, me pedira várias
'f coletivo. Pode-se, é certo, tentar a psicanálise de Hitler, mas é daquela de vezes uma frase muito forte de Marx, que hoje cu seria incapaz de relembrar.
todos os que o seguiram que precisaríamos. Por isso, mesmo que não Em compensação, lcmbro-me·da breve alocução de Engels junto ao túmulo
domine solidamente as diferentes ciências humanas, bastam ao historiador, de Marx, que menciona o seguinte fato: pela primeira vez, conseguiu-se
;:j que sabe manejar os textos, a cronologia etc., algumas indicações tomadas transmitir a longa distância a energia elétrica 15• Com tudo que se passou
l rias ciências humanas, para conduzir uma análise que os especialistas desses
,: ne;itcs 109 anos, bem sabemos que são as invenções técnicas que subvertem
i'
,1
domínios -não podem conduzir historicamente �e maneira satisfatória. nosso mundo. Apenas, essas mesmas invenções estão nas mãüs de uns, e
Foi esse avanço das especializações que levou ao que é simples- não de outros; devemos, pois, estudar todos os fenômenos sociais que levam
. mente uma constatação, a história em migalhas, quando, em p�terminado esta técnica a ter êxito em certos lugares, ou cm certas disciplinas, ou cm
momento, nos tinham feito esperar que o historiador seria aquele que certas práticas, e fracassar em outros.
deveria sintetizar os conhecimentos sobre o homem e sobre a evolução Para pensar essas mudanças, a noção de estruturas sucessivas é
da humanidade. Berr e Febvre deram este títul� a sua grande coleção �ndispensável. Todos os historiadores da primeira metade do século XIX,
histórica: "A evolução da humanidade". É isso, no fundo, que me importa; digamos, antes de lé:70- 1875, a utilizaram, Guizot, Augustin T hierry... Não
é diferente, por exemplo, de pesquisar sobre o devir do catolicismo entre foi Marx quem a inventou. Para eles, não havia dúvida de que uma socie­
os séculos XIII e XIX. O estudo da evolução de um fenômeno, entre duas

l
dade moderna sucedera a uma sociedade feudal, um� sociedade de classes
datas, esclarece sem dúvida muita coisa, mas não um todo; ora, é o todo a uma sociedade de ordens. Ninguém duvidava de que existira uma socie­
que me interessa. dade antiga, muito avançada do ponto de vista das idéiàs - a cidadania, por
Em sua collcep;ão d�sta história total, existem partes da realidade exemplo -, mas que tinha também escravos. Certamente, falar em comu­
que têm mais importâllcia que outras? nismo primitivo, em cscrnvismo, cm feudalismo, em capitalismo etc., é
Tudo isso é sobretudo uma questão de hierarquia. Por exemplo, eu um pouco esquemático, mas é verdadeiro, e, ouso dizer, todo mundo sabe
não digo que a economia tem mais peso que a psicologia, mas se a eco­ disso. Do mesmo modo que hoje há pessoas que possuem o capital e
nomia não se mexer, a psicologia não se mexerá. Tomemos um exemplo pessoas que trazem o trabalho. Isso me parece tão cvi�ente que não é mais
recente, que se refere à mentalidade do sagrado, cara a A. Dupront. Há uns necessário exprimi-lo, menos ainda analisá-lo.
trinta anos, em minha casa de campo no País Basco, num dia de temporal, A superestrutura, ao contrário,. é uma contribuição de Marx. An­
o granizo destruiu as colheitas; meu vizinho, que é fazendeiro e basco, me tigar.,cnte, quando se fazia uma exposição histórica, mesmo repousando
explicou: é normal, o padre não estava aí na igreja para rezar, tinha saído numa análise de estrutura, começava-se freqüentemente - tomemos o caso
de férias. Na verdade, ele estava ocupado com uma colônia de férias. Vocês do Egito faraônico - por cima dos poderes políticos, pela teologia: Osíris,
têm assim vários conjuntos que se cruzam. A velha crença, multissecular, depois este ou aquele deus, depois o faraó; enfim, embaixo, as pessoas
até mesmo multimilenar, mais importante, é que se deve rezar a Deus; mas que espiam a enchente do Nilo para saber se haverá ou não uma colheita.
a idéia de que o padre é apenas um funcionário que deve cumprir seu dever, Marx inverteu a ordem: devemos partir das milhões Je pessoas que es­
é também uma idéia de Ancien Régime, que se �antém depois da Revo­
2
piam a enchente �o Nilo; por cima delas, um certo número de pessoas
lução. Ao contrário, o padre que sai de férias para cuidar de crianças qu� as organizam; enfim, mais em cima, encontr�mos os que justificam
assinala uma mentalidade totalmente moderna, exterior à do camponês. É o sistema dizendo que depende de Deus. Ou seja, Marx reencontra exa­
preciso mencionar logo que, há trinta anos, subia-se até a casa de campo tamente o que, no século X, dizia Adalbéron, bispo de Laon: há os que
:"'-línit,p:nri,·I.
.

...
,,.,.-..1�;}1"'!•�... ,.. .-,r,· . · . .'.-'?:·
... �·
� � '� -���:} ·:_.:.:.·_, · 1 -.:-
. , . ,:-
- < � �--�'f �;--·
,t:. .
.
288 PASSADOS RECOMPOSTOS Tesremun/10 289
'irr mandam, os que pensam,'.OS que trabalham. É uma fórmula que sempre
,.

:� e não o tinha compreendido"; eu sempre disse: ..Com vinte anos, eu não


valeu, que é estrutural cm toda a humanidade. A simples sucessão dos tinha lido Marx, mas o tinha compreendido". Li bastante cedo o Mani­
reis e dos regimes, isso é que não pode satisfazer o historiador, e que é festo, Salários, preços e lucros, e os textos sobre a Espanha; só li o resto
_
preciso destruir. "�

muito mais tarde. Minha concepção do marxismo, não creio ter necessi­

.i dade de retocá-la, a não ser a idéia que eu podia ter da aplicação do

1
A exp�riência soviética: retrospectiva_ marxismo nesses países. Eles se afirmavam continuamente marxistas,
Os recentes acontccimelltos na Europa Centrai e na Europa do eram politicamente marxistas, e de fato provavelmente não o eram, por­
Leste pode'R levar o senhor a modificar o uso que tem feito do marxismo -l que, se o tivessem sido, teriam feito passar o econômico antes do político.
_
1
em sua profissão de historiador? Pondo de lado as questões morais, as questões de repressão etc., é certo
1 1
Efetivamente, eu acreditei que as estruturas. trazidas pela revolução que, economicamente, �té 195�, tiveram grande êxito no que diz respeito
soviética fossem mais sólidas. Deixei um pouc� de pensar assim a partir à grande produção - segundo concepções próximas das do século XIX -,
do momento em que, tendo ido à União Soviética - é verdade, somente a siderurgia, o petróleo etc. Ora, cu não conheço análises muito boas da
duas vezes,... descobri, ao saltar do avião, que estava cercado.dé pessoas historia soviética - não quero dizer que não existam. C. Bettelheim fez
que eram contra. Havia uma resistência ao sistema, sobretudo nas cama­ estudos parciais muito interessantes: uma revolução não i:letém a luta de
das intelectuais e nas camadas dirigentes. Quando os dirigentes não classes; essas lutas prosseguem, mudam. Certos grupos lutam pela esta­
acri;ditam mais no sistema, é evidente que o sistema está em perigo. Mas biljdade, outros passam para a contra-revolução... O que falta em
que uma contra-revolução intervenha depois de uma revolução, não é a Bettelhcim é o exame das questões cul�urnis, à parte o fato de que não
primeira vez que isso se produz. Meu amigo, o historiador catalão Josep se tem resposta para as grandes questões: o que ia se mudar realmente
Fontana, considera que estamos em 1815, e é verdade. Porque, em 1815, nas estruturas econômicas, nas estruturas sociais,- o que era que se cha­
havia pessoas acreditando que a Revolução Francesa era coisa liquidada. mava "nomenklatura"? Não pode se tratar de uma nova burguesia, pois
Para eles, havia os problemas do rei, da carta etc., mas a hierarquia tal não são pessoas que tenham enriquecido individualmente, que se tenham
como era antes havia sido restabelecida. Lamartine ou Hugo escreviam tornado fortes por sua fortuna individual; sem dúvida, viveram mais
então poemas monárquicos, mas sabemos o que se tornaram quarenta confortavelmente que os outros, mas, quando vemos o desperdício da
anos mais tarde. Devemos olhar para as coisas estritamente do ponto de sociedade capitalista, não podemos pensar que foi isso que poluiu o
vista do historiador. É certo que o que me inquieta há bastante tempo, sistema. Também não é uma nova nobreza, pois o privilégio da
desde que vi o próprio interior do sistema soviético modificar-se, é o "nomenklatura" não é, no conjunto, um privilégio dç posição. Talvez
que se poderia chamar a transição do socialismo ao capitalismo. Ora, fosse hereditário, no sentido em que Bourdieu diz que os filhos dos
infelizmente, ninguém a conhece. Ninguém ataca verdadeiramente os antigos alunos da ENA têm mais chances de entràr para a ENA. De que
problemas da propriedade, vemos se desenvolver um caos inverossímil, se trata então? Eu não tc.1h0 resposta.
onde cada um procura tirar proveito das coisas imediatas. Só resta A agricultura não ioi a grande fraqueza. O Canadá conhecia, por
esperar que isso não produza grandes catástrofes, mas não é certo. Sem ex�·mplo, o mesmo fenômeno de desigualdade das colheitas. Em 1956,
dúvida, neste momento, não há mais ameaça de conflito nuclear, mas os $0Viéticos, que acreditavam estar na frente, declararam que estavam
corremos o risco de que os conflitos interiores alcancem uma extrema na véspera ·da passagem para o comunismo. Foi então que surgiram as
gravidade. f\:1inha vida foi bastante abalada pelas guerras de 1914-1918 grandes dificuldades.
e de 1939-1940; eu gostaria que a de meus netos não o fosse tanto, mas Eis o que eu chamo fazer passar o_político antes do econômico. Não
tenho muito medo por eles. basta dar boas diretrizes p�ra que tudo vá bem. Talvez o trigo fosse menos
Sempre fico embaraçado quando me perguntam se sou marxista. Na importante que no passado, ao passo que teria sido preciso examinar a
época de Althusser, Sartre escreveu: "Com vinte anos, eu tinha lido Marx, questão, por exemplo, do automóvel. !udo isso me deixa, de fato, uma
_
.�ri �i�!
.. � ..
' -

)�f!
290 PASSADOS RECOMPOSTOS Tescemunl-io 291
�'4
·}
grande decepção: a partir de um conjunto de propo�tas socialmente justas, caso, os países muçulmanos - contra a autoridade de Moscou. Não foi
não é possível constituir um grupo de pessoas que possa planejar uma exatamente o que se passou: foi a autoridade de Moscou que se rachou,
economia de maneira racional e progressiva. Não há dúvida de que, durante e se há países que lamentam a perda do sistema, são provavelmente
1
1 o mesmo tempo, as outras cc;onomias tinham progredido mais rapidamente. aqueles que, embora menos desenvolvidos atualmente, mas também na
O que se passa nos países do Leste lhe sugere uma llOVa aborda­ origem, têm a sensação de se terem desenvolvido sob o sistema soviético.
gem dos problemas de nacionalidade? Para a Rússia, é sem dúvida o inverso, e m.tis ainda para os países
Há muitos anos, minhas preocupações se afastaram da economia. Bá)ticos, que tinham aceitado com maior dificuldade d sistema comunista.
Fiz um estudo, o mais sistemático possível, embora muito limitado, sobre
a guerra da Espanha. Acima de tudo, continuei minha reflexão sobre o Qual a formação para um historiador de hoje?
problema nacional, já que devia publicar um livro na coleção européia A partir de sua longa experiência, como o sénhor conceberia hoje
"
dirigida por · Lc Goff. a formação de alguém que se prepara para tornar-se historiador?
Inicialmente, quero ·sublinhar um fato: todo mundo se considera Minha "longa" experiência parou uns quinze anos atrás. Sem
muito bem informado, porque se vêem pessoas que voltam co� algumas dúvida, desde então tenho trabalhado - publiquei um certo número de
seqüências de televisão. É horrivelmente banal,. mas é preciso dizer que estudos ou de obras, principalmente cm re)ação com meus amigos espa­
somos muito mal informados. Tomemos o caso da Iugoslávia: é um país nhóis - mas não tenho mais �companhado as carreiras universitárias. Ora,
que visitei com relativa freqüência, sem me demorar, sobretudo sem conhe­ elas _mudaram enormemente. ·Meu neto está se preparando para lOrnar-sc,
cer-ihe as línguas; já e:m 1930, tínhamos f".ito a excursão dita interuni­ ele também, historiador. Visivelmente, d�pois da licenciatura, teve que
versitária dos geógrafos, sob a direção de E. de Martonne. Sem dúvida, escolher uma especialidade. Não tenho a impres�ão de que lhe tenham
nossa atenção se dirigira sobretudo para fenômenos físicos, pois de dado, salvo durante o preparo da agrégation, o desejo de fazer uma
Martonnc era especialista cm geografia física, mas não era só isso: fora ele história global, que leve em conta todos os fatores e, ao mesmo tempo,
qt1e, na ocasião dos tratados de 1918-1919, demarcara as fronteiras da que não ignore as lições das outras ciências humanas. No domínio
Romênia. Verificamos, por exemplo, que, no litoral dálmata, estávamos universitário propriamente dito, a especialização não pára de ganhar ter­
continuamente acompanhados por jovens italianos, que não paravam de nos reno; mesmo na École des lzautes é/lides, onde, com meu seminário,
dizer quanto tudo aquilo era italiano. É verdade que, muitas vezes, acredita­ guardei mais longamente o contato, os estudantes seguem cada vez mais
ríamos _estar em Veneza. E era a época fascista! No· governo de Tito, apesar um seminário, ou outro, mas descuidam de passar de um seminário a
da estrutura feudal, tinha-se a impressão de uma espécie de autoritarismo, outro. Um bom exemplo disso é a evolução da demografia, a qual acabou
e de autoritarismo sérvio.- Tito, embora croata, fazia uma política sérvia. se tornando uma disciplina em si que, ou quer cxpJicar tudo, ou já se
Eu pensava então que devia haver resistências, pois o sistema político e o considera, por seus métodos, inacessível ao historiador. Eis aqui coisas
sistema social são sempre ii1scparáveis do sistema nacional. Rancores de perigosas: a pretensão de uma ciência a se bastar a si mesma, quando na
toda espécie se acumularam assira e, mal o sistema rachou, se fizeram valer. realidade nenhuma ciência humana se basta a si mesma.
Por isso, quando se apresentam os conflitos atuais como exclusivamente Essa necessidade de apoiar-se nos instrumentos vindos de outros
inter{tnicos, não estou de acordo, porque se trata de realidades que sflo ao domínios foi ilustrada recentemente, há três ou quatro anos, por uma his­
mesmo tempo interétnicas, sociais, políticas, cu)turais e mesmo espirituais. toriadora grega, Vivi Perraki. Ela organizou sua tese de história econômica
Os problemas 11ão são exatamente os mesmos do lado ex-soviético? baseando-se num corpus de textos do jornal L 'Expa11sio11, na época em que
É bastante embaraçoso. Mme Carrêre d 'Encaussc falou, há cerca se desencadeou a crise dos anos de 1973-1974, numa perspectiva
de quinze anos, de L 'Empire éclaté. Ela ;nunciara uma fragmentação d'? interdisciplinar u,. Ela pretendia acompanhar a reintrodução, logo após as
império soviético segundo o modelo da fragmentação dos outros impérios, Trente Glorieuses, do conceito de "crise", e a emergência de um período
isto é, provocada pela revolta das zonas menos desenvolvidas - neste de incerteza. O interesse do trabalho vem_ do fato de que ela procedeu por
lf::l:11:/
)
292 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunlw 293

subsídios cruzados, da economia, da história, da sociologia, da psicanálise, isto e aquilo. Se o processo podia esclarecer a história, era sobretudo a
sem que qualquer disciplina tivesse um papel organizador. Durante a de­ análise histórica que devia ajudar a ver claro nesse caso. O objeto da
fesa, a discussão, muito animada, referiu-se, por vezes, a problemas história não é exatamente o mesmo que o da justiça.
setoriais: escassez de psicanálise, excesso de psicanálise, disseram dois Existem leituras indispensáveis que o senhor aconselharia a jovens
psicanalistas. Mas o interesse do trabalho estava cm outro aspecto: utilizar historiadores?
numerosas ciências humanas, e recusar a especialização. Um livro como o de Marc Bloch sobre Les caracteres originaux
Um percurso de formação ideal para um historiaqor deveria assim de l'histoire rurale française [Os caracteres originais da história rural
dar-lhe uma. visão total das coisas, enquanto os estudan�es atuais .se francesa] (Oslo-Paris, 1931) - que trata dos bens c.omunais, da circulação
limitam a uma única linha. Não vou falar, é claro, dos prejuízos da livre dos rebanhos, do surgimento do individualismo agrário, das dificul­
formação à maneira da pedagogia ou da comunicação, da autonomia que
1 dades que encontrou a propriedade, no sentido estrito, para se impor,

j
a pedagogia acabou por conquistar, contra os p�óprios saberes. Por que mesmo no século XIX - propõe os problemas fundamentais das socieda­
· insistir continuamente na maneira de comunicar, quando. não' se sabe o des antigas. Mesmo hoje, quando nos encontramos diante do fenômeno
que se deve comunicar?
.. .� das cooperativas - até certo ponto, uma espécie de dissolução da proprie­

J1
Se utilizo meus próprios caminhos para pensar na formação de um dade estritamente concebida -, não se trata de simples questões sociais
historiador, verifico que, quando me encontrava frente a um fenômeno de atuais. De onde vêm essas formas? As mentalidades mudaram? Elas estão
tipo psicológico, cu precisava iaber quais eram os fundamentos d� própria hoje totalmente independentes das mentalidades antigas?
sociedade, as relações dessa sociedade com as sociedades vizinhas, as · Para o historiador, nu!llerosas leituras são essenciais; foram as
formas de conflitos; era pois meu dever estudar essencialmente as estru­ minhas: François Simiand, naturalmente, mas também Durkheim, sempre
turas sociais e seu funcionamento econômico. Para isso, as noções do tipo atual qua�do se tocam questões como a da nacionalidade. Os psicanalistas
j,
,i ! de estrutura ·e conjuntura se apresentavam a mim como fundamentais e são muito úteis yuanúu se abordam os problemas de linguag'!m ou de
,'.
inseparáveis. O estudo sério das conjunturas implicava um mínimo de mentalidades. Provavelmente, privilegiamos excessivamente Freud cm
educação estatística. detrimento de outros psicanalistas, como Adlcr, discípulo dissidente de
Ao lado da formação do historiador, há � questão da formação de Freud que fez repousar tudo na diferença, nos problemas de complexo de
todo mundo. Fiz uma de minhas últimas exposições, digamos, metodo­ inferioridade e de superioridade. Se examinarmos as oposições entre duas
lógicas, para a inauguração, em Ávila, da fundação Sanchez-Albornoz, cm populações vizinhas, sempre encontraremos este sentimento, que me
julho de 1987: nela eu desenvolvera o que havia chamado o "pensamento parece essencial, de se sentir mais forte que os outros. No famoso semi­
histórico", isto é, a educação histórica geral para ser dada a todos. O que, nário de Lévi-Strauss sobre a identidade, um etnól_ogo explicara que uma
aliás, deveria ter repercussões imediatas sobre o desejo dos historiadores população africana havia sido subjugada por outra população, mas tinha
de esclarecer certos problemas. No momento do processo Barbie, Le Monde guardado uma espécie de orgulho de sua etnicidade primitiva e de seu
tinha publicado um dossiê intitulado "Um processo para a história": cu caráter rural em relação às outras, que eram nômades. O orgulho de
tinha ficado muito chocado. Não foi esse processo que escla�eceu a história, pertencerem a esta ou àquela etnia equivale, entre nós, ao orgulho aos que
foi a história que esclareceu. esse processo. Dizer que o senhor Barbic era pretendem pertencer à classe superior. É um fenômeno do coiidiano,
um nazista não nos diz nada sobre o que era u� nazista. Me é profunda­ análogo ao racismo contra o magrebino encontrado no mctrô, considerado
mente indiferente saber se tal dia a tal hora o senhor Barbie ordenou tal como inferior, e, por conseguinte, detestado.
coisa. Do ponto de vista judiciário, é perfeito, mas não venham me dizer Antigamente, as estruturas-econômicas globais criavam distâncias
que é uma exposição de história. A história é saber por que existiram extraordinárias entre as classes sociais. As classes superiores despreza­
Barbie, por que esse tipo de indivíduo existiu no exército hitleriano..., e não vam certas classes médias, os que tinham tido acesso ao ensino superior
o fato de instalar, tal dia à tal hora, tal senhor em tal posto, para ele fazer desprezavam os que só tinham conhecido o ensino primário, o que não
·t'�''
IJ:1 �;ji

: 1
294 PASSADOS RECOMPOSTOS
Testemunho 295
-f
t • 1
excluía, por exemplo, um certo respeito pelo operário. Agora, talvez haja
i :! menos distância entre as classes trabalhadoras e as classes dirigentes, mas
teriam conseguido impor seus projeto:;, quando praticamente não há
1 há o fenômeno dos excluídos, há esse enorme abismo para com as classes
ministros catalães no século XIX? Assim, o esquema teórico importa
menos que uma história econômica inteligente, que deveria, aliás, ser
que são marginalizadas, e que já alcançam 20% da população nos Estados
ministrada aos alunos de economia poJítica, de tal modo é assustador o
Unidos. Num de seus tratados da população, Alfred Sauvy formula, em
corte entre teoria econômica e história econômica.
· três ou quatro páginas, a teoria segundo a qual existem sociedades sufi­
O senhor é um historiador sensível, em suas reflexões, às solici­
cientemente ricas para que nelas seja mais econômico pagar, digamos,
tações do presente. O senhor escreveu: "Nenhum de meus trabalhos
20% das pessoas para não fazerem nada, e para que nelas seja, às vezes,
sobre o passado espanhol, mesmo muito distante, me pareceu alheio à
mais interes�ante para o indivíduo não fazer nada, ou viver à margem, do
apreensão do presente". À luz da reemergência dos fenômenos de nacio­
que aceitar o salário mínimo que lhe ofereceriam. Isso me facilitara a
nalidade, o senhor construiria de outra maneira sua Catalogne?
compreensão da sociedade espanhola do Século de Ouro: muitos margi­
Com risco de espantá-lo, responderei não. Em primeiro lugar,
nais (inclusive o pessoal do teatro, da dança, de toda espécie de profissões
porque o fenômeno catalão não mudou realmente. Ouvi ontem, durante
que não são realmente profissões), que a sociedade aceita trat�r margi­
exatamente dois minutos, na rádio espanhola, o Presidente Pujol fazer
nalmente, fechando os olhos para sua marginalidade... , aceita� finalmen­
uma exposição ao conjunto dos parlamentares catalães; suas palavras me
te seu destino, às vezes com resignação, às vezes mesmo com contenta­
pareceram tão familiares, a propósito da Catalunha de um lado, do Estado
mento. Sem dúvida, se deveria matematizar tal teoria...
espanhol cie outro! Quando cu vou lá, não tenho a impressão de que as
Teoria... O senhor acaba de pronunciar uma palavra que, em
coisas tenha,n mudado tanto, apesar de, diferentemente do País Basco, ter
geral, os historiadores niio reivindicam muito. Ora, o senhor não cessou
sido encontrada uma solução. Pode haver uma distância entre a teoria e
de chamar a atenção para a importância da reflexão teórica. O que é
0 as problemáticas, isto é, a maneira de colocar as questões, de um lado,
1 ,i i que o senhor c:::e:::!:: com isso?
Í1'
através do que se ouve e se Jê, de outro lado, através dos problemas do
,,,; Vou partir de uma constatação simples. Eu dei cursos, rião teóricos,
1 tempo presente. No momento atual, o problema catalão pode se apresentar
1
e sim metodo)ógicos: tratava-se de suscitar nos estudantes uma reflexão
como quase resolvido; pelo menos, é aceito. Os catalães proclamam todos
atenta e aprofundada sobre o que desejavam e�tudar mais. tarde. Quanto
os dias, como um slogan: nós somos seis milhões - embora haja, entre
a mim, aprendi muito da economia poJítica. Mas, com a expressão de
eles, três milhões de imigrados do Sul da Espanha. Assim, o paradoxo
· --teórico", cu sempre temo as maneiras dogmáticas. A partir de um prin­
é a manutenção de um discurso nacionalista: o partido catalão, um partido
cípio dado, é possível eJaborar uma teoria, utilizá-la para cálculos ff,<&te­
conservador liberal - o de Pujai -, é majoritário no país; frente a ele, o
máticos, sem que jamais se coloque a questão de sua aplicação a uma
partido socialista pretende ser suficientemente nacionalista para se opor
sociedade determinada. Foi o que se passou nestes últimos anos na
de maneira confiável a Pujai; assim, o nacionalismo fica.
historiógrafia espanhola: todos concordam atualmente na Espanha, e nos
É verdade que sempre fui sensível à observação do contemporâneo.
meios mais diversos, que a liberdade de empresa, que a formação do
Diante da situação iugoslava, aventuro uma hipótese: se os andaluzes, cm
capita), são não somente úteis, mas fundamentais e sempre benéficas.
vez de se situarem no centro da comunidade, como operários nas dife­
Com isso, para certos historiadores espanhóis atuais, a Espanha teria sido
rentes indústrias, ou como trabalhadores agrícolas, se tivessem agrupado
um dos países mais desenvolvidos da Europa sem a interve11ção das
em cidadezinhas no limite dos dois "países", o que teria acontecido? Não
indústrias catalãs, que impuseram o protecionismo, o que teria paralisado
posso dizê-lo, mas sei que na Iugoslávia as coisas se passaram de maneira
a indústria espanhola. É um absurdo total. No Peru, por exemplo - bem
diferente: 9s sérvios, cm lugar de se porem à disposição de indústrias que
entendido, não é a Espanha -, os ingleses impuseram o livre-câmbio:
não existiam, ou de atividades de turis1no que não podiam utilizá-los,
imediatamente, o Peru foi totalmente riscado do mapa dos ,·erdadeiros
instalaram-se, em territôrios que não lhes pertenciam na origem, por
países produtores. Por outro lado, de que maneira os industriais catalães
pequenos grupos, cm pequenas cidades .._. Em vez de se integrarem, essas
�·;.:-, �

<1�
t .-1
..

1-
.;
296 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunlto · 297
. 1
to Especialista em história social e institucional da França do séculÓXVII, R. Mousnier
populações, favoráveis à separação, ressuscitaram as velhas fronteiras ét­ -�
i reagiu vivamente contra a análise de tipo marxista da sociedade francesa no século
nicas. A situação deve, sem dúvida, ser estudada caso por caso: a partir dos
X V II proposta por B. Porchncv.
recenseamentos, é preciso reconstituir, quase ano por ano, a instalação das
pessoas no território, a localização, os fluxos quantitativos; é preciso levar 11
Claudio Sanchez Albornoz y Meduifia {1893-1984), professor da Universidade de Madri,
cm conta a demografia, porque certas populações se multiplicam mais ministro do governo republicano espanhol de 1933, exilado na Fr:inça, depois na Argen­
rapidamente que outras. Tudo isso abre abordagens comparadas. Mas será . tina; dirige de 1959 a 1970 o governo republicano no exílio; volta a Madri cm 1983.

que, à vista disso, cu abordaria diferentemente a Catalunha? Não creio. 12


Historiador soviético, autor de lcs Soulevements populaircs e11 Fra11ce de 1623 à
/648, Moscou, 1948, trad. fr. Paris, SEVPEN, 1963, que suscitou nos anos 50 uma
Palavras recolhidas por Jean Boutier importante discussão sobre as estruturas sociais da França do 5éculo XVII.

13 As discussões com Aron, Althusser e Foucault estão todas reunidas em Une /ristoire eu
co11structio11 (cf. bibliografia).
Notas
1 •
1
A conversa teve lugar em Paris, cm abril de 1992. 14
J.-C. Pcrrot, Ge11êse d'une vil/e modcrne, Cac11 au XVII/e sieclc, Paris, Mouton, 1974,
p. 918.
2
Nessa data, M. Sorrc,les Pyré11ées méditerranéem,es, étude de géograp/rie biologiquc,
Paris, 1913, 508 p. 15 F: Engels, "L'enlerrement de K. Marx", Der So.daldemokrat, 22 de março de 1883,
cilada cm K. Marx, Oetwres, Paris, coll. de la Pléiade, Ili, p. 72.
3
Entre suas obras mais importantes, J. Sion, les Paysans de Normaudie oricmale, Paris,
1908; A. Demangeon, la Plaine picarde, Picardie, Artois, Cambrésis, Bem111aisis. 16 V. Pcrraki, l 'Expa11sio11 et la premiere crise pétroliere: lecture illterdiscip/inaire d'w,

i· Étude de géograp/rie sur les plaincs de craie du Nord de la Fra11ce, Paris, 1905; R. journal économique lors d'rm moment de disco11ti11uité, tese de doutorado cm história
1,
Blanchard, les Alpes occide11tales, Paris-Grenoble, 1936-1956. contempor.inea, École des Hautes Études cn Sciences Sociales, 1988, datil., sob a
direção de M. Aynard e R. Iloyer.
4
E. Labrousse, Esquisse d_u mouvcmcnt des pró: et des rc1•e11us c11 France au XVII/e
sU:cle, Paris, Dalloz, 1933, 2 volumes.

.s François Simiand {1873-1935), sociólogo, um dos fundadores da história da conjuntu­


ra econômica; publica cm 1932 seu livro magistral, lc Sdlairc, l'Évolutio11 sacia/e et
laMomraie.

6
E. J. Hamilton, America11 Treasurc and t/re Price Revolutio11 i!l Spailr, 1501-1650,
· Cambridge (Mass.), 1934.

7
R. Aron,/11troductio11 à la p/rilosop/rie de /'histoire. Essais sur lcs limitcs de l'objccti,•ité
lristorique, Paris, Gallimard, 1938.

8
P. Vendryês, De la probabilité en /ristoire, Paris, A. Michcl, 1952, e Déterminisme e/
au1011omie, Paris, A. Colin, 19!,6.

9
A. Dupront, '!L'histoire aprcs Freud", Revue de l'enseigi1eme11t supérieur, n. 44-45,
1969, ·pp. 27-63, e lmrgage et /ristoire, comunicação apresentada ao XIII congresso
internacional das ciências históricas, Moscou, 16-23 de agosto de 1970, atas do con­
gresso, t. I, 1973, pp. 186-254.
>

'!,• •

,. ,.


.,.
i;
.',',
� l ,�...
-� • 1
.. f. _ _·
l :'"::�
l )'ij .

} ;
� !

-�

4
J UM

F Os Caminhos da Polifonia
JEAN BOUTIER E ARUNDHATI VIRMANI

Como o conjunto dos cientistas, os historiadores também estão se


tornando uma comunidade mundial. Mas estarão, com isso,falando a
mesma língua? Como conciliam a ambição comum de explicar o devir
das sociedades humanas e a especificidade reivindicada, tanto das so­
ciedades como das culturas?

Na evolução recente. da pesquisa histórica percebem-se algu!11as


grandes tendências. Uma história ainda fortemente _dominada pelo ponto
de vista nacional, visando legitimar, <;>u mesmo exaltar o Estado-nação,
cedeu amplamente lugar, pelo mundo afora, a uma história mais temática,
dedicada às formações e às dinâmicas sociais 1 • Em lugar de justapor
histórias fechadas em si próprias - empreendimento ainda recentemente
defendido por alguns historiadores alemães ou americanos, em nome do
american exceptionalism ou do Sonderweg (caminho específico) alc­
mão2 -, os historiadores se esforçam cada vez mais em comparar, a partir
de determinados objetos produzidos por especializações setoriais, a
diversidade das expcriêndas históricas, além das· fronteiras políticas ou
culturais. Cada país guarda, sem dúvida, questões �uc lhe são especí­
ficas, incomparáveis, embora essenciais para a apreensão de sua própria
história, tais como a Guerra de Secessão ou a partilha da Índia em 194 7.
Mas essa especificidade não é o único terreno no qual os historiadores
evoluem. Existe mesmo um consenso no sentido de se considerar a
exacerbação do sentim�nto nacional, muito marcada em certos países
:,-
que conseguiram recentemente a independência, como prejudicial à
pesquisa histórica, sem se recusar por isso a realidade dos limites na­
cionais. �sim, F. Brauêtel,. procurando esclarecer seu propósito na
introdução a L 'ldentité de la France [A identid�de da França], tenta
combinar duas abordagens opostas, uma que recusa a "expropriação",
o "aniquilamento" da história nacional, e outra que considera o espaço
nacional somente como um "setor do destino do mundo"3•
302 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 303

,, "Há vinte anos, a diferença entre a história social ou suas escalas


feita na Fran graças a uma abordagem "pluralista" por suas perspectivas
e aquela feita na Alemanha federal era uma diferença a análise e produz uma compreens ão mais
de natureza; ho� de observação, que enriquece
é apenas uma questão de nuanças"4. Esta convergência as.
inesperada, 0�. fiel de sociedades de dimensões múltipl
servada recentemente por um historiador alemão, entre Não é muito difícil explicar, em parte, essa "harmonização" pla­
duas historiogra
que durante muito tempo sé tinham ignorado reciprocame fias
grandes transformações
nte, revela que netária. Os historiadores não podem furtar-se às
métodos, problemáticas e centros de interesse comuns sociedades contcmpu1â neas: a abertura das trocas, a mobilidade
confederam hoje, de nossas
para além das fronteiras, uma comunidade de histori de novos meios de comunicaç ão... influem
adores, ainda ma
is dos indivíduos, o aparecimcf!tO
vasta porqu�, atualmente são raros os países onde a s, mais específico s do
história não é pr:Úi­
_ evidentemente cm seu trabalho. Outros fenômeno
cada. Aos objetos de investigação já tradicionais, tais ção
como os me canis­ mundo científico, também desempenham um papel, como a multiplica
mos demográficos, o desenvolvimento econômico, a de redes
urbanização e a dos colóquios, os intercâmbios de pesquisadores, a instalação
modcrnizaçã_o das sociedades, os grupos e os .moviment ão de programa s específic os, como a his­
os sociais, as internacionais para a transmiss
culturas populares, vieram se acrescentar, sem que a lista Estas realidades , sem dúvida an­
esteja fechada tória das cidades ou da criminalidade.
as formas de criminalidade e de desvio de conduta, a famí is, t:.is como
tigas5, limitaram-se durante muito tempo a relações individua
' 1
lia, a sexua-
lidade, a constituição das identidades de grupo e da memó ou do
ria coletiva, as as permanências na Alemanha de C. Scignobos cm 1S77-1879,
mulheres e a divisão sexual dos papéis sociais ... Consti
tuiu-se assim, jovem M. Bloch em 1908. Já antes da primeir;:; guerra mundial, essas
progressivamente, um espaço disciplinar transnacional - embora relações se tornam mais institucionais: são os primeiros congressos inter­
com des­
locamentos no tempo, diversidades nas °formulações que remete nacionais das .:-:ênt:ias históricas (Roma, 1903), as comissões de pesquisa,
m às tradi­
ções culturais nacionais - espaço que reforçam debates como a famosa comissão internacior.:il de história dos preços, dirigida por
muito abertos,

·�
leituras comuns, como os livros de E. P. Thompson, E B:-audc Lord Beveridgc, ou a abertura em Oslo do Instituto norueguês de pesqui­
l ou W. Kula,
e referências partilhadas, como Montaill::m, Mcnocchio ou Ménétra sas culturais comparativas; nasce então uma nova gcraçf10 de revistas, que
.
No imediato pós-guerra, cm numerosos países, o marxis
mo tinha não reivindicam mais a origem nacional, a Vierteljahrschrift fiir Sozial
fornecido uru primeiro grande paradigma unificador, renovando a 1111d iVirtcliaftsgeschid1te (1903), a Eco11cmic History Review
(1927), as
anfüse
das formações sociais e da dinâmica das sociedades. Em seguida A1111ales d'histoire éco110111ique et sociale (l 929), mais tarde Past and
, no
decorrer dos anos 50-60, ·a adoção, cm graus variáveis, de instrum Present (1953). Entretanto, só nos anos 60 é que esse intcrcâmbic assume
entos
e métodos vindos elas outras ciências sociais - cm particular a antropo­ t:m caráter sistemático, por exemplo com a inauguração (1968), pelo
logia e a sociologia, cm grau menor, a economia - deu aos histori ;idorcs departamento de história da universidade de P rinccton, de um programa
fragmentos de linguagem comum. Mas, diferentemente d.is ciências "du­ de intercâmbio internacional de docentes. Isso, porém, não nos autoriza
ras", esta comunhão não resultou numa circulação maciça de noções e de a fazer um balanço triunfalista.
esquemas universais. Invertendo freqüentemente as maneiras de ver, as Não existe país algum cm que os historiadores constituam uma
ciências sociais deslocam muitas vezes a lógica cios modelos cxpiicatirns. co,nunidauc homogênea nas preocupações e nas práticas. Em todo lugar,
Assim, a antropologia que, atenta il especificidade de cada caso, reintroduz os historiadores "internacionalistas" constituem apenas a parte emersa do
as representações dos atores sociais, recusa categorias muito globais,como iceberg, e as práticas mais conservadoras estão longe de ter desaparecido.
a modernização, o crescimento econômico ou o imperialismo, que cnco­ As tradições nacionais continuam pesando ainda mais porque os
_
brcm processos diversos e contraditórios. A validade de categorias �cs­ historiadores se fecham cm debates estritamente r:ircunscritos a seu próprio
critivas e interpretativas elaboradas dentro ele espaços culturais e geográ­ país. A grande maioria dos historiadores italianos dos anos 50, quer se
ficos particulares é questionada em nome do ctnoccntrismo, que vai se liguem ao idealismo de B. Croce, ou se declarem "marxistas", escrevem
juntar então ao anacronismo denunciado outrora por Lucicn Fcbvrc. A uma história fortemente política, originada do modelo historicista; se, por
uniformização do trabalho cede o passo à compatibilidade das pesquisas, um lado, eles se importam com o engajamento ideológico, por outro, ficam
304 pASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 305

indiferentes às diversa_.� ciências sociais e aos outros modelos historio­ governam e agem, e sim a massa dos anônimos, deu lugar a formulações
gráficos, até as discussões dos anos 70 que, com a criação de novas revistas muito diferentes, nas intenções, nas argumentações ou nos objetos, inclu­
como Quademi storici ou Società e Storia, levam a novas propostas sive as famosas "Perguntas de um trabalhador lendo" de Brecht. Se os
metodológicas e ao abandono do paradigma historicista6 • Até o debate livros de E. P. Thompson sobre a classe operária inglesa, ou os de M.
suscitado pela publicação, cm 1961, da obra de Fritz Fischer sobre o Bakhtin sobre a cultura popular, têm alimentado a reflexão, tornando-se
imperialismo alemão e seu papel no desencadeamento da Primeira Guerra referências fundadoras111, a ausência de programa cu de manifesto funda­
mundial, a historiografia alemã, que, no entanto, fora muito inovadora dor favoreceu, de fato, uma apropriação multiforme, adaptada à diversi­
durante o século XIX, foi dominada por uma tradição conservadora, a da dade dos contextos ideológicos e culturais.
escola pruss1ana de Droysen: ou de Treitschke, que valorizava o papel do A expressão de história "vista de baixo" surge nos anos 50, cm
Estado, a história política, institucional e diplomática, ao mesmo tempo em historiadores da Revolução Francesa ou do movimento operário, tais como
que minimizava a responsabilidade alemã nos grandes dramas do século G. Rudé, A. Sobbul, É. Hobsbawm, R. Cobb ou E. P. Thompson; ela
XX7• Insularidade ainda mais surpreendente porque, no mesmo momento, remete, todavia, a uma prática historiográfica que remonta ao começo do
em numerosos países, a história vinha se integrando cada vez mais nitida- século, com a Histoire socialiste de la Révolution Fra11çaise [História
mente no mundo das ciências sociais.
' .
socialista da Revolução Francesa] de J. Jaures, e que se desenvolveu através
Finalmente, os grandes debates atuais passam dificilmente de um dos trabalhos de A. Mathiez sobre a "vida cara" durante o Terror, e rr.:iis
!)aís para outro. Nascida nos Estados Unidos no início dos anos 80, a ainda de G. Lcfcbvre sobre os camp01,eses e os medos coletivos11 • Não se
"virada lingüística" que, sob o impacto da análise textual, do movimento frata de um movimento ?J!lificado: 1 1 :i Inglaterra, cb nasce cm tor:10 de uma
feminista e dos trabalhos, entre outros, de J. Derrida, levou a uma crítica história operária (labour history), fortemente inspirada no marxismo; nos
da história social e propôs uma "nova história cultural'\ mal está come­ Estados Unidos, ela deve mais a uma sociologia não marxista ou ao
çando a encontrar um eco na Grã-Bretant::, � permanece ainda muito populismo da 11ew left 12; na França, ela se situa no prolongamento de uma
marginal na França • A micro-história italiana, uma das inovações
8
história sócio-econômica originada tanto das lições de .E. Labroussc como
metodológicas importantes dos anos recentes, não conhece na França da corrente das Amza/es. A partir daf, a história "vista de baixo" se aplica
mais que um sucesso limitado, enquanto inspira trabalhos nos Estados a objetos diversos: retoma os trabalhos dos folcloristas para produzir uma
Unidos ou na Alemanha. O sucesso da noção de· "lugar de memória" entre história das "culturas populares"; enriquecida pelas contribuições dos an­
os historiadores franceses não foi suficiente para sensibilizá-los, por tropólogos, dedica-se à vida material, à religião e à magia, à sociabilidade
exemplo, para o debate paralelo suscitado na Índia em torno do caso da e �s festas, e acaba se imiscuindo num grande número de pesquisas. Ela
mesquita de Ayodhya, construída no século XVI, num lugar que a tradição volta, entretanto, a suas aplicações originais, quando historiadores dos
hinduista considera como o do nascimento do deus Rama; o caso, que antigos países colonizados se esforçam cm continuar a descolonização no
cristaliza os conflitos entre hindus e muçulmanos, obriga, no entanto, a terreno intelectual, desenvolvendo umà história que lhes seja própria. Seu
reconsiderar, além do contexto indiano, questões importantes como as encanto reside, pois. cm sua cap:icidadc de responder a problemas levan­
formas da prova histórica, a construção da tradição e da memória coletiva tados cm contextos nacionais muito diferentes.
ou a formação da cultura popular9• Assim, mesmo a vanguarda dos his­ No fim dos anos 60, no Japão, aparece uma série de trabalhos sobre
::-
toriadores permanece um grupo fortemente segmentado. a vida social no campo; seus autores, críticos ao mesmo tempo do passado
imperial, da modernização, da burocracia e das categorias historiográFcas
A história "vista de baixo" ocidentais, pretendem promover uma história etnográfica do povo
Um dos paradigmas mais fecundos de nosso século é, sem contes­ (nzinslmshi), cm que os camponeses seriam a expressão da autenticidade
. tação, a história "vista de baixo"; esta inversão de perspectiva, que instala, japonesa antes da influência ocidental; a pesquisa, realizada locâlmentc,
no centro das preocupações dos historiadores, não mais as elites, que quer ser uma "história sem nome próprio", atenta às realidades da vida
"}

:�
ff:{
. .
306 pASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 307
cotidiana•l. O mesmo interesse pelos grupos dominados anima os historia­
"não nos dá a conhecer nada sobre a função da mesma e suas significações
dores indianos reunidos, no fim dos anos 70, em tomo dos Subaltern
para as pessoas que a ela estão sujeitas" 19• Estas são preocupações bem
studies: mas seu projeto não tem por objetivo reencontrar uma "alma in­ �
i próximas daquelas dos historiadores dos Suba/tem studies.
diana", desfigurada pela experiência colonial. Eles querem restituir às ,. Tendo partido de motivações freqüentemente militantes, a história
classes subalternas, tanto rurais como urbanas, um lugar como atores na
·4

"vista de baixo" descobriu ao mesmo tempo, quase paradoxalmente, a


dinâ�ica do movimento nacionalista, analisado até então segundo dois
fraca eficácia de uma unificação paradigmática da história e a extrema
pontos de1 vista, um político - limitado aos partidos constituídos, a seus
compatibilidade das pesquisas, localizadas e particularizadas, mas
chefes e a �uas neoociações com o poder colonial -, o outro econômico,
� o
construídas a pntir de preocupações partilhadas.
de origem marxista. Para eles, "elitismo" e "economismo" são duas abor-
dagens insatisfatórias, e o que é pior, "produto ideológico da dominação A internacional das revistas
britânica na Índia"14• O estudo local ou regional dos breves momentos de
"Hoje em dia, a cultura das ciências não está confinada num país
aparição dos dominados enquanto indivíduos, de ·sua ligação com º direito
. privilegiado, nem mesmo na Europa. Ela é internacional. Todos os pro­
ocidental ou a medicina, de suas relações com a burocracia op .à. polícia,
blemas, os mesmos problemas estão simultaneamente em estudo em todo
desemboca numa análise das mutações complexas de uma sociedade sob
lugar"20. Esta afirmação não vem nem de um matemático nem de um
dominação colonial. Ele obriga também a reformular o lugar da operação
físico, e sim de um historiador, Charles-V. Langlois, que, no fim do século
historiográfica, recusando a· antiga "posição central do antropólogo ou do
passado, já propunha situar a história entre as grandes disciplinas sujeitas
historiador europeu", para o qual a sociedade indiana era apenas objeto,
·
· anal'1t1cas ,. IS. às "condições modernas do trabalho ci�ntífico" e exigindo o domínio das
sem com isso rejeitar sistematicamente as categorias europeias
"línguas habituais da c1cncia (alemão, inglês, francês, italiano)". Na
A história "vista de baixo" pode assim servir para constituir uma identidade
realiciade, a história não respondeu senão muito incompletamente a essa
intelectual, ou para afirmá-la diante da introdução de moàelos estrangeiros
expectativa, mas a circulação dos resultados não parou de crescer, e com
ameaçadores, como certos historiadores italianos denunciando a depen­
ela a confrontação das abordagens cm relação às mesmas questões21 • A
dência historiográfica de seu país cm relação à França no f:m dos anos 7016•
difusão das grandes revistas históricas é uma boa prova disso.
Capaz de tradução ou de adaptação, a hi�tória "vista de baixo" não
Hoje em dia, as grandes revistas históricas, cm inglês ou em fran­
se organizou em sistema. Ela pôde constituir o ponto de partida de outras
cês são lidas muito além de seus países de origem. Amplamente expor­
formulações, autônomas, embora aparentadas. Na Itália, segundo C.
tad;s (30% dos números para o Joumal of Modem History, 48% para as
Ginzburg 17, a história "popular" surge a partir de uma reflexão muito
Annales, 55% para a Revue d'lzistoire modeme et colltemporaille, 70%
internacional, na qual se misturam as Annales, a Iabour history inglesa,
para Past and Present), elas são difundidas cm sessenta a setenta países,
as ciências sociais, de Polanyi à "escola de Manchester", sem excluir
pelos cinco continentes. Contudo, sua presença permanece muito desigual
referências mais pessoais, como o populismo russo através dos romances
e, nas grandes linhas, manifesta o peso do ;nundo rico e desenvolvido na
de Tolstoi. Uma década de intensas discussões resulta na formulação do
produção - e no_ consumo - dos conhecimentos contemporâneos: a po­
paradigma micro-histórico. Na Alemanha, aAIItagsgeschic/1te (história da
breza de grande parte da África, e provavelmente das antigas democracias
vida de todos os dias) afirma-se desde meados dos anos 70; fortemente
populares do Leste da Europa, lhes impede quase completamente o
penetrada de antropologia, ela propõe uma abordagem qualitativa dos
acesso a publicações relativamente caras. Por outro lado, uma dezena
modos de vida e dos meios sociais, descrevendo as realidades materiais
de países - a América do Norte e a Europa ocidental - totalizam mais
no trabalho, em casa, durante o lazer, explorando as dimensões subjetivas
de 90% das assinaturas. Existem todavia, entre ess'!s grandes consumi­
da vivência 18• Esses estudos muito localizados chegam ao ponto de negar
dores de história, diferenças que revelam, entre outras coisas, maior ou
a possibilidade de modelos únicos de inteligibilidade: para A. Lüdtkc, a
menor abertura para as correntes historiográficas estrangeiras: a França
noção weberiana de "burocracia", por exemplo, em sua cxc_essiva abstração,
ou a Grã-Bretanha lêem relativa�cntc pouco em língua estrangeira,
'
. :· -�r
•• :-:._1 ·.t·

308 pASSADOS RECOMPOSTOS


· -.��-,. _
_
,.· Fronteiras 309,
diferentes nisso da Itália, primeiro comprador das Annales Íora da França
e segundo comprador de Past and Present fora do mundo anglófono. Notas
Quanto ao Japão, parece proceder, cm marcha forçada, para uma espécie 1 P. M. Kennedy, "Thc decline of nationalistic History in the Wcst, 1900-1970",
de acumulação primitiva de capital historiográfico, sem que, por en­ Jouma/ of Co11temporary History, 1973, pp. 77-100.
quanto, vejamos surgir algo disso tudo...
2
I. Tyrrell, "Amcrican exccptionalism in an age of international history", America11
Nos últimos trinta anos, um número considerável de novas revistas
Mstorical Review, XCVI, 1991, pp. 1031-1055.
históricas foram criadas, resultado de uma especialização cada vez mais
declarada das pesquisas (por exemplo, Journal o/ Sport History, 1974; 3 F. Braudel, L 'Ide11tité de la Fra11ce. Espace e/ /zistoirc, Paris, 1986, pp. 14, 20.
Journal of Family History, 1976; International Journal o/ Oral History,
4
1980; Storia della Storiografia, 1982; Law and History Review, 1983; H. Kacble, "L'histoirc socialc cn Francc et en Allemagnc fédérale: de J'ignorance
cordiale aux nouvcaux dialogues", Cahiers du Centre de r�c/1erc/1es /,istoriques,
Histoire et Mesure, 1986; History and Anthropology, 1988; Gender and
n. 1, 1988, p. 36.
History, Memory and History, 1989; Musica e Storia, 1993;· Histoire et
sociétés rurales [História e sociedades rurais], 1994...), da reivindicação 5 C. Charle, "Ambassadcurs ou cherchcurs? Les relations internationales des profcsseurs
de uma história específica por parte de regiões ou países anteriormente de la Sorbonne sous la m e République", Ge11eses, 14, 1994, pp. 42-62.
ignorados, ou dominados (Joumal o/ Pacific History, 1966; lndian
6 D. Coli, "Idealismo e marxismo nella storiografia italiana degli anni '50 e '60",
Historical Review, 1914; Revue s.:négaluise d'histoire, 1980). Um
in P. Rosc;i (ed.), La storiografia co,1tempora11ea. lndirizzi e problc1mi, Milão, 1 ex;,,
paradigma universal, um ponto de vista único é menos possível do que
p. 39-58; A. M. Banti, "Storic e microstorie: l'hístoire sociale contemporaine en
nunca. Mas essa fragmentação não provocou o surgimento de categorias Italie (1972-1989)", Gencses, 3, 1991, p. 134-147.
radicalmente novas, incompatíveis com as precedentes. Sejam quais forem
7
o lugar e o objeto, a prática da história requer sempre o uso de métodos R. J. Evans, "The new nationalisni and lhe old history: pcrspectives on the West

e de procedimentos que, pelo essencial, foram aprimorados na Europa no German Historikerstreit", .lormwl of Modem History, LIX, 1987, pp. 761-797.
decorrer do século XIX, no contato com uma experiência específica, e que 11 G. Elcy, "De l'histoire socialc au 'tournant linguistique' dans l'historiographic
todos os historiadores reconhecem e adotam. O ·aparecimento de novos anglo-américaine des années 1980", Genêses, 1, 1992, pp. 163-193.
domínios se efetua em diálogo constante com as grandes ;>ropostas
9 Esta ausência de conexão é ainda mais interessante porque Pierre Nora levantou
historiográficas, como as Amiales, a antropologia anglo-saxônica, ou os
trabalhos, mais recentes, de M. Foucault, quer se trate de criticá-los, de recentemente a questão da aplicabilidade dos "lugares de memória" fora do caso
francês: le Débat, n. 78, 1994.
integrá-los ou de ultrapassá-los.
Entretanto, cada uma dessas experiências recentes se apóia numa 111 E. P. Thompson, The Making of t/ze Englislt Horking Class, Londres, 1963, tr:id.
reivindicação forte: retomar o controle de uma história própria, pensada ital., Bari,1969, tr;1d. fr. Paris, 1988; M. Bakhtin, François Rabc!lais et la 1..11/tur�
através de categorias que não sejam estranhas às realidades estudadas. A pop11laire au Moye11 Âge et à la Re11aissa11ce, Moscou, 1965; trad ingl., 1968, tr:ld.
recusa dos grandes universais históricos, a formulação de noções adap­ fr., 1970.

tadas a realidades diferentes, o interesse declarado pelas situações locais 11 Esta genealogia é dada por G. Rudé, la Fo11/e daus la Révolu1io11 Françoise, Paris,
e por seus contextos, paradoxalmente, não tornaram impossível_ toda
1982 (cd. inglesa. Oxford, 1959), p. 18.
comparação: enquanto a história, agitada por suas crises, não pára de se
�stender dividindo-se, essas vozes novas acabam convergindo numa ampla 12 Entre as obras marcantes, E. Genovese, Ro/1 Jon/a,1 Rol/, The World the sl,:-.·es

e rica polifonia. Será que todas elas conseguem, com isso, fazer-se ouvir made, Nova Iorque, 1973.
de iguais para iguais?
13 C. Gluck, "The pcoplc in history: recenl trcnds ín Japancse historiography",Jouma/
o/ Asia11 Studies, XXXVIII, 1978, pp. 25-50.
·-- � ,
!
:;
:1
310 pASSADOS RECOMPOSTOS i
;\ �
:, 14
R. Guha, "On some aspccts of thc historiography of colonial India", in Suba/tem
studies. Writittgs 011 Sout/, Asia11 History a11d Society, I, Dclhi, Oxford University DOIS
Press, 1982, p. 1; S. Sarkar, "Thc construction of history in modem lndia", Storia
della Storiografia, XIX, 1991, p. 61-72.
A Comunidade Científica Americana:
15 V. Das, "Subaltern as perspective'', in Suba/tem studies, VI, Delhi, 1989, p. 310-
Um Risco de Desintegração?
324.
T!MOTIIY TACKEIT
Ili C. Ginzburg .� C. Poni, "li nome e il come. Scambio inegualc e me reato storio­
grafico", Quaderni storici, XIV, 1979, p. 181-183.
Os historiadores americanos atuais vivem com inquietação o
17 Por exemplo, a introdução de C. Ginzburg, le Fromage et lcs Vers_ Paris, 1980 progresso das especializações e o estabelecimento de compartimentações,
(edital. Turim, 1976). conseqüência 4e seu ntímero e da diversidade de suas especializações. A
história, como a "filosofia natural" da idade clássica, estaria dando à
111 Uma ap:-esentação rápida de T. Nadau, "L'Alltagsgesc/1ic/,tc", Actes de la, recl,erclze
luz um novo leque de disciplinas?
e,z scienccs socia/es, n. 83, 1990, p. 64-66; para uma discussão mais desenvolvida,
G. Eley, "Labor History, Social 1-iistory, Alltagsgcschic/1te: Experience, Culture
Em sua volumosa obra recente sobre os historiadores a�ericanos no
and lhe Politics of thc Everyday, a New Direction for German Social History?",
Journal o/ Modem History, LXI, 1989, p. 297-343. s�culo XX - livro apreciado tanto por suas anedotas picantes, e mesmo
escandalosas, sobre alguns professores famosos, quanto por sua análise
'"' S. Kott, "De l'histoirc sociale à I' Alltagsgescl,ic/,te. Entretien avec Alf Lüdtke", nuançada da vida intelectual - o historiador Pcter Novick chega a uma
Ge11eses, 3, 1991, p. 153. conclusão um tar.to pessimista. Hoje cm dia, escreve ele, "como comunidade
de discursos, como comunidade de pesquisadores unidos por objetos univer­
:w C.-V. Langlois e C. Seignobos, l,uro:!uctio11 aux études historiqucs {Introdução
aos estudos históricos/, Paris, 1898; reed. 1992, p. 57. sais, por normas universais, por objetivos universais, a disciplina da história
não existe mais" 1• Em certa medida, segundo Novick, essa fragmentação
21 Um bom exemplo: E. Moradiellos, "Ultimas corrientes cn historia", Historia da comunidade dos historiadores pode ser atribuída a uma discordância
social, n. l 6, 1993, p. 97-113. fundamental sobre os valores epistemológicos. Por isso, ele insiste muito
na grande confront2ção, explícita ou implícita, que põe, um contra o outro,
os membros da profissão quanto ao "problema da objet_ividade". E todavia,
na opinião dele, esse processo de desagregação se prende também a outro
fenômeno, a uma verdadeira transformação de escala.
Com efeito, em quase todo lugar no mundo ocidental, a história
e a profissão de historiador vêm, há trinta anos, conhecendo um cres­
cimento absolutamente sem precedente, crescimento que pode modificar
;-
a própria natureza da profissão. Embora Petcr Novick se abstenha, cm
geral, de dar estatísticas, mesmo assim é revelador examinar algumas
cifras que indicam·a evolução da comunidade dos historiadores no decor­
rer destas últimas décadas: Com esse objetivo, escolhemos, a título de
exemplo, o ca�o que, evidentemente, conhecemos melhor, o dos Estados
Unidos. Mas se pode pensar que a evolução cm muitos outros países é
mais ou menos semelhante.
_ ..., ..- , '"r
. 'Í;
312 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 3 13
1
.

A medida de um crescimento
---·-,i"'.·
Deixando de lacÍó o problema das admissões e das promoções depois
j
.

Durante toda a primeira metade do século XX, o corpo dos


J
\
de 1975, essa verdadeira explosão demográfica de historiadores, essa tr::ns­
formação dramática na escala da profissão - e na pirâmide das idades de seus
historiadores nos Estados Unidos aumenta bem devagar. O número de
membros - exerce sem dúvida uma influência sobre a maneira como se
membros da American Historical Association (AHA), na época a mais
importante sociedade profissional do país, passa de 2.700 cm 1909 para concebe e como se pratica a história. Em primeiro lugar, o aumento do
número de historiadores formados se associa estreitamente a uma alta prodi­
3.500 em 1939, e para 3.800 no fim da Segunda Guerra Mundial 2• A
profissão é aiimcntada por uma reserva de jovens com diploma de Ph. D. giosa do número de publicações históricas. Essa alta, aliás, cresce ainda mais
(doutorado), que varia entre 100 e 200 por ano, até o início dos anos 503• pela concorrência entre jovens candidatos, que lutam pelos empregos e pela
Nesse mundo estável e relativamente pouco dinâmico, o paradigma titularidade num "mercado de compradores" e num sistema de "publicar ou
perecer'', que reina nas universidades americanas. Assim, a produção anu:i.l
dominante permanece o da história política e diplomática. É bem verdade
que alguns jovens revolucionários dos anos 20 e· 30, influenciados por de livros de história foi multiplicada por dois e meio, entre meados dos anos
idéias vindas da Europa, precoilizam uma New llistory, rclati�i�ta� um 50 e o fim dos anos 80: de menos de 2.000 até cerca de 7.000 obras por ar.o,
por exemplo, sobre a história dos Estados Unidos e dos países da Améric� 5•
tanto esquerdista, inspirada nas ciências econômicas. Mas na época da
Com a explosão de novas revistas (como veremos a seguir), a produção de
Segunda Guerra �.1undial e r,o começo da Guerra Fria, este pequeno grupo,
sempre minoritário, desaparece quase por completo diante= do triunfo de artigos se desenvolveu, provavelmente, ainda mais depressa. De resto, os
uma "história de consenso" do tempo de Eiser.hower. .:scrito� publicados nos próprios Estados Unidos representam apenas um a
Tudo mudou radicalmente, no entanto, nas duas décadas que seguem parte das obras de que um historiador profissional deve tomar conhecimento.
o acesso de John Kennedy à presidência. A chegada aos estudos superiores Com efeito, o crescimento da história e· dos historiadores verificado nos
Estados Unidos também acontece em muitos outros países. Na França, per
da enorme geração do pós-guerra, a expansão econômica americana sem
exemplo, o número de historiadores titulados na Universidade passa de 302
precedentes, o impacto da corrida espacial sobre o sistema acadêmico - de
em 1963 para 966 em 1983, e para 1.155 em 1991; durante o mesmo período,
início sobre as ciências naturais, mas também, finalmente, sobre as outras
o número de livros e de artigos sobre a história da França aumenta, e passa
faculdades -, todas essas mudanças produzcn� um desenvolvimento
de cerca de 6.000 para 13.000 por ano 6• Os americanos, há muito tempo a
extraordinário das universidades americanas. Em vinte e cinco anos, o
par dos estudos que se fo�em na França e na Inglaterra - e fortemente
número de estudantes de todos os níveis nos ciclos superiores passa de 5
influenciados pela "escola das Annales", que marcou toda uma geração -,
a 12 milhões, e o número de instituições universitárias atinge mais de
se sentem cada vez mais obrigados, segundo suas _especialidades, a
2.700 4• No mesmo período, o corpo de historiadores parece aumentar cm
acompanhar a produção de novas escolas de história na Alemanha, na Itália,
progressão geométrica. Contam-se 5.700 membros da AHA em 1950, 9.400
na Suécia, na Rússia, na Polônia, na Austrália, no Japão -para nos limitarmos
em 1960, 18.500 cm 1970. Para satisfazer à demanda, as usinas de
a alguns dos países mais impo_rtantcs. Pela força das coisas, e pelos limites
doutorados trabalham cm tempo integral, tanto que o número anual de
do cérebro humano na apreensão e integração de informações, cada historiador
novos Ph. D. cm história se quintuplica no espaço de vinte anos: de 200
se acha forçado a reduzir cada vez mais seu campo de visão, seu domínio
a 300 por ano nos anos 50, a 560 cm 1965, 1.075 em 1970, 1.360 em 1973.
de competência. Se, cm 1960, ainda se podia pedir aos estudantes de
Infelizmente para os jovens, a criação de novos cargos pára por volta de
doutorado que assimilassem o inteiro domínio da história dos Estados Uniàos,
1975, e se manifesta uma crise de superpovoamento acadêmico em que
em 1990 tem-se dificuldade em fazê-los dominar um único aspecto desta
centenas de historiadores, homens e mulheres, ficam desemr-,.egados. Apesar
história - história social, história intelectual - durante um único século, até
disso, no fim dos anos 80, a produção de doutorados se estabiliza num nível
mesmo durante algumas décadas. "Apenas um Fausto demente - escreve
mais ou merios constante de 600 a 700 por ano, cifra três vezes mais elevada
Bernard Bailyn da Universidade �e Harvard - poderia pensar cm ler mcsr:10
que cm meados do século. ,
uma parte desta literatura imensa que _pro)·& 11era sem fi1m , 7 .
314 PASSADOS RECOMPOSTOS . Fronteiras 315

homossexuais, a alimentação, o trabalho, a cidade, a tecnologia, a educação,


A fragmentação da disciplina o livro, a cultura popular etc.; ou então estudos centrados em métodos e
Em regundo lugar, a produção de história cm quanti abordagens particulares: revistas de psico-história, de história e filosofia,
dade absoluta
está estr itamente ligada a uma multiplicação de
: novas abordagens, de de história e ciências sociais, de história oral, de história quantitativa, c.le
novos metodos, de novos gêneros_ de assuntos histór
icos. Por um lado, isto história econométrica, de "etno-história" etc. É a época cm que surge toda
vem, provavelmente, do peso dos jovens no corpo
de historiadores dos uma gama de histórias "novas": t/ze new social history, the new economic
anos 60 : C 70 - levando em conta a pirâmide
das idades, devida aos history, the new cultural lzistory, e, enfim, uma primeira história
modelos de reprutamento da época - e da vitalid
ade e do espírito de verdadeiramente de esquerda, a "nova esquerda", nutrida com as idéias
inovação aí reinantes. Além do mais, numa profis marxistas - sobretudo na linha de Gramsci - e com o feminismo radical 10•
são monopolizada
durante muito tempo por ambientes "WASP" - homens Essa fragmentação da história nos Estados Unidos, essa descen­
brancos de orioem
�nglo-saxônica e protestante -, é o momento de uma. primeira penetr:ção tralização progressiva da profissito de historiado·r, nascida em parte de
importante de mulheres e de grupos minoritários na comu um fenômeno demográfico, se revela bem na evolução da própria AHA.
nidade (negros,
hispânicos, italianos etc.). Esses recém-chegados contri Ao longo dos anos 70 e 80, à medida que os estudiosos passam a se
buem, cer�ame�te,
par� a�itar as idéias, para multiplicar os pontos int_eressar pelas subdisciplinas históricas e por seus órgãos institucionais,
de vista, e até para
rad1cahzar um pouco algumas posições políticas. Mas, muitos abandonam totalmente a sociedade central. Entre 1969 e 1984,
por outro lado
mtervem também economias de escala. O aumento do
o '
A

estoque total de ou seja, em quinze anos, a AHA perde uns 40% de seus membros,
historiadores vai criar uma massa crítica de pesquisador cáindo assir.i de quase 19.000 a um pouco mais de 12.000. Durante o
es cm toda uma
série de especialidades novas. É a primeira vez que mesmo período, o número de membros das sociedades especializadas
se encontram em
número suficiente para formarem novas associações atinge cerca de 100.000 11•
e lançarem revistas
especializadas. Com bases institucionalizadas desse gênero Para certos historiadores, provavelmente saudosos de um período
, conseguem
desenvolver rapidamente seus métodos, sua linguagem, passado - real ou imaginário - em que a profissão podia se apresentar
seu discurso
próprio e à parte. Com efeito, as décadas 60 e 70 tc.stem como uma comunidade unida, tendências desse gênero são deploráveis.
unham uma
multiplicação extraordinária de "sub.disciplinas': históri William Bouwsma, historiador da Reforma protestante e presidente da
cas. Entre as
sociedades que se associam oficialmente à AHA, verific AHA cm 1978, lamenta que "as especializações, cm vez de unirem os
amos 13 esta­
belecidas nos anos 50 - tanto quanto durante toda a prime pesquisadores numa comunidade geral de valores e de discursos, os
ira metade do
século -, 22 nos anos 60, 33 nos anos 70 8 • Quanto separam em pequ::rns igrejinhas seletas, muito limitadas cm seus centros
às novas revistas
americanas, a cronologia das fundações é semelhante. de interesse e cm suas perspectivas". Thomas Bender, especialista dos
Se excluirmos as
revistas de genealogia e de história local, verificamos Estados Unidos, descreve a história da década de 80 como "uma disciplina
que 12 foram
lançadas nos anos 50, 37 nos anos 60, 52 nos anos 70 tJ. Muita seccionada em inumeráveis caixas compartimentadas ... onde cada
s, é verdade
se interessam sobretudo pela história nacional e region especialidade se desenvolve no isolamento � se vê liberada de toda
al (estudos árabes:
chineses, romenos, bálticos, eslavos, tibetanos etc.), ou obrigação de- se ligar a qualquer coisa fora dela mesma". Para Bernard
pela história de
grupos· de imigrantes nos Estados Unidos (judeu-ameri Bailyn, americanista e, ele também, presidente da AHA (1981), "livros
canos, afro­
amcricanos, asiático-americanos, ítalo-americanos, hispan e artigos caém do prelo e se amontoam... [e] a pesquisa histórica se
o-americanos
etc.)- assuntos, afinal de contas,- cujos métodos e perspectivas ramifica sem coordenação cm cem direções ao mesmo tempo... O que
não diférem
muito da história dita "tradicional". Outras revistas, falta sobretudo, nesse fluxo de escritos, é a coerência" 12• Nos capítulos
entretanto, se
consagram aos assuntos que, desde os anos 60, desenv consagrados à época contemporânea, Peter Novi.:;k insiste na diversidade
olvem cada vez
mais suas fontes, suas metodologias, seus vocabu extraordinária de métodos. de linguagens, ele suposições de base que, na
lários específicos:
estudo s sobre a famíli a, a criança, o campo nês, opinião dele, reduziria cm migalhas o corpo dos historiadores. Para nos
as n�ulhcrcs, os
-,·m··. .·
le'
1 316 PASSADOS RECOMPOSTOS

�'
Fronteiras 317
limi tarmos ao problema do jargão técnico, a l eitura de uma análise
deve desistir do esforço de fazê-lo. Aí também, não podemos encont rar'
histórica de demografia, de psico-história, de história e conométrica, de
parale los com algumas ciências e xatas - a física das partículas elemen­
dendrocronologia, do feminismo desconstrucionista pode ria apre se ntar
tares, a neurobiologia, a cosmologia, a geologia tectônica - que, todas,
problemas intimidantes e quase intransponíve is aos outsiders, aos
lutaram recentemente ou continuam lutando com uma multiplicação d e
historiadores não iniciados - sem falarmos no grand e público. Tornar-se ­
dados e de teorias evidentemente contradi tórias, e que, ape sar d e tudo,
ia quase iQJ.possível escreve r me smo a simple s rese nha de um livro sem ,
progridem com algum êxito para novas smteses um·r·1cadoras?·
dominar o discurso obscuro e hermético do peque no mundo d e e specia­ , .
Pedimos licença para acrescentar mais duas obse rvações a pr�pos1to
listas. O velho ideal do his toriador generalista e humanista, homem da
da mudança de escala da profissão de historiador, e da fragmentação da
R enascença, teria, pois,· de saparecido.
história que poderia resultar_ disso. Em primeiro lugar, a imagem da
Os desafios do presente história contemporânea seccionada em "caixas" isoladas não nos parece
muito satisfatória. Nos Estados Unidos, os his toriadores sempre viveram
Devemos então desespe rar do futuro da profissão de historiador,
em dois mundos bastante compartime ntados : os ame ricanistas, de um
abalada pelas transformações que marcam a segunda metade do .século
lado, e os especialistas da Europa e do resto do munào, de outro. Na
XX? Sem querermos negar as dificuldades reais, os desafios sem· prece­
realidad e, a criação de novas subdisciplinas históricas serviu freqüente­
dentes que o historiador deve enfrentar, cumpre dizer que não partilhamos
mente pr.:a enriquecer as perspectivas, criar laços e estabelecer um novo
de opiniões tão pessimistas. É evidente, a nosso ver, que é preciso aceitar
sentimento de comunidade onde, anter-iormente, existia muito pouco.
esse cre s cimento e essa transformação de escala, não só como
Assim, por exemplo, o estudo histórico dos camponeses, nascido na Fran?a,
irreversíveis, mas também, muitas ve zes, como salutares. E verdad e que
mas rapidamente adotado pelos americanos, pode pôr cm contato e streito
os historiadores não podem mais se apresentar - mas alguma vez puderam
especialistas da época colonial na América com os do Ancien Ré�i,�1e
fazê-lo? - como uma comunidade unida e homogênea. Pode-se pensar que
francês, do período imperial na Rússia, e do século XX no Sudeste da 4:5ia.
a história vai seguir, em certa medida, o d esenvolvimento da "filosofia
E poderíamos descobrir tendências semelhantes naquel_cs que se ded1cüm
natural", que se vê dividida progressivamente, nos séculos XVII e XVIII,
à história do trabalho, à história feminina, à história da feitiçaria etc. Neste
nas "subdisciplinas" da física, da astronomia, da química, da biologia etc.
sentido, paradoxalme nte, a "fragmentação" da história talvez tenha tornado
- subdis ciplinas que , por sua vez, estão se ramificando mais no fim do
0 me io dos historiadores americanos menos compartime ntado e mais aberto
s éculo XX. Mas esse processo d e especialização não será inevitáve l e
para o mundo exterior do que antes.
necessário, se quisermos realmente progredir cm nosso conhecimento do
Em segundo lugar, parece que a força centrífuga, que domina a
passado, em ve z de repetir e remanejar sempre as me smas matérias, as
história nas décadas de 60 e 70, vem se enfraquecendo sensivelme nte há
mesmas narrações? É bem possível que, no tempo atual, a e ra das grandes
alguns anos. Verifica-se, por e xemplo, durante os anos 80, um claro
visõe s globais da história - à maneira de Arnold Toynbce, de Fernand
declínio na criação de novas revistas e de novas sociedades históricas. Por
Braudel, de William McNcill - esteja acabaüa. Tod�via, não de ve mos
outro lado, é revelador o fato de que a revista americana que talvez tenha
esquecer que, nos úl_timos cento e cinqüenta anos, a historiografia tem
exercido maior influência nos Estados Unidos nos últimos vinte anos, o
freqü e ntemente oscilado entre períodos obcecados pelos de talhes e
Journal of bzterdiscipli11ary Studies, dedique um grande espaço à
períodos em que se aspira a sínteses mais amplas ; entre a visão do catador
possibilidade de encontros entre as dive rsas subdisciplinas históricas.
de trufas e a do paraquedista - para usar as imagens d e Emmanuel Le
Enfim, pode-se constatar há alguns anos uma baixa se nsível no grau de
Roy Ladurie. Se a geração atual dos historiadores ainda se es força por
confiança - ou melhor na arrogância ou na lwbris - que certos adep tos
arrumar a colheita imensa de pesquisas juntadas durantr-- as três últimas
de algumas subdisoiplinas e xibem em relação aos outros historiadores.
décadas, se ela, até agora, nem sempre conse guiu e ncontrar "e nredos"
Por muito tempo, os que se chamam d e "cconomctristas" es tiveram
(plots), paradigmas que poderiam ligar matérias tão diversas, nem por isso
convencidos de que, por m eio da análise quantitativa informatizada, iriam
···.-, ...<?-:''1·..· !f:·.··
il -· : .... -_.., ....
. ) ;.
!} 318 PASSADOS RECOMPOSTOS
.
Fronteiras 319
i
resolver, de maneira definitiva, todos - o u quase todos - os grandes Mas devemos esperar que o futuro d a história não se encontre em
problemas da história contemporânea. Aí, entretanto, o fracasso do livro estudos estreito s e cm solipsismos desse gênero. Ning uém n egará a
de Robert Foge} e Stanley Engcrman, Time 011 t/rc Cross, se demonstra
.;] dificuldade da profissão de � istoriad or no limiar do sécul o XXI. Com
.,t
decisivo . Trata-se de uma obra cm que os dois cconometristas se propõem efeito, a "comunidade" científica de antigamente não existe mais. Sem
a solucionar, uma vez por todas, a questão da economia da escravatura dúvida algu ma, a enorme expan são do "território do historiador" (segundo
nos Estados Unidos. Mas, após um exame contundente empreendido pelos a expressão de Le Roy Ladurie), bem como su a tendência a se desmembrar,
melho res especialistas do país, descobrem-se erros fundameµtais do por vezes, em pequenos Estados quase autônomos, tornam a tarefa do
começo ao fim d a obra: erros n a transcrição d os dados, na interpretação pesqu isador contemporâneo muito mais complicada, mais desordenada,
histórica dos fatos, na lógica do raciocínio, e até nos cálculos 13• Cada vez mais confusa. Em co ntrapartida, essa expansão também alargou e
mais, d urante os anos 80, os estudiosos são forçados a reconhecer que enriqueceu enormemente nossa compreensão da textura e da diversidad e
a história q uantitativa não dispensa a crítica rigorosa de suas fontes e de da experiência humana. E por acaso tal resultado não vale o esforço?
seus métodos, e que, no fim de contas, ela produz raramente respostas
diretas, mas, antes, um novo tip o de documentos que é preciso, cm
seguida, submeter à interpretação.
. t '
Notas
Infelizmente, no início da décad a de 90, certo s historiadores 1 P. Novick, Tlt at Noblc Dream: The "Objccti11ily Qucstioll" a11d the Amcric an
pretendem tirar outra lição desse fato:: a saber, que é melhor renunciar . Historica l Professio11, Cambridge, 19S8, p. 628.
totalmente à análise quantitativa e a todas as criações subdisciplinares da
2 Aqui, e no que segue, todas as cifras são tirada s d0Amcrica11 Historical Associatio11
era precedente. Em suma, talvez o verdadeiro perigo para a história de
Amrual Report.
hoje não seja a fragmentação e a especialização das pesqu isas históricas,
e sim, a ntes, a fuga, irracional e um tanto ingênua, de todas as abordagens 3 As cifras acerca do Púmero de doutorados em história (cm todos os domínios) são
e das perspectivas que se associam a essa especialização. Verifica-se o · tiradas da publicação anua l The America11 Doctoral Disscrtatio11.
crescimen to de uma espécie de reação reaganista no seio da história,
ed., Nova Iorque, 1991, p. XII. Das
reação que pretenderia, ao que parece, voltar as �ostas a um meio século 4
B aro11's Profile o/ American Colleges, t6e
ições de que se trata, 1.200 , ditas commu11i1y co/leges, só ministram
d e aquisições históricas, aq u isições liga d as, com ou sem razão , a 2.700 institu
os cerca de 600 institutos especializados,
ideologias de esquerda. Diante dos excessos evidentes de certos aspectos o primeiro ciclo. Poder-se-ia acrescentar dos
tes de direito, seminários etc., muitos
escolas de comércio, escolas independen
da "nova história" das décadas precedentes, e da tarefa considerável de faculd des.
quais incluem historiadores em suas
a

tentar novas sínteses, opta-se por "jogar fora o neném com a água do
5 Cifras baseadas em The Amw al Rcport of thc Libraria11 o/
Co11g rcss , Wa shington,
banho", e por voltar à história política e intelect ual, tal como foi praticada
rt dá o núme ro ele livros cata logados pela
no século XIX. É um fenômeno que se pode observar nos Estados Unidos, ed. de 1948 a 1989. O Amzual Repo
l de todos os livros publi cados nos Estados
biblioteca do Congresso - depósito leg
a
nos escritos da escola "neoconservadora" d e Nova Iorque 14• Constata-se,
das Américas).
Unidos - nas séries E e F (história
além disso, a influência crescente, na história, do movimento "pós­
3-20;
estruturalista", d o qual alguns adeptos negariam a própria possibilidade i", Vi11gtieme Sieclc, n. 12, 1986, pp.
6
Ver D. Rache, "Lcs historiens aujourd'hu , relat�rio
nisation de la reche rche"
de se "con hecer" o passado ou de se c ompreender "fatos" objetivos fora C. Langlois e R. Charticr, "Les historiens
et l 'orga
tion
as ciências humanas e sociais na Direc
do espírito do historiador 15• Para os partid ários mais extremos, a história redigido a pedido do diretor científico para amzu elle
s_ctembro de 1991; Biblio gra phie
p oderia se reduzir à a·mmse um tanto �stéril de textos, ou · aos devaneios de la recherche et des études doctorales,
CNRS , ed. de 1960 a 1992 .
profundamente subjetivos, quase poéticos e dificilmente compreensíveis, de l'/iistoire de Fra11ce, Paris, Éditions du

que informam mais sobre o _a utor do escrito que sobre a condição h umana 7 B. Bailyn, "The challengc oí modero historiogr:iphy", Amcrica11
Historical Rcvicw,
e a experiê ncia do passado . LXXXVII, 1982, p. 2.
�"':·...��::�!·.:e::!':�.-: ,-.:':�:�....�.-:·t::..�:�. �:-: "-·:�:·.�2P:· ,.v-
. . : 'f
., ·S,,..��- •

jzo PASSADOS RECOMPOSrOS ' f


·t
.
.:�·, i"".,_,_._-,.
8
Cifras bae-�adas no Directory o/Affiliated Societies, 1991-1992, editado pela
,ii
Amcrican Historical Association, Washington, 1991. Ao contrário, encontram-se
í,
apenas oito sociedades novas nos anos 80.
. TRÊS

9
Cifras baseadas em J. Fyfe, l(istorica/ Jouma/ a11d Seriais: A11 A11alytical Guide, Um Mercado Mundial das Idéias:
Nova Iorque, 1988. Levei cm conta apenas as revistas publicadas nos E.'i.lados
Unidos. o "Bicentenário" da Revolução
111 Ver princi ANTOINE DE BAECQUE
palmente J. Wiencr, "Radical historians and
the crisis in Amcrican
history", Jouf�/ o/ America11 History,
LXXVI, 1989-1990, pp. 399-434.

11 Directory o/ Affiliated Societies,


1991-1992. Certos eventos, como o Bicentenário da Revolução Francesa e a
12 W. Bouwsma, mobi1ização dos historiadores que o acompanhou, fazem emergir, da
"Specialization, departmentalization, and lhe
humanities",Americm, escala local à escala planetária, as redes de trabalho de uma comunidade
Cou11ci/ ofLeamed Societies News
"Wholes and parts: lhe need for synthcsis
let1er, 36,
primavera-verão 1985, p. 2; J3endcr, T· de estudiosos. Os deslocamentos incessantes de um historiador francês,
in American history",Jouma/ o/America11
History, LXXIII, 1986, p. 18; Baily M. Vovelle, revelam uma nova República das Letras, com seus espaços
n, artigo citado,.pp. 2-3.
13 Ver R. Fogcl e
plenos e suas casas vazias, situada diallte dos ·imeresses nacionais e
S. Engerman, Time 011 tlte Cross. Tl,e Econo
mics o/America,, Negro políticos, que, a toda hora, ameaçam inter/erir em seu discurso.
Slavery, Boston, 1974; e P. David
, H. Gutman, et ai., Recku11il1g wit/z Slavery,
Oxford, 1976.
Para uma comunidade de historiadores, a conjuntura comemorativa
14 Ver, por exem é uma grande oportunidade. Assim, o Bicentenário da Revolução Francesa
plo, G. Himmelforh, Tlu! New History and
tlze Oi</, Cambridge,
Massachusetts, 1987. multiplicou as ocasiões de encontros, de viagens, de publicações, a tal
ponto que se apresentou não só como um momento de mobilização
15 Ver, principalmente, P. Nov1ck, op. cit., pp. 543-546.
intensa dos pesquisadores franceses, mas também como o da revelação
de uma verdadeira "internacional" de historiadores, comunidade atraves­
sada por tensões e rivalidades, mas agrupada cm tomo de um centro de
interesse, e ligada por numerosas oportunidades de debates, ou por formas
de colaboração muito diversas. Michel Vovcllc, secretário geral e em
seguida presidente da Comissão de Pesquisa Histórica para a Celebração
do Bicentenário da Revolução, foi colocado no centro desses encontros
internacionais, e levado, em virtude de sua missão e de suas aptidões para
"histNiador viaj:mte", a multiplicar os deslocamentos, percorrendo
colóquios, mesas-redondas, inaugurações e comemorações. Cerca de uma

:,-
centena de viagens ao exterior se encadearam durante os dois anos mais
atarefados de sua missão, entre 1988 e 1989. Seguir os_ rastros de
semelhante périplo é reconstituir as redes da mobilização internacional
dos historiadores e descrever uma repartição do trabalho intelectual no
seio de uma comunidade de pesquisa, é revelar um estado dos lugares
da história estribado numa conjuntura política mundial perturbada e pintar
uma paisagem das curiosidades, das heranças e das novas tendências num
.t:��
. 'C?
' ��"'---
. :·:····�-··:f:.-_:�:
'

322 PASSADOS RECOMPOSTOS - - �;-.:,.. ·:.1n Fronteiras 323_

" frab.=3lhando s obre o


momento historiog raficamente sensível. Não é outro o objetivo deste da s d uas mãos o s historiadores "e strangeiros
contraditórias que disso
artigo: prop or o exemplo da in terna ciona liz açã o de u m do mín i o de momento revolucionár io , m as as in terpretações
50, a tal ponto que
pesquisa, e tentar avaliar -lhe as cons eqüências e apreende r-lhe os modos resultam marcam profunc! amente o debate dos anos
de organização int�rna. Michel Vovcllc, no decurs o de suas voltas ao u ma das grandes disputas histo
riográficas francesas da década segu inte
enis Richet aos palad inos
m undo de avião, não comemorou apenas o evento ; d ese nhou, muito _ as polêmica s que 9punham François Furet e D_
. Com efeito, é sempre
geograficamente, os contornos de ema historiog rafia cm plena expansão , da Sorbonne - é em g rande parte herdada delas
a d i sputa .
a que s e encontra no centro d
de uma histo ri o g rafia dorav ante s u jei ta , quei ra o u n ão q ueir a, à a questão d a transição : históric
sta da "e tapa burguesa"
concorrência mundial das idéias. Marx frente a Tocqueville : interpretação m_arxi
entre fe u dalismo e capitalismo
, baseada nas pesquisas agrárias e sociais
tocquevilliana da c ultura
Uma historiografia abalada por sua expansão internacional dos alunos internacionais de L efebvre; leitura
historiadores franceses ,
A pesquisa universitária s obre a histó ria da Revolução se interna­ política revol ucionária , reencontrada por certos
cionalizou por etapas sucessivas. Entretanto, ela · nunca esteve totalmen te g raças ao intermediário das pesquisas americanas.
ó ria revolucionária
fechada em si mesma : as . repercussões do evento e sua cqndição de Durante os anos 70, a internacionalização da hist
escala : o imp t s eminário de Albert
experimenta uma mu dan ça de
onen e
modelo de fratura histórica sempre atra íram historiadores estrangeiros.
j ve ns p esquis adores
Soboul, os "Sábados da Sorbonne", atrai numerosos
o
Minzes, Loutchisky, Karcicv, primeiros des bravadorc:; da histór ia ag rá ria
da R evo lução bem fü> iníci o do séc ulo, fo ram como q ue os ant epas sados estrangei ros, enquanto a r ápida
tradução inglesa - depois alemã e italiana
de F uret marca profunda­
de uma comunida,l e mund ial de inte rcâmbio de idéias, seguidos, nos a nos _ de Penser Ia Révolution [Pensar a Revolução]
historiadores franceses
50, no momento em que a cátedra de His tór ia da Revolução da Sorbonne mente as pesquisas anglo -s �xônicas. Assim, os
n i n v a de apreender o acon ­
recebem de volta do estrangeiro uma ma e ra o
tem o papel de fa rol em matér ia histori og ráfica, pelos d iscípulos d e
s impôs largamente, mas
tecimento revolucionário : nela, a leitura de Furet
e
Georges Lefebvre . Assim, um grupo de pesquisado res trabalha ativamente
ordagem social e cultural
e m Paris, o australiano R ud é, o inglês Cobb, o norue guês Tonnesson, o a atenção dada aos arquivos, a minúcia da ab
encontraram também um
alemão Markov ou o j aponês Takahashi, an te s de i r oc upar po stos de herdada d as práticas de Lefebvre ou de Soboul
as escolas
ntese que faz hoj e a força d
responsa bilidade na s g randes fac uldad e s d e �c us r e s pec tivos paí ses , sólido ancoradou ro. É esta �í
m e c mpo in t erp retações
cr iando sólidas tradições de pesquisas internacionais sobre a Revolução americanas ou italianas , entre
pragmati s o d a e

a c rne sangue .
audaciosa s : prodigalizar um "mais" de vida, medi
ante a e o
francesa. Paralelamente, cm rivalidade ideológica, d iante d o que se poderia
nt s c nceitos
os doc umentos , aos b r ilha e o
denominar uma "escola j acobina" di rigi da na Sor bonne p or Lefcbvre e , arrancados do s arq uiv os e d
a "história crítica", chei a
e m seg uida, por Soboul, aparecem nesses mesmos anos alguns pólos d e propostos por François Furét e Mona Ozouf cm su
ura, misturada, que se
contra dição reunidos em torno das eq uipes anglo- saxôn icas de Cobban, de idéias, mas desprovida da matéria bruta, imp
e m anuscritos u n s dossiês de panfletos.
encont ra em geral nas pastas d
o o
de Taylor ou de Pa lmer. O objeto dessas reflexões na scidas do olhar
de uma muito dinâmic�
i nternacional pousado no acontecimento central da his tó r ia da França é A reavaliação da história política, a elaboração
a eflorescênc i a das
de peso : que modelo d e tra11sição do "feudalismo" ao "capitalismo" a "histó r ia cultural da R evolução", m as também
os de trabalho estão, em
Revolução propõe ao mun do? Os historiadores dos países do Leste o lêem monografias locais ou urbanas, todos esses canteir
d p sq uisa. A tal p onto que,
g rande parte, ligados à internacionalização a e
numa óptica ma rxis ta , os japoneses cm fu nçã o de sua p rópria experiên cia
Franç ois Furet, a despeito
de transição histórica , a era Meiji, ao passo q ue Cobb:m, Taylor e Pa lmer a despeito da rivalidade entre Michel Vovcllc e
electual do Bicentenário
relativizam o modelo francês, sublinhando-lhe o peq ueno alcance social da ptesença de Mona Ozo uf, as réplicas do palco int
atores estrangeiros : Robert
ou integrando-o 1ío conceito muito ma is vasto de "revoluçã o at lântica". foram, em grande parte , monopolizadas pelos
at ricc Higonnet, impondo­
Como se vê, esta p rimeira ampliação inte rnacional teve seu papel na Darnton, Keith Baker, Colin Lucas, Lynn Hunt, P
i g r afi a r ev oluci on ári a , os
historiografia da Revolução : ainda se pode, é verdade, conta r nos d edos se� nessa o casião , n a dianteira da histor o
,--..
G\
00
G\
ri

00
G\
ri
'-'
o
"'O
e::
;:::l
E
o
e:
.9:...
'�
e::
....V
e::
V)
-�
V

o:)
� o
2 v
8�
"-'
(/'J

.9
::l

8<
V)
'ºO"
(/)
V)
õu
À:
o
(/'J

V
N
.....,

_J
. . ......:r-;··--:

326 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 327

pesquisadores alemães ou italianos, renovando nossa compreensão das que define os diferentes círculos da internacional dos historiadores do
imagens (Reichardt, Herding) e das práticas políticas (Lüsebrink, V iola, Bicentenário: 830 pesquisadores participaram de dois colóquios sobre a
Burstin), Simon Schama escrevendo o best-seller mundial do Bicentenário, Revolução, círculo dos "historiadores interessados" no acontecimento,
com suas centenas de milhares de Citizens vendidos através do mundo, correspondendo com bastante precisão ao número dos ouvintes inscritos
Steven Kaplan propondoAdieu 89, uma síntese sobre o próprio Bicentenário no congresso mundial de julho de 1989, que coroou a febre "coloquial"
considerado como acontecimento histórico, intelectual e político 1• do Bicentenário; enfim, 170 apresentaram uma comunicação em mais d e
Mais ainda, se se tenta "fotografar" a comunidade dos pesquisa­ 5 colóquios, círculo que se pode identificar como um grupo de "trabalho"
dores, a pres�nça internacional salta literalmente aos olhos (cf. p. 308, sobre a Revolução, composto pela reunião do conjunto das equipe s de
309). Reservei-para isso os sessenta grandes colóquios do Bicentenário, pesquisa revolucionária das universidades mundiais. "Galáxia",
os que, entre 1984 e 1989, reuniram mais de trinta comunicações, e viram "historiadores interessados", "círculo do trabalho sobre o acontecimento",
mais tarde suas atas publicadas. Chega-se aqu(a uma soma de 2.615 "núcleo dos porta-vozes", eis como se estrutura uma comunidade de
comunicações, verdadeiro "tesouro de guerra" do momento Bicentcqário. historiadores (seria preciso acrescentar, como último grau, os 3 ou 4
1.160 pesquisadores participaram desses colóquios, represepttlndo a "chefes de escola"), comunidade amplamente renovada nos últimos quinze
comunidade dos historiadores reunida pelo evento, comunidade no sentido ·
anos por sua internacionalização. .
mais amplo do termo, espécie de "galáxia" revolucionária abrangendo De certa maneira o Bicentenário coroou esse movim e nto, redistri-
.
tanto domínios estranhos à história (mas a interdisciplinaridade foi uma . buindo as problemáticas' e as especializações numa área geográfi amplia­
ca
tivos
das contribuições dos e!lcoutros de 1989): literatura, história d.! art e, da, largamente estruturada, todavia, pelos encontros e pelos obje
ciência política, ciência jurídica, como etapas cronológicas fugindo ao franco-america nos.
estrito período revolucionário: um bom número de historiadores da época
moderna ou contemporânea cruzaram o caminho de um ou vários 450.000 quilômetros pela Revo�ução
colóquios do Bicentenário. Na outra extremidade dessa corrente intelecual, Diante dessa comunidade repartida no globo, concentrada num
do lado da supermobilização e da hiperatividade "coloquial", cinqüenta trabalho intensivo, mas dividida pelas práticas, pelas condições e pela
e nove pesquisadores participaram de mais dG. dez grandes colóquios própria natureza desse trabalho (a história não se foz de modo idêntico n em
internacionais de história revolucionária entre 1984 e 1989. Trata-se aí encontra os mesmos ecos em todos esses países), calcula-se a necessidade
do núcleo duro da comunidad e de historiadores, consid erando-se também de uma ligação, de uma presença ao mesmo tempo singular e partilhada
que a maioria desses professores universitários, durante esse mesmo entre as diferentes regiões dessa geografia dos histori�dores. l\fichel Vovelle,
período, publicou um ou vários livros, participou das revistas, dos jornais, president e da Comissão de pesquisa histórica do Bicentenário, tentou
dos ciclos de conferências, das exposições organizadas na ocasião. encarnar esse vínculo, essa presença Tratava-se tanto de uma missão quanto
.
Essa comunidade de cerca de sessenta pesq11isadores - que seria de uma estratégia. Uma estratégia: já que Furet havia brilhantemente
necessário estudar também segundo outros parâmet:os (idade, formação, anexado o domínio das interpretações do acontecimento, propondo, graças
especialização, carreira universitária) para poder estabelecer, in vivo, um a Penser la Révolution e depois ao Dictiomiaire critique de la Révolution
apaixonante quadro sociológi�o e epistemológico de uma profissão muitas [Dicionário crítico da Revolução], uma espécie de "caixinha de pensa­
vezes discreta - essa comunidade é fortemente internacionalizada: 23 mentos" na qual cada um colhe com gratidão, Vovelle preferiu responder
franceses, 19 americanos, 4 italianos, 4 alemães, 2 ingleses, acompanhados nuin outro terreno, no "terreno", precisamente, isto é, a exploração de novas
de representantes de certos "pequenos países" de historiadores: Irlanda, fontes de arquivos (a imagem, particularmente), o interesse pelas novas
Israel, Espanha, Austrália, Canadá, Polônia e Países Baixos. Éntre a abordagens do acontecimento (as mentalidades, as práticas culturais, a

L
"galáxia" revolucionária e o "núcleo" da comunidade, se estabelece toda lexicologia, a análise de conteúdo, a cartografia geopolítica). O primeiro
uma gradação na mobilização, nos deslocamentos e nos encon_tros, gradação interpreta o acontecimento, invest�gando sem cessar a Revolução como um
328 PASSADOS RECOMPOSTOS
l'"· -·
Fronteiras 329

meio de conhecimento do pensamento político moderno; o segundo 0 historiadofos, ligadas às vezes às lutas ideológicas, mas ainda mais
esclarece, considerando a narrativa da Revolução (sob todas as suas formas: freqüentemente aos diferentes contextos nacionais. Por exemplo, os
impressa, figurada, discursiva) como o mais exemplar meio de interlocutores de Michel Vovellc podiam ser muito diferentes de um simples
representação da história, atendendo à necessidade que os homens ponto de vista institucional (cf. quadro 1 p.... ): comitês nacionais agrupando
experimentam de "figurar" a política, de "fazer imagem" a partir de sua o corpo dos historiadores (como na França, nos Estados Unidos e, em geral,
!
história. Com isso, o poder de persuasão de um e de outro historiador é nos países do Leste), associações locais ou cívicas reunindo eruditos e
categoricamente oposto! pois a imaginação nascida de uma idéia e aquela · historiadores militantes (na Itália e na França particularmente), organismos
nascida de uma representação são profundamente diferentes. Assim, é universitários mais clássicos (como na Itália, na França, na Alemanha ou
evidente que as idéias de Furet circulam sozinhas, passando de um livro nos Estados Unidos), e mesmo academias ou institutos culturais franceses
para outro, retransmitidas de um historiador para outro, enquanto as no exterior. Do mesmo modo, muitas vezes, as especialidades de pesquisa
representações precisam sempre ser mostradas, comentadas, guiadas. (cf. quadro 2 p. 313) divergem totalmente de acordo com os diferentes
Vovelle se sentia obrigado a viajar, fazendo circular o conjunto de imagens lugares de recepção. Os historiadores de certos países ( essencialmente
revolucionárias que ele estuda, assim como seu comentário, de um� �idade Estados Unidos, Itália, Alemanha) se têm orientado há muito tempo para
francesa para outra, de um país para outro. Seu poder de persuasão está assuntos propriamente ligados ao acontecimento revolucionário, traba­
ligado .. essa mediação. lhando, do mesmo modo que os professores universitários franceses, sobre
A essa estratégia de comunicação direta s� acrescenta um dever a política ou a cultura nascidas em 1789; outros, para dizer a verdade, na
missionário, uma obrigação sentida como cívica: visitar os múltiplos maioria dos países, só se orientam para as "repercussões" da Revolução cm
lugares do Bicentenário (em matéria de historiografia, estes, como mostrei, sua própria área geográfica. É evidente que existe uma hierarquia dos
são muitas vezes internacionais) como um general-de-exército tem o dever interesses respectivos desses .trabalhos, mas cabe ao presidente de uma
absoluto de fazer o que se chama a "ronda dos ranchos''. O projeto dessa comissão internacional de histonadores defini-la, com o risco de privilegiar
missão 2 , estabelecido entre julho e setembro de 1983, esclarece que ela apenas os pesquisadores da Europa ocidental, desprezando os trabalhos da
deve se concentrar num papel incitativo: o encorajamento para "a "outra Europa". ou, mais ainda, dos países em desenvolvimento?
organização de comitês regionais e nacio:iais, a fim de dar à atividade de Enfim, as gerações coexistentes podem se opor com virulência em
pesquisa sobre a Revolução Francesa a amplitude internacional que deve alguns dos países visitados. Certas escolas, muito hierarquizadas, como na
ter", e num papel informativo: "Num empreendimento tão complexo por Europa central ou na Ásia, guardaram durante muito tempo o poder
sua amplitude internacional e sua articulação ao longo de cinco anos, de acadêmico nas ·mãos de alguns "dinossauros" extremamente marcados pelas
1984 a 1989, convém manter os diferentes parceiros cm dia com as antigas disputas dos anos 50 e 60, ao passo que os his'toriadorcs mais jovens
iniciativas em curso e os projetos elaborados." As viagens de Michel procuram de preferência sair dessa ·rivalidade um pouco arcaica, estrutura
Vovelle desempenharam este papel: garantir uma presença simbólica (abrir universitária ainda mais ultrapassada porque o Bicentenário se realizou
um colóquio, apresentar uma conferência, encerrar um simpósio), que numa conjuntura particularmente perturbada. A verdadeira comemoração
funcionou como um reconhecimento intelectual (cada manifestação visitada de 1789, foram as "des-revoluções" dos países ex-socialistas que a
é integrada na longa corrente das pesquisas ligadas ao Bicentenário), um ofereceram. Neste sentido, a tarefa do presidente da Comissão de Pesquisa
reconforto acadêmico (nem todos os esforços consagrados à elaboração de do· Bicentenário se complicou singularmente, embora se tornando mais
um colé1uio permanecem vãos, já que o presidente da Comissão o confortou interessante: em certos países - na maioria, tal foi a repercussão dos
com sua presença), e um proselitismo cívico (fazer passar uma mensagem: acontecimentos do Leste europeu ou da China numa comunidade de
"Pa�a compreender a Revolução, é preciso amá-la" 3). historiadores que trabalhavam, entre outras coisas, sobre a Declaração dos
Essa tarefa era, sem dúvida, convencional, por vezes gratificante, e Direitos do Homem -, tratava-se de falar para pesquisadores repartidos não
no entanto árdua. Pois, as divisões não faltam no seio da int�rnacional dos somente dos dois lados de uma ruptura de geração, mas também de uma
330 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 331

fratura política. Ainda mais porque os primeiros contatos, feitos a partir de


1984, em período pré-perestroika, haviam proposto como interlocutores os
Tabela 1
representantes mais conservadores das diferentes academias socialistas.
Michel Vovelle evoca, assim, com certo júbilo, suas desavenças histórico­ Organizadores de colóquios no mundo
diplomáticas com os diferentes comitês de historiadores russos, tchecos,
Admlnistr:i�'Ú<.-s
poloneses ou romenos: como poupar os antigos representantes oficiais (às
Comitês do lnicl:uiv:u
vezes ainda em seu posto em 1989), quando se sabe que são os jovens, ou Uni\'Crskbdcs Ac:1dcmfas Associ:iç6cs Arqui\'OS
Biccntcnirio Prcfci1ur:1S l':lnicufarcs
BibliotCCIS
os que estão legrcssando de um mais ou menos longo purgatório, que MUSl.'US
lu:giõcs

carregam o futuro da pesquisa internacional? Outro caso de contraste, 32 36 10 3 l


11:!Ji:1
bastante próximo, afinal de contas: os vetustos professores chineses ou (40%) (45%) (12%) (12%) (1%)

,
coreanos que cercavam a tribuna de honra, onde �ficiava o presidente da Esp:anha 13 2
e l'onug:il (86%) (13%)
Comissão de Pesquisa do Bicentenário, enquanto seus estudantes desfilavam
Ak-11unlu li 6 2
lá fora, na rua, chocando-se violentamente com a polícia, ou perçoiri� a OdJcnt:11 (57%) (31%) (10%)

praça Tien An Mcn carregando uma faixa que proclamava: "O 1789 da P:iíscs 17 17 8 3
China'' ... Assim, rapidamente, o papel de Michel Vovelle, mola mestra de Socblisus (37%) (37%) (17%) (7%)

i..,na comunidade de historiadores sonhada como a mais ampla possível, foi Escada;; 42 3 3
Unidos (87%) (7%) (7%)
gerir da melhor maneira possível essas oposições internas, essas rivalidades
América 16 4 3 l
de igrejinhas, essas disputas de escolas e esses acidentes que ocorriam num L:uiru ((,6%) (16%) (12%) (4%)
terreno conjunturalmente instável. Como, de fato, falar aos historiadores,
respeitando cada uma de suas sensibilidades nacionais e promovendo, ao
mesmo tempo, um evento de alcance universal?
Tabela 2
Em direção a uma República unive�sal das Letras? Temas dominantes (%)
Para responder a essa questão da fragmentação interna da

t•.iris
internacional dos historiadores da Revolução, Michel Vovelle não tentou
1
AmériCl Améric:i Ási:I
rro,incc l'r.11\Çl Europa Áfric:i 1bi:tl
do 1\onc do Sul Ül:L-:tni:t
colar os pedaços pela concentração dos saberes, mas escolheu seguir a
dispersão das abordagens e fomentar a confrontação das experiências. História polític:i l·f,5 12,1 12,7 14,6 30,7 ··f -i3 o 15,4

Neste sentido, o presidente da Comissão de Pesquisa do Bicentenário Din.'ÍIU 10,9 3,·1 5.2 5.5 5,7 8 6 o 5,4

estimulou incessantemente a supermultiplicação dos colóquios: não mais Históri:11.-conõmic:i 9,1 8,6 8,8 3.2 3.8 o o o 5,2

apenas as sessenta grandes manifestações universitárias reunindo o mundo Históri:tculrur.tl 21.P 17,9 18,8 13,7 28.8 .f o o 16,2

dos pesquisadores cm torno de um núcleo central ultra-especializado, mas Históri:I cbs mcnalid:ldcs 7,2 4,6 5 ,2 .f,l 5,7 o G li 4,7
uma "nebulosa extragaláctica" que, como esclarece o dicionário, figura o o
HLqórl:lmilit:1r 7,2 1,7 1,7 0,9 o 11 1,2
essa "enorme acumulação de estrelas e de matéria interestelar de dimensão
A RL'\uluç:io e o mundo 20 9.8 12,2 36,6 13•.f 76 37 (,6 26
comparável à da Via Láctea". No total, na França e no universo: mãis de
Hcr:inç:as da Rc\uluç:io 9,1 5,7 6,1 20,1 11,5 8 6 11 12,3
600 encontros universitários4 - colóquios, mesas-redondas, ciclos de
Monogr:úi:ls 1,8 28,3 �'?l,9 o o o o o !>,l
conferências - que Vovelle percorreu pessoalmente por cerca da metade,
não mais viajante aguerrido, mas verdadeiro cosmonauta intergaláctico, Olugrafw
1 1,8 8,l 6,5 0,9 o o o o 3,2

pode"do passar de um dia para outro do imenso simpósio californiano lntcrpn.1:1çücs e debates 1,8 o º·' o o o o o 0,2
,11
ít'
tf 332 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 333
}:
p•·
agrupando todos os professores universitários americanos, a um pequeno numerosos pesquisadores, e entre os melhores, assustaram-se diante de'
colóquio organizado pelo Comitê das Ciências Sociais da República semelhante monstro de heterogeneidade, irritaram-se diante dessas
Socialista do Vietnã cm Hanói, do encontro oxfordiano dos trinta melhores comunicações excessivamente afastadas de suas preocupações, esqueceram,
especialistas internacionais, à mesa-redonda que introduz o estudo da com certo desprezo, de ir a certas sessões "em que não se aprende nada,
Revolução cm Kampala, no Uganda. com exceção do bizarro e do supérfluo"8, lembrando abertamente com
Às vezes, muitas vezes, surge a pergunta: quul é a eficácia desses saudades as discussões mais pertinentes e mais especializadas da série dos
gestos? O presidente da Comissão não corre o risco, com essa atividade, três colóquios de Chicago, Oxford e Paris sobre The French Revolution and
não somente_de perder a saúde e grande parte de suas forças, mas também the Creation ofModem Political Culture [A Revolução Francesa e a criação
de ver sua ação se diluir num excesso de encontros muito diversos? O da cultura política moderna], organizada por Keith Baker, Colin Lucas e
próprio Vovellc tinha consciência da armadilha: "Em verdade, poderão François Furet. Entretanto, nada substituirá a "mistura" criada então na
nos objetar que ara uma missão impossível c�nfrontar realidades tão Sorbonne, esses clarões "bizarros e supérfluos", que nasciam justamente da
diferentes como o colóquio realizado numa prefeitura francesa, _numa discordância dos pontos ·de vista e das culturas, como se cada pesquisador
universidade turca ou chilena, o grande encontro multiforn;ie · de um tivesse sido colocado diante de sua própria capacidade de operar uma
campus americano, a mesa redonda de uma universidade alemã ou de uma montagem analógica entre fragmentos heterogêneos ilustrando percepções
cidade italiana", mas tenta evitá-la numa resposta muito pessoal: "Naua, múltiplas da Revplução. A homogeneidade do pensamento fabrica brilhantes
nem mesmo a mais estimulante das discussões de especialistas, substituirá . especialistas; o heterogêneo faz curiosos historiadores. Em que fonte deve
para mim essa profusfo multiforn•e e multicultural, da qual eu tive a abebcrar-se uma comunidade de pe�quisa?
alegria e o privilégio de poder participar como emissário d� Bicentenário, Assim, graças a essas duas maneiras de praticar a discussão histórica
nos limites da força física de um só homem"5• Vovelle fez a opção de - o colóquio dos melhores especialistas ou o encontro de experiências
querer falar para todos, para o especialista como para o estudante, para muito diversas e por vezes muito incertas -, é possível distinguir duas
o historiador como para o simples cidadão-ouvinte, conseguindo estabe­ concepções do que pode ser uma comunidade de histÔriadores, dois modos
lecer a passagem entre níveis de discurso muito diferentes, manter unidas de enfrentar a concorrência mundial das idéias e das representações. De
geografias e sensibilidades por vezes totalment(? opostas, explorar mais um lado, uma "comunidade de pensamentos", reunida cm torno de um
a fundo a "paisagem-de-alma coletiva da corporação de todos os sistema de valores compartilhados, ainda que o debate tenda a ser vivo
historiadores diante do encontro histórico"6• Esse "todos" os historiadores e enriquecedor, agrupamento que só confia no iniciado, e tem como
é i::!portante: é aí que se decide o sucesso ou o fracasso da missão de objetivo aprofundar uma questão precisa. Do outro. lado, uma "nebulosa
Vovelle, nessa espécie de ambição desmedida de encontros feita de uma de experiências", tentativa de harmonizar as figuras muito diversas
grande humildade diante da comunidade internacional. A única maneira nascidas de um mesmo acontecimcmto histórico em culturas e sensi­
de enriquecê-la, de integrar experiências insuspeitadas nas universidades bilidades heterogêneas, agrup;,mento qtJe pede a mistura dos gêneros, das
ocidentais, consiste em falar de i�ual para igual, por cima (ou por baixo) formas, dos métodos, e toma como objetivo investigar amplamente, a
. das hierarquias acadêmicas, apesar de todos os desníveis imagináveis dos partir de um tema estimulante. A primeira dessas comunidades é um
saberes, com todos os historiadores. círculo tocquevilliano, "espécie de pensamento abstrato difundido nas
:-
O encontro geral, fruto dessas viagens, dessa profusão e dessa sociedades dos literatos" 9: ela pensa a história da Revolução; a segunda
humildade diante do outro,. foi realizado de 6 a 12 de julho de 1989 -:m é uma galáxia hugoana, "um ideal de fraternidade universal e literária
Sorbonnc: o Congresso Mundial do Bicentenário 7• Foram 265 comunica­ manifestando uma visão do mundo" 10: ela visualiza a Revolução graças
ções, mais de 700 ouvintes inscritos; mais da metade dos quais provenientes a imagens múltiplas. É verdade que a fórmula ideal da comunidade
dessa nebulosa internacional de contornos às vezes bastante incertos. O internacional dos historiadores deveria reunir essas duas maneiras, o
funcionamento geral do congresso, bem-entendido, se ressentiu disso: "clube de pensamentos" de Franço�s Furct e a "internacional estilhaçada"
·mkl
...,,
-··:�.. ;�,:·.
- ·,r
,. �" _·
. .. --tt -
:,;'\

....;
334 PASSADOS RECOMPOSTOS __;-

de Michel Vovelle: especialistas que se alimentariam da mistura das


abordagens da história, uma espécie de República das Letras que aspiraria
à igualdade universal de todos os seus republicanos.
BIBLIOGRAFIAS·
Notas
1 S. Kaplan, Adieu 89, Paris, Fayard, 1993.

2
Bulletill de la Commissio11 11atio11ale de recherclre lristorique pour /e Bice11tellaire
de la Révolutio11 Fra11çaise, n. 2, junho de 1985, Ed. do CNRS, pp. 1-V III.

3
le Mo11de de la Révolutio11 Fra11çaise, n. 1, janeiro de 1989, p. 29.

4
les Colloques du Bice11te11aire. Répertoire des re11co11tres scie11tifiquef ,Jatiollales
et i11tematio11ales, apresentado por M. Vovelle com a colaboração de D. Le Monnier,
Paris, La Découverte/lHRF, 1991 (esta obra comporta, pp. 111-XLI, um estudo
muito preciso de Michel Vovelle sobre a "sociabilidade coloquial").

5 les Colloques du /Jice11te11aire, op. cit., p. XI.

6
les Co/loques du Bice11le11aire, op. cit., p. IV.

1
l'lmage de la Révolutioll Fra11çaise, atas do Congresso Mundial do Bicentenário
da Revolução Francesa, julho de 1989, M. Vovcllc (ed.), Oxford, Pergamon Press,
1989, 4 vol., 2709 pp.

8
Relato aqui fielmente uma reflexão ouvida cm julho de 1989.

9
A. de Tocquevillc, l'A11cie11 Régime et la Révolutiou, Paris, Gallimard, 1967, p. 230.

111 G. Rosa, "La Républiquc universellc. Paroles et actes de Victor Hugo", in M.


Vovclle {dir.), Révolutio11 et Répub/ique: J'exceptio11 française, Atas do colóquio
de Paris I, 21-26 de setembro de 1992, Paris, Éd. Kimé, 1994, pp. 649-663.

:-
,,.. .

Os "clássicos" da história no século XX


. Não é o caso, aqÜi, de pôr no Panteão historiadores mas de conservar na memó­
ria obras que, em escala internacional, marcaram durável e profundamente o trabalho de
historiadores. Essa escolha não almeja, portanto,'nem uma utópica exaustão, nem uma
impossível imparcialidade. Não foram escolhidas, por exemplo, diversas obras de gran­
de importância, cujo impacto permanece, no entanto, limitado a um domínio circunscri­
to ou a um país. Não se deve esquecer, em suma, que, na pesquisa· histórica é muitas
vezes por intermédio de simples artigos que importantes inovações são introduzidas. Tal
qual, essa breve bibliografia visa somente evocar um percurso historiográfico que ultra­
passa amplamente as fronteiras do hexágono francês. Em sua concisão, as escolhas po­
derão parecer arbitrárias: em razão dos limites desse volume, elas implicavam necessa­
riamente inúmeras exclusões. Esses "clássicos" que resistiram ao tempo foram, todos
eles, publicados antes do início dos anos 1980.

Wilhelm Abel, Crises agraires en Europe (séculos XIII a XX), Paris, Flammarion, i973
(ed. original, Hamburgo-Berlim, 1935, revista em 1966).

Maurice Agulhon, La République au vil/age. Les populatio11s du Var de la Révolutio11 à


la li République, Paris, Plon, 1970; reed.• Le Seuil, 1979.

Philippe Ariês, L'E11fa11J et la vie familia/e sous l'A11cie11 Régüne, Paris, Plon, 1960;
rced., Le Seuil, col. Points Histoirc, 1975.

Mikha"il Bakhtine, L'(Euvre de Fra11çois Rabeiais et la culture populaire au Moye11 Âge


et sous la ReMissance, Pari�. Gallimard, 1970 (edição russa, Moscou, 1965).

Paul Bénichou, Le Temps des prophetes. Doctrüies de /'âge roma11tique, Paris, Gallimard, 19n.

Lewis Bernstein Namier, Structure·of Politics at t/re Accessio11 of George Ili, Londres,
Macmillan, 1957.

Marc Bloch, Les Rois tliaumaturges. Études sur /e caractere sumaturel attribué à la
puissa11ce royale particuliereme11t e11 Fra11ce et e11 A11gleterre, Estrasburgo, lstra, 1924;
reed., Paris, Gallimard, 1983; Les Caracteres origillaux de l'liistoire rurale fra1tçaise,
Paris-Oslo, Les Belles Lettres - H. Aschehoug, 1931; reed., Paris, A. Colin, 1988; la
Société féodale, Paris, Albin Michel, 1939, 2 volumes; recd., Albin Michel, 1994.

Fernand Braudel, La Méditerranée et /e mo1tde méditerra11ée11 au temps de Philippe li,


Paris, A. Colin, 1949; 2ª ed., 1966; ed. Livre de Poche Biblio, 1993; Civilisatio11
matérielle, économie et capitalisme, XV - XVIII siêcles, Paris, A. Col in, 1979, 3 vol.

Delio Cantimori,Eretici italia11i nel Ci11quece11to, Ricerc/ie storic/ie, Florença, Sansoni,


1939; reed., Turim, Einaudj, 1992.

Michel de Certeau, l'Écriture de l'l,istoire, Paris, Gallimard, 1975.

Alfred Cobban, Le Se,is de la �évolutio11 fra11çaise, Paris, Julliard, 19S4 (cd. inglesa,
Londres, 1964, com o título Tire Social fllterpretatio11 of tire Fre11c/1 Revolu1io11).
-._'.'r'� f!···
•..•.• ,. tt,

338 PASSADOS RECOMPOSTOS


.-::�-.,,.,... !,.,::. . Bibliografias 339
Alain Corbin, les Filies de noce. Misere sexue/lc e/ proslilulio11, séculos XIX - XX,
Paris, Aui>ier-Montaigne, 1978; recd., Flnmmarion, col. Champs, 1982. Alexandre Koyré,la Révolutio11 astro11omiqué:Copemic, Kepler; Borelli, Paris, Hermann,
' 1961.
Natalic Z. Davis, les Cultures du peuple. Rituels, savoirs e/ résisla11ces au XVI siêcle,
Paris, Aubier, 1979 (ed. americana, Stanford, 1975). Pctcr Kriédte, Hans Medick, Jürgen Schlumbohm, brdustrialisierung vor der l11dustria­
/isienmg, Gõttingen, 1977 (trad. inglesa, Cambridge-Paris, 1981).
Rcnzo de Feiice, Mussoli11i, Turim, Einaudi, 4 volumes a partir de 1965.
Thomas Kuhn, la Structure des révolutio11s scie11tifiq11es, Paris, Flammarion, 1983 (ed.
Jean Delumeau, le Catholicisme, e11tre lutl,er et Voltaire, Paris, PUF, 1971. americana, Chicago, 1962).

Gcorges Duby, les Trois Ordres 011 /'imagillaire du féodalisme, Paris, Gallimard, 1978. Witold kula, T/zéorie économique du systemeféodal Pour 1111 modele de /'économie polonaise,
XVI-XVIII siecles, Paris-La Haye, Mouton, 1970 (ed. polonesa, Varsóvia, 1963).
Lucien Febvre, Au ctZur religieux d11 XVI siecle, Paris, SEVPEN, 1957; reed., Livre de
Poche Biblio, 1984. Camille-Emst Labrousse, Esquisse du mouveme,r/ des prix et des reve,rus en France au
XVIII siecle, Paris, Dalloz, 1933, 2 vol.; reed., Paris, Éditions des Archives
Moses J. Finlcy, l 1Éco11omie a111ique, P.iris, Ed. de Minuit ,. 1975 (ed. inglesa, Londres, contemporaines, 1984; la Crise de l'éco11omiefra11çaise à lafln de l'Ancie,i Régime et
1973). au début de la Révo/utio11, Paris, Presses Universitaires de France, 1944; reed., Paris,
PUF, 1990.
Robert W. Fogel et Stanley L. Engerman, Time 011 tl,e Cross: the Eco11omics df America11
David Landes,l'Europe leclmicie,me. Révolutio11 teclmique et libre essor i11dustriel e,r Europe
Negro Slavery, New York, 1974.
occide111ale de 1750 à 110s jours, Paris, Gallimard, 1975 (cd. inglesa, Londres, 1969).
Michel Foucault, Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Plon, 1961; 2;i ed., Paris,
Peter Laslett, U11 ;;ronde que ,rous avos perdu. les structures sociales préindustriel/es,
Gal1imard, 1972; S11rveillcr et pu11ir. Naissm,ce de la priso11, Paris, Gallimard, 1975.
Paris, Flammarion, 1969 (ed. inglesa, Londres, 1965).
François Furet, Pe11ser la Révolutio11 Fra11çaise, Paris, Gallimard, 1978.
Jacques Le Goff, la CivUisation de l'Occide,rt médiéval, Paris, Arthaud, 1963.
Alexander Gerschenkron,Economic Backward11ess ;,, Historical Perspective, Cambridge
{Mass.), 1962. Georges Lefebvre,la Grand e Peur de 1789, Paris, Armand Colin, 1932; reed., Paris, A.
Colin, 1988.
Cario Ginzburg, le Fromage et les vers, Paris, Flammarion, 1980 (ed. italiana, Turim, 1976).
Emmanuel le Roy Ladurie, les Paysans de La,rguedoc, Paris, SEVPEN, 1966, 2 vol.
Pierre Gouberl, Daniel Rache, le� Fra11çais et l'A11cie11 Régime, Paris, A. Colin, 1984, 2
Santo Mazzarino, la Fi11 du monde antique. Avatars d'wr tl,eme historiographique, Pa­
vol. {11 ed., 1969-1973).
ris, Gallimard, 1973 (ed. italiana, 1954).
Earl J. Hamilton, America11 Treasure mzd tl,e Price Revolutio11 i,r Spaill, 1501-1650,
Arnaldo Momigliano,Problêmes d'ltistoriographie a11cie1111e et modeme, Paris, Gallimard,
Cambridge (Mass.), 1934.
1983 (seleção de alguns artigos dos 10 volumes de Colllributi, publicados por Momigliano
de 1930 até a sua morte).
Paul Hazard, la Crise de la co11scie11ce européemte 1680-1715, Paris, Boivin, 1935;
reed., Paris, Fayard, 1978.
Daniel Mornet, les Origines i11tellect11elles de la Révol11tio11 fra11çaise 1715-1787, Pa­
Louis Henry et Étienne Gautier, la Populatio11 de Cru/ai, paroisse 11orma11de. Étude ris, Armand Colin, 1933; reedição, Lyon, La Manufacture, 1989.
historique, Paris, PUF, 1958.
Joseph Needham,Scie11ce and civilisatio11 i,r China, Cambridge University Press, vol. 1-
3, 1956-1959.
Eric. J. Hobsbawm, Les Primitifs de la révolte dans l'Europe modenu:, Paris, Fayard,
1966 {ed. inglesa, Manchester Univcrsity Prcss, 1959).
Erwin Panofsky, Essais d'icono/ogie. Tl,emes lmmanistes dans l'art de la Re11aissa11ce,
Paris, Gallimard, 1967 (ed. inglesa, Oxford, 1939).
Johan Huizinga, l'A11tom11e du Moye11 Âge, Paris, Payot, nova edição, 1975 {ed. holan­
desa, Amsterdã, 1919; trad. francesa, 1932)..
Jean-Claude Perrot, Genese d'wre vil/e modenre: Cae11 au XVIII siecle, Paris-La Haye,
Mouton, 1975, 2 vol.
1:?rnst Kantorowicz, les Deux Corps du roi. Essai sur la 1/,éologie politique du Moye11
.1ge, Paris, Gallimard, 1989 (cd. americana, Princeton, 1957).
Henri Pirenne, Mal,omet et C/zarlemag11e, Paris-Bruxelas, 1937.
Reinhart Koselleck, le Regne de la critique, Paris, Ed. de Minuit, 1979 (ed. alemã,
Daniel Rache, le Peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XV/li siecle, Paris,
1959)..
Aubier-Montaigne, 1981.
·'ê""�
'.'�
:.t�l
'"tf
340 pASSADOS RECOMPOST03

MikhaiJ Ivanovitch Rostovtzeif, Histoire éco11(!mique e/ sociale du monde romain, Pa­


ris, Laffont, col. Bouquins, 1988 (cd. inglesa, Oxford 1926).

Albert Soboul, les Sans-Culolles parisie1,s e,z 1'011 li. Histoire politique e/ sociale des
sections de Paris, 2jui111793-9 Thermidor 011 li, Paris, Clavr�uil, 1958.
Bibliografia por artigo
Lawrence Stone, TJ,e Crisis o/the Aristocracy (1558-1641), Oxford, Clarendon Prcss, 1965.
Complementando o artigo: "No começo era o Direito... "
Ronald Syme, La Révolution romai11e, Paris, Gallimard, 1967 (1 1 cd. inglesa,-Londres,
l 939; 21 <:dição revista, 1952). Para uma visão geral da renovação recente do diálogo entre direito e história, dois dossiês:
,. Storia sociale e dimensio11e giuridica. Strume11ti d'i11dagine e ipotesi di /avaro, Paolo
Keith Thomas,Religio11 a11d lhe Dec/ille ofMagic.Studies i11 Popular Beliefs i11Sixleenri, .
Grossi (ed.), Milão, Giuffré, 1986, 468 p; "Le droit et l'histoire", Le Débat, n. 74, 1993.
and Seventeenth-'Century Englatzd, Londres; Weidenfeld and Nicho)son, 1971; reed.
Penguin Books, 1991.
Complementando o artigo: "Os "t�souros" da Stasi ou a miragem dos arquivos"
Edward P. Thompson, La Formatio11 de la classe ouvriêre. a11glaise, Paris, Le SeuiJ­ Bernd Zielinski et Arne Radtke, "La mémoire unifiéc? L'hérilagc équivoque des archives
Gallimard, 1988 (ed. inglesa, Londres, 1963). de la RDA", Vingtiême Siêc/e, Revue d'l,istoire, n. 34, 1992, p. 53-68.
. 1
1 •
Pierre Toubert,LesStructúresduLatium médiéval. LeLalium méridional el la•Sàbine du Cyril Buffet (ed.), Guide des archives d'Allemagne, Berlim, Centre franco-allemand de
IX à lafi11 du XII siêcle, Paris-Roma, De Boccard, 1973, 2 vol. recherches en sciences sociales, 1993, 46 p. (pode ser encomendado junto ao Centro).
Franco Venturi,Se1tece11t0Riformalore. Da Muralori a Beccaria, Turim, Einaudi, 1969. Para comparar os arquivos russos, cf. N. Werth, "De la sovi.Stologie en général et des
. archives russes en particulier", Le Débat, n. 77, nc:>v-dez. 1933, p. 127-144.
Jean-Pierre Vernant, Mytl,e et pe11sée c/,ez /es Grecs, Paris, F. Maspcro, 1965, 2 vol.

Pierre Vilar, La Cata/og11e dans l'Espagne modeme. Recl,erches sur les fondemenls Compleme11tando o artigo: "A erudição tra11sfigurada"
économiques des struclures nalionales, Paris, SEVPEN, 1962, 3 tomos; reed., Ed. de
L'EHESS-Le Sycomore, 1982. Sobre as raízes do divórcio entre "história" e "erudição" no fim do século XVII e no
século XVIII, B.Barret-Kriegel,Les Historie11s et la Mo11archie, 4 vol., Paris, PUF, 1988
Michel Vovelle, Piété baroque et déc/1ristianisatio11 e11 Prove11ce au XVIII siecle. Les (especialmente t. II , la Défaite de /'éruditio11).
a:titudes deva11t la mor/ d' aprês lese/ouses des testame11ts, Paris, Plon, 1973; reed., Le
Seuil, col. Points Histoire, 1978. Sobre a evolução das concepções nos séculos XIX e XX, C.-V. Langlois et C. Seignobos,
Introductio,r aux études historiques, Paris, 1898 (reed. com um prefácio de M. Rébérioux,
Frances Yates, L'Art de la mémoire, Paris, Gallimard, 1975 (ed. inglesa, Londres, 1966). Paris, Éd. Kimé, 1992); F. Furet, l'Atelier de /'J,istoire, Paris, 1982.

Sobre a "revolução documental", a reflexão fundamental encontra-se no artigo de J. Le


Ao lado das obras de historfadores, um certo número de livros influenciou Goff, "Documento/Monumento", in Enciclopedia Einaudi, t. v, Turim, 1978, p. 38-48.
consideravelmente o modo de pensar e de praticar simultaneamente a história e sua escri­
ta: a obra de Karl Marx, mesmo se a referência pode daqui pra frente parecer ultrapassa­ Sobre a abertura do campo das ciências "auxiliares", um ponto de partida cômodo é dado
da, foi decisiva na evolução da pesquisa histórica durante nosso século. A fraca influên­ em M. Balard (ed.), L'Histoire médiévale e11 Fra11ce. Bi/011 et perspectives, Paris, Lc
cia do sociólogo alemão Max Weber na França é sem dúvida uma exceção no panorama Seuil, 1991 (especialmente p. 471-499), cuja bibliografia de orientação é complementada
internacional. Ao lado da obra de Michel Foucault e das discussões que ela suscitou, é em Bibliograp/zie de /' histoire médiéva/e e11 France (1965-1990), Paris, Publicações da
preciso também assinalar os trabalhos de mitologia comparada de Georges Dumézil e os Sorbonnc, l 992 (especialmente p. 405-435). Pode-se acrescentar, no que concerne às
de sociologia de Pierre Bourdieu, os do antropólogo italiano Ernesto De Martino, os da disciplinas particulares, a nova edição, ampliada do Traité d'/,éraldique de M. Pastoureau,
politológola americana Hannah Arendt, e estes, traduzidos tardiamente na França, do Paris, Picard, 1993 e os volumes, em vias de publicação, da coleção "L'atelier du
sociólogo alemão NorbertElias. médieviste"/Turnhout, Brepols; publicados em 1993-1994: J. Berlioz (dir.), /de11tifier
sources et citations; O. Guyotjeannin, J. Pycke e B. M. Tock, Diplomatique médiévale.

Complementando o artigo: "A ascese do texto '!" o retomo às fo11tes"

Primeira abordagem:
M. Balard (ed.), L'Histoire médiévale en Fra11ce. Bilan et perspectives, Paris, Le Seuil,
1991 (passim).
342 PASSADOS RECOMPOSTOS
�":'.ri'. Bibliografias 343
B. Ccrquiglini, Éloge de la varia11te. Histoire critique de la p/1ilologie, Pari� Lc Scuil, 1989. Compleme11ta11do o ar tigo: "A arte da narrativa histó rica"
Dictio1111aire des lellres fra11çaises. le Moye11 Âge, Paris, nova cd., 1992. M. de Certeau, l 'Écr iture de l'l,istoire, Paris, Gallimard, 1975.

Coletâneas de fontes traduzidas:


P. Ricoeur, Temps et récit, t. l, Paris, Lc Scuil, )983. Temps et récit, t. !1,_L a C o11figuration
J. Favier (dir.), A rcl,ives de l'Occide111, t. 1 por O. Guyotjcannin, le Moye11 Âge, V -XV
du temps dans /e récit de fictio11, Paris, Le Seuil, 1984. Temps et recll, t. Ili, le Temps
siecles, Paris, 1992. raco11lé, Paris, Le Seuil, 1985.

H. White, Metahist ory. The H ist o rical lmagi11at io11 i11 Nin etee111h_ ��11tur y E� rope,
les So ciétés méridio11ales autour de /' a11 mil. Réper t oirc des so urces et d ocume11ts
Baltimore-Londr es, 1973. Tropics ofDiscourse. Essays in Cultural Cr1llc1sm, B �lt1m� re­
comme11tés, coordenada por M. �immermann, Paris, 1992.
Londres, 1978. T he Coutent of 1/,e For m. Nt1rrative Dis c o urse a11d Htst or ,cal
Represe11/atio11, Baltimore-Londre s, 1987.
G. Bruncl et E. Lalou (dir.),Sources d'histoire médiévalc IX - milieu du XIV siêde, Paris, 1992.
Para acompanha r O debate acerca das posições de Hayden White, remeteríai:nos aos nú­
Leituras complementares: _
meros 24 (1993) e 25 (1994) da revistaStoria dei/a Storiografia que sao dedicados a um
dossiê "Hayden's White Metahistory twenty ycars later".
le Médiéviste et l'Ordi11ateur (publication de l'IRHT), principalmente n. 28, 1993), Os
CD-ROM. t .
C omplcme11ta11do o artigo: "A violência das multidões:
le Médiéviste et l'Ordi11ateur, atas da mesa-redonda, Paris, CNRS, 17 novembro 1989, p ode-se elucidar o i1w111auo ?"
Paris, 1990.
G. Lcfebvre, La Grande Peur de 1789, Paris, 1932; recdiçã� seguida do artigo "Lcs­
foulcs révolutionnaires", A. Colin, 19S9, com uma apresentaçao de J. R evet.
Compleme11ta11do o artigo: "A história qua11titativa ai11da é necessária?"
Rudé, The Cro"·d i11 History (1730-1848), Londres, 1964.
C.E. Labrousse, Esquisse du 111ou vcmc11t des pr ix el des rcvenus e11 Fra11ce au XVIII
siecle, Paris, 1933; reed., Paris, EAC, 1984.
Far(Te La Vie Jraoife. Violence, po1woi1s ct s o/idarités à Paris 011 XVIII siecle, Paris,
Ha;h�lte, 1986: c�m J. Rcvel, logiq11cs de la Joule. L 'affaire des e11/ei•eme11ts d'eu/a11ts,
C.E Labrousse, La Cri:;e de l'éco110111ie fra11çaise à la fi11 de /'A11cie11 Régime et au début
Paris, 1750, Paris, Hachelle, 1988.
de la Révo/utiou, Paris, 1944; reed., Paris, PUF, 1990.
(As duas obras pione iras do fundador da tradição quantitativa francesa; C.E. Labrousse Barrows, Miroirs déformallts. Ri!flexions sur la Joule: e,, 1-'rnnce à la Ji11 du XIX siecl.:,
definiu as regras metodológicas para o uso do número que continuam sendo válidas para Paris, Aubier, 1990.
muitas delas hoj e .)
D. Crouzet, les Guerriers de Dieu, La viofonce au temps des troubles de religio11. \lers
P. Chaunu, Histoire qua11titatiw:, J,is toire sérielle, Paris, SEDES, 1978. 1525-vers 1610. S eysscl, Champvallon, 1990, 2 volumes.
(Essa obra, escrita por um dos historiadores que aparelharam os setores mais diversos da
disciplina, dá uma boa visão da história quantitativa na França depois de C.E. Labrousse.) A. Corbin, Le Vil/age des cau11ibales, Paris, Aubicr, 1990 ..
R. Foge! (ed.), The Dime11sio11s o/Quautitative Researclt in History, Princeton University s. Moscovici. L ':\ge eles foules. U,, traité J,istoriquc: de psyclwlogie des mosses, nova
Press, 1972. ed., Bruxelas, Ed. Complcxc, 1991.

Toda a obra de R. Foge!, prêmio Nobel de Economia, 1993, poderia ser citada tanto ela
s e identifica à New Economic History, a seus sucessos assim como a seus fracassos; Co mplemewmulo O artigo: .. M11l/1eres//10111c:11s: 1111w q11estào s:ilJ1·ersiva"
essa obra que e le dirigiu dá uma visão da variedade dos trabalhos realizados nesse
domínio. Bridenthal ct C. Koonz (ed.), !Jecoming Visible. \lomeu in Europe an S ociety, Boston:
_ _ _
Hou<Thton Mif!in. 22 cd., 1987. (Contriooiu para criar o campo da historia das mulhe res
P. D. McClelland, Causal Expla11atio11 a11d Model Buildi11g i11 Hist ory Ecouomics a11d na E�ropa e scr\·iu de obra de base nas uni\'crsidaJcs americanas.)
the New Ecouomic History, Corne ll University Press, 1975.
(Um dos melhores livros de reílexão sobre a modelização cm história e as questões G. Calvi (ed.). Barocco ai Femminile, Ba ri, Latcrza, 1992. {Belo exemplo de micro­
epistemológicas que ela formula.) história feministJ.)

Hist oire el Mesure, número especial "Séries temporelles", )99), 1/2.


P. de Boekhors!. P. Burke, W. Fri,ihoff, Cu[fllur eu Maatsclwppij 111_ Sed�rlmu/, 1500-
1800, Arnsterd:i. Boom, 1992. (Ohra coletiva publicada pela J'Opcn Un1\'t:rs1ty da Holand:i
Um panorama variado sobre o uso, em história, das técnicas de análise das séries temporais.
_ que constituiu uma história social nova.)
.�
ftl-,� 344 PASSADOS RECOMPOSTOS Bibliografias , 345
.

L. Davidoff, C. Hall, Family Fortunes: Me11 a11d Wome11 o/ the Eng/is/, Midd/e Class, J.-J. Schwien, Estr asbi.rgo, 1992.
1780-1850, Londres, Hutchinson, 1987. (Uma nova abordagem da história da burguesia.)
C. Camb on, Castres, 1993.
Laqueur, Makilrg Sex, Body and Ge11der from the Grecks to Freud, Cambridge, Harvard
University Press, 1990. Trad. Fr., la Fabrique du sexe. Essa i sur le corps et /e genre en Para uma comparação com uma cidade da Inglaterra:
Occide11t, Paris, Gallimard, 1992. (Obra bem argumentada sobre o gênero e a sexualidade.}
M. O. H. Carver, York Developme11t and Arcl,aeologyStudy, English Heritage and York
Ruggiero, Tire Bou11da ries o/Eros: Sex, Crime a11d Scxua lity ili Re11aissa11ce Ve11ice, City Council, 1992.
Oxford and Ne w York, Oxford University Press, 1985. (Explora os registros da crimina-
lidade para expor o "duplo standard".)
Compleme11ta 11do o artigo: "A memória viva dos historia dores"
B. Taylor, Eve and the NewJerusa/em. Socialism a11d Femi11ism i11 lhe Nilletee11t/r Ce111ury,
Londres, Virago, 1983. (Considerada na Inglaterra como um clássico que relaciona a As obras de Pierre Vilar:
história de classes e a história das mulheres.)
125 p. (traduções cm
Histoire de l'Espag11e, col. "Que sais-je ?", Paris, PUF, 1947, s, holandês,
W. Scott, Gender a11d lhe Politics of History, Columbi.a, Ne w York, ..1988. (Elabora húngaro, italiano, japonê
alemão, inglês, catalão , coreano, grego, espanhol,
uma teoria do gênero que influenciou muito o desenvolvimento da historiografia ame ­ p rtuguês .)
polonês, o
ricana.)
les fo11deme11ts éco11omiques eles
La Catalogue dons l'Europe modeme. RecJ1ercl1es sur
H. Wundcr, "Er ist die Som,, Sie ist der Mo11d". Fr aue11 in der Frühe11 Neuzeit, Beck, Lc Sycomore-Éd. de I' EHESS,
structures 11atio11ales, Paris, SEVPEN, 1962, 3 vol., reed.,
Munique, 1992. (História de mulheres ale mãs durante a época moderna, cuja tradução é
1982 (traduções em catalão e cm espanhol).
esperada e m todas as línguas européias.)
c", Paris, Flammarion, 1974, 440
Or et momzaie dans /'J,isroire, /450-1920, cal. "Scienc
.
p. (traduções em alemão, inglês, espanhol e português)
Complemc11tando o artigo "A arqueo/ogw 11a conquista da cidade"
a tiques co11jo11cturelles,col.
Une histo_ire en co11struction. Approcl,e marxiste et problém de artigos q ue reto­
Para uma orie ntaçã o geral: 28 p. (Coletânea
"Haules Etudes'', Paris, Gallimard-Le Seuil, 1982,4
maiores.)
ma, entre outros, as grandes discussões e os debates
Helghway, TireErosion o/History, Arc/raeology a11d Pla1111i11g in Towns. A Study ofHistorie
?
Towns Affected by Modem Deve/opme,zt i:: E11gla 11d, Wales and Scotlaud, Londres, 1972. ", Paris, PUF, 19S6, 125 p. (tradu­
La Guem: d'Espag11e (1956-1939), col. "Que sais-jc '
l. portugu ês, alemão, italian o.).
ções cm ca,alão, espanho
H. Galinié (dir.), dossiê "L'archéologie urbaine", les Nom•elles de l' arc/1éologie, 1979.
reunidos cm diversos livros, p ublicados
Os numerosos trabalhos de Pierre Vilar foram
M. O. H. Carve r, UudemcathE11g/isl, Towrrs, /11terpreting Urba11Archacology, Londres, 19S7. ou catalã :
em espanh a o

Para exemplos precisos, remetemos à série dos Documents d'é11aluatio11 du patrimoille Crecimie11to y desarollo. Economia e Historia. Reflexiones sobre e/ caso espa,iol, Bar­
arclréologique urbair,, Centre national arché o logie urbaine, Tours. Dentre as últimas celona, Ariel, 1964, 542 p.
publicações:
Assaigs sobre la Ca ta lw,ya dei segle XVIII, Barcelona, Curial, 1973.
Comte, J. Siraudeau, A11gers, 1990.
/niciació11 ai vocabulario dd análisis histórico, Barcelona, Critica, 1980, 311 p.
P. Demolon, Douai, 1990.
Hidalgos, amotinados y gucrrilleros. Pueblo y poderes e11 la historia de Espatia , Barce­
O. Guilhot, C. Gay, Besanço11, 1990. lona, Critica, 1982, 315 p.

A. de Montjoye, Grenoble, 1990. Estai, 11a ció, socialisme. Esrudis sobre e/ caso espanyol, Barcelona, Curial, 1982.
:-
C. Sintes, Arles, 1990. Eco,wmía, Derec/1�, Historia, Barce lona, Ariel, 1983.
P. Poulle, Saim-Ama11d-Mo11tro11d, 1991. Sobre ]936 y oiros escritos. Madri, Edicioncs VOSA, 1987.
P. Brunella, Metz, 1992. Uma bibliogr:lfia completa de s eus trabalhos consta no final da coletânea:

F. Delacampagne, Bayeux, J 992. Homenatge a Pierre Vila r, Barcelona, Curial Edicions Catalancs, 1990, 111, p. 203-219.

IIIEP'I'
',j·· .·:
,.

Bibliografias 347

época contemporânea, publicou Pi-,êtres el paroisses au pays du Curé d'Ars (Ediçõ�s do


Cerf, 1987) e, em colaboração com Jacques Nassif, Martin /'archa11ge (Gallimard, 1985);
com Jean Boutier, dirigiu o volume sobrelcs Sociétés poliliques doAtlas de la Révo/utio11
. fra11çaise (Edições do EHESS, 1992).
Biografia dos autores
Simo11a Cerutti
Antoille de Baecque
Mestre de conferências na École des hautes études cn sciences sociales, publicou la
Mestre �e conferências na Universidade de Saint-Qucntin-en Yvelines, contribuiu para a Vil/e et les Métiers. Naissance d'u11 la11gage corporatif, Turim, séculos XVII-XVII r (Edi­
rcnovaçao das questões relativas à Revolução Francesa, especialmente no domínio cul­ ções do EHESS, 1990) que renova a análise dos grupos sociais no espaço urbano.
_
tural. Publ1cou, entre out�os, la Caricature révo/utiom,aire (Presses do CNRS, 1988) e
_ _
le Corps de l , lustotre. M �taplrores �t '?ºliti?ue, 1770-1800 (Calmann-Lévy, 1993). Mem­
_
bro da redaçao dos Caluers du Cmema, e também autor de uma importante Histoire Pascal Eugel
d'une revue: les Cal,iers du Ci11éma, 1?51-1981 (Lcs C�hiers du Cinéma, 2 vol., 1991).
Professor de filosofia na universidade de Caen e membro do Institui universitairc de
France. Especialista cm filosofia da linguagem, da lógica, do espírito e de filosofia ana­
François Béda,-ida lítica, traduziu diversas obras de filósofos americanos e publicou especialmente la Norme
du vrai (Gallimard, 1989), États d'esprit (Alinea, 1992; 2� ed., La Découvcr:e, 1994) e
Diretor de pesquisa no CNRS, foi º P:imciro diretor do lnstitut d'histoire du tcmps présent Davidson et la P/,ilosophie du la11gage (PUF, 1994).
.
do CNRS d� 197S � 19?0, e �ntnbum amplamente, por seu impulso e seus escritos, a dar
_ _
uma leg1ttm1dadc c1ent1fica a esse campo de pesquisas. Especialista cm história contempo­
� Étie1111e François
ranca da França e da Inglaterra (la Société ang/aise du XIX siecle à 110s jours Paris
A,·th ?ud, 1976, ree�. � Seuil, 1990, Syndicats et patro11s en Gramle-Bretag11e, ltiition�
_ � Professor da Universidade de Paris I e atu.almentc diretor do Centro Marc 131och (Centro
ouvneres, 1980), dmg1u numerosas obras coletivas sobre a França contemporânea (em
_ _ franco-alemão de pesquisas de ciências sociais) de Berlim, depois de ter sido responsá­
co la?oraçao com Jean-Pierre Azéma, la Fra11ce des a,mées noires, Lc Seuil, 1993; le
_ vel pela Missão histórica francesa do Gõttingen. Especialista em história dos países
Regune de Vichy et lcs François, Fayard, 1992). Fez parle d:t comissão de historiadores
quf, �ob a direção de Rcné Rémond, analisou o caso de Paul Touvier: Paul Touvicr et gennânicos 11a época moderna, acaba de publicar Protesta111s et cat/,oliques e11 A llemag11e.
I , Egllse (Fayard, J 992), belo exemplo de investigação de história do tempo presente. [de11tités et pluralisme à Augsbourg, 1648-1806 (Albin-Michel, )993).

Dominique Bome
He11ri Galinié
�enomado professor de P:emic�c superior (penúltima s6rie do 2u grau) no liceu Henri IV,
rnspe!or g�ral da Educaçao nacional, decano du grupo história e geografia, especialista Diretor de pesquisa no CNRS, fundou e dirigiu o Centre national d'archéologie urbaine
_ do ministério da Cultura {1984-1992) Está preparando com Manuel Royo um Atlas de
em h1stona da França contemporânea. Publicou Pctits Bourgeois e11 révolte ? le
mouvemcut P_oujade {Flammarion, 1977), Histoire de la sociétéfrançaise depuis ]945 la Frauce des villes.
(Armand Colm, 1992) e, em colaboração com Henri Dubicf, la Crise des am,écs trellle:
1929-1938 (Lc Scuil, 19S9).
Jea11-Louis Gau/i11

Jea11 Boutier Antigo membro da Ecole Française de Romri, depois leitor na Universidade de Bolonha. Mestre
de conferências de história da Idade Média na Universidade Lumicre-Lyon. Suas pesquisas
o põem em contato com manuscritos e documentos de arquivos. Autor de tese sobre Pictro de
�c�trc de c��fcrências na Écolc dcs h,autcs étudcs en sciences sociales (Centre de la
Cresce11zi e o Nascimento da agronomia 11a Itália (sécs. XH e XIV), assim como anigos sobre
':'1e11le Ch?nte,
_
Marselha). Membro da Ecolc françaisc de Roma, é especialista em histó­
ria d a ltaha moderna. Seus trabalhos dizem respeito também à França revolucionária: a história da cultura agronômica no Ocidente medieval. Publicou, em colaboração, Dai/a vite ai
_ vi110. Fonti e problemi dei/a vitivi11icultura italiana medievo/e (Bolonha, Clueb, 1994).
p�bl1cou C�1!1pag11es e11 émois (Trcignac, Lcs Monédicrcs, 2;i ed., 19S9) e, cm colabora­
çao com Philippe Boutry, o volumeSociétés politiques doAtlas de la U,Ji.olutioufra11çaise
{Edições do EHESS, 1992).
Jea11-Yves Grcnier

Philippe /Joutry Encarregado de pesquisa no CNRS, é diretor de redação da revista Amwles, histoire,
scie11ces sociales. Especialista em história econômica do período pré-industrial e de história
Professor de história contemporânea na Universidade Paris XII, co-dirctor do Centro de do pensamento econômico, p�blicou Séries éco11omiq11es fra!1çaises, XVI-X\1//I siecles
antropologia religiosa européia {EHESS). Especialista cm história religiosa e cultural da (Edições do EH ESS, J 985) e está preparando uma obra sobre l'Eco11omie d'A11cie11 Régime.
348 PASSADOS RECQ,\fPOS
TOS

Bibliografias 349
Olivfo.� Guyotjea11 11 i11
/\nti�o membro da Ecolc obr a do Atlas de la Révolutio11 fra11çaise (Paris, Edições do EHESS); publicou Le
francaisc de Rom e• - o . . omátic
lllcd,_cva, s na Ecolc dcs fcssor de dipl Catholicisme au fé111i11i11. Les co11grégatio11s fra11çaises à s11périe11re générale au XIX
Chart;es. PublicouªE'. 1 s�� a e de arquivís
tica siecle (Edições do CERF, 1984),LaCaricature co11tre-révolutio1111aire (Preses du CNRS,
la se1g11e11rie éµiscop ; �? f"'S et com es: affimwtio11 et déc
ale n11 nord d11 royaume,e li11 de
(Genebra: Droz' 1 987), ·rnu ce, /Jea 11vais-Novo11, X-.11. J 9SS) e com François Laplanchc, La Scie11ce catholique (Cerf, 1992).
.. ct 'A1'1(/t'.eIº" (L' llarm att an, 1986 , 2' edição cm
·
Sa,·11t />u:rrc J "'c Ies
"Ili s1e
d a J11cn10), um volume
dos;\ rc/11vc 1e / Occ•,dcm me'd·.
s, an-
c_. Clll colaboraçiio com Jac ,eva'1 V-X siecles (f'ayard, 1992)
ques pycke e Bcr1 011-M,. chcl V
( furnhout, Brépols, l 993). Tock, llllla Dip/0111atiq11e More Laznr
médiéva/c
Professor da Universidade Paris X· Nanlcrrc e do Institui d'étudcs politiques de Paris.
Membro do Comitê de redação da revistaCo111111 1111is111c, publicou rcccnterncntc, cm co­
François Hnrtog laboraç;io com Stéphanc Courtois,Ci11q11a 11te a11s d'1111e passio11fra11çaise, De Gaulle et
�irc1 o_ r de estudos na Écolc dcs ha les co1111111111istes (B a lland, 1991) e Maiso11s rouges. Les partis co11111111 11istes frn11çais et
h1s1�nog r nfia ant iga e • des cn .
u1es_ elu italie11s de la libératio11 ri nos jours (Aubicr, 1992)
mo der na· p ubl1c ou _sc,cnccs socialcs, traba .
/ e M1 lha com
rep resentation de /'nu
tre (Gallimard ' l 980) c � , ��1r d'l-!érodote. Essai sur la
de Coulanges (PUr-:' Lc >.!X szeclc et l'Histo
1988). ire. _e
l cas. F'listei
Patrick Nerl,ot

Professor de filosofia do direito da Universidade de Ferrar a (Itália), antigo professor do


f-leinz-Cerlwrd l lnupt lns1i11110 universit;írio europeu (Florenç a ), ele concent ra suas pesquisas na epistemologia
Diret r do ln.sU�ul d'Hi cio direito. Dirigiu duas obras coletiv a s Lm11 lnterpretatio11 a11d Reality. Essays in
� stoirc d a Univcrsid;1dc de.
profc�s r da vn1vc rsidrlc l l.1_. llc-W1!lcm
. bcrg (Alemanh a ): ;1111i no Epistemo!ogy. f-!er111e11eutics and J11rispmde11ce (Kluwer Ac a dcmic Publishers, 1990) e
� de Lyon li c do Ins1·lluto un,v
espcc1al1s1a cm história ersllano europeu (f'lorcnca)
' soc,· •a 1d a F· rança e da AI .• ' º _Legal K11owledge and J\nalogy. Frag111e11ts o/Epistemolog)\ her111e11e111ics mui Li11guistic
· le de la Francc de,,,,,·
soc,a
,, s l-,89
cm ,1n , 1,a contemporâneas Sua , e um (Kluwer J\cadcmic Publishers, !991). Publicou rcccn1c, .. cn1c La111 1\lriti11g, Men11i1 1g,
, , , r
1 .
1 tra duzida• pc I·,,s. Ed . .
11·1st01rc
de I HoJ11mc (1993). 0
. de la Maison· dcs Scic
. ,çocs ;\11 Es.rny i11 Legal /-/er111e11e11tics (Edinburgh University i·rcss, 1992); Diri110, Storia.
nccs Saggio di filosofia dei dirillo (P;ídua, Ced am, 1994); L 'lporesi pcrduta dei/a legge (P;id'.la,
Ced:rm , 1994) e "L1 vérité cn hist oi rc el lc mélicr d'historicn", cm Quadcmi fior.:11ti11i
(número especial março-abril 1995).
Ohven H11Jt011
Professor do Instituto
univcrsi
de �-farv ard onde dirigiu W t,írio euro c. renç a), e
x?r�fcssora d a Unive rsidade
Jacques Re vcl
o oJ11cn 's Studics\r'� o ra m . 8,pcc, a l,st
�a cpoca moderna, a que º a cm história
consagrou divcr 1 obra da Fran a
s e artigos, princip alJ11cn1c Diretor de estudos na École des haules étudcs en scienccs socialcs, e membro do comitê de
E1gl,tee1 1tl, Ce1111ny Fra
social da �ifcrenciaç.io
nce (Oxford 19;� )' JJllc
r_cssa-sc a partir daí mais
77,c Po�r �f dircç.io da revista J\111,a/es, hisroirc, scic11ces socialcs. Publicou, cm colaboraç:io com Arlt:llc
dos pa. éis s�xuai cs �c pela história
1.dme1. 11c cm seu último Fargc, Logiques de la /ou/e. L'af!aire des e11/ê1•e111c111s d'c11fn111s, Paris, / 750 (Hachc1te, 19SS)
c11 ship;;, tl,e Frene�: / / t /
and the L1m11s ofCitiz
livro: IVomcn
, e,,o 1111011 ( Toronto, 1991). e co-dirigiu, com André 13urguii:rc, l'Histoire de la Fra11ce (Lc Scuil, 4 vol., 1989- l 993).

Do111i11iq11e Jufin Manuel Royo


Dir�tor de pesquisas
no CNRS (Centro de pcs_q . . . .
lns111u1 0 un,versitário u_rsas hrstonc
. as), antioo profess Antigo membro da Écolc françaisc de Rom c, mestre de conferênci a s cm a rqueologia­
europeu (FI orcnça), cspcc1 r
cd • •
ucaçao na cpoca m oderna· .• s1a cm 1 . , .
al º or do
11stona rclioiosa e hist históri a da a rte na Universid ade f'rançois-R a belais de Tours. Arqueólogo, participa da
Publ'1cou cspccrnl . "' • o·r,a
· da
· 1tio11 (Paris ' Ber lim· ,
l a R evo/1 men I e l es 7.ro1sC 011/e11rs d11 tablea1, 1101. cscavaçiio do Palatino cm Roma. Editou, com F. l linard, Rome, !'espace 11rbai11 et ses
l• es eo 11.eges fra11çais (X\l!-X 1981) e, cm cob. bora• ç,r.• o com M ane . -Ma
r. représe111atio11s, Presscs de la Sorbonnc-Maison eles Scienccs de la Villc (Tours, 1991) .
1984 e 1988). Dirioiu \l/1/ sii:cle) - volum es (P arrs, Edit ions dclci ne Com i:rc
s ? Prepara com Henri Galinié um Atlas de la Fra11ce dcs villes.
o volu _ do CNRS. !�RI;
(Paris, Edições do EHESS me E·11se1g11e111e11t de /'Atlas de la Révo/111io11
, 19S8). [rançais;
Ti11101/,y Tacke11

Cla11de Langlois Professor da Universidade da Califórnia (lrvinc, USA), é especialista cm história d a


Diretor de e� I u_dos n a Ec França na época moderna. Seus trabalhos sobre o clc�o, no fin al do Antigo Regime,
. olc pratique dcs •
cadeira de hrstorra e sociolooia d hautcs elude " d a .•
s (Scç,10 Priest a1 1d Paris/, i11 Eig/1tee11th-Ce11tury Frn11ce {Princcton Univcrsity Prcss, 1977) e
o ca · . s crcncias relioiosas,
GDRI095H'zsto·na • 101 1c1smo contc1'tpo • nco) e di, r o nos primórdios da Revolução, La Révol11tio11, /'/;.'glise, ln Fra11ce (Paris, Edições do
· do cristianismo (XVI • etor,
XX sceulos), co-dirigc, com no CNRS do
0'

ra
Cerf, 1986), contribuíram amplamente para renovar as abordagens cl.íssic a s. Est:í prcp,1-
Scr<•c
::, 130 nrn,
. ' ,1. rando um a obra sobre os primórdios da Assem bléia constituinte.
-.:1:1
tl
tF 350 PASSADOS RECOMPOSTOS ;i
,, Pierre Vilar

Antigo professor da Sorbonnc e ex-diretor de estudos na École dcs hautes étudcs en scienccs
socialcs, publicou cm 1962 seu livro-mestre, La Catalog11e ,Ians l'Espag11e modeme (3
volumes, Paris, SEVPEN; reed., O Sycomore-EHESS, 1982). Especialista cm história eco­
nômica, Pierre Vilar é um estudioso dos instrumentos conceituais do ofício de historiador
a partir de uma leitura a fundo da obra de Marx, o que o levou a questionar tanto as elabo­
rações de Louis Althusser como as de Michel Foucault. A coletânea de seus artigos
metodológicos foi publicada com o título Histoire marxisle, Histoire en co11strttclio11.
Approcl,e marxiste et problématiques co11jo11cturelles (Paris, Gallimard-Le Seuil, 1982).

Arundhati Virma11i
: \1
�estrc de conferências da Universidade de Délhi, especialista cm história da França e da
lndia contemporâneas. Colaborou para uma Histoirede l'Europe (Délhi, 1985, em hindu)
e prepara uma obra sobre Le Drapeau de /'U11io11, Symboles politiques et ide11tités
11atio11ales dans /'/11de co111emporai11e.
l •

Você também pode gostar