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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A arte além da arte - 24/10/2004

São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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+ autores

Como a maior parte das mostras atuais, Bienal de SP


acalenta o sonho de construir as formas de uma vida
nova e reparar 'as falhas do vínculo social'

A arte além da arte


Jacques Rancière

Logo ao transpor a porta da 26ª Bienal de São Paulo, o


visitante é surpreendido: diante dele, um "Pesadelo de Jorge
5º" mostra-lhe um tigre atacando um elefante: à sua direita
estende-se um cenário de pirâmides, semelhante às maquetes
dos museus de arqueologia; à sua esquerda, máquinas de
costura nas quais mulheres juntam fios, como para trabalhar
na confecção do cenário que as cerca: quadrados de
patchwork nos quais são dispostas imagens urbanas ou rurais
em musgo coberto de tecidos coloridos, que lembram ao
mesmo tempo os bichos de pelúcia e os jogos de construção
infantis, para significar uma interrogação sobre as
transformações econômicas e a mutação das identidades na
China contemporânea. Continuando a visita, ele encontrará,
entre outras coisas, um barco com vela colorida que evoca a
travessia de Portugal ao Brasil, uma casa de sonhos feita de
tecidos, uma tenda mongol, um "Puzzle Polis 2º" de um
artista de favela, que dispõe, como numa cidade, lâmpadas
em forma de edifícios ou de automóveis; 198 retratos de
camponeses chineses, amontoados como num grande
afresco; uma assemblage de dezenas de fotografias,
representando a sala de estar de malaios de todas as
condições, etnias ou religiões; fotografias de uma pequena
cidade polonesa, testemunhando a miséria pós-socialista;
fotografias de lugares sórdidos da América profunda,
testemunhando o avesso da prosperidade capitalista;
pequenas fotografias de ucranianos de classe média, coladas
sobre grandes cenários "kitsch" de parques floridos com
lagos e cisnes. É aceito, entre os nostálgicos, que a arte
contemporânea é o reinado do "qualquer coisa". Esse
julgamento é demasiado global para nos instruir. O pretenso
qualquer coisa é sempre alguma coisa, uma mistura
determinada que mostra um dado estado das relações entre
as formas da arte e os objetos, imagens ou costumes da vida
ordinária. O que reina na Bienal de São Paulo, como em
tantas exposições contemporâneas, não é a simples fantasia
de artistas que seguem seu capricho. Ao contrário, o visitante
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é impressionado pela similitude das preocupações a que os


artistas obedecem e dos procedimentos que empregam,
sejam eles chineses ou norte-americanos, brasileiros,
indonésios ou eslovacos. Certamente a unidade se deve à
escolha do organizador, que fixou aos artistas por ele
selecionados um tema, o da cidade.

Obsessão pelo real


Mas essa escolha reflete, ela mesma, uma tendência
dominante na arte contemporânea. Essa tendência pode se
caracterizar como uma espécie de obsessão ou até mesmo
um fanatismo pelo real.
A obsessão pelo real assume várias formas. Pode ser a
preocupação em testemunhar o estado do mundo por meio da
objetividade da máquina fotográfica que nos restitui
exatamente os cenários da vida ordinária em tempos de
globalização.
Pode ser o desejo de mesclar as imagens da cultura cotidiana
ou os objetos da arte popular com os dispositivos conceituais
dos artistas. No Rio de Janeiro, simultaneamente, a
exposição "Tudo É Brasil" [que estréia em SP, no Itaú
Cultural, em 9/11], mostrava o sonho insistente de uma arte
brasileira de unir o modernismo construtivista às formas da
arte ou da cultura popular, seja como grandes quadros
abstratos feitos de uma multiplicidade de dominós ou peças
de bola de futebol, seja como obras em vídeo que recolhem a
arte dos grafites e das pinturas de rua.
É ainda a vontade de fabricar verdadeiros objetos, objetos
livres da irrealidade da tela pintada ou da mediação da
reprodução fotográfica e que imponham imediatamente sua
realidade nas três dimensões do espaço: uma casa, uma
tenda, um barco... Como se a recusa do simulacro da
representação tivesse tomado a direção oposta daquela que
marcou a arte do tempo de Malevitch ou de Mondrian: não
mais a tela abstrata, mas o objeto verdadeiramente existente
como objeto do mundo.
No "Crátilo", Platão evocava o limite ao qual tende a
semelhança e no qual se arrisca a se abolir. Esse limite é o
objeto absolutamente semelhante ao modelo, a cópia que não
mais se distingue da coisa real. Cratilismo ficou sendo desde
então o nome dessa tentativa de fazer do signo ou da imagem
não mais um índice ou uma cópia da coisa, mas a coisa
mesma. E não há dúvida de que o cratilismo está presente
nesta bienal assim como em muitas manifestações da arte
contemporânea.
Mas a obsessão pelo real é também a do ato que intervém
diretamente na realidade social. Nas paredes das exposições
contemporâneas vêem-se com freqüência fotografias ou
vídeos que comprovam tais intervenções: provocações de um
Gianni Motti imiscuindo-se, numa mise-en-scène de ficção
política, no núcleo dos segredos de Estado, ou de um
Santiago Serra que paga subproletários mexicanos para que
imitem sua exploração, cavando seu próprio túmulo. Não é
de provocação que se trata na obra de um artista cubano
apresentada na Bienal. Com um grupo de artistas, ele
destinou o dinheiro de uma fundação artística a uma
pesquisa sobre as necessidades dos habitantes de um bairro
pobre.
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Mas não basta pesquisar as necessidades. É preciso também


responder a elas. O vídeo de René Francisco nos mostra os
artistas/ artesãos ocupados em refazer o telhado de zinco e a
pintura na casa de um velho casal, cuja sombra na tela os
observa.
Será isso arte, perguntarão os estetas? Aqui também a
questão está mal colocada. Pois a arte moderna inteira foi
habitada pela preocupação de sair de si para tornar-se uma
forma de intervenção que transforme a realidade mesma das
coisas. Os pioneiros de uma pintura abstrata, reduzida à sua
essência de assemblage de formas coloridas, foram também
os paladinos de uma arte que é mais que uma arte, que se
transforma numa espécie de vida comum. Não mais fazer
"pintura", como realidade separada, mas construir as formas
de vida e o mobiliário de uma vida nova -tal foi o sonho
comum a Mondrian e a Malevitch. Tal foi a base da adesão
da vanguarda artística à criação da "vida nova" soviética.
O que é novo e significativo, portanto, não é a vontade de
uma arte que saia de si mesma para agir diretamente no
mundo. É a forma hoje assumida por essa vontade, uma
forma de assistência individual aos mais desfavorecidos que
tanto as vanguardas artísticas como os construtores do
socialismo rejeitavam até pouco tempo atrás. O sonho de
uma arte que construa as formas de uma vida nova tornou-se
o projeto modesto de uma "arte relacional": arte que busca
criar não mais obras, mas situações e relações, e nas quais o
artista, como diz um teórico francês dessa arte, presta à
sociedade "pequenos serviços" próprios a reparar "as falhas
do vínculo social".
A ironia é que essa estética da arte como serviço social seja
particularmente representada na Bienal por artistas
provenientes dos últimos países que invocam o socialismo
marxista.
Não é muito proveitoso pôr em causa a ingenuidade dos
artistas ou a esperteza dos organizadores. Pois essa obsessão
pelo real, essa vontade febril de "fazer" algo que seja um
objeto sólido, uma ação efetiva ou um testemunho sobre o
estado do mundo, reflete também a posição singular da
atividade artística num mundo onde tendem a se apagar não
apenas os grandes projetos revolucionários mas as próprias
formas do conflito político. O vazio da cena política incita os
artistas e os atores do mundo da arte a utilizar seus meios e
seus lugares para testemunhar uma realidade das
desigualdades, das contradições e dos conflitos que o
discurso consensual tende a tornar invisíveis e a opor suas
propostas de intervenção ao fatalismo reinante.
O problema é que esse esforço indiscutível de muitos artistas
para romper o consenso dominante e questionar a ordem
existente tende a se inscrever, ele próprio, no quadro das
descrições e das categorias consensuais, reduzindo o poder
artístico de provocação às tarefas éticas de testemunho sobre
um mundo comum e de assistência aos mais desfavorecidos.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Acaba de lançar na França "Malaise dans l"Esthétique"
(Mal-Estar na Estética, ed. Galilée). Ele escreve regularmente na seção
"Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.
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