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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A herança difícil de Foucault - 27/06/2004

São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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+ autores

APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO DO FILÓSOFO E


ATIVISTA FRANCÊS, MORTO HÁ 20 ANOS, TENTA
ENCONTRAR EM SUAS IDÉIAS UMA COERÊNCIA E
UMA SÍNTESE QUE ELE SEMPRE SE ESFORÇOU
EM REFUTAR

A HERANÇA DIFÍCIL DE
FOUCAULT
Reprodução

O filósofo Michel Foucault,


cujos 20 anos da morte foram
completados anteontem

por Jacques Rancière

Anteontem completaram-se 20 anos da morte de Michel


Foucault [1926-1984]. É uma nova ocasião de comemoração,
como gostam de fazer na França. Esse aniversário, porém, é
mais problemático que o de Sartre, há quatro anos. Houve
então uma grande operação de reconciliação, separando o
filósofo provocador das causas "extremistas" com as quais se
comprometera para o instalar no panteão nacional dos
escritores e pensadores amigos da liberdade. O caso de
Foucault é mais complexo. Não há excesso que seja preciso
perdoar ao filósofo ou ao ativista em nome de suas virtudes.
Pois, justamente, não se sabe muito bem nem o que se deve
reprovar ao ativista nem que mérito reconhecer ao filósofo.
Mais radicalmente, não se sabe exatamente como
compreender a relação entre uma coisa e outra. Essa incerteza
se traduz nos debates sobre a herança de Foucault. Um deles
diz respeito à sua relação com a causa das minorias sexuais.
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"A Vontade de Saber" sustentava, com efeito, uma tese


provocadora: a pretensa "repressão sexual" fora a máscara de
uma operação inversa em que o poder se exercia ao fazer
falar sobre o sexo, ao obrigar os indivíduos a superinvestirem
os segredos e as promessas das quais ele era o detentor. Disso
se deduziu facilmente, em particular nos Estados Unidos, a
não-validade das políticas identitárias conduzidas pelas
minorias sexuais. Com o "Saint Foucault" [Oxford University
Press] de David Halperin, ao contrário, o filósofo se viu
entronizado como santo padroeiro do movimento "queer",
denunciando o jogo das identidades construídas pela tradição
homófoba. Na França a polêmica elevou-se num outro
terreno. Um dos dois editores dos "Ditos e Escritos" de
Foucault, François Ewald, é hoje o teórico titular do sindicato
dos patrões, engajado, em nome da moral do risco, na luta
contra o sistema de proteção social francês. Donde a questão
que agita os polemistas: pode-se deduzir da crítica
foucaultiana da "sociedade de controle" um programa de luta
contra a Previdência Social?

Filosofia da vida
Alguns querem ultrapassar esses debates, colocando no plano
propriamente filosófico a questão dos fundamentos da
política de Foucault. Buscam seu princípio geralmente na
análise do biopoder, durante um tempo esboçada por
Foucault. Uns, com Hardt e Negri, dão-lhe o substrato de uma
filosofia da vida que ele próprio nunca se preocupou em
elaborar, para assimilar a biopolítica ao movimento das
multidões que rompem os grilhões do "império". Outros,
como Giorgio Agamben, assimilam o "poder sobre a vida"
descrito por Foucault a um regime generalizado do Estado de
exceção, comum às democracias e aos totalitarismos. Outros
ainda fazem de Foucault um teórico da ética e nos convidam
a descobrir, entre seus eruditos estudos sobre o ascetismo
antigo e suas pequenas confidências sobre os prazeres
contemporâneos das saunas, os princípios de uma nova moral
do sujeito. Todos esses debates têm um ponto em comum.
Eles querem definir no percurso de Foucault um princípio de
finalidade, que asseguraria sua coerência de conjunto e
permitiria dar uma base sólida a uma nova política ou a uma
ética inédita. Querem vê-lo confirmar uma idéia do filósofo
como aquele que sintetiza o saber para ensinar as regras da
ação. Ora, são precisamente essa idéia de filósofo e essa
concepção da concordância entre o saber, o pensamento e a
vida que Foucault pôs em questão, mais ainda por sua atitude
do que por suas afirmações. O que ele inventou, antes de mais
nada, foi uma maneira inédita de fazer filosofia. Enquanto a
fenomenologia nos prometia, ao cabo de suas abstrações, o
acesso às "coisas mesmas" e ao "mundo da vida", e alguns
sonhavam fazer coincidir esse mundo prometido com aquele
que o marxismo prometia aos trabalhadores, Foucault
praticava um desvio máximo. Ele não prometia a vida. Estava
inteiramente nela, nas decisões de polícia, nos gritos dos
encarcerados ou no exame do corpo dos doentes. Mas não nos
dizia o que podíamos fazer dessa "vida" e de seu saber.
Sobretudo, ele via nisso a refutação em ato dos discursos
sobre a consciência e sobre o humano que sustentavam então
a esperança de amanhãs liberados. Mais que qualquer outro
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teórico "estruturalista", Foucault foi acusado de ser um


pensador do tecnocratismo, que fazia da sociedade e de nosso
pensamento uma máquina definida por funcionamentos
anônimos inelutáveis.

Toda forma de poder


Sabemos de que maneira as coisas se inverteram desde 1968.
Entre a criação da Universidade de Vincennes e a do Grupo
de Informação sobre as Prisões, o "tecnocrata" estruturalista
passaria a ser visto na primeira fila dos intelectuais nos quais
se reconhecia o movimento antiautoritário.
A coisa parecia então evidente: aquele que analisara o
nascimento do poder médico e o encerramento dos loucos e
dos marginais estava predisposto a simbolizar um movimento
que não atacava apenas as relações de produção e as
instituições visíveis do Estado, mas todas as formas de poder
disseminadas no corpo social.
Uma foto resumiu essa lógica: nela se via Foucault,
empunhando um microfone, discursar, ao lado de seu ex-
inimigo Sartre, a manifestantes reunidos para denunciar um
crime racista. A foto intitulava-se "Os Filósofos Estão na
Rua". Mas não basta um filósofo estar na rua para que sua
filosofia funde um movimentoi.

O pensamento não se transmite à


ação; um pensamento transmite-se a
um pensamento, e uma ação
provoca uma outra

O deslocamento filosófico operado por Foucault implicava


justamente o desregramento das relações entre saber positivo,
consciência filosófica e ação. Ao mergulhar no exame dos
funcionamentos reais pelos quais o pensamento efetivo age
sobre os corpos, a filosofia abdica de sua posição central.
Mas o saber que ela então produz não define nenhuma arma
das massas à maneira marxista. É simplesmente um novo
mapa no terreno desse pensamento efetivo e descentrado. Ele
não fornece à revolta nenhuma consciência. Mas torna
possível que a rede de suas razões casualmente se junte à rede
das razões daqueles que, aqui ou ali, se valem de seu próprio
saber e de suas próprias razões para introduzir o grão de areia
que emperra a máquina. Assim, a arqueologia das relações de
poder e dos funcionamentos do pensar não funda mais a
revolta do que a submissão. Simplesmente redistribui os
territórios e os mapas. Ao subtrair o pensamento de sua
posição central, ela reconhece o de cada um e o de todos,
especialmente o dos "homens infames" de quem Foucault
empreendeu escrever a vida. Mas ao mesmo tempo ela
impede que esse pensamento, restituído a todos, se instale na
centralidade de um confronto do saber e do poder.

Sentimento do intolerável
Isso não quer dizer que a política se perca na multiplicidade
das relações de poder disseminadas por toda parte, mas sim

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que ela é sempre um salto que nenhum saber justifica e do


qual nenhum saber isenta. De qualquer saber a qualquer
intervenção, a passagem supõe um intermediário singular, o
sentimento de um intolerável.
"A situação nas prisões é intolerável", declarou Foucault ao
fundar, em 1971, o Grupo de Informação sobre as Prisões.
Esse "intolerável" não resulta da evidência do saber e não se
dirige a nenhuma consciência universal que seria assim
forçada a concordar. É apenas um "sentimento", o mesmo
certamente que levara o filósofo a envolver-se no território
desconhecido dos arquivos, sem saber aonde este o levaria e
muito menos aonde poderia levar os outros.
Alguns meses mais tarde, porém, o intolerável do filósofo
haveria de juntar-se àquele que os prisioneiros em revolta de
várias prisões francesas declarariam com as próprias armas e
apoiados em seu próprio saber. O pensamento não se
transmite à ação. Um pensamento transmite-se a um
pensamento, e uma ação provoca uma outra. O pensamento
age na medida em que aceita não saber exatamente o que o
impele e em que abre mão do controle de seus efeitos.
Parece que o próprio Foucault teve dificuldade de assumir
esse paradoxo inteiramente. Sabe-se que por um longo
momento ele parou de escrever. Foi justamente depois de "A
Vontade de Saber", livro em torno do qual se batem hoje os
exegetas. Esse livro introduzia em princípio uma "História da
Sexualidade" cuja significação ele resumia antecipadamente.
Parece que Foucault teve medo desse caminho traçado de
antemão.
Antes que a iminência da morte o levasse a publicar "O Uso
dos Prazeres" e "O Cuidado de Si", nada mais publicou a não
ser entrevistas. Nestas, é claro, era sempre solicitado a dizer o
que ligava suas pacientes investigações nos arquivos com
suas intervenções sobre a repressão na Polônia, seu mergulho
nas técnicas gregas da subjetividade e seu trabalho com uma
confederação sindical. Todas essas respostas, percebemos
bem, são outros tantos engodos que reintroduzem uma
posição de mestre que seu trabalho mesmo arruinara.
Acontece a mesma coisa com todas as racionalizações que
deduzem de seus escritos o princípio da revolução "queer", da
emancipação das multidões ou de uma nova ética do
indivíduo. Não há pensamento de Foucault que fundamente
uma política ou uma ética novas. Há livros que produzem
efeito na medida mesmo em que não nos dizem o que
devemos fazer. Os embalsamadores terão dificuldades.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.

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