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historiador não ter ideias?


As reflexões teóricas deste livro buscam
estimular a pesquisa empírica, inspirando-lhe
problemáticas e caminhos metodológicos,
orientando as opções e decisões de critério
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e valor.
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O livro tem precisamente este objetivo:
fazer circular, renovar, estimular e transmi-
tir cultura. Ele deseja ser e promover uma
recriação do mundo e dos seus sentidos.
José Carlos
HISTÓRIA
& TEORIA
Historicismo, Modernidade,
Temporalidade e Verdade
José Carlos Reis

HISTÓRIA
& TEORIA
Historicismo, Modernidade,
Temporalidade e Verdade
3a Edição

FGV
EDITORA
ISBN — 85-225-0424-3
Copyright © 2003 José Carlos Reis
Direitos desça edição reservados à
EDITORA FGV
Rua Jornalista Orianda Daneis, 37
22231010 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil Sumário
Tels.: 08000-21-7777 — 21-2559-4427
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impresso no Brasil / Printed in Brazil
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todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nfl 9.610/98).
Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do aucor.
1a edição — 2003
2a edição — 2005 Apresentação 7
3a edição — 2006
1a reimpressão — 2007 1. História da história: civilização ocidental e sentido
2a reimpressão — 2008 histórico 15
3a reimpressão — 2009
Metafísica e história 15
REVISÃO DE ORIGINAIS: Maria Lúcia Leão Velloso de Magalhães A modernidade 22
PROJETO EDITORIAL: Editora FGV Modernidade e história-conhecimento 36
REVISÃO: Fátima Caroni, Márcia Pignataro A pós-modernidade 42
CAPA: Leonardo Carvalho Pós-modernidade e história-conhecimento 53
ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Estatueta feminina em terracota, Chipre antigo Breve levantamento bibliográfico 62
© Birmingham Museums and Art Gallery
2. Da história global à história em migalhas:
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
Mário Henrique Simonsen/FGV o que se ganha, o que se perde? 67
Reis, José Carlos Modernidade iluminista versus pós-modernidade
História & teoria: historicismo, modernidade, tempo- estruturalista e pós-estruturalista 68
ralidade e verdade / José Carlos Reis. — 3. ed. —• Rio de F. Dosse: da história global à história em migalhas 73
Janeiro : Editora FGV, 2006. O conceito de ciência histórica dos Annales 80
248p.
A história global 85
Inclui bibliografia. A história em migalhas (en miettes ou eclatéè] 88
1. História — Filosofia. I. Fundação Getulio Vargas. II.
O que se ganha e o que se perde? 91
Título. Bibliografia 95

CDD — 9 0 1 3. A especificidade lógica da história 97


O conhecimento histórico como problema 97
O modelo nomológico 106
O modelo compreensivo 776"
O modelo conceituai 124
O modelo narrativo 132
Bibliografia 145
Apresentação
4. História e verdade: posições 147
Introdução 147
O problema 149
Qual o alcance da verdade histórica? Posições 755
Parágrafos de transição 166
Conclusões 775
Bibliografia 176

5. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck


e nos Annales: urna articulação possível 179 Este livro reúne seis ensaios sobre teoria da história. Inspirado em
Discursando sobre o tempo: o físico, o filósofo e o historiador 779 Gilberto Freyre, intitulei-o História & teoria, querendo dizer o mesmo que
O tempo histórico seria um terceiro tempo entre a Freyre com Casa-grande ò" senzala: que não são termos separáveis, em opo-
natureza e a consciência? 183 sição ou excludentes, e sim que, embora pareçam assimétricos, são asso-
Conclusão: uma articulação possível 207 ciados, remetem-se um ao outro, estão ligados implícita e profundamente,
Bibliografia 205 inextricavelmente imbricados. A pesquisa histórica mantém com a teoria da
história uma relação de fecunda tensão: por um lado, toma-a como dire-
6. Dilthey e o historicismo, a redescoberta da história 207 cionadora do seu olhar, por outro, nega-a, para sustentar que o vivido é
A Revolução Francesa e a redescoberta da história 207 sempre novo e alheio a toda teoria. A teoria também mantém com a pes-
Historicismo: um conceito? 214
quisa uma relação igualmente fecunda e tensa: quer se impor sobre a do-
Dilthey e o historicismo 22íT
cumentação e sistematizar a experiência vivida, mas aceita a pluralidade de
Bibliografia 244
perspectivas possíveis e considera necessária e desejável a resistência do vi-
vido às suas orientações. Dessa resistência depende a sua renovação, a cria-
ção de novas interpretações. Portanto, a relação entre teoria histórica e ex-
periência vivida é tensa, uma relação ao mesmo tempo de aceitação e de
recusa recíprocas. Não há pesquisa histórica empírica sem o apoio implícito
ou explícito da teoria e a teoria é estéril sem a pesquisa histórica. Uma se ar-
ticula com a outra e se constituem reciprocamente.
As reflexões teóricas deste livro aspiram a estimular a pesquisa em-
pírica, inspirando-lhe problemáticas, caminhos metodológicos, orientando
as opções e decisões de critério e valor. E infecundo o desdém de historia-
dores pela discussão teórica e igualmente infrutífera a discussão teórica sem
apoios documentais. Pode-se priorizar uma ou outra, mas não é possível
desvincular uma coisa da outra. Pode um historiador não ter ideias? Para
Veyne, "é mais importante te:' ideias do que conhecer a verdade". Enfim, a rcpresentaçao temporal. A civilização ocidental, apói os gregos, interesscu-
querela empinstas X teóricos não deve ocorrer, pois ilegítima. se mais pelo (muro e avalia o presens e o p-.issado a partir de seu horizonte
Estes escudos foram produzidos ao longo de minha carreira acadé- c!e espera, de sua expectativa em relação ao futuro. A percepção do futuro
mica, em datas diferentes, o que justifica uma provável heterogeneidade. cia pós-modernidade é diferente daquela da modernidade e, em conse-
São escritos de professor, portanto vinculados diretamente aos cursos que quência, a representação do passado, os objetos, os problemas, os objetivos,
ofereci na área de teoria e metodologia da história: primeiro, na Universi- os valores da comunidade historiadora mudaram. A pergunta do capítulo é:
dade Federal de Ouro Preto e, atualmente, desde 1997, na Universidade Fe- a passagem da modernidade à pós-modernidade significou precisamente o
deral de Minas Gerais. Neles, o leitor encontrará reflexões, sistematizações, que para a historiografia?
organizações, sínteses de vasta bibliografia sobre alguns temas centrais da teo- No segundo capítulo, "Da história global à história em migalhas:
ria da história. Os seis ensaios tratam de temas clássicos e atuais, como mo- o que se ganha, o que se perde?", texto que produzi para um colóquio
dernidadelpos-modernida.de, historiografia contemporânea, temporalidade, ver- sobre historiografia contemporânea promovido pelo Departamento de
dade, modelos epistemológicos, historicismo. São temas que, imagino, interessam História da UFRGS, em 1997, e publicado em coletânea organizada pela
a todos os estudantes de história, sobretudo aos professores. Estes ensaios promotora do evento, professora Silvia Petersen, prossigo a discussão
não são criptogramas. Foram escritos em linguagem clara, estruturados de sobre a historiografia contemporânea iniciada no capítulo anterior, tema-
forma transparente, respeitando o leitor e desejando obter a sua atenção. tizando a principal mudança na passagem à pós-modernidade, que foi o
Como já disse, são escritos de professor: simples, diretos, generosos. São es- fim da busca de uma história global. Partindo da tese de Dosse de que a
tudos independentes, podendo ser selecionados uns e outros e lidos isola- terceira geração dos Anneiles teria feito uma "história em migalhas", reto-
damente. Mas o livro pode também ser lido por inteiro, do princípio ao mo a historiografia dos Ar.nales, procurando entender o que as primeiras
fim, como um romance, pois, em sua aparente autarquia, os capítulos se re- gerações quiseram dizer com a proposta da "história total ou global". Para
metem e se esclarecem reciprocamente. Dosse, a terceira geração teria traído os fundadores, ao não mais se inte-
No primeiro capítulo, "História da história: civilização ocidental e ressar por essa perspectiva totalizante. Esboço várias tentativas de defini-
sentido histórico" — um estudo vulnerável e ambicioso, recente e iné- ção do que os primeiros Annales estariam querendo dizer com história to-
dito —, faço um sobrevoo da cultura ocidental desde os gregos até a dita tal. No final do capítulo, procuro avaliar, nesta passagem da história
pós-modernidade. Dedico-me especialmente a discutir essa transição da global à história em migalhas, que perdas e que ganhos poderiam ter ha-
modernidade à pós-modernidade, procurando definir e datar esses conceitos vido para a historiografia. A pergunta do capítulo é: o fim da busca da his-
polémicos. Sobretudo, procuro distingui-los pela repercussão que tiveram tória total-global representou precisamente o que para o pensamento his-
sobre a historiografia. Minha hipótese é que a produção historiográfica é tórico?
que vai decidir se os termos "modernidade" e "pós-modernidade" fazem No terceiro capítulo, "A especificidade lógica da história" — um
senado ou não, se se referem ou não a processos reais: houve mudança na estudo também vulnerável e ambicioso, recente e inédito —, tem-se uma
historiografia? Quem, quando, como e onde? Se há um "quem, quando, discussão epistemológica sobre os diversos caminhos teórico-metodológi-
como e onde" historiográficos, então esses termos devem ser teoricamente cos abertos à história nos séculos XIX e XX. Problematiza-se até mesmo a
levados em consideração. O capítulo procura mostrar as articulações entre possibilidade do conhecimento histórico. A história é possível? A tarefa do
modernidade e historiografia moderna e pós-modernidade t historiografia historiador é realizável? Após um inventário das inúmeras objeções feitas
pós-moderna, revelando que há diferenças profundas entre uma historio- ao ofício de historiador, vindas de todas as partes da teoria do conheci-
grafia e outra. Essas diferenças na historiografia mostram que a civilização mento, todas elas muito consistentes e interessantes, apresento as quatro
ocidental mudou mais uma vez. O centro da mudança está em sua con- saídas oferecidas pelos teóricos que defendem a história contra o pirro-
cepção de "história universal" e de "sentido histórico", ou seja, em sua auto- nismo que sempre a sitiou: o "modelo nomológico", defendido por Cari
10 J (J S E C A R LO S R. F l

Hempel; o "modelo compreensivo", em suas versões intuitiva, de Wil- história em relação às expectativas naturalistas de um conhecimento ob-
helm Dilthey, e racional, de Max Weber; o "modelo conceituai", de Max jecivo e seguro. A questão da temporalidade c tratada neste capítulo em
Weber e Paul Veyne, e o "modelo narrativo", de Paul Ricoeur. Nenhum três autores acuais e fundamentais: Ricoeur, Koseileck e Braudel. São três
desses modelos revelou-se incontestável, um porto realmente seguro para leituras extremamente sohsticadas do cernpo histórico, que procuro ao
o conhecimento histórico. Todos eles são fustigados pelo ceticismo em re- mesmo tempo diferenciar, distanciar e a r t i c u l a r . A pergunta do capítulo é:
lação ao conhecimento histórico e se mantêm em pé com dificuldade. O o que é e como se formula o problema da temporalidade histórica?
que os salva é a circularidade virtuosa que os prende uns aos outros: a crise Chega-se, então, ao sexto e último capítulo, "Dilthey e o histori-
do modelo nomológico leva ao modelo compreensivo, cuja crise leva ao cismo, a redescoberta da história" — autor e "escola" que decidiram acei-
modelo conceituai, cuja crise leva ao modelo narrativo, cuja crise nos leva tar a temporalidade e todos os seus riscos epistemológicos; autor e "escola"
de volta ao modelo nomológico. A pergunta do capítulo é: qual dos mo- que talvez possam ser apresentados como os mais próximos da nossa po-
delos de conhecimento histórico poderia resolver melhor as suas aporias? sição atual em relação às discussões sobre a teoria da história. Este capítulo
O quarto capítulo, "História e verdade: posições", foi publicado talvez possa ser lido como uma plausível e provisória conclusão para as
em 2000, no número 89 do volume 27 da importante revista dos jesuítas discussões esboçadas nos capítulos anteriores. Dilthey não vem sozinho.
Síntese, Revista de Filosofia. Nele, retomo algumas das objeções ao conhe- Junto com ele, precedendo-o, Viço; seguindo-o, toda a coorte de exegetas,
cimento histórico já expostas no capítulo anterior e considero várias res- hermeneutas e intérpretes dos séculos XIX e XX: Heidegger, Weber, Jaspers,
postas ao problema da verdade histórica, oferecidas pelos mais reconhe- E. Cassirer, Troeltsch, Scheller, Simmel, Mannheim, Gramsci, Aron,
cidos e recentes historiadores e filósofos da história. Meu objetivo é criar Lõwith, Lukács, Spranger, Sartre, Gadamer, Habermas, Rjcoeur e muitos
um poliedro de posições sobre a verdade, para fazer do problema um outros. Poucos foram tão originais como Dilthey em epistemologia das ciên-
exame ao mesmo tempo teórico e histórico. As faces desse poliedro são cias humanas. A sua obra está na base de todo o pensamento fenomenoló-
Ranke, Weber, Marx, Ricoeur, Marrou, Foucault, De Certeau, Duby e gico, existencialista, hermenêutico, de grande parte das teorias da história,
Koselleck. Esses autores são chamados a testemunhar, uns como "realis- da literatura, da pedagogia, da psicologia e da antropologia do século XX. O
tas", outros como "nominalistas", sobre a verdade histórica. O resultado seu interesse pelo fenómeno cultural, a sua discussão sobre os valores e a
é uma tensão tão rica que ameaça explodir as paredes do poliedro, tor- ênfase na individualidade estão na base de toda radical "teoria crítica" da
nando impossível qualquer figura reconhecível do problema da verdade sociedade, como, por exemplo, a da Escola de Frankfurt e a dos diversos
histórica. Mas a explosão não ocorre: na divergência acirrada e agudizada, marxismos culturalistas.
surge o desenho de uma figura, a proposição de uma ideia cheia e densa Dilthey temporalizou os estudos históricos, valorizou a experiên-
sobre a questão. A pergunta do capítulo é: apesar de se chegar a posições cia humana no tempo, procurando a vida lá onde, quando e como se ma-
tão díspares, pode-se falar em verdade em história? nifestava. Seu tema era o da historicidade, o da experiência vivida e o da
Isso nos leva ao quinto capítulo, "O conceito de tempo histórico busca de uma experiência humana feliz. Talvez, por ter sido tão original,
em Ricoeur, Koselleck e nosAnnales: uma articulação possível", um artigo Dilthey tenha sido tão mal compreendido! Ele foi um homem de grandes
escrito em 1996 para o número 73 do volume 23 da mesma revista dos je- intuiçóes e não um construtor de análises abstratas. Para a tradição car-
suítas, quando esta ainda tinha o título Síntese Nova Fase. As objeções à tesiana, iluminista e positivista, ele estaria na contramão da Razão. Em seu
história do capítulo 3, a crispação do capítulo 4, a mudança na historio- pensamento aparece uma personalidade intuitiva, poética. Ele represen-
grafia nos capítulos l e 2 foram geradas por um problema central, fun- taria uma perigosa porta aberta ao irracionalismo. Ele é posto, aqui, como
damental, para a teoria da história: a temporalidade. O tempo é respon- a referência central de uma orientação mais ampla da teoria da história: o
sável pelas dificuldades cognitivas e, de outra ordem, da história. Ou não inefável historicismo. Aos problemas postos anteriormente, Dilthey ofe-
seriam "dificuldades cognitivas", mas riqueza, especificidade, diferença da receu uma densa reflexão e sugeriu caminhos fecundos, seguidos pelos
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melhores teóricos da história do século XX. Neste capítulo, parcialmente veicula um mundo cultural compartilhado por ele e pelo leitor. Para Ri-
publicado em 2002, no número l do volume 8 da revista Locus, do De- coeur. a obra hiitórica produz, faz circular, renova e transmite cultura. E
partamento de História da UFJF, discuto as consequências da Revolução este texto tem precisamente esse objetivo: fazer circular, renovar, estimular
Francesa para o conhecimento histórico e ao mesmo tempo examino e e transmitir cultura. Ele deseja, ser e promover uma recriação do mundo
aceito a proposta historicista, se é que há um conceito para historicismo.
e dos seus sentidos.
Tento defini-lo e apresento Wilhelm Dilthey como um dos autores cen- Finalmente, uma palavra de agradecimento. Como disse, estes es-
trais para a teoria da história contemporânea.
tudos foram produzidos ao longo da minha carreira académica. Gostaria de
dedicá-los a todos aqueles, professores, colegas, alunos, universidades, edi-
toras, revistas, jornais, críticos, pareceristas, que pavimentaram de alguma
forma esta minha estrada. Sou profundamente grato aos meus orientadores
E chegamos ao "mundo do leitor". Esta rápida apresentação do do mestrado e do doutorado, professores Ivan Domingues (UFMG) e
livro dirige-se ao amável leitor, não para limitar sua'leitura ou indicar-lhe André Berten (Université Catholique de Louvam, Bélgica); agradeço ao
o modo de manipulá-lo. A obra continua aberta. Não ignoro que o livro professor André Burguière, por sua atenciosa interlocução no pós-doutora-
que tem em mãos lhe pertence e não pretendo lhe mostrar como deve lê- do, na École dês Hautes Études en Sciences Social es. Agradeço à Capes,
lo. Ele é seu, por dentro e por fora e, portanto, traçará nele o seu próprio pelas bolsas de mestrado e doutorado, e ao CNPq, pela bolsa de pós-dou-
itinerário. Como autor, entrego-o à sua "filtragem" (Ginsburg), à sua torado, além da rara bolsa de produtividade em pesquisa, que é preciosa,
"apropriação" (Charder), à sua "refiguração" (Ricoeur). Mas, como autor, nestes tempos difíceis para os professores da universidade pública brasileira.
me inquieto: com que disposição de espírito esse misterioso leitor receberá Agradeço aos meus ex-alunos, especialmente àqueles que foram simpáticos
esses "mal-escritos sobre a história"? E me tranquilizo e me animo: não e competentes interlocutores. Quanto às tais pedras no meio do caminho...
importa, pois é preciso haver leitores, porque sem eles não há obra. A nar- Ora, como diria Voltaire, que continuem constipadas!
ração, para Ricoeur, só assume um sentido pleno quando é restituída ao
tempo do agir e do sentir. O autor entrega ao leitor as suas elucubrações
com a esperança de que a cada leitura, modificadas, as suas ideias renas-
çam, ganhem um novo sopro de vida. O texto só se torna uma obra quan-
do chega ao leitor, que o recria. A escrita é só um esboço para a leitura. O
texto é cheio de vazios, descontinuidades. O leitor é co-autor. É ao re-
ceptor que a narração ensina o universal. O leitor recebe o texto segundo
as suas categorias culturais. Há paradigmas que sustentam a sua espera. E
ele quem lê e segue uma história. Espero que este texto ofereça ao leitor
virtual o prazer do reconhecimento, algum prazer do texto, que sofra a ca-
tarse e reconstrua, com mais competência e desenvoltura, as ideias e emo-
ções que este texto articula. A catarse une cognição, imaginação e senti-
mento. Essa catarse pode ser esperada pelo autor, porque o seu texto

* O leitor interessado em saber algo mais acerca de meus estudos sobre Wilhelm Dilthey
pode ler REIS, J. C. Wilhelm Dilthey e a autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina:
Eduel, 2003.
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CAPÍTULO l

História da história: civilização ocidental


e sentido histórico

Metafísica e história

Ao longo do último milénio, os historiadores ocidentais manifes-


taram preocupação constante com o destino de uma "humanidade uni-
versal". Aterrorizados com as experiências cada vez mais frequentes e bru-
tais de guerras e invasões, injustiças sociais, epidemias, fomes, catástrofes
naturais, interrogaram-se obsessivamente sobre a história universal, sobre
o seu sentido, sobre o dever ser da humanidade, sobre a perfectibilidade
humana, que poderia se realizar na história. Perguntas metafísicas orien-
taram as reflexões e pesquisas históricas no Ocidente: "quem somos?",
"para onde vamos?", "para que viemos e qual será o nosso destino?",
"como obter a salvação?". Essas perguntas revelam uma angústia funda-
mental, a experiência de um permanente mal-estar de ser-no-tempo. O
Ocidente sofre com a própria ausência e procura construir uma imagem
global, reconhecível e aceitável, de si mesmo. A cultura ocidental se in-
terroga sobre a sua identidade, que generaliza como problema do homem
universal. Esse esforço obsessivo para atribuir um sentido inteligível, uni-
versal, à "vida humana" se explica pelo fato de a cultura ocidental não pos-
suir uma identidade sem fissuras e de precisar justificar seu expansionismo
pelo mundo. Ela se esforça para se integrar, luta para se reconhecer em sua
totalidade, para poder se expandir com a legitimação de um discurso claro
e distinto, irretorquível.
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J o sf CARIO- 17

Este capítulo pretende contribuir com uma reflexão crítica sobre interessavam pelo imutável, perceptível na ordem fixa dos corpos celestes.
esse esforço ocidental, procurando reconstruir o percurso da sua problemá- A mudança não poderia levar ao ser, pois um ser que muda já não é. O
tica — a das relações entre a "ideia de história universal e de sentido his- ser-que-é é alheio à mudança, imutável, estável, permanente, sempre pre-
tórico". Ao refazer a história dessa história, tem por objetivo produzir o le- sente. Eles procuravam reconhecer nas mudanças humanas uma "natureza
vantamento e as articulações entre as diversas representações da vida e do humana", que passa por ciclos, mas é permanente aos olhos da razão. O
seu sentido ao longo da história do Ocidente. Trata-se de uma "síntese au-
futuro teria os mesmos eventos do passado e os homens teriam sempre as
tocrítica" da cultura ocidental, uma forma de busca da identidade, que pro-
mesmas pulsões e necessidades. A vida humana se move em repetições,
cura percorrer, reconstruir, elaborar, integrar e autocriticar as experiências
como o sol, as estações. Os gregos tinham uma visão cíclica e repetitiva da
vividas de modo disperso e desarticulado. A história tem um papel primor-
história: crescimento e decadência, vida e morte. A ordem que existe no
dial nessa busca ocidental de auto-integração e auto-reconhecimento.
universo, acessível ao pensamento, não revela uma sucessão linear e teleo-
A fragmentação da identidade ocidental começou com os gregos, lógica, mas a estabilidade do ser. Pela contemplação e pelo discurso, es-
que, ao mesmo tempo, tinham uma cultura anti-histórica e inventaram a tabeleciam a ordem racional do cosmo. A mudança não podia ser tema da
história. Eles já oscilavam entre o sagrado e o profano, entre a eternidade filosofia. A mudança seria da ordem do irracional, incognoscível, incom-
e o tempo, com forte atração pelo profano e pelo tempo. Era estranha aos patível com um pensamento que buscasse a verdade. A mudança é "for-
criadores da história essa ideia abstrata e genérica de uma "humanidade tuna", "acaso", "contingência", "sorte-azar", "vicissitude". Pode-se mudar da
universal". Esta não foi construída pelos gregos, os fundadores da cultura riqueza para a pobreza, da vitória para a derrota, da escravidão para a li-
ocidental. Os historiadores gregos não pretenderam revelar o destino da berdade e vice-versa. A mudança deve ser encarada virilmente, sabiamen-
humanidade. Eles criaram um conhecimento dos homens estranho a toda te. Na hora do triunfo, pensar na derrota. Deve-se aprender com a des-
ideia de evolução, progresso, restringindo-se ao registro e à interpretação graça e ser moderado na prosperidade. O sentido não era procurado na
das ações humanas de alcance limitado, apoiados em documentos visuais mudança, na história, como o faria o historiador ocidental posterior. A
e orais (só quem presenciava o evento podia relatá-lo de modo confiável). história, que então nascia, não gozava de nenhum apreço filosófico. Uma
Sua história apenas ensinava, em relação ao futuro, a necessidade da me- "filosofia da história" seria um contra-senso. Diante da mudança histó-
mória, da prudência, da cautela, da resignação. Eles não tinham uma ideia rica, os homens deveriam apenas encará-la com coragem e serenidade. O
da unidade e da solidariedade da espécie humana. A vida grega era frag- filósofo, que queria ser feliz, só tinha uma esperança: abandonar a história,
mentada em pequenos todos, divididos e em guerra. Suas especulações tornar-se uma ideia eterna e jamais retornar ao tempo.
sobre o fim último da vida humana eram sóbrias. Não esperavam que, no
Os gregos se interessavam pelo eterno, pelo que não precisa da his-
final, a história pudesse trazer a felicidade humana. O historiador só podia
tória para ser. Seus historiadores, ao fundarem a história, desafiaram a pró-
oferecer aos homens a felicidade individual, atribuindo a eles uma repu-
pria cultura anti-histórica. A história que fundaram não se interessava pelo
tação de heróis, a fama eterna, a lembrança do seu nome e dos seus feitos.
futuro, apenas pelo presente e pelo passado. Eles não se perguntavam "o que
Contudo, apesar de sua nova ciência — a história —, eles também fazer?", questão que indica o futuro, mas "o que aconteceu?", questão que
procuraram dar um sentido metafísico ao mundo. E o procuraram na aponta para o passado, que preferiam recente. Não se interessavam histori-
contemplação da ordem e da beleza estáveis do universo. Os gregos não camente pelo futuro como "humanização", nem pelo longínquo passado,
buscavam o sentido do ser na história. Para pensarem o cosmo, faziam que tratavam miticamente. Acreditavam que o futuro individual já estava
abstração da história, que, para eles, era o lugar sublunar da mudança, da dado e podia ser antevisto pelos oráculos. Os homens do futuro não seriam
desordem. Aboliam o tempo, submetendo o universo a uma explicação melhores do que os passados e os atuais. Os oráculos tinham o dom de ver
natural e racional, o logos, a ordem, que a mudança esconde. Seu olhar a vida predestinada dos indivíduos que as musas lhes sopravam. Estas co-
sobre o mundo buscava a perfeição do movimento circular. Os gregos se nheciam tudo: o passado e o futuro. Os eventos presentes e passados tinham
18 r l I S T O R IA &- T E O R I A J o s È C A R L O S R E ii 19

as mesmas características. Heródoto só queria evitar o esquecimento das sin- O cristianismo, inicialmente combatido, foi depois reconhecido e
gularidades humanas. O significado dos eventos lhes era implícito e não os incorporado como religião oficial, pois apoiaria com o sentimento religio-
transcendia. A narração histórica não conduzia a um fim, revelando apenas so e o discurso teológico a conquista romana do mundo. Havia uma apa-
eventos, períodos, ciclos. A história, ao se repetir, se compensava. Suas mu- rente tensão entre os projetos de história universal dos romanos e dos cris-
danças revelavam o equilíbrio das forças histórico-naturais. Os historiadores tãos. Os romanos queriam subjugar politicamente os povos não-romanos
fizeram um vão esforço para eliminar toda lenda ou divindade, pois estas es- e só encará-los como "humanos" depois de despojá-los de sua diferença;
tavam integradas à sua cultura mítica. Em Tucídides isso se radicaliza, tam- os cristãos, por serem originariamente "religiosos orientais", tinham uma
bém em vão. Suas narrativas são cheias de oráculos, adivinhações, inter- ideia mais radical de "humanidade": para eles, a ela também pertenceriam
ferências de forças míticas. É uma história que procura tratar das lutas os pagãos, que mereciam conhecer a Verdade. Essa tensão se dissolveu no
políticas, tomando por base orna "natureza humana". Para os gregos, a ideia curso da conquista do mundo pelos romanos, que se apresentavam como
de universal era a ordem cósmica imutável. Para os historiadores gregos, cristãos e portadores da Verdade, tendo portanto o direito divino de sub-
uma "humanidade universal" seria uma natureza humana já feita, eterna. A jugar e catequizar os "pagãos", que, coincidentemente, eram todos os
natureza das coisas seria crescer e declinar e nada de novo ocorreria sob o povos náo-romanos. A Igreja Romana e o Império Romano formaram o
sol. A ideia que os gregos faziam da unidade e da solidariedade da espécie verso e o anverso de uma mesma (e primeira) ideia de "história universal",
humana tinha a ver com "natureza humana" e não com "história universal". como vontade de potência universal legitimada por um discurso de salvação da
Entre os gregos, a ideia de uma história universal não era ainda humanidade.
formulável, pelo menos não com a força que seria formulada pelos roma- Os romanos identificaram no cristianismo que surgia a nova ideia
no-cristãos. Eles náo viam o bárbaro (o não-grego) como um humano de história que os faria imbatíveis por mil anos: a de uma história uni-
completo. Embora Heródoto tenha-se referido, com simpatia, a povos versal, uma história do género humano como um todo, incluindo os não-
não-gregos, para a cultura grega estes não podiam ter "história". romanos — os "pagãos", como definiam os "bárbaros". A humanidade
teria então uma história comum e uma direção única: a vitória romana e
A ideia de "história universal" só começou a ser formulada e a ser
a salvação cristã. A história da salvação romano-cristã reúne tempo e eter-
central numa cultura com os romanos. E isso representou uma ruptura
nidade, história e Cristo. Foi uma ideia absolutamente nova, que nem os
com a consciência histórica grega e uma fissura na cultura ocidental. O
judeus haviam chegado a formular, obcecados com a ideia de "povo elei-
passado e o futuro tornaram-se assimétricos e o futuro passou a ser o cen-
to". Os judeus, porém, já tinham formulado a ideia de história como ca-
tro de gravidade da história. Em Políbio, a ideia de uma "história uni-
minho linear para a salvação humana. Judeus e cristãos buscavam um sen-
versal" se confundia e se restringia à do Império Romano, cujo fim era a
tido, tinham fé em um fim último. Sua revolução cultural consistiu em
romanização de todo o mundo. O fim da história era o domínio de Roma
aceitar o tempo e a história como meio de salvação. Os eventos' históricos
sobre o mundo. Roma era a reunião de todos os povos mais avançados do
eram manifestações de Deus, cuja vontade devia ser decifrada. O destino
mundo. Mas, dessa comunidade "universal", os não-romanos estavam ex-
das nações, as lutas políticas se submetiam à vontade divina. Essa ideia
cluídos. A ideia de uma "humanidade" que incluísse a alteridade dos não-
nova criou uma história nova — a história universal. O final — a Salvação
romanos ainda não existia. Os romanos a conceberam movidos por uma
— conferia realidade e sentido a todos os eventos e personagens do pas-
incoercível motivação expansionista. Sua enorme vontade de potência os
sado, do presente e do futuro.
fez pensar em uma "humanidade universal", conquistada e romanizada.
Os romanos iniciaram a aventura ocidental de conquista do
Em Roma, o sentido da unidade humana era político: o controle de todos
mundo imbuídos da fé de que iriam salvá-lo! A ideia de "história univer-
os povos por um único povo. Faltava um discurso — pois os romanos
eram herdeiros dos gregos — que oferecesse legitimidade metafísica a essa
vontade de potência universal. 1 Hartog, 1986; Momigliano, 1983; Lõwith, 1968; e Collingwood, 1981.
f
20 i-i l i T O R l A &

sal" e de um sentido histórico único para toda a humanidade começou a efémero. Os valores religiosos intemporais aumentavam o desprestígio das
se elaborar como conquista, por um povo, de todos os povos. Os romanos coisas temporais. O pecado mortal envolvia tudo, corrompia tudo. Neste
se atribuíram essa missão divina e não poderiam falhar. Eles sintetizaram mundo, predomina a força brutal e a não-fraternidade. Este mundo é pe-
a tese judaica do "povo eleito" com o universalismo cristão do pagão-tam- cado, corrupção. É efémero, sem sentido. Absurdo! A morte torna vão
bém-filho-de-Deus. Eles, povo eleito, tinham a missão de levar aos pagãos todo acúmulo de riqueza, de cultura, de desejo, de força. O camponês
essa verdade única da história universal: "somos todos filhos do único podia se sentir vingado: o senhor morrerá! Do ponto de vista ético, só um
Deus e nós, o povo eleito de Deus, seu filho dileto, pois Ele veio ao nosso sentido divino para este mundo o impediria de ser um absurdo absoluto.
mundo e nos revelou a Verdade; temos o direito divino de liderá-los na A necessidade de salvação levava a religião a se tornar intemporal, estranha
história da salvação!" a todo interesse pela vida neste mundo.
O cristianismo romano representava a história universal como Essa representação da vida humana no Ocidente, reprimindo
possuindo uma causalidade teleológica. A história tinha uma meta, um tê- todas as representações míticas arcaicas e se articulando penosamente com
los, uma finalidade. A salvação eterna ao mesmo tempo convivia e adviria o racionalismo grego, predominou de maneira quase absoluta na Europa
após a sucessão de todos os eventos históricos. Os fatos não tinham um até os séculos XIII-XVI. Nesse período, o cristianismo perdeu sua base
sentido em si mesmos, mas um sentido transcendente. Os cristãos roma- política, tornando-se muito vulnerável às heresias e heterodoxias. Ocorreu
nos, ao contrário dos historiadores gregos, se interessavam sobretudo pelo uma profunda revolução cultural no Ocidente: apareceram outros "novos
futuro, lugar da esperança. O passado era apenas o lugar da promessa de tempos novos", outra "nova história nova", outra representação do tempo
uma realização futura. Passado e futuro seriam assimétricos como o pe- e da história, por muitos nomeada de "modernidade". Nesse novo mundo
cado e a redenção. O passado era o lugar do mal, do pecado, da queda, histórico, era forte a tensão com a tradição do universalismo cristão da sal-
que apareciam nos sofrimentos humanos. E era também onde estavam os vação, que perdera sua base feudal de sustentação política. Os poderes na-
profetas, as manifestações de Deus aos homens, a experiência de Cristo, que cionais emergentes ainda se utilizavam da argumentação religiosa da sal-
prometiam a redenção iminente. O futuro seria a vitória de Cristo (e de Ro- vação, os reis ainda reivindicavam uma legitimidade divina para o seu
ma!) e o fim do calvário humano. Como Cristo, os homens deviam suportar poder, o papa ainda exercia seu poder espiritual universal, mas, com a afir-
os sofrimentos impostos pela experiência da temporalidade e esperar pela mação da especificidade de valores diferenciados nas diversas esferas da
graça de Deus. O futuro pertencia a Deus, o único capaz de revelá-lo. Aos vida social, ocorreu uma nova e profunda fragmentação na cultura oci-
homens não era dado conhecê-lo antecipadamente. Os profetas o conhe- dental. Houve um movimento de recusa da concepção mágico-religiosa
ciam, pois Deus o revelara a eles. O futuro dependia da fé e não de leis na- como legitimação da ação e a busca da legitimidade pela racionalização
turais ou históricas. Seria incalculável teoricamente. A história estava domi- sistemática e prática das realidades da vida. A racionalização das esferas es-
nada pelo desígnio de Deus, pela Providência Divina. A humanidade teria pecíficas levou ao "desencantamento do mundo". Este obrigou a ética re-
uma história comum, com uma direção única: a Salvação, a Redenção. Cris- ligiosa a radicalizar sua racionalidade moral. Os movimentos da Reforma
to reunira tempo e eternidade e viera prometer aos homens sua saída do e da Contra-Reforma representaram esforços do cristianismo para resgatar
tempo e o retorno à eternidade. O reino de Deus era a bússola dos homens a força universal de legitimação que havia perdido. Mas, nas condições
no tempo. técnicas e sociais da cultura racional que emergia, a proposta religiosa de
se levar uma vida de Jesus ou Francisco de Assis conduzia ao fracasso na
Essa representação religiosa da história ao mesmo tempo a valoriza
vida mundana.
como meio de salvação e a deprecia profundamente. Nesse mundo tem-
poral, o sofrimento, a injustiça, a infelicidade não encontram solução. Os
padres os explicavam pelo pecado e como punição e meio de expiação. 2 Pattaro, 1975; c Weber, 1974.
Além de imperfeito, este mundo é efémero, e o ser perfeito não pode ser 3 Weber, 1974.
22 Josil C A R L O S R E I S 23

Em face dessas tensões — fraturas novas da identidade ocidental —, um evento: a fascinação por esse mundo sublunar, por suas riquezas, glórias
a busca mística de salvação da humanidade universal sucumbiu à potência e prazeres. O êxtase material desafia o êxtase religioso. A rejeição metafísica
profana da não-fraternidade. Numa cultura organizada racionalmente não tio mundo é revogada. A historicidade não mais é vista como um fardo,
havia lugar para a fraternidade universal. As preocupações e as vantagens deste uma prova, uma pena. Emerge um novo personagem na história: o homem
mundo levaram a Europa ocidental a rearticular seu discurso religioso. A he- da cidade, o burguês, o comerciante, que avança pelos oceanos na conquista
rança romana, que favorecera a expansão de Roma, devia passar por ajustes desse mundo. Aquele diálogo bíblico entre Jesus e o demónio, em que este
para continuar apoiando a Europa ocidental em sua expansão, agora por todo promete a Jesus todas as riquezas deste mundo em troca de sua alma e sub-
o mundo. Tal como estava, depreciando tanto a ação e o sucesso neste mun- missão, ganha uma nova versão. A conquista do mundo não significava ne-
do, desvalorizando tanto as novas e enormes conquistas europeias, tornara-se cessariamente a perda da alma e a aceitação do diabo, mas a colaboração dos
um entrave ao expansionismo ocidental. Os europeus continuatam (e até homens na restauração da criação divina. Os europeus retomam a lógica im-
mais radicalmente), como os romanos, a agir em nome da fé cristã. Mas i perialista dos romano-cristáos e se sentem a serviço da salvação da huma-
hora era de reinvenção da teologia, de recriação do discurso sobre Deus, a fim nidade quando vencem e submetem os pagãos não-europeus do mundo in-
de que os apoiassem eficazmente na continuidade da produção da história teiro. Ao fazê-lo, acreditam que os estão incluindo no caminho da Verdade
universal, ou seja, na conquista e na salvação da humanidade universal. e da Vida (da Civilização) e que os pagãos deveriam tet para com eles, eu-
ropeus, um sentimento de profunda gratidão!
Para Lê Goff, o conflito entre o tempo da Igreja e o tempo do
A modernidade mercador fundou a nova mentalidade do mundo moderno. Por continuar
fiel a Deus e ser conquistador deste mundo, o burguês possui objetivos di-
Entre os séculos XIII e XVI, na Europa ocidental, surgiu uma nova
ferentes e incompatíveis: o lucro e a salvação! Ainda cristão, ele deseja a
consciência do sentido histórico. O conceito de modernidade, com o qual
eternidade, a salvação; burguês, deseja os prazeres múltiplos deste mundo.
se procura definir esse novo corte na identidade ocidental, revela a nova re-
Aí se fortalece a ideia da modernidade como um aprofundamento da frag-
presentação da temporalidade histórica, elaborada por esse novo sujeito his-
mentação da consciência ocidental. Ao procurar realizar fins contraditó-
tórico. Essa representação do tempo é marcada fundamentalmente pela re-
rios, a consciência burguesa perde a unidade que antes a religião garantia.
cusa da metafísica. A metafísica, então, "começou a se derreter como a neve
O cristão reformado até confunde seu sucesso nos negócios com a graça
sob o sol" (Dildiey). E também a se reorganizar, a se reescrever, a se rein-
de Deus, misturando esferas que não se articulam.
ventar. A "modernidade" significou uma revolução cultural, ocorrida ape-
nas no Ocidente, que acompanhou e tornou possível a expansão europeia O esforço de racionalização geralmente ocorre quando há a frag-
pelo mundo e, internamente, a constituição de uma nova ordem política mentação da consciência. E um esforço de reunir, organizar gestos c sen-
(Estado burocrático), uma nova ordem económica (ética do trabalho e em- timentos contraditórios. As ações apoiadas em valores tão contraditórios
presa capitalista) e uma nova ordem social (não-fraternidade religiosa). Esse como a salvação, que exige a fraternidade, e o lucro, que impõe a redução
conceito designa uma consciência secularizada, mais fascinada do que ate- ou a eliminação da alteridade, exigem um trabalho contínuo e vão de reu-
morizada pela experiência do tempo sublunar. O tempo profano veio de- nificação racional de uma identidade reconhecível e aceitável. A recusa da
safiar o tempo sagrado cristão. Uma história deste mundo veio desafiar e metafísica não se realizou plenamente. A metafísica que sobrevive obscu-
conviver com a história universal sagrada. Deus não seria abandonado, mas rece com a culpa o desejo de fruição deste mundo. Essa fragmentação da
não reinaria mais sozinho e de modo absoluto. Ocorre então uma novidade, identidade ocidental, que na modernidade se radicaliza, na verdade sem-
pre existiu, na medida em que o logos grego dificilmente se compatibilizou
com a fé cristã e jamais se livrou do mito. O que ocorreu na "moderni-
4 Koselleck, 1990; e Momigliano, 1983. dade" foi uma agudização desse confronto interno, mantido latente pela
24 JOSÉ CARLOS REIS

vitória medieval do cristianismo, que levou o homem ocidental a um tipo e lógicas distintos, inconciliáveis. A cultura profana retoma seu combate à
de "surto psicológico e cultural". cultura sagrada, após ter sido vencida por mais de um milénio. Desencon-
Weber tematizou essa questão de modo insuperável em sua obra trado, contraditório, o coração desabotoado de um lado, a razão afiada de
A ética protestante e o espírito do capitalismo e no artigo "Rejeições religiosas outro, o próprio homem europeu se contesta!
do mundo e suas direções". Sua pergunta era: "por que o desenvolvimento Essas esferas diferenciadas mantêm entre si e com a religião relações
científico, artístico, político, económico não se dirigiu, fora da Europa, peia tensas. Elas coexistem, mas sob tensão. Essa tensão entre as esferas de valores
via da racionalização que se deu no Ocidente? Por que o processo da 'mo- diferentes — a económica, a social, a estética, a intelectual, a erótica —
dernidade' ocorreu somente na Europa ocidental?" Para ele, a "moderni- constitui, para Weber, o espírito do mundo capitalista. O espírito capita-
dade" representou o renascimento do racionalismo greco-romano. Na Eu- lista, o espírito da modernidade, é desencantado, secularizado, racional,
ropa, houve um processo de desencamamento das concepções religiosas do imanente, autolegitimado, sujeito de si, tenso, contraditório. O homem re-
mundo que, por um lado, restaurou formas antigas e, por outro, engendrou nascentista vive uma fragmentação da vida que, nesse primeiro momento,
formas novas de cultura profana. Esse processo de racionalização institucio- sente como uma liberação. O universalismo dos valores religiosos e a recusa
nalizou atividades racionais com relação a fins. A cultura se laicizou, as so- religiosa do mundo tinham-se tornado uma camisa-de-força, um entrave à
ciedades passaram a ser movidas pelo Estado burocrático e pela empresa ca- sua iniciativa histórica. Superado o tempo mágico da religião, ele se torna
pitalista. senhor do seu tempo e se fragmenta, articulando com dificuldade as suas di-
Essa racionalização da cultura repercutiu também na vida cotidiana, ferentes esferas de valores. Aliás, nesse primeiro momento, ele vive as suas
que passou a manter uma relação reflexiva com a tradição, perdendo sua es- contradições com alegria, sem lágrimas. Antes, abrira mão ou submetera
pontaneidade natural. Com o Renascimento, a Reforma e as Grandes Na- todas as suas iniciativas e interesses mundanos ao seu desejo de Salvação.
vegações, o tempo se pluralizou. A religião não mais explicava todas as or- Trocara todos os êxtases terrenos pelo êxtase religioso. Agora, embora ainda
dens da vida. Antes, no mundo mágico medieval, as esferas da vida eram
deseje a Salvação, afrouxou um pouco esse freio sagrado e não quer mais
indiferenciadas, dominadas pela vida religiosa. Aquele mundo unificado dá
desdenhar este mundo. Preferiu entregar-se aos até então proibidos "peca-
lugar a um mundo descentrado em diversas esferas, com suas lógicas espe-
dos capitais". Quer o êxtase neste mundo transitório: avarento e cobiçoso,
cíficas. Não há mais um sistema monolítico de valores. O mundo religioso
quer o êxito económico (acumular riquezas); ambicioso e arrogante, quer o
não salva e não explica mais todas as esferas do mundo profano. O mundo
êxtase político (acumular força); invejoso e orgulhoso, quer o êxtase social
se "desencantou", ou seja, se fragmentou em esferas de valores distintos,
(o prestígio, a honra, o reconhecimento de todos); luxurioso e obsceno,
com racionalidade interna específica. Cada esfera possui a sua lógica interna,
quer o êxtase erótico (o prazer egoísta e antifraternal do sexo); vaidoso, quer
que articula de modo próprio meios e fins. Os fins e meios económicos são
o êxtase estético (a fruição da forma sem submetê-la ao conteúdo); preten-
específicos da esfera económica, assim como os fins e meios das outras es-
sioso e arrogante, quer o êxtase intelectual (formular princípios lógicos
feras são autónomos. O agir político não se reduz ao agir económico ou so-
alheios e concorrentes da fé).6
cial ou político ou estético e vice-versa. E os antigos valores religiosos não
influem na lógica da eficácia e de acumulação de potência das esferas au- Este é o comportamento do homem ocidental na modernidade. O
tónomas. Não se deve esperar moralidade na esfera política, pois são in- Oriente, que nunca se deixara seduzir pelo mundo temporal, mantinha-se
compatíveis. Não se deve pedir piedade ou fraternidade na esfera económi- dominado pela ética mística da recusa do mundo. E acabou sendo vítima
ca, pois não são valores dessa esfera. O novo homem ocidental é um homem dessa revolução cultural europeia. Os outros continentes viram desembar-
estranho a si mesmo, agindo de forma contraditória, dividido entre valores car em seus litorais esse estranho homem europeu moderno, enlouqueci-

5 Gusdorf, 1967; e Lê GofF, 1960. 6 Weber, 1974.


26 11 l S r O K l A & T E O R lA JOSÉ CARLOS REIS 27

do, articulando um discurso religioso fanático e agindo furiosamente con- perde a sua densidade mística. A pergunta weberiana "por que só no Oci-
tra a sua própria salvação! dente ocorreu esse processo de racionalização?", talvez a hipótese mais
Weber, para dar sentido a esse processo cultural, procura distinguir provável seja esta: porque o Ocidente nunca foi densa e sinceramente re-
os tipos ideais da ética religiosa: de um lado, na "ascese ativa", o indivíduo ligioso, mas profundamente greco-romano, discursivo e expansionista. A
age segundo a vontade de Deus, como seu instrumento, para reformar a sua cultura ocidental não é uma cultura mística, no sentido de valorizar a con-
criação, restaurando-a por seu trabalho, encarado como "missão". Ele exerce templação e o silêncio, mas racional e laica, "pagã", no sentido de valo-
sua profissão como "vocação", recriando o mundo como um zeloso servidor rizar o discurso, o raciocínio demonstrativo e a ação intramundana. Na
do Criador. De outro lado, na "contemplação mística", ele busca a salvação "modernidade", a sua face greco-romana venceu a sua face cristã, o que
fora da ação intramundana, na recusa absoluta do mundo. O indivíduo se provocou uma crise ao mesmo tempo assustadora e fecunda. Assustadora,
sente um receptáculo do divino. Apesar de se aproximarem em alguns as- pois foi a perda da representação unificada do mundo; fecunda, porque a
pectos, para Weber essas duas éticas religiosas se distinguem. Para o mís- multiplicidade das representações do mundo que decorreram dessa fratura
tico, o crente deve se calar para deixar que Deus se manifeste. Seu estado de propiciou uma "redescoberta do mundo". O sentido da história, tal como
graça, ele o preserva afastando-se das coisas mundanas. Ele não dá impor- representado pelo Ocidente cristão, teve de ser rearticulado e ressignifi-
tância à agitação do mundo, mantendo-se incógnito, distante. A ascese ati- cado. Quanto à relação custo/benefício dessa revolução cultural, quanto
va, intramundana, ao contrário, se testa na ação. Agir no mundo é executar ao cálculo do seu alcance e dos seus ganhos e perdas, estes se tornaram o
o plano divino, preservando a criação de Deus contra o mal. O indivíduo tema predominante dos escritos filosóficos, teológicos, das ciências hu-
não fecha os olhos ao mundo. Ele o considera o caminho da sua salvação. manas e dos colóquios nas universidades ocidentais. Essa revolução mo-
No entanto, ambas as éticas religiosas têm o mesmo objetivo: recusar o derna tornou-se o grande tema da esfera cultural ocidental desde o século
mundo e buscar a salvação. Os ocidentais preferiram o caminho da "ascese XVI. Uns, assustados com a tolerância com a prática de tantos "pecados",
ativa" e atribuíram um sentido à sua ação contraditória ao se considerarem defendiam o retorno à tradição; outros, maravilhados, preferiam mergu-
parceiros de Deus na criação. Eles estavam convencidos de que eram os seus lhar o mais fundo possível em todos os recantos, dobras e pêlos do século!
pedreiros, marceneiros, restauradores, prepostos de todo tipo. G. Gusdorf fez uma avaliação muito otimista dessa mudança mo-
Segundo Weber, embora a concepção de um deus criador seja im- derna. Ele descreve a irrupção do tempo humano contra o absolutismo do
portante para as éticas religiosas de recusa do mundo, não foi a transcen- tempo divino com euforia, como uma emancipação. O homem, livre da
dência divina enquanto tal que definiu a "ascese ativa" ocidental. Para ele, religião, se multiplica em vários; a história se pluraliza; as ações e expres-
pode-se dizer que a Trindade Cristã, com seu Salvador humano divino e sões humanas se diferenciam e se multiplicam. Koselleck, por seu turno,
seus santos, representava uma concepção de Deus fundamentalmente não é tão entusiasta assim dos novos tempos. Ele faz uma avaliação mais
menos transcendente do que seriam Jeová ou Alá. O Ocidente foi sempre cética, embora não seja contrário àquela mudança. Ele revela as dificul-
mais profano do que o Oriente, por isso a sua identidade trincada e a sua dades trazidas pela perda da unidade religiosa da consciência. Para ele,
fome deste mundo e de tempo. como não havia mais uma referência universal para a ação, como reinava
Partindo sempre de Weber, a hipótese aqui é que nunca houve a tensão e a contradição, esse tempo se tornara perigoso: cisões, conflitos,
uma religião autenticamente ocidental. O Ocidente não criou uma reli- guerras civis. A fragmentação interna da religião trouxe guerras religiosas
gião que viesse a predominar ou, pelo menos, a concorrer com a sua im- sangrentas. A ausência de Deus significou a ausência de limites e a vigên-
portação romana do Oriente — o cristianismo. Apropriando-se dessa re- cia do crime. No século XVII, a ordem teve de ser restabelecida pela força
ligião oriental, o Ocidente a helenizou, ou seja, a transformou em do Estado absolutista, que, sem poder apelar de modo eficaz a nenhum
discurso, em teologia. O sentimento propriamente religioso dispensa o valor cultural universal, unificador e legitimador da ordem, só podia ad-
discurso e se dirige ao inefável. E, quando passa a necessitar de discurso, ministrar os conflitos, calculando-os, prevendo-os e reprimindo-os. Para
28 r Ú Rl A & T EO R
r JOSÉ CARLOS REIS 29

substituir a eficácia conciliadora da fé absoluta, que foi perdida, impôs-se A harmonia e a estabilidade da ordem celeste deveriam ser implantadas no
a eficácia repressora do Estado absolutista. Contra a unidade interna da fé, mundo dos homens pelos próprios homens. Essa ordem celeste, para
estabeleceu-se a unidade externa da força. A eficácia da força, no entanto, Kant, escava instalada na subjetividade humana como ordem moral. O
por ser apenas externa, é limitada e dispendiosa. A força não consegue imperativo categórico de fazer sempre o bem podia ser contemplado den-
manter a ordem sozinha. Retornava então a necessidade de um princípio tro dos próprios homens. O caminho da humanidade unida era único e
interno, unificador e legitimador da ordem. Foi preciso de certa forma levava à sociedade moral universal. O século XVIII, europeu, passou a
"reencantar o mundo", isto é, criar um princípio interno, unificador, que pensar filosoficamente a história universal da humanidade, a elaborar os
legitimasse e orientasse as ações humanas. Esse novo princípio unificador direitos universais do homem, atribuindo-lhe o sentido da realização de
não poderia apelar mais para Deus e para a fé. Ou até poderia fazê-lo, mas uma finalidade moral.
em outros termos. Nos termos da conquista moderna — a Razão secula- Para Habermas, o século XVIII criou o pensamento específico da
rizada —•, que deseja este mundo, que quer se realizar nele e, ao mesmo modernidade, as filosofias da história, que seriam uma nova legitimação da
tempo, harmonizar-se consigo mesma, encontrando em si mesma o seu história universal não mais baseada na fé. Elas são modernas porque têm
fundamento. O esforço de "reencantamento do mundo" se deu em ter- a forma de uma elaboração racional da história, de uma interpretação sis-
mos filosóficos. temática da história da humanidade universal, estabelecendo um princí-
O conceito de "modernidade", portanto, assim como o próprio pio que procurava reunificar a sucessão dos acontecimentos em um sen-
processo que ele designa revelam uma tensão: no início, nos séculos XIII- tido fundamental. Em sua segunda fase, a modernidade, através das
XVI, representara a ruptura com o passado de universalismo cristão e abri- filosofias da história, recolocaria à história a questão do sentido histórico
ra um presente secularizado, com suas consequências — racionalização da e da história universal, que retornaria ainda com implicações teológicas,
ação e fragmentação da vida interna do homem ocidental. No início, essa mas oferecendo a perfectibilidade moral neste mundo profano no lugar da
recusa radical das visões religiosas do mundo representou o aprofunda- salvação no outro.
mento da fissura congénita do espírito ocidental, a luta permanente e in-
tensa entre a cultura profana e a cultura sagrada. A recusa da tradição me- A Europa ocidental voltou a pensar a história de uma humanidade
tafísica fez emergir representações arcaicas do mundo, como a feitiçaria, e universal, novamente única e singular. Houve um esforço de reunificação
diversas novas formas de representações racionais e religiosas do mundo, da humanidade sob o princípio da Razão. A "Razão que governa o mun-
do" seria o esforço moderno, profano, de talvez "reencantar o mundo":
como a ciência e os movimentos de reforma religiosa. Esse primeiro pe-
este retomaria sentido, direção, unidade, sob um princípio interno de
ríodo — o do "desencantamento do mundo" —• foi vivido de forma oti-
mista, alegre. Depois, no século XVIII, após tantos conflitos religiosos, valor universal •— a busca da autoconsciência, isto é, da liberdade. A his-
tória torna-se novamente meio de salvação. Ela é a "marcha do Espírito
guerras civis, tiranias, que exigiram a força externa para controlá-los e que,
em busca da liberdade". A redenção se encontra no futuro, assim como a
para isso, impuseram a proibição da liberdade de consciência e restringi-
representara também a teleologia judeo-cristã da história. Mas a escato-
ram a expressão pública das convicções privadas, foi necessário o retorno
logia cristã cede lugar à utopia racional-profana. A ideia de progresso,
à ideia de história universal com a qual antes se rompera.
antes restrita ao conhecimento, se generaliza. Todos os aspectos da vida
Kant produziu a sua utopia racional, a sua salvação neste mundo,
humana caminhariam em uma mesma direção: a perfeição futura. A cren-
em seu belo texto "Ideia de história universal de um ponto de vista cos-
ça filosófica é que o próprio homem iria se resgatar, e no tempo ainda,
mopolita". A Razão traria a reunificação da humanidade, substituindo a
pela construção de uma sociedade moral e racional e pela acumulação de
religião, ao se dar como finalidade a construção de uma sociedade moral.
conhecimentos sobre este mundo. A ideia de progresso exprime a nova si-
tuação do homem como criador, produtor do futuro. A profecia previa o
7 Gusdorf, 1967; e Koselleck, 1979. fim da história; a utopia prevê a realização da história. O fim da história
30 HISTORIA & T E oR I í os1'. C A R L O S R E I S

não seria o seu término, mas a "realização" humana no tempo. O êxtase mado pelo futuro, e novidade nenhuma, pois o futuro já é conhecido antes,
profano (utopia) venceu o êxtase religioso (pantsia) da outra vida eterna. especulativamente. O espaço-da-experiência (o presente que contém o pas-
O futuro não é mais o fim do mundo. Agora, a espera é outra: a realização sado) é abreviado e interrompido para que o horizonte-de-espera (o futuro
da história, do progresso, como obra dos homens, que se tornam com- antecipado no presente) seja já espaço-da-experiência. O futuro deveria ser já
petidores de Deus na criação do mundo. 8 para a atual geração e não para as futuras. O presente perde o direito de exis-
As fdosofias da história expressavam os "novíssimos tempos mo- tir enquanto presente. Ele está dominado pela ideia de revolução permanente,
dernos": uma sede radical de "sentido histórico", uma fome de "huma- isto é, de ruptura com o passado e consigo mesmo, como realização da uto-
nidade universal", fraterna, unida, em busca de um futuro comum e feliz. pia. A modernidade se quis uma liberação de toda referência ao passado. Ela
Se a Renascença fora uma vitória grega contra o sentido último cristão, se opôs à ideia da história como "mestra da vida". Nela, o passado não es-
agora este impunha a sua necessidade de sentido universal e obrigava os clarece o futuro, pois não lhe dá lições. A história, como um sujeito uni-
vencedores de ontem, os homens do carpe diem, a negociar uma solução versal, um singular coletivo, autónomo e poderoso, realiza o trabalho de au-
de compromisso. Os gregos preferiam não pensar o futuro, mas o eterno; toprodução. A diferença deste mundo novo, moderno, em relação ao antigo
os judeo-cristãos se nutriam do sentimento da salvação futura; os renas- é que ele se abre ao futuro e ao novo. Os tempos passados foram pulveri-
centistas preferiam mergulhar nos prazeres do tempo presente; as filosofias zados. O presente não tem o direito de durar. O passado e o futuro não se
da história voltaram a pensar o futuro como salvação e a história como seu recobrem jamais — são assimétricos. No presente, a história é inovação
meio. A modernidade renascentista se abrira ao presente; a do século XVIII constante. Ela é um processo coerente, unificado e acelerado da humanidade
rompia com o passado e o presente e se abria ao futuro. Ao romperem em direção ao futuro utópico. Os filósofos da história definem esse processo
/
com termos novos: progresso, revolução, •
emancipação, / • utopia.
crise, cntica, ' 9
com o passado, procuravam negar dialeticamente, isto é, superando e con-
servando, a fragmentação ocorrida com a emergência do homem renas- Para Habermas, Hegel foi o criador desses termos novos e o pri-
centista, que também tinha rompido com o passado, mas sem um projeto meiro filósofo autocrítico da modernidade. Em Hegel, a modernidade,
para o futuro. sobretudo a da pós-Revolução Francesa, a das filosofias da história, pro-
As filosofias da história mostram com transparência toda a tensão in- cura nela mesma a sua normatividade, refere-se somente a ela, sem dívida
terna à cultura ocidental. Elas são ambíguas: greco-modernas, pois são uma com a Antiguidade e o cristianismo. Ela procura ser autónoma, autocons-
elaboração racional-profana sobre a história; neojudeo-cristãs, pois dirigem- ciente, fundada sobre os seus próprios meios. Recusando modelos, a mo-
se ao futuro, prosseguem a espera metafísica da Redenção. As fdosofias da dernidade procura encontrar em si mesma suas próprias garantias, bus-
história expõem a fratura da identidade ocidental: "Fé na Razão"! Ê como cando o equilíbrio a partir das rupturas que produziu. Ela se apresenta
um retorno ao pensamento religioso, em busca da unificação que ele ofere- como inquietude, desequilíbrio, movimento acelerado para a frente, para
cera. Mas, nesse esforço de reunificação e de retorno, prevalecia a face mo- se manter de pé. Hegel revelou o princípio dos tempos novos: a subjeti-
derna, a Razão, profana e laica, que jamais conseguiu superar a fragmentação vida.de. Esse princípio explica a superioridade do mundo moderno e a fra-
renascentista. As filosofias da história são um pensamento tenso, que não re- gilidade que o expõe a crises. Como subjetividade, os tempos modernos se
conhece as suas contradições. Elas ignoram pulsões, intuições, instintos, caracterizam por uma relação consigo mesmo. Como subjetividade — re-
emoções e se imaginam dominadas pela transparência absoluta da Razão. A lação consigo mesmo e autoconsciência —, a modernidade é marcada pela
sua convicção inabalável, que se tornou uma obsessão, é de que a ação ra- liberdade e pela reflexão. E pela instabilidade. Para Hegel, o que faz a
cional dos homens deve produzir uma aproximação acelerada do futuro com grandeza desse tempo moderno é o reconhecimento da liberdade, a ten-
o presente. O presente é ao mesmo tempo uma eterna novidade, pois to- dência do espírito ao seu centro, o fato de que ele "é em si e ao pé de si".

8 Koselleck, 1979; e Habermas, 1981 e 1985. 9 Koselleck, 1990; e Habermas, 1981 e 1985.
32 33

Como subjetividade, para Habermas, os tempos modernos são marcados Os eventos históricos que caracterizam a modernidade, que impu-
por quatro princípios: a) o individualismo (a singularidade infinitamente seram o princípio moderno da subjetividade, foram a Reforma, as Luzes, a
particular que faz valer as suas pretensões); b) o direito à crítica (cada um Revolução Francesa. Em Lutero, a fé religiosa tornou-se reflexiva. O mundo
só pode aceitar o que lhe parecer justificado); c) a autonomia da açáo (so- divino transformou-se em uma realidade instaurada por nós mesmos. O
mos responsáveis por nossa ação); d) a filosofia idealista (que apreende a protestantismo já recusara a autoridade da tradição e afirmara a soberania
ideia que a consciência tem dela mesma). O sujeito é soberano, crítico, do sujeito individual. Depois, com os iluministas, a história seria feita por
livre e reflexivo e faz valer seu discernimento individual. um sujeito singular-coletivo, de forma radical, revolucionária, à luz da Ra-
zão. Há um culto da história, que não é percebida como retrospecção, re-
A cultura moderna se assenta na liberdade e na reflexão da subjeti-
torno e conhecimento do passado, mas como prospecção e produção do fu-
vidade, que deve agir de acordo com a Razão, que, se ousar saber, saberá o
turo. A modernidade é marcada pela busca do novo, do melhor e mais
que deve moralmente fazer. O que os homens devem fazer é a Razão que
perfeito, que são criações do homem. O futuro é o lugar da realização, da
lhes responde e não a transcendência. O sujeito adentra em si mesmo, para
perfeição, da humanização. Versão secularizada da teologia cristã, a história
se apreender de modo especulativo, seguindo Descartes e Kant. Para Ha-
universal é vista como trânsito, passagem das trevas às luzes, do passado obs-
bermas, a modernidade se exprimiu nas três críticas kantianas como em um
curo ao futuro esclarecido. Por isso, a pressa e a aceleração do tempo. A his-
espelho. Kant é a sua "imagem refletida", pois não percebe como cisões as
diferenciações da Razão que ele próprio expôs. Hegel representaria o "es- tória é o resultado da ação prático-crítica do presente. O sujeito que produz
a história produz também consciência histórica, pois ele sabe o que faz. A
forço reflexivo", autocrítico, da modernidade, procurando reintegrar a
Razão pura, a Razão prática e a Razão estética. Ele foi o primeiro a pensá- história racional volta a ter sentido e direção, já conhecidos antecipadamen-
la como insatisfação radical com o seu modo atual, como crise permanente te pela filosofia. Esta afirma que "o real é racional". Para a filosofia da his-
e busca acelerada de sua forma absoluta no futuro. Ele pergunta se seria pos- tória, ingenuamente, a história é representada como transparente, acessível
sível a subjetividade extrair de si mesma as suas próprias normas, garantias ao conhecimento e à consciência. O processo histórico real coincide com a
e orientações, sem nenhuma referência ao passado. A subjeuvidade poderia marcha do espírito em busca da liberdade.
se reunificar de forma tão eficiente como foi a representação de Deus? Essa As filosofias da história, os discursos da modernidade, são considera-
questão revela que talvez ele próprio duvidasse de que a subjetividade, que das por Lyotard "grandes narrativas", pois se referem à humanidade como um
teve força para produzir a ruptura com a religião como potência unificado- sujeito universal e pretendem produzir uma descrição completa do desenvol-
ra, pudesse ser forte o bastante para regenerar pela Razão a sua potência uni- vimento histórico. São "grandes narrativas" porque totais (abordam o passa-
ficadora. As Luzes se separaram da religião por cisão, colocando-se ao lado do/presente/futuro e todos os eventos), de um objeto universal (a humanida-
dela. Houve uma cisão da fé e do saber que as Luzes são incapazes de su- de). São narrativas e ao mesmo tempo a própria história, pois a ação executa
perar por seus próprios meios. O mundo do espírito tornou-se estranho a si. a narrativa, que é saber, consciência da ação. Não há distinção entre conhe-
A cultura se expande, mas não consegue se integrar como consciência de si.
cimento e ação. A narrativa é um mapa vivo e verdadeiro da história, e a ação
A vida fragmentada tem necessidade da filosofia, que se tornou herdeira do
a confirma. A narrativa é o acontecer histórico em seu conceito. Se a narrativa
absoluto teológico. A filosofia deve demonstrar que a Razão tem a mesma
oferece um conhecimento antecipado da história e do seu sentido, a ação deve
capacidade unificadora da religião, que deve reunir o que o princípio da
apenas realizá-lo. A ideia moderna de história está dominada pelos conceitos
subjetividade cindiu. Hegel, a "modernidade reflexiva", quer radicalizar na
de razão, consciência, sujeito, verdade e universal. A história está disponível à
busca da integração da subjetividade cindida, da reunificação da vida sub-
ação. Para Koselleck, a ideia de que se pode fazer-a-história era impensável
jetiva fragmentada.
antes da Revolução Francesa. A partir dela, a história passou a existir em si e
por si, como uma substância singular, imanente, autónoma e universal. O co-
10 Habermas, 1981 e 1985. nhecimento histórico torna-se prospecção, previsão, planejamento da ação. A
34 H I S T O R I A & T F, ú R i A
r jo sC CARLOS Rf i s

consideração do passado — o que aconteceu? — é substituída pela conside-


moral esconde intenções políticas, alerta Koselleck. O novo sujeito polí-
ração do futuro — o que vamos fazer? A modernidade, em suas duas fases, en-
tende a história como fabricação humana, aucoconstrução da humanidade, tico, que se revela e se esconde nas filosofias da história, que defendia os
que se realiza através do tempo. seus interesses, era a burguesia europeia. Empunhando a Razão, a bur-
Para Lyotard, nessas filosofias que expressam o pensamento mo- guesia impunha o terror político, condenando e destruindo, com legítima
derno, duas orientações principais se destacam: uma mais política e outra e justa crueldade, todos que obstruíam o avanço da soberania indiscutível
mais filosófica. As duas convergem enquanto discursos emancipadores, da sua utopia.
que vêem no fim da história a conquista da liberdade. Mas divergem Enfim, em síntese, o projeto moderno é o de uma história que se
quanto aos sujeitos dessa emancipação. Para a orientação política, da qual fragmentou e se descentralizou e que busca se reunificar e se reuniversa-
o Iluminismo francês é a maior expressão, os produtores dessa liberdade lizar. É a representação ocidental da "civilização" como busca da liberda-
futura são o povo e seus heróis, que defendem o direito de todos ao conhe-
de, isto é, da coincidência absoluta da subjetividade consigo mesma. A hi-
cimento, à justiça, à liberdade e à igualdade. A abater: a Igreja e o Estado
pótese de base do Iluminismo é hegeliana: a história não pode não ter
absolutista, que promovem a ignorância, a injustiça, a desigualdade e li-
sentido, não pode ser mudança sem direção e significado. A história é go-
mitam a liberdade da consciência e oprimem o povo. Para a orientação fi-
vernada pela Razão e está só pode produzir a moralidade, a liberdade, a
losófica, da qual o Idealismo alemão, e especialmente Hegel, é a maior ex-
justiça, a igualdade e jamais a violência e a pura vontade de potência. Cri-
pressão, o sujeito da liberdade não é o povo, mas o espírito. O espírito não
se encarnaria no Estado, mas no sistema, onde o Estado ocupa posição tica do passado e autocrítica do presente, a Razão utópica acelera a história
central, mas do qual é apenas uma figura. Lyotard apresenta essa segunda em direção ao futuro de liberdade. A história voltou a ser meio de salvação
posição como filosófica, especulativa, mas ela é também política. A outra no futuro, secularizando a utopia judeo-cristá. A salvação não é o fim do
é apresentada como política, mas é também especulativa. As filosofias da mundo, mas a realização absoluta de todas as possibilidades humanas.
história são ao mesmo tempo especulação sobre o futuro e sobre o sentido Predomina a ideia de progresso: todos os aspectos da vida caminhariam
da história — filosofia — e opções por valores determinados e orienta- em uma mesma direção — a perfeição futura. O homem se resgata pela
dores da ação — política. Ambas desejam realizar o "reencantamento do construção de uma sociedade moral e racional e pela acumulação de co-
mundo", reconciliando política e moral. Ambas transformam a história nhecimentos sobre o mundo. O Iluminismo é revolucionário. Otimista.
em Tribunal da Razão, do qual nada e ninguém escapam. O século XVIII O presente perde o direito de existir enquanto presente. Ele está domi-
tornou-se o século da crítica racional. Para Koselleck, a crítica se apresenta nado pela ideia de revolução permanente, de ruptura com o passado e rea-
como apolítica, pois exercida em nome da Razão universal. Mas seu poder lização da utopia. A modernidade é uma liberação de toda referência ao
representa o fim de todos os poderes até então dominantes. O passado e passado. A história é um sujeito autónomo e poderoso que realiza o tra-
o presente são destruídos pelo futuro utópico. Absoluta, a crítica se torna balho de autoprodução. E um singular-coletivo que reúne todos os even-
crise permanente, revolução. Ela, a Razão, é o novo soberano absoluto: in- tos em um plano único. A história é um processo coerente, unificado e
tolerante, totalitária, universalista, absolutista. A violência revolucionária é
acelerado da humanidade em direção ao futuro racional, à liberdade, à so-
inocente, pois racional e moral, contra a violência pura do Estado. As fi-
ciedade moral, livre. A história está à disposição de um sujeito-singular-
losofias da história garantem a legitimidade da intervenção radical na rea-
coletivo, a humanidade universal, que se constrói, construindo-a. A his-
lidade histórica, pois esta é expressão da Razão e produtora de liberdade.
tória é a marcha da humanidade em busca da liberdade, garantida pela
Elas opõem a Razão moral ao rei, à Igreja e ao passado. Mas toda crítica
Razão que governa o mundo.

11 Lyotard, 1979; Koselleck, 1990; Habermas 1981 e 1985; e Lõwith, 1968.


12 Lyotard, 1979; Weber 1974; Habermas, 1981 e 1985; e Koselleck, 1979.
36 r ó r< I A ífc T E o R i .•• JOSÉ CARLOS REIS 37

Modernidade e história-conhecimento retorna-se à intuição dos fundadores gregos: fábulas e lendas são inveros-
símeis, irreais. A história procura conhecer fatos reais, concretos, verossí-
No século XIX, paradoxalmente, a história-conhecimento preten- meis, isto é, que não contradizem a marcha natural das coisas, e se dis-
deu emancipar-se da influência da filosofia da história e tornar-se "cien- tancia da ficção e da especulação.
tífica". Chegara-se à conclusão de que a metafísica era impossível, que era Essa ambição da história científica de se separar da filosofia da his-
um pseudoconhecimento, pois seus enunciados -eram inverificáveis e in- tória de fato ocorreu, tornou-se uma realidade concreta? A história cien-
controláveis. Acreditava-se que só seria possível conhecer os fatos apreen- tífica, que quer conhecer o passado pelo passado, que não quer especular
didos pela sensação. Um pensamento radicalmente historicista considera- sobre o futuro, que exclui o presente do seu campo cognitivo, teria sido já
va que as filosofias racionalistas e metafísicas não revelam nada da história. uma primeira ruptura com o projeto moderno, em sua busca acelerada do
A "história científica", que surgia, parecia não pretender mais discutir o futuro? A história científica seria uma nova fratura na identidade ociden-
sentido histórico, nem a história universal, mas produzir um conhecimen- tal? A história realista do século XIX teria de fato abandonado a busca
to positivo, observando os fatos e constatando as suas relações. A influ- judeo-cristã-iluminista do "sentido histórico", retornando às suas origens
ência metafísica da filosofia sobre o conhecimento histórico foi substituí- gregas? Se, por um lado, Heródoto e sobretudo Tucídides voltaram a ser
da por uma atitude realista. Acreditou-se que o conhecimento histórico a referência desta história, por outro, essa história científica conservava a
tinha finalmente se estruturado em bases positivas ao encontrar um mé- ambiguidade ocidental em relação ao conhecimento histórico. Era ao
todo seguro, objetivo, confiável, empírico. mesmo tempo grega, realista e ainda judeo-cristã, ao manter uma filosofia
O método histórico não poderia oferecer "cientificamente" o co- da história implícita. Mesmo querendo se diferenciar de Hegel e dos ilu-
nhecimento de um princípio geral, dado apriori, que conduzisse a história ministas franceses, procurando resgatar o real tal como se passou, os histo-
em sua totalidade, apagando as suas diferenças temporais. Ele apenas riadores-cientistas estavam impregnados de metafísica. Eles não podiam
podia oferecer o conhecimento das diferenças humanas no tempo, única abordar seu material sem pressuposições, que continuavam ainda a ter
realidade passível de um conhecimento controlável por documentos e téc- uma origem filosófica, especulativa. Os historiadores-cientistas só eram
nicas. A história daria ênfase ao evento irrepetível, singular, individual, antifilosóficos em suas declarações. Na prática, ocultavam sua dependên-
único. Há um culto do fato realmente acontecido. O objeto do historiador cia das ideias e conceitos da filosofia da história. O que fizeram foi um es-
é localizado e datado e recusam-se princípios essenciais, invariantes, que forço de rompimento com a metafísica, procurando inspirar-se nas ciên-
determinem a realidade humana. O fato individual não se submete a prin- cias naturais e imitá-las, com resultados parciais. Tentou-se uma história
objetiva, não-especulativa, que obteve sucessos significativos, mas parciais.
cípios absolutos. Os historicistas sustentavam que não há um modelo
Pois, se o evento enquanto puro evento é impensável, como pensá-lo sem
imutável, supremo e transcendente de Razão. A Razão se reduz à história.
recair em uma filosofia da história? Como ultrapassá-lo, articulando-o em
A consciência histórica é finita, limitada. Ela se organiza temporalmente
sem se referir ao intemporal. Esse espírito historicista recusa as filosofias um sentido que o sustente, inserindo-o em quadros mais amplos?
da história hegeliana e iluminista: o sistema, a história universal, a razão Na história científica, o evento era organizado ainda pelas grandes
que governa o mundo, o progresso. As relações entre filosofia e história se narrativas filosóficas, marcas da cultura moderna, que exerceram enorme
invertem. É a filosofia que se revela histórica. O historiador sustenta uma influência sobre a historiografia do século XIX, apesar do seu positivismo
nova atitude, positiva e crítica. O conhecimento histórico aspira à obje- e do seu historicismo. Comte, por exemplo, antes de ser um filósofo da
tividade científica. Não se quer mais discutir a universalidade ontológica ciência positivista, era um filósofo da história. Marx, outro exemplo, em-
da história, mas a possibilidade de uma universalidade epistemológica. A bora tenha sido um dos inauguradores da nova perspectiva das ciências so-
questão da universalidade passa do objeto ao conhecimento. A objetivi- ciais, pode também ser visto como filósofo da história, em uma determinada
dade se constituiria em enunciados de validade universal. No século XIX, leitura. Dilthey, embora crítico histórico da razão, era de certo modo
38 HISTÓRIA T E O [( l A
f JOSÉ C A R L O S REIS 39

vive uma fecunda ambiguidade: ainda está dominado pelas filosofias da


neokantiano e neohegeliano. No entanto, a história científica do século XIX,
história e quer se referir ao real enquanto tal! O historiador-cientista ao
em suas várias orientações, sustentava que não queria pensar a história es-
mesmo tempo se apoia numa especulação sobre o sentido histórico e
peculativamente, com a priori(s) inverificáveis; não queria falar sobre o
busca a "verdade", isto é, uma representação realista do que de fato ocor-
dever-ser histórico, sobre o futuro, sobre o que fazer, sobre o sentido final
reu. O conhecimento histórico não seria uma reconstrução, pelo historia-
da história, mas sobre a história tal como aconteceu, como fato, como
dor, do processo histórico, mas a sua reconstituirão verdadeira. Nessa pers-
ocorrência, como passado, como conhecimento de eventos únicos e irre-
pectiva, a história efetiva e o conhecimento histórico se recobrem: o
petíveis, singulares, situados documentalmente em uma data e lugar. Ins-
segundo representa fielmente o seu objeto-processo. O que antes fora
pirados nos gregos, foi isso que os historiadores-cientistas do século XIX
questionado e descartado como "especulação" tornou-se uma representa-
pretenderam fazer.
ção adequada do real. A história científica apenas recusa nas filosofias da
Mas a tradição judeo-cristã-iluminista continuava presente e, ao história o seu caráter especulativo. E se apropria delas, ressignificando-as.
mesmo tempo, minava essa atitude cientificista e, de modo implícito, a
sustentava. Para o historiador-cientista, a questão era: haveria uma ordem O olhar científico do século XIX significou a radicalização da con-
para os eventos, um princípio organizador e unificador? Se não houvesse, fiança no projeto moderno. As filosofias da história perderam seu caráter
como organizar e coordenar os eventos históricos, como construir a nar- metafísico para se tornar a própria lógica, "científica", da dinâmica his-
rativa histórica? Eles acabaram recaindo, sem explicitá-lo, na hipótese das tórica real. E por isso continuam valendo como nunca! Elas se tornaram
filosofias da história sobre o sentido histórico: a Razão governa o mundo e a "verdade" dos eventos. Com o seu apoio, agora considerado científico,
todos os eventos são a sua expressão. Os historiadores-cientistas também o historiador pode diferenciar povos inferiores e povos superiores, povos
consideram a história como desenvolvimento progressivo, racional e con- mais e menos livres, povos mais avançados e mais atrasados. Em relação a
tínuo do povo e do espírito em busca da liberdade. Eles usavam expressões quê? Em relação à filosofia da história, moderna, que sustenta que a Razão
como "espírito do tempo", "espírito de uma época", e faziam do Estado governa o mundo em busca da autoconsciência e da liberdade. A verdade
— o universal determinado, segundo Hegel — o principal personagem de histórica científica continuava política e moral. A "ciência histórica" ao
sua história, assim como dos indivíduos histórico-cósmicos, os heróis. A mesmo tempo recusa e executa uma verdade moral: há povos mais morais
história política predominante no século XIX era feita com a. priori(s) fi- e mais livres, superiores. Essa verdade moral, alerta Koselleck, ao mesmo
losóficos, apesar das declarações antifilosóficas. A história torna-se contí- tempo esconde e executa um projeto político: os povos mais morais têm
nua e com um sentido final único. E continua sendo representada como direito ao poder e até à violência. Esses povos morais e livres são as nações
a expressão do Espírito universal e dos dirigentes do povo. Os historia- europeias. A história científica prossegue, reinventando o projeto moder-
dores procurariam encontrar, inconfessadamente, nos eventos particula- no europeu de conquista da história universal e de controle do sentido
res, uma direção universal invisível. A obra histórica tinha a pretensão de histórico, adaptando-o às novas circunstâncias do século XIX e radicali-
ser a consciência de uma época. Defendendo a mesma razão e o mesmo zando-o. Para a história científica, a Europa continua sendo o centro e a
progresso, o conhecimento histórico passara de filosófico a "científico"! A
vanguarda da história universal. Ela é a guardiã e a executora do "sentido
história continuava inteligível, pois submetida a uma ordem racional. A
histórico científico", contra o qual não há apelação nem religiosa, nem es-
dispersão dos eventos ganha um fio condutor teleológico. O historiador
peculativa. As nações europeias são apresentadas como a incontestável ex-
iluminista considera a história como o desenvolvimento progressivo, ra-
pressão superior do Espírito universal. Elas realizaram suas determinações
cionai e contínuo do Espírito ou do Estado-nação, do povo, em direção à
liberdade. Ele faz do Estado síntese do particular e do universal, e de seus mais avançadas e livres, mais civilizadas. Elas estão espírito-atualizadas. O
heróis, os principais personagens da história. seu papel civilizador, espírito-atualizador das outras partes do mundo, que
elas "descobriram", é legítimo. Se são obrigadas à violência é por obra da
Quais seriam as relações dessa história semicientífica e ainda filo-
"astúcia da Razão", que faz o bem através da violência. Baseada nas filo-
sófica com a modernidade, tal como foi definida antes? Esse historiador
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H lb T Ó k lA t- T E O H lA JOSÉ CARLOS REIS

sofias da. história, no discurso da modernidade, agora tido como o segredo dade histórica, de que conhece o sentido da dinâmica da vida humana, de
revelado da história, a história dita científica do século XIX se pôs a ser- que é o "povo eleito", com a missão de salvar os povos não-europeus, que
viço do eurocentrismo, oferecendo argumentos, documentos, informações não conhecem ainda a Razão.
e legitimação ética.
Os discursos hegeliano e iluminista francês, expressões da moder-
A história científica assumiu definitivamente a forma narrativa das nidade, tornaram-se o fundamento do conhecimento histórico e da ação
filosofias da história, não mais lhes atribuindo um caráter especulativo. Sua histórica. Eles legitimariam ambos de modo diferente. Na perspectiva das
"narrativa científica" não tem a estrutura da narrativa de tipo aristotélico — Luzes francesas, há duas orientações: a evolutiva e a revolucionária. A pri-
uma concordância de discordâncias, uma ordem, uma intriga completa, to- meira defende o progresso gradual e inevitável para a perfeição, pela re-
tal, mas não-temporal, ligada à ordem lógica, uma intriga construída por forma do Estado e da sociedade através da crítica racional, pelo esclare-
um sujeito em que os eventos possuem um vínculo interno necessário —, cimento do príncipe; a segunda, que Rousseau representa melhor, defende
mas a narração real e verdadeira do drama da história do Espírito em busca a radicalização da crítica racional — propõe a ação concreta e imediata,
da liberdade, uma reprodução, um mapa vivo da marcha do espírito. "O aqui e agora, contra o presente-passado. O histotiador gradualista seria o
juiz portador dos valores modernos: condenaria e absolveria; o historiador
real é racional", ou seja, a realidade histórica e a narrativa histórica se reco-
revolucionário, mais convencido ainda da verdade dos valores ocidentais,
brem. A ciência histórica é a autoconsciência de si da humanidade em mar-
agiria concretamente, fisicamente, politicamente. Ele seria militante, um
cha. O conceito histórico não é exterior ao real, mas o próprio real em mo-
soldado do futuro. O marxismo prosseguiu e aprofundou essa segunda
vimento. Fazer-história c fazer-a-história coincidem: açáo e conhecimento
tendência iluminista. As Luzes geraram dois tipos de conhecimento his-
não se separam. A relação entre narração histórica e vivido é transparente.
tórico: a história como "consciência crítica" de uma época, reformista e
Negligencia-se o irracional. A ação executa a narrativa, que é consciência,
discursiva, e a história como "consciência crítico-prática", uma arma de
verdade da história. Há um culto da história, entendida como portadora do
combate. Na perspectiva hegeliana, a legitimação dos atores históricos e
novo, do mais perfeito, da liberdade, como um processo que leva das trevas do Estado é progressista. Não se percebe o progresso, nesse caso, como um
irracionais do passado à luz da Razão no futuro. Conhecedor do segredo da desenvolvimento gradual e tranquilo, mas como produzido pela negati-
história, do seu sentido final, o historiador, segundo a Razão, seria juiz, crí- vidade do espírito, violenta e tragicamente e de modo não-linear. No en-
tico, dos personagens e feitos. E o fim já conhecido a príori que organiza a tanto, por maior que seja a tragédia vivida, o final será feliz. O espírito es-
trama. A explicação histórica é teleológica: tudo é desencadeado e posto em tará mais livre, superior, autoconsciente, integrado, após a tormenta. O
movimento pelo fim. O historiador se considera conhecedor do sentido da espírito se objetiva no tempo, se põe, se opõe e se repõe. Parece transcorrer
história e se torna um juiz, e sua obra, um processo jurídico. Juiz, o histo- com o tempo. Mas está a salvo do tempo, pois ele não saiu realmente de
riador é um defensor dos valores modernos — burgueses, europeus ociden- si, não evolui e não progride. Os indivíduos agem por ele, sofrem nele,
tais. A história-conhecimento torna-se eficaz politicamente — serve aos gru- passam. Mas ele continua sendo o que sempre foi e integra em si, em um
pos em luta pelo "controle moral" do sentido histórico universal. Ela se presente contínuo, todas as suas objetivações passadas. O espírito vive em
torna "cientificamente" a expressão da vontade do Estado e das instituições um eterno retorno a si mesmo e em um profundo presente.
da sociedade burguesa. Sob a influência desse pensamento moderno, filosófico e científico,
a história legitimaria sempre os poderes atuais ou revolucionários. A história
A ideologização do discurso cientificista sobre a história é total: os
científica estaria sempre a serviço do poder. O discurso histórico estaria do-
interesses particulares dos Estados e dos líderes nacionais tornam-se a ex-
minado pela tese moderna da tendência à liberdade absoluta no futuro. Essa
pressão da liberdade universal. Em nome da liberdade futura, todas as ações
concepção moderna da história teve uma consequência política fundamen-
dos Estados e líderes políticos europeus são legitimadas e defendidas, mesmo
quando são violência pura e simples, mero interesse particular. O Ocidente,
no século XIX, está cientificamente convencido de que é o portador da ver- 13 Habermas, 1985 e 1987; e Ricoeur, 1990.
JOSÉ C A R L O S REIS 43
42 & T F. O R I

vivo, é percebido como provisório, inautêntico, aparente. Para Nieczsche,


tal: o evento. Ela levou à produção acelerada de eventos que se acreditava
são os escravos e vencidos que inventaram o além, pois não podem ter as
controlar, pois supunha-se que o seu sentido era antecipada e aprioristica.-
alegrias deste mundo. Cultivam o ódio a tudo que é humano, hostilizam
mente conhecido. Ela levou a uma revolução permanente do vivido, a uma
a vida. A moral dos escravos é uma autotomia: reativa, ressentida, culpada.
aceleração vertiginosa da história. Levou ao terror da utopia, a um mundo
Um auto-aniquilamento!
social dominado pela Razão absoluta, total, universal, homogénea, transpa-
Nieczsche lamenta o egoísmo e a crueldade reinantes, mas sobre-
rente, autoconsciência integral de si. Sob a influência moderna das filosofias
tudo a boa moralidade, os conceitos de bem e mal, que trazem um de-
da história, a história buscou uma explicação racional para os processos hu-
bilitamento físico e moral. Valoriza o super-homem — não como repre-
manos e voltou-se para a produção da utopia. Essa utopia seria a realização
sentante da ideia universal, mas como um particular ousado, que quer
histórica da Razão em uma sociedade em que todos os "desvios irracionais"
viver e correr riscos. Sua ética aristocrática é afirmativa, é um sim a si mes-
teriam sido dissolvidos. Uma sociedade dominada absolutamente pela
mo, é criadora de valores. O forte é ativo e feliz. Para os fracos, o forte é
Razão seria moral, justa, igualitária e livre.
cruel, lúbrico, ímpio, insaciável; bons são os miseráveis, pobres, necessi-
tados, impotentes, baixos, sofredores, doentes, escravos. Os humildes. Os
vencidos. O cristão, fraco e ressentido, despreza o forte, pois odeia a vida,
A pós-modernidade a alegria, a potência, o sucesso, a ação. O ressentido é uma "vontade cul-
pada" e inventa uma outra vida além desta que vive. Há 2 mil anos, ele
Nietzsche foi um dos primeiros a recusar a tirania da Razão sobre protesta, os escravos venceram! A cultura moderna é dominada por essa
o sentido histórico, abrindo outra profunda fissura na identidade ociden- moral do escravo, por seus "valores superiores". O sentido histórico da ci-
tal. Ele é o mais radical formulador da crise do racionalismo moderno. Se vilização ocidental, desde Sócrates, é a recusa deste mundo, da história, e
uma cultura vive de crenças e valores, para ele os valores dos quais vive o o consequente declínio para o além. O último homem, o que mais recusa
homem ocidental — cristianismo, pessimismo, ciência, racionalismo, a vida aqui, imagina que obterá a glória no além. Seus valores, que re-
moral do dever, democracia, socialismo — são sintomas de decadência, de cusam o mundo, ele os considera representantes do bem, superiores; os
uma vida que se empobrece e se apaga. Ele quer quebrar esses valores que que defendem a vida aqui, ele os considera representantes do mal. Apo-
revelam cansaço de viver e pôr em primeiro plano a vontade de potência, lo, deus da forma, da ponderação, da medida, do conhecimento e do
a alegria de ser. A obra de Nietzsche é um esforço para vencer a Razão, a controle de si, contemplativo e sereno em meio a um mundo de dores,
"frente fria" da cultura ocidental, quebrando aqueles valores e reestimu- venceu Dioniso, deus do desequilíbrio, da não-serenidade, dos instintos
lando uma "corrente quente", que ele denomina "Vida". Ele defende um vitais. Nietzsche defende uma vontade alegre, dionisíaca, contra a vontade
eterno retorno ao princípio, à criação, ao antes da história da Razão, 'ao culpada, apolínea. Para ele, é preciso desdomesticar os homens ocidentais
momento em que se tinha toda a vontade de viver. Ele defende a eterni- e fazê-los recuperar os instintos primordiais. É preciso libertar a vida. Os
dade do efémero contra a eternidade atemporal, o agora eterno contra a valores não são nem eternos, nem universais, nem transcendentes, nem
utopia no futuro. Para ele, deve-se esquecer o passado e reiniciar a vida, metafísicos. São criações muito humanas.
recomeçar, com coragem e alegria. Ele recusa os pilares da cultura oci- Para Nietzsche, o conhecimento histórico ocidental dominado pela
dental, a piedade religiosa, a objetividade do cientista, o igualitarismo so- Razão não é capaz de conhecer a vida, que afirma querer conhecer. Ele a dis-
cialista. Para ele, a decadência do Ocidente começou com Sócrates, que seca e mata. A história científica é uma desvantagem para a vida. Ela quer
teria desviado a humanidade ocidental dos seus instintos fundamentais, repetir a grandeza passada, uniformizando e depreciando a diferença, des-
desvitalizando-a, tornando-a fraca e submissa. Depois dele, o cristianismo
descreveu o mundo como um vale de lágrimas e concebeu a felicidade no 14 Nietzsche, 1983.
além. Na perspectiva do além, o aqui-agora terrestre, corporal, encarnado,
r JOSÉ CARLOS REIS 45

vitalizando o vivido singular. Ela crê que pode conhecer todo o passado sem dita pós-modernidade procura deslegitimar o governo da história pela Ra-
fome e necessidade e em sua verdade! Ela enche a cultura moderna de ou- zão. Ela desacelera a história, desinteressa-se pelo futuro, que não pode mais
tros tempos alheios a ela, perguntando a eles "o que fazer?". A história ci- ser produzido com segurança. O sentido universal se decompõe, os sentidos
entífica cultiva a indiferença e a neutralidade, ignorando o que há de mis- se multiplicam. A grande narração se fragmenta em múltiplas narrações. A
terioso e instintivo na vida. Ela resseca a vida. Trata a humanidade como se grande narração moderna era normativa, moralista, submetia a ação ao
fosse uma velha e é hostil a toda ousadia. Ela se deixa dominar pela potência dever ser utópico. Na pós-modernidade, o universal se pulveriza em indi-
de uma metafísica dos fatos históricos. Uma história útil à vida, ao contrá- víduos, fragmenta-se. Não há mais supracritérios que possam decidir entre
rio, faria a genealogia dos modos e valores históricos criados pelos homens o ser e o dever ser. A comunicação, a intersubjetividade tornam-se quase im-
e não por forças metafísicas. Uma história que servisse à vida lutaria contra possíveis. Os consensos possíveis são provisórios, locais e precários. Predo-
o sentido histórico, contra a história universal, contra os fatos, contra a corrente. mina o dissenso, o jogo de linguagens divergentes. O presente se espacializa,
Ela lutaria contra todo determinismo, reducionismo, mecanicismo, destino se desacelera. Compreende-se que o que era considerado valores universais
inescapável, direção única e universal do viver. Ela cultivaria a ousadia, de- de uma possível história universal representava os valores particulares da Eu-
fenderia o direito próprio de viver, seguiria os instintos e a imaginação, que ropa em seu "expansionismo metastático". A Razão que governava o mundo
sempre leva à fundação de um novo tempo, a um novo início, e não à con- era a universalização do interesse particular europeu de instrumentalizar o
tinuidade dos tempos. E decantaria o fardo do passado, para reiniciar a vida. mundo. A Razão universal era a máscara do interesse particular europeu. A
Ela conheceria sentidos particulares e históricos, desconheceria leis e des- pós-modernidade concretizou-se historicamente no mundo ocidental pós-
prezaria as massas. Ela valorizaria os grandes homens, a aristocracia criadora 1945 — um mundo americano, pós-europeu.
de valores. Ela não representaria a vida "cientificamente", mas com arte, po- O século XX se deu historicamente conta dessa crise da Razão, já
derosa e alegre, revigorando os instintos vitais, valorizando tudo o que foi percebida e formulada por aqueles autores do século anterior, em meio às
negado pela história racional/científica. tragédias que acompanharam a derrota da Europa. O pensamento dessa
Com essa nova representação da historicidade, Nietzsche negava derrota seria o "pós-moderno". A pós-modernidade desconstrói a meta-
as filosofias da história e a história científica, o discurso da modernidade, física humanista da subjetividade moderna — deslegitima, deslembra,
rompendo com a racionalidade do projeto moderno e abrindo nova e desmemoriza, quer esquecer o discurso da Razão que levara ao totalita-
funda ferida na identidade ocidental. Contra a metafísica da Razão que rismo, ao holocausto, às guerras mundiais. Desacreditada a Razão, passa-
governa o mundo, contra o outro mundo sagrado, ele prefere a força pro- se à sua desconstrução. Tudo o que ela havia reprimido é valorizado: o
fana, vivificante, dos instintos vitais. homem selvagem, a loucura, a criança, a mulher, o delinquente, o doente,
Marx e Freud também são grandes críticos do projeto moderno da o analfabeto... Descobrem-se outras lógicas, a pluralidade cultural. A al-
história como produção da autoconsciência e da liberdade. Uma nova e cri- teridade torna-se um problema histórico mais interessante do que o da
tica relação com a temporalidade constitui-se no século XIX, aprofundan- identidade universal. O Ocidente se percebe não-linear. A ideia de um
do-se no século XX, com a experiência ocidental de eventos dramáticos. A progresso contínuo da liberdade e da lucidez humana revela-se ingénua e
Europa, derrotada tragicamente em guerras internas e externas violentas, perigosa. O futuro não pode ser a única realidade histórica legítima, pois
não representa mais a Civilização, não dirige mais a história da Razão. Mui- virtual, sempre virgem. A vida é o atual, que não pode ceder seu lugar à
tos intérpretes começam a formular a hipótese de que poderíamos talvez vida futura, por mais racional que esta prometa vir a ser, pois seria a mu-
estar vivendo algo como uma "pós-modernidade". Esses autores acima te- tilação do vivido. A euforia da utopia universal é substituída pelo pensa-
riam elaborado a consciência de uma ruptura com o projeto moderno. Essa mento do limite, da valorização da vida já constituída. E uma nova his-

15 Nietzsche, 1983. 16 Lyotard, 1979; e Habermas, 1985.


46 Tio
JOSÉ CARLOS REIS

toriografia dessa nova vida procura ainda se edificar. Há interesse por


que somos "pós-modernos", afirma ele, dá a inquietante impressão de que
pequenos dados e aventuras individuais. Há interesse pelo brilho intenso
não sornos contemporâneos de nós mesmos. Ele admite que há uma cons-
do efémero. Toda problemática histórica global é descartada, paradoxal-
ciência de ruptura, mas seria preciso saber se essa ruptura é real. Nem
mente, em pleno predomínio da globalização neoliberal! Nasce um olhar
sempre há coincidência entre ruptura e consciência da ruptura. Às vezes
em migalhas, curioso de fatos e biografias de homens apenas "diferentes",
há ruptura sem consciência, como na Revolução Francesa; em outras, há
"interessantes", e não por serem centrais e heróis. Depois do espírito uni-
uma consciência ilusória de ruptura. Para Rouanet, apesar da polissemia
versal e das estruturas impessoais, no pós-estruturalismo, retorna o eu,
do termo, "pós-modernidade" definiria um estado de espírito, uma sen-
com a sua experiência vivida obscura, com o seu pequeno reino afetivo,
sibilidade, uma "consciência de ruptura", mais que uma realidade crista-
com a sua biblioteca pessoal, as suas angústias pessoais, cujas soluções são
lizada. A Razão, instrumento com que o Iluminismo queria combater as
encontradas em um sistema filosófico pessoal. Termina a ilusão moderna:
trevas da superstição, é denunciada por essa "sensibilidade pós-moderna"
a história não salva e ninguém mais se nutre de sonhos utópicos e luta por
como o principal agente da dominação. Há uma consciência de que a eco-
qualquer vida além ou no futuro. Aliás, fitturo e além talvez signifiquem a
nomia e a sociedade são regidas por novos imperativos, por uma tecno-
mesma coisa!
ciência computadorizada, que invade nosso espaço social e substitui o pro-
O que se costuma chamar de pós-modernidade põe em xeque o
fessor e o livro pelo computador pessoal. Ninguém sabe bem ainda o que
sentido moderno da história, a identificação da história com a marcha do
isso significa.
Espírito (Europa) em busca da liberdade (Potência). Procura-se deslegiti-
mar o governo da história pela Razão. Não se quer mais o futuro agora, Para os marxistas, segundo Jameson, depois da II Guerra Mun-
pois não se sabe se é possível produzi-lo com segurança. Há uma desace- dial, de fato, uma nova sociedade emergiu, caracterizada pelo consumo,
leração da história — o futuro se distancia e o passado torna-se tema de pela aceleração da mudança, modas e estilos efémeros, publicidade agres-
vagas evocações. No século XX, pareceu estar ocorrendo um retorno ra- siva, TV e mídia, pela substituição da tensão cidade-campo, centro-pro-
dical ao modelo grego e renascentista de compreensão da história: o de- víncia, pela tensão subúrbios-padronização universal. Isso marca o fim do
sinteresse pelo sentido histórico. O sentido se decompõe e se esfacela. O co- mundo pré-guerra. O pós-modernismo liga-se à emergência desse novo
nhecimento não coincide com o real e não produz a superação das tensões momento do capitalismo tardio, multinacional ou de consumo. Nessa
e conflitos em uma consciência utópica. A pós-modernidade recusa as fi- cultura pós-moderna, perdeu-se o sentido histórico, seja como retorno ao
losofias da história, pois a fragmentação torna indiscernível o fio condutor passado, seja como construção do futuro. Não se retém mais o passado,
que leva à utopia. A grande narração unificadora, emancipadora, se frag- que é apenas evocado, sem o compromisso de se conhecê-lo como acon-
menta em múltiplas e pequenas narrações. A narrativa pós-moderna só tecido. Não se luta mais por um futuro utópico, pois rompeu-se com a ló-
visa a eficácia, a performatividade, isto é, uma racionalidade técnica, local, gica teleológica. Vive-se um perpétuo presente, em aparente mudança
parcial, sem realizar valores universais. Os interesses se multiplicam e o in- contínua, que destrói as tradições e as expectativas. O recente é consumi-
dividual, o parcial rompem com a perspectiva da universalidade. Na pós- do pela mídia e posto imediatamente como passado. A função da mídia é
modernidade, o ecletismo e o agnosticismo predominam. manter vivo o presente-contínuo. Ela nos ajuda a esquecer, cria a amnésia,
Para Rouanet, tem-se a impressão de que não há dúvida de que es- substituindo rapidamente as imagens que nutrem o nosso interesse pelo
tamos vivendo uma época pós-moderna. No entanto, ele parece não estar mundo externo. A realidade é transformada em imagens. O tempo é frag-
disposto a esquecer o projeto moderno e duvida dessa impressão. Aceitar mentado numa série de voláteis instantes percebidos paradoxalmente
como eternos. Talvez seja a versão pós-moderna de Deus, esta imagem
fulgurante e volátil do ser. É a vitória do brilho do vaga-lume sobre a noite
17 Quilliot, 1989.
escura, de Braudel. Por ser assim, uma "sensibilidade volátil", o pós-mo-
18 Lyotard, 1979.
dernismo poderia ser crítico do seu tempo? Para Jameson, ele parece ré-
48 Hl <
f J n s Ê C A R L O S REIS 49

produzir e reforçar a lógica do consumismo. Será que resistiria também a de lado como irracional. O estruturalismo pós-racionalista, paradoxalmente,
essa lógica do efémero? Não se autoconsumiria e desapareceria tão rapi- pratica a desconstrução, a deslegitimação da metafísica, para apanhar a
damente como apareceu? O pós-moderno diria que essa pergunta — se Razão em suas frestas. Mane, Freud e Saussure. fundadores da visão estru-
ele é "crítico" do seu tempo — é inadequada, pois a preocupação com a turalista da história, são ainda iluministas: visam a tomada da autocons-
crítica é moderna e é com ela que ele estaria rompendo. Ele é pós-crítico. ciência pelo sujeito, que busca ainda a liberdade.
Ele significa o fim do projeto crítico! O pós-estruturalismo, que se consolidaria nos anos 1960, iria mais
Aqueles autores do século XIX que se opuseram ao sentido teleoló- longe na recusa da modernidade, radicalizando algumas teses do estrutura-
gico das filosofias da história criaram uma representação estrutural da história lismo. Aqui, a própria noção de realidade é questionada. A desconstrução
que predominaria na primeira metade do século XX. Seguindo Marx, Freud pós-estruturalista é desrealizadora. O "efeito de real", o simulacro, suplanta
e Saussure, o estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna. a realidade. A imagem supercolorida, hiperdimensionada e ultradifundida
Foi o estruturalismo que afirmou a multiplicidade das direções históricas, de um objeto torna-se maior e mais real do que o referente. É hiper-real! O
contra o progresso, que recusou a história global, que suspeitou da lucidez indivíduo concreto é muito menos real do que a sua imagem idolatrada pela
da Razão moderna, que duvidou da revolução e da utopia, que desconstruiu mídia. Para serem "reais", os indivíduos precisam ser refletidos no espelho
a subjetividade moderna. Foi ele que aboliu a diferença entre sociedades in- da cultura, tornando-se imagens coloridas de TV, revistas e jornais. A ima-
feriores e superiores. Foi ele que saiu do círculo vicioso da identidade racio- gem refletida no espelho é mais real do que o ser refletido. A superimagem,
nal ocidental e revelou a alteridade interna e cultural. Ele desconfiou do su- a sua exposição exaustiva, substitui o sentido, oferecendo a sensação da Pre-
jeito, da consciência, da revolução, da astúcia da Razão. Ele descentrou o sença. A guerra vista pela TV não escandaliza, não horroriza. É mais um fes-
sujeito e a história, evitou a utopia, temeu a ação sem controle técnico, tival de "imagens fortes", que faz aumentar a audiência e o faturamento. Os
opôs-se ao conhecimento especulativo, recusou o raciocínio teleológico. Ele discursos se multiplicam e não se referem a algo exterior, mas são indepen-
dentes e sem significação essencial. Os significantes se libertam dos signifi-
começou a "suspeitar da Razão", percebendo-a como totalitária, violenta. As
cados e referentes. O real torna-se apenas uma "imagem acústica". Ou ape-
Luzes seriam uma "lucidez louca", repressiva. Ele privilegiou a descontinui-
nas uma imagem hipercolorida e hiperdimensionada, que é exposta
dade, desconstruiu o sentido metafísico que assegurava e garantia um final
agressivamente pela mídia. E essa fragmentação e dissolução do real é vivida
feliz. Temendo a Razão à solta, buscou abrigo em uma temporalidade es-
alegremente, sem culpa. Ocorre uma "espetacularização do vivido". Assim
pacializada, enfatizando as constantes, as longas durações, as estruturas. A
como no Renascimento, a ruptura com a representação moderna da utopia
história se desacelera e se fragmenta em épocas sem correlação e sem uma ló- é vivida como uma alforria, uma euforia, uma restauração da vida. O mo-
gica evolutiva. A história excede o sujeito. Deve-se impedi-lo de fazê-la. "Fa- vimento dito pós-moderno preferiu mergulhar nos prazeres do irracionalis-
zer a história" e "fazer história" se separam, isto é, a realidade histórica não mo. Já que não há mesmo sentido ontológico reconhecível, que se aceite o
é transparente, o conhecimento que se pode ter dela não é narrativo, mas instante em sua prazerosa fugacidade. Este é o sentido histórico possível.
uma reconstrução lógica. Essa nova época do espírito ocidental teria representado uma rup-
A pós-modernidade desconstrói as ilusões da Razão: a busca de uma tura com a Razão ou um novo modo em sua formulação? Se é aceitável
coerência global, de um imperativo categórico. No entanto, há uma ambi- que o mundo pós-1945 se diferenciou da época anterior, sua melhor de-
guidade no estruturalismo: ele se opõe à modernidade, por um lado, mas, finição seria "pós" ou "neo"moderno? Por um lado, os decepcionados
por outro, parece ainda pertencer ao projeto moderno, pois seria ainda um com o racionalismo ocidental adotam uma postura niilista, por terem per-
discurso da Razão. Ele quer apreendê-la a contrapelo. O seu objetivo é ultra- dido o sentido histórico e o lamentarem como se tivessem perdido tudo.
racionalista: introduzir na Razão o que a racionalização iluminista deixara Outros se sentem livres da "jaula de aço" da Razão e mergulham alegre-

19 Rouanet, 1987; e Jameson, 1992 e 1993. 20 Ferry, 1988; e Dosse, 1995.


C ARLo s REIS
50 H l S T Ó P. l A & T E O P. l A

tido universal, assim como a religião fracassara. A dispersão do sentido,


mente no presente. Por outro lado, há os que acreditam que a Razão não
acompanhada do prazer do presente, da leveza do passado e do descom-
foi superada e que o projeto moderno, apesar da crise, continua em vigor.
promisso com o futuro, talvez seja não uma ruptura com o projeto mo-
Para estes, a fragmentação do sentido só revela uma agudização da Razão.
derno, mas um retorno ao seu primeiro movimento, à sua primeira in-
Lévi-Strauss, Foucault, Lacan, Derrida, na verdade, buscariam a Razão
tuição, à sua primeira realização. E, nesse caso, como um retorno às
nos lugares mais escuros, menos frequentados antes por ela, isto é, am-
origens da modernidade, a pós-modernidade talvez signifique uma adesão
pliam o seu alcance. Uma Razão descentrada, múltipla, fragmentada não
ainda mais radical ao projeto moderno, em sua face grega e renascentista,
seria mais lúcida do que uma razão unificadora, centralizadora e autori-
e a crise de sua face socrático-judeo-cristã. Nietzsche não procurou se opor
tária? Habermas formula a grande questão: deve-se abandonar o projeto
ao projeto moderno recorrendo ao pensamento pré-socrático?
das Luzes ou deve-se defendê-lo, apesar da sua crise? Ele sugere que a mo-
dernidade não deve ser reduzida aos seus resultados negativos. E prefere Essa crise pós-moderna ocorreu na Europa como desdobramento da
definir os seus limites e desvios e os meios que esta própria Razão tem de revolução cultural moderna, europeia, iniciada no século XVI. Mas a ideia
se autocriticar. Ele opõe uma razão autocrítica, comunicativa, ético-prá- de pós-modernidade envolve também outros temas. Para Habermas, nos
tica, fundada na relação entre sujeitos sociais, mediada pela linguagem, à anos 1950, a temática iluminista-hegeliano-weberiana da modernidade se
razão instrumental. E à razão instrumental, opõe a razão intersubjetiva. apresentou de outro modo. Apareceu o termo "modernização", querendo
Ele alarga o conceito iluminista de razão. Para Habermas, os ditos pós- dizer algo diferente de "modernidade". Modernização seria um conjunto de
modernos reduzem a Razão moderna ao seu aspecto instrumental. Sua re- processos cumulativos que se reforçam uns aos outros — a capitalização e a
cusa da Razão se apoia em um equívoco de análise.21 mobilização de recursos, o desenvolvimento das forças produtivas, o au-
Habermas deseja recuperar a Razão ao acreditar que só ela mesma, mento da produtividade do trabalho, a centralização dos poderes políticos e
autocriticando-se, refletindo sobre si mesma, poderia superar seus próprios a formação de identidades nacionais, o direito à participação política, a ur-
desvios. A crítica pós-moderna, para Habermas, faria parte desse esforço banização, a instrução pública, a laicização dos valores e normas. Essa mo-
da Razão de encontrar em si e não fora dela a solução para os seus im- dernização rompeu o laço que ligava estreitamente a modernidade ao ra-
passes. A Razão moderna possui meios para a sua autocrítica e auto-su- cionalismo ocidental. Ela é independente de tempo e lugar e não é mais a
peração. Ela só precisa incluir em seu movimento autocrítico o outro da objetivaçáo histórica de uma revolução cultural interna. Ela entra na peri-
Razão: a violência, o desvario totalitário. Para ele, é preciso manter o oti- feria ocidental e no Oriente, de fora para dentro, quebrando as tradições
mismo e defender uma história sensata; defender a linguagem e a vontade históricas, as culturas locais, impondo a lógica racionalista e secular ociden-
de sentido contra a ação sem linguagem (violência) e a ausência de sentido tal. Internamente, representa para estes povos uma ruptura profunda, não
(relativismo). Partindo de Habermas, pode-se supor que a pós-moderni- construída por eles próprios, mas imposta do exterior, em nome az perfor-
dade talvez não seja uma saída da Razão, mas um retorno à sua fase inicial mance capitalista. A modernização não emerge de uma nova subjetividade
renascentista. Essa fragmentação talvez signifique um retorno ao início racional, mas é imposta aos indígenas, aborígines, autóctones de todas as
dos tempos modernos, quando a ruptura com a religião, o "desencanta- partes do mundo conquistadas pelo Ocidente moderno. Esse conceito dos
mento do mundo", trouxe ao mesmo tempo a perda do sentido unificado anos 1950 define também uma forma da pós-modernidade na Europa. A
e o prazer da vida neste mundo. Por algum tempo, a perda do sentido uni- pós-modernidade ligada à modernização refere-se ao processo de automa-
versal representou uma alegria de viver. As Luzes recolocaram a questão tismo em que se degradou a revolução cultural da modernidade. Há teóricos
do sentido universal e a experiência histórica voltou a ser violenta e triste.
da cultura, seguindo Spengler, que sustentam que a civilização ocidental
Com a Razão, procurou-se substituir a religião, oferecendo um significado
vive uma decadência, pois perdeu o frescor e o vigor criativos da origem e
e direção universais à história. As Luzes fracassaram na construção do sen-

22 Habermas, 1987.
21 Habermas, 1981.
52
JOSÉ CARLOS REIS 53

vê-se dominada pela tecnologia e por comportamentos automatizados. Ela


de controle, instrumentalização, subjetividade dominadora de si e do ou-
teria sido vítima do seu próprio desenvolvimento, que acaba geralmente ern
tro, "vontade de potência". Não no sentido de Nietzsche, que é alegria de
decadência e morte das culturas. Nesse processo pós-moderno, as premissas
ser e viver, um sim a si mesmo. A "vontade de potência" da razão instru-
das Luzes estão mortas e só suas consequências continuam a agir, sem o seu
mental é conquistadora, dominadora, manipuladora da alteridade. Para a
espírito original. A modernização limita-se a fazer funcionar as leis da eco-
sensibilidade pós-moderna, já se estaria há muito fora do projeto moder-
nomia e do Estado, da técnica e da ciência, formando um sistema fechado
no-iluminista. E felizmente!
a toda ação transformadora. Os processos sociais se aceleram sem criar mu-
dança profunda, pois a esfera da cultura está esgotada, cristalizada. A cultura
moderna se cristalizou porque realizou todo o seu potencial. Suas oposições
foram integradas e as mudanças profundas não são mais possíveis. A história
Pós-modernidade e história-conhecimento
das ideias está fechada e, então, entramos na pós-história. E só gerir os seus
O que seria uma historiografia dominada pela temporalidade pós-
bens acumulados. A revolução cultural da modernidade se interrompeu
moderna? Esse quadro não está estabelecido, pois ainda vivemos esse pro-
nesse processo puramente econômico-tecnológico de modernização. Esta é
cesso e não conhecemos bem seu significado. Vamos nos limitar a fazer al-
a forma neoconservadora de fechar a modernidade. Outros pós-modernos
gumas reflexões e sugestões sobre o estado atualíssimo da cultura, sem pre-
(anarquistas), ainda segundo Habermas, falam do fim das Luzes, da supe-
tender organizá-lo de forma definitiva, o que seria impossível. Além disso,
ração da Razão e também estão na pós-história. Mas, o anarquismo pós-mo-
o desenho rápido e de linhas trémulas que traçaremos já está ultrapassado,
derno visa a modernidade em seu conjunto. Para eles, a Razão revelara o seu
dada a impossibilidade de qualquer discurso coincidir com o atual. A his-
rosto: é uma subjetividade que submete tudo, estando ela mesma submetida
toriografia dominada pelo processo cultural da modernidade é conhecida
como uma vontade de autocontrole instrumental. A Razão sem véus é uma
até em suas expressões mais heterodoxas. Ela foi absolutamente dominante
vontade de potência pura e simples. A critica pós-moderna de Heidegger
até a primeira geração da chamada Escola dos Annales. Qual foi a repercus-
quer quebrar a jaula na qual o espírito da modernidade se objetivou soci-
são real sobre a história de autores neonietzschianos como Foucault, Der-
almente. Apesar das diferenças, essas duas teorias da pós-modernidade rom-
rida, Deleuze e neodiltheyanos como Heidegger, Gadamer, Ricoeur e o
peram com o horizonte categoria! com o qual a modernidade se auto-re-
próprio Habermas? Qual foi a repercussão sobre o conhecimento histórico
presentava. Para elas a modernidade já pertenceria a uma época passada.
da aceleração espantosa da ciência e da técnica, resultado mais impressio-
Enfim, na cultura pós-moderna, é preciso renunciar a Hegel e aos
nante da revolução cultural da modernidade? As mudanças profundas na
discursos iluministas. Marx, Freud e Nietzsche, cada um ao seu modo,
C&T criaram uma atmosfera cultural nova, que afetou profundamente o
desmontaram a unidade sujeito-consciência. Eles mostraram que, entre os
conhecimento histórico. O novo ambiente cultural é complexo: o presente
dois, há rupturas, falhas. Se for possível a coincidência, ela não será direta,
é de globalização e individualismo, de ruptura com o futuro e o passado e
linear e transparente; precisa ser construída, elaborada, passando pelo re-
de satisfação com o presente, de aceleração da mudança e de consolidação
conhecimento da sua alteridade irracional. O historiador olha com sus-
e quase cristalização do presente, de intensa comunicação e sofisticação dos
peita as histórias universais, os grandes sistemas. A história não usa mais
equipamentos e de desmobilização da discussão das questões humanísdcas e
conceitos como racionalidade, teleologia, relativismo, sentido. A cultura
filosóficas. Não há projetos sociais ou grandes causas que mobilizem os gru-
pós-moderna denuncia uma estreita relação entre o totalitarismo e as Lu-
pos sociais. "Promessas de sol" não queimam mais o coração ocidental! Na
zes. Os totalitarismos do século XX seriam a encarnação da Razão abso-
cultura pós-moderna não há profecias nem utopias. O futuro não é mais de-
luta. No século XX, a Razão mostra a sua verdadeira identidade: vontade
tentor do critério ético que orienta a ação. Terá sido o fim de toda teleo-

23 Habermas, 1985 e 1987.


24 Lyotard, 1979; Ferry, 1988; e Dosse, 1993 e 1995.
H lSTORI / TEORIA
JOSÉ CARLOS REIS 55

logia? Nem o passado é mais "mestre da vida". Vivemos "tempos novos",


muito novos, onde o presente recuperou seu direito à existência autónoma. A temporalidade histórica se alterou profundamente nas últimas
Cabe aos historiadores, que têm maior sensibilidade à mudança, o papel de décadas. O presente não dialoga mais cora o passado e com o futuro como
identificá-la e pronunciá-la. antes, buscando referências e valores. Auto-suficiente, ele parece se con-
solidar e se eternizar. Parece que vivemos a novidade de uma época pós-
Essa mudança na experiência da temporalidade teria repercussões
judeo-cristã-iluminista! Como conceber o real, o distante, o individual, o
importantes sobre a sua representação historiográfica. Se o tempo da mo-
interno, quando predominam o virtual, o próximo, o homogéneo, o glo-
dernidade significara uma aceleração do tempo histórico, apoiado nas fi-
bal? Que contradição move este tempo? Que lutas o constituem? Quais as
losofias da história, as novas ciências sociais, no século XX, perceberam
suas "costuras", os seus limites? Qual a linguagem mais adequada para
que esses eventos produzidos aceleradamente não eram controláveis, pois
dizê-lo? A meu ver, estes tempos pós-modernos se instalaram porque
não se conhecia de fato o seu sentido. O sentido dos eventos não se dá a
houve uma aceleração tal — e relativamente autónoma — na esfera da
um conhecimento especulativo. A "estrutura inconsciente" sobre a qual se
C&T que alterou com violência a esfera cultural, sem que ela tivesse
apoia a consciência é opaca. Os cientistas sociais não querem mais aceitar
tempo e meios de se reconhecer e estruturar. Ela reage, se acomoda, pro-
as filosofias da história modernas: documentação incerta, visão muito am-
cura se atualizar, buscando se dar conta (to realize) do que ocorre, mas
pla, submissão do real complexo a ideias muito simples e a sistemas fe-
sofre a violência de uma corrente interna que ao mesmo tempo a sufoca
chados, intolerância, resistência a todo irracionalismo, insensibilidade em
e alivia. A cultura vive a pós-modernidade, mas alimenta-se oniricamente
relação à tradição. As filosofias da história criaram conceitos que hoje não
de discursos arcaicos e ainda da grande narrativa moderna. Quando se
interessam mais à história: necessidade, totalização, finalidade, sentido
ouvem exposições sobre o que vive o atual, quando se lê Derrida, Fou-
histórico, história universal. A prática histórica deveria tratar agora, nos
cault, Morin, Serres, Lyotard, Jameson, a impressão é ao mesmo tempo de
anos posteriores à II Guerra Mundial, de descontinuidades, defasagens,
reconhecimento e de surpresa e perplexidade.
diferenças. A realidade histórica resiste ao conhecimento e à ação e é pre-
ciso, antes de se pretender alterá-la, conhecer as suas resistências, h preciso O ritmo extremamente acelerado do desenvolvimento na esfera da
primeiro considerá-la como coisa, estrutura, permanência, continuidade ciência e da técnica tem levado a mudanças profundas nas outras esferas
inerte, repetição constante, tendência, à rotina e ao repouso do cotidiano. O da sociedade. As esferas religiosa, política, social, familiar, jurídica, eco-
sentido dos eventos só pode ser conhecido pela "pesquisa científica", que nómica, intelectual, sexual, pedagógica, artística, ecológica, médica, para
implica coleta e observação de dados e teorização particularizada. Fazer citar algumas apenas, têm não só se beneficiado com as mudanças cien-
história com o apoio da filosofia da história tornou-se perigoso: naciona- tíficas e tecnológicas, mas também se adaptado ou resistido a elas, cada
lismos, racismos, imperialismos, etnocentrismos, xenofobias e as guerras uma em seu ritmo e com sua especificidade. Como na primeira moder-
emergem sem controle. Tornou-se impossível pensar o sentido histórico nidade, cada esfera tem seu próprio ritmo de desdobramento e não se
de uma história universal, paradoxalmente, quando se tem a sua expe- deixa dominar ou determinar pelo das outras. Mas as mudanças que ocor-
riência histórica mais concreta! Os historiadores perderam a ambição de rem em uma, sobretudo quando esta se move muito rapidamente, exigem
uma história global e pensam em termos de descontinuidades e estruturas, das outras uma reação, uma reformulação e uma reestruturação. Após a
de rupturas e fragmentação, em pleno processo de globalização. Não se II Guerra, a esfera da ciência e da técnica vem mudando tão acelerada-
identificam mais princípios únicos, um espírito substancial universalmen- mente que está levando as demais à crise profunda: os valores, as fórmulas,
te presente nas diferentes formas que o realizam. os hábitos, os comportamentos, as repetições, as lições, os ritmos, os di-
versos saberes constituídos estão em xeque. A religião não é mais a mesma,
25 Dosse, 1995; e Ferry, 1988.
nem a família, nem a arte, nem o trabalho, nem a vida intelectual ou se-
26 xual, nem a vida cotidiana, nem os momentos solitários íntimos. O co-
Reis, 1994 e 2000.
nhecimento histórico não é mais o mesmo daquele de meados dos anos
56
T c o Ri A JOSÉ CARLOS REIS 57

1960. Cada esfera tem seu modo próprio de reagir, sua linguagem, seus rior, mas voltada para o domínio interior do homem e lançando nele
recursos e tendências próprias. Não seria uma radicalização da moderni- mercadorias culturais. Jamais a cultura c a vida privada foram incluídas
dade renascentista? a tal ponto no circuito comercia! e industrial...
A sociedade vive uma "revolução conservadora", sem sujeito e sem
discurso — passa por mudanças vertiginosas, que não consegue compreen- Sobre essa nova experiência da civilização ocidental, as investiga-
der e articular em linguagem formal e clara. E talvez nem deseje! O inima- ções de campo e as reflexões teóricas e filosóficas se multiplicaram. A obra
ginável tornou-se banalidade: imagens nítidas e minuciosas do espaço re- de Morin foi pioneira nesse tema. As publicações sociológicas e filosóficas
motíssimo, o controle dos segredos genéticos, a comunicação global pela sobre estes "tempos pós-modernos", tal como polemicamente definido
Internet e outros meios. Por um lado, um domínio em avanço contínuo da por Lyotard (1979) e Habermas (1981 e 1985), entre outros, já são in-
natureza e da sociedade. Por outro, perplexidade, contra-informação, blo- contáveis. Todas elas visam um mesmo objetivo: atribuir sentido ao que
queio da comunicação, destruição do meio ambiente e dos vínculos sociais. se vive atualmente, apreender em algumas teses a direção e o significado,
A comunicação entre os indivíduos, entre os grupos e entre as diversas so- representar o desenho, a figura, das mudanças aceleradas vividas em todas
ciedades tornou-se difícil, na medida em que os códigos se fragmentaram, se as esferas da sociedade, de modo descontínuo e não-articulado, mobiliza-
particularizaram, resistindo à homogeneidade da linguagem tecnológica. das pela revolução (conservadora) aparentemente inesgotável da esfera da
Vive-se uma situação ambígua: a da individualização e fragmentação da co- C&T. A dificuldade maior, quando se vive uma época de aceleração tem-
municação em um contexto de globalização e de sofisticação extrema dos poral, é poder reconhecê-la e dizê-la em linguagem compreensível, inter-
equipamentos de comunicação. Essa ambiguidade pode ainda ser expressa subjetiva. Essa dificuldade se acentua porque a linguagem, as chaves de
de outro modo: o retorno do indivíduo, com suas preferências, sentimentos, leitura com as quais se está habituado não abrem mais o sentido e não o
leituras, estratégias, modos de fazer e agir próprios, em um contexto de mas- formulam mais. É uma situação de petplexidade e mutismo. Ou pior:
sificaçáo das preferências, dos sentimentos, das leituras e dos modos de fazer uma situação de perplexidade e de tagarelice, de palavrório reativo, que
e agir. Enfim, a clássica tensão entre o particular e o universal, entre o in- não se refere a nada, mas foge... A perplexidade é uma atitude diante do
dividual e o social ganhou, no final do século XX, um contorno específico mundo, rica, produtiva, pois admirativa, surpreendida, crítica, descobri-
e uma expressão original. Edgar Morin expõe esse "novo espírito histórico", dora. O melhor às vezes é o silêncio, a contemplação, o olhar atento-in-
emergente no final do século XX, em vários de seus livros. Entre eles, des- tenso, como quem vê um filme novo e fascinante e não quer parar para
taca-se L 'esprit du temps 1. Neurose, onde afirma: comentá-lo ou perder tempo com conversas ou afetos paralelos. Um bom
filme, um bom jogo, uma boa leitura, como a vida, só podem ser comen-
no início do século XX, a potência industrial estendeu a sua soberania tados quando terminados. Na cultura pós-moderna, o "sentido histórico",
sobre o globo. A colonização da África, a dominação da Ásia se com- nos termos da tradição judeo-cristã-iluminista, deixou de ser um proble-
pletaram. Mas, eis que começa a Segunda Industrialização: aquela que se
ma cultural. Voltar a discuti-lo seria colocar-se em uma ttadição contra a
dirige às imagens e aos sonhos (...) A Segunda Colonização, não mais
horizontal, mas vertical desta vez, penetra na grande reserva que é a alma qual o atual se posiciona, e colocat o problema nos termos tradicionais
humana (...) qualquer molécula de ar transporta mensagens que um apa- seria inadequado para se pensar o atual.
relho, um gesto tornam imediatamente audíveis e visíveis. A Segunda In- Mas, se por um lado, enquanto contemplamos as mudanças, o
dustrialização, que é a industrialização do espírito, a Segunda Coloni-
melhor é o silêncio atento-intenso, por outro, quando somos atores, isto
zação, que é a da alma, progridem ao longo do século XX. Ocorre um
é, sujeitos e vítimas das mudanças, o melhor é procurar dizê-las, compre-
progresso ininterrupto da técnica voltada não mais para o mundo exte-
endê-las, enquanto é tempo para agir e reagir, ou seja, interferir de algum
27
modo, adequando-se, negociando, circulando, resistindo, apropriando-se,
Weber, 1974.
cada um em sua escala individual ou de grupo. Morin (1962) afirma que
58 HISTÓRIA & TEORIA
JOSÉ CARLOS REIS

esta estranha nooesfera coloca problemas. Estes passam da periferia para


o centro das interrogações contemporâneas. E não se deixam reduzir às o trabalho, a riqueza, a ideia, o prazer, a educação, o género enquanto tais,
respostas já prontas-, Eles só podem ser colocados por um pensamento em si, mas formas de construí-los e representá-los. Nesse sentido, a esfera
em movimento. Aparece uma nova cultura, saída da imprensa, do cine- cultural produz história, cria realidade nova, e não seria só efeito, reflexo,
ma, do rádio, da TV, que se desenvolve ao lado das culturas clássicas — epifenômeno de esferas ditas infra-estruturais. Como as outras esferas, ela
religiosas e humanistas — e nacionais. Após a Segunda Guerra Mundial, possui uma autonomia relativa — ritmos próprios, linguagem específica,
a sociologia americana detecta, reconhece a terceira cultura e a nomeia: território próprio de desdobramento —, mas não é indiferente aos ritmos
mass culture. Cultura de massa, i.é., produzida segundo as normas mas-
sivas da fabricação industrial. das outras esferas. Se uma esfera tem ritmo mais rápido, por motivos es-
pecíficos, isso repercute nas outras e força, não de modo mecânico e de-
A alteração da esfera cultural leva o conhecimento histórico, um terminista, mas de modo qualitativo, valorativo, significativo, enfim, cul-
de seus componentes essenciais, a mudanças profundas. Tudo o que se tural, uma redefinição de sua estrutura. Se a esfera cultural é "interior" a
soube até aqui parece ultrapassado ou insuficiente. As chamadas escolas todas as outras, se está em toda parte, não seria a versão pós-moderna da
históricas, que se apresentaram cada uma ao seu turno como novas his- Fé e da Razão? Afinal, mesmo reconhecendo a multiplicidade e hetero-
tórias, sonhando ser definitivas e científicas, já são históricas — fazem geneidade das esferas sociais, a cultura, presente em todas elas, as reúne, as
parte da história das ideias, da história da história. Continuam a ser im- reintegra, centralizando-as, estruturando-as, assim como se fosse a face
portantes interlocutoras, todas elas sem exceção, mas não se referem ao pós-moderna de Deus ou do Espírito Universal. J
que se vive nas últimas décadas. Vivemos uma fase em que se elabora mais O desdobramento acelerado da C&T repercute fortemente sobre
uma "nova história": como será ela? Qual será o discurso histórico ade- o conhecimento histórico. Não só porque novas técnicas, principalmente
quado ao presente e que revelará um novo passado? Se cada presente se re- a informática, permitem manipular e controlar novos vestígios e reelabo-
presenta escolhendo e recusando passados determinados, em função de fu- rar vestígios tradicionais, mas sobretudo porque aparece uma nova repre-
turos selecionados e recusados, quais serão os passados e os futuros deste sentação da temporalidade que altera a percepção do real. O que é o real
presente e qual a linguagem e as teses dessa nova história? Como esse pre- em um mundo dominado pelo virtual? O que é fato concreto em um
sente representa a temporalidade? Ou melhor: qual é o conhecimento his- mundo dominado pela simulação? Qual a distância entre a realidade e o
tórico adequado a essa nova cultura pós-moderna? jogo, entre o conhecimento realista e a ficção? O que significa a distância
espaço-temporal em um mundo dominado pela proximidade do remoto,
O conhecimento histórico mais próximo das mudanças pós-mo-
pela redefinição da ideia de "remoto"? O avanço técnico cria um simu-
dernas atuais prioriza a esfera cultural. A cultura pode ser talvez definida
lacro de ubiqiiidade: pode-se estar em vários lugares, distantes espaço-
como o mundo das ideias, interpretações, valores, regras, comportamen-
temporalmente uns dos outros, e exercer sobre eles simultaneamente al-
tos,-linguagens, representações, sentidos, projetos, lembranças, desejos e
guma forma de intervenção. Ao mesmo tempo, sofre-se essa ação de lu-
sonhos de uma sociedade. Aquilo que até há pouco era nomeado como
gares e tempos distanciados. As culturas se interpenetram, as economias se
"mundo superestrutura!". Hoje não se percebe mais esse mundo cultural
atravessam, os poderes se interferem, os espaços perdem fronteiras, os
como super ou supra-estrutural em oposição ou como mero reflexo de um
tempos se superpõem. Novas questões históricas se apresentam aos histo-
mundo material infra-estrutural. O mundo da cultura é "interior". Ele
riadores, que com dificuldade procuram identificá-las e com maior difi-
aparece no interior de todas as outras esferas: a economia é uma forma his-
culdade ainda procuram formulá-las com o domínio do seu sentido e da
tórica e particular de representar a produção da riqueza; a política é uma
linguagem que o expressa. Se a história é a linguagem da mudança, pois
forma histórica e particular de representar o poder etc. Não existe o poder,
a estrutura ao representá-la, precisa estar a par das mudanças profundas
28
Chartier, 1989; Dosse, 1993; e Ferry, 1988.
29 Hunt, 1992; e Foucault, 1979.
60 T h O R IA
r JOSÉ CARLOS REIS

que o final do século XX viveu; estar a par e na vanguarda, reconhecendo-


trimento da explicação globalizante; redefinição da interdisciplinaridade e
as e formulando-as o mais próximo possível da sua acualidade.
do tempo longo; abertura a todos os fenómenos humanos no tempo, com
Antes, na modernidade, buscando referir-se ao real e produzir ênfase no individual, no irracional, no imaginário, nas representações, nas
uma "verdade histórica", a história se apoiava em critérios e valores mais manifestações subjetivas, culturais. Por um lado, pressupõe uma coerência
ou menos convergentes, embora não consensuais: a teleologia, a utopia, a estável de sentimentos e ideias numa dada sociedade; por outro, enfatiza
emancipação da humanidade, o cientificismo, o tecnicismo, o quantita- a pluralidade de crenças e racionalidades em uma mesma cultura. Os
tivismo, o comparativismo, a conceituação, a ampliação das fontes, a in- temas da antiga história das mentalidades — religiosidade, sentimentos,
terdisciplinaridade com as ciências sociais e outras, a intersubjedvidade no rituais, infância, vida primitiva, vida cotidiana, sexualidade, prisões, mi-
interior da comunidade científica, a estrutura académica, que definia o cropoderes, doença, amor, morte, loucos, mulher, homossexual, corpo,
que era aceitável ou não, as grandes obras e os grandes autores, referências modos de vestir, de chorar, de beijar, comportamentos desviantes, crenças
da "boa história".
— continuam atuais, mas são abordados em suas negociações e apropria-
Todos esses valores e critérios da comunidade dos historiadores ções individuais e de grupos. Isso não significa negar a ordem estrutural
estão sendo hoje reavaliados. Quase nenhum sobreviveu. De modo into- dessas experiências humanas, que continua sendo pressuposta. O olhar
cável, não sobreviveu nenhum! Se sobreviveu, foi ressignificado. A histó- sobre o estrutural é que muda. Não se buscam as séries homogéneas, a
ria, em sua eterna busca da adequação do seu discurso ao tempo atual, se ordem quase imutável, as "prisões de longa duração", mas as ordens ne-
reexamina e se refaz. As várias tentativas que se apresentam são interes- gociadas, instáveis, as lutas, as apropriações seletivas, as circularidades cul-
santes, mas ainda dominadas por uma linguagem tradicional. O linguistic turais diferenciadas, as representações particulares do estrutural. O sujeito
turn americano, com fortes influências francesas, retorna a uma discussão retorna como problema histórico. Um sujeito mais limitado em sua ação,
epistemológica, de caráter filosófico, com a qual a história do século XX menos central e heróico, mas criativo e combativo, ágil e eficiente, vivo,
havia rompido; a micro-história italiana retorna a um discurso quase idea- negociando a representação que fará do mundo lá em seu nicho social. A
lista e até teológico do particular como sintoma, sinal, pista da totalidade. história não tematiza homens passivos, dominados por forças transcen-
A história tende a abandonar as suas pretensões científicas e a tornar-se dentes universais ou forças objetivas impessoais. A filosofia que, como fi-
um ramo da estética. Ela se aproxima da arte: da literatura, da poesia, do losofia da história universal — aquela do século XVIII —, foi banida do
cinema, da fotografia, da escultura, da música... Isso quer dizer que a forma conhecimento histórico durante todo o século XIX e XX retorna como
da história não é exterior ao seu conteúdo e indiferente à sua época. O dis- aliada indispensável da história na reflexão sobre este mundo produzido
curso histórico não é só uma exposição analítica, conceituai e quantificada por sujeitos locais, descentralizados, que negociam permanentemente as
de uma documentação objetivamente elaborada. A história se apropria e suas identidades com a sociedade e os outros sujeitos históricos.
ressignifica diversas linguagens. A sua forma, a sua linguagem, é a sua men-
sagem. Ou melhor: sua forma e sua linguagem são elementos reveladores
A história da história busca a adequação do conhecimento histó-
de sua mensagem. rico ao seu presente, para interpretá-lo e compreendê-lo o mais próximo
possível dos seus próprios termos. Diante dessa cultura pós-moderna, al-
O espírito da historiografia pós-moderna talvez possa ser resumido
guns concluem, céticos: é o relativismo final! A história se perdeu como sa-
assim: valorização da alteridade, da diferença regional e local; microrre-
ber. Não sabe o que faz. E estendem o seu ceticismo a Heródoto, a toda
cortes no todo social; apego à micronarrativa e à "descrição densa" em de-
a história da história: terá sabido algo algum dia? E outros concluem, in-
génuos: é a verdade que chega! Estivemos durante todo o século envolvidos
30 Quiliiot, 1989. e traídos pela história científica. Felizmente, hoje, nos livramos de estru-
31 Foucauit, 1979; e Dosse, 1995.
turas, longas durações, quantidades, conceitos, coletividades anónimas,
32 LaCapra, 1983; Duby & Lardreau, 1989; e White, 1992.
teleologias fantasiosas e podemos, enfim, respirar e criar! Nós não con-
02 15 T o R i A & T E O R I A
r JOSÉ CARLOS REIS 63

CHESNEAUX, J. Modernité-monde. Paris: La Découverte, 1989.


cluiremos. Antes, nos perguntaremos, históricos: que ares são estes que
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chegam, que tempo é este que se aproxima, que altera todos os critérios e
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após a experiência de uma nova fratura. O momento atual é de desen-
cantamento do mundo, isto é, da perda de representações globais, uni- . História do estrutttralismo. São Paulo: Ensaio; Campinas: Unicamp, 1993. v. 1.
ficadoras, do sentido histórico. Predomina uma "experiência irrespon- . L 'histoire en miettes — dês Annales à Ia "nouvelle histoire ". Paris: La Découverte,
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realiza. Nietzsche talvez estivesse certo: a consciência feliz é a que não tem DUBY, G. & LARDREAU, G. Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Dom Quixote,
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A transição da "história global ou total" à "história em migalhas",


tema recorrente e incontornável em toda discussão teórico-metodológica
atual sobre a história, não é de abordagem teoricamente fácil e politica-
mente serena. Como apreender essa mudança e como avaliá-la? Como de-
finir o que era e em que se tornou a história, se os próprios conceitos de
história global e de história em migalhas são imprecisos?
Neste capítulo tenta-se compreender essa mudança, definindo os
conceitos envolvidos no debate e considerando as diversas possibilidades
de avaliação dessa transição. A estratégia adotada consistiu em abordar o
tema através de três entradas possíveis, mas que não são as únicas. A pri-
meira entrada é macroteórica: procura-se reconstruir a passagem vivida
pela cultura ocidental entre os séculos XVIII e XX, por muitos descrita
como uma transição de uma visão iluminista-globalizante ou "moderna"
da história a uma visão estruturalista e pós-estruturalista-fragmentada ou
"pós-moderna". Essa transição é geralmente descrita como uma ida do
global à fragmentação. A segunda entrada é historiogrãfica: discutem-se as
teses de François Dosse, autor que difundiu essas expressões, entre os his-
toriadores, sobre as gerações da escola dos Annales, que ele formulou em
termos de uma descontinuidade entre a primeira e a segunda gerações,
que faziam ainda ou desejavam fazer uma história global, e a terceira ge-
ração, que teria renunciado a ela e optado por uma história em migalhas.
A terceira abordagem é conceituai: discute-se o conceito de "ciência his-
tórica" das três gerações dos Annales e procura-se entender o que cada
68 JOSÉ CARLOS REIS 69

uma delas quis dizer com história global e história em migalhas e quais as tória" e recomendam a produção vertiginosa de eventos que o concretizem.
relações que estabeleceram entre ambas e a história-problema. Finalmen- Eles consideram que, finalmente, puderam formular e articular o até então
te, ousa-se fazer um balanço: essa transição foi um avanço ou um recuo? desconhecido e indizível: o sentido profundo da vida dos homens. Se o real
Ou seria inadequado formulá-la nesses termos? é racional, eles são os formuladores do racional. Eles se apresentam como a
consciência de si da história. Sua consciência da história e a história efetiva
coincidiriam: "fazer a história" e "fazer história" se recobrem. O conheci-
Modernidade iluminista versus pós-modernidade mento histórico é "reflexão fiel do vivido", é o vivido que retorna a si e
torna-se para si. A narrativa histórica e o curso dos processos históricos coin-
estruturalista e pós-estruturalista
cidem. A história-conhecimento e a história-efetiva estão ambas dominadas
pelos conceitos de "sujeito" e de "consciência". A história é reflexão: exte-
O projeto moderno, articulado pelo Iluminismo, vê a história como
riorização e retorno a si, objetivação e interiorização de uma consciência sem-
"espírito universal" — um centro-consciência-interioridade em avanço, um
pre superior de si. Se a reflexão total é possível, logo, acredita-se que a ação
núcleo subjetivo e lógico que se exterioriza e retorna a si, integrando-se e
total seja também possível. Se o sentido da história já é conhecido anteci-
concentrando-se progressivamente, tomando consciência de si. A história é
padamente, a "revolução" é legítima. A revolução é apenas a aceleração da
a marcha do espírito em busca da liberdade; é uma construção de um sujeito
marcha do espírito em busca da liberdade. O espírito universal tem razão
singular-coletivo e consciente — a humanidade —, em busca da liberdade,
em acelerar sua marcha, se vai em direção à liberdade.
isto é, do seu centro, da coincidência consigo mesmo. O projeto moderno
iluminista é profundamente otimista: crê na Razão e em seu poder de sem- O projeto moderno iluminista legitima toda violência contra o
pre ver claro e de construir um mundo histórico-social segundo seus parâ- passado-presente, encarado como entrave, obstáculo à liberdade, e propõe
metros. A história é considerada construção e realização da subjetividade uma ida vertiginosa ao futuro. A utopia racional, a realização absoluta da
universal, um processo racional, inteligível. Seu desfecho é previsível: a vi- Razão legitima toda violência contra o presente-passado. O Iluminismo
tória da Razão, que governa o mundo. A hipótese fundamental do Ilumi- levou a uma revolução permanente do vivido, à subordinação do passado-
nismo é hegeliana: a história não pode deixar de ter sentido, não pode ser presente a uma teleologia. A história é concebida como um processo glo-
bal, coerente, unificado e acelerado da humanidade, um sujeito singular-
mudança sem direção e significado. Governada pela Razão, a história só
pode produzir a moralidade, a liberdade, a justiça, a igualdade. Jamais a vio- coletivo, em direção à perfectibilidade, à moralidade, à racionalidade fu-
lência. A história é movida pela busca de sentido e não pela vontade de po- turas. A crítica racional torna-se impiedosa e intransigente em relação aos
tência. A busca do sentido é a da decifração do universal por trás do par- irracionalismos e privilégios da tradição. O futuro destrói racional e legi-
ticular; a vontade de potência seria o domínio do particular enquanto timamente o passado-presente, pois mais perfeito e livre. A grande nar-
rativa iluminista garante a legitimidade da intervenção radical na realidade
particular — que seria pura violência, ou seja, falta de sentido. A açáo do
histórica. A mais violenta revolução é uma expressão superior do espírito
particular dominada pelo universal não seria violência, mas realização do
sentido. universal e, portanto, moral e legítima. A história iluminista é dominada
pelos conceitos de "sistema" e de "totalidade". Ela é a realização de um su-
Os iluministas abordam a história com confiança, esperança, oti- jeito universal, de um singular coletivo, que sabe de si e quer saber cada
mismo, "fé na Razão". Se o futuro só pode trazer a vitória da Razão — uma vez mais de si. O sujeito consciente é movido por um desejo de totalização
sociedade justa, moral, livre, igualitária, saturada de sentido —, então, para de si, de autoconsciência. Em busca de uma consciência total de si, ele rea-
eles, o presente deve se autodestruir para que se implante imediatamente em liza ações totais, visando obtê-la aceleradamente. Sua procura é a da coin-
seu lugar esse futuro. Na modernidade, sob o governo crítico da Razão, a
história se acelera. A história torna-se sujeito de si, buscando nela própria
sua legitimação. Os iluministas acreditam ter decifrado o "segredo da his- Koselleck, 1990; e Cardoso, 1997.
m
70 Hl!
JOSÉ CARLOS REIS 71

cidência do real e do racional — o real como consciência interior de si; a As ciências sociais passam a duvidar do conhecimento histórico ba-
consciência como realização exterior de si. A história é expressão e reali- seado em uma especulação filosófica sobre o futuro. Elas consideram que o
zação de um sentido universal — a emancipação da humanidade. homem não é só sujeito, mas também resultado, objeto. Elas opõem um co-
Tal visão da história, revolucionária, banalizou a violência. A ação nhecimento teórico e empírico da sociedade, um "conhecimento de cam-
total, a revolução, tornou-se cotidiana, permanente e... inquietante, pois po", ao conhecimento especulativo da filosofia. Em sua visão do homem e
sempre oferece mais violência do que a liberdade prometida. Esse projeto da sociedade, a consciência não predomina: o homem não é inteiramente
moderno propunha a produção acelerada de eventos, que se acreditava sujeito e livre e a sociedade não é dominada por uma teleologia. Portanto,
controlar, pois supunha-se que o seu sentido global era conhecido ante- se o homem e a história não são transparentes, a reflexão total não é possível;
cipadamente. O Iluminismo levou a uma revolução permanente do vivi- se esta não é possível, a ação total •— a revolução — não é recomendável. A
do, à subordinação do passado-presente a uma teleologia. Os termos ação possível que as ciências sociais propõem dar-se-ia dentro de margens
novos que conduzem a implantação do futuro no presente são: progresso, estreitas, cautelosas. A ação deve ser empreendida com o apoio de uma pla-
emancipação, inovação, crise, evolução, revolução. O "espaço da experiên- nificação limitada no tempo, de recursos técnicos, de pesquisas localizadas,
cia" — o presente que contém o passado — é abreviado e interrompido de previsões determinadas e quantificadas. O objetivo dessa limitação teó-
para que o horizonte de espera seja então e já espaço da experiência. O rica da ação é o seu controle.
presente perde a possibilidade de ser vivido como presente e escapa para
As ciências sociais produzem uma desaceleração cautelosa contra a
dentro do futuro. A revolução era vista como um evento inocente, pois aceleração revolucionária da modernidade. Para elas, o tempo histórico
sua violência seria legítima, moral, contra a violência pura do Estado e da
não é linear e irrepetível, uniforme, homogéneo e convergente. A história
religião. Koselleck, cujo pensamento estamos seguindo aqui, é um crítico deveria se interessar mais pelo lado repetitivo, cíclico, resistente, inerte, es-
radical da crítica iluminista. Para ele, ela é hipócrita! Ela opõe a razão trutural da vida dos homens. A história não deveria servir ao dever ser utó-
moral à razão política, mas toda crítica moral esconde interesses políticos. pico, pois especulativo, mas aspirar à inteligibilidade empírica da realidade
Resultado dessa dissimulação: o terror, a soberania indiscutível da utopia,
social. A ciência social não é teleológica, valorativa, revolucionária; é es-
a desconsideração e diluição do espaço da experiência.
trutural, objetiva, conceituai. A utopia só faz sentido como raciocínio tí-
Diante da violência que tal visão da história produziu, as ciências pico-ideal, uma articulação de relações exageradamente racionais, uma
sociais vieram elaborar uma visão antiiluminista da história. O projeto abstração, que permite abordar e conhecer a realidade empírica. O obje-
moderno foi posto em reexame por uma reflexão dita pós-moderna. No tivo da ciência social é produzir conhecimento social que oriente uma
século XX, o movimento estruturalista veio suspeitar desse sujeito cons- ação prudente e eficaz, e não convicções sociais ou imperativos morais que
ciente em busca da liberdade. A convicção de que a "Razão governa o orientem e legitimem uma ação global e descontrolada. A inovação em
mundo" foi posta em dúvida. As ideias de "revolução" e "progresso" pas- história — o evento — deve ser estruturada para deixar de ser ameaça-
saram a proporcionar rnais um sentimento de inquietação do que de con- dora. As ciências sociais produzem uma desaleração prudente da história
fiança. Lévi-Strauss não acreditava mais no evolucionismo, no progresso, moderna-iluminista.
no eurocentrismo, na utopia racionalista, e retirou-se para o mundo es-
Eis aí esboçado brevemente o quadro das macroteorias que orien-
tável, sem pressa, das sociedades ditas primitivas — as não-européias, não-
taram a reflexão e a ação históricas do século XVIII ao XX. De um lado,
modernas, não-iluministas. O "bom selvagem" brasileiro, que havia ali-
o projeto moderno, iluminista, que produzia metanarrativas filosóficas
mentado os sonhos utópicos iluministas, agora, e ironicamente, em Lévi-
que ofereciam o conhecimento do sentido global da história e davam a
Strauss, inspira a recusa da aceleração da história.

3 Lévi-Strauss, 1983.
2 Koselleck, 1979 e 1990. 4 Reis, 1994.
72 H ISTÓRIA & TEORIA
l o s É CARLOS REIS 73

todo evento um lugar e significação; de outro, o chamado pós-modernis- A segunda fase pós-moderna seria o pós-estruturalismo: este radi-
mo. Esse pós-modernismo, a meu ver, desdobra-se em duas fases. caliza as teses estruturalistas e salta para fora do Iluminismo e do seu pro-
jeto moderno. O pós-estruturalismo denuncia o estruturalismo como um
A primeira seria a estruturalista, que marcou o ponto de vista das
discurso ainda da Razão. Os pós-estruturalistas não buscam mais verdades
ciências sociais mencionado antes. O estruturalismo é pós-moderno por-
históricas nem aparentes, essenciais, manifestas ou ocultas. Eles recusam
que desconfia do sujeito, da consciência, da Razão; descentra o sujeito e
essências originais e fundamentais, que se deveriam reencontrar e coinci-
a história, evita a utopia, teme a ação sem controle, opõe-se ao conheci-
dir. A fragmentação é levada ao extremo. O universal não é pensável. A
mento especulativo, pois metafísico, vinculado e legitimador de poderes
subjetividade pós-estrutural é antípoda da subjetividade modernista: frag-
ameaçadores; recusa o raciocínio teleológico. O estruturalismo opõe-se,
mentada e descentrada, marcada por diferenças e tensões, contradições,
mas, por outro lado, parece ainda pertencer ao projeto moderno, pois pro-
ambiguidades, pluralidade, nem sonha mais com a unificação. Não há es-
duz ainda um discurso da Razão. Ele quer apreendê-la a contrapelo, onde
sência ou finalidade, significado e direçáo a reencontrar ou realizar. A
os iluministas não a tinham ainda observado. Surgindo contra o raciona-
consciência moderna, a metafísica da subjetividade essencial, construída
lismo modernista, o estruturalismo parece, paradoxalmente, um hiper-ra-
pelo Iluminismo é desconstruída pelo pós-estruturalismo.
cionalismo: quer buscar um sentido que se esconde, decodificar uma di-
A pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, ãesmemoríza
mensão oculta e fundamental da sociedade, abordar um determinismo
o discurso da "Razão que governa o mundo". O conhecimento histórico
inconsciente.. 5
pós-estruturalista aborda um mundo humano parcial, limitado, descentra-
O estruturalismo também visa produzir uma inteligibilidade am- do, em migalhas. Aparece um olhar em migalhas, assistemático, antiestru-
pliada da história. O mundo imediato é visto como ilusório e falso. Sua tural, antiglobal, curioso de fatos e indivíduos. A biografia volta com força
verdade é oculta. Mas, "teoria da suspeita", é ainda um esforço de buscar total, mas diferente da tradicional. A análise pessoal substitui a busca da to-
a verdade histórica, o que o coloca como uma manifestação da ingenui- mada de consciência da verdade estrutural. No conhecimento histórico, não
dade iluminista. Os estruturalismos querem dar conta de tudo o que es- se quer neutralidade, passividade, serenidade e universalidade. A verdade
capa ao homem, para levá-lo à lucidez. Ele seria ainda uma forma de pen- universal se pulverizou em análises pessoais. Não se busca mais o absoluto
samento do absoluto, que leva ao dogmatismo. Contra a metafísica e não se quer mais produzir uma obra de valor universal. O conhecimento
moderna, que pensava um mundo racional e transparente, centrado em histórico é múltiplo e não definitivo: são interpretações de interpretações. A
um homem seguro de seu poder de pensar e senhor de si e da sua história, realidade é produzida por jogos de linguagem — nada a toca de modo subs-
sujeito e consciência, os estruturalismos revelam uma subjetividade frag- tancial. Não há uma palavra viva e essencial que coincida com o ser. O ser
mentada, descontínua, sem unidade e sem sentido e direção. Mas seu ob- é diferença constante, isto é, temporal e inessencial, e aparece em linguagens
jetivo parece ser ultra-racionalista: introduzir na razão o que a racionali- múltiplas. Sem pronunciar o ser, as linguagens múltiplas o constituem tran-
zação anterior deixara de lado como irracional. O estruturalismo é pós- sitório e diferente...
racionalista em sua intenção e hiper-racionalista em sua realização: ele pra-
tica a desconstrução, a deslegitimação, a descontinuação, para apanhar a
Razão em suas frestas e arestas. Diz-se materialista, mas beira o idealismo F. Dosse: da história global à história em migalhas
com o seu esforço surracionalista de sistematização. Marx e Freud seriam
Se é correta a descrição acima do itinerário do pensamento-senti-
ainda iluministas, pois visam uma tomada de consciência do sujeito que
mento do mundo da cultura ocidental do século XVIII ao XX, então a
• busca a verdade e a liberdade.

7 Lyotard, 1979; e Descombes, 1989.


5 Quilliot, 1989.
8 Ferry, 1988; Dosse, 1993; e Descombes, 1989.
6 Ferry, 1988; e Dosse, 1993.
HI.STÓPIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS 75

passagem de um projeto de história global ao de uma história fragmentada postura e infidelidade dos que estão no poder. Dosse quer o poder. Sua
torna-se compreensível e até desejável. E as defesas e resistências a uma e história em migalhas revela sobretudo uma vontade política de ''esmiga-
outra também se tornam compreensíveis, pois se sabe a "que época" per- lhar" uma instituição autoritária, centralizadora, asfixiadora da diferença
tence aquele que defende e aquele que resiste. que não se enquadra (ele, por exemplo!). Para derrotá-la, não se apresenta
O autor que consagrou a expressão histoire en miettes, com a va- como o novo contra o antigo, mas como a origem, a tradição, a fundação,
riação histoire ecLatée, foi François Dosse, quando fez a história da Es- a memória, contra a decadência, o extravio, a descondnuidade, o esque-
cola dos Annales, ao afirmar que da primeira à terceira gerações ter-se- cimento e a traição. Ele procura tornar-se digno do poder ao defender a
ia ido de uma história global ou total a uma história em migalhas ou tradição contra os impostores. Ele, individual e isoladamente, mas total,
fragmentada. Expondo essa transição, seu tom é de denúncia e luto, e de se apresenta como o portador da verdadeira inovação, a inovação da tra-
oposição veemente à terceira geração dos Annales. Ele sustenta que os dicional história global contra a história fragmentada produzida por uma
novos Annales (aliás, não são mais tão novos!) teriam descontinuado o instituição totalitária.
projeto dos fundadores, cometendo uma traição a eles e à tradição glo-
Outra hipótese seria pensar que ele provavelmente aceitasse com-
balizante da história. O projeto de Dosse é duplo: epistemológico — fazer
partilhar o poder com os impostores, se fosse recebido, acolhido, na forta-
uma história da história dos Annales, revelando as diferenças e continui-
leza dos Annales e reconhecido como um de seus pares, como um aclamado
dades da primeira à terceira gerações; e político — esmigalhar, fragmentar
directeur d'étiides. Para isso, faz uma exibição da força do seu talento. Força
a fortaleza dos Annales. Sua tese: uma instituição que destrói a tradição
a porta do forte, pois quer entrar, por bem ou por mal. Ou melhor: quer so-
histórica merece e deve ser destruída. E cita Vilar: "toda história nova pri-
breviver como historiador, na França, de modo relativamente heterodoxo e
vada de uma ambição totalizante é uma história antecipadamente ve-
autónomo, e vê seu projeto ameaçado por um poder institucional. Ao com-
lha". Para Dosse, os historiadores realmente inovadores, mesmo sendo
bater os novos Annales, ele imita Febvre e Bloch, os primeiros Annales, em
dos Annales, são os que ainda defendem e praticam a história global. Para
sua luta heróica contra a história sorbonnarde... Mas está mais para um re-
ele, a história deve continuar sendo a ciência da mudança e da transfor-
formista luterano, digamos assim, que combate o presente não com o fu-
mação da sociedade e não urna respiração natural, regular e imutável. Os
turo, o novo, mas com o retorno à origem, à fundação, à criação de um
historiadores realmente inovadores valorizam ainda o evento e o tornam
mundo.
inteligível em uma lógica explicativa global. Vovelle (1982), por exemplo,
defende a história como a construção de uma "concordância dos tempos Para forçar a porta ou obrigar que lhe desçam a ponte, ele ameaça
discordantes", como articulação da multiplicidade temporal em uma con- recorrer à história e abrir e publicar seus dossiês. Ele faz uma história dos
cordância global. Só assim a história conhece a mudança, reconhece-a es- Annales desmascarando a impostura dos poderosos atuais, que não per-
truturando-a, e orienta a ação que transforma a sociedade. A história de- tenceriam à dinastia de Febvre, Bloch e Braudel e talvez fossem até mesmo
veria retornar ao evento, fonte de inovação, e torná-lo inteligível em uma usurpadores do trono. Para sustentar sua tese, interroga, provocador: o
lógica explicativa global. poder atual representa uma continuidade ou uma descontinuidade em re-
Contra os novos Annales, Dosse acredita estar reeditando os "com- lação aos pioneiros? O que haveria de comum entre a história de um
bates e apologias da história" dos fundadores. Ele opõe aos novos histo- Pierre Nora — um mero organizador de coletâneas (que o tornaram fa-
riadores os próprios fundadores — Febvre, Bloch e Braudel — e se apresenta moso, pois todos vão às livrarias e fichários de bibliotecas procurando pelo
talvez como o verdadeiro herdeiro, o discípulo fiel, denunciando a im- nome do organizador!), um editor de obras diversas e difusas, um empre-
sário do livro, que reduziu a pesquisa histórica a "produto de exportação"
da França, que sobrevive intelectualmente do brilho dos pesquisadores he-
9 Dosse, 1987. terogéneos que reúne em livros bem produzidos e expostos intensamente
10 Ibid.
ao mercado (e que, por isso, vendem), que domina instituições, editoras
l l -S T O R l A <!< TE O R lA JOSÉ CARLOS REIS 77

e intimida pesquisadores com este seu poder empresarial, já que intelec- fase braudeliana. Há uma fragmentação do campo histórico, apesar de
tualmente sua produção é quase irrelevante — e o brilho pessoal e inte- existirem, nos próprios Annales, vozes contrárias, ainda que em minoria.
lectual, e as obras geniais de Febvre, Bloch e Braudel? Para Dosse, há um Dosse parece estar pensando nos marxistas remanescentes: Vilar, Vovelle,
abismo! No entanto, os novos Annales sustentam um discurso oficial que Besançon..., que defendem ainda a história como síntese, como articula-
reivindica a continuidade, uma identidade comum, que é uma reivindi- ção dos diversos níveis de relações, como dialética dos tempos curtos e
cação empresarial, necessária à gestão duradoura do poder institucional longos. Dosse procura nos Annales aliados apoios. E obtém sucesso nessa
herdado. Um poder que, aliás, é mundial! O mundo inteiro importa os estratégia, pois sua obra-libelo repercute enormemente. Ele denuncia alto
prestigiosos livros de história da França, editados e organizados por Nora, e claro: a tendência predominante levou a interdisciplinaridade a limites
e repete aculturadamente as suas receitas e nomes de perfumaria. Mas, de- perigosos, que ameaçam a identidade da história em uma miríade de ob-
nuncia Dosse, "o protestante": esse discurso oficial mascara numerosas in- jetos e especialidades diferentes e sem correlações. Se essa tendência pre-
flexões, rupturas, entre o programa dos anos 1980 e o dos anos 1930. A dominar, a história corre o risco de desaparecer ou de ser marginalizada.
própria história dos Annales não é uma história imóvel, do tipo que eles Os novos Annales renunciaram à vocação sintética da história e pensam
querem fazer e vender, ironiza. Ao contrário, ela sofre o "vendaval dos em termos de cortes disciplinares a partir de práticas e objetos diversos. O
eventos" e se alterou e se adaptou às mudanças da sociedade do século XX. homem é descentrado. A sociedade, fragmentada, não tem centro. A se-
Entre os anos 1930 e os 80, Dosse constata as seguintes continuidades: a rialização refere-se a essa sociedade fragmentada. Os distintos sistemas são
mesma negação do político, a mesma relação interdisciplinar com as ci- inarticuláveis em um todo. O historiador não é mais um maestro que or-
ências sociais, a mesma capacidade de absorver novidades, a mesma refe- ganiza ritmos diversos; tornou-se um especialista em ritmos particulares,
rência à história-problema, a mesma terceira via entre a história tradicio- marginais.
nal historicista e o marxismo dogmático, a mesma reivindicação da resistência
e substituição do marxismo... E lança todos os seus refletores e zooms Por que a história teria caído nessa fragmentação? Por que os An-
sobre a descontinuidade: o homem não é mais o horizonte do historiador, nales cederam a ela? Que força a impôs? Dosse arrisca uma hipótese. Para
a história não é mais análise do passado para a produção da mudança no ele, a história sempre foi ligada aos poderes. Ela tomou essa forma eclatée,
presente, a história não esclarece mais as relações do presente com o pas- en miettes, porque o poder ao qual se associou a impôs. Esse novo poder
sado e o futuro — faz-se uma história imóvel, que serve como evasão do seria a mídia. Além de "fragmentada", a palavra francesa eclatée quer dizer
presente-futuro. E isso porque os novos renunciaram à história global, hu- também "brilhante", "fulgurante" e "barulhenta"... O novo discurso ana-
manista, transformadora, emancipacionista, que os fundadores haviam lista traduziria a predominância espetacular da mídia. Ele se adapta às suas
proposto. normas e apresenta uma história essencialmente cultural. A história faz
Dosse denuncia e se opõe radicalmente a essa descontinuidade, uma descrição teatral da cultura material, onde há loucos, feiticeiras, pros-
defendendo a retomada e a continuidade do projeto inicial. A pesquisa titutas, desviados sexuais, marginais... Os personagens e temas periféricos
globalizante, eis o essencial do programa dos fundadores, que os "novos" predominam sobre os centrais. São relatos de casos curiosos que aumen-
recusaram. Não se tem mais a história, mas histórias... Ao renunciarem à tam as vendas e entretém um público blasé. Os novos Annales produzem
história global, eles estariam traindo os fundadores, que a defenderam e "mercadorias históricas" bem embaladas, eróticas, picantes, envolventes,
praticaram. Os "novos" defendem e praticam a descrição da pluralidade fulgurantes, ilusionistas, como bons filmes, bons romances, bons seriados
dos objetos, dos métodos. Há uma radicalização da fase transitória de plu- e boas reportagens de TV... Nesse movimento, os Annales estariam se
ralização das temporalidades em um mesmo conjunto, que constituiu a opondo à mudança social profunda. Eles apresentam as revoluções como
falsas manobras em continuidades, em evolução linear. Eles eliminam a
força desestruturadora da contradição social. Todas as diferenças podem
Dosse, 1987.
conviver em um mundo estável, desde que acantonadas em sua perspec-
78 H i ^ "l O R l A j o s P. C A R L O S R E I S

tiva e sem nenhuma relação entre si e sem um centro. Eles abafam a ex- adaptar às oscilações históricas. O gesto de Nora mencionado acima é
plosão de um mundo social contraditório. prova disso.
Há, sem dúvida, diferenças entre a primeira, a segunda e a ter-
O ponto de vista de Dosse sobre a história dos Annales poderia tal-
vez ser definido como marxista iluminista. Ele ainda tem uma visão ilu- ceira gerações. Mas não se trata de diferenças especulativas, arbitrárias,
surgidas apenas de pequenas decisões dos comités executivos da revista,
minista da história e do homem; acredita na razão e na história como um
ou da Ecole, ou de editotas. São diferenças que ultrapassam a oposição
processo de emancipação universal do homem. O conhecimento histórico
artificial entre revolucionátios/inovadores e conservadores/impostores.
deveria servir à mudança, oferecendo aos homens uma consciência global
São diferenças que revelam a abertura dos Annales aos ventos da his-
de sua presença no tempo, prometendo-lhes o reconhecimento e o reen-
tória, sua busca de reconhecimento de seus ritmos diferenciados, sem
contro final. É uma posição legítima. E ele atingiu seu objetivo: se não
pretender impor-lhes um sistema. Se aquela descrição do itinerário da
"esmagou a infame", trincou a fortaleza dos Annales, que o recusaram vi-
cultura ocidental é correta, e ela não está assegurada contra rejeições,
vamente, após a instrução do seu processo inquisitória]. (Qual terá sido o
objeções ou revisões, a primeira geração estaria mais próxima da tra-
preço pessoal e profissional pago por Dosse, inicialmente?!) Mas sua de-
dição iluminista; as vertentes braudeliana e labrotissiana da segunda ge-
núncia foi ouvida e recebida em todo o mundo, que passou a ser mais
ração estariam mais próximas da mudança estruturalista; e a terceira
prudente em suas importações de teses históricas francesas. Dosse estaria
geração estaria próxima do pós-estruturalismo, particularmente de
sendo "impatriótico", estaria prejudicando um produto de exportação Foucault. É claro, são relações indiretas e complexas e, não, enquadra-
francês, a história, no mercado mundial? Por um lado, sim, pois sua de- mentos esquemáticos. Febvre e Bloch não são inteiramente iluministas.
núncia foi ouvida no mundo todo, que passou a ser um consumidor mais Eles estão já ligados, sendo até pioneiros da fase estruturalista. Febvre
exigente de teses históricas francesas. Por outro, não, pois sua "obra fran- preferia tratar de sincronias, de estruturas fechadas, de uma história imó-
cesa" reacendeu no mundo o interesse por mais uma polémica entre his- vel, e não de uma história linear, progressiva e emancipacionista, como
toriadores franceses. Os próprios Annales se aproveitaram da denúncia de era a iluminista. H. D. Mann (1971) o definiu até como um Michel
Dosse. Temendo a perda de seu "mercado", e depois do sucesso de Dosse Foucault avant Ia lèttre. Sua estrutura lembra também o Zusammen-
com História do estruturalismo e L'empire du sens, os "novos" já o mencio- hang historicista — coerência, atticulação, interdependência, totalida-
nam em seus seminários! Pode-se ver o próprio Pierre Nora, o mercador de da consciência de uma época. Bloch também não era plenamente
de livros, erguer o livro de Dosse perante uma sala lotada de "represen- iluminista: neodurkheimiano, também já percebia estruturas, o incons-
tantes do universo" e recomendá-lo, acrescentando: — Comprem, é um ciente repetitivo, as durações longas, os limites à ação, e já era critico em
bom produto francês! Mas, é claro, discordo de cada vírgula! relação a teleologias. Ambos procuraram superar dialeticamente o evento,
isto é, negá-lo, integrando-o em uma longa duração. Mas ambos ainda
Contudo, se aquele itinerário introdutório da cultura ocidental é
guardavam da tradição iluminista o otimismo em relação ao futuro, o hu-
sustentável, Dosse é que estaria sendo cego às mudanças históricas do sé-
manismo, e faziam ainda de certa forma uma história do sujeito e da cons-
culo XX e os Annales, sim, estariam atentos e abertos a elas. A força dos
Annales não está, segundo o próprio Dosse, em sua capacidade de adap- ciência. 13
Na segunda geração, Braudel não é plenamente estruturalista.
tação? Ora, a história fragmentada é uma adaptação às mudanças histó-
Mas, quem pode negar suas relações estreitas com o pensamento estrutu-
rico-sociais do século XX pós-estruturalista. Paradoxalmente, Dosse é o
ralista de Lévi-Strauss e da linguística e com o conjunturalismo econo-
conservador! Ele repropõe posições que a própria história do século XX
pôs em xeque. Os Annales, atentos às mudanças e, por isso, descontínuos,
não procuram impor à história uma lógica que lhe seja exterior, que os 12 Noiriel, 1989.
torne indiferentes ou cegos à mudança. Eles procuram reconhecê-las e se 13 Reis, 1994.
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T EO Rl/
r RE!:: 81

mista? Porém, ainda guardava algo da tradição ilurninista e era fiel aos
uma descontinuiclade cognitiva que dispensaria a formulação do pro-
fundadores em seu humanismo, em seu desejo de construção de uma
blema em termos de perdas e ganhos? Enfim, da história global à his-
consciência integrada em uma história global, mesmo reconhecendo a
tória em migalhas, como ficou o conceito de história-ciência dos An-
fragmentação da história em tempos múltiplos. A fragmentação já come-
nales*.
çava a ser reconhecida na fase braudeliana, sob a influência do movimento
Ao adotarem o ponto de vista das ciências sociais, recusando as in-
estruturalista. Mas Braudel ainda lutava por uma história global, por uma
fluências da filosofia e da literatura, os Annales quiseram fazer da história
consciência que integrasse os ritmos temporais diferentes. Febvre, Bloch e
uma ciência social. Ao longo das três fases de sua história, no entanto, as po-
Braudel continuavam desejando constituir uma história global, uma in-
sições dos membros do grupo variaram em relação à definição que faziam
tegração da multiplicidade temporal, que situasse os homens no tempo e
dessa história-ciência social. Por serem heterogéneos, mesmo no interior de
os apoiasse na produção da mudança com direção e sentido.
cada geração, os subgrupos dos Annales foram mais nomológicos (positivis-
A terceira geração talvez possa ser dita pós-estruturalista, também tas), mais estruturais (Marx, Lévi-Strauss), mais teóricos (Weber), ou mais
de forma impura. Sob a influência da antropologia, prefere descrições, interpretativos (hermenêutica). Heterogéneo, cada grupo ou membro iso-
narrativas, indivíduos, biografias, excluídos, periféricos, marginais, sexo, lado dá importância especial a cada um desses modelos. É problemático
bruxaria, mundos históricos micro... Não se busca mais um sentido global falar de um modelo único, do paradigma de uma hipotética Escola dos An-
para a história e considera-se impossível a integração da consciência em nales. Na realidade, há paradigmas — cada subgrupo ou membro isolado
uma totalidade. Os nostálgicos da história global referem-se a ela como opta por um ou outro aspecto dos modelos disponíveis. Além disso, a ex-
uma utopia inalcançável.
plicação-compreensão dos Annales varia segundo a forma de explicação da
Mas, relacionados e abertos às mudanças do pensamento-senti- ciência social com a qual a história fez aliança. Essa dita "escola" parece ser,
mento do mundo da cultura ocidental, os Annales náo estão dominados, desde a primeira geração, uma fragmentação só, uma dispersão e uma di-
aprisionados, nesses estágios: o pós-estruturalismo da terceira geração vergência que dificultam a localização de seu núcleo duro.
ainda traz marcas do estruturalismo e do iluminismo; o estruturalismo de Apesar disso, ao longo da história do grupo, certos conceitos se
Braudel ainda é muito otimista em relação à possibilidade de uma "es- mantiveram mais ou menos constantes no centro da epistemologia da his-
trutura de estruturas", de uma história global; a longa duração Aos Annales tória dos Annales. Os fundadores falavam de compreensão, histótia-proble-
ainda tem a nostalgia do humanismo ilurninista clássico e historicista. ma e história global; a segunda geração mencionou regularidades, quanti-
ficação, séries, técnicas, abordagem estrutural; a terceira geração refere-se a
modelos, invariantes conceptuais, interpretações, descrições. A descontinui-
O conceito de ciência histórica dos Annales dade parece ser completa! Mas o que há de comum é esse espírito: abertura
à história efetiva, às ciências sociais, à experimentação; recusa de sistemas, da
Da primeira à terceira gerações dos Annales, portanto, o modo dogmatizaçáo; utilização de todas as estratégias de conhecimento permitidas
de conceber e fazer história de fato mudou. E Dosse tem razão quanto pelo objeto... As três gerações utilizaram essas estratégias de conhecimento
a isso. Mas, se mudou tanto, uma questão se impõe: qual seria o con- mencionadas; o que variou foi a importância, o peso de um grupo de es-
ceito de "ciência histórica" dos Annales'. Nessas mudanças, em que ele se tratégias em cada época. A ponte entre as gerações é feita por duas posições
manteve e em que se alterou? Passar de uma história global a uma his- fundamentais e permanentes: a adoção do ponto de vista temporal das ciên-
tória em migalhas é mudar completamente o horizonte "científico" da ciais sociais — a estruturação do evento — e a prática da interdisciplina-
história. Qual seria então o estatuto do conhecimento histórico para os ridade.
Annalesí Naquela transição, teria ocorrido um aumento de controlabi-
lidade do real ou teria havido uma perda do seu domínio, ou somente 14 Reis, 1996a e 1996b.
82 H I S T Ó R I A st T E O K I JOSÉ CARLOS REIS

Na primeira fase, Febvre concebeu a história como um "estudo ci- explicativa e preditiva, exata, formalizada e informatizada. Os anos 1970
entificamente conduzido" e não como uma ciência, e a queria como rea- e 80 mostraram como era infundada essa ambição científica, e a terceira
bertura constante do passado. Com a crise das ciências naturais no início geração parece ter definitivamente esquecido essa pretensão. O que sus-
do século XX, a ideia de ciência tinha se tornado mais flexível e, portanto, tentava a euforia cientificista da segunda geração era a quantificação.
compatível com a história. Ao rigorosamente mensurável se substituía o A terceira geração reconhecia os limites dessa história serial. Se-
provável, a relatividade da medida. Para Bloch, as ciências humanas não gundo W. Kula (1960), haveria mesmo uma contradição entre história se-
tinham mais necessidade de renunciar à sua originalidade ou terem ver- rial e longa duração, pois, quanto mais uma série se estende no tempo e
gonha dela. Constatava-se que numerosos fatos escapavam à matemática, no espaço, menos eta tende a ser homogénea. Na perda da homogenei-
à medida. Para apreendê-los, afirma Bloch, era preciso uma grande finesse dade é-se confrontado com a impossibilidade da comparação, da exatidáo,
de linguagem, a justa cor no tempo verbal. Como empreendimento racio- o que compromete o projeto de uma história científica. A terceira geração
nal, a história era jovem, mas prometia. reviu a própria noção de série. Ela se interroga sobre a validade dos cortes
Ambos definiam a história como a "ciência dos homens no implicados no tratamento serial do material histórico; recusa sobretudo a
tempo, a ciência da mudança perpétua das sociedades humanas". Para história serial de fatos de mentalidade e das representações intelectuais. A
eles, o objetivo dos estudos históricos era a "compreensão da vida pas- história serial, nesse domínio, seria redutora e reifícante. A série foi subs-
sada". Entretanto, entre eles começava já a aparecer a complexidade do tituída pelo "evento". O renegado evento voltou como entrada para a es-
paradigma dos Annales. Febvre era mais intuitivo, mais compreensivo, trutura social. A ida às estruturas mais profundas, que continuava sendo
talvez na perspectiva de Dilthey; Bloch era mais explicativo que com- o objetivo principal dos Annales, não seria feita exclusivamente pela cons-
preensivo, mais durkheimiano, mais racional e empirista. 15 Para Bloch, trução de séries e suas articulações, mas a partir de um evento, uma vida,
o indíviduo só pode ser compreendido na sua estrutura social, que é cons- uma prática. A quantificação serial não foi abandonada, mas perdeu-se a
truída racionalmente, observável empiricamente e "explicável causalmen- ilusão cientificista que a sustentava. Para Duby, a quantificação, pela ilu-
te". O objeto do historiador são os homens, suas significações, intenções são de cientificidade e de resultados tão precisos quanto o das ciências na-
e ações, que devem ser compreendidas, mas em seus grupos, em seus modos turais, paralisava a dúvida, o espírito crítico, e constituía uma cortina de
concretos e repetitivos de comportamento, nas normas sociais. Febvre dá fumaça, um álibi para a mediocridade. Na realidade, argumenta, o com-
mais ênfase ao grande indivíduo e à consciência, mas sem separá-la de suas putador é comandado por um programa, que é uma construção a partir de
condições globais (Zusa.mmenha.ng). Ele é mais hermenêutico, subjetivista, problemas. Parte do material histórico deve ser tratada quantitativamente,
mais culturalista e menos economicista. mas a interpretação retoma o seu lugar.
Na segunda fase, coabitam duas tendências de explicação-compre- Enfim, a terceira geração não acreditava mais na história cien-
ensão, vindas dos fundadores. A "história global" de Braudel e a "história tífica que os fundadores ambicionavam, que pretendia ser sobretudo
serial quantitativa" dos historiadores económicos e demográficos, mais uma história global, e que a segunda geração pensava ter atingido. Para
próxima da história-problema. A segunda geração, estrutural e conjuntu- Furet, a história conceituai é superior, do ponto de vista do conheci-
ral quantitativista, viveu um momento de otimismo científico. Segundo mento, à história narrativa, mas não se torna uma história científica.
Noiriel, nos anos 1950, o programa durkheimiano, que tinha sido ado- Para ele, "a história oscilará sempre entre a arte da narrativa, a inteli-
tado em parte pelos fundadores, foi radicalmente incorporado por La- gência do conceito e o rigor das provas; mas, se as provas são bem as-
brousse e Braudel. A ambição científica levou a se pensar em uma história seguradas e seus conceitos bem explicitados, o conhecimento ganha e

15 Burguière, 1983.
17 Noiriel, 1989.
' Noiriel, 1989; Mann, 1971; e Burguière, 1983. 18 Duby & Lardreau, 1980.
84 HISTÓRIA f, T i-, o R i A
r 85

a arte da narrativa não perde nada". 19 Em um dos editoriais de 1989 da A história global
revista dos Annales, sustenta-se que
O conceito de história global é confuso, impreciso. Se a histó-
a história é ciência somente na medida em que, como todo discurso ci- ria-ciência fosse globalizante, já estaria comprometida, pois esse con-
entífico, ela produz modelos de inteligibilidade, comentários. Mas, o ceito é um vago impreciso. Para Stoianovitch, sua proposição foi o re-
saber histórico não progride por totalização... Para usar uma metáfora
sultado de três tendências diferentes nos anos 1930: a substituição,
fotográfica, ele "progride" pelo deslocamento da objetiva e pela variação
tanto em física quanto em biologia, do ponto de vista finalista pelo da
do foco... a cada nível de leitura, a trama do real aparece diferentemente.
A exploração da diversidade do real não pode passar pela redução do nú- totalidade; a tese marxista de um homem total e da sociedade total, se-
mero de ligações causais ou pela busca de um hipotético princípio racio- gundo a qual a sociedade inteira está presente em cada indivíduo e cada
nal único. À simplificação, os modelos históricos devem preferir a com- indivíduo está presente integralmente em sua sociedade; a antropologia
plexificação... de M. Mauss e sua concepção do fato social total, um fato que está pre-
sente em todas as manifestações de uma sociedade e a centraliza, re-
Percebe-se, portanto, no próprio conceito de ciência histórica dos velando-a. Seguindo fielmente os fundadores, Braudel quis produzir
Annales essa passagem da história global à história em migalhas. A primeira uma tal história global. Ele concebeu a totalidade de uma civilização como
expressava a ambição científica da história e um otimismo quanto a essa definida pela articulação de seus três níveis de duração, à jusante e à mon-
possibilidade; a segunda revela, senão o abandono dessa ambição, o reco- tante, do evento à estrutura e desta ao evento, cuja análise, descrição e ar-
nhecimento das dificuldades quase insuperáveis desse projeto. A terceira ge- ticulação dariam o quadro global dessa civilização. Braudel pretendeu
ração prefere abordar o real histórico em sua multiplicidade não-totalizável, construir um "sistema de sistemas", uma estrutura suprema — o que es-
como faces de um poliedro de mil faces, como variações de imagens de ho- tava acima de suas possibilidades; e ninguém quis acompanhá-lo, exceto,
lograma. Não há articulação global, não há interpretação de todos os fatos, e com menos sucesso, Lê Roy Ladurie e Chaunu, que tentaram igual-
não há homogeneidade e transição dos níveis, não há síntese total pensável, mente uma história global.
não há historiador, sujeito histórico, capaz de um olhar absoluto.
"História global ou total", enfim, quer dizer precisamente o quê?
Isso representaria um avanço ou um recuo, uma decadência ou Para Hexter, não se sabe com certeza o que os Annales queriam dizer com
um progresso, uma queda ou um salto, um ganho ou uma perda? Ou esse conceito. Nos anos 1960, M. Foucault procurou defini-lo para se
constituía simplesmente uma ruptura, uma descontinuidade incompará- opor a ele. Segundo Foucault, o projeto de uma história global é o da res-
vel, uma mutação inqualificável? Para Dosse, já vimos, era um recuo, uma tituição do conjunto de uma civilização, do princípio de uma sociedade, da
traição, uma decadência, uma queda, uma perda irreparável. Mas, se significação comum a todos os fenómenos de um período, da lei que dá
aquele itinerário da cultura ocidental lá em cima é sustentável, essa mu- conta de suas coesões, do "rosto de uma época". Tal projeto pressupõe três
dança não seria compreensível e até desejável? Ou se não desejável, pelo hipóteses: a) entre todos os fenómenos de uma esfera espaço-temporal,
menos compreensível? pode-se estabelecer um sistema de relações homogéneas; b) uma única
Apesar de já termos utilizado uma certa compreensão dos concei- forma de historicidade liga as estruturas económicas, as estabilidades sociais,
tos de história global e história em migalhas, antes de fazer esse balanço, a inércia das mentalidades, os hábitos técnicos, os comportamentos políticos
convém definir melhor esses termos: o que os Annales queriam dizer com e os submete ao mesmo tipo de transformações; e c) a história pode ser ar-
história global ou total e o que se quer dizer com história em migalhas ou
fragmentada?
20 Stoianovitch, 1976.
21 Reis, 1996b.
19 Furet, 1982. It's not easy to be sure what the Annales means by histoire totale (Hexter, 1972).
86 T EO R[
JOSÉ CARLOS REIS

ticulada em grandes unidades — estágios ou fases —, que possuem nelas a história total ou global nesse primeiro sentido: "não podendo tudo di-
mesmas seu princípio de coesão. E se fosse possível, seria uma história ainda zer, o historiador decidiu nada se interditar".
filosófica e não científica! Para Hexter, sob o signo da continuidade, uma Foi essa interpretação da história global que teria levado os últi-
história global, marcada pela abundância de dados, de informações, de bi- mos Annales à dispersão da pesquisa em monografias com resultados pa-
bliografia, de temas inumeráveis e, sobretudo, de páginas — entre 800 e ralelos, que não se acrescentam reciprocamente. O campo do historiador
1.200! — jamais atingiu a articulação do real que pretendia. Era mais uma se fragmentou e Dosse fala de uma história eclatée. No entanto, a história
reunião colossal de dados e informações, uma superposição de temas incon- de tudo não seria incompatível com a história-problema. Ela não seria
táveis do que uma integração do real. Uma cacofonia e não uma sinfonia, propriamente uma fragmentação, mas um debate entre historiadores di-
um pontilhismo dispersivo e não um paisagismo figurativo. ferentes e divergentes, sobre bases intelectuais e objetivas sólidas. Não é
necessário que dois historiadores que abordem um mesmo assunto che-
Tentemos explorar essa ideia de história global, que parece ser
guem a resultados comuns — é indispensável que o diálogo objetivo, ra-
mais uma expressão do que um conceito. A expressão teria, a meu ver,
cional e documentado possa se dar entre os dois, de tal forma que ambos
dois sentidos: "história de tudo" e "história do todo". No primeiro sen-
compreendam onde se separam, por que se separam e como chegaram a
tido, seria a consideração de que tudo é história, não havendo mais regiões
resultados diferentes. Se há resultados diferentes é porque houve proble-
interditadas ao historiador; no segundo, seria a ambição de apreender o
matização diferente, hipóteses diferentes, uso diferente da documentação,
todo de uma época, seria uma abordagem holística de uma sociedade, o mesmo que tenha sido a mesma. Entretanto, se essa diferença pode ser co-
que levaria, talvez, a uma contradição com a história-problema. A história municada, se é racional, torna-se conhecimento. Weber já havia demons-
total pode ser compreendida como "tudo" ou "todo" e os textos dos fun- trado na Ética protestante... e em seus ensaios teóricos que o conhecimento
dadores podem sustentar as duas interpretações. é sempre parcial, fruto de uma tematização de relações específicas. O tra-
O primeiro sentido — história de tudo —, que significa simples- balho da história total, nesse sentido, seria a análise de um passado ines-
mente o alargamento do campo histórico e é compatível com a história- gotável constituído de relações inumeráveis, todas elas tematizáveis.
problema, tornou-se o centro das propostas dos Annales. Todas as relações A segunda interpretação da história total — conhecimento do
sociais e humanas tornam-se tematizáveis no passado. O que se faz é re- todo — pode ser verificada também nos textos fundadores. Nessa pers-
cusar não só a distinção entre um passado estritamente histórico e um pas- pectiva, os Annales ainda se manteriam no quadro da história tradicional
sado que não seria histórico, como também a consideração de que todo filosófica. Querer conhecer uma época como uma totalidade, sugere Fou-
passado tem dignidade historiográfica e é tematizável pela pesquisa histó- cault, é presumir sua continuidade, sua estruturação em torno de um
rica. Nessa acepção, história total significa que a história se edifica sem ex- princípio unificador. A síntese substitui a análise. A história global, en-
clusão. A história política não seria mais a dimensão privilegiada, nem a tendida assim, pode estar contaminada pelos pressupostos tradicionais, os
econômico-social, devendo a história tratar de todas as dimensões do so- de uma coerência, de uma continuidade que levaria ao seu uso ideológico.
cial e do humano: o económico, o social, o cultural, o religioso, o técnico, Aqui, visa-se uma correlação entre todas as instâncias da sociedade, que
o imaginário, o artístico, o erótico, o familiar, o simbólico... Os Annales, expressariam um fato total, no sentido de Mareei Mauss: as partes que ex-
ao recusar a história política e ao desenfatizar outras áreas, falharam na re- pressam a unidade do todo. O historiador deveria procurar nas partes a
alização desse seu projeto totalizador. J. Revel (1979) parece compreender presença do todo, desse fato global que liga todas as partes em uma to-
talidade. Essa história global corresponde ao esforço de Febvre de apre-
ensão do Zusammenhang e revela a influência sobre ele de Dilthey e Mi-
2Í Foucault, 1969.
chelet. Mais tarde, F. Braudel procuraria pôr em prática uma tal ideia de
24 Hexter, 1972.
25 Reis, 1996b. história total e também fazer-lhe a teoria. Criaria a ideia dos três tempos
88 H isTOní T r; o R i JOSÉ CARLOS REIS 89

que se referem uns aos outros e que constituiriam um conjunto total na ceira geração, inspirando-se na análise de Foucauk, continuaria a falar de
articulação de seus níveis. Para J. Hexter (1972), a história global assim uma história geral, citando-o repetidamente: "elaboração de séries e limi-
concebida entra em contradição com a história-problema, seria mesmo tes, desníveis, defasagens, especificidades cronológicas e sua articulação
uma aspiração que a excluiria. em série de séries, em quadros seriais que religariam, hierarquizando, sé-
No sentido de história de tudo, a história global tornou-se uma pró- ries particulares". A pesquisa da descontinuidade se impõe sobre a pes-
blematização exacerbada do passado-presente, fragmentando-o em objetes quisa da continuidade. Porém, mesmo essa história geral, que seria a cons-
múltiplos, em temporalidades múltiplas, e a disciplina histórica em especia- trução de uma continuidade parcial, não pôde ser atingida. A história
lidades múltiplas. Mas não é um caos sem qualquer possibilidade de orde- multiplicou suas curiosidades, tudo tornou-se histórico e nada se ligava a
nação e comunicação, pois não seria incompatível com a história-problema. nada. Resultado: a fragmentação e a especialização extrema na delimitação
Ela só não atinge o núcleo central, o sentido ou articulação total de uma e elaboração do objeto de análise. A história pretendeu ocupar um lugar
época ou sociedade. A terceira geração manteve o projeto da história de central entre as ciências sociais, acreditando poder dar uma visão unifi-
tudo, mas rompeu com a ambição de uma história do todo. Esta foi recu- cadora, total, da sociedade. Mas... Pós-Braudel, os Annales não acreditam
sada como fora do alcance de qualquer historiador, mesmo o mais brilhante. mais na construção de uma harmoniosa sinfonia dos ritmos históricos
F. Furet (1982) diz que tal tentativa de apreensão total do homem, múltiplos que constituiria uma história global-todo. Os tempos históricos
aparecem independentes, desarticulados, desafinados uns em relação aos
embora não seja mais a ideia do séc. XIX de apreender o desenvolvi- outros. Lê GofF considera que, mesmo tendo constatado a impossibilidade
mento... [é] um saber total que abarcaria todas as manifestações signi-
de uma história global, a terceira geração desejava ainda produzir um co-
ficativas do homem em sociedade e que compreenderia a evolução como
nhecimento que não mutilasse a vida das sociedades. Essa história global
figuras impostas a uma história da humanidade. Ela traduz simplesmen-
te a ambição de ter, sobre um objeto ou sobre um problema dado, uma que os fundadores pretendiam, Foucault alertou os novos Annales sobre
perspectiva mais completa, uma descrição mais exaustiva, uma explica- seu caráter ideológico de busca da consciência de sua continuidade, de sua
ção mais global que as ciências sociais das quais ela utiliza conceitos e origem e fim, quando a realidade histórica é feita de descontinuidades e de
métodos (...). inconsciência, de começos sem direção dada.
Abandonada a história global, abandonada a história geral, a his-
Mesmo com ambições mais modestas, a história total enquanto co- tória se fragmentou. A terceira geração descontinua, trai os fundadores,
nhecimento do todo revelou-se uma impossibilidade. Uma história "global- como quer Dosse? Os mais decepcionados falam da fragmentação, do es-
todo" seria talvez a reflexão total do tempo da consciência. Considerá-la ir- migalhamento da história, querendo dizer com isso o fracasso do projeto
realizável é admitir, no interior do tempo da consciência, tempos inconsci- dos Annales. A terceira geração não soube dar continuidade à obra dos
entes múltiplos e desarticulados, que se pode conhecer em sua particulari- fundadores. A história tornou-se um conhecimento em migalhas de um
dade, mas que dificilmente se poderia articular em um todo refletido. A objeto fragmentado; pesquisas particulares que não convergem jamais.
grande consciência, o conhecimento integrado, o tempo da consciência plena Um subsaber sem interesse.
e total, se permanece um desejo, é, admite-se, inalcançável. Mas há os que defendem os novos Annales, recuperando a pro-
posta da história-global-tudo-como-história-problema. O centro do pro-
jeto original dos Annales, para estes, não teria sido a história total, mas a
A história em migalhas (en miettes ou eclatée) história-global-tudo-como-história-problema. Nesse sentido, a terceira ge-
ração teria não só realizado como radicalizado o projeto inicial, pois, hoje,
O sonho de totalização ainda existe, mas constatou-se que ela é
impraticável. O projeto de uma história global-todo foi abandonado, pas-
sando-se primeiro à ambição de uma história geral. Nos anos 1970, a ter- 26 Lê GofF, 1978.
90 C AR L O S REIS 91
HISTORIA TEORIA a

passou a problematizar e a estudar "tudo" e não mais o "todo". E se cada vês de uma síntese global. É provável que esse ponto de vista, volte a ser
pesquisa é conduzida racionalmente, com problemas e hipóteses, elas se predominante, mas, em meados do século XX, ele estava descentrado.
enriquecem mesmo na divergência dos resultados, pois cada pesquisador Febvre, Bloch e Braudel, embora tenham defendido uma história global,
tem condições de saber o que o outro pesquisador quer realizar, o que ele não foram claros na sua definição e de fato não a praticaram.
pode realizar e por que não realizou o que pretendia ou o que tem de fazer Na verdade, parece-me que não houve nessa recusa da história glo-
para atingir seu objetivo; sobretudo o que cada um pode extrair dos re- bal uma rejeição da racionalidade histórica, mas, pelo contrário, uma ra-
sultados dessa pesquisa particular para a sua própria pesquisa. Flandrin dicalização da racionalidade nova, introduzida pelo ponto de vista das ci-
afirma, a favor da história-problema: ências sociais. Segundo esta, o todo é inacessível e só se pode abordar a
realidade social por partes, conceitualmente, e sem juízos de valor, isto é,
Quando empreendi pesquisas sobre a história do comportamento sexual, sem referência a um dever ser, que introduziria a perspectiva de um futuro
depois sobre o comportamento alimentar, nem em uma e nem em outra no presente-passado. Nesse sentido, a nouvelle histoire, continuando a tra-
ocasião pretendi fazer uma história mais completa, mais total... eu sim- dição dos fundadores, realiza e não se distancia desse ponto de vista das ci-
plesmente quis abordar como historiador problemas que me interessa- ências sociais: ela não explica mais a realidade global, somente tematiza-
vam como homem.
descreve-analisa partes dela, utilizando a tecnologia mais sofisticada e o
texto conceitual-narrativo mais rigoroso.
Assim, os fundadores falaram de história global e de história-pro-
Afastando-se, não sem pesar, da ambição de uma história total, "a
blema; a segunda geração procurou realizar os dois projetos, pela geo-his-
história serial constrói cortes, limites, defasagens, especificidades, descon-
tória braudeliana e pela história quantitativa dos historiadores demógraíbs e
tinuidades". Ela pretende articular essas séries divergentes em uma história
economistas; a terceira recusa a história global, no sentido holístico, e só
geral, isto é, em totalidades parciais, séries de séries, quadros de quadros,
atinge, em uma perspectiva mais pessimista, uma fragmentação extrema da
como sugeriu Foucault. Mas só consegue realizar de fato histórias que não
história e o rompimento com a tradição dos Annales, e, em urna perspectiva
se articulam nem por justaposição. Mesmo a pretensão mais modesta de
otimista, a radicalização do projeto da história-problema, que pode também
uma história geral continua sendo muito ambiciosa. O que não quer dizer
ser o da história global-tudo e que teria mantido o que havia de melhor da
que essa articulação entte as séries nunca se dê. Pode se dar, mas sempre
tradição. A história em migalhas não seria então o fracasso do projeto, mas
de forma imperfeita. Os historiadores seriais fazem pesquisas dispersas,
seu amadurecimento! Ela é escrita no plural: há histórias de... As "estruturas
com pouca possibilidade de convergência dos resultados. Quando se cons-
mentais", que se tornam o interesse central da pesquisa histórica, são plu-
tata essa não-convergência, o que se lamenta é a impossibilidade de algu-
rais, múltiplas, heterogéneas, dispersas. O historiador pode tematizar tudo
sob qualquer perspectiva. ma consciência integrada desses ritmos dispersos, que revelaria um sentido
para a história e orientaria a ação transformadora. O tempo divergente da
Como avaliar esse desdobramento? Seria, como quer Dosse, uma inconsciência, sem sentido e sem condições de estabelecer valores que ori-
infidelidade aos fundadores? Ou, como história de tudo, essa fragmenta- entem a ação, impõe-se sobre o tempo convergente, integrador e engajado
ção seria a expressão máxima e superior da história-global-tudo-como-his- da consciência.
tória-problema e a realização suprema do projeto inicial? Dosse considera
a recusa da história "global-todo" uma recusa da racionalidade da história.
Sua crítica aos Annales, na verdade, parece se apoiar em uma posição pré-
século XX, quando ainda se exige a busca do conhecimento do todo atra-
O que se ganha e o que se perde?
As características dessa transição podem ser vistas ou como uma
27 Flandrin, 1987; e Duby & Lardreau, 1980. perda ou como um ganho, dependendo de quem avalia. Ou a transição
HISTORIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS 93

pode ser vista apenas como uma descontinuidade, uma mutação que dis- mente, localizadamente; para os que não se referem a um sujeito, a
pensaria avaliações, qualificações, do tipo decadência ou progresso. Saiu- uma consciência, a um centro, mas percebem sujeitos "ex-cêntricos",
se de um quadro de conhecimento para outro sem que houvesse uma fragmentados entre esferas diversas, o que permite uma vida heterogé-
linha necessária de evolução. Saiu-se de um para outro sem desenvolvi- nea e livre de pressões macro;
mento e transição, mas por ruptura. Vamos enumerar algumas caracte-
rísticas dessa cransição ou ruptura e considerar brevemente alguns prós e passagem da explicação!conceito à descriçãolconstataçãolrelaúvismo: houve
contras: perda para os que crêem que a história-ciência seria aquela capaz de pro-
duzir explicações causais e se referir a um mundo social global; houve
Y passagem da síntese à especialização: houve perda para os que conside- ganho para os que desconfiam de uma ciência globalizante, que seria uma
ram a história como guia da ação, como apoio na mudança, como for- contradição, pois o discurso científico se autocontrola evitando a abor-
muladora do sentido e do fim, como consciência integrada do passado- dagem total e delimitando, limitando, assumindo um relativismo mo-
presente-futuro, como discurso do dever ser; houve ganho para os que derado, o que só é possível na fragmentação e na especialização;
consideram impossível compãtibilizar olhar global com estudo cienti-
ficamente conduzido; para os que defendem a história-problema, que só passagem da estrutura ao indivíduo, .do social objetivo ao individual sub-
pode controlar o seu objeto se o delimita ao máximo; para os que con- jetivo: houve perda para os que querem integrar o individual-evento ao
sideram que só se pode formular um problema controlável e uma hi- estrutural, superando-o e enquadrando-o, explicando-o; integrado, o
pótese sustentável e elaborar uma documentação diversa e suficiente se indivíduo pode ser controlado e deixa de produzir eventos desestrutu-
houver uma especialização por parte do historiador, pois não se pode radores, é menos ameaçador; houve ganho para os que se cansaram das
conhecer cientificamente o todo, só a parte; abstrações estruturais, desencarnadas e irreais; para os que consideram
como "reais" indivíduos concretos e singulares; para os que valorizam
r passagem do todo (holismo) ao tudo (micro): houve perda para quem man- o subjetivo e o tendencioso, por serem manifestações do indivíduo, e
tém ainda posições metafísicas, especulativas; para os que acreditam na não têm mais a pretensão do claro e do distinto universal;
possibilidade de uma observação macro da história, que estabelece todas
as relações e correlações entre as partes e esferas sociais, permitindo uma passagem do material ao imaginário, ao simbólico: houve perda para os
ação global que promova a mudança profunda e global; houve ganho que vêem o real nos interesses materiais de classes e grupos, em suas re-
para os que recusam a metafísica, a história filosófica tradicional, e só lações concretas com a natureza e entre si; houve ganho para os que va-
acreditam na possibilidade de uma observação eficaz de qualquer objeto lorizam o mundo psicológico, íntimo, dos indivíduos e coletividades,
em escala micro; para os que consideram o olhar global totalitário e amea- que valorizam crenças e superstições, medos-e fantasias, sonhos e pe-
çador das liberdades individuais; para os que crêem que a intervenção na sadelos...
sociedade deva ser localizada e pontual, sem pretensões de mudanças re-
volucionárias globais; passagem do racional ao irracional: houve perda, irreparável na comuni-
cação entre os indivíduos e sociedades. Não há mais comunicação, pois
T passagem do homogéneo (mudança) ao heterogéneo (conservação): houve não há mais sentido, finalidade, centro, consciência que ofereça estabi-
perda para os que conectam todas as esferas sociais a um centro, que lidade à linguagem. Ninguém sabe bem do que o outro está falando,
homògeneiza a vida social e permite vê-la de forma total e mudá-la de pois mergulhado em universos simbólicos particulares e íntimos; perdeu-
forma total; para os que crêem que as diversas esferas histórico-sociais se a intersubjetividade, o controle do sentido das palavras e mensagens;
são conectadas e homogéneas e podem ser alteradas simultaneamente; houve ganho para os que acreditam que a intersubjetividade sempre foi
houve ganho para os que preferem mudar lentamente, desacelerada- equívoca e admitem que a linguagem é um jogo, que o sentido é cons-
f i o.s js REIS 95

fruído segundo estratégias de forças e os impulsos do presente; quebrou- Bibliografia


se um sistema, uma armadura, que congelava os espíritos e corações...
BURGUIÈRE, A. La notion de "mentalités" chez M. Bloch e L. Febvre: deux con-
r passagem da. revolução ao imobilismo: houve perda para militantes e revo- ceptions, deux filiations. Révue de Synthhe. Paris, CIS/CNRS (11 1/112), juil./déc.
lucionários, que precisam de uma visão global para orientar a sua ação; 1983.
a falta desta leva as sociedades à inércia, à falta de iniciativa histórica; CARDOSO, C. Paradigmas rivais. In: CARDOSO, C. & VAINFAS, R. (orgs.). Do-
houve ganho para os que não sonham mais com utopias racionais, com mínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
sociedades perfeitas, pois todas as tentativas só revelaram uma vontade DESCOMBES, V. Philosophie par gros temps. Paris: Minuit, 1989.
de potência totalitária; não seria "imobilismo", mas perda da ingenui-
DOSSE, F. História do estruturalismo. São Paulo: Ensaio; Campinas: Unicamp, 1993.
dade em relação à mudança conduzida por forças não-confiáveis, pois há
distância entre a intenção, o discurso e a ação; . Uhistoire en miettes — dês Annales h Ia "nouvelle histoire". Paris: La Découverte,
1987.
Y passagem da memória à desmemoria: houve perda para aqueles que viam DUBY, G. & LARDREAU, G. Dialogues. Paris: Flammarion, 1980.
a história como memória dos grupos sociais dominantes, como cons-
FERRY, J-L. O pensamento 68. São Paulo: Ensaio, 1988.
ciência de si de sujeitos históricos que querem se manter idênticos, es-
táveis e exemplares, através de monumentos que expressem e comuni- FLANDRIN, J-L. De l'histoire-problème à 1'approche historique dês problèmes. In:
quem à posteridade a sua existência grandiosa e inesquecível; a história GADOFFRE, G. (dir.). Certitudes et imertitudes de 1'histoire. Paris: PUF, 1987.
garantia a continuidade desses poderes e lhes servia de seguro contra a FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microflsica do poder. Rio
mudança e a dispersão; houve ganho para os que vêem nessa memória de Janeiro: Graal, 1984.
e continuidade a expressão e a realização de uma vontade de potência . L'archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
que, dominando no presente, quer controlar o passado e o futuro;
FURET, F. L 'atelier de l'histoire. Paris: Flammarion, 1982.
T passagem da história-ciência social à história-literatura: houve perda por- HEXTER, J. F. Braudel and the "monde braudeiien..." Journal of Modern History.
que, ao perder a dimensão global, a história não atinge mais um conhe- Chicago, University of Chicago Press (4), Dec. 1972.
cimento objetivo, imparcial t científico; nem a interdisciplinaridade é KOSELLECK, R. Lê faturpasse... Paris: EHESS, 1990.
mais possível, pois a troca de serviços se tornou inviável pela fragmen-
. Lê régne de Ia critique. [1959] Paris: Minuit, 1979.
tação dos discursos. Não havendo mais controle da linguagem, não há
mais controle da prova; não há mais produção de sentido; houve ganho KULA, W. Histoire et economie: Ia longue durée. Annales ESC. Paris, A. Colin (2),
porque o conhecimento histórico pode se tornar mais flexível, mais qua- mars/avr. 1960.
litativo, mais poético, mais pessoal, mais imaginativo, mais livre. Liber- LÊ GOFF, J. (dir.). La nouvelle histoire. Bruxelles: Complexe, 1978.
tou-se do rigor da ciência, que na verdade era um falso rigor; o conhe- LÉVI-STRAUSS, Claude. Histoire et ethnologie. Annales ESC. Paris, A. Colin (6),
cimento histórico sempre foi puro vigor, vontade, querer, subjetividade, nov./déc. 1983.
congelados em esquemas científicos estéreis;
LYOTARD, J-F. La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979.
T passagem de uma identidade epistemológica da história à não-identidade: MANN, H. D. L. Febvre, Ia pensée vivante d'un historien. Paris: A. Colin, 1971.
houve perda porque a história como ciência social era reconhecível, (Cahiers dês Annales, 31.)
identificável, era um conhecimento interdisciplinar e global dos ho- NOIRIEL, G. Pour une approche subjetiviste du social. Annales ESC. Paris, A. Colin
mens no tempo; houve ganho porque a história se livrou de uma falsa (6), nov./déc. 1989.
identidade e se assumiu como pura temporalidade, historicidade, sub- QUILLIOT, R. Un nouvel age de Ia culture. Lê Débat. Paris, Gallimard (54), mars/
jetividade, relatividade. avr. 1989.
H I s l ó R l A £*: T [- o R i

REIS, J. C. A história, entre a fiiosofin e ã ciência. São Paulo: Ática, 1996a. CAPÍTULO 3
. Annales, a renovação da história. Ouro Preto: Edufop, 199ób.
. Nouvelle histoire e tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudei
São Paulo: Ática, 1994.

REVEL, J. Lês paradigmas dês Annales. Annales ESC. Paris, A. Colin (6), nov./déc. A especificidade lógica da história
1979.
STOIANOVITCH, T. The French historicalmethod—the Annalesparadigm. Ithaca,
London: Cornell University Press, 1976.
VOVELLE, M. Ideologies et mentalités. Paris: Maspero, 1982.

O conhecimento histórico como problema

A história é um conhecimento possível? Pode-se fazer afirmações


com significado lógico sobre o passado? Pode-se fazer uma descrição ob-
jetiva do passado, referindo-se de fato a ele? Se isso for possível, quais os
limites dessa possibilidade? O que faz efetivamente o historiador? Qual o
seu real interesse, a sua sensibilidade profunda? Qual a relevância intelec-
tual de uma pesquisa histórica? Enfim, qual seria a identidade epistemo-
lógica da história?
Essas questões de epistemologia, que põem em dúvida a possibi-
lidade do conhecimento histórico, apesar de irritantes e insolúveis, o his-
toriador não pode deixar de se pôr e repor. Ao reformulá-las, não me in-
teressa aqui lançar a história em crise, pois, a meu ver, é indubitável a
legitimidade do trabalho histórico. Minha reflexão retorna a elas sem bus-
car respostas definitivas, pois não há consenso, sobretudo para consolidar
e fortalecer o trabalho do historiador. A enorme relevância dessa reflexão
é demonstrada pela bibliografia vasta e riquíssima sobre tais questões. Essa
bibliografia leva a múltiplas direções, revelando a época, as instituições e
a personalidade dos autores que as discutiram. Mas pensar não se restringe
a encontrar respostas. O pensamento fecundo adia a dissolução de seus
problemas, a sua solução. Pensar é perguntar continuamente, transfor-
mando possíveis soluções em novos enigmas. Paradoxalmente, o pensa-
mento não quer resolver o mundo, mas torná-lo vertiginosamente enig-
mático; não deseja dissolvê-lo, mas mante-lo como problema. Pensar bem
98 HISTORIA T EO R I A JOSÉ CARLOS REIS 9')

é construir e explorar aporias, impasses, dilemas; é complexificar o que pa- e ninguém jamais saberá como teria sido. E mesmo se o historiador pu-
rece simples ou dado. Não é cortar o nó górdio com a espada, de forma desse retornar ao passado, isso o tornaria um conhecedor mais efici-
impaciente, autoritária e violenta, mas desatá-lo serenamente, fazendo a ente? Ele se tornaria apenas um contemporâneo, envolvido pelo seu
sua teoria. Pensar, enfim, é problematizar um objeto bem demarcado, objeto, e saberia tanto daquela época quanto alguém que a viveu, ou
criar hipóteses, testá-las. Depois, procurar articular um discurso sobre esse seja, muito pouco!
objeto em linguagem clara e comunicável, debatendo-o publicamente,
iluminando-o sob diversos ângulos, percebendo-o em suas mudanças no T Ao produzir seu discurso, conhecimento indireto do passado, o histo-
tempo, para ver esse objeto tornar-se um enigma ainda maior! Haverá um riador não cria uma linguagem específica, mas utiliza sua língua ma-
final feliz para tais interrogações? Alguém encontrará a fórmula do uni- terna, cheia de preconceitos, anacronismos, arcaísmos, equívocos, sen-
verso e da história, o segredo de Deus? Há os que, ingénuos, crêem já tidos múltiplos, conotações, crenças, partidarismos. A linguagem da
terem atingido esse grau zero, esse ponto arquimediano do conhecimento, história não a distingue de um discurso mentiroso. Em história, o que
o que, felizmente, não impediu a história de continuar em sua busca. diferencia a linguagem da verdade da linguagem da mentira? Enquanto
Quando se espera ter acedido à verdade, ao fim da história, um temporal pura linguagem, código, não há diferença alguma. Aliás, o bom men-
muda a direção das folhas e tudo o que era sólido se desfaz no ar. Por isso tiroso é aquele que sabe explorar em seu interesse a linguagem da ver-
a necessidade da reflexão teórica, náo-sistemática, náo-dogmática, não- dade: oferece dados, gráficos, números, nomes, locais, datas, eventos,
totalitária, mas problematizante, descrente, histórica. A teoria da história autoridades. Todos falsos! A história nem chegaria a ser um "romance
acompanha e se confunde com a história da história. verdadeiro".

Não é possível, portanto, ser historiador sem tomar o conheci- T Conhecimento indireto do passado em linguagem polissêmica, o co-
mento histórico como problema. Se ele é a construção de um sujeito, não nhecimento histórico é incapaz de fazer previsões e só é articulável
se pode praticá-lo surda e cegamente. É preciso pôr em dúvida a possi- depois do evento ocorrido, limitando-se a uma retrodicção pouco ri-
bilidade de a história tocar em seu objeto, os homens no tempo, e partir gorosa. Ê um conhecimento falacioso: post hoc ergo propter hoc (de-
da possibilidade do nada ao ser. Admita-se, portanto, que, embora exista pois disso, então, por causa disso). O historiador cria explicações
há cerca de 2.500 anos, o conhecimento histórico é epistemologicamente a posteriori, selecionando e hierarquizando causas, elegendo causas e
muito problemático. Há autores que o consideram impossível. Os argu- eventos mais e menos "importantes". Não é um conhecimento prog-
mentos célicos são inúmeros e todos muito fortes. Vejamos algumas ob- nóstico, mas pós-gnóstico. Depois que o evento imprevisível ocorreu,
jeções à possibilidade da história: diz-se que era óbvio que ele iria ocorrer! A história oferece uma cau-
salidade sublunar, imprecisa, produzida por uma subjetividade em
T É um conhecimento indireto, que não mostra o vivido ao vivo. É in- expansão. E um conhecimento "metafísico" (Popper), que permite a
consistente. O historiador conhece o passado recorrendo a testemu- convivência de inúmeros discursos incompatíveis entre si. Eles criam
nhos, intermediários suspeitos que ou não sabiam o que estavam vi- uma regressão infinita, sem chegarem a causa alguma. O historiador
vendo, ou desejavam controlar a imagem que o futuro — o historiador não tem método, não explica nada e não tem teorias. A história não
— faria deles. Entre o sujeito e o objeto do conhecimento há uma faz reviver os eventos que narra, pois é uma criação do autor e não
inultrapassável distância temporal, uma barreira invisível, apenas per- dos seus atores. O autor tria, simplifica, organiza, sustenta um século
ceptível em documentos, vestígios, testemunhos, sempre precários, la- em uma página. O evento é uma diferença, uma experiência vivida,
cunares, arruinados, e muitas vezes estrategicamente depositados. In- que não se pode conhecer a priori. E talvez nem a posteriori1. É in-
direto, o historiador não pode tocar o seu objeto, experimentá-lo, dividual, singular, único, irrepetível. Acontece em um momento e
testá-lo, reproduzi-lo, repeti-lo. O passado é uma abstração, não é mais, lugar determinados no passado. A história só pode ser anedótica.
100 H l s T ó K l A £< TEORIA
r J O S É C A R L O S R E is 101

T Conhecimento indireto do passado em linguagem polissem iça, falacioso, rankiana seria mesmo tão desprezível? Não seria ela a realização plena do
o conhecimento histórico pratica sistematicamente o que mais abomina, conhecimento histórico? Para continuar crítico, não há outro recurso, o
o anacronismo. Ele olha o passado com os olhos e as cores do seu pre- historiador precisa aceitar a crise; não pode evitar esse questionamento
sente, apagando a diferença que deveria preservar e conhecer entre pre- que atinge profundamente a identidade da história.'
sente e passado. Ele é ligado à época de sua produção, violentamente É preciso insistir na primeira questão: afinal, o que é a história e
pessoal e arbitrário, e dura tanto quanto dura um determinado presente. 0 que faz o historiador? Em geral, evitam-se respostas abstratas. A resposta
Por isso, precisa ser constantemente reescrito. E para não permanecer! É abstrata mais frequente: é o conhecimento do passado humano, dos homens
um castigo de Sísifo. Um permanente reinicio, cheio de ilusões de ver- do passado, dos fatos e feitos humanos do passado. Isso exclui os fatos natu-
dade, verdades que duram o que dura uma geração. rais. É um conhecimento que pretende obter a verdade do seu objeto atra-
vés da investigação, da interrogação e do controle das fontes. No entanto,
T Finalmente, como conhecimento das mudanças humanas no tempo, o
uma resposta segura só é possível mediante a análise da prática concreta
conhecimento histórico é uma reconstrução fantasmagórica, pois, en-
dos especialistas. A história existe e é praticada por uma comunidade es-
quanto mudança, seu objeto é misterioso, indecifrável, já que não é —
pecializada. É, portanto, o que pratica a comunidade dos historiadores.
deixa, sempre de ser. Pode-se fazer um discurso racional, intersubjetivo,
Pode-se encontrar a estrutura lógica de seu método observando o modo
sobre o que não permanece? Baseados em quê? E um conhecimento
pelo qual os historiadores operam. Mas, "o modo pelo qual os historia-
sem objeto. A história não chegaria a produzir nem erro, mas confu-
dores operam" é histórico, muda, e, mesmo observando a prática concreta
são. Os historiadores nunca estão de acordo sobre a queda do Império
da comunidade historiadora, não se pode definir de forma incontestável o
Romano. Os problemas da história são de crítica e de retrodiccção.
que ela faz. Hoje talvez se possa afirmar, observando a operação histórica
Ocorrido um evento, qual é sua explicação? A retrodicção vai do ocor- concreta dos historiadores, que a história é o conhecimento "cientifica-
rido aos seus antecedentes. O problema da retrodicçao é o oposto do
mente conduzido" do passado humano — problematizante, hipotético,
da previsão. Ela parte do evento para a sua causa. Por isso, a explicação comunicável, técnico, documentado. Ela procura realizar um diálogo
histórica é confusa e não pode ser uma lei — não é uma explicação de-
entre os homens vivos do presente e os homens vivos do passado de forma
dutiva ou nomológica. Em história, a cadeia de eventos é imprevisível,
racionalmente conduzida. Mas ela não foi, nem será, sempre assim.
pois sempre entram em cena dados novos, que mudam as relações
A história da história é um caleidoscópio! Há cerca de 2.500 anos
entre os dados anteriores, que se supunha já conhecidos.
ela existe em permanente crise, autodefinindo-se vagamente. Surgiu nos
séculos V-IV a.C., opondo-se ao mito, à lenda, à poesia épica, à especu-
Descartes foi o que mais insistiu nesse pirronismo histórico. Para
lação filosófica, que também emergia. Era um olhar novo, uma revolução
ele, a história é um conhecimento impossível. O relato histórico, mesmo
cultural, que buscava a verdade das mudanças humanas no tempo, em
minucioso, é pior; ou melhor, quanto mais minucioso, pior. Ele não se re-
uma cultura que contemplava o eterno, o supralunar. Heródoto acredi-
fere nunca ao que se passou. Os historiadores não oferecem sequer uma
tava ser possível falar das coisas humanas, temporais, e com verdade. Mas
imagem pálida do que investigam. As explicações produzidas sobre os ho-
ofereceu várias versões da verdade e foi considerado "fabulador". O pró-
mens do passado estão marcadas pela subjetividade e pela arbitrariedade.
prio pai da ciência dos homens no tempo foi tido como contador, fabu-
E preconceitos não valem como conhecimento. O conhecimento históri-
lador, mentiroso! Depois, a história se confundiu com a mitologia polí-
co produziria uma mutilação da experiência passada, uma organização ilu-
tica. O historiador "investigava e pesquisava" para legitimar o poder,
sória e fantasmagórica dos homens do passado. São os historiadores que
falam pelos fatos do passado. Mas, não são os fatos do passado, os feitos
do passado, os homens do passado, o objeto do historiador? Não deveria 1 Topolsky, 1982; Carr, 1978; Collingwood, 1981; Fontana, 1998; Veyne, 1983a; e He-

ele recuperá-los em seus próprios termos, tal como se passaram? A utopia genberg, 1965.
JOSÉ CARLOS REIS 103

oferecendo-lhe uma origem, uma tradição, que lhe garantisse a continui- iósofos não querem a companhia dos historiadores e fazem eles mesmos
dade. Depois, a história confundiu-se com a fé cristã, tornando-se o le- sua própria história da filosofia; os cientistas também querem fazer sua
vantamento dos casos em que a vontade de Deus se expressou, uma his- própria história da ciência; antropólogos, sociólogos c economistas sim-
tória das manifestações divinas, milagres e teofanias. No século XVIII, plesmente não se interessam pela perspectiva do historiador e quando se
apesar da "história perfeita" do XVII, a história deixou-se dominar pela interessam dizem não precisar dele; os religiosos os ignoram; o senso
especulação filosófica e tornou-se um grande discurso especulativo, uni- comum vive mergulhado na anti-história, comemorando mitos e arcaís-
versalizante, teleológico, utópico. No século XIX, retornou à sua origem mos. Os historiadores procuram alianças com aqueles que os desprezam
grega, especificamente a Tucídides, e quis outra vez romper com a intui- epistemologicamente. Só os políticos os valorizam. E talvez tanto aquele
ção poética, com a especulação filosófica, com a retórica literário-política, desprezo quanto este apreço se expliquem.
com a inspiração artística, com a fé, e inventou uma nova identidade: ci- A história anda na contramão da filosofia, da ciência, da religião e
ência. Mas não era uma atitude original. Assim como havia cedido ao do senso comum, que procuram uma verdade fora do tempo e protegem
poder romano, à fé cristã, à especulação filosófica, agora se rendia ao su- seus resultados com enorme cuidado. A filosofia, a ciência, a religião, o
cesso das ciências naturais, em seu modelo ainda empirista e indutivista. senso comum se dirigem ao atemporal, à teoria sistemática, ao absoluto,
A história passou a buscar fatos concretos, documentos, e a procurar es- ao agora eterno do mito. O historiador faz o caminho inverso: pulveriza,
tabelecer impossíveis leis de desenvolvimento histórico. Esta não foi a úl- dissolve, desintegra, em durações múltiplas e incompatíveis, as suas ver-
tima imagem da história. Com o surgimento das ciências sociais, no final dades. A história busca a verdade no tempo e não fora dele. Ela revela aos
do século XIX e no século XX, a história deixou-se fascinar por Marx, outros saberes, que por isso não apreciam a sua companhia, o seu passado,
Weber, Durkheim, Mareei Mauss e Lévi-Strauss e pretendeu tornar-se mostrando-lhes o que eles esqueceram: que mudaram, que nunca foram
uma ciência social. Identidade que, no final do século XX, não a satisfez os mesmos e sempre estiveram envolvidos com verdades absolutas dife-
plenamente, fazendo-a voltar a se relacionar mais intimamente com a li- rentes, que também traíram os pais e fizeram alianças que lhes garantiram
teratura, a poesia, a psicanálise, a antropologia e a filosofia. a sobrevivência. A história revela suas raízes temporais, que são tão calei-
Qual é, afinal, a identidade do conhecimento histórico? As alian- doscópicas quanto as dela. Suas imagens mudam tão frequentemente
ças que a história estabeleceu ao longo dos séculos ameaçam ou revelam quanto as dela. O apreço do político também é compreensível, pois a his-
sua identidade? Esse seu realinhamento permanente com os conhecimen- tória, habilmente, jamais lhes diz que os tempos lhes são desfavoráveis,
tos dominantes do momento não a tornariam epistemologicamente muito oferecendo-lhes raízes no tempo mais longínquo, profundas, consolidan-
insegura? Seus objetos nunca são os mesmos, o que se espera do historia- do poderes frágeis, visando alianças e proteções demasiadamente huma-
dor nunca é o mesmo, a tal ponto que uma metodologia da história seria nas. A história, como conhecimento da mudança, explica todos a eles
absurda! E as novas gerações de historiadores são sempre parricidas, pois mesmos. Ela dá aos saberes sucessividade, historicidade, lugar e época, no-
se sentem portadoras de uma verdade histórica nova e se consolidam rejei- mes, datas. Ela desintegra a sua ambição de verdade universal, global, to-
tando e desvalorizando as teses históricas anteriores. Foi assim entre Tu- tal, absoluta, final. A história revela seus fracassos, decepções, frustrações,
cídides e Heródoto, entre Mabillon e os historiadores medievais, entre traições. Ela mostra o transcurso, a passagem do ser ao novo ser.
Ranke e Hegel, entre Marx e Hegel, entre Febvre e Ranke, entre H.
A própria história sofre essa passagem e a assume. Ela já foi regis-
White e os Annales. Se, por um lado, os historiadores novos sempre eli-
tros, crónicas, compilações, genealogia, teologia, filosofia, ciência, ciência
minam os antigos, por outro, os demais saberes com os quais os historia-
social, romance verdadeiro. O próprio termo "história" é polissêmico, re-
dores se dizem alinhados mantêm com a história uma relação tensa: os fi-
ferindo-se ao conhecimento e a sua matéria. Por exemplo: história do Bra-
sil são os fatos e processos passados da sociedade brasileira e também as
2 Bourdé & Martin, s.d.; Lefebvre, 1974; Fontana, 1998; e Collingwood, 1981. obras de história do Brasil. Além disso, o conhecimento se confunde com
JOSÉ CARLOS REIS 105

sua matéria, pois o que se sabe do passado é o que é transmitido como co- ca, surgia a hermenêutica — com Sçhieiermacher c Dilthey —, que inter-
nhecimento. O passado não fala por si, mas através do que se conhece rogava o passado a partir do presente, criando um novo e fecundo risco: os
dele. A Revolução Francesa é uma leitura de uma série de eventos ocor- vivos interpretam e dialogam com os vivos do passado! Na verdade, desde
ridos na França no final do século XVIII. Ela não existiu em si como Re- Heródoto, a história esteve ligada à vida e não à morte. Desde os gregos, ela
volução Francesa; foi nomeada assim. Aqueles mesmos eventos podem ter foi o testemunho dos tempos, a luz da verdade, a luz da memória, a mestra
e tiveram outra representação. O historiador não está condenado a regis- da vida, a mensageira da antiguidade e a protetora do futuro.^
trar fatos, a constatá-los. Ele raciocina sobre eles, busca a sua inteligibili- Recoloquemos então o problema já posto: de Heródoto a Braudel,
dade, atribuindo-lhes sentido, pensando as possibilidades objetivas e os existiria um conhecimento histórico reconhecível? Como hipótese, pode-se
seus desdobramentos. Afinal, pensar não é registrar, mas considerar ca- supor que a história realizou sempre as seguintes operações cognitivas: memo-
minhos possíveis, alternativas. A crítica erudita, a apuração e o estabele- rização, revivência, reconstituição, reconstrução, interpretação, compreensão, des-
cimento de fatos são condição necessária, mas não suficiente, para uma ciên- crição, narração, análise, síntese. O espírito profundo desse esforço múltiplo e
cia histórica. É preciso construir um juízo histórico, atribuir um sentido complexo talvez seja a recusa da ficção. A história surgiu e continuou lutando
aos fatos.
contra fábulas, lendas, mitos. Ela luta ainda contra o erro, contra o falso. Seu
Nietzsche fala de três atitudes negativas do espírito diante do pas- trabalho seria então o da "falseabilidade", procurando produzir "verdade"?
sado: História quer dizer busca da verdade, em oposição à ficção, que seria criação
do falso? Como busca da verdade ela poderia ser considerada científica, espe-
T a monumental, que consiste em se referir ao passado e procurar nele rar representar adequadamente o real? Uma verdade histórica parece incom-
exemplos, modelos para a ação. Essa atitude valoriza o grande e o mag- patível com o objeto do historiador, os homens em suas mudanças. Entre a ci-
nífico, protesta contra a fuga do tempo e a precariedade do ser. Só o ência e a ficção, a história ora tende para uma, ora para outra. Para Michel de
grande homem conta e só ele é exemplar e pode inspirar a imitação dos Certeau, quando tende para a ciência, ela denuncia o seu conteúdo ficcional.
homens. A história é mestra da vida, pois sugere essa imitação. O risco A ciência não é antípoda da ficção. Ela também cria uma linguagem formal,
dessa atirude é fazer do passado um ideal e desqualificar o presente t a artificial. É um artefato esvaziado de realidade. O historiador desconfia dessa
possibilidade do futuro. Os mortos enterram os vivos; "ficção científica", que ignota fatos, a realidade, o referente do seu discurso.
Na ciência, a linguagem artificial se autonomiza das coisas. O historiador per-
T a antiquária, que consiste em venerar o passado em todos os seus de-
cebe na ciência a ficção que sempre combateu. Quanto à ficção, ele se opõe,
talhes. Esse espírito colecionador cataloga fatos e mais fatos. Arquivos, quando ela não produz um discurso unívoco, criando uma estratificação de
preservação de relíquias de museu, preservam o passado enquanto pas- sentidos. A ficção, ao produzir efeitos de sentido incontroláveis, é uma deriva
sado. O risco é a mumificação de um passado que o presente não semântica. Para M. de Certeau, a história tem a pretensão de representar o real
anima mais, não inspira mais. A vida não deve ser preservada, mas au- muito além da ciência e da ficção. Ela seria antípoda da ciência e da ficção.
mentada em potência. Os mortos enterram os vivos; Mas, ao mesmo tempo, se aproximaria de ambas. Ela se aproxima da ficção,
T a crítica, que coloca o passado diante do tribunal da Razão. Essa é a ati- para Certeau, quando esconde, em sua refiguração do passado, o presente que
tude da ciência moderna. Sua instância é a razão crítica e seu lema é: a organiza. Sua representação do passado oculta o aparelho social e técnico
que a produz: a instituição profissional. A representação disfarça a prática que
seja a verdade, pereça a vida. O ideal objetivista da história científica
a organiza. A história não escapa às pressões socioeconômicas que determinam
estuda não exemplos ou lições da história, mas fatos despidos de toda
as representações de uma sociedade. Uma comunidade científica é uma fa-
subjetividade. O risco é que os mortos enterram os vivos.
brica em série, submetida a limites de orçamento, ligada a políticas, a um re-
Nesses três modelos, a história representa uma desvantagem para a
vida, pois o passado oprime e soterra o presente. No entanto, já em sua épo- Nietzsche, 1983; e Domingues, 1996.
106 J O S É do
H I S T O R I A 8t T t. URI ,\o estreito e homogéneo, aos interesses C Apatrão
R L O S e do
R E momento.
IS Os

científico. Para eles, a história teria o mesmo padrão científico da física. A


livros produzidos nessas fabricas não revelam as condições de sua produção e, filosofia analítica de língua inglesa, seguindo o Círculo de Viena —
por isso, se aproximam da ficção. ambos "neopositivistas" —, tem profunda preocupação epistemológica.
A função social da representação histórica, que pretende ser realista, Heterogéneos, em relação à história têm uma posição comum: negam seu
para Michel de Certeau, é reparar as rupturas entre o passado e o presente, caráter compreensivo e narrativo. Defendem a unidade da ciência. Contra
assegurar um sentido que supere violências e divisões do tempo, criar refe- a distinção feita pelos historicistas entre método ideográfico e nomotético,
rências e valores comuns que garantam ao grupo uma unidade e uma co- eles afirmam a unidade do método científico. Para eles, mesmo que fosse
municabilidade simbólica. Para ele, a história é o trabalho dos vivos para possível uma abordagem compreensiva de eventos únicos e singulares em
acalmar os monos. Ela é uma imitação da presença. É um discurso que luta história, ela se submeteria à explicação causal. Abordado "cientificamen-
contra a corrupção do tempo. Essa tarefa social obriga a inclusão do pre- te", o evento histórico é despido de seu caráter único e singular para entrar
sente, lugar do sujeito. A história cria a habitabilidade do presente. Ela é em uma universalidade legal. Não há distinção entre processos físicos e
uma técnica particular entre várias que têm o mesmo objetivo: produzir nar- históricos e ambos podem ser explicados causalmente, ou seja, incluídos
rativas que explicam o que se passa. Se privilegia os acidentes, é para re- em uma generalização. Eles negam qualquer validade epistemológica a
construir as rupturas com uma linguagem de sentido. A história cria uma procedimentos como "emparia", "compreensão", "interpretação", que da-
referência comum entre separados. Diz em nome do real o que é preciso di- riam um caráter específico ao conhecimento histórico. Com isso, querem
zer, crer e fazer. Pretendendo dizer o real, ela o fabrica. Torna crível o que
proteger a história do ceticismo e justificar o seu status científico. Susten-
diz. E faz agir. Essas narrativas fabricadas produzem a história efetiva. Os
tam a objetividade da verdade histórica. Para eles, o determinismo é o
poderes económicos e políticos esforçam-se para pô-la do seu lado, para
pressuposto teórico de toda atividade inteligente e rejeitá-lo significaria
adulá-la, pagar, orientar, controlar ou manter.
abrir mão de toda inteligibilidade. Seria recair no irracionalismo, no des-
A história, portanto, lutando contra a ficção, o lendário e o falso,
controle tanto do objeto quanto da linguagem que o articula. A sua teoria
aproxima-se da ciência. Ela procura imitá-la em seu controle da lingua-
das covering laws (cobertura por leis) pressupõe a unidade da Razão. Para
gem e em seu controle da prova. Ela se inspira em seu espírito rigoroso e
eles, todo fato, natural ou histórico, está submetido a leis. A história ex-
em sua busca da objetividade. Ela também aspira à apreensão e ao domí-
plicaria causalmente a vida humana no tempo, e todo ceticismo em rela-
nio da realidade empírica. Qual seria a história das relações entre a história
e o discurso científico? Ela poderia ou deveria esperar ser uma ciência? ção à sua capacidade de conhecer seu objeto estaria descartado.
Após Nietzsche, interessaria a ela continuar imitando a ciência? Para Veyne, Um dos principais autores dessa corrente é Karl Hempel, que expôs
não é vão saber se a história é uma ciência, pois "ciência" não é um vo- esse ponto de vista sobre a história em seu clássico artigo "A função das leis
cábulo nobre, mas um termo teoricamente preciso. Examinemos, então, gerais em história" (1942). O artigo pode ser dividido em duas partes: na pri-
a possibilidade de uma história científica. meira, ele formula a tese da unidade da ciência e mostra como funciona a ci-
ência em geral; na segunda, demonstra que a história atende às exigências da
epistemologia. Hempel produz uma justificação da história como ciência.
O modelo nomológico Sua tese é uma otimista defesa da possibilidade e da eficácia do conhecimen-
to histórico. Para ele, em relação à história, não há razão para ceticismos. A
Para vencer esses impasses do conhecimento histórico, para solu-
história não se ocuparia só com a mera descrição de eventos particulares do
cionar as suas tensões e aporias, os neopositivistas decidiriam considerá-lo
passado, sem encontrar as leis gerais que determinam esses eventos. Seu ob-
jetivo é mostrar que tanto a história quanto as ciências naturais recorrem a
4 Certeau, 1976 e 1987.
5 Certeau, 1987.
6 Veyne, 1983a. 7 Ricoeur, 1994; e Hegenberg, 1965.
í 08 JOSÉ CARLOS REIS 109
H i5T Ú Rl A & T' E O R [ A

leis gerais e que, portanto, há uma unidade metodológica na ciência empí- cologia individual ou social, que se supõe familiares a todos. Não preci-
rica. Uma lei geral — ou hipótese de forma universal — exprime uma re- sariam ser explicitadas, pois são tacitamente subentendidas. Por isso, seria
gularidade do tipo: em todos os casos em que um evento de tipo C (causa) difícil definir tais hipóteses com a devida precisão. Mas toda vez que o his-
ocorra em determinado tempo e lugar, outro evento de tipo E (efeito) ocor- toriador afirma "daqui", "portanto", "consequentemente", "obviamente",
rerá em um lugar e tempo relacionados com o lugar e tempo do primeiro "naturalmente", ele está supondo uma lei. Essas expressões são epitáfios de
evento. As leis gerais simultaneamente explicam a ocorrência de eventos e leis. Para saber se seus resultados são rigorosos, basta exumar a lei geral
prevêem ocorrências futuras. A estrutura lógica da previsão é a mesma da ex- que os sustenta implicitamente. Exemplo: os lavradores do Nordeste mi-
plicação. A diferença entre elas é pragmática — uma se refere ao acontecido; gram para São Paulo porque a seca contínua torna a sua vida precária. Re-
a outra, ao futuro. Uma explicação científica é completa se permite antecipar gularidade subentendida: as populações tenderão a migrar para regiões
ocorrências. E será considerada uma "explicação forte". Raramente uma ex- que ofereçam melhores condições de vida. Outro exemplo: a revolução se
plicação é tão completa. A explicação de um evento consiste em indicar as deu por causa do descontentamento de grande parte da população em face
suas causas (leis) e os seus fatores determinantes (condições iniciais). A ex- de certas condições predominantes. Regularidade subentendida: toda po-
plicação científica consiste em: a) descrição das condições iniciais para a ocor- pulação descontente com as condições de vida ptedominantes faz revolu-
rência de um evento; b) leis gerais, a conexão entre o evento e as condições ções. Outro exemplo: quem tem emprego, não quer perdê-lo; quem tem
iniciais. A explicação não é de eventos individuais, mas típicos. A descrição autoridade, não quer cedê-la. Regularidade subentendida: quem tem
completa de um evento individual é irrealizável. A história não pode preten- poder tende a. expandi-lo. Qual a vantagem da exumação da lei? Tomar
der apreender a individualidade única, pois é impossível. Só há explicação ci- conhecimento dela garante o rigor da afirmação particular e histórica fei-
entífica se houver o conjunto das condições iniciais e das leis gerais, que as- ta. Para Hempel, toda explicação em termos de luta de classes, condições
sociam causa e efeito. Ela se distingue de uma pseudo-explicação por com- económicas ou geográficas, interesses de grupos, baseiam-se em hipóteses
provações objetivas: teste das provas, teste das hipóteses universais, exame da universais. Como são de difícil formulação completa, tendem a se manter
estrutura lógica da explicação. As pseudo-explicações são metafísicas, apelan- em estado implícito. A história utilizaria leis de várias ciências: psicológi-
do a enteléquias como missão histórica, providência, carma, destino. São cas, económicas, sociológicas, químicas, físicas, biológicas. A derrota de
mais metáforas do que leis, imagens pictóricas, emocionais, intuitivas, e não um exército é explicada por regularidades biológicas, climáticas, geográ-
deduções comprováveis. São inaceitáveis cientificamente e a história não po- ficas, químicas, físicas etc.
deria se satisfazer com tais construções fictícias. Portanto, conclui Hempel, o historiador não produz meras des-
Tanto quanto a física, a história pode ser considerada ciência por- crições de eventos únicos passados, pois essas descrições não são separáveis
que também produz explicações causais e não pseudo-explicações metafísi- de hipóteses universais. Não há fronteiras entre a história e as ciências na-
cas. Toda explicação histórica visa mostrar que um evento não foi casual, turais. Ele próprio antecipa possíveis objeções à sua tese. Pode-se afirmar
mas necessário e antecipável. Hempel estranha que os historiadores sus- que ele antecipa que tais explicações históricas não seriam leis gerais, mas
tentem um paradoxo: querer explicar eventos históricos e negar a possi- hipóteses de probabilidade. A história não usaria leis deterministas gerais,
bilidade de leis gerais em história! Para ele, o historiador só é capaz de ex- condições universais, mas hipóteses de probabilidade. Hempel admite essa
plicar porque descobre leis gerais. Todavia, neste ponto, o paradoxal é possibilidade. E seu raciocínio sofre um desvio. Ele concede então que,
Hempel, pois, após afirmar a unidade do método científico, se põe a dis- talvez, a história não ofereça "explicações no sentido forte", completas,
tinguir as leis da história das leis naturais. Para ele, as leis históricas são mas algo que se poderia chamar de "esboço de explicação". Esse esboço
implícitas, tácitas. As hipóteses universais em história dizem respeito à psi- seria uma indução mais ou menos vaga das leis e condições iniciais e exi-

Hempel, 1984. Hempel, 1984.


«í T t o Ri ; JOSÉ CARLOS REIS 111

giria ainda um enchimento, um detalhamenro. O esboço só oferece uma fraquecem o modelo nomológico não para afastar a história da ciência,
direçáo geral à pesquisa. Mas, isso não seria um retorno à heterogeneidade mas para torná-la compatível com ele.
da ciência, à diferença entre as ciências capazes de explicação no sentido Nagel retoma o tema da divisão do conhecimento — conheci-
forte e as ciências que fazem explicações no sentido fraco? A física não vol- mento do universal vénus conhecimento do particular — para atenuá-la.
taria a ser uma ciência pura e dura, e a história, uma ciência leve e frágil? Para ele, nas ciências naturais há também enunciados particulares. As suas
Apesar disso, Hempel insiste em sua tese da unidade da ciência. Para ele, afirmações gerais precisam encontrar comprovação empírica, factual. As
um esboço de explicação garante a história como ciência, pois é mais forte ciências naturais não podem ser consideradas puramente nomotéticas. E a
do que a mais febril pseudo-explicação. Mesmo sendo um esboço, evita- história também não é puramente ideográfica, admitindo tacitamente
se o uso de termos metafísicos, destituídos de sentido empírico. Para testar afirmações universais do tipo das que ocorrem nas ciências naturais. Sua
a solidez de uma explicação dada é necessário reconstruir o mais comple- linguagem acerca do que é único e irrepetível exige o emprego de normas
tamente possível as hipóteses subjacentes sepultadas sob os epitáfios da- comuns e de termos descritivos gerais. Contudo, Nagel repõe a divisão.
qui, portanto, porque. Só explicitando as leis gerais é que se pode avaliar a Por um lado, sustenta que há uma importante assimetria entre as ciências
consistência da explicação. Para ele, a história não emprega um método teoréticas e a história: as primeiras visam o estabelecimento de leis; a se-
distinto, o da compreensão empática, que consiste em imaginar-se no gunda aceita e utiliza leis, mas não considera que seja seu papel estabelecê-
lugar do outro, apreendendo motivos, identificando-se imaginariamente las. Por outro lado, ele novamente desfaz a divisão: apesar dessa assimetria,
com personagens. A história até pode usar esse método como um estra- não se justifica a tese de que há uma diferença radical de estrurura lógica
tagema heurístico. No entanto, ele não é por si só explicativo. A história entre as explicações históricas e as naturais. Entre as explicações históricas
é um conhecimento científico porque encontra leis gerais implícitas. É um e as das ciências naturais não haveria diferença quanto à generalização e ao
"esboço de explicação" todo raciocínio histórico que busca o sentido, que uso de leis. Como Hempel, sustenta que, em história, usam-se leis impli-
mostra um desenvolvimento, que estabelece determinação e dependência citamente aceitas, tacitamente subentendidas. Podem ser regularidades
entre os fenómenos. Logo, conclui, há unidade metodológica nas ciências bem confirmadas por uma crença especial ou pressuposições não codifi-
empíricas. cadas da experiência comum, podem ser de natureza estatística, podem as-
severar uma uniformidade na sequência temporal ou uma relação de de-
No entanto, Hempel faz concessões que deveriam obrigá-lo a ad- JA •
pendência.
11

mitir que o conhecimento histórico é diferenciado. Ele enfraquece demais Nagel enumera então as dificuldades específicas do conhecimento
o modelo de explicação causal para que a história possa ser incluída entre histórico, que ameaçam a sua objetividade científica. Ele expõe suas difi-
as ciências. Os partidários do modelo nomológico, após Hempel, procu- culdades, para defender a verdade histórica. O cético afirma que uma nar-
rariam situar melhor essa especificidade do lugar da história no modelo rativa histórica, por mais minuciosa, nunca é um relato exaustivo do que
forte. Mas também fariam tantas concessões que deveriam, em nome do de fato aconteceu. O historiador seleciona problemas, dados, causas e re-
rigor que tanto prezam, admitir o que negam: o caráter não científico do sultados. Não há uma lógica da investigação, mas somente uma indeci-
conhecimento histórico. Dividindo o conhecimento histórico em dois ní- frável "intuição da descoberta". As escolhas são pessoais, intuitivas, sociais,
veis distintos, mas articulados — o explicativo e o interpretativo —, eles morais, religiosas. O historiador se ocupa de um tema impregnado de
procuram defender a história contra o ceticismo, mas acabam levando-a a valor e a história seria violentamente pessoal. Pata Nagel, o historiador
impasses insuperáveis. Eles não admitem que a história seja compreensiva pode se ocupar de valores, mas não precisa sucumbir a eles. E afirmar que
e narrativa, que consideram formas elementares de conhecimento. E en- só se conhece algo quando se conhece tudo é excluir até a ciência do co-

10 Hempel, 1984.
Nagel, 1984.
112
r 113

nhecimento possível. O cientista também seleciona, quando recorta ob- há apenas causas particulares, ou apenas nomológicas. A história seria uma
jetos e formula problemas. Aliás, é exatamente o fato de uma investigação dialética de explicação e compreensão. É preciso admitir que, quando cabe
ser seletiva que permite que ela chegue a resultados objetivos, pois limi- um raciocínio dialético em uma epistemologia ncopositivista, a crise já é
tados e controláveis. E a história não é tendenciosa, pois é feita por uma profunda! Dray propõe uma "explicação por razões", que, para Ricoeur,
comunidade que controla intersubjetivamente todo argumento e toda seria a sua contribuição mais positiva. Essa explicação por razões se aplica
prova. O pensamento tendencioso é um desafio controlável, desde que se às ações individuais que são suficientemente importantes para a narrativa.
conheçam as determinantes causais das tendências. Se é possível discurso, E se já cabia uma dialética, agora já cabe também uma narrativa! A ex-
diálogo, argumentação, imersubjetividade, a objetividade é sempre possí- plicação por razões, de Dray, aplica-se a agentes humanos. Explicar por
vel. Portanto, conclui Nagel, embora haja muitas razões legítimas para se razões é reconstruir o cálculo feito pelo agente, seus fins e meios, suas es-
duvidar das imputações causais específicas em história, não há razão para colhas e critérios. A explicação por razões faz esse cálculo, examina essa
ceticismo. E, após retomar a indecisão de Hempel, decide com ele: por razão intencional da ação. Explicar é, aqui, comparar o que foi feito e o
mais fracas, vagas, leves que sejam as explicações em história, elas são que devia ser feito, considerando as circunstâncias. Essa explicação por ra-
muito melhores do que as mais intuitivas, fortes e envolventes pseudo-ex- zões procura um equilíbrio lógico entre agente e ação; e não se aplica só
plicações. O que o historiador está proibido de fazer é pseudo-explicação, a indivíduos que agem conscientemente. Pode ser aplicada à atividade in-
afirmações metafísicas, pois então o conhecimento histórico deixaria de consciente, a coletividades transformadas em indivíduos. Esse modelo
ser levado em consideração pelos cientistas. fundamenta-se no individualismo metodológico: o processo social equi-
Ricoeur percebe um esfacelamento progressivo no modelo nomo- vale ao resultado das ações intencionais dos indivíduos.
lógico e o considera em estado de crise permanente. Esse modelo pressu- Estamos já beirando os limites do modelo nomológico. Se antes
põe uma unidade da ciência que não consegue demonstrar. Sua lógica de- havia um muro alto, que impedia qualquer aproximação ou valorização da
monstrativa é decepcionante. Ricoeur expôs as soluções ambíguas de compreensão, agora causalidade e compreensão já dialogam, e até se mis-
William Dray em Laws and explanations in history (1957). Para ele, Dray turam. Resta ainda um murinho entre elas: vêem-se e conversam situadas
é o melhor testemunho da crise do modelo nomológico. Dray defende em quintais diferentes. A unidade da ciência já não se faz com a exclusão
uma tese contraditória, que quase o leva para fora dos muros do modelo absoluta da compreensão, com a recusa de qualquer especificidade à his-
nomológico. Segundo ele, a explicação causal não implica a presença de tória. Por isso, Veyne, em Como se escreve a história, considera a teoria da
leis que cubram os casos particulares! Para Dray, se há leis em história, explicação histórica segundo o empirismo lógico mais confusa do que fal-
estas são detalhadas e não vagas e gerais. Dray defende um tipo de análise sa. É difícil saber o que eles entendem pelas leis que o historiador utili-
causal irredutível à subsunção a leis. A palavra "causa" é polissêmica e não zaria. Os autores hesitam entre leis científicas e esboço de lei, que seria
se liga necessariamente à subsunçáo dos eventos à lei geral. Em história, há uma lei incompleta, implícita e provisória. Não se sabe se temos leis, es-
conexões causais singulares cuja força explicativa não dependeria de uma boços ou truísmos. Para Veyne, a relação causal na ciência é repetível; em
lei. A análise causal é uma seleção de fatores causais, de "por causa", de história não se pode garantir essa repetição. A causalidade histórica é con-
"porquês". É uma causalidade indutiva e pragmática. Indutiva, pois, sem fusa, cotidiana, sublunar. As leis históricas são sempre acompanhadas de
tal fato particular, o evento particular a ser explicado não se daria neces- uma ou outra restrição em sua aplicação. Há diferenças entre a causali-
sariamente; pragmática, porque esse fator deve fazer parte de um conjunto dade concreta e irregular do sublunar e as leis abstratas e formais da ci-
de fatores, sem deixar de ser o principal. Para Dray, a causa em história ência. As leis científicas só funcionam se fazem abstração das situações
respeita uma lógica particular. As causas em história são misturadas: não concretas. Elas podem funcionar tão formalmente quanto uma fórmula

12 Nagel, 1984. 13 Ricoeur, 1994.


114 HISTÓRIA & TEORIA
r JOSÉ CARLOS REIS 115

matemática. Sua generalidade é consequência dessa abstração; não vem do delo da ciência empirista reunia observação, indução, cooperação, expe-
fato de pôr no plural um caso singular. Veyne sustenta que, entre a ex- rimentações, descaso pelas hipóteses, renúncia às prenoções e familiarida-
plicação histórica e a científica não há nuança, mas um abismo. As pre- de com as coisas, a busca da racionalidade que pertence ao próprio
tensas leis históricas, não sendo abstratas, não têm a clareza de uma fór- fenómeno, o controle das ilusões. Só com esse controle se é capaz de ob-
mula da física. Elas existem somente por referência implícita ao contexto servar e inferir com segurança. A subjetividade científica deve ser uma ati-
concreto. Cada vez que enunciamos uma, acrescentamos: "grosso modo", vidade registradora asséptica. O sujeito da cultura desaparece. O cientista
há exceções . Para Veyne, em comparação à explicação própria das ci- deve se tornar uma tabula rasa. O método consiste na coleta de um nú-
ências naturais, a história produz uma simples descrição do que se passou. mero significativo de dados para deles derivar teorias mais gerais. As teo-
Ela não é episteme. A explicação histórica não é nem de longe uma expli- rias mais gerais explicam as menores por subsunção. E chegam ao fato ori-
cação científica. A história nunca será uma ciência. Ela só compreende e ginal de onde partiram.
faz compreender. Essa descrição da concepção empirista da ciência a partir do Novum
O modelo nomológico, neoposidvista, é austríaco (Círculo de Vie- organum, de Francis Bacon — hegemónica durante três séculos —, pode ser
na) e inglês (filosofia analítica), e foi elaborado nos anos 1930-50. Ele dá verificada nas descrições da história dita positivista do século XIX, na Ale-
continuidade ao positivismo clássico de Spencer e Comte. No século XIX, manha e na França. Aquela orientação da física fez com que os historiadores
a história científica inspirou-se no empirismo indutivista das ciências na- preferissem constatar fatos, acumulá-los, criticá-los criteriosamente, obser-
turais. Desde o século XVII, o modelo da física impôs-se às pseudociên- vá-los, tratá-los segundo as regras do método histórico crítico, que foi ela-
cias e à metafísica. A observação era considerada a única forma de refrear borado quase ao mesmo tempo que o método hipotético-dedutivo, no sé-
nossa tendência à especulação e garantir um conhecimento baseado na ló- culo XVII. O historiador dito positivista quer narrar os fatos tal como se
gica intrínseca dos fenómenos, que permitisse atuar sobre a natureza, passaram, descrevendo-os e ordenando-os cronologicamente. Ele luta con-
transformando-a segundo nossos desejos. A cultura técnico-científica afir-
tra os ídolos ilusórios, procurando exercer controle sobre sua subjetividade,
mava uma vocação pragmática contra a tradição retórico-literária. A ci-
buscando estabelecer a verdade fiel e objetiva dos fatos do passado. Essa
ência não quer contemplar a natureza, mas transformá-la. Para se distin-
"história científica" procurava imitar o modelo indutivista da física.
guir da metafísica, adotaram-se procedimentos seguros de observação, que
asseguravam que estávamos fazendo algo que podíamos controlar e ins- Entretanto, até a física passou a duvidar de suas explicações fortes
trumentalizar. A ciência garantia o controle humano sobre as coisas. O e, em alguns historiadores da ciência, uma lógica compreensiva podia ser
empirismo prescreve, para o crescimento da ciência, a eliminação da sub- até mais fecunda do que a lógica explicativa neopositivista. Para I. Prigo-
jetividade, enquanto invenção interpretativa e imaginação criativa, e a gine e I. Stengers a significação profunda que podemos dar à atividade ci-
descoberta de uniformidades naturais pelo acúmulo de dados empíricos. entífica é a tentativa de nos comunicarmos com a natureza, de aprender
A ciência não cria, constata. Não há sujeito epistêmico. O cientista não com ela o que nós somos e como participamos de sua evolução. A ciência
passa de um mero registrador, um catalogador da racionalidade incrustada seria então um diálogo entre os homens e a natureza. Extraímos pouco a
nos próprios fenómenos. Este "produtor" do conhecimento deve se sub- pouco respostas dela. A ciência então poderia ser vista como um jogo de
meter às regras do método. Há uma atitude acrítica em relação às regras dois parceiros. Seu objetivo seria "compreender" o comportamento de
do método. O Novum organum, de Francis Bacon, estabelecia: a ciência uma realidade distinta de nós, não submetida às nossas crenças, ambições
visa o controle instrumental do real. O homem não sabe contemplando; e esperanças. A natureza não diz tudo o que queremos e, por isso, a ciência
ele pode tanto quanto sabe. Conhecimento e poder são sinónimos. O mo- não é um monólogo. O objeto interrogado sempre tem meios de des-

14 15 Oliva, 1990.
Veyne, 1983a.
116 H I S T Ó R I A fv TEORIA JOSÉ CARLOS REIS

mentir a hipótese mais plausível. A ciência de hoje não é mais a clássica. do princípio de que o que diferencia as ciências humanas das ciências na-
Ela vive uma metamorfose. As ciências naturais, atualmente, descrevem turais é a especificidade da sua operação cognitiva, a compreensão empática,
um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas que elaboram diferentemente.
potenciais. O diálogo racional com a natureza não consiste mais no so- Dilthey (1833-1911) foi um dos principais formuladores desse po-
brevoo desencantado de um mundo reversível c linear, mas na exploração lissêmico conceito. Em sua perspectiva, a compreensão e a interpretação
sempre local e eletiva de uma natureza complexa e múltipla. A ciência na- constituem o método específico das ciências do espírito. O que o historia-
tural é também uma ciência humana, feita por homens, para homens. Fa- dor faz é compreender as "manifestações de vida" das outras pessoas. A his-
zemos uma escuta poética da natureza, respeitando-a, enquanto a conhe- tória tem como objeto a vida, tanto a do outro, o tu-ele-vós-eles, como a do
cemos e manipulamos. Somos interiores a ela. Somos atores submetidos às próprio historiador e do seu presente, o eu-nós. O conhecimento histórico
suas pressões e não observadores exteriores. O homem não é um estranho seria o resultado do diálogo entre o historiador em sua vivência (presente) e
na natureza. Participamos de um devir natural e cultural. Há uma nova os outros homens em seu vivido (passado). Contudo, como conhecer o ou-
aliança entre os homens e a natureza. tro, se ele parece opaco como a natureza? Para Dilthey, pode-se conhecê-lo
As ciências naturais teriam, enfim, se rendido à lógica compreen- aprendendo a olhá-lo, a escutá-lo. É preciso observá-lo, acompanhá-lo, sem
siva das ciências históricas? jamais vê-lo como algo dado ou coisa. Ele é sujeito — uma subjetividade
que procura adaptar-se ao mundo externo, transformando-o — e busca
uma harmonia interna consigo mesmo e com o outro. Ele não é inteira-
O modelo compreensivo mente opaco. Aparece e se dá a conhecer em suas "expressões" e "manifes-
tações de vida". As expressões de vivência do outro levam o historiador ao
Um alto muro se ergueu contra a história científica neopositivista, seu interior. O mundo histórico é um mundo de expressões, de sinais, sím-
agora do lado da compreensão empática. Os historicistas alemães dos sé- bolos, mensagens, gestos, ações, criações, artes, cores, formas, posturas, pro-
culos XIX e XX procuraram estabelecer as condições específicas do co- duzidas por sujeitos vivos e agentes. Por se expressarem de forma tão elo-
nhecimento histórico. Defendiam ainda para a história a condição de ci- quente, os homens se dão a conhecer uns aos outros. Ao contrário da
ência, mas apresentavam outro sentido para ciência, oposto àquele dos natureza, que não é sujeito, mas coisa exterior, silenciosa, e submetida a leis.
neopositivistas. Para os historicistas, não há unidade no método da ciên- Por isso I. Prigogine não podia propor a compreensão empática para a na-
cia, mas dualidade. Não se pode tratar natureza e história com os mesmos tureza: ela não é uma subjetividade e não cria sentido. Quanto ao mundo
métodos. Para eles, há diferença entre as ciências nomotéticas e as ideo- histórico, ele é um "espírito objetivo", um universo de significações com-
gráficas, entre ciências naturais e ciências do espírito. O grupo historicista partilhadas, onde a comunicação entre os homens se realiza. Os homens
era heterogéneo e sustentava posições díspares. Para uns, a diferença entre dizem o que pensam, o que sentem e o que querem uns aos outros, e até
natureza e história era ontológica: a natureza, uma realidade material, ex- sem querer expressá-lo conscientemente. Entre os homens há troca de men-
terior, repetitiva, determinista, objetiva, submetida a leis; a história, uma sagens. Há recusa de papéis e de atribuições exteriores. Os indivíduos
realidade "espiritual", interior, humana, subjetiva, inovadora, aberta, sem podem dizer sim ou não. Em suas relações pessoais e sociais, eles se inter-
leis. Para outros, a diferença entre natureza e história era epistemológica, pretam e se decodificam. Mantêm uma relação interior entre si.
não implicando a dualidade do ser. As ciências naturais seriam generali- O "espírito objetivo" é essa experiência compartilhada, aquilo que é
zantes, não-avaliadoras, ao contrário das ciências do espírito, que seriam comum a todos os indivíduos: o estilo de vida, os costumes, o direito, o Es-
individualizantes e avaliadoras. O consenso entre estes estava na aceitação

17 Collingwood, 1981; e Reis, 1999.


16
Prigogine & Stengers, 1997. 18 Dilthey, 1984.
118 H l S T O R l ,' K T E O P. l A JOSÉ CARLOS REIS 119

rado, a religião, a arte, as ciências, a filosofia, o senso comum. É o universo à diferença individual. A estrutura lógica da compreensão superior é algo
cultural de cada indivíduo. Nosso eu se alimenta desse espírito desde a in- como uma operação "indutiva": parte-se das suas expressões particulares
fância. Ele é o que há de comum entre o eu e o você. Ele é o meio no qual para o todo individual. A compreensão superior parte de determinadas ma-
se realiza a compreensão elementar do outro e de si mesmo. Nesse mundo nifestações particulares e, por indução, quer tornar compreensível a estru-
cultural compartilhado, de certa forma todos se conhecem e se compreen- tura do todo individual. Esse processo tem por base a compreensão elemen-
dem. Na vida cotidiana, não é preciso deduzir, teorizar — os sujeitos (re)co- tar, que torna acessível os elementos básicos para a reconstrução superior de
nhecem os sinais e mensagens comuns e se comunicam. Na compreensão ele- uma vida individual. Na compreensão superior interessa a totalidade indi-
mentar, a experiência comum já oferece uma conexão imediata entre a vidual. O seu interesse não é pragmático. Não se deseja o controle técnico
expressão e o sentido que expressa. Essa conexão é pressuposta em cada re- do outro, mas seu reconhecimento humano. O mundo espiritual reúne o
lação particular. Faz-se algo como uma "dedução implícita por analogia": a "espírito objetivo", o universo cultural, objeto da compreensão elementar, e
partir de outros casos da experiência comum, compreende-se essa expressão a força criativa do indivíduo. É na conjunção de ambos que a história se
particular. Na compreensão elementar é o espírito objetivo que aparece nas fundamenta.
expressões individuais. Os indivíduos utilizam sinais, gestos, rituais, fórmu- As ciências do espírito, portanto, fundamentam-se na compreen-
las, códigos da cultura para expressar seu conteúdo individual, o que per- são empática, que revela o mundo dos indivíduos e de suas criações. O in-
mite sua compreensão tácita e imediata. Na compreensão elementar, o in- dividual pode ser compreendido graças ao que há de comum entre os in-
térprete não precisa refletir para compreender a ação. Seu sentido é divíduos. Mas os indivíduos não se reduzem a essa comunidade histórica.
compartilhado, pois foi presenciado e vivido infinitas vezes pelos mesmos Pressupõe-se que haja um universal humano, que os indivíduos expressam
membros daquele universo cultural. A compreensão elementar tem uma es- quanto mais diferenciados sejam da sua comunidade histórica. Há uma
trutura lógica semelhante à da dedução, embora dispense o discurso de- conexão entre o universalmente humano e a individuação. A operação da
monstrativo. Ê uma dedução sem demonstração, sem discurso, tácita. O compreensão penetra em camadas cada vez mais profundas do mundo es-
princípio da compreensão elementar é que se todos os indivíduos dessa cul- piritual, atingindo o universal através da compreensão superior de vidas
tura pensaram, sentiram e agiram assim, espera-se que continuarão a fazê-lo individuais complexas. Há uma estrutura do universal humano que se
da mesma forma. acentua diferencialmente em indivíduos. A compreensão superior tem
Na compreensão superior, o indivíduo se destaca e se diferencia de como tarefa descobrir a totalidade da vida individual nas expressões par-
seu universo cultural. Já é maior a distância interior entre a "manifestação ticulares que se apresentam aos sentidos. Ela dá vida aos dados, articu-
de vida" do outro e a daquele que o observa e quer compreender. Há mais lando-os de tal modo que faz "reviver" a individualidade que é objeto de
incerteza na compreensão. Quando aquele a ser compreendido silencia, ou interpretação. Essa passagem dos dados ao complexo de vida é o que se
é astucioso, ou esconde o seu estado interior, aquele que compreende pre- chama de transposição do eu para um outro. Ao reviver a vida do outro,
cisa interpretar criticamente o sentido da sua expressão. Para compreender o intérprete se transpõe para o seu complexo vital, emprestando-lhe sua
essa vida individual complexa, o intérprete parte dos seus sinais, gestos e ex- própria vida. Graças a essa transposição, por exemplo, os versos de um
pressões, da sua vida profissional, de suas relações sociais, familiares, ainda poema são restituídos à vida. O intérprete os recria e eles voltam à vida em
ligados à sua cultura. Na base da compreensão superior está a compreensão seu espírito. O autor original dos versos é outro. Ao interpretá-los, relen-
elementar. Por mais diferenciado ou estranho que tenha se tornado o indi- do-os, ressignificando-os, o eu os reatualiza e se torna até um co-autor.
víduo, ele não abandona a condição humana e ainda pertence a um sentido Isso só é possível porque a alma do intérprete (eu) pode reconhecer as ex-
compartilhado, a uma comunidade. O intérprete vai do horizonte comum periências internas do outro e revivê-las em seu mundo interior. Na com-

19
Diithey, 1984. 1 Dilthey, 1984.
120 JOSÉ CARLOS REIS 121
Bis & T 111 R

preensão, o intérprete tem uma presença ativa em relação ao outro, ele dá com que elas assumam significados diversos. Dessas ligações determinadas
a sua "contribuição" para a representação de um dado conjunto de ma- nasce o significado. As frases são membros de um todo e só são determi-
nifestações de vida, recriando-as e revivendo-as em seu espírito. náveis a partir do todo.
A operação cognitiva chamada compreensão, fundamento das ci- Enquanto distinta do conhecimento científico naturalista e da in-
ências do espírito, é uma operação inversa ao processo da ação. Ela retroa- formação exata, a compreensão é um processo complexo que não engen-
ge. E uma retrospecção. Ela segue a linha inversa dos acontecimentos. dra jamais resultados sem equívoco. Ê uma atividade sem fim, sempre
Somente após terem acontecido, o intérprete pode procurar o seu sentido mutante e variada, pela qual nos ajustamos ao real, nos reconciliamos com
no passado. A compreensão parte da expressão até aquele que nela se ex- ele e nos esforçamos para estar em harmonia com o mundo. Para Arendt,
pressa. Pela transposição, recriação, revivência, uma atividade recíproca se o fato de a reconciliação com o mundo ser inerente à compreensão não
estabelece entre as manifestações da vida do que se exprime e a vida in- significa que "tudo compreender seja tudo perdoar". O perdão não está li-
terna do intérprete que as compreende. O intérprete busca o sentido do gado à compreensão. O perdão é uma ação única, que culmina em um ato
evento ocorrido indo dele às circunstâncias e aos eventos anteriores à sua único. A compreensão é sem fim e não pode engendrar resultados defi-
ocorrência. Ele vai do acontecido aos seus antecedentes e, após feitas as nitivos. E a maneira especificamente humana de viver, pois cada um deve
conexões de sentido, retorna do anterior ao posterior acontecido. Nessr se reconciliar com um mundo sempre estranho. A compreensão começa
retorno, a própria vida é revivida. A narração do historiador ou roman- no nascimento e só termina com a morte. Para Arendt, se o totalitarismo,
cista provoca no ouvinte/leitor a revivência. Esta resgata a vida do outro por exemplo, é o evento central de nossa época, compreendê-lo não seria
e revela a cada um a sua vida determinada, limitada, abrindo possibilida- perdoá-lo, mas nos reconciliar com um mundo onde tais eventos são pos-
des de experiências não-vividas e jamais vivíveis. O Jeitor/ouvinte assume síveis. O totalitarismo emergiu de um mundo não-totalitário. Compre-
uma dívida com o historiador e o poeta. Limitado em sua existência de- ender esse processo é compreender a nós mesmos. Só a compreensão pode
terminada, ele ganha liberdade através da arte e da história. Isso supõe que dar um sentido ao vivido. Conhecimento e compreensão são coisas dis-
em toda compreensão haja algo de irracional, como é irracional a própria tintas, mas ligadas. A compreensão é fundada no conhecimento, e o co-
vida. A compreensão empática ultrapassa a lógica. A certeza final da re- nhecimento não pode prescindir de uma compreensão preliminar implí-
vivência é subjetiva e não pode ser construída por formulações lógicas. Por cita. Essa compreensão prévia é a informação mais segura de todas. A
isso, fundadas na compreensão, as ciências do espírito não têm nenhuma compreensão precede e prolonga o saber. A pré-compreensão, que está na
relação com os métodos das ciências naturais. Elas se apoiam em um mé- base de todo saber, e a compreensão autêntica, que o transcende, têm em
todo original. A compreensão é um processo particular de indução: vê-se comum a condição de darem sentido ao saber. A compreensão autêntica
nas expressões particulares a presença de um todo, sem negação da sin- volta sempre aos juízos e preconceitos que precederam e orientaram a pes-
gularidade de cada manifestação particular, que já é o próprio todo. A in- quisa científica. O cientista que desdenha essa compreensão popular, que
dução compreensiva não leva a uma lei geral, mas a uma estrutura, a um foi seu ponto de partida, perde o fio de Ariadne do senso comum — o
sistema ordenador, que reúne os casos como partes de um todo. A ope- único que pode guiá-lo em suas conclusões. As interpretações as mais eru-
ração compreensiva se assemelha à leitura e à interpretação de um texto. ditas se apoiam na compreensão prévia. A compreensão é uma estranha
A leitura/compreensão deve integrar as palavras num sentido e o sentido operação. Ela se resume à articulação e à confirmação daquilo que a com-
dos vários componentes do texto na estrutura do seu todo. Numa sequên- preensão prévia, que está sempre voltada para a ação, tinha inicialmente
cia de palavras, cada palavra é determinada e indeterminada; contém em pressentido. Ela não se afasta desse círculo — é um incessante diálogo
si uma variabilidade de sentido. As ligações entre as palavras podem fazer entre o humano e o essencial, que sempre recomeça. Salomão pedia a

Dilthey, 1984. 22 Ricoeur, 1994; e Gadamer, 1998.


HISTÓRIA T Eo Ri JOSÉ CARLOS REIS 123

Deus um coração compreensivo, o maior dom que um homem pode re- vida. Para Weber, essa compreensão racionalmente conduzida consiste
ceber ou desejar. Nem a reflexão, nem o puro sentimento, mas um cora- apenas no domínio intelectual do contexto de sentido da ação. Eia é ape-
ção compreensivo é que nos permite suportar a vida em comum com esses nas um discurso sobre o outro e não a sua revivência. Sua prova empática
eternos estranhos que são os outros e nos tornar suportáveis para eles. A restringe-se a uma participação projctiva na conexão de sentimentos nela
compreensão é capaz de imaginar a estranha obscuridade e densidade que viviida/
envolve a realidade humana interna. A imaginação é ao mesmo tempo ir- A operação da empatia é delicada e, para os mais céticos, impossível!
racional e o outro nome de "visão clara". É a razão em sua mais alta ex- É difícil ou até impossível pôr-se no lugar do outro, com seus valores muito
pressão. Sem essa imaginação, que é a verdadeira compreensão, nos per- diferentes dos nossos. E quando se consegue alguma empatia obtém-se so-
demos no mundo. Ela é nossa única bússola.
mente uma compreensão intelectual. Weber distingue uma compreensão
Weber apresenta uma visão mais racionalista da compreensão. direta e não-ambígua, por exemplo 2 + 2 = 4, de uma compreensão expli-
Neokantiano, para ele, compreender não se restringe à empatia, pois seria cativa ou motivacional, por exemplo aqueles 2 + 2 = 4 em seu contexto de-
ainda uma imprecisa e incontrolável operação psicológica. A compreensão terminado. Intelectualista, para ele, compreendemos uma ação plenamente
científica deve ser uma operação lógica. A sociologia compreensiva tem racional e inteligível articulando adequadamente meios e fins. Segundo We-
como meta a compreensão interpretativa da ação social, para conhecer ber, para compreender, pode-se recorrer à construção do "tipo ideal" de
suas causas, curso e efeitos. A açáo social — objeto da compreensão — é uma ação puramente racional. O desvio do tipo pode também ser compre-
toda conduta com orientação subjetivamente inteligível, toda conduta hu- endido, sendo atribuído a fatores irracionais. A ação racional construída
mana cujos sujeitos realizam um sentido subjetivo pretendido. É uma ati- como tipo ideal permite medir as alterações/desvios irracionais. O tipo ideal
vidade de sujeitos, intencional. Só o indivíduo é capaz de ações com sen- é uma construção racional, uma hipótese, que permite abordar e apreender
tido, intencionais. Só os indivíduos são capazes de articular meios e fins. o real. É uma construção racional que permite conhecer fatores irracionais.
A sociologia compreensiva privilegia o indivíduo. Mesmo quando analisa S6 há inteligibilidade no mundo humano se o fenómeno a ser conhecido é
instituições, pensa com a lógica individual. A psicologia não é o funda- relacionado a algum sentido. O sentido em Weber é uma construção lógica,
mento da compreensão. Nem tudo que não é físico é psicológico. A ação ideal, proposta pelo sujeito, e não uma teleologia metafísica. Embora se
não tem motivações psíquicas, mas lógicas. A ação com sentido subjeti- mantenham ainda em Weber as marcas do idealismo alemão, ele declara
vamente pretendido (outro) é subjetivamente compreensível (intérprete). não ter uma visão racionalista da história. Como a sociologia compreensiva
Há ações sem sentido subjetivo elaborado que dificultam a compreensão, busca a interpretação da conduta humana inteligível, ela deve ir além do
como, por exemplo, as experiências místicas, que não são compreensíveis sentido pretendido, formulado, declarado pelo agente, e descobrir a sua mo-
ao não-místico. Por outro lado, não é preciso ser César para compreender tivação mais profunda, inconsciente. Como ações mais ou menos semelhan-
César, isto é, não é preciso ter tido uma experiência pessoal para com- tes podem ter motivações distintas, raramente podemos estar seguros de
preender uma ação. Compreender não é participar. Ao se tornar místico nossas interpretações. Estas são apenas hipóteses plausíveis e, não, uma apre-
o intérprete compartilha o misticismo, mas pode se ver impedido de com- ensão do real tal como ocorrido. O curso real dos eventos só é explicável se
preendê-lo. E compreender César não é tornar-se César, o que seria im- comparável a uma construção ideal. Então verificam-se os desvios e seus fa-
possível. Colocar-se no lugar do outro, a empatia, como fundamento da tores.25
compreensão, é só uma estratégia cognitiva e não uma coincidência on- No entanto, apesar de não pretender mais filosofar sobre a história,
tológica com a alteridade. Esta seria o fim das ciências do espírito, a prova pode-se perceber ainda em Weber as marcas do seu ambiente intelectual ale-
cabal da impossibilidade de se conhecer o outro e as suas manifestações de

24 Weber, 1987.
23 Arendt, 1980.
25 Id., 1979 e 1987.
124
TEORIA jo s É CARLOS REIS

mão. Ele ainda sustenta uma visão racionalista do homem e da história, em-
ar em outras formas racionais, não-positivistas, de conhecimento. A his-
bora declare o contrário. Para ele, o ancideterminismo não é o pressuposto do
tória científica weberiana é racionalmente conduzida, fundamentada na
método histórico. Este pressupõe a liberdade do querer, que não é idêntica à
compreensão e em conceitos. Ele procura produzir para as ciências sociais
irracionalidade da atividade. A capacidade de desviar de toda previsão é pri-
e humanas o mesmo programa epistemológico que Kant realizou para as
vilégio do louco. O homem livre age racionalmente. Somos livres quando vi-
ciências naturais, tarefa em que, na sua perspectiva, Dilthey não tinha ob-
samos um objetivo logicamente consciente, com os recursos e meios mais
tido êxito. O interesse da história passa a ser intelectual, sociológico. A
adequados, sem pressão físico-química, sem as perturbações do juízo. Para
história weberiana não se interessa pelo tempo vivido, pois sabe que é ir-
ele, se a história só lidasse com a atividade livre, racional, sua tarefa seria fa-
recuperável, irreconstituível. Não conhece eventos únicos. Não quer ser
cilitada, pois poderia inferir de forma unívoca o objecivo, o motivo e a má-
ressurreição, reencontro, revivência. É uma organização lógica do passado,
xima do agente a partir dos meios postos em ação, e todas as irracionalidades
temática, problematizante e conceituai. O desenvolvimento da sua histó-
estariam eliminadas. A açáo livre é teleologicamente produzida. Os indiví-
ria conceptualizante faz parte do movimento das sociedades modernas
duos são "prisioneiros da razão" e, por isso, são livres! Liberdade é igual a
para a racionalização. Para Weber, o irracionalismo é determinista, e a ra-
exercício irrestrito da razão. Se a razão sempre predominasse, a história lidaria
zão, liberdade. A ação livre segue a ordem lógica ideal. A construção ra-
com ações transparentes, livres. A significação da ação apareceria cristalina-
cional de tipos ideais e conceitos é que permite identificar os desvios ir-
mente na própria ação. Mas a ação é prejudicada por irracionalidades, des-
racionais individuais. Para ele, não se deve cultuar o intuitivo, o irracional,
vios, que dificultam sua compreensão. A solução que apresenta para com-
como lugar da iniciativa, do indeterminismo, da liberdade humana, e não
preender a ação perturbada pela irrazão é a neokantiana "razão pura", o tipo
se deve propor "métodos poéticos" para abordar a história, contra a ci-
ideal. Um tipo ideal é uma síntese, um quadro ideal não-contraditório de re-
ência. A história inclui a compreensão, a subjetividade, a ação com sen-
lações pensadas, uma utopia, uma forma lógica, uma construção de realida-
tido e intenção, mas isso não significa abdicação da abordagem científica.
des objetivamente possíveis, um meio de conhecimento, um conceito limite,
As ciências históricas são conceituais. A defesa da especificidade da lógica
puramente ideal, visando a apreensão de individualidades históricas. Ele não
histórica tinha conduzido a um apelo à intuição romântica, ao não-en-
avalia. É perfeito apenas logicamente. As ciências sociais, pela construção
quadramento em uma ordem lógica. Mas, para Weber, o material histó-
conceituai de seus objetos, elaboram racionalmente o intuitivo, produzindo
rico só pode ser cientificamente abordável por tipos e conceitos.
juízos válidos. A construção conceituai é a única via para a superação da obs-
Todavia, o que seria "conceito histórico", já que a história é o
curidade retórica, e determina clara e rigorosamente a diferença entre pontos
lugar da mudança? Para Carr, que se posiciona a favor de Weber, o his-
de vista possíveis. Na razão pura do tipo ideal faz-se aparecer a linha quase
toriador não está interessado realmente na mudança singular. Tanto ele
imperceptível que separa ciência e crença. Só a ciência pode oferecer isso:
quanto o seu leitor são generalizadores crónicos. O leitor aplica a obser-
conceitos e juízos que não constituem e não copiam a realidade empírica,
vação do historiador em outros contextos. A generalização não é alheia à
mas permitem ordená-la pelo pensamento de maneira válida. Se construído
história, pois o historiador seria então apenas um compilador. O histo-
pelo trabalho teórico, por conceitos e tipos, sem juízos axioiógicos, o conhe-
riador, no entanto, não generaliza abstratamente. Ele relaciona o geral
cimento científico é incondicionalmente válido.
(o conceito) e o particular (a experiência vivida), indo e vindo de um a
outro e se autocorrigindo. Quanto mais sociológica for a história, ou seja,
quanto mais conceituai, conclui Carr, melhor. No entanto, a construção
O modelo conceituai de conceitos históricos é problemática. Pode-se usar a linguagem da do-
cumentação e considerá-la já conceituai, ou o historiador estaria autori-
A sociologia compreensiva de Weber, portanto, procura afastar a
história do irracionalismo que envolvia a compreensão empática e se apoi-
26 Weber, 1979 e 1987.
126 J O S É C A R L O S R11 s 127
H ii T ú R i A TEORIA

zado a "criar" conceitos para se referir ao passado? Aquela linguagem do pode se libertar de toda referência a um contexto localizado e datado. Os
documento já é conceituai ou apenas palavras com um conteúdo concre- conceitos históricos são uma espécie de "nome próprio" ou "nomes co-
to? A realidade que as palavras do documento designavam não existe mais. muns imperfeitos". Eles são controlados pelos fatos que pretendem con-
A passagem da palavra ao conceito significa a produção de urna genera- trolar. Não são fórmulas abstratas, mas resumos, descrições compactas,
lidade. Uma palavra é um conteúdo concreto; um conceito, urna gene- concentração de múltiplas significações. Impossíveis de definir, os con-
ralização, uma abstração. Para que uma palavra se torne um conceito é ceitos históricos são polissêmicos e plásticos. Os historiadores alemães,
preciso que ela designe uma pluralidade de significações e de experiências. afirma Prost, por serem mais filosóficos, utilizam os conceitos com mais
O discurso histórico é duplo: de um lado, os conceitos criados pelo his- rigor. Os historiadores franceses usam palavras repetidas para definir a
toriador e, de outro, as palavras de conteúdo concreto dos documentos. O mesma realidade. E, nós, historiadores brasileiros, imitamos os franceses!
historiador ao mesmo tempo reutiliza a linguagem dos documentos e re- Nossa (deles) rede conceituai não é bem tecida. Para aumentar a impre-
corre a conceitos estranhos à época que estuda, e que ele próprio criou. cisão dos seus próprios conceitos, a história ainda pede emprestado con-
Essa criação de conceitos pelo historiador não poderia levar ao anacronis- ceitos às disciplinas vizinhas. Ela faz um consumo enorme de conceitos
mo? Uma época não deveria ser pensada em seus próprios termos? Pensar importados, sem se preocupar em manter seu sentido original. Ela se
o passado com termos atuais, com conceitos construídos em um presente apropria deles à sua maneira. Ao passarem à história, eles são ressignifi-
determinado, não seria inadequado? Talvez. Mas esse tratamento do pas- cados e tornam-se flexíveis. A história é uma espécie de encruzilhada, um
sado à luz dos problemas e com a linguagem do presente é inevitável. O centro de convergência, das ciências sociais. Há conceitos centrais em his-
historiador precisa criar conceitos, pois os contemporâneos de uma época tória que vieram de outras disciplinas. Mas o historiador não pode usar os
não têm consciência da originalidade do seu período. Eles não podem re- conceitos de outras ciências sociais de modo ingénuo. Nem as palavras da
gistrar em seus documentos sua própria representação conceituai. Os do- documentação. Ele precisa traduzi-las para a linguagem atual. As palavras
cumentos referem-se à experiência vivida e por isso são fontes. Eles não são duram mais do que as coisas que designam. A mudança de termos tam-
já o conhecimento da sua época. Os gregos jamais pensaram que viviam bém não significa que houve mudança real. O historiador precisa identi-
uma época clássica! E, se soubessem que falaríamos deles assim, poderiam ficar a temporalidade a que pertencem conceitos e palavras. Para Prost, os
talvez discordar! conceitos não são nem exteriores ao real, nem colados a ele; são símbolos
Para Prost, há dois tipos de conceitos: os empíricos, que são um re- adequados das coisas. Ao mesmo tempo que refletem o real, lhe dão forma
sumo ou uma descrição resumida, e os abstrcitos, que são os tipos ideais. e o nomeiam.
Para ele, os conceitos históricos são construções que definem um certo Outro autor que defendeu a história conceituai, assumindo expli-
número de traços comuns a uma multiplicidade de fatos empíricos, que citamente a influência weberiana, foi Paul Veyne. Contudo, há vários
têm alguma necessidade lógica. Prost considera que a história conceituai Veynes! Ele próprio não cabe no conceito "Paul Veyne"; assemelha-se a
é a única ciência histórica possível. Só ao conceito se submete a multipli- um conceito histórico. Um Veyne, o de O inventário das diferenças, ali-
cidade da experiência histórica. É impossível pensar a história sem recorrer menta uma grande confiança na construção conceituai. Para ele, a história
a conceitos. O conceito é uma comodidade de linguagem que permite ligada às ciências sociais é científica na medida em que é conceituai. Ela
uma economia de descrição e análise. Mas o conceito histórico não seria não é mais a narrativa cronológica de acontecimentos singulares e aplica
um verdadeiro conceito abstrato, um tipo ideal. Os conceitos históricos as teorias e os conceitos das ciências humanas. Os historiadores possuem
seriam empíricos. Kant nomeava de "conceito empírico" uma descrição sede de inteligibilidade e não ficam mais satisfeitos com apenas narrar,
resumida, uma forma económica de falar. A abstração é incompleta e não compreender, intuir, ressuscitar. Na história temática é o problema que

27 Prost, 1996.
Carr, 1978; e Prost, 1996. 28
128 HISTÓRIA & Tt o Kl A JOSÉ C A R L O S REIS 129

organiza a documentação disponível. A problematização leva à construção comparáveis pelo tipo ideal do "fascismo". Raciocinando com esse tipo ideal
de conceitos, de constantes, de invariantes. A constante em história não — fascismo —, o historiador constrói outros tipos opostos ou solidários:
são leis, mas tipos, modelos, conceitos, estruturas, construídos pelo his- "democracia", "direitos do homem", "ditadura", "cotalitarismo". O concei-
toriador. Como falar do individual sem uma constante? Cada conceito to de fascismo só tem sentido na rede conceituai que compreende tais con-
que construímos refina e enriquece a nossa percepção do mundo das sin- ceitos. Os diversos conceitos relacionados formam um campo semântico:
gularidades. Sem conceitos, nada se vê. A explicação histórica e socioló- um conjunto de formas que mantêm umas com as outras relações estáveis,
gica consiste em relacionar um acontecimento individual a uma constan- seja de oposição, associação ou substituição.
te. Só o conceito individualiza. O individual não é o inefável, o indizível. Um outro Veyne, o do artigo "História conceituai", que apareceu
Ele é o determinado, o que não é genérico. Nada é mais dizívei, salvo atra- na trilogia de Nora e Lê Goff, no volume História: novos problemas, ao
vés do conceito. Se a ciência é a determinação de invariantes que permi- mesmo tempo confia na conceptualização e desconfia da identidade cien-
tem apreender as mudanças, a história conceituai e analítica é científica. tífica da história. Para ele, a história jamais será uma ciência, mas comporta
Ela é o inventário de todos os eventos e sua individuação pelo conceito. núcleos de cientificidade. Não pode haver ciência da história porque o devir
Um inventário completo. Através de invariantes conceituais a história histórico não possui um primeiro motor. Ele se pergunta: nessas condições,
apreende a originalidade de todos os eventos. A história científica é ciência que perspectivas permanecem abertas à história? E responde: a da concep-
das diferenças, das individualidades, através do invariante conceituai. O tualização, que a obra de Weber permanece o modelo. A história conceituai,
individual existe em relação a uma certa abordagem abstraia. Entretanto, no entanto, não é ciência, porque não há chave do devir, um primeiro mo-
o real está cheio de possíveis não-realizados, que podem escapar à concei- tor. A história é uma rede de interações e o motor está por todo lado onde
tuação. Isso significa que o conceito talvez não garanta a cientificidade da se queira colocá-lo. A história se interessa por tudo que se passa e não apenas
história. Veyne acredita na história-problema e conclui que, em história, pelos fenómenos necessários, que a ciência privilegia. O físico só se interessa
as questões interessam mais do que as respostas. É mais importante in- pelos fenómenos necessários e ignora os outros. Veyne não lamenta que a
terrogar e ter ideias do que conhecer respostas. Ter ideias é deixar de ser história não atenda às exigências do método científico puro e duro. Para ele,
inocente e perceber que o que é poderia não ter sido. A história conceituai apesar de não ser científica, a história não deixa de ser uma atividade muito
de Veyne, que levanta problemas e tem ideias, talvez se situe entre a ci- elaborada. A história dos Annales não descobriu motores que explicassem
ência e a filosofia. "em última instância" a história, mas conceptualizou o "não-acontecimen-
Veyne, porém, tende mais para a definição científica. Para ele, a his- tal", que é uma auréola de duração longa que rodeia os eventos. O histo-
tória conceituai é científica também porque oferece uma inteligibilidade riador dos Annales busca o rigor por duas vias: por um lado, cria conceitos;
comparativa. Os conceitos históricos, para este Veyne, são mais do que des- por outro, critica tecnicamente a documentação. Com o conceito, que para
crições resumidas, pois incorporam um raciocínio e se referem a uma teoria. ele está próximo do tipo ideal weberiano, o conhecimento histórico sai da
A comparação conceituai revela semelhanças e diferenças. No que diz res- esfera das coisas que são vagamente sentidas e intuídas e passa a ser mais
peito ao conceito de fascismo, por exemplo, há o alemão, o italiano e outros. análise do que narração. São os conceitos que distinguem a história do ro-
O fascismo enquanto tipo ideal nunca se realizou. A construção de um mo- mance histórico e de seus próprios documentos. Se ela fosse ressurreição e
delo de fascismo puramente racional e ideal é que permite diferenciar as suas não análise, não seria necessário escrevê-la. Bastaria o romance ou o cinema.
diversas individualizações históricas. O regime de 1964, no Brasil, foi fas- A conceptualização se dirige ao "não-acontecimental". A história conceituai
cista? Essa questão não espera uma resposta intuitiva e imediata "sim" ou do "não-acontecimental" se opõe à história tradicional, narrativa, de fatos
"não", mas um inventário de todos os fascismos existentes, identificáveis e sucessivos, que usava a linguagem das fontes, reproduzia a visão dos con-

29 Prost, 1996.
Veyne, 1983b. 30
i 30 HISTÓRIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS

cemporâneos, dos autores das fontes-monumento. Era uma visão confusa, burguesia não querem dizer a mesma coisa em todo tempo e lugar. O co-
incompleta, imediata. A conceptualizaçáo leva a história mais longe. A con- nhecimento histórico é, por um lado, conhecimento do concreto, que é
ceptualização e a formalização são duas atitudes intelectuais que superam a devir e interação; por outro, a história tem necessidade de conceitos, que
retórica literária. A falta de conceitos reduz a historiografia ao impressionis- são uma abstração. Essa ambiguidade é insuperável e dificulta o trabalho
mo, perigo maior da história cultural. A história não é recriação, revivência, do historiador.
mas explicitação, análise, mediatez. A história não é "imediaticidade". A A história conceituai, portanto, procura pôr ordem no real his-
criação dos conceitos faz avançar a análise do mundo histórico. O interesse tórico, mas o resultado é relativo e parcial, pois o real não se deixa re-
conceituai da história não é a curiosidade das origens ou o gosto pelo calor duzir ao racional. Ele contém sempre uma parte de contingência que
humano, mas intelectual. E um interesse intelectual pelas coisas humanas. perturba a ordem racional dos conceitos. As realidades históricas nunca
O Veyne de O inventário das diferenças acreditava em uma história se conformam aos conceitos com os quais se pensa a história. A vida su-
conceituai científica; o Veyne do artigo "História conceituai" acredita em pera a ordem lógica. Mas, para Veyne, esse resultado da conceptualiza-
uma história conceituai, mas não em uma história científica; o Veyne de ção pode ser considerado positivo. Por isso, nos textos subsequentes, ele
Como se escreve a história acredita na história como "narrativa verdadeira", defendeu a história conceituai. Mesmo imperfeita, incompleta, desigual,
mas não científica. Este Veyne já anunciava os seguintes, ao defender a anacrónica, a conceptualização representa um esforço de organização do
aproximação da história com a sociologia e ao propor uma história con- real. Para o Veyne de Como se escreve a história, no entanto, a linguagem
ceituai. Mas era crítico do conceito histórico e não acreditava em uma his- histórica não era ainda a da conceptualização. Na verdade, para este
tória científica. Para ele, por um lado, o historiador não pode deixar de Veyne, a linguagem histórica, embora seja a das intrigas artificialmente
falar por conceitos, pois refere-se a eventos de todo lugar e época: guerra, construídas, está mais próxima da linguagem cotidiana, isto é, a história
revolução, rei, despotismo. "Guerra" é um tipo ideal. A história é a des- possui ainda uma linguagem narrativa.
crição do individual através de universais. Por outro, o historiador nunca François Furet foi outro historiador bastante influenciado por We-
está satisfeito com seus conceitos e tipos, pois são sempre anacrónicos, ber. QsAnnales parecem dever mais a Weber do que querem admitir. Dosse
inadequados, chaves que não abrem portas. O historiador cria tipos ad mostrou adequadamente o que eles deviam a Durkheim, sem confessá-lo.
hoc, que se tornam armadilhas. Os conceitos históricos são estranhos ins- Veyne e Furet mostraram o que deviam a Weber. Furet, fazendo a análise
trumentos. Eles são ricos e permitem compreender, mas desafiam toda de- do que representou o movimento dos Annales para a inovação da história,
finição precisa e incitam ao contra-senso. Os conceitos das ciências de- dá ênfase à passagem da história narrativa à história-problema. Ele afirma
dutivas — "força", "campo magnético", "energia" — são abstrações que o historiador reconhece, então, a indeterminação do seu objeto, a tem-
perfeitamente definidas teoricamente. Os conceitos das ciências naturais poralidade, e não pretende mais contar o que de fato aconteceu. Ele sabe e
possibilitam a análise empírica. Os conceitos do vivido sublunar são di- aceita que constrói conceitos, que cria um "sistema de inteligibilidade", que
ferentes. Os conceitos históricos são paradoxais, pertencem ao senso co- oferece uma representação do passado e não a sua reconstituição integral.
mum. Não são complexos de elementos necessariamente ligados. São re- Na história-problema, o historiador sabe que escolhe seus objetos no pas-
presentações que dão a ilusão de intelecção, mas não passam de imagens sado e que os interroga a partir do presente. Ele explicita a sua elaboração
genéricas. Temos a tendência de ver o homem eterno. A história luta con- conceituai, pois sua presença na pesquisa é quase total: escolhe, seleciona,
tra essa tendência, que leva ao contra-senso anacrónico, mas recai cons- interroga, conceitua. Ao romper com a narrativa, rompe com o evento úni-
tamemente no anacronismo. Os conceitos sublunares são fluidos, pois seu co, fugitivo, incomparável. Ele procura demonstrar um problema que ele
objeto se move. Este Veyne afirma: "não há invariantes!" Religião, família,

32 Veyne, 1983a.
31 Veyne, 1976.
33 Ibid.
132
& Ti JOSÉ CARLOS REIS

próprio formulou; delimita seus objetos; compara-os, integrando-os em narrativa tradicional criava consenso onde havia conflito, pois era um
uma longa série homogénea; inventa as suas fontes, ressignificando-as; uti- olhar de cima, a partir das elites políticas. Tinha um sentido político claro:
liza técnicas quantitativas, estatísticas e o computador. Contudo, Furet não endurecer e legitimar a ordem atual, oferecendo-lhe a respeitabilidade de
acredita que essa história analítica e conceituai seja científica. Para ele, seria uma origem. Um dos primeiros a denunciar agressivamente essa história
inexato acreditar que é suficiente passar da história narrativa à história-pro- narrativa foi François Simiand, em seu artigo "Método histórico e ciência
blema ou conceituai para entrar no domínio científico do demonstrável. Ele social" (1903).35
sustenta que a história conceituai é provavelmente superior, do ponto de
vista do conhecimento, à história narrativa. Mas não se passou a uma his- Contra essa narrativa tradicional, a história-problema reconhecia a
tória científica, pois há questões e conceitos que não comportam respostas impossibilidade de se narrar os fatos tal como se passaram. Na história-pro-
e definições claras. A história não é ciência, porque seu objeto é indetermi- blema, tudo o que se acreditava que a narrativa pudesse revelar foi posto em
nado, seus limites de demonstração são evidentes e a ambição de uma his- dúvida. Admite-se então que o historiador escolhe e constrói seu objeto e
tória total não é razoável. Para ele, a história sempre oscilará entre a arte da interroga o passado. Ele é obrigado a aparecer e a explicitar os seus pressu-
narração, a inteligência do conceito e o rigor das provas. Mas, se as provas postos. Afirma-se com certo orgulho, pois o historiador acredita que não é
são bem asseguradas e os conceitos mais explícitos, o conhecimento ganha mais ingénuo, que ele escolhe, seleciona, interroga, conceitua, analisa, sin-
e a arte da narrativa nada perde. tetiza, conclui. O texto histórico é o resultado de uma construção teórica. O
sujeito é o seu construtor. A história-problema não trata de eventos, indi-
víduos, política, dados, mas de estruturas, conjunturas, coletividades, mas-
O modelo narrativo sas, economias, sociedades e civilizações, construídos pelo historiador. Pas-
sou a predominar um excessivo otimismo quanto à possibilidade de se
Furet descreveu a passagem da história narrativa à história-proble- atingir a inteligibilidade da história, organizando-a por conceitos. Aceitou-
ma como um progresso. Mas, não descartou a arte da narrativa. Atual- se até que a história não se refere ao tempo; que ela o abole ao dar ao seu ob-
mente, retorna o interesse pela forma narrativa da história e há autores jeto um tratamento lógico. E esse controle lógico do tempo a tornaria um
que afirmam que a história a mais nomológica, a mais estrutural, jamais "estudo cientificamente conduzido". Todavia, o historiador do final do sé-
abandonou a narração. Esses autores sustentam que a forma própria do culo XX se considera mais crítico ainda do que o historiador da história-
discurso histórico é e sempre foi a arte da narrativa. A história-problema problema. E se compraz em estabelecei os limites de validade dessa história-
se impôs argumentando contra a narrativa tradicional, que considerava problema. Para o narrativista atual, aquele controle lógico do vivido tornou-
superficial, ingénua. Contra ela, argumentava-se que organizava os even- se inaceitável. A análise lógico-estrutural é excessivamente abstrata, estática,
tos em uma trama cujo fim já se conhecia. Seu modelo era a biografia. Os aistórica, anónima, sem eventos e homens. A história estrutural ignora mo-
eventos únicos e incomparáveis eram incluídos em uma continuidade, ga- tivos, intenções, sujeitos, e procura causas não-intencionais. E uma história
nhando um sentido que lhes vinha do exterior, uma teleologia. O narra- mais quantitativa, mais constatadora do que avaliadora, mais explicativa do
dor se ocultava e o texto parecia representar o real enquanto tal. A nar- que compreensiva. E espera-se da história uma relação mais estreita com o
rativa tradicional revelava a temporalidade linear, irreversível, da história vivido, com o tempo, com os homens. O controle lógico e estrutural do real
psicofilosófica. Ela oferecia um "efeito de objetividade", ao fazer o real co- pela história-problema, antes motivo de euforia, começou a ser rediscutido
incidir com a escrita. Natrar era mostrar o que de fato aconteceu. Ela pre- em sua validade teórica.
tendia fazer uma reconstituiçáo única do que de fato se passou. A história

35 Furet, s.d.
Furet, s.d.
36 Ibid.
134 H l í T f) R l A T E OR l A
I o s F-. C \ L o s R E I S

A história-problema entrou em crise! A história voltou a tratar


preender intrigas humanas. Tal é a ciência do mundo sublimar. A his-
dos homens no tempo, e a forma conceituai tornou-se insatisfatória, por tória é compreensão. Ela é um conhecimento descritivo e não teórico.
negar a dimensão da temporalidade. Ela se afastara de seu foco central,
Entre os diversos Veynes pode haver continuidades e descontinui-
os próprios homens, reais, em seu lugar e data, com seus projetos, mo-
dades. Aparentemente, entre eles haveria uma forte descondnuidadc: o de
tivos, intenções, angústias e sofrimentos. Além disso, assim como os Como se escreve a história duvida da história conceituai científica e o de O in-
narrativistas tradicionais eram ingénuos quanto à confiança na capaci- ventário daí diferenças acredita que a história exista de forma conceituai e
dade do historiador de reconstituir o real enquanto tal, os conceitualis- científica. Aquele afirma que não há invariantes, primeiro motor, na histó-
tas eram confiantes demais na capacidade explicativa dos seus conceitos. ria; este, que o invariante é que individualiza e torna conhecível a história.
Um dos mais eminentes defensores do conceito histórico, Paul Veyne, Aquele critica os conceitos históricos, e este considera a conceptualização o
ainda recusava explicitamente o tempo como objeto da história. Para único caminho capaz de salvar o conhecimento histórico. Mas há uma forte
ele, o tempo não é essencial à história; pode parecer paradoxal negar o continuidade: a intriga daquele é tão lógica e tão pouco temporal quanto o
tempo em história, mas não é menos verdade que o conceito de tempo conceito deste. A intriga histórica, em Veyne, abole o tempo e é um corte
não é indispensável ao historiador, que só tem necessidade de processos in- lógico no vivido. Ê uma intriga de tipo aristotélico. Nos diversos Veynes, a
teligíveis — uma intriga. Ora, esses processos são indefinidos, pois é o pen- história continua sendo uma atividade intelectual, sem vínculos com o vi-
vido. Apesar de duvidar do rigor dos conceitos históricos e da totalidade da
samento que os recorta, o que contradiz a sucessão cronológica da vida.
intriga, ele considera a história conceituai, a história-problema, uma história
Veyne define a intriga construída pelo historiador como uma cientificamente conduzida, porque esvaziada de vivido. E teórica, lógica, in-
mistura muito humana e pouco científica de causas materiais, fins e aca- telectual, abstrata etc. Pode-se também duvidar de Veyne em todas as suas
sos. Um pedaço de vida, que o historiador recorta à sua vontade. Essa formas: o do conceito, que abole o tempo, e o da intriga, que a propõe
intriga não se ordena necessariamente segundo uma ordem cronológica; como uma construção puramente lógica. Veyne refere-se constantemente
pode ser um corte transversal de diferentes ritmos temporais. Os fatos ao aspecto sublunar da história para argumentar contra a possibilidade de
que interessam ao historiador dependem da intriga que ele está cons- sua apreensão. Ele é excessivamente grego, pois só valoriza o supralunar,
que, nele, tem a forma do conceito ou da intriga lógica. Suas discussões
truindo. Os historiadores narram "intrigas", isto é, itinerários traçados
epistemológicas são muito relevantes e bem conduzidas, mas ele chega a
por eles através de um campo não-acontecimental muito objetivo. Um
conclusões aistóricas, mais aristotélicas do que herodotianas.
evento é um cruzamento de itinerários possíveis. As intrigas são um
Contra as abstrações da história-problema — e ao mesmo tempo
corte livre na realidade, um agregado de processos, onde agem e sofrem
preservando-a no discurso narrativo —, contra a intriga aristotélica, pu-
homens e coisas. Para ele, escrever história é uma atividade intelectual.
ramente lógica e atemporal, Paul Ricoeur é fundamental no esclarecimen-
Ela não produz consciência histórica. O conhecimento do passado não to da estrutura da nova narrativa histórica — simultaneamente lógica e
é consciência, mas uma reconstrução racional. A história não é existen- temporal. Aqui, optaremos pela construção do discurso histórico narrati-
cial. Ela é a organização, pela inteligência, de dados que se referem a vo elaborado por Ricoeur, porque ele reinsere a temporalidade na história.
uma temporalidade que não é a do dasein (ser-aí, o vivido humano). A Para ele, a história não é uma intriga apenas lógica, pois quer se referir ao
história não se refere ao homem em seu íntimo. A história é uma ati- vivido. A inteligibilidade histórica não pode excluir o vivido. A narrativa
vidade de conhecimento e não uma arte de viver. Ela é fundamental- histórica, ao incluir o vivido, o sublunar, não se torna, por isso, incom-
mente uma narrativa abstrata que explica enquanto narra. Ela explica ao patível com a inteligibilidade lógica. E esta não é incompatível com a nar-
organizar uma intriga compreensível. Sua explicação não é científica. rativa. Ricoeur defende o caráter intrinsecamente narrativo do conheci-
Explicar em história confunde-se com compreender; mostrar o desen-
volvimento de uma intriga, fazer compreender. O historiador faz com- 37 Veyne, 1983a.
jo sÊ CARLOS REIS 137

mento histórico, pois é essa a forma que oferece inteligibilidade ao vivido, cativa na medida em que ela desenha os traços da experiência temporal.
ao articular tempo e ordem lógica. Toda escrita histórica que privilegie o Esta tese apresenta um caráter circular. A circularidade entre temporali-
vivido contra o lógico ou o lógico contra o vivido, para ele, é insatisfató- dade e narracividade não é viciada, mas duas mccades que st reforçam re-
ria- Ricoetir procura reunir o vivido sublunar, indizível, e a organização
ciprocamente". Esta sua tese junta o que estava separado: a temporalidade
lógica, a intriga, sintetizando Santo Agostinho e Aristóteles. Em Santo
e a narratividade. Ao reunir a tensão temporal da alma, de Santo Agos-
Agostinho, "se me perguntam o que é o tempo, não sei dizer"; em Aris-
tinho, e a intriga, de Aristóteles, que pareciam se excluir reciprocamente,
tóteles, a intriga, ao imitar o tempo, o faz aparecer, sem definir o que o
Ricoeur criou uma nova ordem de sentido, que permitiu esclarecer a ope-
tempo é. A "experiência vivida" (Santo Agostinho) é reconstruída em uma
ração narrativa da história. Para ele, o muthos, a construção de intriga, de
"intriga" (Aristóteles). Esta não é uma teoria do tempo, mas sua constru-
Aristóteles, é o inverso da distentio animi, a tensão da alma, de Santo
ção poética, que oferece o "reconhecimento da experiência vivida". Para
Santo Agostinho, é na alma que o tempo como espera e como memória Agostinho. Esta se assenta no devir, na sucessão, na discordância dos tem-
existe e vive. Ele aparece na alma na medida em que o espírito age, isto é, pos, na angústia da finitude, que leva a alma a desejar a estabilidade. A
espera, é atento e se lembra. O que se mede na alma não são as coisas pas- composição de uma intriga impõe a concordância dos tempos sobre aque-
sadas ou futuras, mas a espera e a lembrança que a modificam. Santo la discordância. A intriga é mimesè, uma imitação criadora da experiência
Agostinho não resolve a aporia do tempo, pois essa experiência temporal temporal, que faz concordar os diversos tempos discordantes da experi-
da alma é inefável e incomensurável. Ele parte e chega a aporias, e silencia ência vivida. A intriga agencia os fatos dispersos em um sistema. Ela é uma
sobre o tempo. Ricoeur (1994), recorrendo a Aristóteles, acredita que só composição, uma produção, uma atividade, uma construção do poeta. A
o ato poético de criação de uma intriga faz o tempo aparecer, ao oferecer- poética não é teoria, mas a arte de compor intrigas. A atividade mimécica
lhe forma, extensão e medida. do poeta é um processo ativo de imitar ou representar. Ricoeur defende o
primado da compreensão narrativa em relação à explicação em historio-
A intriga é uma obra de síntese. Ela reúne objetivos, causas e aza-
grafia. Para ele, explicar mais é compreender melhor. Ele defende o pri-
res em uma unidade temporal, total e completa. Ao reunir o que estava
mado da atividade produtora de intrigas em relação a toda espécie de es-
disperso, o que era sucessão e devir, essa "síntese do heterogéneo" que é a
truturas estáticas, de paradigmas acrônicos, de invariantes atemporais, de
intriga (assim como a metáfora) faz aparecer na linguagem o novo, o iné-
conceitos e tipos abstratos.
dito, o ainda não dito. A narração é produzida por uma imaginação pro-
A intriga, como imitação e representação da açáo, é uma organi-
dutora, que cria novas pertinências semânticas, novos sentidos. Essa ima-
zação e agenciamento dos fatos. Essa imitação não é uma cópia, uma ré-
ginação produtora aproxima termos afastados e produz uma novidade de
plica idêntica da ação, mas uma construção do historiador. A mimesè de
sentido. A intriga põe junto e integra em uma história total e completa os Aristóteles é uma arte de composição. A ação humana, eis o que a ativi-
eventos múltiplos e dispersos, criando uma significação inteligível. Com- dade mimética agencia em uma intriga. A ação é reconstruída pela intriga.
preender na narrativa é unificar em uma ação inteira o diverso constituído A intriga é um modelo de concordância discordante. Ela faz concordar as
por circunstâncias, objetivos, meios, iniciativas, interações, mudanças de discordâncias da experiência, agenciando-as em uma totalidade de senti-
sorte e todas as consequências não desejadas saídas da ação humana. A in- do. Para Ricoeur, a tragédia é o género modelo para todo o campo nar-
triga narrada é uma imitação (mimesè) da ação. Ricoeur vê nas intrigas que rativo, pela sua exigência de ordem na desordem. A tragédia resolve poe-
invenramos o meio privilegiado pelo qual refiguramos nossa experiência ticamente as aporias da alma agostiniana quando inventa a ordem
temporal confusa, informe, e, no limite, muda, atribuindo-lhe um sentido narrativa. A intriga aristotélica incorpora a discordância, sem eliminá-la,
que impulsiona e guia a ação. na concordância. Essa concordância no agenciamento dos fatos é carac-
A tese maior de Ricoeur: "o tempo torna-se tempo humano na
medida em que é articulado de maneira narrativa. A narrativa é signifí- 38 Ricoeur, 1994.
138 H lST O R I A &: T EO R í - JOSÉ CARLOS REIS

terizada pela complecude e totalidade, em uma extensão adequada. Por que de fato ocorreu. Ela é uma representação construída pelo sujeito. Ela
um lado, a totalidade da intriga escapa do caráter temporal e se liga a uma se aproxima da ficção. O que controla esse seu caráter ficcional é o fato de
temporalidade lógica. Um todo, que tem começo, meio e fim. Só em uma a atividade mimética não terminar no texto poético ou na obra de histó-
intriga é que uma ação tem contornos, limite, extensão. A ação recons- ria. Ela se dirige e se realiza no espectador ou leitor. Ela retorna ao vivido.
truída entra no tempo lógico da obra, que não é o dos eventos do mundo. A refiguração ou reinvenção da intriga é produzida pelo receptor, que se
A intriga reúne eventos, torna-os ligados necessariamente, e omite even- torna co-autor. A compreensão narrativa articula uma atividade lógica de
tos, que se tornam vazios entre os eventos associados, lacunas. Portanto, a composição — o autor — com a atividade histórica de recepção — o pú-
ligação interna da intriga é mais lógica que cronológica. Não uma lógica blico. O que realiza essa articulação? Um prazer, o de aprender pelo re-
da ceoria, mas a lógica do fazer poético. A poesia-intriga é um fazer (com- conhecimento. Apropriando-se da intriga abstrata, o receptor reencontra
posição, criação) sobre o fazer (a ação, o vivido). E uma invenção. Por a si mesmo, a realidade vivida e o outro. Nela, tem-se o prazer de distin-
outro lado, por que haveria interesse em tais intrigas, neste fazer sobre o guir cada situação e cada homem como sendo ele mesmo. O prazer da
fazer? Segundo Ricoeur, pelo prazer de reconhecer as formas do tempo vi- narrativa histórica é o de aprender pelo reconhecimento: "foi assim!", "sou
vido. Aprender não é prazer apenas de filósofos, mas de todo homem. Na assim!", "você faz assim!", "eles fazem assim!". O prazer da catarse. O pra-
intriga não se aprende o universal lógico dos filósofos, mas universais poé- zer do reconhecimento é ao mesmo tempo construído na obra e provado
ticos, o possível e o verossímil, que seria, segundo Aristóteles, mais nobre pelo espectador. O que deve ser provado pelo espectador deve estar cons-
e mais filosófico do que a história, que fala do efetivo, do acontecido, mas truído na obra. O espectador ideal de Aristóteles é o "espectador impli-
particular. A poesia é um universal possível. Não são os episódios que cado", capaz do prazer do texto, capaz de sofrer a catarse, de reviver as
Aristóteles reprova, mas uma intriga em que a ligação entre eles não é ne- emoções que o texto articula. A catarse une cognição, imaginação, senti-
cessária. Aristóteles nada diz contra os episódios. O que ele proscreve não mento, ação. Essa catarse é possível também porque a obra poética veicula
são os episódios, mas o texto episódico, a narração onde os episódios se se- um mundo cultural. Essa obra reorganiza, rearticula, ressignifica os sinais
guem ao acaso. A universalidade de uma intriga cíeriva de sua ordenação. de uma cultura em que autor e espectador estão imersos. A obra poética-
Todo o problema da compreensão narrativa está aqui contido em germe. histórica produz, faz circular, renova e transmite cultura.
Compor a intriga já é fazer surgir o inteligível do vivido acidental, o uni- Para Ricoeur, portanto, entre a atividade lógica de narrar uma his-
versal do fato particular, o necessário ou verossímil do evento episódico. tória e o caráter temporal da experiência humana existe uma correlação
A atividade mimética compõe a ação quando instaura a necessidade den- necessária. O tempo torna-se tempo humano na medida em que é arti-
tro dela. Faz surgir o universal. Por isso, o género trágico seria o modelo culado de forrna narrativa, e a narração ganha todo o seu significado
de intriga completa, pois levaria ao mais alto grau de tensão o paradoxal quando se torna uma condição da experiência temporal. O vivido torna-
e o encadeamento causal, a surpresa e a necessidade. se mais humano quando narrado. Se parece haver um abismo entre a re-
E Ricoeur indaga: os historiadores não procuram pôr a lucidez flexão agostiniana sobre o tempo e a reflexão aristotélica sobre a intriga,
onde há perplexidade? E a perplexidade não é maior onde as mudanças de Ricoeur estabelece entre elas um círculo. Por um lado, o tempo agostinia-
fortuna são as mais inesperadas? Toda história narrativa não está ligada a no não tem nada a ver com uma narrativa, pois é pura e muda vivência;
mudanças de sorte, para o melhor e para o pior? Não são os incidentes dis- por outro, a intriga de Aristóteles não tem nada a ver com o tempo, que
cordantes que a intriga tende a tornar necessários e verossimilhantes? É in- em Aristóteles é físico. Explorando a fecundidade dessa aporia, Ricoeur
cluindo o discordante no concordante que a intriga inclui o drama emo- procurou construir a mediação entre tempo e narrativa. O que articularia
cionante em uma ordem inteligível. A intriga não é imitação idêntica do tempo e narrativa? Para ele, os três momentos do círculo hermenêutico é
real, mas uma imitação criadora. Enquanto representação, ela é mais fic-
cional do que duplicação do vivido. A narrativa histórica não representa o 39 Ricoeur, 1994.
140
HISTORIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS 141

que fariam essa ligação: mimese l (Ml) — prefiguração do campo prá- poral: projeto, previsão, predição, motivação, crença, potência de fazer,
tico; mimese 2 (M2) — configuração textual desse campo; e mimese 3 passado-presente-futuro. A narrativa recria a discordância concordante da
(M3) — refiguração pela recepção da obra, A mimese 2 é a própria com- ação, explicitando as suas dimensões temporais tácitas. A própria práxis
posição poética, a obra escrita do historiador, que é a operação de confi- cotidiana já articula passado, presente e futuro. O tempo é isto dentro do
guração de uma intriga. A semiótica só trata das leis internas da mimese 2. qual o dasein (ser-aí) age cotidianamente. Essa intratemporalidade é a
A hermenêutica reconstrói o conjunto das operações pelas quais uma obra temporalidade da ação. Na Ml, imitar ou representar o agir é pré-com-
se eleva do fundo opaco do viver, agir e sofrer, para ser oferecida por seu preender tacitamente a ação humana. É essa pré-compreensão que per-
autor a um leitor, que se verá modificado em seu viver. A hermenêutica mite a um autor a construção de uma intriga e ao leitor o seu reconhe-
não trata somente do texto, mas apresenta-o articulado à vida em M i e cimento.
M3, como uma mediação. O leitor é o operador por excelência, pois nele Na mimese 2, abre-se o reino metafórico do "como se". Ela é a
esses três momentos se unem. É construindo a relação entre esses três mo- operação de configuração, produzida pelo autor, que imita e dá forma ao
mentos da mimese que ele constitui a mediação entre tempo e narrativa. vivido. A mimese 2 é a própria intriga tecida pelo autor e tem uma função
O argumento de seu livro consiste em construir a mediação entre tempo de mediação entre M i e M3. Essa mediação é dinâmica e exercida de três
e narrativa, domesticando o papel mediador da intriga no processo mi- maneiras:
mético. Ele propõe que se siga de um tempo prefigurado a um tempo re-
figurado, pela mediação de um tempo configurado. T liga os eventos individuais à história como um todo. A intriga é um
agenciamento sistémico de fatos, uma síntese do heterogéneo; não faz
A mimese 7 é a pré-compreensão prática do mundo da ação, de
uma simples sucessão cronológica, mas uma configuração lógica;
suas estruturas inteligíveis, de seus recursos simbólicos, de seu caráter tem-
poral. A ação já possui em sua própria vivência uma estrutura narrativa T a intriga compõe, reúne fatores tão heterogéneos quanto agentes, ob-
implícita. Ninguém se perde no vivido, o que supõe que haja uma tácita jetivos, meios, interações, circunstâncias. A intriga é uma configura-
pré-compreensão. Se a intriga é uma imitação da ação, o autor deve ser ção, caracterizada por uma concordância discordante;
capaz de identificar na ação, em germe, os seus traços estruturais. A ação T a intriga é a síntese de uma heterogeneidade temporal. Ela resolve a
se distingue de um movimento físico. Ela implica resultados, objetivos, aporética do tempo não de forma especulativa, mas poética.
fins, motivos, agentes, circunstâncias, interaçáo, cooperação, competição,
luta, sucesso, fracasso, infelicidade, acaso, sorte. Toda ação tem um quê, A intriga combina duas dimensões temporais: a cronológica, a di-
um por quê, um quem, um como, um com, um contra quem. Uma ação mensão episódica dos eventos, e a não-cronológica, a configuração em um
é o conjunto desses conceitos, que não existem separadamente. Apreender todo complexo, com início, meio e fim. Do conjunto dos fatos particu-
esse conjunto é uma competência chamada de "compreensão prática". A lares, da diversidade dos eventos, ela faz uma unidade temporal. Ela rea-
compreensão narrativa pressupõe essa compreensão prática e a transforma. liza o mesmo que o conceito kantiano: une o diverso em um universal.
Toda narrativa pressupõe, por parte do autor e do leitor, uma certa fa- Mas a intriga não é uma teoria do paradoxo da temporalidade. Ela não diz
miliaridade com os conceitos da ação. A narrativa acrescenta a essa com- o que o tempo é. Oferece apenas uma solução poética. Imita a tempora-
preensão prática o discurso, uma sintaxe, regras de composição, que go- lidade, faz uma figura da sucessão. Na intriga, segue-se uma história, que
vernam a ordem diacrônica da história. Passa-se então da compreensão leva a uma conclusão. Essa conclusão não estava implicada logicamente
prática à compreensão narrativa. Compreender uma história é compreen- nas premissas anteriores. Compreender uma história é compreender como
der ao mesmo tempo a linguagem do fazer e a tradição cultural da qual e por que os episódios sucessivos conduziram a essa conclusão, que, longe
procede a tipologia das intrigas. Há na ação uma pré-narração. Há uma de ser previsível, deve ser aceitável como congruente com os episódios reu-
quase-narrativa implícita na ação. O fazer humano é implicitamente tem- nidos. É essa capacidade da história de ser seguida que constitui a solução
142 JOSÉ CARLOS REIS

poética do paradoxo da temporalidade agosdniana. A intriga apresenta os apenas a obra, mas seu universo de sentido, o que ela comunica. E vê-se
traços temporais inversamente à dimensão episódica. Esta tende ao linear; modificado em seu vivido.
aquela, a uma estrutura que inclui o episódico, transformando a sucessão
Não sendo possível uma fenomenologia pura do tempo, uma
dos eventos em uma totalidade signiflcante, impondo ao suceder dos fatos
apreensão intuitiva da estrutura do tempo, que revele o seu segredo, para
o sentido do fato final. Não é uma flecha do tempo que corre do passado
Ricoeur só a intriga recria o tempo vivido da ação. Santo Agostinho con-
ao futuro, mas pode ser lida a contrapelo. O ato de narrar, de seguir uma
siderou inefável a experiência da temporalidade pela alma. Para Ricoeur,
história, torna produtivos os paradoxos que inquietavam Santo Agostinho
a poética da narratividade vem dar forma ao tempo vivido da alma. A in-
a ponto de levá-lo ao silêncio. Há uma tradição da narração, que não é
triga faz aparecer o tempo sem dizer o que ele é. Ela o imita, desenhando
uma forma morta, mas um jogo de inovação e sedimentação. Nossa cul- a sua figura. Por isso, Ricoeur defende o caráter fundamentalmente nar-
tura ocidental é herdeira de diversas tradições narrativas: hebraica, cristã, rativo da história, pois, para ele, a história não pode romper o laço com
anglo-saxônica, germânica, ibérica. São paradigmas. Há também as obras- o "seguir uma história" e com a compreensão narrativa. Ela deixaria de ser
modelo: Ilíada, Édipo, Histórias. Esses paradigmas fornecem as regras história. A história não é uma narração ingénua. Para ele, a história, a mais
para a experiência narrativa posterior.
afastada fornia narrativa, continua ligada à compreensão narrativa. A am-
Na mimese 3, a narrativa é recebida pelo público. A narrativa tem bição científica da disciplina histórica tende a fazê-la esquecer a narração.
sentido pleno quando é restituída ao tempo do agir e do sentir da M3. É Mas as relações entre história e narrativa são indiretas e permanentes. A
ao leitor ou auditor que a narrativa ensina o universal. É a ele que ela ofe- história se inscreve no círculo hermenêutico. Ela é uma configuração nar-
rece o prazer do reconhecimento do vivido, provocando a catarse. A M3 rativa do tempo vivido, que emerge e retorna à vida. Explicar por que al-
é a interseção do mundo lógico do texto (M2) e o mundo vivido do re- guma coisa aconteceu e narrar o que aconteceu coincidem. Uma narrativa
ceptor. No entanto, ao se chegar a M3 tem-se a impressão de que se chega que não consegue explicar é menos que uma narrativa; uma narrativa que
ao que já se tinha em Ml. Seria vicioso o círculo hermenêutico? Para Ri- explica é uma narrativa pura e simples. A frase narrativa, que é a marca de-
coeur, a análise é circular, mas não viciosa. Há uma espiral sem fim: vai- finidora do discurso histórico, revela a presença do passado. Narrar é se-
se de Ml a M3 e retorna-se a Ml, e depois a M3. Objeta-se que M3 já guir e compreender uma história. Em Ricoeut, a história retorna à nar-
estava em M i e que a interpretação M2 é redundante. A M2 dá a M3 o rativa e à compreensão e renuncia às explicações abstratas e atemporais
que ela já tem de Ml! Se há história implícita na experiência, já há em Ml científicas.
uma estrutura pré-narrativa. Porque narrá-la em M2? E não haveria vio- Chartier se diz pronto a reconhecer, com Ricoeur, o pleno per-
lência na intriga ao sintetizar heterogeneidades? Para Ricoeur, contamos tencimento da história, em todas as suas formas, mesmo as mais estrutu-
história porque as vidas humanas têm necessidade de ser contadas, cons- rais, ao campo narrativo. Toda escrita histórica é narrativa (mise-en-intri-
truídas, formadas, para se obter a fruição do reconhecimento, a catarse. A gué). Vários críticos procuraram encontrar em historiadores cientistas a
experiência vivida não pode ser muda. A narrativa histórica emerge de um estrutura narrativa de suas histórias. Cornforth trata Tucídides como dra-
segredo vivido e volta a ele. A circularidade hermenêutica não é uma tau- maturgo, Gay percebe em Ranke um grande estilista, Ricoeur revela Brau-
tologia morta. O círculo da narrativa e do tempo não cessa de renascer. É del também como dramaturgo. A influência neonietzschiana de Foucault
o leitor que termina a obra, segundo a sua tradição particular de recepção. também levou a se dar ênfase ao catáter narrativo da história. Depois dele,
E a reescreve, reiniciando o círculo mimético. Toda escrita é apenas um ficou impossível considerar os objetos históricos como atemporais. A me-
esboço para a leitura. O texto é cheio de vazios, de descontinuidades, que dicina, o Estado, a loucura não são objetos universais. Seu conteúdo é par-
o leitor precisa completar, interpretar, contribuir. O leitor é co-autor. O ticular a cada época. Há práticas diferentes, objetivações históricas e não
texto torna-se uma obra na interação com o receptor. Na M3 há a inter- objetos universais. Só há práticas determinadas, instáveis, e não realidades
seçáo entre o mundo do autor e o horizonte do leitor. O leitor não recebe definidas de uma vez por todas. Os objetos da história são configurações
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singulares. E esra a revolução foucaulriana. A história passa a pensar seus mas dominada pela arte e pela filosofia. E preciso controlar o pensamento
objetos e sua escrita de outra forma, Contra a ideia do real corno apenas com a arte. A ciência deve perceber que há limites para o conhecimento,
econômico-social, afirma-se a equivalência dos níveis diferentes da reali- que há véus que não se tiram e que a verdade não vale qualquer preço. A
dade. A questão mais difícil é a. das articulações da realidade. Para Fou- ciência deve desistir do universal, do conhecimento absoluto. A hipertro-
cault, o real não é uma globalidade a ser reconstituída. Não há o real, mas fia do lógico leva a uma atrofia dos instintos. Nietzsche não propõe que
representações discursivas que o constituem. Os saberes que emergem das o conhecimento se torne apenas artístico, mas estabelece limites artísticos
relações de poder não são uns mais verdadeiros ou falsos do que outros, ao conhecimento. Para Nietzsche, a arte é o critério limite. Para Ricoeur,
mas "discursos", que dão uma forma transitória aos confrontos vividos. o fazer histórico é poético. Em ambos a arte da narrativa tetorna como a
A narrativa retorna, portanto, dominada por duas influências forma profunda da escrita da história.
principais: a do círculo mimético, da hermenêutica, e a das práticas e re-
presentações, das negociações instáveis, da genealogia nietzschiana. A his-
tória sofre também grande influência das linguagens da mídia, que recon- Bibliografia
duzem à forma narrativa. Nietzsche produziu uma crítica radical da
cultura moderna, que os neonietzschianos Derrida, Deleuze, Foucault ARENDT, H. Comprehénsion et politique. Esprít. Paris (42), juin 1980.
souberam resgatar em meados do século XX. Nietzsche se opôs ao conhe- BOURDÉ, G. & MARTIN, H. As escolas históricas. Mem Martins, Portugal: Euro-
cimento racional que predomina na cultura moderna desde Sócrates e Pla- pa-América, s.d.
tão. Para ele, o problema da verdade não se resolveria em uma epistemo- CARR, E. H. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
logia, pois o problema da ciência não se resolve no âmbito da própria CERTEAUX, M. de. Histoire etpsychanalyse, entre science etfiction. Paris: Gallimard,
ciência. Não se critica a ciência a partir de uma verdade mais científica, 1987.
sem ilusões, mais racional. Ele se opõe ao próprio projeto epistemológico:
-. A operação histórica. In: LÊ GOFF, J. Si NORA, P. História, novos problemas.
a ciência não se esclarece pelo exame interno. E muito menos a história!
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
Ele apresenta a arte como uma alternativa de racionalidade. A ciência erra
CHARTIER, R. História intelectual e história das mentalidades. In: História cultu-
ao opor verdadeiro e falso, essência e aparência, razão e instinto. Para os
ral, entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.
pré-socráticos, a arte tem mais valor do que a verdade. A arte é a anta-
gonista da verdade e é mais importante do que a ciência. A arte expressa -. Lê monde comme representation. Annales ESC. Paris, A. Colin (6), nov./déc.
as forças fundamentais, os instintos e a vontade. A arte serve mais à vida 1989.

do que a ciência. Ela revela a vontade do grande amor, o sofrimento, a in- COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Lisboa: Presença, 1981.
quietude, as ilusões, o vivido. O irracional ganha uma forma, uma esté- DILTHEY, W. A compreensão dos outros e de suas manifestações de vida. In. GAR-
tica. A arte representa a vida como poderosa e alegre. É um saber intui- DINER, P. Teorias da história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.
tivo. O artista sabe fazer, mas não tem o conceito. Sua visão é intuitiva. DOMINGUES, I. O fio e a trama. São Paulo: Iluminuras; Belo Horizonte: UFMG,
A ciência valoriza a clareza, a consciência, o saber, o conceito e desclas- 1996.
sifica o irracional como efeito sem causa, obscuro, enigmático, incerto. Só DUBY, G. Um nominalismo bem temperado. In: DUBY, G. & LARDREAU, G.
pode ser verdade o que é racional, consciente. A arte é superior à ciência, In: Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
porque não opõe verdade e ilusão, mas afirma integralmente a vida. A arte FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: Edusp,
afirma a vida; a ciência aniquila-a. A ciência não precisa ser aniquilada, 1998.

3 Chartier, 1989 e 1990; Foucault, 1979; e Machado, 1985. 41 Nietzsche, 1983; Duby, 1989; Machado, 1985; e White, 1994.
146
roui,\ TEORIA

FOUCAULT, M. Verdade e poder: Nietische, a genealogia e a história. In: Micro- CAPÍTULO 4


fisica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1979.

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NAGEL, E. Alguns problemas da lógica da análise histórica. In: GARDINER, P.
Teorias da história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984. A questão que será objeto de nossa reflexão pode ser formulada e re-
formulada das seguintes maneiras: o conhecimento histórico pode oferecer
NIETZSCHE, F. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. In: Nietzsche.
São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores.) verdade^. Que grau de verdade} Até que ponto o conhecimento histórico é
capaz de ser objetivol Quais as relações entre verdade histórica e interesse,
OLIVA, A. (org.). Epistemologia: a cientificidade em questão. Campinas: Papirus,
1990. crença, ideologia, valores, princípios filosóficos, tendência política? Qual a
dimensão da presença e da repercussão do sujeito na produção do conhe-
PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. A nova aliança. Brasília: UnB, 1997. cimento histórico? Quais as condições de possibilidade da verdade em his-
PROST, A. Douze leçons sur ihistoire. Paris: Seuii, 1996. tória? Verdade e mudança são compatíveis?

REIS, J. C. A história, entre a filosofia e a ciência. 2 ed. São Paulo: Ática, 1999. Historiadores e sobretudo filósofos já tefletiram sobre esses proble-
mas à exaustão. Esse é um questionamento tradicional da teoria da história,
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v. 1.
sobre o qual já se escreveu uma biblioteca, que reúne obras de autores de
TOPOLSKY, J. Metodologia de Ia historia. Madrid: Cátedra, 1982. muito prestígio: Hegel, Ranke, Dilthey, Marx, Weber, Ricoeur, Gadamer,
VEYNE, P. Como se escreve a história. Lisboa: Ed. 70, 1983a. Aron, Goldmann, Collingwood, Febvre, Bloch, Schaff, Marrou, Carr, Vey-
ne, De Certeau, Furet, Koselleck e vários outros. Quanto aos historiadores,
. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983b.
atualmente eles já se dizem cansados de discuti-las e, sem vencerem as apo-
. História conceituai. In: LÊ GOFF, J. & NORA, P. História: novos problemas. rias, que não vêem como produtivas, preferem, sob a influência dos Annales
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. e de Foucault, rejeitar essa discussão. Na Arqueologia do saber, Foucault afir-
WEBER, M. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: Moraes, 1987. ma que a história pós-1960 afastou-se da filosofia e de questões sobre si mes-
ma: racionalidade e teleologia do devir, relatividade do saber histórico, pos-
. A objetividade do conhecimento nas ciências e políticas sociais. In: Sobre a teo-
ria das ciências sociais. Lisboa: Presença, 1979. sibilidade de descobrir ou de constituir um sentido para o passado e para o
inacabado presente-futuro, verdade do conhecimento histórico etc. Os pro-
WHITE, H. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994. blemas epistemológicos e metodológicos da nova história são outros: a cons-
148
8í T E O R lA ) ; l <: F. C A RLO S R E [S

tituição de corpos coerentes e homogéneos de documentos, o estabelecimen-


fos, que merecem a atenção dos historiadores. Estes, mesmo os que prefe-
to de um princípio de escolha, a definição do nível e da escala de análise, a
rem a companhia das ciênciais sociais e fazem um discurso antifilosófico, ja-
especificação de um método de análise, a delimitação dos conjuntos e sub-
mais conseguiram se livrar da filosofia como gostariam. Aliás, Foucault é
conjuntos que articulam o material estudado. A atividade histórica hmita-se
também filósofo. A história foi e será sempre devedora das reflexões sobre a
a elaborar um material documental, sem usá-lo como pretexto para o levan-
história de Viço, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Dilthey, Sartre, Heidegger,
tamento de questões metafísicas, que, na verdade, têm o objetivo de manter Hannah Arendt, Karl Lõwith, Ricoeur, Derrida, Deleuze, Foucault e ou-
a continuidade da consciência, preservando a sua memória, protegendo-a tros. As grandes polémicas sobre a história e a possibilidade de seu conhe-
contra as suas rupturas, esquecimentos, defasagens... A problemática filosó- cimento foram protagonizadas por filósofos: Viço versus Descartes, Man;
fica sobre a história queria levar o sujeito à totalização de si. O sujeito temia versus Hegel, Dilthey versus Comte e Mill, Nietzsche versus Sócrates-Platão-
a descentralização, a perda da soberania e queria se salvar em uma ilusória Cristianismo-Hegel, Foucault versus Ricoeur...
história global, que o garantiria contra suas perdas e separações...
Dado o volume significativo e a importância indiscutível das obras
Sob a influência dessa argumentação (ainda filosófica) e das ciências
e dos autores que discorrem sobre esse tema, o das relações entre história
sociais, os historiadores do século XX preferiram evitar as ditas questões fi-
e verdade (sendo algumas obras já clássicos consagrados, embora pouco
losóficas sobre o conhecimento histórico. Optaram por uma epistemologia
frequentadas), não ousarei acrescentar uma tese nova sobre um tema tão
prática: observar o que a comunidade faz e definir o conhecimento e a ver-
nobre. Minha intenção, que não deixa também de ser nobre, é organizar
dade possíveis pela própria prática histórica. Não há que prescrever ou nor-
algumas reflexões sobre as relações entre história e verdade, para estabe-
matizar e, sim, praticar segundo os critérios estabelecidos pela comunidade
lecer, sem apagar a divergência entre elas, alguma base sólida. Esse esforço
de historiadores. O critério a ser observado é o da intersubjetividade prati-
talvez nem supere a mera contraposição de excertos, mas tem a ambição
cada pela comunidade dos historiadores — o único filtro competente e au-
de ser um estudo reflexivo, isto é, "para trás", "intro-retrospectivo", um
tocontrolável para decidir entre o relevante e o irrelevante, o rigoroso e o fa-
retorno crítico/contrastante ao que já se pensou. Um esforço de reconhe-
buloso em história. E se esta muda, é normal e desejável que se mudem os
cimento, de mapeamento e organização de algumas posições consolidadas
critérios e a prática. O conhecimento histórico encontraria validade na ope-
e clássicas sobre o tema. Hanna Arendt legitima esse esforço ao considerar
ração concreta de historiadores concretos e não em uma definição ideal e
que o pensamento crítico só é possível quando os pontos de vista dos ou-
apriorística, atemporal, do que deveria ser.
tros estão abertos à inspeção. O pensamento crítico torna presente o outro
É provável que os historiadores atuais tenham razão. Mas, como
pela força da imaginação. Pensar com mentalidade alargada significa trei-
os historiadores sabem melhor do que todos, esta é apenas uma posição
nar a própria imaginação para sair em visita. Esclarecer-se é conhecer ou-
a.tua.1 e não a verdade. As posições se alteram com alguma rapidez em re-
tros pontos de vista, é levar o outro em consideração. Assim formamos um
lação ao conhecimento histórico. Já há alguns nostálgicos das relações
juízo imparcial que nos orienta na açao. A imparcialidade não é obtida
entre a história e a filosofia e de seus temas. Os americanos do linguistic
por um ponto de vista mais elevado, que resolve a disputa por estar acima
turn já se interrogam sobre o real c esboçam uma reflexão epistemológica
da confusão. E o efeito de se focalizar um objeto por todos os lados...
de ripo filosófico sobre a história.
Neste capítulo, pretendo retornar à tradição e retomar essa proble-
mática, pois não considero irrelevantes as questões acima e, sobretudo, não O problema
desvalorizo toda a produção intelectual que elas engendraram. Há algumas
obras importantes que as tomaram para reflexão, principalmente de filóso- Antes de considerar as várias posições sobre as relações entre his-
tória e verdade, no entanto, talvez seja melhor entender o problema for-
1 Foucault, 1986.
2 Noiriel, 1996.
3 Arendt, 1993.
150
HISTORIA T E o p. i
l OS É CARLOS R Kl S 151

mulado. O tom dos diversos autores é invariavelmente crítico em relação r Se o sujeito é uma subjetividade e o objeto é uma subjecividade, não há
à possibilidade de uma verdade histórica. Mas, por que a dúvida quanto à distanciamento entre sujeito e objeto, mas mistura, aproximação, in-
possibilidade de uma verdade histórica? O que impediria ou dificultaria timidade, fusão.
ao historiador a obtenção da objetividade? Os argumentos céticos em re- r O conhecimento histórico é "compreensivo", empático, intuitivo, afe-
lação à possibilidade de se conhecer a história são numerosos. Os histo- tivo, irracional, por ser carregado de subjetividade.
riadores, no entanto, em geral se mantêm surdos às objeções feitas ao seu
Y O conhecimento histórico não produz explicações causais, não desco-
saber. Ou melhor: não deixam de fazer seu trabalho só porque alguns pen-
bre leis e não faz previsões; é um impossível "conhecimento do único,
sadores, exteriores até à sua disciplina, lhes dizem que o que fazem é im-
singular e irrepetível".
possível ou precário quanto ao rigor do resultado. Ou melhor: não acei-
T Como conhecimento da mudança, do tempo, a história não encontra
tam que uma legislação exterior, feita por não-historiadores, venha arro-
invariantes; não há motor da história, primeiro motor ou causa final.
gantemente estabelecer o que seria um conhecimento histórico legítimo.
E têm razão em defender a autonomia de seu esforço e em reivindicar para r E um conhecimento indireto do passado, baseado em testemunhos e
a própria comunidade dos historiadores o direito e a competência de se- vestígios. A história não mostra o vivido ao vivo, diretamente.
parar o legítimo do ilegítimo em história. Essa posição, sem dúvida justa T Não se sabe se as afirmações sobre o passado referem-se a ele, pois uma
e sustentável, não é, porém, incompatível com a escuta e o diálogo com os afirmação fictícia tem a mesma estrutura; a linguagem que o historia-
críticos exteriores à história. Esse diálogo pode ser fecundo, desde que não dor utiliza é a mesma da ficção e da fábula.
leve o historiador à crise ou à subserviência. Não se pode avançar de modo
T As fontes do historiador são lacunares, manipuladas. O passado é ba-
consistente ignorando as objeções que nos são dirigidas. Deve-se conhecê-
sicamente silencioso. O historiador pode criar fontes?
las e enfrentá-las. É possível arrolar uma dezena (e até mais) de argumen-
tos céticos em relação ao conhecimento histórico. O pirronismo em re- T O conhecimento histórico é pós-gnóstico e não prognóstico — vai das
lação ao conhecimento histórico é tão antigo quanto Heródoto, para mui- consequências às causas. É um conhecimento pós-evento, constatador.
Está sujeito e até dominado pela falácia fost hoc ergo f rof ter hoc...
tos um grande mentiroso! Eis, portanto, algumas objeções à possibilidade
da verdade em história: T As afirmações sobre o passado são metafísicas: inverificáveis de modo
conclusivo e falseáveis. São interpretações que se equivalem.
T O conhecimento histórico está ligado à época de sua produção, ao pre- T A história é uma construção do sujeito — ele reconstrói o passado,
sente do historiador, que é sempre novo. Se o presente é sempre novo atribui-lhe um sentido, sob a influência de suas crenças, convicções,
e reinterpreta de forma nova o passado, a verdade do passado será tam- ideias e personalidade.
bém sempre nova, pois dominada pela novidade do presente.
De Aristóteles a Descartes e aos neopositivistas contemporâneos, eis
T O conhecimento histórico tem como objeto não uma realidade exte- o que afirmam os céticos sobre a história. A linguagem do historiador seria
rior ao sujeito, reprodutível, manipulável, passível de experimentação doente e incurável. A história, enfim, produziria um conhecimento domi-
em laboratório, mas o mundo humano, caracterizado por intenções e nado pela subjetividade, pela mudança, pela perspectiva, pelo presente, pelo
condicionamento pessoal e social. Seria um conhecimento instável, refeito,
ações, e ao qual pertence o próprio sujeito. Seu objeto é subjetivo.
discutível, inconsistente, com interpretações que se sucedem, transitórias e
esquecíveis. Pior: querendo evitar o anacronismo, considerado o seu maior
4 Harcog, 1986; e Momígliano, 1983. pecado, os historiadores o praticariam constantemente. O conhecimento
152
Hl i s 'i o r> i A J o sí CARLOS REIS

histórico estaria dominado pelo anacronismo, pelo subjetivismo, pelo rela- cão, um ponto de vista relativo e quer ser verdadeiro. Se esáe dilema não
dvLsmo, pelo presentismo, pelo ideologismo, pelo intuicionismo, pelo psi- for superável, como torná-lo suportável e até fecundo e produtivo?
cologismo, pelo irracionalismo../
A meu ver, não há razão para ceticismo. E esta aporia, que torna o
Mas, se a história é acusada de não produzir um conhecimento conhecimento histórico original e fecundo. E ela não é apenas suportável,
objetivo, é preciso então saber: o que é conhecimento objetivo*. "Objeti- é um desafio ao mesmo tempo insuperável e irrecusável! Nem a física, aliás,
vo", nos dicionários, é o que existe fora e independentemente do sujeito. atende àquelas exigências da objetividade plena. A objetividade plena é
Para Popper, objetivo seria um conhecimento independente de capricho uma utopia. Só um olhar absoluto, o de Deus, que tudo vê e sabe (e, es-
pessoal e justificado, submetido a prova e compreendido por todos; ele pera-se, que não mantenha uma atitude cognitiva científica), ou um olhar
estabeleceria regularidades intersubjetivamente comprováveis. Seria um mecânico global e muito bem ajustado (quem o ajustaria?) poderia aten-
conhecimento que põe em ordem, compreende e faz compreender. Seria dê-las. O físico também intervém na construção do seu objeto — selecio-
sobretudo um conhecimento estável, pois submetido a regras conhecidas na, delimita, cria processos de análise, levanta hipóteses. A física e a ma-
por todos, a um paradigma. O conhecimento objetivo seria aquele que temática são criações humanas e estão submetidas às condições sociais e
é válido para todos, que é isento de afetividade e parcialidade, que é vá- históricas.
lido de modo necessário, universal e atemporal; ele apresentaria dados, O conhecimento objetivo assim entendido, afirma-se, seria capaz
números, medidas; seria sem valores, paixões, sem tendência, sem des- de oferecer a verdade. Contudo, o que seria a verdade*. Este talvez seja o
vios e digressões, sem emoções. O conhecimento objetivo seria analítico, tema filosófico por excelência. A reflexão sobre a verdade é difícil, apo-
descritivo, problematizante, apolítico, exterior ao sujeito, lógico, sub- rética, um esforço sisificamente reiniciado. Para uma revisão simplificada
e breve: a discussão sobre a verdade possui dois níveis: o ontológico e o
metido a regras, intersubjetivo, válido de modo necessário e universal;
epistemológico. Na perspectiva ontológica, a verdade seria a expressão do
produziria juízos de fato e analisaria, constataria, descreveria, demons-
traria, calcularia, mediria dados empíricos. ser-em-si, do-que-sempre-é, do-não-afetado-pela-mudança. Seria a coin-
cidência da palavra com a essência do ser; a palavra humana pronunci-
Se assim é, cumpre admitir que a história não produz conheci- ando o eterno,'a palavra como desvelamento e revelação do ser-enquanto-
mento objetivo! Pelas 12 razões anteriores, e outras não mencionadas, o ser. Esta é uma perspectiva metafísica da verdade. O ser é transcendente
conhecimento histórico é marcado pela emoção, pela intuição, envolve mistério, está além do tempo e das aparências. O ser-enquanto-ser estaria
convicções, juízos de valor, tendências, interesses. Não possui um valor acima das possibilidades humanas de conhecer? A sua verdade infinita
cognitivo estável, necessário e universal. A presença do sujeito e do pre- seria alcançável pelo pensamento humano finito? Os metafísicos se divi-
sente são fortes e incontroláveis para permitir, qualquer construção estável. dem: os gnósticos acreditam que se possa conhecer a verdade última, que
Os historiadores, então, mentem quando escrevem obras diferentes sobre o ser possa ser pronunciado em linguagem humana; os agnósticos o con-
os mesmos objetos? Quando reescrevem constantemente a história? Ko- sideram insondável e impronunciável — restaria ao homem a sua con-
selleck (1990) formula esse problema assim: a história não pode negar que templação intensa e muda.
precisa sustentar duas exigências que se excluem — produzir enunciados Kant procurou superar essa concepção metafísica da verdade ao
verdadeiros e admitir a relatividade de suas proposições. E uma aporia. fazer uma pergunta mais radical, ou seja, mais filosófica. Como pode
Todo conhecimento histórico é ao mesmo tempo uma tomada de posi- haver verdade? Para saber se há verdade é preciso saber como o conheci-
mento é possível. Sua questão crítica é essa: em que condições um dado
conhecimento se dá de uma forma e não de outra? Quem é o sujeito capaz
Carr, 1978; Hegenberg, 1965; Hempel, 1984; Schaff, 1978; Topolsky, 1982; e Veyne,
5
1983a e 1983b.
6 Popper, 1993.
7 Chatelet, 1994.
154 JOSÉ C ARLO S R f. l S 155
HISTORIA TEORIA

de conhecer? Como se deve conceber o objeto-realidade desse conheci- Dessa polémica sobre a verdade, breve e imprecisamente esboçada,
mento? Para Kant, o conhecimento é resultado de uma relação cognitiva, e que persistirá enquanto os homens durarem, tomaremos como referência
que inclui um sujeito e um objeto. O real conhecido é uma produção do essencial a tese kantiana: a verdade é o resultado de uma relação cognitiva,
sujeito pensante. A exterioridade em si, essência numênica, é incogiioscí- sendo formulável em linguagem humana. Ela depende e decorre de uma re-
vel. Embora o homem tenha a ambição de conhecer os princípios, a razão lação sujeito-objeto, da iniciativa construtiva do real pelo sujeito. Não há
primeira, a essência numênica, ele só conhece o ser fenomenal, aparente. uma verdade que se auto-apresente e que dispense a construção e o discurso.
Ele só conhece objetos que se dão a uma experiência possível, só sendo Se há discurso, há sujeito. Se há sujeito, há construção. As posições meta-
"verdadeiro" o que pode ser formulado em linguagem humana, verificável física gnóstica (é possível conhecer e pronunciar o ser) e realista (o discurso,
por uma experiência criticada e controlável. "Verdade" refere-se ao co- embora seja de origem subjetiva, pode se referir ao ser e articulá-lo) parecem
nhecimento humano possível e controlável, lógico, racional, cogente, co- ingénuas quanto à presença do sujeito no conhecimento.
municável. A noção de verdade refere-se a um conhecimento humano, se-
guro e dizível. A razão deve estabelecer os seus limites para conhecer e,
enquanto pura razão, renunciar ao inefável saber absoluto. Qual o alcance da verdade histórica? Posições
Kant opôs uma perspectiva epistemológica à perspectiva metafísi-
ca sobre a verdade. Para ele, a verdade é aquilo que um sujeito humano, Entre os historiadores, há metafísicos, que vêem a história como a
em linguagem humana, pode formular com alguma segurança sobre ob- expressão da Providência Divina, como a objetivação do Espírito, como a
jetos bem delimitados. Não se tem mais a ambição de se atingir o ser em realização da Razão. A verdade histórica residiria no reconhecimento dos
sua integralidade, essencialmente. A verdade é o conhecimento que pode desígnios da Providência, dos estágios do caminho do Espírito para a liber-
ser estabelecido de forma comunicável e controlável em uma relação cog- dade, do progresso das Luzes. Mas, a partir do século XIX, uma história ci-
nitiva entre um sujeito e seu objeto. A verdade é um discurso seguível entífica não quis mais se apoiar em pressupostos metafísicos. A história quis
sobre objetos circunscritos e construídos por um sujeito. Entretanto, ape- criar métodos e técnicas para o controle humano do conhecimento. A ver-
sar de Kant, nessa perspectiva epistemológica, as duas posições metafísicas dade histórica é dos homens e deste mundo. Ao historiador cabe estabelecer
anteriores sobreviveram, disfarçada e inconfessadamente, com outros ter- as bases epistemológicas do conhecimento que produz. Se a verdade é es-
mos. A posição "realista" acredita que, apesar de submetido a condições tabelecida em uma relação sujeito-objeto, qual a atitude noética ideal que o
subjetivas, o real poder ser reconstituído em si, em sua "realidade positi- sujeito deveria assumir para obter a verdade do seu objeto? Como o sujeito
va". Retorna a ideia metafísica da possibilidade da coincidência entre dis- deve admitir e assumir sua posição na relação cognitiva e ao mesmo tempo
curso e ser. Admite-se, por um lado, que o objeto é delimitado e cons- controlá-la? Se a verdade é uma construção do sujeito e aparece em seu dis-
truído pelo sujeito, mas, por outro, que este deve atingir, e pode esperar, curso, como limitar seu alcance e como definir até onde o sujeito pode ir?
o conhecimento do real enquanto tal. Só assim estaria sendo objetivo, isto Quanto ao papel do sujeito na relação cognitiva, quanto à delimitação e à
é, estaria se referindo ao real em sua verdade. Os "nominalistas" não definição que faz do real, quanto ao controle do resultado dessa relação,
crêem nessa possibilidade de se tocar o real em si. Todo discurso seria uma quanto às condições de possibilidade dessa relação, os historiadores se divi-
construção subjetiva sobre o real. O real é "nomeado" pelo sujeito, que diram em grupos e escolas. Vamos examinar as teses sobre a verdade histó-
passa a operar com esse real construído. A verdade é instituída por uma rica em alguns autores, escolhidos por terem se tornado referências incon-
subjetividade. O discurso refere-se ao seu objeto, mas jamais coincide com tornáveis no passado e no presente. São eles: Ranke, Weber, Marx, Ricoeur,
ele; e nem espera ou pretende isso. Marrou, Foucault, De Certeau, Duby e Koselleck.

8 Chatelet, 1994. 9 Chatelet, 1994.


156 H l S T O R l A. JOSÉ CARLOS REIS

Para abordá-los, estabeleci uma aproximação e uma diferenciação entre pensamento e objeto pensado, entre sujeito e objeto. Essa posição é
artificiais entre eles e, por isso mesmo, discutíveis. Dividi-os artificialmen- definida como mecanicista, objetivista. Pretende-se um "conhecimento
te em dois grupos: a) realistas metafísicos: Ranke, Weber, Marx, Ricoeur e reflexo", sem subjetividade especulativa. A história pretende se opor ao
Marrou podem ser agrupados sob esta denominação, pois, embora de mito, à poesia, à fábula, e ser investigação, pesquisa, busca da verdade. O
modos bastante diferentes, referem-se a um real, universal e conhecível; e método crítico é o instrumento para produzir verdades. Duvida-se do do-
b) nominalistas: Foucault, De Certeau, Duby e Koselleck representam o cumento e do testemunho, mas para torná-los "confiáveis", expressões do
grupo que combate o realismo metafísico dos autores anteriores e podem real em si. Teme-se dar fé, evita-se ser crédulo, para não recair no inve-
ser assim denominados porque não se referem a um real em si e não se in- rossímil. O historiador está proibido de mentir e não tem "licença poé-
teressam por um inatingível universal. Para eles, o conhecimento é sempre tica" para alterar a forma da verdade.
parcial e discutível. Admitem e assumem o relativismo, a historicidade do
Essa posição se fortaleceu no século XIX, embora tenha inaugu-
objeto e da presença do sujeito. O conhecimento histórico é uma cons-
rado o discurso histórico. No século V a.C., Heródoto oferecia versões di-
trução de sujeitos determinados, dominados por códigos linguísticos, por
ferentes dos fatos e Tucídides era mais positivista, mas ambos queriam
práticas especializadas, por regimes de verdade, por poderes institucionais,
falar do realmente acontecido. O historiador deve relatar o que "viu" ou
que são finitos e históricos. Suas teses sobre a verdade histórica serão apre-
o que ouviu de "quem viu". Ele deve ter olho de coruja e ver no escuro.
sentadas brevemente, pois não se trata aqui de discuti-las separada e apro-
Seu pensamento deve ser espelho, cópia fiel, pintor sem carregar nas tin-
fundadamente, mas de criar um "poliedro de posições", que torne visível
tas, sem deformar ou embelezar; ele deve apresentar a verdade nua, em es-
sua diferença de perspectiva acerca de uma mesma questão. Convém re-
tado natural, sem ornamentos e sem véus. A história deve oferecer uma
lembrar: este pretende ser um estudo reflexivo, retrospectivo e crítico
imagem exara, uma cópia idêntica, uma representação adequada da rea-
sobre o que já se pensou sobre as relações entre história e verdade.
lidade dos fatos. A verdade nua, sem ornamentos, sem retoques, sem ne-
nhuma marca do sujeito. A história não é uma criação do sujeito, não é li-
teratura — é o vivido-real pensado.
Ranke: para obter a verdade, o sujeito realmente
se anula ou cria uma estratégia de autocontrole, Os críticos dessa concepção da verdade histórica, para invalidá-la,
tendem a caricaturá-la. Afirmam que o sujeito é passivo, que a relação cog-
que, na verdade, intensifica a sua presença? nitiva é mecânica e que o sujeito torna-se vítima do seu objeto. Na verdade,
A escola histórica metódica, dita positivista, que inclui autores e sem querer validá-la, mas apenas compreender sua estratégia, o sujeito não
alemães como Ranke e Niebuhr, c franceses como Langlois e Seigno- desaparece da relação cognitiva, pois não há conhecimento sem sujeito. O
sujeito, é claro, não conseguiria jamais se anular, pois, então, não haveria co-
bos, sustenta que o passado é real e que pode e deve ser restaurado em
nhecimento, não haveria discurso. O sujeito não se anula, na verdade. Ele
sua integralidade. Mesmo se o sujeito o constrói, essa construção deve
cria uma estratégia de autocontrole e autolimitação. Trata-se de uma estra-
ser positiva, deve ser uma "reconstituição". Ingénuos quanto ao aspecto
tégia e, portanto, de uma ação. Ele se auto-amordaça, enquanto manipula e
ainda metafísico de seu esforço e ostentando um discurso antimetafísico,
elabora seu objeto. Ele se oculta. Ele se cala, se esconde, finge não ver e es-
eles afirmam que querem conhecer os fatos em sua realidade, "tal como se
cutar, não altera a fisionomia, não aprova ou desaprova — mas observa in-
passaram". Querem obter um conhecimento válido para todos, cumula-
tensamente, desejando produzir uma "imaculada observação". Ele como que
tivo e tendendo ao absoluto. O sujeito se anula e quer "refletir" seu objeto quer deixar seu objeto à vontade para se revelar plenamente, sem se intimi-
como um espelho, constatando-o e sem julgá-lo. Busca-se a identidade

10 11 Reis, 1999; Bourdé & Martin, 1983; Gay, 1990; e Holanda, 1979b.
Holanda, 1979a; e Langlois & Seignobos, 1946.
12 Domingues, 1996.
158 159
JOSÉ CARLOS REIS

dar com sua presença. Ele não quer intimidar, inibir, constranger, silenciar Quanto à busca da. verdade, a subjetividade fragmentada em esferas
seu objeto. Sua atitude é construída, é uma escolha do sujeito, é um traba- pode ser dividida em duas: uma de tipo transcendental (Kant), capaz de
lho penoso de autocontrole. O sujeito não desapareceu, pois é insuprimível. construir e organizar o real em categorias lógicas e raciocínios demonstra-
Um "sujeito oculto" náo é uma ausência, mas uma presença astuciosa. Ele tivos e cogentes, movida pela busca da verdade, que visa o entendimento do
adotou uma atitude noética: finge-se de morto, mas observa minuciosa, cui- real, e outra de tipo prático e valorativo, moral, polídco-afedva, que constrói
dadosa e tecnicamente o seu objeto. O que ele quer é a verdade do seu ob- t organiza o real de forma voluntariosa, segundo valores e interesses, movida
jeto, a pura verdade, o seu segredo, e acredita que, se adotar tal atitude, po- pela busca do bem-estar político-econômico-social. A subjetividade lógica
derá colhê-la plena de sua própria boca.
aspira a conhecer a ordem empírica da sociedade e não a produzir impera-
Atitude ingénua, mecanicista, objetivista? Numa perspectiva mais tivos éticos. Ela não diz o que se deve moralmente fazer, mas estabelece tec-
crítica, talvez, uma atitude hipercrítica, atenta, rigorosa, astuta, de um es-
nicamente o que se pode fazer. Ela oferece o conhecimento dos meios e cus-
pírito que, em silêncio, retendo o fôlego e muito ativo, observa intensa-
tos para se atingir fins. A que age, a subjetividade voluntariosa, pode pesar
mente o real em suas evoluções mais discretas e objetivas, "exteriores"...
as consequências desejadas e indesejadas de sua iniciativa. Uma produz juí-
zos de fato; a outra, juízos de valor. Uma quer conhecer a sociedade tal
como ela se apresenta, em seu ser; a outra busca um sentido para a história,
Weber: para obter a verdade, o sujeito
reflete sobre o que esta deveria ser. A primeira se dirige ao entendimento,
se d/vide em esferas autónomas — buscando o consenso, a comunicação intersubjetiva; a segunda, ao senti-
a científica e a político-moral mento, querendo convencer, criar seguidores e agir.
Weber não propõe a anulação da segunda subjetividade para garantir
Weber é neokantiano e seria difícil defini-lo como realista meta-
a verdade, mas a sua identificação e diferenciação. São esferas distintas, mo-
físico. Talvez fosse até melhor considerá-lo um realista transcendental. Ele
vidas por lógicas diferenciadas. Ambas produzem verdade à sua maneira: uma
náo acredita que se possa abordar o real em si, mas em seus aspectos e re-
lações selecionados pelo sujeito. Nunca se tem o real integral, mas aspec- estabelecendo corretamente juízos de fato, recorrendo a modelos, conceitos,
tos, partes, relações, que o sujeito seleciona e constrói. Se há um aspecto tipos, regularidades, compreensão explicativa, documentação variada e bem
talvez metafísico em seu pensamento é a sua aceitação da possibilidade de tratada; a outra escolhendo valores mais universais e produzindo ações eficazes
um discurso universal sobre o real. Ele acredita que o sujeito, em sua ati- que os realizem. As duas subjetividades não podem ser confundidas pelo su-
vidade cognitiva, seja capaz de construir de forma adequada o seu objeto, jeito. Sua indiferenciação leva à perda do conhecimento objetivo e da verdade.
isto é, seja capaz de, mesmo construindo-o, dizer a sua verdade, estabe- O sujeito não pode misturar a argumentação científica com a argumentação
lecer enunciados estáveis e intersubjetivos sobre ele. Mas, para isso, o su- política. O erro viria dessa indiferenciação das suas lógicas subjetivas especí-
jeito precisa dividir-se em esferas com lógicas autónomas. Cada esfera da ficas. Na subjetividade científica, adversários políticos podem chegar a con-
subjetividade constrói o real de um modo particular, com a sua lógica es- senso e cientistas de culturas diferentes podem chegar aos mesmos resultados.
pecífica. A subjetividade que busca a "verdade do real" é uma subjetivi- Utilizando categorias lógicas, conceitos, tipos ideais, a subjetividade "trans-
dade lógica. Para ser eficiente, o sujeito tem que diferenciá-la de suas es- cendental" chega a atingir verdades históricas válidas para todos. Ela não ex-
feras afetiva, política, moral, cultural, social, religiosa... A subjetividade pressa valores particulares, não defende interesses, não ataca adversários — é
divide-se em várias, que mantêm com o real uma relação particular, cons- um conhecimento empírico, universal e necessário, objetivo, válido para to-
truindo-o segundo seus interesses e intenções e com as categorias e ins- dos. Mas ambas as esferas são subjetivas, isto é, são construções, escolhas e
trumentos que lhes são específicos. projetos do sujeito. E nenhuma é primeira em relação à outra, a não ser em

13
Weber, 1987 e 1992. 14 Weber, 1987 e 1992.
160
JOSÉ CARLOS REIS 161

sua esfera específica. Na esfera político-afetiva-moral, a subjetividade volun- de vista parcial e que não pode produzir um discurso universal. O uni-
tariosa predomina sobre a lógico-transcendental; na esfera científica, a subje- versal puro é impensável, pois não há sujeira capaz de ter uma visão uni-
tividade lógico-transcedental predomina sobre a voluntariosa. versal, global, da realidade social. E, quando o discurso se apresenta de
Como modelo, a proposta de Weber é extremamente sedutora. O forma universalizante, sempre esconde uma paixão e um interesse parti-
sujeito não se anula nem de fato, nem estrategicamente. Ele admite e assu- cular. Se se trata sempre de paixões e interesses particulares, por que a
me sua presença na construção do conhecimento histórico. Mas procura se forma universalizante? Marx considera que a apresentação do particular
autoconhecer, diferenciando suas intenções e modos de operação do seu es- sob a perspectiva do universal é uma estratégia de dominação. A burguesia
pírito. Reconhece a legitimidade das esferas distintas e não sobrepõe qual- produz verdades dominantes desse modo, apresentando sua subjetividade
quer delas às outras; reconhece lógicas específicas, eficazes em sua área de como a subjetividade humana universal. Seu discurso universalizante visa
atuação, se aplicadas com o senso da diferenciação. A questão é: trata-se de tornar dominantes os seus interesses e valores particulares. Ao perceber
um modelo praticável? A subjetividade tem condições de exercer sobre si esse movimento como uma estratégia para ganhar posições na luta de clas-
mesma um tal controle? Ou melhor: ela gostaria de exercer sobre si mesma ses, Marx, que pode parecer paranóico, mas não ingénuo, a denuncia.
tal controle? Uma das características mais importantes da subjetividade é Para ele, a história que constrói uma verdade universal usa o discurso ci-
sua capacidade de dissimulação, de embuste, e há indivíduos especialmente entífico para legitimar a dominação de uma classe sobre outras. Ele pro-
talentosos em fazer parecer lógico o que é puro sentimento e interesse, pai- cura então revelar o que a subjetividade burguesa oculta sob véus univer-
xão; em fazer parecer pura paixão o que é lógico. Onde termina a paixão e sais e propõe um outro critério de "verdade" para a história.
começa a lógica? A subjetividade seria capaz de se dividir honestamente, sin- Para ele, se a sociedade é dividida, conflituosa e vive a tensão de clas-
ceramente? A linguagem pode traduzir a paixão em lógica e vice-versa. ses, nenhuma classe pode falar em nome da outra, pois são antagónicas.
Quem seria mais ingénuo: Weber ou Ranke? A intersubjetividade não está Cada classe organiza o mundo histórico em categorias que preservam os seus
protegida do consenso — de um acordo aparentemente racional, mas com interesses. O critério que garantiria a verdade do conhecimento histórico
motivações político-morais. O sujeito transcendental poderia se afastar da seria a sua vinculação à classe revolucionária. Esta não tem interesse em es-
vida e se tornar um desencarnado operador de categorias e documentos? conder, camuflar, inverter, encobrir a exploração. Ao contrário, tem inte-
resse em revelar, desnudar, (des)cobrir a exploração social, em denunciar o
poder que a mantém e seus modos e artimanhas para se autolegitimar. A
Marx: para obterá verdade, o sujeito verdade, para Marx, submete-se ao "interesse social" — há um interesse so-
reintegra as esferas cognitiva e moral, cial em falsear a consciência da realidade e há um interesse social em ex-
pressar a sua verdade. Houve um tempo em que a burguesia foi a portadora
dominadas pelo interesse social desse interesse social de verdade; depois, ela passou a ter interesse no uni-
versal! Agora, o interesse social de verdade mudou de lugar, de sujeito e de
Marx considera essa divisão da subjetividade uma impossibili- projeto sociais. A verdade, por se ligar a interesses sociais, não é universal —
dade. É simplesmente irrealizável. Para ele, o historiador não pode es- é de um grupo social, de uma classe revolucionária. A verdade revolucio-
conder suas opções e escolhas e a perspectiva de classe que orienta seu nária é sustentada por um grupo social contra outro. Nesse sentido, a ver-
pensamento. Este é inseparável da vida concreta, das relações sociais de dade revolucionária não é universal — é parcial e histórica, mas objetiva.
produção, não tendo uma história interna, puramente lógica, alheia às Parcial, pois de um grupo de homens; histórica, pois não-definitiva e abso-
tensões e lutas sociais. Para Marx, o sujeito do conhecimento deve assumir luta; e objetiva, pois social e, portanto, não-individual e caprichosa. O ponto
integralmente sua subjetividade e admitir que sempre sustenta um ponto de vista revolucionário é parcial e histórico, mas objetivo, pois condicionado
socialmente. A verdade revolucionária, embora seja parcial e histórica, não
15 Weber, 1987 e 1992.
16 Marx & Engels, s.d.; e Marx, 1977. 17 Schaff, 1978; e Lowy, 1978.
162 H i s T ó R i A &: TEORIA JOSO

é individualista e subjetivista, mas social e objeciva. O sujeito da verdade his- humano, mas em outra direção. Para eles, a história é capaz de oferecer
tórica, em Marx, é social. Esse sujeito produz um conhecimento histórico a verdade do seu objeto, o mundo humano universal. Mas deve-se es-
objetivo, embora parcial e relativo, pois social. Aliás, para ser objetivo e for- perar da história uma objetividade específica, diferente da das ciências
mular a verdade, o sujeito precisa virar as costas a toda pretensão de uni- naturais. Há tantos níveis de objetividade quantos procedimentos me-
versalidade e assumir e revelar sua subjetividade social, parcial e relativa.
tódicos. Não há um único modelo de cientificidade, mas vários. A ob-
Esta não ameaça o conhecimento objetivo. Pelo contrário, precisa ser reve-
jetividade histórica é própria à história. É um tipo de objetividade que
lada e explicitada para que se obtenha o conhecimento realmente objetivo,
aquele que não esconde o interesse particular sob o universal. exige a presença da subjetividade. Mas os conceitos de "sujeito" e "sub-
jetividade" de ambos é particular.
Contudo, pode-se denunciar também em Marx a nostalgia da me-
Para Ricoeur, a condição de sujeito não é privilégio do historiador
tafísica do realismo universal. A verdade é social e histórica, mas sobre-
que conhece, mas também do seu objeto, os homens passados.1' A his-
tudo revolucionária. A classe revolucionária, que a burguesia foi um dia,
tória é dos homens — e isso inclui os homens passados (o objeto-sujeito), o
detém a verdade porque é portadora do interesse social universal. Ela não
historiador (sujeito do conhecimento 1) e seus leitores (sujeitos do conheci-
tem interesse em esconder a realidade, em preservar privilégios e vanta-
gens. Seu interesse (particular) coincide com a busca da verdade (univer- mento 2). O historiador constrói a subjetividade não apenas dele e do leitor,
sal), pois se refere à realidade enquanto tal e é articulada por uma classe mas também da humanidade. O conhecimento histórico é uma reflexão,
que reúne a maioria dos homens. A subjetividade em Marx é ambígua: as- uma meditação sobre o viver humano no tempo. A história é o meio pelo
sume a sua particularidade, a sua vontade, a sua tendência, os seus afetos qual os homens tomam consciência de sua presença no tempo e estruturam
e paixões, o seu interesse de classe e os torna universais. Conhecer é tomar essa experiência. Ricoeur constrói uma metafísica idealista, que estabelece
partido; e a verdade universal pertence a um partido! Para ser objetivo, como real uma subjetividade humana universal que, por ser temporal, não é
para se referir ao real social, o historiador precisa tomar partido. Mas ainda integral e total. Essa subjetividade se expressa em eventos, ações, in-
Marx não assume integralmente sua particularidade, pois sustenta que tenções, criações, projetos particulares, mas que se tornam, pela mediação do
essa subjetividade parcial, histórica, relativa, finita é a base do real e do historiador, consciência universal de si. A história constrói uma subjetividade
universal! O ponto de vista da classe revolucionária é mais real e mais uni- de alta categoria: uma comunicação universal entre os homens, uma trans-
versal, é a verdade histórica encarnada, o que significa um retorno ao rea- parência dos espíritos entre si, uma interconexão do eu com o outro. O eu
lismo metafísico. Tudo o que vem da classe revolucionária é verdadeiro e e o outro se sentem co-pertencentes a uma subjetividade que os transcende
universal. Ora, recai-se na velha estratégia de dominação denunciada pelo — a subjetividade humana universal. O conhecimento histórico tem a es-
próprio Marx — na universalização do interesse particular! Ou não? trutura do diálogo: presente e passado se encontram nele, compartilhando
experiências e trocando ideias sobre o vivido. O conhecimento histórico é
compreensão do outro e reflexão e autoconhecimento do eu. Para se auto-
Ricoeur e Marrou: para obter a verdade, conhecer, o eu não conta somente com a reflexão introspectiva, solitária; ele
o sujeito é ético e comunicativo e toma passa também pelo outro em suas manifestações, isto é, pela história. Ao
consciência de si enquanto universal humano compreender o outro, o eu se autocompreende, pois reconhece as suas infi-
nitas possibilidades de vida, seu itinerário e opções realmente feitas. O eu,
Ricoeur e Marrou, historicistas, opõem-se à tese marxista da uni- através do outro, sopesa o seu vivido, o dimensiona e compreende. O co-
versalidade da relação de identidade entre interesse social revolucionário nhecimento histórico aproxima os homens, promove o encontro, abordando
e verdade. Crêem que é possível obter uma verdade universal do mundo os temas do vivido humano. Conhece-se o passado como se conhece o outro

18 Schaff, 1978; e Lowy, 1978. 19 Ricoeur, 1968.


164 T Eu RiA JOSÉ CARLOS REIS

atual: conversando, trocando experiências e impressões, sorrisos, olhares, ges- çadas. O historiador sempre é pessoal em sua relação com os homens do
tos, sinais, compartilhando emoções e palavras. passado. Mas essa subjetividade constituinte da história não representa
A verdade aparece na história quando ela realiza o universal, quando uma queda no irracional, na intuição. A subjetividade presente na verdade
leva os homens a uma comunicação íntima, plena, integradora do seu vivido histórica não é uma limitação, mas um trunfo. A divergência entre his-
comum, sem apagar a diferença das experiências humanas, mas intensifi- toriadores é comum, normal, e não surda, irredutível. Os dados básicos e
cando-as. Para realizar essa verdade, em seu diálogo com o passado, o his- o objetivo final são os mesmos: manifestações humanas, como dados, e a
toriador deve adotar uma atitude de abertura à alteridade, à diferença. A ati- consciência de si de uma humanidade universal, como objetivo. Há di-
tude do sujeito que conhece o passado que o leva à sua verdade é a da "boa ferenças sociais, filosóficas, pessoais entre os historiadores. Mas estas não
subjetividade": não denigre, não censura, não julga, abre-se e acolhe o outro impedem a comunicação; pelo contrário, enriquecem o diálogo, promo-
em sua diferença. Isso não significa se anular, esquecer, mas expressar até a vem o encontro, tornando-o palpitante, interessante. A riqueza da história
sua indignação de modo sincero, claro, ético. O historiador deve ser justo. está na presença da subjetividade. A diversidade de posições e percepções
A verdade entre diferentes não é um enunciado seguro, homogéneo, neces- é fecunda. O resultado do seu conhecimento é racional, apesar de se poder
sariamente consensual. Pode haver divergência e até conflito, mas, se ex- levantar questões infinitas sobre o passado e até sobre o mesmo passado.
pressos em uma linguagem segura e sincera, talvez o encontro e a amizade Deve-se evitar a dicotomia objetivismo-subjetivismo. O conhecimento
entre os homens até se intensifiquem. O que impede a verdade histórica é histórico é racional, pois comunicável e compartilhável. É um conheci-
uma atitude, por parte do historiador, não-ética: preconceituosa, fechada, mento que reúne a apreensão de um objeto passado e a aventura pessoal-
ressentida, rancorosa, autoritária, excludente, não-acolhedora da alteridade, espiritual do historiador. É um conhecimento vivo: do passado humano
injusta. A verdade histórica, portanto, é possível, para Ricoeur. É o sujeito vivido por um presente humano vivo. O encontro com o outro passado é
do conhecimento que a busca e constrói, mas ele pode atingir a subjetivi- como o encontro do outro atual: um encontro humano, uma comunica-
dade humana universal se mantiver uma atitude noética ética, ou seja, justa. ção sempre imperfeita e parcial, pois não se atinge o outro em sua mis-
A "boa subjetividade" obtém a verdade possível nos assuntos humanos: é teriosa totalidade.
justa e, por isso, objetiva. E objetivo o que pode ser dito e compreendido,
Para Marrou, o grau de verdade na história é maior quando o his-
o que pode ser comunicável, o que pode ser traduzido em palavras e sinais
toriador conhece seus limites para conhecer o outro e sabe que não é
diversos, que levam à aproximação e ao reconhecimento entre o eu e o você,
Deus. Nenhum eu esgota o outro ou o reduz ao seu conhecimento. A
entre presente e passado. Ao acolher a alteridade, a boa subjetividade refere-
abordagem do outro é complexa e difícil: exige disciplina, técnicas, do-
se ao outro ou aproxima-se dele e totaliza o universal humano. Por ser ética
cumentos e uma linguagem lógico-poética rigorosa — sóbria, equilibrada,
e justa, é objetiva.
matizada, sofisticada. A história é o encontro com a vida e não um acú-
Marrou pensa a história na mesma direção historicista de Ri-
mulo de detalhes. É um conhecimento que produz verdade com "simpa-
coeur. Para ele, o historiador trata do homem em sua riqueza, comple-
tia", com o senso de justiça, com uma linguagem sóbria, cuidadosa. O his-
xidade e diversidade. O sujeito do conhecimento histórico precisa estar à
toriador sabe o que é possível saber do passado. Ele tem consciência de
altura do seu objeto: um espírito rico, culto, complexo, atento à sua pró-
que o conhecimento que produz é parcial, limitado, temporal. E poderia
pria diversidade interna. A objetividade que se espera da história lhe é es-
ser de outra forma, se os homens se expressam no tempo e entre o pre-
pecífica, subjetiva. A verdade histórica não pode ser geométrica, construí-
sente do historiador e o passado do seu objeto há uma diferença insupri-
da com categorias estreitas. Deve ser construída com o espírito de finesse,
mível? Se ele sabe disso, a verdade que formula torna-se confiável, pois
da nuança. O historiador evita dicotomias sumárias e aproximações for-
não pretende saber mais do que lhe é possível saber. Ele e seu objeto são
históricos, temporais, o que torna impossível um olhar global e absoluto.
Marrou, s.d. Mas ele tem a esperança de estar contribuindo com o seu esforço de co-
166 H I S T Ó R I A & T Eo R iA l o sf CARLOS REIS

nhecimento para a construção de uma humanidade universal, integrada, para a essência universal. Para que uma se ahrme, seus defensores procu-
consciente de si, era que o eu reconhece e é reconhecido pelo outro como ram invalidar as outras como incapazes de levar ao real universal. Mas ne-
parte do universal humano.
nhuma consegue ser convincente de maneira definitiva, incontestável.
Elas sobrevivem paralelamente, desvalorizando-se reciprocamente, despre-
zando os resultados obtidos pelas concorrentes. O que revela serem dis-
Parágrafos de transição cursos particulares, que não conseguiram atingir o universal que preten-
diam.
Até aqui, os autores procuraram salvar o rigor da verdade histórica Os autores seguintes, constatando essa divergência inultrapassável,
reconhecendo a presença do sujeito que a constrói e controlando-a de al- não buscam mais esse sentido secreto universal e não acreditam que se
guma forma. Os positivistas procuraram anular sua subjetividade para possa reunir adversários em torno de verdades que valham para todos, de
produzir a verdade histórica — um esforço subjetivo de autocontrole total verdades revolucionárias, ou de valores válidos para uma humanidade uni-
e não de esquecimento ingénuo de si. Weber, percebendo essa impossi- versal. Para estes, aqui denominados nominalistas, o real é intocável em si
bilidade (o autocontrole total), decidiu dividir a subjetividade, para faci- e o universal, impensável. A subjetividade é radicalmente assumida en-
litar o exercício desse autocontrole. Marx rompeu com a ideia do auto- quanto subjetividade plena, sendo entendida como vontade de potência,
controle da subjetividade e transferiu para a esfera objetiva do interesse vontade de evasão, vontade de presente, vontade de ação, vontade de frui-
social (práxis) esse controle. Ricoeur e Marrou buscaram, para a subjeti- ção... Não há caminho real para o ser-enquanto-tal; nem por isso os ca-
vidade que conhece um autocontrole ético, uma profunda sensibilidade minhos diversos são sem valor. A subjetividade é o que é, e o mundo his-
em relação ao que é justo, que ela própria poderia construir por sua ca- tórico é construído por suas múltiplas linguagens. A subjetividade se sabe
pacidade introspectiva e por um esforço de abertura máxima à alteridade. e se assume como histórica, temporal e finita, fragmentada de modo in-
Mas, por caminhos diferentes, mesmo reconhecendo a verdade consiitil, e não alimenta qualquer nostalgia do real e do universal. E sem
como construção do sujeito, todos procuram para ela critérios universais. drama e ceticismo, que são sentimentos próprios de uma consciência em
Todos esperam e acham que está ao seu alcance tocar o real humano em busca de um impossível universal!
sua verdade universal: os fatos como se passaram, com o sujeito se ocul-
tando; a construção típico-ideal que revela de modo necessário as relações
empíricas da realidade, que podem ser reconhecidas mesmo por adversá- Foucau/t: a verdade são as linguagens
rios políticos; a verdade revolucionária que emancipa a humanidade uni- múltiplas que emergem de relações de poder e
versal; a atitude ética e comunicativa que leva à construção de uma lin-
legitimam um regime de verdade e
guagem humana transparente, ao encontro universal da humanidade. Em
todos parece sobreviver uma nostalgia da metafísica: acreditam que se uma vontade de potência
possa falar do real de forma universal, que o real possui um sentido secreto
universal que a investigação histórica deveria e seria capaz de revelar. O Para Foucault, toda essa argumentação anterior sobre a história se
particular sempre recebe o seu sentido de um universal que o protege. São reduz a uma metafísica realista ou idealista. Inspirado em Nietzsche, ele a
construções totalizantes da verdade histórica: verdade absoluta; categorias, combateria. Para ele, a verdade histórica não se refere a um real humano
modelos transcendentais; revolução-emancipaçáo universal; valores éticos universal e exterior ao sujeito do conhecimento; é construção de um su-
universais. Há uma rivalidade intensa entre esses autores e propostas de jeito particular e só faz aparecer a particularidade. A verdade não é a apro-
construção da verdade. Se uma for a mais correra e conduzir de fato à ver-
dade, isso invalidaria as outras, pois esta teria construído o caminho real 21 Foucault, 1984.
168 H l s T (j R i A & T E O R I A

ximação ou a coincidência do discurso com um ser essencial. A verdade consciência, que nela se integra e se reconhece. Não há continuidade a partir
histórica expressa relações de poder, práticas concreras. A metafísica idea- de um princípio ou em direção a um fim. As coisas começam disparatadas,
lista separa verdade e poder, torna-a alheia e indiferente a constrangimen- ao acaso. A história é marcada por rupturas, recomeços contínuos, definidos
tos e pressões históricas. Verdade é o que está acima de interesses e forças por lutas e relações de força.
particulares e expressa um atemporal universal. Até mesmo o marxismo Para Foucault, a verdade é articulada por saberes, por discursos que
acabou recaindo na nostalgia da metafísica da verdade universal! Para emergem e consolidam práticas de poder. O discurso é uma construção para
Foucault, a verdade não é expressão da "liberdade humana", não é a re- legitimar um poder concreto e transitório e não para articular um sentido
velação da essência da humanidade pelo discurso, conquistada pela refle- transcendente e atemporal. A verdade é correlativa, a redes de poder: é cons-
xão intensa, concentrada, livre e solitária. A verdade histórica não é uma tituída por elas e as constitui. Sendo um regime de verdade, ela é articulada
saída ou ruptura com a história. Ela não existe fora do poder ou sem po- por poderes e os reproduz. Ela não tem autonomia em relação a essas prá-
der, ou seja, da história. A verdade é deste mundo. Ela é produzida nele ticas determinadas de poder, como se fosse um critério essencial, supratem-
e por ele em relações múltiplas de poder que criam linguagens, saberes, poral, universal, que as regulasse e lhes atribuísse um sentido superior. Ela
para se auto-organizarem e legitimarem. Cada sociedade é uma rede de re- é regulada e regula esses poderes. Sua dimensão é particular, histórica, ligada
lações múltiplas de poder, e cada relação cria uma linguagem que defende ao mundo humano micro, constituindo indivíduos, corpos, funções, sabe-
e consolida posições. Cada sociedade tem o seu regime de verdade e se- res, forças... Sua repercussão sobre os homens é disciplinar e não emanci-
leciona os discursos que considera verdadeiros. A distinção entre o ver- pacionista!
dadeiro e o falso não é uma distinção entre essencial/autêntico e aparente/ Na perspectiva de Foucault, a verdade perdeu todas as suas ca-
inautêntico. Essa distinção é definida por mecanismos criados por relações racterísticas tradicionais: universalidade, essência, sentido, emancipação,
práticas de poder e por linguagens e rituais ligados a esses poderes. consciência, continuidade, integração, objetividade, estabilidade, coerên-
A verdade, para Foucault, é o conjunto de regimes segundo os quais cia lógica interna, transcendência, transistória, reciprocidade, reconheci-
se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos de poder. mento, diálogo, identidade, transparência, reencontro, desmascaramen-
A verdade se liga a relações de força, a redes de poder. Para ele, a historici- to, atemporalidade... A verdade é uma máscara discursiva construída para
dade que nos domina é belicosa. E uma relação de força e não de sentido. O a prática da beligerância, impossível de ser arrancada: atrás de uma más-
discurso não constrói a liberdade humana universal, um suposto sentido para cara, outra, e outra, e outra... Ela é assumida como construída em rela-
a história, mas consolida relações de força concretas. A história não tem um ções concretas por agentes históricos e particulares, sem nenhuma am-
sentido em si a ser descoberto. A inteligibilidade da história não está no co- bição de universalidade. O historiador não busca a identidade, que é
nhecimento do seu significado último, da sua finalidade misteriosa; ela pos- sempre artificial. Ele dissipa a identidade artificial em máscaras e simu-
sui a inteligibilidade das lutas, das estratégias. Não há um sujeito que bus- lacros. E, sobretudo, ele não sacrifica o eu à neutralidade, à ausência de
que a consciência de si e para si na história. Não é o sujeito que constitui paixões. O sujeito que conhece também é um simulacro sobre simula-
a história — ele é constituído por tramas históricas de poder. Seguindo cros. O saber é paixão: querer-saber. O querer-saber não leva ao univer-
Nietzsche, Foucault sustenta que não há essência, pura identidade, imóvel e sal. O sujeito que conhece não cala suas preferências, não elimina seu
anterior, interna ao acidental sucessivo. Não há identidade primeira, original, rosto e nome, que não são estáveis e contínuos. Ele não renuncia à sua
espírito que se mantém idêntico a si entre as mudanças históricas. A história vontade individual de potência. O sujeito diz o que quer e a partir de
não é a busca da realização universal da subjetividade humana. Não há ver- onde, revela seu lugar e seu desejo e não admite se neutralizar em nome
dade solene, primeira, a ser recuperada. A história não i a continuidade da de uma impossível compreensão exata e fiel do outro. O sujeito sabe que

22 Foucault, 1984. 23 Foucault, 1984.


170
HISTÓRIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS 171

olha de um determinado ângulo, com o propósito de dizer sim ou não. verdade, que o ensina a discernir o verdadeiro do falso e a reproduzir essa
Não se aniquila diante do que olha. E um olhar que sabe tanto de onde distinção. Nessas condições, é claro que o conhecimento histórico não é, e
olha quanto o que olha... E um olhar absoluto em sua parcialidade, pois nem pretende ser isento ou expressar alguma universalidade.
sabe que esta é a única forma possível de absoluto! A obra histórica, no entanto, não é individual e caprichosa. Não é
fruto do devaneio ocioso de indivíduos solitários, contemplativos e ociosos.
Ela tem a marca da época e da instituição da qual emerge. A obra histórica
Michel de Certeau: a história emerge e retorna a uma comunidade científica, que a recebe, a proíbe, ou si-
lencia. Tudo isso define o que será selecionado para a pesquisa e como esta
é um discurso que emerge de uma prática será feita. Não é um saber isento. A obra histórica não é individual, mas ins-
e de um lugar institucional e social titucional. A instituição define linguagens, doutrinas, disciplinas, rituais de
verdade, cargos e posições, hierarquias, títulos, privilégios.
O que faz o historiador quando faz história? É um olhar que olha Assim, o historiador sabe que a verdade histórica não pode ser um
e sabe de onde olha e o que olha! Sabe que seleciona, constrói, defende discurso sobre o atemporal. A teoria com a qual o historiador trabalha não
posições e interesses, propõe e reproduz um regime de verdade. E sabe que se refere a um não-lugar-tempo. Ao contrário, ligada à prática, teorizar é
o universal e o global são uma impossibilidade cognitiva. A história é uma levar as ideias ao seu lugar. Para ser objetivo e confiável, o historiador precisa
fabricação do historiador. Ele a fabrica a partir de um lugar particular ine- explicitar sua relação com a particularidade do seu lugar. A teoria não uni-
gável. Essa marca é indelével. De Certeau parece seguir a orientação neo- versaliza mais o particular; revela desde já a sua raiz particular insuprimível.
nietzschiana de Foucault. A verdade histórica não se refere a um além fi- No máximo, os historiadores usam o "nós", para pedir a garantia e o aval da
losófico, exterior a um lugar-tempo determinado. Esse lugar-tempo é uma sua comunidade e instituição para o seu discurso particular e que, mesmo
sociedade, uma política, uma instituição. A pesquisa histórica é uma prá- com este aval e garantia, continua particular. A obra histórica é percebida
tica enredada nesses lugares. A história é uma atividade humana entre ou- como relativa à estrutura da sociedade. Nenhuma obra é exterior à socie-
tras e faz parte da realidade social que ela trata. Este mundo social previu dade. Febvre só pôde criticar Seignobos porque a sua história era relativa a
instituições em que se poderia praticar a história. Essas instituições estão co- outra sociedade e não porque oferecia uma verdade mais universal. É pre-
nectadas às redes de poder que constituem uma realidade social determina- ciso saber como funciona a história em uma sociedade para saber o que ela
da. As instituições são elas mesmas redes de poder. Toda ideia emerge de diz. O discurso universalizante, que visa uma verdade mais ampla, é ideo-
um lugar; o gesto de historiador é aquele que leva as ideias ao seu lugar. lógico porque suprime a particularidade. A verdade histórica é teórica neste
A história enquanto prática liga-se a instituições que criaram os seus sentido: procura explicitar sua origem, controlar sua base subjetiva, definir
rituais de auto-organização (hierarquias, recrutamentos, regulamentos...) e quem fala e para quem fala, assumindo uma relatividade e, ao mesmo tem-
os seus rituais de produção e reprodução do saber. A pesquisa histórica tem po, procurando superá-la assumindo-a, explicitando-a, tornando-a objetiva
raízes e âncoras e não desce do céu à terra, cavalgando o espírito, seja ele ab- e controlável. Mas jamais universal.
soluto ou santo! Ela é a combinação de um lugar social com práticas cien-
tíficas. Ela supõe uma instituição: uma profissão, postos, grupos, pressões,
subserviências, privilégios, interesses. O historiador não nasce feito: ele é fa- Duby: a história é um discurso e uma prática
bricado, moldado, esculpido, plasmado por inúmeras coerções e prémios, ao mesmo tempo social e individual
pressões e reconhecimentos, fracassos e sucessos... Pouco apouco, ele apren-
de as regras, a hierarquia, a linguagem, as referências e contra-referências, o Duby dá um passo à frente na subjetivação do conhecimento his-
jogo, os ossos e a carne da sua atividade. Ele é iniciado em um regime de tórico. Em Foucault e De Certeau, os indivíduos são sacrificados por

Certeaux, 1976. 25 Duby Sc Lardreau, 1989.


172 JOSÉ CARLOS REIS
H I S T Ó R I A ík T E O R I A

redes de poder, que podem ser micro, mas que os superam e os enquadram. histórica é aquela que toca os homens do presente, que os torna produ-
A subjetividade é assumida, mas é uma subjetividade disciplinar e institu- tivos, com as representações que se formulam do seu passado.
cional. O "nós" de uma comunidade ou de uma instituição garante a efi- Duby parece ter cedido às pressões da mídia. Sua história se apro-
cácia e a reprodução de um saber. Duby ousa ir mais longe. Ele afirma que, xima da literatura e do cinema. O conhecimento histórico torna-se uma
quando escreve a história, é ele quem fala e não tem nenhuma intenção de narrativa sedutora, imaginativa, envolvente. O historiador opera como um
ocultar a subjetividade de seu discurso. Ele distingue a verdade histórica li- diretor de cinema: escolhe personagens, constrói situações, monta uma su-
gada a uma instituição e a verdade histó/ica exterior a ela. A tese, por ser
cessão delas, corta, agrupa cenas, acelera a narrativa, demora-se em perso-
uma produção académica específica, está submetida a regras de produção e
nagens, recorre ao zoom, focaliza, desfoca, insere tomadas da natureza... A
será avaliada pelos delegados da instituição, que irão aplicar o regulamento,
verdade histórica torna-se uma representação (talvez até no sentido das artes
o código universitário, para aprová-la ou rejeitá-la. Mas, feita a tese, ele afir-
cénicas!) que um presente faz do passado, que atende mais aos interesses
ma, inclinou-se a não seguir mais as regras académicas. Nas obras poste-
riores à tese, que foram iniciativas individuais suas, ele parte dos vestígios do deste presente do que ao conhecimento daquele passado; ou melhor, na re-
passado e estabelece ou postula relações entre eles. Mas não proíbe mais a lação presente-passado, o lado presente pesa mais e o passado passa a ser
presença da imaginação. Ele preenche lacunas a partir do que sabe; afirma, aquilo que o presente representa dele. Na verdade, se o conhecimento his-
quando há silêncio das fontes. Ele não se impede de sonhar, de criar, quan- tórico não pode deixar de ser assim, a disciplina histórica visa também con-
do faz a sua história pós-acadêmica. Mas, temendo a não-recepção dessa sua trolar o anacronismo, as projeções do presente no passado e garantir uma
produção, ele recua e concede: o sujeito não é tão livre assim e está ligado certa diferença/originalidade ao passado (verdade do passado). Em Duby, o
às exigências da comunidade — vestígios, cronologia, instrumentos, técni- sonho é permitido, a imaginação não é proibida, a subjetividade individual
cas, relevância, bibliografia. Ele afirma se sentir preso em uma rede e ter sua desafia as regras académicas e o controle técnico e intersubjetivo da infor-
atenção sobre 00 vestígios dirigida por uma certa problemática que o ultra- mação. A verdade histórica como representação do passado é um sentido
passa (o que parece incomodá-lo). atribuído pelo presente ao passado, que lhe permite evadir-se e que o torna
É como se até esse controle institucional não garantisse mais a ver- mais estável, mais produtivo... mais sonhador!
dade ou, pelo contrário, restringisse ou forçasse artificialmente a sua exis-
tência. Para ele, está claro que a reconstituição integral do passado é im-
possível. Não se pode ressuscitá-lo. Escolhemos sempre um passado. Koselleck: a verdade histórica é um sentido
Duby assume que não tem a pretensão de dizer a verdade do passado ou atribuído pelo presente ao vivido humano
de ser superior quanto a ela em relação aos seus predecessores. Ninguém
tem o privilégio de expressar a verdade do que se passou. Cada época re- Vamos repetir a formulação do problema que estamos examinan-
constrói sua representação do passado. Tem-se sempre uma construção do conforme a visão de Koselleck: a história não pode negar que precisa sus-
tentar duas exigências que se excluem — produzir enunciados verdadeiros e
imaginária do passado, mais adequada e integrada ao presente, mas não
admitir a relatividade dos seus enunciados. Isso é um dilema, uma aporia.
necessariamente mais verdadeira do que as precedentes. A representação
Koselleck o retoma não para resolvê-lo, mas para torná-lo mais suportável e
do passado atual pode ser mais fecunda, mais rica, mas não mais verda-
até fecundo. Para ele, a emergência do relativismo é idêntica à descoberta do
deira. A história científica é uma impossibilidade, pois a história é inevi-
mundo histórico. O relativismo não é uma dificuldade a ser eliminada; é a
tavelmente subjetiva. O que não quer dizer que ela não possa abordar o
descoberta de uma realidade original: o mundo histórico. A representação do
passado com algum rigor: documentos, técnicas, teorias, disciplina críti-
passado é incontornavelmente afetada pelo tempo. Cada presente articula de
ca... Mas, para a verdade histórica isso não basta. É preciso ainda um in-
divíduo que sonhe, imagine, seduza, encante o público, que o atinja, por-
que atende também aos seus interesses de sonho e evasão. A verdade 26 Koselleck, 1990.
174 H I S T Ó R I A & T E o RiA ) oj£ CARLOS 175

modo diferente espaço da experiência e horizonte de espera. O passado é de- Uma verdade histórica caleidoscópica exige o exame da historio-
limitado, selecionado e reconstruído criticamente em cada presente. Este grafia anterior. E uma representação do passado feita por um presente e
sempre lança sobre o passado um olhar novo, ressignificando-o. No presente, que se sabe deste presente, e que dialoga com as outras representações
o historiador se relaciona também com o futuro: toma partido, vincula-se a desse mesmo passado ou de outros passados feitas em outros presentes. A
planos e programas políticos, faz juízos de valor e age. O desdobramento do verdade histórica aqui se aproximaria talvez do que se pode obter em uma
tempo pode mudar o tipo e a qualidade da história. O passado é retomado galeria de arte: temas selecionados pelo sujeito ou até mesmo um mesmo
em cada presente sempre sob um ângulo novo. Um fato pode ser anódino no tema, cada presente o reconstrói e representa à sua maneira. Cada presente
presente e decisivo no futuro. O passado é tematizado no presente e rein- escolhe um passado e o pinta ou esculpe com a sua sensibilidade, com as
terpretado. O presente não é um mero receptáculo do passado. Cada pre- suas técnicas, com o seu enfoque e perspectiva, com as suas perguntas,
sente estabelece uma relação particular entre passado e futuro, isto é, atribui
com as suas paixões e interesses. Verdade e perspectiva temporais são in-
um sentido ao desdobramento da história, faz uma representação de si em re-
separáveis. Para produzir o seu juízo, pois a verdade histórica seria a atri-
lação às suas alteridades — o passado c o futuro.
buição de um valor e sentido a fatos e documentos, o presente precisa co-
Portanto, o presente sempre reinterpreta o passado vinculando-o nhecer os juízos feitos em presentes anteriores. O passado é sempre
às suas perspectivas-esperas futuras. Ao fazer isso, cada presente produz e retomado em um ângulo novo, mas que supõe o conhecimento e o diá-
acumula mais verdade? Assumindo o relativismo como inescapável e fe- logo com os anteriores. A verdade histórica se relaciona muito com a his-
cundo, Koselleck parece otimista quanto à possibilidade da verdade his- tória da história. A verdade histórica é um sentido atribuído, que reúne
tórica: apesar das representações sucessivas de cada presente serem origi- passado e futuro em um presente determinado, que, aceito de modo mais
nais, a mais recente conhece as anteriores e pode contrastar sua própria ou menos consensual, constrói uma identidade das sociedades, que as lo-
construção com as de outros presentes. Cada presente pode ter em relação caliza em seu tempo e as torna mais eficientes na ação. A verdade histórica
à sua representação uma perspectiva historiográfica, pode temporalizar a seria uma representação construída em cada presente da relação passado/
sua própria visão da história. Cada representação presente, portanto, é ao futuro e que mantém um diálogo permanente com as representações dessa
mesmo tempo original e inclui como interlocutoras as representações an- relação dos presentes, passados e futuros.
teriores, criando uma verdade caleidoscópica. Além disso, o historiador
não é um falsário. E se é parcial, não o é sem sabê-lo. A história produz
verdades: apóia-se em documentos, busca ser controlável racionalmente.
O historiador tem alguma liberdade de criação: hierarquiza causas; for- Conclusões
mula problemas e hipóteses; seleciona fatos, eventos e processos, agenci-
ando-os. Mas a divergência entre os historiadores é favorável à verdade: os A verdade histórica não pode se reduzir a um enunciado simples,
adversários filtram a argumentação e a documentação uns dos outros. A fechado, homogéneo e atemporal. Obtém-se algo próximo dela exami-
história é capaz de recuperar tecnicamente os eventos com alguma segu- nando todas as leituras possíveis de um objeto. O exame exaustivo, mu-
rança. Mas a questão da verdade histórica está no juízo que é feito desses tifacetado, nuançado de um tema é que diz a sua verdade. Como as pos-
fatos. Que juízo de valor atribuir-lhes? A teoria da história é que sustenta sibilidades novas de abordar um tema histórico são infinitas, as novas
o sentido dos fatos e fontes. A história vai além dos fatos e fontes. Estru- leituras são múltiplas no presente e ao longo do tempo. Conhecer a ver-
turas não são observáveis; são construções teóricas. É a teoria que decide dade de um tema histórico é reunir e juntar todas as interpretações do pas-
o que conta — se a história é económica ou teológica, é a teoria que de- sado e do presente sobre ele. A verdade histórica é um poliedro de infi-
cide. Temos necessidade da teoria da história, pois é ela que estrutura a nitos lados-posições, que jamais poderá ser visto integralmente por olhos
subjetividade do historiador e o leva a fazer falar as fontes. humanos.
JOSÉ CARLOS REIS

Se é a teoria que decide o que conta; se temos necessidade da teo- HEGENBERG, L. Problemas especiais da história. In: Introdução à filosofia da ci-
ria da história, porque é ela que estrutura a subjetividade do historiador e ência. São Paulo: Herder, 1965.
o leva a fazer falar o passado e as fontes, então é preciso retornar cons- HEMPEL, C. A função das leis gerais em história. In: GARDINER, P. Teorias da
tantemente à bibliografia clássica sobre o tema "verdade e história" e con- história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.
siderar as suas orientações e argumentações. Sem pressa de concluir, sem HOLANDA, S. B. Ranke. São Paulo: Ática, 1979a. (Grandes Cientistas Sociais.)
fugir à angústia de uma profunda inquietação. Esta discussão não tem
como objetivo chegar a enunciados finais, conclusivos. Ela não quer se en- . O atual e o inatual em L. Von Ranke. São Paulo: Ática, 1979b. (Grandes Ci-
entistas Sociais.)
cerrar. Como fundante e estruturante da próptia subjetividade do histo-
riador, esta reflexão, deleitando-se, demora-se na própria reflexão, isto é, KOSELLECK, R. Point de vue, perspective et temporalité. Contribution à 1'appro-
desfaz o estabelecido, revê valores, historiciza posições, temporalizando-as, priation historiographique de l'histoire. In: Lê fiitur passe: contribittion à Ia sémanti-
relativizando-as, redimensionado-as, ressignificando-as. Dessas leituras e que dês temps historiques. Paris: EHESS, 1990.
discussões emerge uma subjetividade historiadora complexa, culta, lúcida, LANGLOIS, Ch. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos estudos históricos. São Paulo:
perplexa, reflexiva, competente, aberta, capaz de interrogar apropriada- Renascença, 1946.
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CAPÍTULO 5

O conceito de tempo histórico


em Ricoeur, Koselleck e nos Annales:
uma articulação possível

Discursando sobre o tempo: o físico, o filósofo


e o historiador

No que diz respeito ao tempo, tem-se duas perspectivas inconci-


liáveis: a da física e a da filosofia. A física refere-se aos movimentos na-
turais, a um tempo exterior, supralunar, imortal. Suas características são a
medida, a quantidade, a abstração, a reversibilidade, a homogeneidade, a
extensão. O tempo é definido como o número dos movimentos naturais.
Nesses movimentos há uma abolição da diferença entre passado/presente
e futuro. O ser que está no início do movimento é o mesmo que se en-
contra no final: não há esquecimento das condições iniciais. O tempo é o
número de posições que um corpo ocupa no espaço ao longo de sua tra-
jetória. O movimento é reversível: o ser que foi volta. A referência para a
medida dos movimentos — um movimento contínuo, homogéneo, re-
gular, que sirva de base a uma contagem, precisa dos movimentos dos cor-
pos — é o movimento dos astros e a velocidade da luz.
Como mímero dos movimentos dos corpos, o tempo é pensável em
sua relação com o espaço. Os corpos se deslocam no espaço e seu deslo-
camento, medido segundo as referências acima, é o tempo-espaço. Na me-

1 Ricoeur, 1983-85; e Ladrière, 1984.


180 H l íi T ó R I A J o s f. C A R L O S R E I S 181

dida dos movimentos naturais, fala-se de relações temporais: usam-se os necer no ser, continuar a ser, nem mudar e morrer, nem durar, mas sair
conceitos neutros de anterioridade/posterioridade, anterioridade/Instante do tempo, reino das durações.
abstrato. O movimento é abstratamente segmentável em qualquer um de A reflexão sobre o devir é acompanhada da reflexão sobre a eter-
seus pontos. Não se fala de atribuições temporais, isto é, não se usam os nidade. O horizonte humano é a finitude, a interrupção do ser, vivida
conceitos de passado/presente e futuro. Não há, nesse caso, nenhuma como uma ameaça. O transcurso do ser em direção à morte é marcado
preocupação com a eternidade, com a salvação. Não se trata de um tempo pelo souci (inquietação): perdas, sofrimentos, separações, esquecimentos,
"vivido", mas neutro, indiferente, "natural". O "vivido humano" é posto opressões, escravidões, violências, corrupções, enfim, finitude. Evade-se
de lado como irrelevante para o conhecimento do tempo. Há indiferença desse devir terror, dessa erosão do ser, com as ideias de infinitude, de não-
em relação às ideias de vida e morte. É verdade, no entanto, que o se- transcurso, do ser que já é e sempre é: uno, Deus, o instante eterno. Mor-
gundo princípio da termodinâmica, que fala da entropia, refere-se a um tal, esse tempo é marcado pela redução do ser ao nada. Os autores dessa
tradição são Plotino, Santo Agostinho, Bergson, Bachelard, Husserl, Hei-
tempo evolutivo e irreversível da natureza; mas trata-se de uma morte na-
degger, Levinas, para citar somente os clássicos.
tural, sem a inquietação da finitude. E de um tempo não-vivido. Os au-
Seria possível segurar esse tempo humano que transcorre vertigino-
tores dessa tradição são Platão, Aristóteles, Newton, Einstein. Os físicos
samente, vivido na inquietação, no terror do horizonte mortal? Seria pos-
em geral...
sível regular a clepsidra para que a areia/água não desça de urna só vez, sem
Quanto à filosofia, ela se refere às mudanças vividas pela consci- deixar vestígios do ser que estava na parte superior? O mundo humano pre-
ência, a um tempo interior, sublunar, mortal. Suas características são a sente, que ocupa a parte superior da ampulheta, embora pareça sólido e
incomensurabilidade, a qualidade, o vivido concreto, a irreversibilidade, a eterno, tende a desabar sobre a parte inferior, e o que se torna visível, então,
sucessividade, a intensidade, a curta duração. E, sobretudo, a reflexão. A é um monte indiferenciado de areia, ser que foi e não é mais. E na medida
alma ou consciência foi, é e será. Embora a consciência se esforce para se em que tende ao desabamento, em que transcorre, mesmo a parte superior
reter, para se intensificar, ela deixa de ser, torna-se, esquece-se de onde também não é visível, abordável, conhecível. O presente — a parte superior
veio e do que era — é devir. A "mudança" não é um movimento natural, — não se deixa apreender, pois seu ser é deixar de ser, o passado — a parte
é um movimento que altera o ser que se move. O ser, enquanto dura, não inferior — também não se deixa apreender, pois seu ser é não ser mais.
é mais o mesmo. O ser que estava na origem não é o mesmo que chega ao Entretanto, é preciso controlar de alguma forma essa descida hu-
final de alguns anos ou séculos. Entre o ser inicial e o final há o tempo, mana no tempo, é necessário acompanhar essa passagem dos homens.
a duração que altera o ser. Essa duração não é "natural" — contínua, ho- Como? Essa é -z. problemática do tempo histórico: o acompanhamento dos ho-
mogénea, regular, mensurável —, é "humana", "vivida", portanto descon- mens em suas mudanças, e sua descrição e análise. Ê possível descrever e ana-
tínua, heterogénea, irregular, qualitativa, não-numerável. A mudança vi- lisar um objeto que se autopulveriza, os homens em seu tempo? Sim, me-
vida é irreversível e incomensurável. As durações da consciência são diante alguns artifícios. Faz-se uma cintura no vidro, um estreitamento
qualitativas. Preenchida de ações, a duração é curta; esvaziada de ações, a em seu centro, para que o ser que ainda é passe lentamente, controlavel-
duração é longa. A duração é estimada e não-numerável. O tempo é a re- mente, visivelmente, à condição de "não ser mais". Assim, o mundo hu-
lação da alma consigo mesma — ela se lembra e espera. Ela sofre no devir, mano como que se estabiliza, ganha alguma duração, fixa-se. As socieda-
des vivas criaram esse estreitamento no vidro — o calendário —, e sua
pois deixa constantemente de ser: ou muda ou morre; separa-se, esquece-
descida no tempo é numerada, uma sucessão organizada, diferenciada.
se e renova-se e deseja salvar-se, ou seja, quer sair do devir, quer perma-
O historiador, por sua vez, usando a mesma cintura no vidro — o
calendário —, realiza o trabalho de manutenção do ser que passou "no ser".
2 Ricoeur, 1978; e Ladrière, 1988.
3 Prigogine &í Stengers, 1979:183-93.
4 Guitton, 1941; e Lavelle, 1945. 5 Reis, 1994b.
182 HISTÓRIA & t E o ui A JOSÉ CARLOS REIS

Para tanto, opera uma reversão no conceito de passado, de vida passada, que é finito, e não deseja contemplar ou conhecer o que está fora do tempo e
estabeleceu como seu objeto. Ocupando a parte superior da clepsidra, por- não muda, que para ele é inabordável e incognoscível. Seu interesse é pelo
tanto ainda no ser, ele a vira de ponta-cabeça e faz retornar pelo vão do "ou", pela alteridade humana, que é sobretudo temporal. O que o historia-
tempo o ser que se foi. O ser que se foi, então, desaba a contrapelo sobre a dor deseja é produzir um "conhecimento da mudança", uma descrição do
sua cabeça e sobre a sociedade presente, espiritualizado, abstrato. Ao agir as- transcurso dos homens finitos em sua experiência da finitude, que ele con-
sim, o historiador não considera o passado como o que não é mais, o ina- sidera paradoxalmente o único apreensível e cognoscível. Seu objedvo é me-
cessível, o incognoscível. Para ele, ao contrário, o passado é o que há de mais diar um diálogo entre vivos e "vivos ainda". O que ele faz é diferenciar du-
sólido na estrutura do tempo. Ele é existência conhecível; somente como rações. Ele olha para a escuridão do vão da clepsidra e lança sinais,
"tendo sido" o vivido humano se dá ao conhecimento. O passado não é interrogações e, para a sua surpresa e alegria, para o seu encantamento, re-
uma queda no nada; ao contrário, é uma passagem ao ser: o passado é a con- cebe mensagens, informações, respostas. O fundo da ampulheta fala, ex-
solidação do ser no tempo, é duração realizada. Ele não é o que não é mais, pressa-se, é capaz de dialogar com a parte superior, retirando os vivos da so-
mas o que foi e ainda é. Ele penetra em nossa atividade presente e determina lidão em sua passagem inexorável pelo vão.
o futuro. Entretanto, embora seja "duração realizada", o passado não existe Para mediar esse diálogo, o historiador deve produzir um novo
em si. Ele se confunde com a reconstrução que se faz dele. Existe no pre- conceito de tempo, deve criar um terceiro tempo entre o da natureza e o
sente como memória, reconstrução. O ser do passado é a sua "representa-
da consciência. Se o tempo da consciência é mortal, finito, tendência do
ção", que está situada no presente.
ser ao nada, e se o tempo da natureza é permanência, reversibilidade e ten-
O passado parece uma "espiritualização do ser": ele não se dá à dência ao ser, pois o que foi retorna, ele deve procurar inscrever o que
percepção sensível, mas como lembrança e conhecimento retrospectivo. passa no que não passa, o irreversível no reversível, mudanças da vida su-
Significa a abolição concreta das coisas e sua entrada em uma esfera abs-
blunar nos movimentos naturais supralunares. O risco que ele corre nessa
trata da existência. Como conhecimento, o passado ilumina a partir de •*i y.
operação é o da naturalização do tempo-consciência, seu congelamento, o
trás. A parte superior da ampulheta está repleta de vida concreta, embora
apagamento da diferença entre os tempos. Um terceiro tempo não deve
rápida, passageira, volátil; ao revertê-la em seu espírito, o historiador im-
apagar a diferença, mas conectar, articular dialeticamente a diferença.
pregna a si mesmo e ao seu presente de uma vida abstrata, já vivida, mas
Risco que o historiador precisa correr e tentar controlar. Como se daria a
permanente, consolidada. Postando-se na cintura da clepsidra, olhando
construção desse terceiro tempo? Eis as argumentações de Ricoeur, Ko-
para o seu vão escuro e profundo, o historiador faz retornar à parte su-
selleck e dos Annales.
perior o pó que enche a parte inferior, que retorna à vida — uma vida ao
mesmo tempo reconstruída, representada, interpretada, tema de um diá-
logo e, de alguma forma, reconstituída, recriada, percebida, interlocutora. O tempo histórico seria um terceiro tempo
A questão agora é: como o historiador realiza esse "milagre"? Como entre a natureza e a consciência?
pode ele deter essa pulverização do seu ser que é a experiência do tempo pelo
homem? As perspectivas teológica e filosófica decidiram não se interessar
pelo tempo e contemplar o que não passa, o que mesmo na passagem sem- A perspectiva de Ricoeur: os tempos calendário,
pre é: esse ser deixa-se apreender e é cognoscível. A perspectiva do histo- genealógico e arqueológico; primeira perspectiva
riador é diferente: ele sabe que o homem é o tempo, sabe que ele muda, que do tempo histórico como um terceiro tempo

O tempo da consciência, vivido e mortal, é sobretudo individual.


6 Guicton, 1941:24 ss.
7 Reis, 1994b:50 ss. É o tempo da carne humana — a caça do historiador. Mas, interessado
8 Ibid., p. 141 ss. nesse tempo biográfico, porção de vida concreta, para torná-lo conhecível,
A R l O S R Fi 185
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A primeira ponte que a história lança sobre o abismo entre a na-


dizível, comunicável, o historiador realiza uma primeira operação de ins-
tureza e a consciência é o calendário. O calendário não naturaliza o vivido
crição dele em um tempo mais durável: o tempo coletivo das sociedades,
humano. Ele mantém a diferença entre os dois tempos, mas participa de
de suas mudanças e construções coletivas. O tempo histórico não se refere
um e de outro, não se restringe a um ou a outro, e por ser assim mediador
apenas ao tempo coletivo, anónimo — este é um primeiro esforço de en-
é um terceiro tempo. O calendário é indispensável à vida dos indivíduos
durecimento-consolidação do passageiro individual. O tempo histórico
e das sociedades. Eis sua estrutura: sempre há um evento fundador, que
refere-se à vida humana, que é individual e coletiva. Forçar o coletivo con-
abre uma nova época, "ponto zero" a partir do qual se contam e se datam
tra o individual ou enfatizar o individual contra o coletivo é fracassar na
os eventos. Depois desse ponto zero percorre-se o tempo em duas dire-
apreensão da vida humana — o objetivo do historiador.
ções: do presente ao passado, do passado ao presente. Fixam-se unidades
Ricoeur considera que o historiador produz um terceiro tempo,
de medida — dia, ano, mês, século. A estrutura do calendário é ao mesmo
um tempo mediador entre o da natureza e o da consciência. Para dar
tempo dupla e singular. Enquanto mediador, é duplo. Do tempo físico,
consistência à consciência, ele de certa forma a naturaliza ou a inscreve
mantém as características de continuidade e uniformidade, a linearidade
nos movimentos naturais permanentes. A prática histórica, argumenta Ri-
infinita, segmentável à vontade a partir de instantes quaisquer; não tem
coeur, produz conexões, reinscreve o tempo vivido no tempo cósmico me-
presente; é reversível, pois pode-se ir do presente ao passado e deste ao
diante alguns artifícios: o calendário, a sucessão de gerações, a preservação
presente; é mensurável e numerável. E a astronomia que sustenta essa nu-
dos vestígios em arquivos, museus, bibliotecas... O tempo histórico é du-
meração é medida. Do tempo da consciência, o calendário mantém as ca-
plo: é a organização que a própria vida coletiva se dá (nesse sentido é um
racterísticas da irreversibilidade, da tendência do passado/presente ao fu-
vivido concreto, efetivo, é uma auto-organização da vida social) e é co-
turo, da mudança, da memória e da espera. As datas (naturais-históricas)
nhecimento desse vivido. Enquanto conhecimento, o tempo histórico
representam mais do que os números que as simbolizam. O calendário é
seria uma solução poética, isto é, prática e imitativa e não teórica da aporia
duplo: astronomia e consciência. A definição do ponto zero não é astro-
do tempo físico e da consciência. Enquanto puro vivido o tempo da cons-
nomia, mas a escolha de um evento, um presente determinado, singular,
ciência é inorganizável e inenarrável — é pura sucessão dispersiva, des-
que teria aberto uma época, rompendo com outra.
contínua, sem costura possível. Com o calendário, as sociedades se orga-
Porém, se o calendário em sua duplicidade reúne esses dois tem-
nizam, as gerações ganham uma posição em sua sucessão, os documentos
são datados. pos, ele os ultrapassa e se torna um tempo original: o momento axial, isto
é, o ponto zero central, que não é nem o instante qualquer da física, nem
Ainda com esses recursos, a experiência humana torna-se narrável.
o presente vivido da consciência, mas um passado vivido, que é conside-
O historiador constrói em sua narrativa uma intriga, que é uma síntese do
rado capaz de dar curso novo à história. Esse momento, axial dá posição a
heterogéneo, que integra eventos múltiplos e dispersos numa história to-
todos os outros eventos, e nossa própria vida individual recebe uma "si-
tal, completa e complexa. A intriga não narra o vivido tal como aconteceu,
tuação" com relação aos outros eventos da vasta história. Assim, eventos
embora tenha essa ambição, pois o vivido humano não é apreensível em
sem a menor relação entre si são organizados a partir desse momento axial
sua integralidade e pureza. Mas, e por isso é um terceiro tempo, a intriga
como eventos passados, presentes e futuros. Todos são "datados", situados
refigura a experiência temporal, cria uma concordância discordante, e os
no calendário astronômico-histórico. Segundo Ricoeur, a originalidade
homens imersos no tempo se dão uma localização, uma direção, um sen-
que o tempo axial confere ao calendário torna-o exterior ao tempo físico
tido. Portanto, o tempo histórico, tanto como organização da vida cole-
e ao tempo vivido. Ele é mediador: cosmologiza o tempo vivido e huma-
tiva, efetiva, quanto como conhecimento reconstruído da vida passada, re-
presentaria um terceiro tempo, um mediador. niza o tempo cósmico 10

9 Ricoeur, 1983-85, v. 3, p. 153 ss.


10 Ricoeur, 1983-85, v. 3, p. 159-60.
186 H l S I Ô R I A íí T50RIA
JOSÉ CARLOS R E I S 187

Enfim, o calendário insere a vida dispersa da sociedade em qua- no tempo astronômico-histórico: só é possível falar de gerações quando se
dros permanentes, os movimentos naturais regulares. O "ano" é uma uni- pode datá-las.
dade de tempo natural — tem uma estrutura repetitiva, reversível. É sem- Assim como no caso do calendário, o conceito de geração é duplo:
pre o mesmo ano, pois, do ponto de vista da natureza, são sempre os biológico e histórico. Enquanto biológico, a sucessão de gerações refere-se
mesmos movimentos. O que o calendário faz é numerar essa repetição à imortalidade da espécie, à reposição física dos indivíduos. O tempo hu-
anual e situar nessa sucessão as experiências humanas. Por isso, ele é con- mano-biológico é sucessivo, mas imortal. As gerações se sucedem de 30
siderado uma primeira ponte entre o vivido humano e. o natural: é uma em 30 anos. Nessa duração de 30 anos, os homens conhecem os processos
régua, uma escala posta ao lado da estrada humana — em cada uma de naturais do nascimento, do envelhecimento e da morte. Após 30 anos, ho-
suas marcas existiu um tipo de homem individual-social, em sua singu- mens novos vêm substituir os velhos. A duração média da vida — o
laridade, finitude e inefável intensidade. O céu é a régua; sob e entre os as- tempo biológico — é medida pelo calendário — o tempo astronómico.
tros a história humana ganha uma numeração. Mas a ideia de geração não se restringe ao biológico — à reposição
Para voltarmos à metáfora da clepsidra de ponta-cabeça: o histo- física de indivíduos vivos. Para o historiador, o lado histórico é o que in-
riador, postado no orifício que separa o ontem do hoje, que define a al- teressa mais. Na perspectiva do historiador, a sucessão biológica é funda-
teridade do presente, provoca o retorno do ontem/outro e, quando este mental, pois, sem essa reposição física de corpos vivos, a história não seria
aparece, um número se inscreve na cintura da clepsidra, marcando a data pensável. Não haveria a história sem a espécie. Mas o historiador ultra-
de sua passagem. O que era um monte indiferenciado de pó ganha forma passa esse dado natural e concebe a geração de forma cultural. A sucessão
e número, ganha uma organização sucessiva, uma diferenciação, uma tem- de gerações não é física, mas histórica. Pertencer a uma geração ou sucedê-
poralização. O escrúpulo do historiador é o de conferir a cada ontem que la não é ter a mesma idade ou ser mais jovem, mas possuir uma contem-
retorna o seu número preciso, a sua data. Se sua tarefa é distinguir datas, poraneidade de influências, eventos e mudanças. Um todo com aquisições
seu maior receio é cometer o erro maior, a confusão das datas, que é o "pe- comuns, orientações comuns e recusas comuns. Pertence-se a uma geração
cado mortal" do anacronismo: fazer uma descrição inexata da vida, situar por afinidades sutis, pela participação em um destino comum — um pas-
uma vida singular, finita e intensa em um ambiente/data estranhos, onde sado lembrado, um presente vivido, um futuro antecipado. Cria-se um
ela seria impensável. Isso significaria trair os homens vividos; estes que se- tempo intersubjetivo, com mediações fracas. Não se trata de uma "con-
riam "vivos ainda" voltam à vida natimortos. temporaneidade anónima" —- homens vivendo biologicamente juntos,
Portanto, na cintura da clepsidra de ponta-cabeça há um olhar mas culturalmente diferenciados, com mediações simbólicas fortes, por-
que observa um número natural-histórico que organiza o retorno suces- que não-imediatas. Na ideia de geração, onde predomina o tempo da
sivo dos homens. Estes voltam agrupados em gerações. Para Ricoeur, a consciência, trata-se de vida compartilhada, interdependente, que dispen-
ideia de "sucessão de gerações" — contemporâneos, predecessores e su- sa a ostentação simbólica: é um nós, uma relação direta, intuitiva e ime-
cessores — seria uma segunda ponte entre os tempos natural, agora não diata entre o eu e o você.
mais astronómico, mas biológico, e o da consciência. O que passa su-
A ideia de sucessão de gerações leva ao reconhecimento de que a
cessivamente, marcado pela data, são gerações, vivos que viveram juntos,
história é de homens mortais. Mas, como há substituição e comunicação,
que cabem na mesma data. A tal data, tal geração. A ideia de "geração" é
a morte é visada indiretamente. Entidades coletivas, anónimas públicas —
antiga e liga-se às de "continuidade da tradição" e "inovação". Se o ca-
povo, Estado, classes — sobrevivem aos indivíduos como tais. A imorta-
lendário é um conceito-ponte astronômico-histórico, a geração é um con-
lidade simbólica se impõe à mortalidade biológica. Sempre haverá suces-
ceito-ponte biológico-histórico. Esse tempo biológico-histórico apóia-se
sores biológicos simbólicos — o homem espécie e histórico é imortal —,
sucessores que sempre procurarão resgatar antecessores da morte e do es-
11 Ricoeur, 1983-85, v. 3, p. 160-71. quecimento. A noção de sucessão de gerações reúne espécie e história. Há
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H I S T O R I A & Ttoi<u JOSÉ CARLOS REIS

uma reposição biológica e simbólica dos homens. Enquanto ponte entre tão, o próprio material suporte da mensagem é visto como pertencendo à
o tempo da consciência e o natural biológico, o tempo histórico repre- mensagem. Não é mais natureza. O vestígio indica o aqui-agora da pas-
senta a permanência de gerações sucessivas, biológica e culturalmente, sagem de vivos, ele assegura que houve a passagem anterior de outros ho-
vencendo do lado biológico, a morte, e do lado da consciência, o esque- mens vivos.
cimento. Como segundo elemento constituinte do tempo histórico, que O historiador somente virou a clepsidra de ponta-cabeça porque,
conecta consciência e natureza, a ideia de sequência de gerações substitui
antes de fazê-lo, constatou, na parte superior onde se encontra, coisas e si-
mortos por vivos, antepassados por descendentes, sucessores. A morte
nais enigmáticos, que não pertencem aos vivos, ao seu tempo. Esses sinais
vencida — a espécie humana é imortal.
lhe asseguram que o tempo passa e que antes dele outros estiveram ali. E
O historiador está lá, abraçado à cintura da ampulheta de ponta- estes teriam informações a oferecer, conhecimentos, conquistas, um pa-
cabeça. Sempre datando, do lado biológico, ele se assegura de que sempre trimónio cultural. E, sobretudo, mesmo que não tivessem nada de novo a
houve homens, de que não existem lacunas, rupturas da cadeia demográ- oferecer — o que é quase impossível, pelo fato de serem outros, diferentes —,
fica. Ele constata que a população tende ao crescimento, que se nasce mais seriam talvez uma boa conversa, um bom encontro, um tenso e amigável
do que se morre. Ele conta as gerações, o número de homens e suas os- encontro de homens vivendo em tempos diferentes. Os vestígios permi-
cilações, descreve os movimentos das populações. Do lado cultural, ainda tem a abordagem do outro e trazem as mensagens e sinais dos outros pas-
sempre datando, ele distingue as gerações que possuem afinidades, que sados. O vestígio é enigmático: ele significa sem "fazer aparecer"; nele, o
participam de uma mesma memória, de uma mesma espera, ainda que passado não "aparece", afirma a sua existência. Sua reconstrução, quem
distantes entre si, quanto às suas datas. Ele identifica as gerações que va- vai tentar fazê-lo aparecer a partir de seus traços será o historiador. Por-
lorizam a tradição e as que inovam, interrompendo a tradição. Postado ali, tanto, como ponte entre o vivido e o tempo natural, o vestígio é uma coisa
no buraco do tempo, ele realiza, a. mediação, ele põe em diálogo homens que garante a passagem dos vivos no tempo calendário. Para significar,
que nunca se encontraram, nunca se viram e nunca se conheceram, mas para ser uma informação, para ter sentido, o vestígio precisa ser datado.
que estão repletos de dados e informações sobre a própria experiência de Um vestígio é uma mensagem datada. Mais uma vez a vida humana, que
vida para se oferecerem reciprocamente.
tende a desaparecer sem deixar rastros se entregue ao seu próprio tempo,
Mas, para mediar esse diálogo, para estabelecer o contato entre ge- ganha consistência, duração, permanência, quando seus vestígios são pos-
rações, o historiador precisa de uma terceira conexão entre o tempo da tos na sucessão do calendário e corretamente datados.
consciência e o natural: trata-se dos vestígios, arquivos, bibliotecas, acer-
Para Ricoeur, o tempo histórico seria um terceiro tempo entre o da
vos. Se as gerações podem se comunicar e constituir sentido de co-par-
ticipaçáo, de compreensão recíproca entre seus membros e predecessores/ natureza e o da consciência, que estão separados por um abismo. O tempo
histórico — tanto o das sociedades, quanto o do conhecimento —, com os
sucessores afins, isso só é realizável através da leitura, do processamento e
mesmos recursos, com os mesmos conectores (calendário, sucessão de ge-
da interpretação de seus vestígios e sinais pelo historiador. As gerações, ao
rações, vestígios), organiza a vida humana transitória, mortal, finita e inte-
passarem pela parte superior da clepsidra, deixam sinais, marcas. O pre-
rior dentro do quadro permanente, duradouro e exterior da natureza. O ca-
sente possui as marcas da sua passagem. O presente é o "corpo do passa-
lendário conta e narra a vida humana, enumera o não-quantificável
do". O vestígio é "coisa" e "sinal". O lado material do vestígio — couro,
metal, madeira, barro, argila, cerâmica, pedra, papel, tinta etc. — é es- enquanto puro vivido humano. A vida ganha então inícios e fins, recome-
sencial, na medida em que permite que a mensagem dure. Quando o pre- ços, ritmos de trabalho e repouso, festa, sagrado e profano. O tempo ca-
sente se debruça sobre um vestígio, ele quer decifrar uma mensagem e, en- lendário organiza as gerações, a sua sucessão: conta os anos, marca conci-
nuidades e rupturas, data seus feitos, suas obras, seus nascimentos, mortes,
sequências e descontinuidades. O calendário organiza as fontes, os docu-
12 Ricoeur, 1983-85, v. 3, p. 180 ss.
mentos, os sinais, as mensagens humanas. O calendário seria o "número das
JOSÉ CARLOS REIS
T F- O R l A

mudanças das sociedades humanas" e estrutura o que, para Kant, é uma A perspectiva de fí. Koselleck: a especificidade
contradição: a presença e a ausência de um mesmo ser em um mesmo lugar, do tempo histórico e 3 crítica ao conceito
isto é, a mudança. O calendário numera o inumerável, narra o inenarrável: de tempo calendário
os ritmos mais rápidos e mais lentos, a singularidade e a transitoriedade da
vida humana. O tempo histórico é tempo híbrido, que solda uma fratura. Koselleck será usado aqui para pôr em dúvida a tese de Ricoeur
A vida breve ganha o vasto tempo natural; o tempo da inquietação (souci) sobre o tempo calendário como terceiro tempo. Para ele, o tempo his-
ganha a estabilidade do movimento dos astros. tórico está longe de ser resolvido pelo calendário e continua sendo a ques-
Mas, realizaria o tempo histórico tal pretensão? Seria de fato terceiro tão mais difícil posta pelo conhecimento histórico. Datas correras são
tempo? Responder afirmativamente é concordar com Ricoeur que o tempo essenciais, mas são apenas condições prévias e não podem definir o tempo
calendário faz essa mediação entre natureza e consciência. Responder nega- histórico. Não é na cronologia baseada em movimentos naturais que
tivamente não é negar que o calendário faça essa mediação, pois de fato ele pensa aquele que se interroga sobre as relações entre o tempo e a história.
a realiza, mas questionar os limites dessa mediação. Pode-se dar tanta ênfase Ele observa rugas no rosto do velho, os meios de comunicação atuais con-
ao calendário, quando se é historiador, e esquecer a especificidade do tempo vivendo com passados, a sucessão de gerações-culturas. O passado chega
humano, que é vivido, instabilidade, finitude e sucessão dispersiva? Impor ao presente em ruínas, aos pedaços, em fragmentos, pela ação erosiva do
ao tempo humano a regularidade da natureza não seria recair em certo na- tempo: prédios, templos, imagens humanas e sagradas, livros, ideias, ri-
turalismo positivista? Além disso, propor o calendário como solução defi- tuais, palavras, estórias, histórias, cemitérios, ícones, instrumentos, técni-
nitiva para o problema do tempo histórico não seria encontrar uma solução cas, artes etc. Em geral chegam cortados, amputados, desviados, quebra-
fácil para um problema bem mais complexo? Do ponto de vista positivista dos, incompletos, alterados, semidestruídos, mesmo (sobretudo) quando
(entendendo-se positivista como aquele que submete o tempo humano a são reconstruídos. São os restos de um mundo humano. Datá-los é fun-
ritmos naturais, apagando a diferença entre eles), o tempo calendário se damental, mas constitui apenas o começo do trabalho do historiador. O
confunde com o próprio tempo histórico: as sociedades são postas, linear e conceito de tempo histórico, portanto, não se refere ao tempo medido da
sucessivamente, umas em relação às outras, e os eventos, postos linear e su- natureza. Essa noção se liga a conjuntos de ações sociais e políticas, a seres
cessivamente uns em relação aos outros, são localizados com precisão nessa humanos concretos, agentes e sofredores, às instituições e organizações
sucessão. Se a sucessão dos eventos e das sociedades é corretamente datada, que dependem deles. Cada um com seu próprio ritmo de realização.
uma "história" se desdobra objetivamente, independentemente das hipóte-
- Koselleck não desvaloriza o calendário, a datação rigorosa. O
ses e construções do historiador. Concebido assim, o tempo histórico ganha Sf
tempo histórico não poderia existir sem se referir às medidas e unidades
uma objetividade, uma positividade que desfaz todo enigma e oferece uma
do tempo natural. Mas, afirma ele, a interpretação das relações entre os
enganadora solução: ele é a sucessão das sociedades e eventos humanos me-
processos sociais obriga à superação da medida natural. A datação é in-
didos pela homogeneidade e pela regularidade do calendário.
dispensável porque localiza um mundo histórico entre os mundos histó-
Todavia, Ricoeur não é positivista; longe disto: é um historicista e ricos sucessivos. Localizado no calendário, esse mundo histórico ganha al-
muito menos ingénuo quando realiza reflexões sobre o tempo. Aliás, es- guma identidade em relação aos outros. Mas, feito isso, é preciso adentrar,
tamos fazendo um uso elíptico de suas teses sobre o tempo histórico, pois empática e compreensivamente, o mundo humano recortado, sem se pro-
discutir seu conceito de tempo histórico exigiria muito mais esforço. Ele teger contra a sua instabilidade interna. Para conhecê-lo não basta situá-
sabe que o calendário é uma referência objetiva do tempo da consciência
e que ele não o reduz à sua estrutura. Dentro de suas medidas, prevalece
o incomensurável. Os ritmos heterogeneamente descontínuos, as lem- 13 Koselleck, 1990.
14 Ibid., p. 9.
branças e esquecimentos, as esperas e desilusões, a inquietação vivida.
]OSk
HISTÚPIA &r Tt U R I A

Io na sucessão, é preciso adentrar em seu interior, em sua especificidade, plíada; o horizonte de espera praticamente anulou o espaço da expe-
conhecer seus desvios, seus esforços, seu funcionamento interno instável. riência. Vive-se sob o signo da "revolução": uma contraçáo do tempo,
Conhecer um mundo histórico, para Koselleck, é responder a essa uma aceleração que quis pôr o futuro no espaço da experiência. A his-
questão maior: como, em cada presente, as dimensões temporais do pas- tória é portadora de informações sobre o futuro, a experiência não en-
sado e do futuro foram postas em relação? Sua resposta a essa questão é sina. Vive-se em um tempo de plena inovação. O tempo se desnatu-
sua hipótese sobre o tempo histórico: determinando a diferença entre pas- raliza, torna-se liberdade de criação do futuro. A história está
sado e futuro, entre campo da experiência e horizonte de espera em um disponível na ação, pode ser feita em liberdade. Passado e futuro se dis-
presente, é possível apreender alguma coisa que seria chamada de tempo tanciam muito e não se recobrem jamais;
histórico. Passado e futuro reenviam-se um ao outro e esta sua relação é T quarto — o tempo do Estado absolutista: ele teme essa aceleração mo-
que dá sentido à ideia de "temporalizaçáo". Na experiência individual, por derna do tempo, promovida pelas filosofias da história, onde percebe
exemplo, o envelhecimento modifica a relação entre espera e experiência. o seu fim, e procura ampliar o espaço da experiência pelo controle do
Quando se é mais jovem ou mais velho, o passado e o futuro significam horizonte de espera, através do prognóstico, do cálculo, de uma con-
diferentemente e sua relação se altera. Ainda usando o exemplo da expe- cepção naturalista do tempo (nada de novo pode ocorrer);
riência individual, pode-se distinguir uma idade cronológica, medida pelo
calendário, e uma idade interna, histórica. Os indivíduos sempre têm um T quinto — o tempo contemporâneo, pós-moderno: o tempo histórico
número de anos vividos, mas sua relação interna com o seu passado e o ainda í desnaturalizado, é liberdade de criação; a aceleração é relativi-
seu futuro, embora se relacione, não se submete à idade numérica. As so- zada. Há uma certa desaceleração devida a uma certa naturalização do
ciedades também existem em um número, uma data, e é indispensável co- tempo humano. Se a natureza não impõe seus ritmos, a história tam-
nhecê-la. Mas ao historiador interessa a sua idade interna, isto é, a relação bém não pode seguir um ritmo de plena liberdade. Há um controle ci-
que em seu presente, que sempre, cada sociedade estabelece com o seu entífico e técnico da natureza, que permite a política e o social, mas
passado e o seu futuro. não em total liberdade. O controle técnico científico obriga a atrasar
ações e decisões, leva ao planejamento.
Para esclarecer sua hipótese, ele dá alguns exemplos concretos de
relacionamento de presentes com seus passados e futuros:
O que possibilitou a Koselleck pensar esses tempos históricos es-
pecíficos foi sua hipótese teórica sobre o conceito de tempo histórico.
r primeiro — o tempo europeu anterior ao tempo medieval: o espaço da
Cada um desses cinco presentes europeus manteve com seus passados e fu-
experiência se impunha ao horizonte de espera. A história era conce-
turos relações diferentes. Isto é: o tempo histórico tornou-se pensável por
bida como "mestra da vida". O exemplo histórico é que orientava a es-
duas categorias principais: campo da experiência e horizonte de espera.
pera. A natureza humana era tida como contínua, repetitiva, sendo as
São categorias formais que tornam possível o conhecimento histórico. São
experiências transmissíveis. O futuro se reunia ao passado, a espera à
conceitos que constituem tanto a história vivida quanto a história conhe-
experiência, em uma continuidade;
cimento. Sem essas categorias a história seria impensável. A experiência é
r segundo — o tempo cristão: o futuro seria a interrupção do passado. Há o "passado atualizado"; a espera, o "futuro atualizado". Experiência e es-
uma aceleração do tempo em direção ao seu fim — passado e futuro pera são conceitos assimétricos: a espera não se deixa deduzir da expe-
se separam. O passado é a experiência do tempo e o futuro, a espera da riência; passado e futuro não se recobrem. A presença do passado é outra
eternidade; que a do futuro. Mas, assimétricos, não são conceitos antônimos. Da sua

T terceiro — o tempo moderno, entre 1500 e 1800: a diferença entre


campo de experiência e horizonte de espera continua fortemente am- 15 Koselleck, 1990, p. 310 ss.
194 H lST 6 R l A & T F. O R l ,\É CARLOS REIS

diferença c tensão aparece a temporalização. Um não se deixa transpor no está antecipadamente garantido, dado. Como um faxineiro (se é possível
outro sem que haja ruptura. Sua diferença revela uma característica es- esta metáfora), o historiador entra na intimidade da casa do "outro", que
trutural da história: o futuro não é o resultado simples do passado, em- saiu, para colocá-la em ordem: na sala, na cozinha, nos quartos, nos ba-
bora este traga conselhos, experiências e esperas retroativas. E a tensão nheiros, no escritório, na capela, sótãos, porões, cómodos escondidos, ar-
entre experiência e espera, portanto, que suscita diferentes soluções e en- mários falsos, cofre etc. ele encontra a mobília, a decoração, os papéis, os
gendra o tempo histórico. Uma relação estática entre eles é inconcebível. livros, as contas, as imagens, as músicas, os cheiros e perfumes, o vestuário,
Em Ricoeur, já feitas as devidas ressalvas, o calendário era a base hábitos de higiene, a vida sexual, a dieta, a disposição das coisas... Tudo
da sucessão de gerações e do vestígio: uma geração e um vestígio são, pri- isso em desordem e em restos: utensílios sujos, papéis rasgados, banheiros
meiro, "datas". Há um predomínio do tempo cosmológico sobre o tempo malcheirosos, roupas sujas, leituras pela metade, restos estranhos, enig-
da consciência. Ao lançar pontes, o tempo histórico dá mais peso aos mo- máticos, segredos... O passado pode ser repugnante a um nao-historiador.
vimentos naturais em relação às mudanças internas das sociedades. Em Como afirmar que a sala ou a cozinha ou o quarto determina em última
Koselleck, o calendário mantém o seu valor, mas o peso maior é dado às instância o mundo humano? Uma casa não tem centro: cada cómodo é
gerações e à sua comunicação por vestígios. Koselleck dá mais ênfase à um centro. Em cada cómodo um homem diferente, ao mesmo tempo em
mudança não-numerável, mas apreensível por conceitos, pela análise, pela relação e estranho ao do cómodo ao lado.
interpretação. O tempo histórico perde a sucessividade contínua, unifor- Enfim, íntimo, interior, revolvendo e organizando a vida do outro,
me e regular conferida pelo calendário. Ele se torna uma experiência par- em sua casa e na sua ausência, o historiador é mais que um mediador — é
ticular de uma sociedade presente que se relaciona com seu passado e seu um debatedor. Ele aprende com esses outros homens, tem sua própria vida
futuro. transformada pela experiência indireta dessas outras vidas. Sua vida indivi-
Estamos, portanto, em pleno tempo humano, interno, de lem- dual e a vida da sua sociedade, informada por ele, se enchem de outras pos-
brança e espera, esquecimento e frustração, finito, irreversível, devir e de- sibilidades, e a vida presente perde a dureza conferida pela ilusão de ser a
sejo de ser, de permanência e eternidade. Há tempos plurais, como são única vida possível, para se historicizar, se relativizar e se tornar somente
plurais as sociedades; tempos heterogéneos e não-lineares, pois as relações uma vida possível entre outras, a vida deste tempo presente. Ele e sua so-
de uma sociedade com o seu passado e o seu futuro variam. A precisão do ciedade, impregnados por esse interesse pelo "outro", são mais tolerantes,
conceito inclui a precisão do número, mas não se submete a este. O co- mais abertos, flexíveis, mais disponíveis à diferença, à alteridade.
nhecimento histórico produzido a partir desse conceito de tempo é uma O tempo histórico pode ser encarado aqui como um terceiro tem-
interpretação qualitativa, compreensiva, de um tempo humano tenso, in- po. Mas deixemos essa questão para o final, quando tentaremos concluir
quieto entre o passado e o futuro. O conhecimento histórico se desnatu- com uma "articulação possível".
raliza: perde o rigor do número e torna-se interpretação. Ao assumir as
qualidades do tempo da consciência, o conhecimento perde em rigor e
A perspectiva dos Annales: o tempo histórico
exatidão, imprecisa-se, torna-se um "conflito de interpretações" (para usar
estrutural — segunda perspectiva do tempo
uma expressão de Ricoeur).
histórico como terceiro tempo
O historiador, aquele que está postado na articulação dos tempos,
o clepsidra de ponta-cabeça, tem seu papel de mediador intensificado. E
A história feita pelos Annales sofreria a influência das ciências so-
um mediador mais sensível a um mundo histórico mais refinado, mais nu-
ciais, que apareceram nos séculos XIX-XX. As ciências sociais oferece-
ançado, menos estável e coagulado. Datada a sociedade, ele entra num
mundo qualitativo, que se desloca do passado futuro e se retém, que se in-
quieta, sofre e espera, em suas relações humanas intrincadas, em que nada 16 Reis, 1994a.
196 HISTÓRIA & TEORIA JOSÉ CARLOS REIS

riam uma nova abordagem do social que competiria com a abordagem Com sua crítica ao principal instrumento de organização da vida
histórica. Haveria uma tensão entre a milenar história e as novas ciências humana empregado pelos historiadores, as novas ciências sociais puseram
sociais. Minha hipótese é que o epicentro desse estremecimento está no em xeque a própria relevância do conhecimento produzido por eles.
conceito de "tempo humano". As ciências sociais não valorizam a abor- Sem a objetividade natural do calendário, a consciência se perde em seus
dagem sucessiva, genética, da história; elas não têm em grande conta o ritmos desordenados, passado e presente se misturam, sonho e realidade se
tempo calendário. Sua crítica ao tempo histórico tradicional começa pela confundem. Ela perde seu principal instrumento de auto-organização, de
revisão de seu conceito de calendário. Para as ciências sociais, os historia- autocoordenação. Contudo, as ciências sociais ofereceriam outra concep-
dores, no que dizia respeito ao calendário, partiam de um pressuposto dis- ção do tempo social, que acreditavam ser mais eficaz na compreensão da
cutível: o de sua incontestável objetividade. Merton e Sorokin afirmam sociedade, sem se referirem ao calendário. Criariam o conceito de "estru-
que o calendário não é exterior, natural, mas uma construção cultural. 18 tura social", que mais ameaça do que favorece o tempo histórico dos his-
Ele não é um exterior que se imponha à consciência — o tempo cósmico toriadores tradicionais. Por esse conceito, o tempo da física e da mate-
não é o organizador da vida humana. O calendário é uma criação da cons- mática são aplicados à sociedade. O "tempo social" das ciências sociais é
ciência, para se dar regularidade, homogeneidade, uniformidade, para me- imanente, circular e uniforme, intrínseco aos eventos ou ao modelo criado
lhor coordenar as suas atividades. para abordá-los. Não é um tempo que se refira à sucessão dos eventos, à
passagem do passado ao futuro. Esse tempo social tende à simultaneidade,
O tempo calendário é simultaneamente uma imposição astronó- o que era impensável até então para o mundo humano. Ele se desfaz da
mica e uma criação subjetiva; sobretudo esta última, pois tem uma obje- sucessão dos eventos, enfatiza menos as mudanças qualitativas e valoriza as
tividade social, humana. E uma criação, não um dado. Uma vez criado, transformações estruturais, que são como "movimentos naturais" na so-
objetiva-se, torna-se um dado. Essa objetivação de uma criação é neces- ciedade. Busca-se na sociedade o que a física encontra na natureza: uni-
sária para torná-la indiscutível e eficaz. Imposição astronómica, ele é so- formidade, reversibilidade, homogeneidade, quantidade, permanência. O
bretudo um coordenador das atividades humanas e, portanto, uma cons- tempo social é, portanto, anti-sucessão — é da ordem da simultaneidade,
trução cultural. Enquanto construção cultural, o tempo calendário é uma da reversibilidade e interdependência dos eventos humanos. As ordens su-
imposição do tempo da consciência sobre o tempo cósmico. É uma ponte cessivas do calendário e das filosofias da história, que antes organizavam a
frágil, que mais revela o abismo que queria suprimir do que o supera. Os vida humana, perdem sentido.
movimentos dos astros só têm significado quando utilizados pelos grupos As ciências sociais têm uma orientação conservadora em qualquer
sociais. E esses grupos não usam somente o calendário como referência, das suas tendências. Seu objetivo é dominar o evento, a instabilidade do
mas coordenam entre si os eventos sociais. Cria-se um "relógio social" — tempo da consciência. Elas surgiram contra a aceleração do tempo pro-
depois da I Guerra Mundial, por um semestre letivo, por um dia de trabalho, duzida pela modernidade revolucionária, contra a mudança brusca, febril,
enquanto se come um quilo de sal, enquanto se cozinha o arroz. São inter- barulhenta, e vêm propor a desaceleração do tempo das sociedades, isto é,
valos sociais independentes do calendário. Os nomes dos dias, semanas, querem tornar mais lenta ou até apagar a sucessão e, para isso, tendem à
meses, estações são fixados pelo ritmo da vida coletiva. O tempo social "simultaneidade atrasada" dos eventos: um presente mais contemporâneo
não é, portanto, astronómico, mesmo que se refira aos movimentos dos e solidário com o passado do que com o futuro. Seu objetivo é controlar
astros, mas uma construção cultural. A duração social é sobretudo sim- a mudança social, tornando-a segura e previsível, gradual e harmoniosa, e
bólica: múltipla, descontínua, heterogénea, não-linear.

19 Lévi-Strauss, 1983.
I7 Simiand, 1960. 20 Piaget, 1970; Boudon, 1968; e Lévi-Strauss, 1983.
18 Sorokin & Merton, 1937. 21 Nisbet, 1972; e Reis, 1994b:93 ss.
198 1 1 s T ó p, i A Si T E O R I A JOSÉ CARLOS REIS

evitar as acelerações revolucionárias que quebram as estruturas sociais e Na primeira perspectiva, a vida humana, sucessiva e dispersiva, as-
nada ofetecem. O conceito de estrutura social desvitaliza o evento, desfaz simetria entre passado e futuro, continuava sucessiva e artificialmente con-
a mudança substancial. Os mais radicais estruturalistas até eliminam o tínua, linear e regular, quando enquadrada pelo calendário. Nessa segunda
• í perspectiva, os eventos humanos são inseridos numa ordem não-sucessiva,
tempo histórico, que é a consideração da mudança, da assimetria passado/
í **-* mas simultânea. A relação diferencial entre passado, presente e futuro se en-
futuro. Ele é substituído por um tempo lógico, formal, matemático. A P* &,
análise estrutural da sociedade recupera a inspiração mitológica — a do fraquece, isto é, a percepção sucessiva do tempo histórico é enquadrada por
1|
tempo abolido em um eterno presente. Os eventos-choque são amor- «í uma percepção simultânea. A referência ao calendário, à sucessão de gera-
ções, torna-se secundária. As mudanças humanas se naturalizam: endure-
tecidos quando integrados na estrutura social como elementos que trans-
cem-se, desaceleram-se. Tornam-se semelhantes aos movimentos naturais e
formam a sociedade, mas não a mudam. O presente se liga ao passado e
incorporam as qualidades destes: homogeneidade, reversibilidade, regulari-
o passado ao presente de tal forma que o passado se torna presente e o pre-
dade, medida.
sente se imuniza de sua sorte, que é se tornar passado. Presente e passado
Abraçado à cintura da clepsidra, o historiador transforma o tempo
ligados, abole-se a sua difetença e o que esta representa — a temporali-
humano em "placas vivas", "lâminas temporais", "bandejas de vida",
dade. A perspectiva estrutural é anti-histórica: recusa a sucessão, o vivido,
"quadros vivos"... Os homens não tendem à mudança; nem mesmo apre-
o evento, o singular — enfim —, a mudança, e propõe o sistema, a si-
ciam mudar. O que eles apreciam é continuar, permanecer. Eles querem
multaneidade, o modelo, a quantidade, o formal, a abstração.
levar o passado ao futuro, apagar a sua diferença e assimetria, para evitar
Os Annales, das três gerações, se mostrariam sensíveis a essa argu- o atrito, o barulho, a tensão, o desconforto da mudança. Os homens pre-
mentação das ciências sociais sobre o tempo histórico e empreenderiam a ferem viver num mundo reconhecível, sem planos e reflexões, inovações,
reconstrução desse conceito. Sob a influência das ciências sociais, a his- fraturas. Preferem morar, demorar em sua vida rotineira, pacífica, eterna.
tória, antes estudo exclusivo da sucessão dos eventos, da mudança, da pas- A própria noção de sociedade, de tempo coletivo, já revela o esforço dos
sagem do passado ao futuro, da diferença temporal sucessiva, e que sem- indivíduos para criarem a estabilidade, para vencerem sua condição efé-
pre privilegiou o evento e quis ser uma descrição da mudança, seria mera. Social, económico, mental, o mundo humano é sólido, permanen-
obrigada a incluir em seu conceito de tempo a permanência, a simulta- te, estruturado: coeso, regrado, compartilhado, involuntário, inconscien-
neidade.24 Os Annales, e Braudel em particular, construiriam o conceito te, repetição dos mesmos gestos, palavras, atitudes. Há uma resistência ao
de "longa duração", que ao mesmo tempo incorpora e se diferencia do futuro: passado e presente se unem, endurecem-se, resistem ao futuro. A
conceito de estrutura social das ciências sociais. A longa duração é a tra- vida ganha datas amplas, oscila e se agita no interior de limites, beiradas,
bordas, molduras largas...
dução, para a linguagem temporal dos historiadores, da estrutura atem-
poral dos sociólogos, antropólogos e linguistas. Ao passarem à conside- Os Annales abordam o mundo humano com essa concepção de
ração da dialética entre mudança e permanência, entre longa duração e tempo histórico. Constatam, então, que agir (faire l'histoiré) e conhecer
(faire de l'histoire) são atividades distintas, que não se recobrem.27 O co-
evento, os Annales produziram uma mudança substancial no conceito de
nhecimento não "narra" o vivido tal com ele se passou, não é a sua cons-
tempo histórico. Eles teriam criado uma segunda perspectiva sobre o tempo
ciência, é diferenciado dele. A realidade histórica não é transparente. Ela
histórico como terceiro tempo.
resiste ao conhecimento e à ação. Nem sua análise, nem a intervenção
podem se realizar de forma especulativa. Antes de se pretender agir sobre
22 Lévi-Strauss, 1971:533 ss.
23 Reis, 1994a.
2 6 Pomian, 1988:118.
24 Ibid.
25 Vovelle, 1982; e Braudel, 1969. 27 Pomian, 1984:92 ss.
JOSÉ CARLOS REIS 201
l-i ! 5 T (J f, l

lírica e biográfica; o conhecimento histórico pode incluir a quantidade, o


a realidade, alterando-a, provocando mudanças, forçando-a a passar ao fu-
conceito, a análise, a problematização, pois não é um mundo que se esvai,
turo, é preciso conhecer suas resistências, percebê-la corno um nó górdio
volátil, mas durável.
de passado e presente. Desatá-lo com a espada, porque "de acordo com a
Razão', porque se conhece seu sentido, é produzir o drama, a tragédia. No tempo histórico dos Annaies há uma consciência opaca, incons-
Como um "nó passado/presente", a sociedade será considerada coisa, per- ciente, que possui algumas das características do tempo natural: constância,
manência, continuidade inerte, repetição constante do mesmo, tendência à ro- regularidade, repetição, ciclos, homogeneidade, quantidade. O tempo his-
tina e ao repouso do cotidiano. E esse nó deve ser desatado como se des- tórico incorpora as qualidades da consideração da simultaneidade. Entre-
monta uma bomba — de forma lenta, gradual, técnica, informada, serena tanto, convém repetir, os Annaies não abrem mão da qualidade, da sucessão,
e prudente. Senão, o drama, o barulho e o furor do evento. não deixam de considerar a mudança qualitativa, o evento. E por isso man-
Os Annaies perceberam que o sentido da história, das suas mu- têm a identidade de historiadores. A longa duração inclui e explica o evento;
danças, não se dá a um conhecimento especulativo, mas pela pesquisa ci- ela não o abole. Ela o supera dialeticamente. No final, nessa dialética da
entífica, que implica coleta de dados e teorização particularizada. Não se duração que é o tempo histórico dos Annaies, percebe-se, confessada ou não,
pode propor o futuro já, pois este é desconhecido e inantecipável. Pre- consciente ou inconscientemente, a recusa da ideia de revolução e tudo o
tender implantar esse desconhecido no presente é sacrificar o presente e o que ela implica: aceleração do tempo dos eventos, isto é, ênfase na mudança
passado, é implantar a tragédia, o horror da iniciativa sem peso, sem gra- acelerada, na assimetria intensificada entre passado e futuro, e conhecimen-
vidade. Porém, no tempo histórico dos Annaies, a mudança é preservada to especulativo do sentido da história. A história estrutural enfatiza os mo-
contra a atemporalidade da estrutura das ciências sociais. Mas é uma mu- vimentos lentos e representa uma desaceleração das mudanças, um quase
dança limitada, que tende ao retorno ao chão do mundo conhecido — ja- apagamento da assimetria/diferença temporal entre passado e futuro, que é
mais a ruptura descontrolada. O evento pode até ter repercussões subs- a consideração da simultaneidade na sociedade.
tanciais, pode até ser como uma nave espacial que desafia a Lei da
Gravidade, mas respeitando a estrutura que o sustenta e o torna possível.
Para os Annaies, o homem não é só sujeito, consciente, livre, potente cria- Conclusão: uma articulação possível
dor da história; é também, e em maior medida, resultado, objeto, feito
pela história. O tempo histórico dos Annaies é uma desaceleração caute- Para se afirmar a existência de um terceiro tempo é preciso repor as
losa, uma reação à aceleração revolucionária baseada em um conhecimen- características do primeiro e do segundo. O tempo natural é "número de
to especulativo do sentido da história. movimentos": reversível, não-direcionado, contínuo, uniforme, irreflexivo,
Ao incorporar a consideração da simultaneidade, que é a domi- repetitivo, circular. Não há assimetria entre passado e futuro, nada de novo
nação da assimetria entre passado e futuro, a história tornou-se outra que há na natureza, que é uma constância, um ser que permanece no ser. Quan-
a tradicional: mudou seus objetos, mudou seus historiadores, mudou seus to ao tempo da consciência, ele é o das mudanças humanas: irreversível, di-
objetivos, mudaram-se os seus problemas disciplinares. Apareceu o que recionado, heterogéneo, descontínuo, múltiplo t reflexivo; é evento, inova-
antes parecia não existir, quando a história era dominada pela considera- ção, liberdade. E um tempo vivido — sofrimento do devir e esperança na
ção exclusiva da sucessão: um mundo histórico mais durável, mais estru- alegria da eternidade, "a delícia do que vem e não passa". Neste caso, há
turado, mais resistente às mudanças — as estruturas económicas, sociais e assimetria entre passado e futuro, sempre há novidade, pois o mundo hu-
mentais.2 Neste mundo, as ações humanas são coletivas, inconscientes,
anónimas, repetitivas; a documentação é involuntária, massiva, menos po- 29 Braudel, 1969.
30 Burguière, 1971:iv-vii.
Sainc Augustin, 1982.
28 Vovelle, 1982:208 ss.
202 T EO Rl f
jo st CARLOS REIS 203

mano é o da diferença constante, da alteridade. Deixa-se sempre de ser, há rosa. Contudo, o calendário só realiza uma intermediação imperfeita,
um ser que se separa constantemente de si pela mudança ou pela morte. Um pois não incorpora a simultaneidade da natureza, sendo a numeração
terceiro tempo que fizesse a mediação entre o primeiro e o segundo c o se- de seus processos repetitivos. Ele é uma organização sucessiva da na-
gundo e o primeiro deveria ser um tempo original, diferenciado do primeiro tureza. Submetidas a ele, as mudanças humanas, que são essencialmen-
e do segundo, mas reunindo-os. Entretanto, reunir os dois primeiros parece te sucessivas, continuam sendo sucessivas, inscritas nas ordens astro-
impossível. Seria reunir características temporais que revelam antes uma nómicas. A história não encontra a simultaneidade, mas a sucessão
ruptura, uma antítese: natureza e consciência, movimento e mudança, re- numerada. O mundo humano não ganha densidade; continua sendo
f*
petição e evento, continuidade e descontinuidade, reversibilidade e irrever- devir, só que numerado. Se já era sucessão, a história continua suces-
sibilidade, ordem e dispersão, simultaneidade e sucessão. são. Isto é: se já era incognoscível, por ser mudança sucessiva, a his-
Se é tão difícil essa mediação, por que não ficar na diferença? Para tória, ao ganhar datas, põe número na sua sucessão, mas continua im-
que procurar um terceiro tempo mediador? Resposta possível: porque o perfeitamente cognoscível.
tempo da consciência, que é mudança permanente, não teria condições de
Koselleck daria importância ao calendário, mas como uma referência se-
se autocoordenar e se conhecer sem uma certa relação com o tempo natural,
cundária, apenas operatória. Em sua concepção do tempo histórico, es-
que é só permanência. O mundo humano fugidio, fluido, volátil, que tende
tamos em pleno tempo humano, num tempo que possui sobretudo as
ao não-ser, precisa, para permanecer, pelo menos enquanto conhecimento,
características da consciência. Ele não produz um terceiro tempo, mas
de apoios/ganchos exteriores que possibilitem a sua manutenção no ser. O
introduz o que talvez seja essencial à constituição de um terceiro tempo:
tempo histórico precisa ser uma intermediação entre consciência e natureza,
a perspectiva da simultaneidade. Não é ainda perspectiva estrutural, mas
pois o historiador quer conhecer as mudanças humanas, o incognoscível,
mais historicista: é a capacidade da consciência de se reter, de se relacio-
pois não se pode conhecer o que deixa de ser e quase nunca é. O historiador
nar consigo mesma e de permanecer no ser sem precisar se naturalizar. A
não poderia realizar seu objetivo sem endurecer de alguma forma, sem con-
consciência permanece sem se endurecer. Pelo contrário, ela é sempre
gelar esse fluxo incessante e sem retorno.
transição do passado ao futuro, é sempre sucessão, diferença temporal.
A partir das análises anteriores, surge uma questão: o tempo his- Mas é também articulação de passado/presente/futuro. Em Koselleck, o
tórico, nas três perspectivas consideradas, realizaria uma tal intermedia- tempo histórico é percebido como diferença temporal (sucessão) e como
ção? Uma intermediação perfeita garantiria um conhecimento histórico articulação temporal (simultaneidade). O presente inclui em sua identi-
perfeito. Como este não é perfeito, mas existe assim mesmo e é eficaz, de dade as dimensões do passado e do futuro: inclui o espaço da experiência
certa forma existe a intermediação. Mas ela é imperfeita. Tentemos a ar- e o horizonte de espera. Enquanto articulação de passado e futuro em
ticulação possível: um presente, a ideia de simultaneidade é formulável no próprio mundo
humano.
T O tempo calendário é uma primeira perspectiva do tempo histórico
como terceiro tempo. Ele realiza essa intermediação apenas parcial- Nos exemplos de Koselleck, o que se tem são presentes longos, secu-
mente. Na medida em que correlaciona a sucessão histórica à sucessão lares, em que se mantém uma mesma relação entre experiência e es-
natural, ele reúne o tempo natural e o humano. Ele atribui um número pera. Mas não se trata de uma simultaneidade do tipo natural: regular,
à mudança, enquadrando-a e tornando-a abordável. A datação do des- reversível, repetitiva. Cada presente articula-se com o passado e o fu-
contínuo e mortal oferece a esse tempo continuidade e imortalidade: turo em ritmos diferenciados. A simultaneidade pode ser avançada —
ele existiu em certa data e local. Os indivíduos concretos, com seus o presente solidário do futuro, contra o passado; ou atrasada — o pre-
nomes e ações, e as gerações e seus vestígios são fixados no movimento sente solidário do passado, contra o futuro. Aqui se tem um terceiro
repetitivo dos astros. Ganham uma sucessividade mais ou menos rigo- tempo? Por um lado, o calendário é preservado; por outro, a noção de
204 H [ S T O i1- i T E Cl It l JOSÉ CARLOS REIS 205

simultaneidade, por estar mais do lado da consciência, não permite a G. G. Granger é otimista: considera que nessa dialética de estru-
medida, a reversibilidade, a comparatividade etc., mas somente inter- tura e evento é que estaria a possibilidade de um conhecimento histórico
pretações e avaliações qualitativas. Não seria esse o tempo histórico seguro. ~ Mas, atento à ameaça do conceito de estrutura à historicidade,
mais fecundo, rnais adequado à produção de um conhecimento histó- considera, agora mais prudente, que o problema essencial das ciências hu-
rico que respeite a especificidade do mundo humano? Caso se aceite manas e da história em particular é o da conceptualização do seu tempo.
sua imprecisão... E é com esse mesmo espírito entre otimista e prudente, sempre disposto à
consideração e à reconsideração, que encerro essas reflexões e notas sobre
A noção de um terceiro tempo parece ganhar mais consistência com o o tempo histórico.
conceito de "longa duração", de "história estrutural". Os eventos huma-
nos, sem deixarem de ser sucessivos, são inseridos numa ordem não-su-
cessiva, simultânea. A referência ao calendário continua essencial, mas Bibliografia
apenas operatória também. Tem-se uma noção mais crítica do conceito
BOUDON, R. A quoi sen Ia notion de "structure"? Paris: Gallimard, 1968.
de calendário, o que aumenta sua eficácia. A ênfase temporal é a da co-
BRAUDEL, F. Ecrits sur 1'histoire. Paris: Flammarion, 1969.
ordenação dos eventos entre si. Um tempo matemático se impõe à so-
ciedade e encontra nela as características naturais. O que tendia a não BURGUIÈRE, A. Histoire et structure. Annales ESC (3), mai/juin 1971.
ser, a passar, permanece, continua, muda menos. Descobre-se o mundo GRANGER, G. G. Evénement et structure dans lês Sciences de 1'homme. Cahiers de
humano como reversibilidade, uniformidade, quantidade, previsibilida- 1'Institut de Science Economique — ISEA (55), mai/déc. 1957.
de, simultaneidade. Sem nenhuma referência exterior, natural. A socie- GUITTON, J. Justification du temps. Paris: PUF, 1941.
dade não se diferencia mais da natureza, parece não haver mais um abis- KOSELLECK, R. Lê futur passe: contribution à Ia sémantique dês temps histori-
mo entre elas. Um tempo matemático abole a sua diferença, pois vazio ques. Paris: EHESS, 1990.
de realidade. A sucessão é articulada à permanência. LADRIÈRE, J. Temps et histoire. In: Lê temps. Bruxelles: ULB, 1988.

O tempo histórico dos Annales articula mudança e estrutura, sucessão . Approche philosophique du concept de temps — lê temps cosmique et lê
temps vécu. In: Temps et devenir. Wavre, Belgique: PULLN, 1984.
e simultaneidade. O mundo humano invertebrado ganha uma coluna
dorsal, vértebras, ossos, estrutura-se. O risco que o historiador corre ao LAVELLE, L. Du temps et de l'eternité. Paris: Aubier, 1945.
usar esse tempo estrutural é o da abolição da historicidade, minimi- LÉVI-STRAUSS, Claude. Histoire et ethnologie. Annales ESC (6), juil./aoút 1983.
zando a assimetria passado/futuro, mundo do souci, da sua caça — a . Lê temps du myrhe. Annales ESC ( 3/4), mai/aoút. 1971.
carne humana. Seria perder, então, a sua capacidade mediadora e não
NISBET, R. Uhistoire, Ia sociologie et lês révolutions. In: HINKER, F. & CASA-
conhecer mais a história. A longa duração é um conceito rico, se man- NOVA, A. (dirs.). L'historien entre lethnologue et lefaturologue. Paris: La Haye, 1972.
tém a sucessão, a mudança, se não se atemporaliza em uma estrutura.
PIAGET, J. Lê structuralisme. Paris: PUF, 1970. (Que sais-je?)
A longa duração "materializa o humano", naturaliza-o, para torná-lo
POMIAN, K. Uhistoire dês structures. In: LÊ GOFF, J. (dir.). La nouvelle histoire.
abordável e conhecível numericamente. Mas apaga a sucessão, ameaça
Bruxelles: Complexe, 1988.
a especificidade do tempo humano, perde a sua caça, fracassa no co-
nhecimento do que é e deixa de ser. E a história permanece incognos- . L'ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984.

cível, mesmo que o historiador se arme dos cuidados metodológicos


32 Granger, 1957:37 ss.
mais sofisticados e das técnicas mais finas e originais.
206 HISTÓRIA & TEORIA

PRIGOGINE, 1. & STENGERS, L La nouvelle alliame. Paris: Gallimard, 1979. C A P I T U L, O 6

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VOVELLE, M. La longue durée. In: Ideologies et mentalités. Paris: Maspero, 1982.

A Revolução Francesa e a redescoberta da história

A principal consequência da Revolução Francesa, durante o sé-


culo XIX, foi uma mudança profunda na percepção do tempo, que levou
à redescoberta da história. Esse evento complexo revelou a história em duas
direções: do presente ao passado, do presente ao futuro. A história foi re-
descoberta seja como produção do futuro, seja como reconstrução do pas-
sado. O revolucionário tempo burguês, acelerado em direção ao futuro,
utópico, confiante na Razão e na capacidade dos homens de fazerem a his-
tória, encontrou a resistência de um tempo aristocrático, desacelerado, re-
trospectivo, reflexivo, meditativo, contemplativo, que desconfiava da Razão
e suspeitava dos seus pretensos portadores e parteiros do futuro. A Re-
volução Francesa aprofundou a divisão dos homens entre revolucionários
e conservadores — entre cultuadores da história como produção do futuro
e cultuadores da história como reconstituição fiel do passado. Comte viu
a tomada da Bastilha como o início de uma época de grave crise moral que
só a filosofia positiva poderia resolver. Era um francês contra-revolucio-
nário. Kant viu na Revolução Francesa a confirmação da sua teoria do
progresso moral da humanidade. Hegel a saudou com entusiasmo. Para
Kant e Hegel, ela representou a chegada da Razão à história: justiça, or-
dem, liberdade, moralidade. Ela revelou o sentido do trabalho humano ou
do espírito: a construção de uma sociedade racional, moral. São dois raros
filósofos alemães revolucionários. Ninguém ficou indiferente a esse even-
f JOSÉ CARLOS REIS 209
208 H I S T O R I A ôc T F o R I A

cionalismo iluminista, os historicistas o consideravam uma ameaça à so-


to, que revelava intensamente a. história ou como possibilidade de mu-
ciedade estabelecida. Afinal, quem, que sociedade concreta poderia dizer
dança profunda ou como fidelidade intensa à tradição. O sentido histó-
o que são os "direitos universais" ou a "liberdade em geral"? Para eles, ao
rico, na verdade, deveria articular conhecimento do passado e produção
contrário, seria preciso conhecer e reconhecer, compreender o indivíduo
do futuro, sem romper essas duas dimensões. Mas não foi assim que se
concreto e histórico, a partir de um estudo empírico de sociedades parti-
pensou a história no século XIX. Era preciso tomar posição, optar e agir.
culares. Não se pode fazer história com especulações sistemáticas e abs-
Foi no século XVIII que se intuiu pela primeira vez esses dois sen-
tratas, mas com o estudo de dados empíricos, de fatos particulares, que ge-
tidos da história: o primeiro, revolucionário e emancipacionista, foi ela-
ralmente proíbe a intervenção radical no vivido. O racionalismo idealista
borado pelos iluministas, franceses e alemães, e se radicalizou com o mar- aborda um ohjeto inexistente — o homem em geral, irreal, virtual, a na-
xismo, nos séculos XIX/XX; o segundo, conservador e tradicionalista, foi
tureza humana transistórica. A história trata de homens concretos, em
revelado pelo italiano Giambatista Viço e se radicalizou com a Escola His- suas relações concretas e particulares, em sua experiência vivida e sofrida
tórica alemã e os historicistas, nos séculos XIX/XX. Esses dois sentidos se da finitude.
excluem e opõem os historiadores do século XIX aos filósofos do século
Esta é a revolução cultural historicista: uma revolução contra-re-
XVIII. Os historiadores, que viam a história como uma reconstituição fiel
volucionária — a descoberta da história como fidelidade aos homens do
do passado, combatiam os filósofos, que a viam como uma ruptura com
passado. Ela não desvalorizava os séculos anteriores ao XVIII, como fa-
o passado e uma construção do futuro. Portanto, parece haver um con-
ziam os filósofos. Não opunha ao futuro de emancipação e luzes um pas-
fronto sem conciliação possível entre iluministas e historicistas. A Escola
sado de tirania e trevas, que seria preciso denunciar e destruir. Os histo-
Histórica alemã se opôs à Revolução Francesa e aos filósofos que a legi-
ricistas queriam avaliar uma época segundo seus próprios critérios e
timavam. Para os historiadores alemães, somente a filosofia, e não a his-
valores. Para o historiador não é evidente que a Razão governa o mundo.
tória, poderia legitimar a revolução. Os filósofos a justificavam com uma
Esta é uma convicção de filósofos. A aplicação da razão especulativa ao
ideia a príori e universal da sociedade, ignorando as tradições históricas
mundo dos homens tinha levado aos excessos da Revolução Francesa.
dos povos particulares. Para o historiador, não é a Razão que organiza a
Para eles, ao contrário, pensar a história filosoficamente, abstratamente, é
história, pois é uma hipótese filosófica. Contra a revolução, a Escola His-
que levava ao fanatismo, à tirania e às trevas. A teoria não é capaz de di-
tórica alemã buscava no passado uma justificação das instituições feudais
rigir as coisas humanas. A vida humana é particular. A teoria trata de ge-
ainda predominantes no presente. Ela pesquisava as origens históricas das
neralidades. A vida humana, particular, singular, individual, é objeto da
sociedades para mostrar que toda instituição nascida e desenvolvida na
história c não da filosofia. A história é muito mais importante do que a
história era válida nela mesma e não precisava da Razão para se legitimar.
teoria. As instituições humanas e o vivido humano não são o resultado do
A Escola Histórica quis opor aos conceitos abstratos da filosofia o estudo
cálculo e da razão, mas de um processo histórico, independente da vontade
empírico de homens vividos, reais. consciente dos indivíduos. Não se pode propor a mudança radical e vio-
Os historiadores alemães recorriam ao estudo de fatos concretos e lenta em relação ao passado, pois isso seria radical e violento. E seria justo?
positivos para justificar a ordem existente. A revolução estaria assim de-
Eles consideravam o estudo da história e da tradição mais digno
sacreditada em seu direito: baseado em que se poderia fazer a mudança do que o da filosofia. Os indivíduos não se ligam por contratos abstratos,
profunda, a ruptura com o passado? Na história, solo e fundamento do
mas pela tradição comum. Os historiadores alemães não viam as institui-
mundo dos homens, não seria possível! Só recorrendo a ideais de socie-
ções surgirem de decisões racionais, mas como expressões inconscientes de
dade, à especulação filosófica, poder-se-ia legitimar a ação revolucionária.
uma "alma histórica". Eles queriam apreender o génio de um povo, que
Mas nada poderia fundamentar e legitimar tais ficções filosóficas. Esse ra-

2 Suter, 1960; e Iggers, 1975 e 1984.


1 Suter, 1960.
212 H I S T Ó R I A & T c o Ri A JOSÉ CARLOS REIS 213

das Luzes, para eles, era uma ideologia francesa. Quanto aos seus aliados ale- que justificasse as instituições existentes de cada nação, compreendendo-
mães, Kant, Hegel, Marx e outros, eram francófilos e deveriam ser comba- as em sua história particular. A defesa da história científica, da autonomia
tidos com o mesmo vigor. Napoleão e o Iluminismo francês eram os ad- das ciências humanas e da especificidade dos seus métodos teria realmente
versários a abater. A Alemanha, contra-atacavam os historicistas, não tinha essa dimensão política conservadora?
nada a aprender com a França. Seu discurso universalizante legitimava o ex- De fato, os historicistas combateram a revolução, a dissolução do
pansionismo francês; seu pensamento aistórico fortalecia posições francesas. passado, proposta pelos iluministas. Seu projeto era fortalecer o passado
Assim, o historicismo não foi apenas uma formulação teórica sobre a his- construindo uma história científica, que o reconstruísse com a maior fi-
tória, nem o Iluminismo era só uma teoria. Eram um pensamento alemão delidade, que o cristalizasse e o endurecesse. A história científica veio
contra um pensamento francês, em um contexto de guerra, quase eterno, opor-se à história filosófica, aguarrás do passado! Eles refundaram a his-
entre os dois povos. O papel político do historicismo seria o de defender os tória como estudo documentado, visando recuperar a verdade do passado.
direitos locais alemães contra o expansionismo nacionalista francês oculto "Verdade" fiel, sem véus, nua, crua, que o legitimaria e consolidaria. Se a
sob seu discurso universalista. história científica pudesse vencer toda especulação, todo subjetivismo te-
Para Aron, um francês que se interessou pelo pensamento histo- leológico, e restaurasse o passado em sua verdade, ela servjria à sua con-
ricista alemão justamente nos anos 1930, este exprimia uma atitude e uma servação. E foi com esse espírito que os estudos históricos ganharam gran-
situação: à aristocracia alemã repugnava a civilização de massas, o indus- de prestígio na Alemanha do século XIX. Apesar do idealismo alemão, ou
trialismo e o socialismo. O historicismo correspondia a uma época incerta talvez por causa da qualidade imensa dos seus filósofos, como resistência
dela própria, a Alemanha pré-revolucionária, que recusava o futuro que a eles, no século XIX, a vida espiritual alemã esteve mais dominada pela
vislumbrava e oscilava entre o fatalismo lúcido e a revolta utópica. Ele história do que pela filosofia. O método crítico dos historiadores arruinou
afirmava o que historicamente veio a ser, em qualquer tempo, o valor sa- as filosofias da história. A história foi a principal frente de resistência à
grado da tradição. Ele negava a mudança. Era conservador, tradicionalista, metafísica. A história científica buscou diferenciar as duas dimensões ob-
anti-revolucionário. Para o historicismo, a história serve à educação nacio- jetivas do tempo — passado e presente —, evitando profetizar sobre o fu-
nal, para renovar e consolidar o espírito comum aos membros de uma na- turo. Essa história valorizava as diferenças humanas no tempo, dando ên-
ção. Ele defendia a liberdade política num Estado forte e lutava pela uni- fase ao evento irrepetível, finito, datado. O objeto do historiador não era
dade da Alemanha sob a liderança da Prússia. Contra os partidários da a ideia, a razão, a providência, a utopia final, mas o mundo humano da-
democracia e do socialismo, herdeiros da Revolução Francesa, Aron de- tado e localizado, uma situação humana espaço-temporal, concreta, única:
fendia as instituições tradicionais da monarquia prussiana. Para os histo- o evento. Essa consciência histórica do século XIX é que foi, de modo ge-
ricistas, os revolucionários aplicavam à sociedade o método naturalista. ral, denominada historicista. Em oposição a todo pensamento aistórico, o
Eram positivistas ao conceberem a sociedade como uma justaposição me- historicismo era um anti-racionalismo, um antiabstracionismo, um anti-
cânica de indivíduos iguais e ao se recusarem a reconhecer os privilégios universalismo. Ele era o defensor de uma outra razão: a razão histórica/
históricos e a evolução específica de cada nação. As ciências naturais vie- É inegável que a história científica do século XIX era profunda-
ram apoiar os revolucionários em sua luta contra a história e a tradição, le- mente conservadora. Na perspectiva dos iluministas, que ainda sobrevivia,
gitimando sua tese de que todos são iguais, submetidos às mesmas leis na- e forte, nas numerosas revoluções dos séculos XIX/XX, ela devia ser com-
turais e universais. Seu "individualismo competitivo" era legitimado por batida como uma ideologia aliada do passado, que seria preciso destruir
leis naturais. O único meio de lutar contra tal aliança revolucionária — junto com ele. Ela legitimava as trevas e a tirania. Mas, argumentavam os
culto do futuro e culto do universal — seria constituir uma ciência prática,
6 Aron, 1938a.
7 Schnadelbach, 1984; e Iggers, 1984.
5 Meinecke, 1982; e Iggers, 1975 e 1984.
Jos£ CARLOS REIS
214 11 l s T o R s A & T E O R I A

formulado por Wilhelm Dilthey, mas o chamarei de historicismo por Irí-


historicistas, o futuro, que não é ainda, pode ser objeto de conhecimento?
bito e por ser a forma mais frequente na bibliografia não-alemã, espe-
Não seria somente o passado conhecível, por ser a dimensão estável e con-
cialmente a francesa, a que mais utilizo.
solidada do tempo humano? As expressões, as objetivações da vida huma-
na não constituem o passado? A vida vivida não é a passada? Pode-se abrir Desde o início, venho tentando definir o historicismo alemão, con-
mão dos antepassados e preferir os descendentes? E pode-se ir ao passado trastando, em uma linguagem quase de manifesto, suas teses sobre a his-
com os valores do presente ou deve-se abordá-lo em sua diferença e em tória com as do Iluminismo francês. Geralmente, e seguirei essa direção,
seus próprios termos? Pode-se agir radicalmente, sem conhecer as condi- opõe-se o século XIX ao XVIII como fiz anteriormente: história, homem-
ções e limites que o passado impõe à ação? A vitória da Razão poderia ga- devir, individualidade em desenvolvimento, relatividade dos valores vénus
rantir que o futuro não seria de trevas e tirania? Os historicistas julgavam filosofia, racionalismo, natureza humana, valores e direitos universais, hu-
que uma história científica devia compreender o passado e, com simpatia, manidade transistórica. No século XIX, afirma-se, uma "individualida-
recebê-lo "tal como se passou", conhecê-lo em sua lógica intrínseca, em de em desenvolvimento centrado em seu interior" se opôs à "humanidade
sua vida própria, em seu tempo, em sua historicidade singular, evitando em direção à sua realização universal final". Entretanto, Ernest Cassirer é
todo anacronismo. Isto, sim, seria de fato a "história", o conhecimento ci- um dos autores que consideram que o pensamento do século XVIII não
entífico dos homens no tempo. A história científica queria se aproximar pode ser visto como aistórico. Essa tese foi sustentada pelo romantismo
do passado, sem preconceitos e tendências, para reconhecê-lo, reencontrá- contra a filosofia das Luzes. Mas, para Cassirer, se o romantismo desco-
lo, compreendê-lo. Seria possível conhecê-lo com uma atitude de oposi- briu a história foi graças às ideias do século XVIII. Foi o século XVIII que
ção radical, de antipatia total, com uma intenção de ruptura violenta? colocou o problema das condições de possibilidade da história, sobretudo
Para os historicistas, essa não seria uma atitude de historiador, mas ana- com Voltaire. Em seu ataque às Luzes, o romantismo cometia o pecado
crónica e especulativamente filosófica e política. que denunciava: era anti-histórico, pois não colocava o século XVIII em
perspectiva histórica adequada. Ele queria apreender o passado em sua
realidade, mas falhou em relação ao seu passado recente. Era cego em re-
Historicismo: um conceito? lação ao século XVIII. Na verdade, esse século não foi um edifício de con-
tornos bem delimitados, mas uma força que agia em todos os sentidos.
O conceito de historicismo é muito mais complexo e problemá- Cassirer deu ênfase à continuidade entre o historicismo, que ele também
tico, polissêmico, confuso e difuso. Em geral, os autores preferem evitar chamou de romantismo, e as Luzes, sugerindo um deslocamento gradual
esse termo por ser muito impreciso, possuindo vários significados. Ele não da cultura, sem rupturas. Mas, paradoxalmente, quando se referiu a Viço,
obteve a estabilidade de um conceito. Quando alguém se refere a ele, es- sustentou que ele pretendeu expulsar o racionalismo da história, propon-
pera-se que defina o que quer dizer. Meinecke referiu-se a ele como "ro- do uma "lógica da imaginação" contra "as ideias claras e distintas" de Des-
mantismo". Discute-se sobre qual dos dois termos seria o mais adequado: cartes. Por isso, não tinha exercido qualquer influência sobre as Luzes e
histerismo ou historicismo? Sérgio Buarque de Holanda afirma que as for- somente Herder, no século XIX, o retirou da obscuridade. Não é dessa
mas "histerismo" e "historicismo" foram por longo tempo intercambiá- oposição que se trata? É possível perceber alguma continuidade, algum
veis fora da Alemanha. Em língua alemã, a forma histerismo é predomi- deslocamento gradual, entre uma lógica da imaginação e o racionalismo
nante. Popper difundiu a forma historicismo, referindo-se a autores universalizante das Luzes?
distantes do histerismo alemão clássico. O historismo de Herder, Dilthey,
Simmel, Windelband, Rickert não tem nenhuma relação com a miséria
8 Holanda, 1979; e Popper, 1980.
do historicismo de Marx, Spengler, Toynbee, Comte, na concepção de
9 Cassirer, 1932 e 1951.
Popper. Neste capítulo, refiro-me ao historismo alemão clássico, tal como
JOSÉ CARLOS REIS
216 H lST ó Ul A 6í T E O R lA í 17

A discussão sobre o historicismo não pode ser simplificada. E não o passado, afirmando sua alteridade profunda e criando os meios in-
pretendo esgotá-la, apenas apresentar uma leitura, uma síntese, de sua dispensáveis à sua reconstrução; e marcou o início da ciência histórica
contribuição à teoria da história; que considero fundamental. moderna;
Segundo Imaz, a palavra "historicismo" parece ter sido usada pela c) sua tese básica: há uma diferença fundamental entre os fenómenos na-
primeira vez em 1879, por K. Werner, para se referir ao historicismo fi- turais e históricos, o que exige diferentes métodos de abordagem. A na-
losófico de Viço. Quanto à sua origem, portanto, o historicismo pode tal- tureza é a cena do eterno retorno, dos fenómenos sem consciência e
vez ser considerado italiano: Viço, que foi continuado por Croce. Mas, sem propósito; a história inclui atos únicos e irrepetíveis, feitos com
para alguns, é uma construção especificamente alemã. Sem desconsiderar vontade e intenção. O mundo humano é incessante fluxo, embora haja
a contribuição de Viço, E. Cassirer o considerava uma construção alemã, alguns centros de estabilidade — personalidades, instituições, nações,
que teria origem na monadologia de Leibniz. Segundo Imaz, porém, há épocas —, cada um com sua estrutura interna, seu caráter, embora em
autores que sustentam que o termo teria aparecido primeiro na França, constante mudança, de acordo com seus princípios internos de mu-
quando da Restauração. Todavia, mesmo que esses autores tenham razão, dança. Ele dá ênfase à individualidade, ao génio, que é uma individua-
ele não se enraizou e se desenvolveu na França, onde a tradição durkhei- lidade mais expressiva;
miana se impôs. Durkheim repudiou a edificação das ciências humanas de d) só a história explica qualquer fenómeno humano — fora dela nada que
Dilthey, e com uma argumentação iluminista. Ao contrário do historicis- lhe é interior pode ser explicado;
mo, sua sociologia era abstrata e explicativa, aproximava ciências naturais f) tanto o objeto da pesquisa quanto o sujeito da pesquisa são históricos;
e humanas e recusava toda aproximação destas com a filosofia. Quem ten- portanto, não há conhecimento da história a partir do exterior dela. O
tou reunir a tradição francesa com a alemã, com pouco sucesso, pois ficou homem é histórico. Ele se apresenta em formas variadas e diversas.
isolado na França, foi Raymond Aron, com suas excelentes obras de 1938, História significa o fato das variações do homem;
em geral mais mencionadas do que de fato conhecidas e rediscutidas. Há g) em cada momento, o que o homem é inclui o passado; história signi-
ainda um historicismo inglês, representado por Collingwood. A discussão fica persistência do passado, ter um passado, vir dele;
da origem é relevante, mas o importante de fato é seu enraizamento per-
h) o passado persiste e influi na vida atual — recordamos e interpretamos
manente e profundo, com fortes repercussões na cultura. Nesse sentido, o
o que fomos. História é a reconstrução mais ou menos adequada que
historicismo parece ser uma forma de pensar a história profundamente
a vida faz de si mesma.
alemã.10
Para procurar dar um contorno mais preciso a esse movimento Esse esforço de esquematização pode ser útil a uma definição, mas
cultural europeu, que Iggers e Cassirer consideraram sobretudo alemão, não é uma definição. Levantados esses pontos, pode-se construir uma ideia
alguns autores salientam as seguintes características: mais ou menos ampla do sentido desse termo: um culto do passado, um in-
teresse em apreendê-lo, fielmente, em sua diferença e em sua verdade, uma
a) ele "inventou a história", isto é, descobriu a história como objeto de
afirmação da historicidade e das mudanças vividas e o desejo de reencontro
conhecimento específico e criou uma "atitude de historiador", com
da vida consigo mesma através da retrospecção histórica, da produção de
princípios e técnicas de abordagem do passado;
uma "consciência do sentido histórico". O historicismo espera que o histo-
b) para Meinecke, foi mais do que um movimento intelectual alemão li- riador possua um coração bastante sensível e um espírito bastante aberto para
gado somente à história, foi uma revolução cultural, que atingiu o di- conceber, sentir e receber todas as paixões humanas, sem tê-las provado.
reito, a literatura, a filologia, a política; ele criou uma nova relação com
11Imaz, 1978; Ortega y Gasset, 1958; Iggers, 1975 e 1984; Suter, 1960; Meinecke,
10 Imaz, 1978; Cassirer, 1932; Mesure, 1990; e Iggers, 1975. 1982; e Berlin, 1982.
218 H l .s r o R i A &: T E o R í A JOSÉ CARLOS REIS

Mas a polémica sobre o sentido do termo tem outros desdobra- verdade do passado está em sua diferença. A busca de uma verdade c de
mentos. Em geral distingue-se um historicismo filosófico de um metodo- sua diferença pressuporia a historicização dos valores. Cada sociedade t
lógico e epistemológico. Essa controvérsia está ligada à característica c época, em sua diferença e verdade, são "históricas", ou seja, são plena-
apontada anteriormente. O historicismofilosóficoopunha ontologicamente mente o que podem ser. Não são relativas, mas históricas, pois pertencem
natureza e história com termos tais como matéria versus espírito, necessi- absolutamente à sua época. Assim, no denominado historicismo filosófico,
dade versus liberdade. A oposição era entre a natureza — determinista, o espírito se opunha ontologicamente à natureza, ou buscando necessa-
submetida a leis — e o espírito —r mundo humano, subjetivo, de liber- riamente a liberdade, ou buscando historicamente sua expressão própria.
dade e de criação. Ele desvalorizava, ou não se interessava, pela natureza, No primeiro caso, a história seria um desenvolvimento teleológico uni-
pelo mundo da necessidade material, e se dedicava a pensar o mundo do versal; no segundo, buscas diferentes, múltiplas, de uma felicidade parti-
espírito em seu modo próprio de ser, livre e criativo. O historicismo fi- cular. Esse historicismo filosófico estaria ainda, pelo menos em sua pri-
losófico dividir-se-ia então em duas orientações contrárias: uma procurava meira orientação, dominado pela filosofia da história.
sistematizar dogmaticamente todo o devir humano a partir de um prin-
O historicismo epistemológico o rejeitou por essa razão. Para este, a
cípio a priori; a outra, ao contrário, tendia a tudo relativizar sob o pretexto
história científica não discute ontologicamente a história e não opõe na-
de que a história não ofetecia certeza, nem verdade, e cultivava um tipo de
tureza e história. Esse historicismo epistemológico, o da escola neokantia-
ceticismo que conduzia ao niilismo filosófico. Assim entendido, filosofi-
na de Baden, recusava-se a ser uma concepção do mundo, uma filosofia da
camente, nessas duas orientações, o historicismo se preocupava em dar um
história, uma ontologia. Para ele, a história é apenas um modo de abor-
sentido à existência humana e dissimulava uma posição metafísica, na me-
dagem e de inteligibilidade do real. Tratava-se de prolongar Kant, e até
dida em que pensava a história-enquanto-ser como essencialmente espi-
mesmo de ultrapassá-lo, na medida em que ele se limitou às ciências na-
ritual, buscando realizar certos valores ou fins últimos.
turais. Afirmavam a especificidade das ciências humanas, embora não che-
Nessa divisão do historicismo em duas tendências filosóficas está
gassem a convergir sobre aquilo que as especificaria! O saber científico exi-
toda a dificuldade em compreendê-lo. Se é visto como "sistematização
giria a colaboração das duas categorias de ciências, pois os mesmos
dogmática do devir humano a partir de um princípio a priori"', não se di-
materiais podem ser objeto de uma pesquisa naturalista (nomotética) e de
ferenciaria das filosofias da histótia, que a segunda orientação combatia.
uma pesquisa histórica (genética e idiográfica). A natureza pode ser tra-
Nessa vertente, ele se aproximaria de fato do Iluminismo, ao pressupor
tada historicamente e a história naturalisticamente. A separação não é on-
um princípio a priori em desenvolvimento universal. E Popper teria razão
tológica, mas epistemológica. Eles se opunham ao imperialismo das ciên-
em considerar Marx, Spengler, Toynbee historicistas, pois essa definição
cias naturais e defendiam a autonomia das ciências humanas, procurando
converge com a sua definição: "é historicista a doutrina que considera que
estruturá-las em sua lógica própria. Mas não as consideravam superiores às
é função da ciência social fazer previsões, segundo leis de evolução"; que
ciências naturais.
ele considera serem pseudociências, pois produzem "profecias", quando
pretendem produzir impossíveis "previsões incondicionais". Portanto, Para esses epistemólogos neokantianos, a ciência não se interessa
nesta primeira orientação, o historicismo não tem nada a ver, e até se só pelo geral, mas também pelo singular. Nem em um caso, nem noutro,
opõe, ao histerismo alemão clássico. ela não é a pura reprodução ou cópia do real, mas uma construção con-
A segunda orientação é bem próxima deste. O espírito não pode ceptual. Os dois procedimentos são legítimos e não há um superior ao ou-
estar submetido a leis de evolução. Ele é a expressão localizada de povos tro. É preciso estudar a lógica dessas ciências sem pretender identificá-las
diferenciados em um tempo e lugar. Há relativizaçáo dos valores, pois a artificialmente. Contudo, esse historicismo estritamente epistemológico,
sem "contaminações filosóficas", foi considerado por muitos uma recaída
no positivismo. Era uma reivindicação de cientificidade particular que
12 Freund, 1973; Schnàdelbach, 1984; e Collingwood, 1978.
propunha uma postura contemplativa, distanciada dos problemas e das
220 HISTÓRIA & TEORIA Josi C A R L O S R E I S 221

opções políticas. E, por isso, era conservador. Por um lado, evitava o na- dicionam, mas são controladas pela força humana. A história é o resultado
turalismo; por outro, buscava um padrão científico de tipo físico. Pode-se dos propósitos conscientes e inconscientes da ação humana. Por isso re-
percebê-lo em autores neokantianos como Windelband, Rickert e Weber. quer métodos de pesquisa diferentes dos das ciências naturais. O objeto
Quanto a Simmel e Dilthey, eles se diferenciavam dos anteriores por do conhecimento histórico são as "individualidades históricas", únicos
serem neokantianos críticos. Eram também antikantianos. Sua reflexão agentes criadores de um mundo de sentido. Essas teses de Viço levaram,
sobre a história era ao mesmo tempo epistemológica e filosófica. Eles fa- no início do século XIX, na Alemanha, à ruptura radical com o raciona-
ziam epistemologia das ciências humanas no quadro de uma "filosofia da lismo iluminista. Herder, Goethe, Harmman, Schlegel defendiam posi-
vida". Eles faziam a transição, estavam no meio, entre o historicismo ro- ções francamente irracionalistas. Eles constituíram o movimento român-
mântico do final do século XVIII e o historicismo epistemológico do iní- tico sturm und drang (tempestade e impulso ou ansiedade), que, segundo
cio do século XX. Cassirer, era também de origem leibniziana. Esse movimento exaltava a
A discussão historicista, por mais impreciso que seja o termo, teve alma de cada povo, única, que não se submete a leis naturais universais.
como tema central a especificidade do conhecimento histórico, as condições de Como uma mônada, cada povo tem seu génio singular, seu espírito. Eles
possibilidade e de autonomia das ciências do espírito. O tema do historicis- valorizavam o homem genial, uma individualidade intensa. Opunham-se
mo era o da autonomia das ciências humanas. Vários historiadores e fi- radicalmente à tese dos direitos naturais e universais que apagavam a di-
lósofos procuraram fundar as ciências históricas em bases específicas. Seu ferença entre os povos. Cada individualidade tem sua história singular.
esforço foi o de demarcação do campo epistemológico específico das ci- Cada individualidade cultural é uma totalidade: espírito popular, nação,
ências do espírito. Pode-se arriscar, portanto, como hipótese uma perio- éticas, culturas, Estados. A racionalidade da história é a da "vida".
dização: no final do século XVIII, ele seria romântico e filosófico, por Em sua primeira fase, o "historicismo romântico" era ao mesmo
fazer uma divisão ontológica entre natureza e história; em meados do sé- tempo vitalista e espiritualista. A formulação de seu irracionalismo mis-
culo XIX, seria uma epistemologia com contaminações filosóficas, por di- turava uma linguagem biológica com uma linguagem ainda metafísica,
ferenciar o método das ciências humanas do das ciências naturais, mas no que chamava de histórica. A vida individual que valorizava era descrita,
contexto de uma filosofia da vida; no século XX, tornou-se uma episte- por um lado, como impulso, instinto, vigor e, por outro, como criativi-
mologia científica, livre de tais influências filosóficas. Mas em crise! Neste dade, liberdade, historicidade. Ele justificava o direito individual e con-
capítulo, trataremos daquele "historicismo epistemológico com contami- creto dos indivíduos em suas culturas contra os direitos do homem uni-
nações filosóficas", o da segunda fase, analisando-o em sua formulação versal. Para ele, racional é o que tem uma vida histórica. Goethe expôs
diltheyana. com clareza a oposição entre iluministas e historicistas: o Iluminismo bus-
No século XVIII, em sua primeira fase, o historicismo surgiu com cava mais o humano no histórico, o historicismo se interessava mais pelo his-
a tese de Viço, anticartesiana, de que a física é um conhecimento limitado tórico no humano. O indivíduo só pode ser feliz quando se sente reconhe-
da natureza, porque o homem não pode saber o que ela é, pois não a cido em seu mundo histórico. A história é um todo móvel e diverso, uma
criou. Para Viço, "só se conhece o que se criou". Assim, só a história seria corrente de vida onde o indivíduo desenvolve a sua vitalidade. O indiví-
conhecível, pois o homem a fez. E aqui que se coloca mais radicalmente duo está integrado ao todo, mas sem se fundir. Ele já é um todo no todo.
a diferença ontológica entre natureza e história. A história difere da na- O que importa na vida é a vida, que acontece a todo instante, em todo
tureza na medida em que é uma criação dos homens. Ela é o "mundo do tempo.e lugar, e não o seu resultado. O processo da vida é o essencial e
espírito", do fazer técnico e criativo dos homens. O homem nada é por não o seu final.' A história não é atraída pelo fim, mas cresce a partir da
natureza e recebe forma e conteúdo na história. As forças naturais con- raiz. A história é um mundo interno, constituído por forças amantes. Esse

13 Freund, 1973; e Collingwood, 1978. 14 Cassirer, 1932; e Meinecke, 1982.


">7 5 H l M ó R i \o romântico preferia o homem cotidiano, concreto,
J O S É C tradicio-
A li L O S REIS

No final do século XIX, em sua terceira fase, o historicismo es-


nal, mergulhado em uma temporalidade lenta, desacelerada, ao homem tritamente epistemológico, sem contaminações filosóficas, entrou cm cri-
heróico, dominado por uma temporalidade acelerada, eficaz, parteiro do se, a denominada crise da consciência histórica. A história não era mais
espírito universal, que, para ele, é uma abstração. Ele falava da vida coti- vista como uma vanguarda cultural. Era olhada com ceticismo. O histo-
diana com simpatia, vida estruturada pelo dia-a-dia, pela tradição, com ricismo tornou-se sinónimo de relativismo e uma ameaça política. Se a
uma respiração quase vegetal. Homem feliz era aquele integrado à história história não podia oferecer valores últimos que guiassem a ação, receava-
e à natureza. Veremos que Dilthey continuou mantendo a maioria dessas se que ela não prestaria qualquer serviço. O naturalismo, o cientificismo,
teses românticas, ao mesmo tempo em que procuraria construir a teoria o evolucionismo destronaram a história. Nietzsche argumentou contra a
do conhecimento deste mundo do espírito. pretensão científica da história, pois a "ciência" não conhece a individua-
lidade particular. Ele seria talvez favorável a um retorno ao historicismo
O historicismo, em suas três fases, representou uma limitação do
romântico, vitalista e histórico. Mas combatia o epistemológico, que que-
pan-matematicismo. O racionalismo clássico conquistou a natureza e pre-
ria dominar e desvitalizar a vida com conceitos, comparações e previsões.
tendeu também construir um sistema matemático das ciências do espírito. A história científica não dizia o que o homem era. Não discutia valores,
O direito se deixou dominar pela matemática. Em Espinosa, a ética tam- buscando uma neutralidade, uma moderação, que soterrava os impulsos
bém foi dominada pela matemática. A matemática dominou por muito vitais. Ela nos afastava da vida, era uma doença, afirmava Nietzsche. En-
tempo tanto o mundo natural quanto o espiritual. O historicismo veio li- quanto objetivação, homogeneização do vivido, enquanto ciência, ela nos
mitar essa expansão da matemática. Descartes desprezava o conhecimento afastava da vida. No século XX, portanto, historicismo tornou-se algo pe-
histórico, pois não julgava possível abordar a vida humana matematica- jorativo, uma orientação histórica a ser superada. Houve um clamor por
mente. Viço inovou em relação a Descartes com uma nova ideia de ci- sua superação. Associado a "relativismo dos valores", foi responsabilizado
ência da história. Ele colocou o método histórico acima do matemático. até pela ascensão do nazismo! O nazismo teria posto fim ao seu relativis-
Para Viço, o conhecimento perfeito só era possível nas obras da cultura mo ao impor pela violência valores novos e absolutos. O historicismo teria
humana. A própria matemática só era conhecível por ser uma criação hu- fracassado como perspectiva histórica, como metodologia e como filosofia
mana — ser uma linguagem! Os mitos, as religiões, as linguagens, as his- do valor. A sua perspectiva aristocrática levou-o a desinteressar-se pelas
tórias são os objetos realmente adequados ao conhecimento humano. Os novas forças que apareciam na cena política e social. Ele fazia uma história
historicistas queriam constituir uma ciência nova, não-natural e não-ma- adequada a uma sociedade pré-democrática. Sua metodologia respondia
temática, dos homens e da sociedade. Mas nenhum deles foi um pensador lentamente às profundas mudanças sociais, políticas e intelectuais do sé-
claro, talvez como resistência à linguagem matemática predominante. culo XX. Após 1945, a sociedade de massas e o desenvolvimento tecno-
Viço, Herder, Dilthey não foram rigorosos, demonstrativos, sistemáticos. lógico revelaram a inadequação de seus pressupostos aristocráticos. Sua fi-
Sua linguagem não era cartesiana e iluminista! Será que a linguagem das losofia do valor era sua maior fraqueza teórica. Ele caiu no niilismo ético,
ciências humanas deve ser necessariamente críptica, hermética, fragmen- resultado de sua tese de que todo valor e verdade nascem de uma situação
tada, para se afastar dos modelos matemático, literário, filosófico e afirmar histórica concreta. Não há ética segura, ordem social estável, que possa se
a sua autonomia? Isso parece um equívoco. Para Arendt, compreensão é o apoiar em tais princípios.
outro nome de "visão clara". A linguagem compreensiva vê e faz ver denso Ligada à crise do historicismo, na transição do século XIX para o
e claro, ao estabelecer conexões e criar um sentido. XX, portanto, está a crise do liberalismo alemão e a ascensão de programas
totalitários. Se liberalismo quer dizer o valor absoluto da pessoa humana,
15 Viço, 1984; Meinecke, 1982; e Berlin, 1982.
16
Cassirer, 1932; e Meinecke, 1982. ' Schnadelhach, 1984; Mesure, 1990; e Iggers, 1975.
HISTÓRIA & TEORI JOSÉ CARLOS R E I S 225

a afirmação dos direitos individuais, os historicistas se mantiveram numa forma-se. Os indivíduos, como as comunidades e as gerações, são con-
orientação liberal. O liberalismo alemão viu no historicismo uma base juntos vitais, totalidades psíquicas vivas, que evoluem internamente, cen-
melhor para a teoria da liberdade individual do que a lei natural, que ho- tradas em si mesmas, mas incluindo a mudança inovadora. O historicismo
mogeneizava, desindividuaiizava e impunha uma violenta competitivida- exigia respeito pelo destino particular, defendia os interesses do Estado,
de entre os indivíduos. Sua posição básica: a lei natural restringe a liber- encarados como razão local, interesse nacional. As altas necessidades po-
dade e a espontaneidade dos indivíduos e o desenvolvimento de sua líticas dominariam os indivíduos e grupos. Em prol da saúde e da força do
individualidade enquanto busca do seu sentido singular. Mas, por outro todo, defendia que o indivíduo devia suportar pacientemente o sofrimen-
lado, suas teses de fato não eram estranhas aos projetos totalitários e talvez to. Meinecke sustenta que Moser, um dos primeiros historicistas, era pes-
tenham sido instrumentalizadas por seus líderes. O historicismo pode ser soalmente generoso, mas podia se tornar cruel na defesa dessa ideia!
utilizado, paradoxalmente, contra a política liberal de defesa naturalista da Iggers avalia que, metodologicamente, no entanto, ele constituiu
individualidade! Apesar de sua ênfase no indivíduo, ele pode ser apro- um grande avanço. Seu interesse pelo passado tornou possível a história
priado por uma teoria coletivista, totalizante. Então, "individual" torna-se como atividade profissional, como empresa académica, não mais preocu-
uma instituição, a nação, uma cultura, a "alma de um povo". Assim, a li- pada com questões filosóficas e com o futuro utópico. A história deixou
berdade individual só se tornava possível no quadro nacional. O superin- de ser especulativa. Sua concepção individualizante da história limitava o
divíduo Estado-nação dominava a liberdade individual. Nesse sentido, o estudo comparativo do comportamento humano e do desenvolvimento
historicismo seria pré-moderno e pré-democrático, um pensamento en- teleológico da humanidade. A unidade humana j udeo-cristã-iluminista foi
raizado ainda no Antigo Regime. Contudo, ao enfatizar a riqueza e a di- desafiada pelo historicismo. E por isso Meinecke o viu como uma revo-
versidade de valores nacionais, ele não estaria plenamente enraizado no sé- lução cultural.
culo XIX? Para muitos autores, a ética política do historicismo, por Metodologicamente, o historicismo foi fundador da hermenêutica
reconhecer os direitos locais e negar um mínimo de normas universais do filosófica. Sua figura maior, seu representante clássico, foi Ranke, que fun-
comportamento político, contribuiu de algum modo para o totalitarismo dou na prática a autonomia do pensamento histórico. Ranke foi profun-
na Alemanha. damente inovador. Foi o novo Heródoto, o refundador da história nos
Apesar disso, Meinecke afirma que não se pode ignorar uma re- tempos modernos. Enquanto revolução cultural, o historicismo teria afe-
volução cultural, t o historicismo foi uma das grandes revoluções espiri- tado a história (Ranke), a filosofia (Novalis), a filologia (Grimm), o di-
tuais do Ocidente. Depois da Reforma, ele teria sido a grande revolução reito (Savigny), a economia política (Knies). Iggers pensa que suas for-
intelectual alemã. Meinecke o viu como a maior compreensão das coisas mulações mais avançadas seriam as de Humboldt e Droysen. Esses autores
humanas e o mais capaz de enfrentar o problema da história. Ele acredi- colocaram a história no centro de um processo de historicização geral nas-
tava que o historicismo podia vencer o relativismo dos valores. Basica- cido da experiência da Revolução Francesa e das mudanças que ela sugeriu
mente individualizador, ele não era incompatível e não excluía a busca de na percepção do tempo. Para Iggers, o debate sobre o historicismo con-
regularidades e tipos universais da vida humana. Conciliava evolução e in- tinua atual. Hoje, está em crise a consciência teleológica e universalista
dividualidade. A individualidade só se exprimia na evolução. O conceito iluminista, que o historicismo sempre combateu. Multiplica-se o interesse
historicista de evolução se diferenciava da ideia iluminista de desenvolvi- pelo passado em museus, bibliotecas, arquivos, património histórico, te-
mento de germes originais em um progresso, buscando a perfeição. Nele, ses, cursos, publicações, mídia. Retorna, de certo modo, a tese da histo-
a evolução não vai do mesmo ao melhor, mas de um ao outro, dentro da ricidade da razão, da pluralidade dos projetos de vida, da diversidade das
unidade. A individualidade evolui de forma criativa, inesperada. Trans- formas de saber, da multiplicidade dos modelos de ação, da definição cul-

18
Ermarth, 1978; e Iggers, 1975. 19 Meinecke, 1982; e Mesure, 1990.
226 H lST Ó R iA & T EO Rln
227

tural dos valores, a discussão da relação entre valores, açáo política e ci- séculos XIX/XX, mediante a compilação de algumas definições e avaha-
ência social. Por enquanto, nessa transição do milénio, a razão histórica ções feitas a respeito. Para produzir um conhecimento mais organizado e
venceu!,20 aprofundado da visão historicista da história, será exposta e problemati-
zada, ao longo deste capítulo, sua elaboração especificamente diltheyana.
O nome e o pensamento de Wilhelm Dilthey estão associados ao
Dilthey e o historicismo 21 historicismo. Não se pode afirmar que ele tenha sido seu maior teórico,
apesar de ser assim considerado por Freund e Ortega y Gasset. Para Iggers,
Talvez pareça paradoxal, mas, hoje, pode-se expressar interesse em foram Humboldt e Droysen. Para Meinecke, foi Herder. A escolha de sua
redescobrir e revalorizar a história como conhecimento do passado! Após obra para o estudo aprofundado das teses historicistas sobre a história
o predomínio autoritário, hoje sabe-se disso, da descoberta da história deveu-se mais à oportunidade que tive de estabelecer contato com suas
como construção do futuro, que durou aproximadamente de 1789 a ideias sobre a história no ensino da disciplina teoria e metodologia da his-
1989. E curioso ver como novidade a história como estudo do passado. tória. A leitura e a discussão de seu texto — curto e hermético — "A com-
Tern-se o inquietante sentimento de ter passado para o lado das hostes ad- preensão do outro e de suas manifestações de vida", que considero essen-
versárias. Mas não se trata de um projeto necessariamente contra-revolu- cial para uma reflexão densa sobre o conhecimento histórico, levou-me a
cionário: talvez de outro projeto de mudança. Um projeto histórico, que me interessar pelo estudo de algumas de suas obras mais importantes, lidas
leve em consideração o passado, e não mais um projeto especulativo, que em edições francesas, e que analiso neste capítulo. Sua obra é vasta, in-
se dirija apenas ao futuro. Walter Benjamin expôs suas teses contra a im- cluindo importantes biografias: A vida de Schleiermacher (1870), História
possível ruptura com o passado tentada pela modernidade iluminista. A
da juventude de Hegel (1905). Para fundamentar minha análise, selecionei
meu ver, o passado foi negligenciado ou mal reconstruído durante aquela
suas principais obras teóricas sobre as ciências humanas e sobre a história.
fase, um tempo longo, pois não era reconhecido e valorizado. Era com-
São elas: Introdução às ciências do espírito (1883-90, 2v.), O mundo do es-
batido, para ser destruído, esquecido. A história como abertura ao futuro
pírito (1924, 2v.), A edificação do mundo histórico pelas ciências do espírito
tornou-se aguarrás do passado! Houve um eclipse da história como re-
cepção do passado. (1910) e o já mencionado "A compreensão do outro e de suas manifes-
tações de vida". Há ainda Vivência e poesia (1906) e Os tipos de concepção
A época atual é favorável à retomada dessa e de outras questões,
do mundo e sua formação nos sistemas metafísicos (1911), menos explorados
que assim podem ser formuladas: como é possível conhecer o passado hu-
por mim. Nesta bibliografia selecionada, já extensa, julgo que foi possível
mano? Do passado, o que se deve conhecer? Quais as estratégias cogniti-
vas, e quais os seus riscos? Quais as condições de possibilidade e os limites encontrar as suas teses essenciais sobre a teoria da história e das ciências
humanas. E isso pode ser confirmado pela leitura de seus melhores co-
desse conhecimento? Que grau de certeza, de objetividade, de rigor, de
verdade pode-se esperar da atividade do historiador? Quais as relações mentaristas, que em geral se referem e citam excertos dessas obras.
entre o conhecimento do passado, a experiência presente e as expectativas Dilthey nasceu em 1833, em Biebrich, na Alemanha, e morreu su-
bitamente em 1911. Filho de pastor calvinista, teve uma formação basi-
futuras? Qual a relevância desse conhecimento, ou melhor, por que e o
que se busca no passado? Estas são também as questões postas pelo his- camente teológica. Tornou-se pastor, mas logo abandonou essa atividade.
toricismo e, por isso, o interesse em estudá-lo. Anteriormente, como in- "Logo depois da primeira homilia", afirmam seus biógrafos. E passou a se
trodução ao tema, elas foram abordadas brevemente, quando da apresen- dedicar à atividade de professor universitário de filosofia. Para exercer o
tação das características gerais desse movimento intelectual europeu dos ensino de filosofia na universidade, fez uma tese de doutorado sobre o
pensamento escolástico medieval. Como filósofo, conhecia Kant desde os

20 Iggers, 1975 e 1984.


21 Ver Reis, 2003. 22 Amaral, 1987.
228 C > P, L o <• REI; 229
HISTORIA & TEORIA

16 anos. A vida de professor universitário, na Alemanha do século XIX, mesma e como base da reflexão filosófica. Como filósofo e poeca, seu ob-
era nobre. Podia-se viver com bons recursos e muito prestígio. Ele ensinou jeto principal de estudos era a história. Mesmo quando seu tema era fi-
em várias universidades: Bale, Kiel, Breslau e Berlim. Seus biógrafos afir- losófico, ele o abordava historicamente, examinando as ideias do passado
mam que trabalhava de 12 a 14 horas por dia! E é provável, levando-se em sobre ele. Em sua vasta obra, tratou de teoria do conhecimento, filosofia
consideração seu modo discreto de viver. Casou-se com Katharine Puttnan, moral, estética, filosofia das ciências sociais, teoria da psicologia e da edu-
com quem teve três filhos. Foi um casamento difícil, que terminou em di- cação, biografias e críticas literárias. São obras difíceis de ler e interpretar,
vórcio. Uma de suas seguidoras mais fiéis foi sua filha, Clara Misch, que, pois Dilthey não possuía um estilo claro e contínuo. Seu estilo mais sugere
com outros discípulos, como seu marido George Misch, publicou pos- do que demonstra. É críptico e, sob muitos aspectos, frustrante. Rickman
tumamente algumas de suas obras, correspondências, e fez escudos da sua (1979) compara esse seu estilo mais ao de um geólogo do que ao de um
obra. A vida de Dilthey não foi sensacional — era um professor univer- arquiteto. Há sempre algo a descobrir, a decriptar, sob as camadas e fis-
sitário, sem grandes ações públicas. Em vida, foi um desconhecido. Como suras dos seus textos.
professor, os alunos o consideravam taciturno, misterioso e dedicado. Sua Gardiner o considera ilegível, lógico, pobre, desarticulado! Seu
personalidade tendia à não-publicaçáo, ao segredo e ao mistério. Viveu de pensamento não teria passado de "tentativas". Um fragmentista! Meus
modo obscuro, anónimo. Trabalhava! Suas obras completas, publicadas alunos classificaram o texto mencionado acima (que os fiz ler) como in-
postumamente, alcançam a marca excepcional de 20 grossos volumes! Pu- tragável. Sua obra não tem unidade e, se alguma é suposta, foram seus dis-
blicou muitos artigos dispersos. Mas, apesar da extensão, Dilthey ficava cípulos que a realizaram. Alguns querem compreendê-lo melhor do que
nas "introduções" e não concluía suas obras. Prometia próximos volumes, ele a ele mesmo e produzem superinterpretações. Corri esse risco neste ca-
que jamais apareciam. Sua obra é uma vasta desorganização! E sua filo- pítulo, o de simplificá-lo, tornando-o mais claro do que ele não é, e, a
sofia permaneceu inacabada. Até o fim, ela teve um caráter de pesquisa. bem da lealdade intelectual, deixo o leitor de sobreaviso. Para Rickman, o
Apesar disso, ele é traduzido e republicado ainda hoje, o que demonstra melhor caminho para conhecê-lo é salvá-lo de seus discípulos e interpretá-
que, apesar de tudo, suas algaravias tinham algum valor. Há um Centro lo em seus próprios termos. Procurei seguir essa orientação de Rickman e
de Estudos Diltheyanos na Universidade de Bochum, Alemanha, dirigido quase me apropriei de seu texto, seguindo-o de perto, parafraseando-o
pelos professores Frithjof Rodi e O. F. Bollnow. Há analistas de sua obra com frequência. Fiz um estudo de sua obra e não um ensaio livre. Reuni
na França, Espanha, Estados Unidos, Japão, Polónia, México. No Brasil, muitos excertos das suas obras, organizando-os, articulando-os, comen-
sua obra exerceu influência sobre autores importantes, é muito citado, tando-os, procurando recriar sua visão da história, na medida do possível,
mas há poucos estudos sobre seu pensamento. Destacam-se os estudos de em seus próprios termos. Sua obra é repleta de múltiplos insights, oferecendo
Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral, professora da Faculdade de Edu- material para muitas construções intelectuais. Procurei compreender seu
cação da Universidade de São Paulo, que o abordou em suas teses peda- pensamento retornando às questões que ele se punha e refazendo seu ca-
gógicas.23 minho, penetrando e revivendo as suas intenções. Tudo isso para produzir
Dilthey, filho de pastor protestante e ele mesmo quase pastor, no uma "compreensão superior" de sua teoria crítica das ciências humanas.
entanto, fez o caminho inverso de muitos: ao invés de descobrir a verdade É surpreendente que uma personalidade como a de Dilthey possa
e converter-se, descobriu a verdade — a história — e perdeu a fé! Apesar ter tido discípulos! Sabe-se que ele se reunia regularmente com um pe-
de muitos duvidarem de sua condição de ex-crente, ele se sentia mais queno grupo de alunos e pessoas mais próximas, para discutir filosofia.
poeta e historiador do que teólogo. Interessava-se mais pela vida humana Apesar de estar institucionalizado na universidade e possuir um público
do que pela divina. A história, a vida dos homens, o interessava por ela mais amplo, era um desconhecido. Seu pensamento expressava-se na in-
i

23 Rickman, 1979; Groethuysen, 1926; Ortega y Gasset, 1958; c Amaral, 1987 e 1994. 24 Rickman, 1979; e Gardiner, 1959.
2(0 i-l i s r o R i JOSÉ CARLOS REIS 231
E i.l R l A

timidade. Se Dilthey preferiu ser anónimo, desconhecido, misterioso, e só A história como "experiência vivida" tornou-se, por isso, seu tema
se revelar na privacidade e para uns poucos íntimos, qual o interesse em permanente. Sua noção de verdade. E sem pressa de concluir sua reflexão,
publicá-lo e em lê-lo hoje? Qual a relevância pública de urn pensamento criando um sistema hegelianamente fechado e cartesianamente cristalino.
fragmentado, introdutório, assistemático, hermético, obscuro, inconcluso Em relação à história, seu pensamento representou uma mutação, uma
e íntimo? Uma hipótese: exatamente por isso, por essas razões! Ele pro- mudança profunda. Contra Hegel, ele defendeu o contexto histórico,
punha um estilo de vida baseado em uma certa filosofia da vida. Em sua local e finito; contra os naturalistas positivistas, ele propôs a "compreen-
forma de vida, em seu estilo, em sua obra, em seus temas, combatia o sis- são empática", para o mundo do espírito. Ele renovou a abordagem dos
tema hegeliano. A vida, para ele, não é clara e distinta, sistemática, racio- homens e de suas experiências. Para as ciências humanas, Dilthey realizou
nal e completa. Ele afirmava a história, que é individual, local e íntima, di- uma "revolução copernicana": a vida não gira em torno da razão. Ao con-
fusa, contra as universais luzes teleológicas do sistema hegeliano. Ele trário, é a razão que gira em torno da vida. A razão se submete à vida e não
preferia a densidade, a insondabilidade da experiência vivida. Assim como a vida à razão. Ele manteve inúmeros combates: contra a teoiogi%contra
o calor da Terra, para ele, a vida é interna, opaca, para dentro. As luzes so- o idealismo filosófico e contra o naturalismo. Em teologia, considerava o
lares da razão são para fora, não trazem a transparência, mas a impostura. cristianismo um fenómeno histórico, que não podia ser a única referência
Diante das luzes, a vida perde o viço, a espontaneidade, a luminosidade espiritual; contra o idealismo filosófico, não acreditava ser possível apre-
própria. Ela se recolhe. A vida é individual, segredo, mistério, intimidade, ender uma consciência-em-si na história do espírito. Para ele, a consciên-
inícios sem sequência, opacidade, intensa fragmentação em uma inaces- cia é histórica, refere-se a uma experiência vivida que o espírito retoma,
sível totalidade. Ela é experiência vivida e não uma abstração ideal. unifica e esclarece. A consciência humana é histórica, pois não poderia ser
O termo "vida", em Dilthey, revela o que há de mais conhecido e uma inteligência infinita à qual tudo seria imediatamente presente. Ne-
mais íntimo e ao mesmo tempo o que há de mais obscuro e impenetrável. nhuma consciência pode se constituir sem estar consciente da relatividade
Ela é um mistério insondável, embora pensável! Pensá-la tem pouco a ver do sujeito cognitivo. Contra o naturalismo, não considerava possível co-
com a clareza externa das Luzes! A vida apaga as luzes externas para brilhar nhecer a história como se conhece a natureza. Para o mundo do espírito,
em brilho próprio, interno, ao pé de si mesma. Dilthey se alinhava à fi- ele propunha uma metodologia especial, apoiada no contexto existencial
losofia romântica, que opunha a realidade finita e viva ao espírito infinito e na compreensão.
e ideal. Ele era mais sturm und drang do que um adorador da ideia. Ele Portanto, ao seu modo invisível, Dilthey parece ser originalíssimo:
preferia a insegurança do irracionalismo e a sua pulsão à segurança ar- anticristão, anti-hegeliano, anti-Mill-comtiano, antikantiano e, sem ex-
tificial, homogénea e desvitalizada da razão. Ele preferia o pessimismo, a pressá-lo, pois talvez nem o conhecesse, apesar de contemporâneos, anti-
contingência, o local, o histórico, a indecisão ao otimismo, à confiança, à marxista. Isto é: antiteológico, antiidealista, antinaturalista, antipositivis-
necessidade e à universalidade da filosofia hegeliana. Dilthey era mais um ta, antimaterialista. Por isso o interesse, a grande relevância e também a
dos numerosos combatentes de Hegel de sua época. Ele ouvia com im- grande dificuldade do estudo de seu pensamento sobre a história. Ele ofe-
paciência seu discurso sistemático, prolixo, que acreditava ter descoberto rece uma reflexão original em que a história tem papel predominante.
o segredo da história. Em seu silêncio, ao contrário, o universal se dissol- Mas as avaliações de sua contribuição são ao mesmo tempo extremamente
via na historicidade. Seguindo outro filósofo obscuro e de pensamento favoráveis e extremamente duras. Ortega y Gasset, por exemplo, pensa
truncado e hermético — Giambatista Viço —, ele reafirmava a história, que, para um filósofo, ele foi tartamudo, silencioso demais. Ê uma ava-
a experiência vivida, a temporalidade humana e viva contra a temporali- liação devastadora para um filósofo. Apesar disso, curiosamente, ele o
dade aistórica, universal e divina da razão. considera o pensador mais importante da segunda metade do século XIX!

25 Rickman, 1979; e Amaral, 1987. 26 Kremer-Maritti, 1981.


232 H l s r õ í< l • R 11 b 233

Para ele, sua importância seria comparável à de Kant e Hegel! Ortega y processos sociais e o mundo imediato dos homens. As ciências humanas
Gasset julga que sua repercussão está aquém de sua importância, pois Dil- serviriam à reforma da sociedade. A reforma estaria baseada no "conhe-
they estaria na base de grande parte do pensamento do século XX. Sua in- cimento compreensivo" do homem em todos os seus aspectos e manifes-
fluência foi enorme sobre os maiores pensadores desse século: Heidegger, tações. As novas ciências humanas tratariam o pensamento humano e a
Weber, Jaspers, E. Cassirer, Troeltsch, Schelier, Simmel, Mannheim, atividade social de maneira empírica, "positiva", mas sem abolir a liber-
Gramsci, Aron, Lõwith, Lukács, Spranger, Sartre, Gadamer, Habermas, dade individual. Politicamente, Dilthey não era militante. Ele não acre-
Ricoeur. Ele é também considerado, com Nietzsche, um dos iniciadores ditava que a história fosse de aplicação imediata à política. A história não
do irracionalismo dito pós-moderno das últimas décadas. Sua "filosofia da é estudada para oferecer lições morais; os fatos econômico-sociais não são
vida" marcava os limites da Razão.27 determinantes, pois os indivíduos excepcionais contam, assim como os fa-
Seus críticos mais agressivos avaliam que sua intuição relativista tores culturais também contam. A história não pode ser estudada parti-
representaria uma teoria aristocrática do conhecimento. As categorias ilu- dariamente. O historiador deve evitar projetar seus valores políticos no
ministas da razão universal, afirmam, seriam democráticas e populares; passado. Ele considerava importante a militância política no presente, mas
a intuição historicista seria nobre e aristocrática. Por isso, como já vimos defendia a história científica do passado. Ele se sentia mais próximo dos
(e não há acusação mais grave), alguns o consideram até um dos responsá- historiadores da arte e da literatura do que dos historiadores políticos. Ele
veis pela ascensão do nazismo. Dilthey, afirmam, estaria na base de um procurava considerar todos os aspectos da vida de um povo e mostrar, sob
pensamento político reacionário, fascista. E constrói-se uma linhagem: as variações políticas, a permanência de certos valores intelectuais, morais
Schelling. Nietzsche, Schopenhauer, Kierkgaard, Dilthey, Simmel, Hei- e artísticos.
degger, Jaspers... nazistas! Ele seria o criador de uma teoria, a. filosofia da Portanto, se, por um lado, Dilthey tem uma reputação tão sinis-
vida, que teria sido favorável ao expansionismo imperialista, em busca de tra, por outro, é visto como um dos pilares do melhor pensamento filo-
espaço vital. Entretanto, segundo Ermarth, politicamente, ele ficava entre sófico, histórico, psicológico, pedagógico, literário, antropológico e socio-
a contemplação e a revolução. Sua posição era liberal-reformista. Queria lógico do século XX! E assim que o percebo e por isso me interessei por
ser eficaz, ativo, sem ser doutrinário. Ele se alinhava com o individualismo seu pensamento. Ele é visto como o Kant das ciências humanas. Ele disse
reformista representado por Kant, Schleiermacher, Humboldt. Para Er- coisas muito novas ou disse melhor o já conhecido. Seu tema é o mais re-
marth, Dilthey celebrava pouco o Estado. Não era nem seu ideólogo, nem levante e atual possível: como compreender homens de civilizações dife-
revolucionário. Ele representaria a tradição política do liberalismo burguês rentes ou nossos concidadãos diferentes de nós? Como abordar de modo
mais conservador, evitando propostas radicais em política, educação e so- compreensivo o outro? Em que termos formular a alteridade humana? Sua
ciedade. Ele defendia o gradualismo político. Após 1848, sempre deplo- abordagem humanista da história significou um novo olhar sobre o hu-
rou revoluções, que, para ele, criavam despotismos piores. A revolução mano: ele buscava a compreensão da alteridade. Para ele, não havia plano
seria incapaz de mudar o homem interior. A revolução não podia levar a escondido, modelo universal da história, que um estudo dos eventos pu-
mudanças no pensamento, nos valores, na moralidade. Ele propunha a re- desse revelar. Mas nem por isso a história se tornava uma sequência caó-
forma do pensamento através da reflexão crítica. A reforma só poderia vir tica de eventos. Sua solução: os homens, por seus planos e intenções par-
do autoconhecimento do homem em todos os seus aspectos. ticulares, dariam sentido à história. Conhecer o sentido da história seria
Nessa direção, as ciências humanas seriam instrumentos impor- descobrir as ideias que fundam as ações humanas, de forma determinada
tantes da mudança racional e pacífica. Seriam o antídoto para as revolu- e local, e não buscá-lo em uma impossível visão global. Por isso, para
ções. Para ele, não se tratava de criar ideais remotos, mas de controlar os Freund, ele foi e permanece o teórico maior das ciências humanas. Sua

27 SchnSdelbach, 1984; Ermarth, 1978; e Mesure, 1990.


Ortega y Gasset, 1958. 28
H I S T O R I A & T Eo R l A JOSÉ C AR LO i R E I

obra representou uma virada que abriu uma nova via à reflexão filosófica. e a Escola Histórica. Em sua teoria da compreensão, ele associou criticismo
O debate que ele iniciou interessa a todo aquele que trata de metodologia e historicismo, o que o levou à fundação teórica das ciências humanas.
das ciências humanas. Ele foi o primeiro a conceber uma epistemologia Todas as teorias das ciências humanas referem-se, mesmo que polemica-
autónoma dessas disciplinas. Ele pôs a questão fundamental da "crítica da mente, à sua teoria. Dilthey parte de Kant, mas diferencia-se dele. Parte
razão histórica". de sua Crítica da razão pura. O que o interessa em Kant é seu ponto de
O pensamento de Dilthey tem sido caracterizado como vitalismo, partida interno para o conhecimento da natureza, isto é, seu ponto de
neo-idealismo, positivismo, historicismo, irracionalismo, intelectualismo, sub- vista transcendental. A ciência é construída a partir do sujeito. Para Kant,
jetivismo, relativismo, esteticismo, existencialismo, psicologismo, sociologismo, não se pode ir além do sujeito e de suas categorias. O sujeito transcen-
presentismo etc. São termos imprecisos e contraditórios, alguns absurdos, dental é posto copemicamente no centro do universo. E, com isso, a me-
rótulos que dificultam a sua abordagem. Diante disso, Ermarth procura tafísica teria sido superada. Dilthey contra Kant: seu sujeito é muito abs-
lembrar e repetir sua maior lição: Dilthey também, como toda vida histó- ttato, sem carne e sangue. Não se pode ir além do sujeito, é vetdade. Mas
rica, deve ser tratado em seus próprios termos. É difícil resumir seu pensa- que sujeito? Para Dilthey, é a vida, a história. Um sujeito histórico com
mento e enquadrá-lo em algum ismo. Tratado em seus próprios termos, uma "experiência interna" não exclusivamente racional. Um sujeito com
não se pode chegar a conclusões claras, que o incluam em algum rótulo. vontades, com paixões, intencionalidades, afecções, "um feixe de pulsões",
Apesar disso, Ermarth propõe um rótulo para Dilthey, o "real-idealismo", que constrói sua vida criando e seguindo valores particulares. Contra a
que, para ele, teria sido uma importante tendência do século XIX, e sobre razão pura, Dilthey propõe um-í filosofia da vida. Não se pode ir além da
a qual se estende longamente. Não examinaremos de perto essa hipótese, vida. Ele pensa que, por isso, só ele teria de fato superado a metafísica.
apenas a registramos, para não dificultar a abordagem de Dilthey em seus Para ele, a vida era ao mesmo tempo psicológica e histórica, e não "pura",
próprios termos.
abstrata, racional, sistemática e muito menos transcendente. Contra a crí-
Para Dilthey, evitando todo sistema, tudo era problema. Cada so- tica da razão pura, que ele considera ainda metafísica, propõe uma crítica
lução era um novo problema. Seu pensamento é difuso, mas coerente, da razão histórica ou uma crítica histórica da razão pura.
uma coerência dinâmica e não um sistema formal. Seus conceitos não são
claros e distintos, mas dinâmicos, recíprocos. Suas noções-chave são difí- Se não se pode ir além da vida, o problema é saber se a vida é co-
ceis de definir precisamente: parte-todo, estrutura, causalidade teleológica, nhecível. À pergunta de Kant "como são possíveis as ciências naturais?",
crítica imanente. A vida, diferente da lógica, é contraditória. Para Ermarth, corresponde a pergunta de Dilthey "como são possíveis as ciências do es-
ele teria sido o mais mal compreendido autor do século XIX. E ele foi res- pírito, as ciências da vida humana?". Inspirador, Kant tornou-se seu ad-
ponsável por isso, pois era um homem de grandes intuições e não um teó- versário. Dilthey não parte de um sujeito intelectual, mas do homem in-
rico capaz de análises abstratas. Em seu pensamento, em suas "análises dividual-total, o homem em sua vida no tempo, em sua historicidade.
abstraias", aparece sua personalidade intuitiva. E, nisto, ele era coerente, A possibilidade do conhecimento nas ciências humanas não se apoia no
pois sua opção como teórico foi levar em consideração e valorizar suas in- apriorí, mas na experiência vivida. Dilthey procurou fundar as ciências do
tuiçoes. 30 espírito na psicologia, que trata dessa unidade humana psicofísica em sua
Seus analistas concordam que sua importância na história do pro- experiência interna. Para torná-la a ciência fundamental das outras ciên-
blema da compreensão é incontornável. Sua visão original desse tema de- cias do espírito, contra a psicologia construtivista, que imitava os métodos
correu da associação que ele estabeleceu entre a crítica kantiana da razão das ciências naturais, ele criou uma nova psicologia descritiva e analítica.
Esta analisa e descreve a "experiência interna", que não precisa de hipó-

29 Freund, 1973; Rickman, 1979; Mesure, 1990; e Ortega y Gasset, 1958.


30 Ermarth, 1978. 31 Schnádelbach, 1984; Suter, 1960.
236 H lS l Ó RlA & T f (J li l A J O S É C A R L O S R F, is 237

teses para ser constatada. A experiência interna não precisa ser construída, atribuir-lhe um "historicismo transcendental", cuja tese seria: o ser não se
pois é o dado primeiro. funda na ideia absoluta ou em Deus, mas na. historicidade humana. Esse his-
Kant buscou condições intelectuais apriori para a possibilidade da toricismo transcendental examina as possibilidades humanas de auto-rea-
experiência. Ele construiu a priori como teria que ser nossa consciência e lização, procurando na história algo de absoluto como potencialidade do
a sua relação com a realidade para que a experiência fosse inteligível. As homem verdadeiro. Esse absoluto transistórico seria a capacidade cria-
condições da experiência não se dariam dentro da experiência, mas de tiva da mente humana, que não é eterna ideia, mas vida concreta. A his-
uma pura construção intelectual. Para Dilthey, isso é ficção intelectual! tória se encontra com a vida pela compreensão. A historicidade do
Dilthey seria talvez transempirista. A experiência não é apenas uma sen- homem está ligada à vida sociocultural. A individualidade concreta do
sação exterior; ela é a realidade interna da consciência. A experiência in- homem não apaga a sua condição social e cultural. O indivíduo não é iso-
terna é um complexo, uma conexão, uma interdependência com outras lado e só. O homem tem uma natureza aberta, comunicativa. A compre-
experiências internas. Dou-me conta de mim e de algo exterior — isso é ensão empática (yerstehen) í a própria natureza humana. A história é cons-
um fato da experiência interna. Não se trata de empirismo, de sensações tante mudança, típica e única. O que permanece em todas as épocas e
obtidas na experiência exterior. A experiência interna é um dado imedia- sociedades é a expressão, a compreensão, a comunicação entre homens di-
to, concreto e vivido. Deve ser tomada como se apresenta, pois não se ferentes. Para ele, o homem é "experiência vivida", que cria, que se ex-
pode ver atrás dessa experiência. Ela deve ser descrita e analisada tal como pressa, que se comunica, que compreende e se deixa compreender. E que
aparece, pois sua verdade não pode lhe ser exterior. Contudo, seria mesmo se inquieta com a sua existência. A verdade é o próprio processo histórico,
a psicologia a ciência fundamental das ciências do espírito? Ou seria a his- em que a vida se expressa e é compreendida, e não uma proposição abs-
tória? Ao longo da sua obra, ele hesitou em dar a uma ou a outra esse sta- trata e atemporal. Dilthey não prescreve uma finalidade para a história. O
tus de ciência fundamental. Talvez se possa afirmar que ambas são fun- humano está por toda parte em realização. Ele defende a liberdade sem
damentais, pois tratam da experiência interna, que é a experiência vivida sistemas.
do eu em seu mundo histórico. Pode-se supor um círculo entre a história, Essa hipótese de um historicismo transcendental, de Ermarth, que
mundo compartilhado com o outro, e a psicologia, experiência complexa é uma leitura muito fecunda de Dilthey, não o incluiria no movimento
do eu. Ambas estão ligadas ao complexo problema da identidade, a indi- historicista em uma posição riquíssima e central? Essa análise, a meu ver,
vidual e a cultural. o situa plenamente no historicismo. Para Dilthey, o que há de absoluto no
Alguns autores discutem se Dilthey seria realmente historicista. E homem, o que o diferencia da natureza, é a possibilidade que ele tem, em
no caso de ser, em que tendência historicista se enquadraria? Ermarth sus- sua experiência vivida, de se expressar e se fazer compreender pelo outro.
tenta que ele não seria um "puro historicista". Contudo, dada a dificul- Por mais diferentes que sejam os homens em suas sociedades, culturas e
dade desse conceito, quem pode ser indiscutivelmente historicista e "pu- épocas, subsiste em todos a possibilidade da expressão e da compreensão
ro"? Para Ermarth, Dilthey não seria historicista porque não propõe uma recíproca. O reino do espírito, o mundo histórico, é um mundo de sen-
metafísica disfarçada que salva o passado por ele mesmo. Ele teria apenas tido, em que a comunicação é possível e se realiza. Quanto maior é a di-
criado um método para as ciências humanas. Teria aberto uma corrente ferença entre os homens, mais necessária a comunicação se torna e mais
intelectual que apoia as suas construções na observação da realidade so- intensa é a compreensão do outro. A vida cria linguagens múltiplas e de-
ciocultural. Inicialmente, Ermarth tende a restringi-lo (a meu ver equi- cifráveis — escritas, orais, iconográficas, arquiteturais, artesanais, tecno-
vocadamente) à condição de um epistemólogo neokantiano, que só dis- lógicas, quantitativas, simbólicas, alimentares, rituais, sagradas, cromáti-
cutiria métodos. Mas depois vai mais longe. Propõe que talvez se pudesse cas etc. Enfim, o mundo do espírito é um mundo de linguagens, que

32 Ermarth, 1978; Mesure, 1990; e Aron, 1938a e 1938b. 33 Ermarth, 1978.


l .A íf T F. O R [ JOSÉ CARLOS REIS 239

criam sentidos, mensagens, que são decifráveis e compreensíveis. A vida uma filosofia científica. Não era uma filosofia especulativa, mas "estudos
cria um mundo a partir dela mesma, de sua experiência vivida. O m u n d o positivos com intenção filosófica". O filósofo não podia pensar qualquer
histórico tem como base este conjunto psíquico que olha o mundo, que objeto sem recorrer a estudos concretos, ao estudo de fontes primárias ex-
se olha, que se expressa, criando linguagens para se autocompreender. traídas do mundo real. Dilthey, nesse sentido, quis que sua filosofia fosse
Para Dilthey, este mundo se diferenciou da natureza e só pode ser conhe- científica. E uma teoria do conhecimento das ciências morais, que estu-
cido por um saber específico e autónomo. dam as relações e eventos positivos do mundo histórico-social. As questões
Por tudo isso, minha tese é a de que Dilthey é plenamente histo- filosóficas devem ser respondidas positivamente. Aí reside seu positivismo,
ricista. Em suas obras sobre epistemologia das ciências humanas, ele sus- que, segundo Aron, ele nunca superou e que é a sua originalidade. Nin-
tentou pontos de vista historicistas. Opôs-se ao historicismo romântico guém levou mais longe a rejeição da metafísica, a exigência de uma crítica
como puro irracionalismo e, por isso, alguns o acusaram de recair no po- autónoma, e analisou as condições nas quais o pensamenco se aplica ao
sitivismo. Mas opôs-se também ao historicismo como pura epistemologia. passado. Ele elaborou uma lógica original do conhecimento histórico. Ele
Ele seria e não seria cientificista. Seria, pois quis fundar as ciências do es- visava apreender as condições de inteligibilidade próprias às ciências do es-
pírito em bases científicas. Mas sua orientação científica não buscaria Jeis pírito e o seu aporte ao melhor conhecimento dos homens. Sua tese: as ci-
de evolução. Ele tenta fundar a razão das ciências do espírito em condi- ências humanas existem como ciências e vão discutir seu caráter científico
ções científicas específicas, que respeitam ainda a historicidade e a singu- em nome de uma teoria preconcebida da ciência. O epistemólogo não
laridade. Além de recorrer a tipos, ele valoriza a relação intuitiva do his- tem de ser o seu construtor, mas o seu historiador e fazer a sua teoria a
toriador com o seu objeto. Ele propõe um tipo de racionalidade concreta, partir da prática dos especialistas. Essas ciências se desenvolvem em meio
particular e histórica. Ele quer fazer uma ciência específica, sem leis, do à prática da vida.
mundo humano. Suponho que ele estaria na segunda fase do historicismo: Há pouco consenso quanto ao seu pensamento como um todo.
uma epistemologia com contaminações filosóficas, embora não aprecie o Mas seu pensamento constituiria um todo? Ele não concluía e não siste-
termo "contaminações". Talvez fosse melhor dizer "influências", "bases", matizava. Alguns o vêem como ainda mecafísico, outros como historicista,
"raízes". Ele seria um historicista intermediário, entre o romântico e o mas com qualificações diversas, outros como positivista. Pode-se falar de
epistemológico. É ainda romântico e já é epistemológico. Ele teria pro- um único Dilthey? Há quem o divida em dois: um jovem positivista e um
duzido um tipo de romantismo epistemológico! Aluno de Ranke, Dilthey velho existencialista; ou um jovem psicologista, romântico, que opunha
está na frente do movimento historicista, ao fazer-lhe a teoria. Ele estaria ontologicamente ciências naturais e ciências humanas, e um maduro, que
para Ranke e a Escola Histórica alemã assim como Kant esteve para abandonou a psicologia pela história, como fundamento da compreensão,
Newton. Ele faria a teoria de uma prática cognitiva já existente. Em sua e que procurava articular e conciliar epistemologicamente ciências natu-
construção teórica, por um lado, ele sonha com ciência rigorosa, lógica, rais e humanas. Outros afirmam a existência de até seis períodos em seu
com método empírico; por outro, é nutrido de literatura, poesia, música trabalho! Para outros ainda, seu pensamento não sofreu mudança. O
e religião e se recusa a transpor os procedimentos físicos às ciências hu- velho realizou o trabalho do jovem. Ele teria retomado obstinadamente as
manas. Nele, filosofia e história estão unidas.3-' mesmas questões. Para estes talvez não haja nenhum desenvolvimento,
O aspecto positivista de sua teoria deve-se à atmosfera naturalista nem muitas reformulações em seu pensamento. Neste, haveria um alto
em que viveu. As ciências naturais impuseram o seu padrão de rigor e ob- grau de continuidade, mesmo revelando várias camadas, que mostram as
jetividade. No século XIX, a morce da filosofia sistemática cedeu lugar a influências de outros pensadores. Para Ermarth, se ele modificou suas
ideias, não se pode estabelecer estágios cronológicos. Uma cronologia de

34 Ermarth, 1978.
35 Freund, 1973. 36 Aron, 1938a; e Freund, 1973.
JOSÉ CARLOS REIS 241
240 H I S T Ó R I A &: T E o R i A

digmas. A crise atingiu os fundamentos do pensamento e do conhecimento.


anos não é necessariamente uma cronologia de ideias. Não se poderia falar
A crise revelava a discordância entre pensamento e vida. A filosofia siste-
em fases do seu pensamento. Ele é dialédco: há uma coerência recíproca
mática não tinha mais crédito, a ação ficou sem legitimação. As ciências na-
entre as partes. Seu pensamento evoluiu, mas também retornou. Seus crí-
turais reinavam, absolutas, substituindo sem sucesso a religião e a filosofia.
ticos afirmam que ele perdia tempo, afirmando o seu problema, sem pro-
O dogmatismo era formal, discursivo; na ação, o ceticismo. O sentido da
por solução. Há uma unidade fundamental em seu trabalho, embora seja
história estava em crise. Nesse contexto de crise, Dilthey apontou uni novo
uma unidade na diversidade.
caminho: o da história, o da vida. Tudo é manifestação da vida histórica. O
Para Ortega y Gasset, é difícil perceber períodos em seu pensa-
espírito não é abstrato e formal, mas em relação com a vida. Dilthey rede-
mento, por sua obscuridade. Seu pensamento é secreto! Ele não chegou a
fine o conceito de espírito, procurando não recair na metafísica. Não se trata
formular sua intuição. Ele ficou a meio caminho da sua ideia. Faltou-lhe
de uma entidade transcendente ou imanente, aistórica e atemporal. "Espí-
precisão, plenitude, conclusões. Dilthey "não teve tempo" interno para
rito" quer dizer "expressões humanas", individuais e histórico-sociais, tem-
fazer já sua obra, embora tenha vivido bastante. Seu pensamento não segue
porais. O mundo do espírito é o das objetivações da vida interna, da vida
uma evolução linear. Volta sempre ao mesmo centro. Em sua velhice, ele
criadora, individual e singular. Vivemos na vida com um íntimo sentido de
teria reelaborado melhor as ideias que trouxera da juventude. Seja como
sua concretude. Conhecemos a vida mais por tácito reconhecimento do que
teólogo, historiador ou filósofo, jovem ou velho, seu projeto fundamental
pelo pensamento discursivo e a inferência explícita. A experiência vivida é a
era compreender o homem enquanto ser histórico. O teólogo submete a
célula do mundo histórico e o primeiro dado das ciências humanas. O im-
religião à história; o filósofo, as ideias à história; o historiador se prende às
pulso do seu tempo era um insaciável desejo de realidade. Para ele, a "rea-
ideias e aos personagens que fazem a história. Filosofia e história são ati-
lidade" podia ser acessada por uma "filosofia da experiência interna". A ex-
tudes complementares — toda pesquisa filosófica é inseparável da história
periência interna vivida é um dado imediato, mas não um empirismo. Sua
da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma
abordagem é a mais próxima e compreensiva da vida. A história tinha uma
filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar res-
missão mais prática e vital: apreender o mundo dos homens através do estudo
postas para as questões atuais.
das suas experiências no passado.
Aron propõe que se distinga três fases em seu pensamento: a po-
O pensamento de Dilthey foi recebido com mais resistência do que
sição dos problemas na Introdução às ciências do espírito (1883), a primeira
aceitação por sua época. Os positivistas, claro, o recusaram. E mesmo entre
solução pela psicologia (1890-1900), últimos estudos (1900-11). Essa pe-
os neokantianos ele gerou polémica. Windelband, Rickert e Weber critica-
riodização de Aron parece plausível, pois inclui implicitamente um pri-
ram os fundamentos de sua teoria, a maneira pela qual distinguia ciências
meiro e um segundo Dilthey. No entanto, prefiro vê-lo como aquele obs-
naturais e ciências do espírito e o lugar dado à psicologia. Sua concepção da
tinado que retoma sempre as mesmas questões, reunindo sensibilidade
compreensão foi considerada psicologista, misteriosa, enigmática, mística,
histórica e rigor teórico. E prefiro acentuar o seu lado romântico, que leva
irracionalista, uma falsa intersubjetividade, pois apago a minha para coin-
a sério as suas intuições, e não reduzi-lo a um epistemólogo de tipo
cidir com o outro ou me projeto no outro. No final, os dois pólos se apagam
neokantiano.
e não há mais relação. A antinomia entre ciências naturais e ciências do es-
Seu pensamento precisa ser compreendido no contexto de sua épo-
pírito seria insuperável. Dilthey tornou-se então sinónimo de psicologismo,
ca, que era de crise, de anarquia de convicções. O século XIX foi marcado
relativismo, historicismo, niilismo, ceticismo, irracionalismo. Um fracasso!
por agitações nas ideias: queda do hegelianismo, crise da religião, materia-
Entretanto, ainda hoje, seu pensamento tem sido reexaminado cuidadosa-
lismo, darwinismo, pessimismo, questões de método, mudanças de para-
mente e continua a demonstrar sua utilidade e validade. Seus conceitos de

3 7 Ermarth,1978.
38 Ortega y Gasset, 1958; Aron, 1938a. 39 Ermarth, 1978.
242 H l S T O R l -\ T E O l! l A JOSÉ CARLOS REIS 243

"mundo histórico", "experiência vivida", "compreensão", "visão de mundo" tética. Sua obra, enfim, é fundadora, mas mal avaliada. É uma obra que
e sua percepção da história como um complexo de coeréncias têm sido usa- exige um enorme esforço de reconstrução por parte do seu intérprete. Ela
dos por várias teorias das ciências humanas. deixa dúvidas se teria existido um verdadeiro Dilthey, isto é, se permitiria
Na Alemanha, com a ascensão do nazismo, sua obra quase não foi uma leitura convergente. Mas, essa dúvida pertence a todos os grandes au-
tocada. O mundo histórico-espiritual criado por Hitler não se interessou tores: existiria um verdadeiro Hegel, Marx, Freud, Nietzsche? Suas obras
por ela. Depois de 1945, novos estudos demoraram a aparecer. Todavia, são seminais e engendram múltiplas leituras, assLimindo vidas diversas.
os pensamentos que apareceram, aparentemente indiferentes a ele, não lhe Quanto a Dilthey, de todo modo, sua reflexão sobre as ciências humanas
eram estranhos: o neomarxismo, o existencialismo, a fenomenologia. Ou- é de importância inegável. Ele ofereceu uma das mais fecundas teorias dos
tros obstáculos atrasaram o seu retorno: tradução difícil, pela complexi- estudos humanos.
dade da obra; publicação difícil, pela excensão. Nos anos 1960, o interesse Na história, teve mais admiradores do que seguidores. Seu método
l
i por sua obra cresceu. Autores da hermenêutica como Gadamer, Ricoeur, exige do historiador um talento, uma rara arte pessoal: a revivência do
fi Habermas se apoiaram nele. A teoria das ciências sociais o redescobriu. As passado em sua integralidade. Talvez se possa dizer, com algum exagero,
antropologias estrutural e compreensiva lhe são devedoras. Ele defendia a que ele já seria um cinéfilo antes do cinema! Para ele, a história deveria
interdisciplinaridade, que é um projeto ainda atual. Alguns marxistas o fazer o que faz hoje o cinema: uma reconstituição minuciosa, sutil, deli-
consideravam um ideólogo do capitalismo, conservador e reacionário. cada, intensa, em movimento dramático, emocionado, de vidas determi-
Um defensor do imperialismo em geral e do alemão, em particular. Ou- nadas. Talvez seja por terem compreendido isso que muitos historiadores
também têm trocado a historiografia pela linguagem cinematográfica e tea-
tros marxistas, ao contrário, o viram como um aliado na reforma intelec-
tral. E a história tem reatado suas relações com a literatura, com a poesia,
tual e moral, como um revolucionário do homem interior. Um marxismo
com a dramaturgia. Os historiadores, hoje, confiam muito no conceito de
superestrutural, cultural, recorreu a Dilthey. Habermas e Gramsci com-
"representação", que tem um aspecto cénico de revivência, cujo papel foi
binaram Dilthey e Marx. Epistemólogo da compreensão, filósofo da vida,
central na construção diltheyana. Poucos foram tão originais quanto Dil-
hermeneuta da existência, Dilthey é central e fundador.
they em epistemologia da história. Ele considerava a história o caminho
No entanto, a celebridade póstuma chegou mais tarde. Sua influência real para a solução dos problemas humanos e sociais. Ele dava especial
é difusa e algumas de suas ideias se tornaram parte integrante da consci- atenção à história das ideias, que considerava essencial. O interesse pelo
ência histórica. Na sociologia, ela é presente. A sociedade aparece como fenómeno cultural, a discussão sobre os valores e os indivíduos feita pela
objetivaçáo do espírito, cristalização de regras conscientes ou atos volun- teoria crítica da Escola de Frankfurt vêm dele. Ele enfatizou a importância
tários ou sentimentos significativos. Ela se opõe sobretudo à tradição fran- das perspectivas temporais, da historicidade humana e do método herme-
cesa durkheimiana. A psicologia recebeu o seu conceito de estrutura psí- nêutico. Weber é seu discípulo mais crítico. Ortega y Gasset confessa ser
quica e apoiou a sua recusa da psicologia naturalista. Sua defesa da seu discípulo mais dócil e lamenta ter conhecido sua obra com 10 anos de
irracionalidade da vida o aproximava do inconsciente freudiano. Dilthey atraso. Ele afirma ter perdido l O anos de sua vida intelectual por não tê-
K e Freud teriam se conhecido ou se leram reciprocamente? Freud talvez lhe lo conhecido a tempo. No Brasil, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
propusesse o seu método, oferecendo-lhe algumas seções de sua psicaná- Holanda, autores de obras de relevância incontestável, entre outros, rece-
lise! Ele provavelmente aceitaria, para conhecer o método, mas acabaria beram a sua influência. E preciso, portanto, tornar Dilthey presente e in-
descobrindo outras coisas também. Na filosofia, sua influência é perma- teligível, apesar dele! Sua ideia é simples e profunda: a ideia da vida, da ex-

y nente: filosofia da história, teoria das ciências morais, filosofia da vida, es- periência vivida, e a possibilidade do seu conhecimento.

40 Rickman, 1979. 42 Freund, 1973; e Mesure, 1990.


41 Ibid. 43 Freund, 1973; Rickman, 1979; Ortega y Gasset, 1958; e Dias, 1985.
244 HISTORIA & T E o r< i JOSÉ CARLOS REIS 245

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