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O efeito-

Foucault na
historiografia
brasileira
Margareth Rago
Margareth Rago
Luzia Margareth Rago, professora da Universidade de
Campinas (UNICAMP) teve sua formação em História e
em Filosofia, bem como sua pós-graduação em História
- mestrado e doutorado - realizada na Universidade de
São Paulo (USP).

Anarquista de formação política, Margareth


aproximou-se, ao longo de suas pesquisas, do
pensamento de Michel Foucault - ao qual, a partir do
filme de 1982, de Paul Schrader, fez a metáfora das
marcas da pantera -, bem como de Gilles Deleuze,
sendo uma das responsáveis pela realização do
Colóquio Internacional Michel Foucault.
Margareth Rago
A partir de reflexões realizadas em contato com a obra
de Foucault e Thompson, nasceu sua dissertação de
mestrado, intitulada Do cabaré ao lar: a utopia da
cidade disciplinar (Brasil, 1890-1930), defendida em
1984, onde analisou as experiências de disciplina,
trabalho operário e resistência anarquista no Brasil da
Primeira República, bem como o lugar social da mulher,
a maternidade e a anti-disciplina dos cabarés.
Bem mais marcada por Foucault, bem como pelas
ressonâncias do autor nos estudos de gênero, nasce sua
tese de doutorado, Os prazeres da noite: prostituição
e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930), onde volta-se especificamente para as
experiências de sexualidade das mulheres no contexto
da Primeira República.
Pensar diferentemente a história

“Foucault revoluciona a história”. Para Margareth Rago, essa frase instigante de


Paul Veyne, em texto homônimo, chamou a atenção dos historiadores para um
movimento conceitual em curso desde os anos 1960 e para o qual os historiadores
ainda não tinham apresentado olhares favoráveis.

Com a chegada de Vigiar e punir, sua obra de 1976, ao Brasil - uma obra
historiográfica por excelência -, os historiadores passaram a caminhar em busca
de obras anteriores de Foucault, tais como História da loucura, As palavras e as
coisas e Arqueologia do saber.
Pensar diferentemente a história

“Indubitavelmente presos a um sistema de pensamento que nos havia organizado


tão adequadamente o mundo, ao longo da décadas de 1960 e 1970, localizando de
um lado, as classes sociais e os seus conflitos nas inúmeras formas assumidas
pelas relações socioeconômicas, vigentes no modo de produção dominante no
interior de nossa formação social; e de outro, munindo-nos com as intricadas
tarefas teóricas da ‘síntese das múltiplas determinações’, havíamos esquecido de
ler no próprio Marx que o passado pesa e oprime ‘como um pesadelo o cérebro dos
vivos’ e que, sobretudo enquanto historiadores, deveríamos compreender o
momento do acerto de contas e ‘alegremente’ despedirmo-nos no passado.”
Pensar diferentemente a história

“”De uma certa maneira, quanto mais a modernidade desmanchava no ar tudo o


que estava mais ou menos sólido, tanto mais nos agarrávamos à necessidade de
organizar o passado, arrumando todos os eventos e os seus detalhes na totalidade
enriquecida embora preestabelecida. Trata(va)-se, então, para o historiador de
compreender o passado, recuperando sua necessidade interna, recontando
ordenadamente os fatos numa temporalidade sequencial ou dialética, que
facilitaria para todos a compreensão do presente e a visualização de futuros
possíveis.”
Pensar diferentemente a história

“Afinal, o que queria aquele filósofo que anunciava que “a história dos
historiadores” erroneamente havia-se preocupado em compreender o
passado, e que na verdade tratava-se de “cortar” e não de compreender?

Que possibilidades restavam para os historiadores quando o passado


passava a se reduzir a discursos, os documentos a monumentos, a
temporalidade se dissolvia e os objetos históricos tradicionais já não se
sustentavam com tanta obviedade quanto antes?
Pensar diferentemente a história
“E o que fazer com os sujeitos, com as classes sociais e principalmente com
a classe operária, aliás, responsável pelo conflituado mais seguro curso da
história em direção ao prometido “reino da liberdade”, ou com os sujeitos
históricos que, nos anos 1980, comprometiam-se com a luta pelos direitos
de cidadania, como os negros, as mulheres, os homossexuais?

Como ficava, então, a tarefa do historiador comprometido, sobretudo desde


os anos 1960, com as tarefas da revolução e com a revelação da missão
histórica do proletariado, ou na década de 1980, envolvido com as lutas pela
redemocratização do país e pela construção de identidades sociais?
Pensar diferentemente a história
No Brasil, um filósofo e, em seguida, um psiquiatra,
publicavam os primeiros trabalhos de História à luz de
Foucault, ambos tratando sobre o período colonial do país e
imperial do país - recorte próximo ao que o próprio Foucault
estudava, os séculos XVIII e XIX.

Danação da norma (1978), de Roberto Machado, inspirado


pela História da loucura e pelo Nascimento da clínica,
analisava a emergência da medicina social e a constituição da
psiquiatria no Brasil, abordando os processos aos quais foram
submetidos os corpos dos “loucos”, aqui tratados como
doentes mentais.
Pensar diferentemente a história
Por sua vez, Ordem médica e norma familiar (1979), de
Jurandir Freire Costa, representava uma discussão a respeito do
conceito de família, amor, casamento e da higienização das
cidades na transição da colônia para o império no Brasil.

A discussão inspirava-se no Foucault tanto de sua obra


vinculada aos saberes, tais como Nascimento da clínica,
quanto em sua História da sexualidade e nos debates sobre a
constituição de espaços de disciplinarização dos corpos e de
sua docilização.
Pensar diferentemente a história
De um minuto para o outro, segundo Margareth Rago, todas as frágeis e
desgastadas, mas reconfortantes seguranças começavam a ser radicalmente
abaladas pelo “furacão Foucault”, uma teoria que deslocava o intelectual de seus
espaços e funções orgânicas, questionando seus próprios instrumentos de trabalho
e modos de operação.

O efeito dessa avassaladora crítica seria a tentativa, por vezes desesperada, de


alguns historiadores de se refugiarem na garantia da existência da “realidade
objetiva” e na atuação transformadora dos sujeitos históricos - momento em que o
pensamento de Edward Palmer Thompson torna-se, no Brasil, uma trincheira
contra os que dialogavam com a obra de Foucault, fazendo da chamada “história
social” um campo de batalha contra as influências de estudos dessa natureza.
Pensar diferentemente a história
Ainda que muitos fossem antifoucaultianos, a maioria dos
historiadores não puderam mais prescindir das noções de
discurso, disciplina, poder e genealogia.

Além do mais, crescia também nesse meio, através de


caminhos diferenciados, a redescoberta do simbólico, do
subjetivo e do cultural nas análises históricas cada vez mais
próximas da Antropologia Histórica, a exemplo dos estudos
baseados na terceira geração dos Annales e na abertura que
essa fazia para temas como mentalidades e sensibilidades.
A crítica ao
essencialismo
A crítica foucaultiana da
Por exemplo: ao invés de
ciência e da noção de verdade Ao criticar o partir do objeto
atingia radicalmente a própria essencialismo, Foucault “sexualidade” ou “loucura”,
produção do conhecimento entende que o foco do Foucault propunha que
histórico, produção essa historiador deve ser na práticas levaram esses
assentada em convicçõe prática e não no objeto. objetos a emergirem
fundamentalmente
historicamente.
humanistas.
O caleidoscópio
Trabalhar com produções culturais e não com
objetos naturais na perspectiva foucaultiana
significou repensar radicalmente os
procedimentos historiográficos.

A ideia seria, agora, negar tudo que seria


“natural” e entender todos os elementos como
criados, inventados, fabricados e não como
“dados”. Seria, portanto, nas palavras de Paul
Veyne, uma busca por um caleidoscópio (algo
que dá sempre é dado a múltiplas matrizes) e
não como um viveiro de plantas.
O privilegiamento do
descontínuo
Para Foucault, a questão mais importante para o
discurso histórico não seriam as continuidade
entre os fatos, tal como propunham as
perspectivas da história de longa duração, muito
menos estabelecer uma relação causal entre todos
os fatos históricos.

Propõe, nesse sentido, uma serialização da história


em busca das descontinuidades, buscando o que
chamaria de uma história geral ao invés de uma
história total, a descrição da dispersões ao invés da
totalização fundada na consciência do sujeito.
A história
genealógica
Propondo uma “ontologia histórica de nós mesmos”,
Foucault destituiu o sujeito do lugar privilegiado de
fundamento constituinte que ocupava na cultura
ocidental, passando a problematizá-lo como objeto a ser
constituído historicamente.

Amparando-se no método genealógico proposto por


Friedrich Nietzsche, Foucault define que sua questão
central são os modos de produção do sujeito - ou seja,
sua sujeição - e, posteriormente, as formas de
subjetivação por ele encontradas.
A história
genealógica
A inquietação dos historiadores certamente aumentou
diante de toda essas colocações, sobretudo aquele que,
filiados à tradição marxista, se sentiram desalojados em
sua missão central e nobre.

A história genealógica se diferencia da “história dos


historiadores”, ou seja, dos modelos mais tradicionais e
usuais de escrita da história, pois, ao invés de procurar
recuperar o que os documentos diziam, realizando uma
operação de totalização, trabalhar os documentos em
seu interior, entender como eles são feitos, tal como
Foucault define em Arqueologia do saber.
A volta ao sujeito?
Depois de haver provocado acirradas disputa entre os
ardentes defensores da “voz dos vencidos”, preocupados com
o silenciamento da luta de classes nos trabalhos
historiográficos, e os adeptos do filósofo, para quem os
sujeitos são pontos de chegada e não pontos de partida, um
novo acontecimento teórico: a emergência, na última fase de
Michel Foucault, das reflexões sobre a questão da
subjetivação e da ética.

Foucault respondia aos seus críticos, para os quais havia


dado demasiada ênfase, nas suas fases anteriores, aos modos
de sujeição na constituição dos sujeitos, terminando por
repetir o que fizeram os Annales: deixar os sujeitos
aprisionados, sem possibilidade de ação, resistência ou
mudança.
A volta ao sujeito?
Alguns trabalhos foram produzidos a partir da abertura dessa
nova trilha, da qual Margareth Rago destaca três. O primeiro
é Os prazeres da noite, sua própria tese de doutorado,
defendida na USP em 1990.

Seu estudo não se enquadra como uma história social da


prostituição, mas sim um estudo sobre a construção de
nossas moderna referência sobre as “sexualidades
insubmissas”. Nele, para além da constituição da própria
noção de prostituição pelo discurso médico e jurídico e pelas
práticas disciplinarizantes que instituíram o submundo nos
limites da cidade, ela pesquisou como as próprias prostitutas
se constituíram enquanto sujeitos morais, incorporando,
redefinindo, experimentando uma ou vá́rias definições dos
amores ilícitos.
A volta ao sujeito?
O segundo trabalho é produzido pela filósofa Sandra
Caponi, intitulado Do trabalhador indisciplinado ao
homem prescindível, defendido como tese de
doutorado no Departamento de Filosofia da UNICAMP em
1992.

Nele, a filósofa toma A formação da classe operária


inglesa, de E. P. Thompson e A noite dos proletários,
de Jacques Rancière, os quais conecta a Michel Foucault
para discutir a constituição de uma estética da
resistência, analisando os trabalhadores e sua
preocupação em “embelezar essas vidas condenadas a
existir na escuridão da fábrica”, reinventando seus
cotidiano e buscando “esculpirem-se a si mesmos como
obras de arte”.
A volta ao sujeito?
Por fim, O engenho antimoderno: a invenção do
Nordeste e outras artes, defendida no Departamento de
História da UNICAMP em 1992, por Durval Muniz de
Albuquerque Júnior.

O autor aprofunda sua análise, anteriormente


desenvolvida sobre as “falas da astúcia e da angústia” a
respeito da seca no Nordeste, analisando a emergência da
região Nordeste a partir de múltiplas práticas discursivas,
observando o modo com o qual tanto os modernistas
quanto os regionalistas pretenderam instituir o lugar da
História em oposição a uma outra região do país - o
Nordeste -, designado como lugar da ausência de
História, constituído no imaginário social como um lugar
de “vidas secas”.
A volta ao sujeito?
Ainda que fugindo da historiografia brasileira, Margareth
Rago dá ênfase ao campo de estudos de gênero, que emerge
no interior do feminismo contemporâneo, ao qual ela própria
se vincula, e que toma várias influências do pensamento de
Michel Foucault.

Através da estadunidense Joan W. Scott, historiadora que


também vinha da história social, as intelectuais feministas
buscaram pensar a constituição dos sujeitos sexuais num
movimento relacional e complexo, rompendo com a lógica
identitária que, incapaz de perceber e trabalhar as diferenças,
aprisionava as mulheres num gueto conceitual, deixando de
lado os “estudos de mulheres”, que as colocariam num lugar
biológico e determinado, e trazendo-as para os estudos que
as colocariam como sujeitas social e culturalmente
construídas.

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